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1ª Edição · 2018

ÁGUA EM DISPUTA O QUE EXPORTAMOS?


Habitante tradicional dos Cerrados do Os impactos promovidos pelo agronegócio
Oeste da Bahia, povo Correntino resiste no Cerrado como modelo a ser seguido em
e luta por água e territórios livres. outros países, a exemplo, Moçambique.
REVISTA CERRADOS
1ª Edição - 2018

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA


EXPEDIENTE

Comissão Pastoral da Terra (CPT) – Secretaria Nacional


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A Comissão Pastoral da Terra é um organismo ligado à Comissão para o Serviço da


Caridade, da Justiça e da Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
A CPT é membro da Pax Christi Internacional.

A Articulação das CPT’s do Cerrado é um projeto que reúne os Regionais da


Comissão Pastoral da Terra nos estados do bioma Cerrado.

Goiânia (GO), dezembro de 2018

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecário responsável : Enderson Medeiros CRB1:2276
R454 Revista Cerrados / Comissão Pastoral da Terra ; edição,
Elvis Marques – Goiânia : CPT, 2018.
[60] p., il. tabs. e figs.

Inclui bibliografia.
ISSN :

1. Cerrados - Brasil. 2. Biodiversidade - Conservação.


3. Proteção ambiental - Cerrados – Brasil. I. Comissão
Pastoral da Terra. II. Marques, Evis.

CDU: 504.03(81)

Diretoria da CPT: Imagens capa e contra-capa:


D. André de Witte – Presidente João Zinclar / Joka Madruga / Leonardo Milano
D. José Ionilton – Vice-presidente
Edição:
Coordenação Executiva Nacional: Elvis Marques - Reg. prof. 0003705/GO
Isolete Wichinieski
Jean Ann Bellini Revisão:
Paulo César Moreira dos Santos Elvis Marques
Ruben Alfredo de Siqueira Mário Manzi - Reg. prof. 0005157/GO

Coordenação Editorial: Diagramação:


Articulação das CPT’s do Cerrado Vivaldo da Silva Souza

Design editorial capa e contra-capa: Impressão:


Estúdio Massa Scala Editora

Apoio:
Imagem principal por Eanes Silva / (Da esq. para dir.) Foto 1 e 4: Thomas Bauer / Foto 2 e 5: João Zinclar / Foto 3: Eanes Silva
ACUMULAÇÃO POR LEGISLAÇÃO
O Código Florestal e o Cadastro Ambiental Rural (CAR) como ferramentas para a expansão do
agronegócio e da apropriação de terras nos Cerrados brasileiros

ANÁLISES
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FRONTEIRAS A MORTE EXPORTANDO CONFLITO ESPECULAÇÃO COM


DESMEDIDAS: O SILENCIOSA DOS INJUSTIÇA POR ÁGUA EM TERRAS
CERRADO E A RIOS DO CERRADO AMBIENTAL E CORRENTINA NO MATOPIBA
PROPRIEDADE DA Não é preciso ser AGRÁRIA
TERRA NO BRASIL especialista para ver O modelo de ocupação População dá recado: O momento de alta
Um bioma que o prejuízo irreversível dos Cerrados pelo “Ninguém morrerá dos preços de
possui uma trajetória causado nas áreas do agronegócio tem sido de sede nas commodities gerou
histórica singular Cerrado exportado para margens do Rio expansão territorial
em seu aspecto outros países Arrojado” de monocultivos
fundiário

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APRESENTAÇÃO

A Revista Cerrados
Os Cerrados, no plural, é a manei- lo de “desenvolvimento” a ser implementado
ra mais adequada para se referir a um dos em outras localidades.
ecossistemas mais ricos do mundo e funda-
mentais não somente para quem vive nesse Pesquisadores e pesquisadoras do Cer-
território, mas para as populações de outras rado, Altair Sales Barbosa, Maurício Correia,
regiões brasileiras e da América Latina. Ri- Diana Aguiar, Samuel Britto das Chagas,
queza visível na biodiversidade do bioma e Marcela Vecchione, Fábio Pitta e Maria Luisa
em sua função estratégica de abastecer as Mendonça evidenciam, em suas análises nes-
principais bacias hidrográficas brasileiras ta publicação, as ameaças dessa expansão de-
e de nossos vizinhos, Paraguai, Argentina, senfreada do capital sobre os modos de vida
Uruguai e Bolívia. dos povos e comunidades do Cerrado.

A diversidade dos Cerrados está pre- Uma ofensiva que se dá em diversos


sente em cada rosto de seus povos e co- níveis, tais como: a violência física; as ame-
munidades tradicionais: indígenas, qui- ças de morte; a destruição de bens; a grila-
lombolas, quebradeiras de coco babaçu, gem de terras e das águas; as contaminações
camponeses, fundo e fecho de pasto, re- do solo, das águas e das pessoas através dos
tireiros do Araguaia, vazanteiros e tantos agrotóxicos; o desmatamento; e a pressão
outros. Esses são os guardiões desse es- por flexibilização de direitos territoriais e
paço de vida. Os saberes ancestrais dessas ambientais.
pessoas constituem a sociobiodiversidade
do bioma, e o cuidado com nossa Casa A Comissão Pastoral da Terra (CPT),
Comum e o manejo consciente garantem após dois anos, se alegra em integrar a Cam-
a resiliência dos Cerrados. panha Nacional em Defesa do Cerrado, que
tem colocado em voga, nacional e internacio-
Esta compreensão acerca dos Cerra- nalmente, essas diversas problemáticas sobre
dos do Brasil se contrapõe ao agro e hidro- os Cerrados brasileiros. Essa iniciativa propi-
negócio, suas cadeias econômicas associadas ciou, por exemplo, ações concretas contra as
e ao próprio Estado, que reconhece o bioma, investidas de fundos de pensão americanos e
a partir da produção de grãos, apenas como europeus nos territórios de povos e comuni-
“celeiro do mundo”. Afirmação clara nos dades tradicionais.
planos governamentais, ditos de desenvolvi-
mento, que apresentam a região, principal- Em contraponto a esse cenário confli-
mente a partir da década de 1970, como uma tuoso, a Revista Cerrados evidência a auto-
das mais ricas para a produção de commodi- -organização e as resistências dos povos dos
ties. Cerrados na defesa dos seus territórios, a
defesa dos bens comuns e a construção con-
A primeira edição da Revista Cerrados tínua do Bem Viver.
analisa a expansão do agro e hidronegócio
na região denominada pelo capital de MA- Esperamos que a Revista Cerrados
TOPIBA e sua relação com outras Savanas seja um instrumento de luta e resistência
na África e na América do Sul, como mode- para você, Cerradeiro e Cerradeira.

Coordenação da Articulação das CPT´s do Cerrado

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Foto: Eanes Silva

Fronteiras desmedidas:
O Cerrado e a propriedade
da terra no Brasil
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çuaí, na região do Vale do Jequitinhonha, e
de Rio de Contas, no sul da Chapada Dia-
mantina, por volta de 1700, povos como os
MAURÍCIO CORREIA1 Maracás já estavam desaparecidos. O sertão
da Caatinga estava então livre para a expan-

O
bioma Cerrado possui uma são da pecuária.
trajetória histórica singular
em seu aspecto fundiário. En- A região dos Cerrados, por seu lado,
cravado no coração do interior brasileiro, foi permanecia inacessível. Foi na região do
alcançado pela colonização agrícola fundada além São Francisco, fronteira natural entre
na monocultura de exportação quatro sécu- os dois biomas, que muitos dos povos origi-
los após a instalação do Governo Geral da nários em guerra se refugiaram e muitos ali
Colônia (1549). Litoral e sertão cumpriam refizeram a vida. Este imenso território seria
funções distintas no projeto colonizador. Ao acessado não pelos baianos, mas pelos pau-
primeiro, estava destinada a agricultura no listas, que em 1726 descobriram ouro e se fi-
sistema plantation, cuja base era o latifún- xaram na atual Cidade de Goiás, que se tor-
dio da cana, o engenho e a escravidão em nou o posto avançado para as entradas mais
sua face mais cruel; ao sertão, que designa- ao norte. Ainda no século XVIII, foi aberta a
va àquela altura todo o interior conhecido e estrada ligando Salvador à Cidade de Goiás,
desconhecido, se buscava as minas de ouro e saindo do São Francisco pelo atual municí-
diamantes, e no seu encalço seguia uma pe- pio de Correntina e tomando a direção do
cuária extensiva, que se desenvolvia no en- sul. No grande rio, concentrava-se o maior
torno de currais e rústicas sedes de fazendas. número de currais do interior do país, que
forneciam gado dali, por uma rede de estra-
O sertão, Cerrado e Caatinga também das, para as minas e a capital da Colônia.
eram lugares de morada e circulação de mui-
tos povos indígenas e de quilombos. Na Ca- Até o século XIX, entretanto, foram
atinga, uma diversidade de povos conheci- poucas as fazendas de gado que ultrapassaram
dos por Tapuias, ocupavam desde o norte de os limites a oeste do São Francisco. No perío-
Minas Gerais até o Ceará. Não toleravam a do entre 1650 e 1750, apenas no município de
colonização e contra ela promoviam guerra Barra foram concedidas algumas Sesmarias2.
permanente. Sabotavam currais e caminhos, Em 1720, o latifundiário Garcia D’Ávila, cuja
impedindo a circulação de mercadorias. Na família acumulava por sucessivas gerações
segunda metade do século XVII, após der- grandes concessões de terras que iam do li-
rotas sucessivas de entradas de bandeirantes toral da Bahia ao São Francisco, foi um dos
pelo sertão baiano, os latifundiários locais primeiros a instalar currais nos Cerrados do
convocaram os paulistas e seus exércitos sul do Piauí e Maranhão. Em guerra a muito
mercenários para uma guerra de extermínio. custo vencida aos índios de etnias como Ara-
Quando foram descobertas as Minas de Ara- nhen e Porcaby, conseguiram concessões de

1
Advogado Popular, graduado em direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Especialista em Direitos Sociais
do Campo pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atua desde 2008 em defesa de posseiros e comunidades rurais em situação
de conflito fundiário. Membro da equipe da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia (AATR),
atualmente compõe a coordenação da entidade.
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SANTOS, Márcio Roberto Alves dos. Fronteiras do Sertão Baiano: 1640-1750. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo (USP).
São Paulo, 2010.

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Sesmarias, instalaram currais e dali construí- sem acesso à energia elétrica, que vivem de
ram uma estrada para Salvador, via Juazeiro3. modo semelhante aos de seus antepassados
Durante muitos anos esta estrada continuou mais remotos. Não se apropriam da terra in-
sendo atacada pelos povos indígenas. dividualmente. A terra serve ao uso comum.
Plantam, cultivam e criam como os antigos
Em Goiás, novas minas eram desco- faziam. Coletam os frutos e raízes do Cer-
bertas na região Centro-Norte do estado, a rado, para doces, remédios e (porque não?)
exemplo de Pirenópolis e Natividade (atual para temperar as cachaças.
Tocantins). Quilombos formavam-se redor
das minas ou nos Gerais (Cerrados) mais Legislação de terras
distantes. A colonização possuía sua dinâ- e exploração do Cerrado
mica própria de circulação de mercadorias,
voltadas para a exportação, mas a monocul- Uma visão sobre toda esta ordem – de-
tura e o ouro dependiam também de uma sordenada – de fatores é necessária à com-
economia interna que necessitava tanto de preensão da questão agrária (e particular-
infraestruturas (estradas) quanto de organi- mente fundiária) no Cerrado. Na tradição
zação burocrática e militar. No interior do jurídica brasileira, carente de qualquer rup-
país, com suas distâncias e dinâmicas pró- tura ou descontinuidade significativa entre a
prias, uma outra sociedade se engendrava legislação da Colônia e Império, Império e
em paralelo àquela dos currais e das minas. República, atribui-se ao Tratado de Tordesi-
lhas (1494) a legitimidade dos monarcas de
Muitos povos indígenas, distantes das Portugal e Espanha de se apossarem das ter-
estradas e das vilas que começavam a ser ras do continente americano. Gravado com o
criadas, mantiveram seus hábitos e seguiram selo do Papa Alexandre VI, no tratado fixou-
por séculos e gerações sem serem importu- -se que as terras conquistadas 300 léguas a
nados. Viviam em Gerais distantes, onde as oeste do arquipélago de Açores, pertenciam
léguas não os alcançavam. Os que viviam ao rei de Portugal; a oeste, ao da Espanha.
mais próximos, caso assediados, muitas ve-
zes lançavam ataques às vilas e currais, in- A linha do Tratado atravessa a parte
cendiando-os. Negros que fugiam da escra- leste do Cerrado, menos da metade do bio-
vidão das minas, dos currais e dos engenhos, ma. Sua linha sai em São Luís (MA), passa
muitas vezes encontravam apoio e abrigo em no planalto central e alcança o mar de novo
comunidades indígenas4. na atual Florianópolis. Portanto, segundo o
acordo, grande parte do bioma, que com-
No tempo e no espaço, a colonização preende toda a região do Mato Grosso e
branca e os modos de fazer, viver e criar dos parte de Goiás, seriam terras da Espanha.
povos originários e quilombolas navegavam Os bandeirantes paulistas, no entanto, ig-
por caminhos distintos. Passados quatro- noram o acordo europeu e adentraram no
centos anos de colonização marcada pela Mato Grosso em busca de ouro e captu-
violência e genocídios, hoje ainda encon- rando indígenas para escravizá-los. Foram
tramos nos Gerais e nas chapadas centenas fixando vilas, que demandavam por estra-
de comunidades indígenas e quilombolas, das. Frequentemente atacadas, muitas vilas

Freire, Felisbelo. História Territorial do Brazil. Fac-simile de: Rio de Janeiro, 1906. Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1998.
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Há também registros de estranhamento e conflitos.


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eram abandonadas e depois retomadas. Em No Brasil, sua aplicação foi completa-
1750, a Espanha reconhecia que o direito mente subvertida. Famílias e potentados que
de conquista é fundado no princípio do uti vieram ao Brasil com Tomé de Souza (1549),
possidetis (quem tem a posse tem o domí- a exemplo do já citado Garcia D’Ávila, recru-
nio) e assinava com Portugal o Tratado de tavam milícias, solicitavam ao rei a decreta-
Madri, que aproximou as fronteiras aos li- ção de guerra justa a determinado gentio e, al-
mites atuais do Brasil. cançado o objetivo, posteriormente requeria
suas terras em concessão. Quanto mais índios
Estes elementos são fundamentais e aprisionados ou dizimados, maior era a con-
necessários para a compressão do nosso atu- cessão de terras. Nelas, erguiam os currais,
al sistema de registro de terras. Se todas as cuidados por vaqueiros muitas vezes arregi-
terras conquistadas pertenciam ao rei, não mentados entre os próprios povos vencidos.
havia propriedade privada da terra no Bra- Na segunda metade do século XVII foram
sil durante todo o período colonial. Com a concedidas dezenas de sesmarias que for-
Independência, as terras passaram ao domí- malmente possuíam inacreditáveis 50 léguas
nio do Império. Daqui, decorre um princí- quadradas (aprox. 180 mil hectares); além de
pio básico que permeia toda a tradição da serem terras muitas vezes ainda não conquis-
legislação fundiária no país: todas as terras tadas em sua totalidade, ou seja, englobavam
brasileiras são de origem pública. áreas ainda na posse de remanescentes indí-
genas, ou já ocupadas por famílias posseiras,
Em síntese, para um melhor entendi- pequenos agricultores que aos poucos se fixa-
mento, podemos classificar a legislação fun- vam em pontos esparsos do interior.
diária brasileira em quatro períodos: Regime
de Sesmarias (1549-1821); Regime de Posses Neste período, várias sesmarias eram
(1821-1850); Lei de Terras (1850-1889)5; Pe- concedidas com limitações em apenas três
ríodo Republicano (1889-Atual). Num rápi- lados, ou seja, não fechavam o quadrilátero.
do percurso pela história, alguns comentá- Os fundos ficavam abertos, e era ali onde o
rios sobre cada um deles. sesmeiro6 avançava indefinidamente seus
domínios, inclusive cobrando foro e taxas de
No Regime das Sesmarias, encon- posseiros eventualmente existentes. Neste
tramos o pecado original da formação do ponto temos um exemplo histórico da vora-
latifúndio. A Lei de Sesmarias, editada em cidade das elites agrárias brasileiras por mais
Portugal no ano de 1375, foi criada para que e mais terras; ainda que não as cultivem, vi-
o rei pudesse retomar, em caso de crises de vem da renda produzida por quem o faz ou
abastecimento de alimentos, as concessões da valorização artificial da terra.
de terras feitas a quem não queria ou não
podia cultivá-las. As terras da metrópole Os limites indefinidos nas cartas de
também pertenciam ao rei, e daí surge a de- Sesmarias consistiam, afinal, em um grande
nominação de terras devolutas. Foi uma lei trunfo para os latifundiários. Pela Lei de Ses-
que, à sua maneira, já incorporava o princí- marias e Ordenações Afonsinas, era proibi-
pio da função social da terra. da a concessão de Sesmarias nas dimensões

A Lei de Terras, revogada em partes, ainda permanece em vigor.


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SANTOS, Marcio Roberto Alves dos. Fronteiras do Sertão Baiano: 1640-1750. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo (USP).
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São Paulo, 2010.

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acima indicadas. Tratava-se, basicamente, Iniciava-se ali o que hoje se denomina
de uma concessão fora da norma. Noutra Regime de Posses, no qual a apropriação das
perspectiva, para que a concessão da Ses- terras devolutas se dava pela mera ocupação,
maria fosse posteriormente confirmada, era sem qualquer legislação a regular esse acesso,
necessária a sua medição e comprovação de agravando ainda mais o quadro de descontrole
cultura, ou seja, deveria estar cultivada; caso do Estado quanto à destinação das terras que
contrário, a Sesmaria cairia em comisso, ou formalmente compunham o seu patrimônio.
seja, estaria em condição irregular, devendo
ser devolvida ao patrimônio da Coroa. Somente após trinta anos, em 1850, se
chegou a uma redação que expressasse um
Portanto, dadas as dimensões das Ses- acordo possível, que culminou na promul-
marias concedidas, é razoável supor que se- gação da Lei nº 601/1850, conhecida como
quer havia meios disponíveis aos senhores Lei de Terras. Nela, ficou estabelecido que as
da época para explorá-las diretamente na terras devolutas do Império somente seriam
sua totalidade. Muitas vezes o fizeram por acessadas por meio da compra e da venda,
meio de procuradores, que tanto cultivavam inaugurando, portanto, o mercado privado
como negociavam terras em seu nome, ou de terras no país.
cobrava taxas de ocupação de posseiros – o
que também era proibido e gerava queixas Nesta lei foram estabelecidos os cri-
permanentes. Esta dinâmica configura fortes térios para separar as terras públicas devo-
indícios no sentido de que a maior parte des- lutas das terras particulares. Seriam terras
tas terras tenham se tornado devolutas. particulares aquelas oriundas de Sesmarias
que não estivessem em comisso, ou seja, que
É provável que ao fim do Regime de tenham cumprido as condições presentes na
Sesmarias, em 1821, apenas uma minoria carta de concessão; aquelas Sesmarias que,
dentre as Sesmarias tenha alcançado as con- mesmo não confirmadas, atendessem aos
dições para a sua confirmação, seja por omis- critérios estabelecidos pela lei, que consistia
são do concessionário e seus herdeiros quan- no cultivo e morada habitual do concessio-
to aos prazos sequencialmente estabelecidos nário ou de seus herdeiros; e, por fim, aque-
na segunda metade do século XVIII, seja por las adquiridas por ocupação primária du-
absoluta conveniência deles, deixando sem- rante o Regime de Posses, que comprovasse
pre os limites demarcatórios em aberto. moradia habitual e cultivo (legitimação de
posse). Todas as demais consistiriam em ter-
Por sua vez, tanto o Governo Colonial ras devolutas, somente acessíveis por meio
quanto o Império jamais estruturam uma da compra.
burocracia capaz de fiscalizar o cumprimen-
to ou não destas condicionantes. Predomi- Com a queda do Império e instauração
nava o total descontrole sobre quais títulos da República, em 1891, na primeira consti-
de concessão seriam válidos ou não. Este tuição do novo regime, foram transferidas
impasse, somado ao temor do fim do regime todas as terras devolutas do Império para os
escravocrata que já se anunciava com a Inde- estados da nova federação, à exceção da faixa
pendência, fez com que as elites agrárias não de fronteira. Esta medida visava atender aos
chegassem a um entendimento sobre como anseios das oligarquias agrárias que manti-
dar um tratamento legal ao acesso e uso das nham forte domínio local sobre os votos (de
terras do novo país. cabresto) da Câmara Federal e Senado.

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“Caos fundiário”: assim

Foto: Rosilene Miliotti - FASE


é designada a estrutura
fundiária no Cerrado por
pesquisadores - realidade não
somente deste bioma, claro.
Com suas escrituras em
mãos, as duas trabalhadoras
do sul do Piauí estão em
uma região marcada pela
grilagem de terras da União,
que hoje são, inclusive,
comercializadas
internacionalmente. Além
disso, as comunidades
têm lutado para que a
regularização fundiária
proposta pelo Governo do
Estado ouça quem ali vive
há gerações, os povos do
Cerrado

A rigor, tudo mudava para perma- nesas (1945-64) e Trombas e Formoso (1950-
necer exatamente como estava. Os antigos 1957), indicavam que no destino do Brasil
barões, agora coronéis, reinavam absolutos havia uma questão agrária não resolvida.
pelos interiores do país com suas milícias de
jagunços, à revelia de qualquer controle so- Nas décadas de 1960 e 1970, o campo
bre a apropriação que promoviam de mais e brasileiro chegou ao ápice das suas contradi-
mais terras. Com domínio do Estado, estas ções internas, explodindo em violência con-
oligarquias jamais consentiram com uma tra posseiros, comunidades e trabalhadores
política de ordenamento fundiário, pois rurais. O latifúndio improdutivo predomi-
isto significaria a ruína dos seus negócios. nando em um país miserável e faminto, se
Teriam que comprar terras do Estado, ao converteu em um símbolo das mazelas bra-
invés de simplesmente usurpá-las de comu- sileiras, que exigiu até mesmo das melhores
nidades e posseiros. Ademais, arrecadadas cabeças pensantes da emergente burguesia
as terras devolutas, seria razoável supor que industrial uma solução modernizadora que
algum limite seria estabelecido para que um poderia passar uma ampla e massiva refor-
indivíduo ou empresa não se apropriasse de ma agrária.
grande porção delas.
A solução, no entanto, passou longe
Toda a estrutura fundiária no Cerrado, dela; coube à Ditadura Civil-Militar (1964-
mas não somente nele, está imbricada nesta 85) conduzir um não menos violento proje-
dinâmica que alguns agraristas chamam de to de modernização conservadora, que ao
caos fundiário. Não há controle algum sobre tempo que buscava aplacar os conflitos com
o que é público e o que é privado. Desde o iní- pequenas concessões7, criou as condições
cio do século XX, movimentos como Canu- para o incremento do processo de coloniza-
dos (1896), Contestado (1915), Cangaço (até ção das regiões Norte e Centro-Oeste, desta
os anos 1930), desaguando nas Ligas Campo- vez incentivados os sulistas a comprarem

O Estatuto da Terra (1964) foi uma delas.


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terras baratas, com acesso a crédito fácil e o maior exportador de grãos do mundo, e
tecnologia pública para instalação de lati- o Cerrado perdeu metade da sua cobertura
fúndios produtores de comodities para ex- vegetal original em menos de 50 anos.
portação.
Notamos, portanto, que durante todo
Neste processo, havia plena sintonia o percurso histórico da propriedade da terra
com os governos estaduais e as decadentes no país, pouco foram alteradas as condições
oligarquias locais, que desejavam os be- que têm garantido ao latifúndio uma resi-
nefícios do desenvolvimento do capital no liência sem precedentes em nenhum país
campo, principalmente em termos de arre- do mundo. O Censo Agropecuário de 2017
cadação de impostos. Basta notar que o mu- aponta que entramos em um novo período
nicípio referência do agronegócio na região de intensificação da concentração de terras.
MATOPIBA foi batizado com o nome de A existência do latifúndio já não comove
Luís Eduardo Magalhães (BA). as camadas médias da sociedade brasileira,
como em outros momentos da nossa histó-
A expansão dos latifúndios hoje pre- ria. A Reforma Agrária, neste contexto, está
dominantes no Cerrado, como em toda condenada ao ocaso, e a lenta demarcação e
fronteira agrícola, não se fez sem um pro- titulação de territórios tradicionais e indíge-
cesso de grilagem de terras em alta intensi- nas incomoda como nunca e une ruralistas
dade. Como visto, eram terras baratas. Os e empresas transnacionais contra esta frágil
solos dos Cerrados são, em geral, pobres política pública.
em nutrientes e muito ácidos. Para a agri-
cultura em larga escala, essas condições O Instituto Nacional de Colonização e
são inadequadas, razão pela qual o bioma Reforma Agrária (INCRA), em estudo rea-
era visto como inviável para produção de lizado em 1999 denominado “Livro Branco
grandes monoculturas para o mercado ex- da Grilagem”, no qual realizou um pente fino
portador. sobre os grandes imóveis do país, concluiu
“[…] indícios de irregularidades em 80%
Outras características eram favo- das áreas pesquisadas”. A União e os estados,
ráveis: o relevo plano (planícies e chapa- por sua vez, já possuem os instrumentos le-
dões), condições ideais para a mecaniza- gais para a identificação, delimitação, arre-
ção, a abundância em águas superficiais e cadação e destinação das terras devolutas.
subterrâneas, e um regime de chuvas com Segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino,
calendário relativamente preciso, embora em estudo8 realizado com base nos dados
concentradas nos meses da estação chu- disponíveis no INCRA, cerca de 192 milhões
vosa. Somadas à emergência do pacote de hectares do país (32%) seriam de terras
tecnológico da chamada Revolução Verde, devolutas; retirando deste cálculo possei-
que desponta no contexto pós – 2ª Guerra ros com posses legitimáveis (20 milhões de
Mundial, o Cerrado passou a ser visto já na hectares), seriam 172 milhões de hectares
década de 1940 e 1950 como uma promis- indevidamente cercados como se fossem pa-
sora fronteira agrícola do país. O resulta- trimônio privado9.
do é o que vemos hoje: o Brasil se tornou

Artigo disponível em: http://www.radioagencianp.com.br/node/2235


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Na Bahia seriam 22 milhões de ha; Minas Gerais 14 milhões; Piauí 10 milhões; Mato Grosso 9 milhões; Maranhão 6 milhões
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14 REVISTA CERRADOS
Há legislação até em excesso no que

Foto: Thomas Bauer / CPT Bahia


se refere às possibilidades de arrecadação e
destinação destas terras. A Constituição Fe-
deral, em seu art. 225, § 5º, determina que as
terras devolutas necessárias à proteção dos
ecossistemas são indisponíveis; determina a
demarcação de terras quilombolas – cente-
nas delas estão sobre terras devolutas; algu-
mas constituições estaduais priorizam a des-
tinação das terras devolutas estaduais para
assentamentos da Reforma Agrária, regu-
larização fundiária e reservas ambientais; a
Convenção 169 da Organização Internacio-
nal do Trabalho (OIT), em vigor desde 2004, Para Maurício Correia, que afirma que o bioma Cerrado
assegura os direitos de povos indígenas e co- possui uma trajetória histórica singular em seu aspecto
fundiário, a diversidade de povos e comunidades desse
munidades tradicionais à posse e proprieda- bioma, assim como os movimentos sociais, têm o desafio
de dos seus territórios. de apontar caminhos para uma libertação da terra e do
território “do julgo dos seus feitores”.

Os procedimentos de demarcação,
contudo, são extremamente burocráticos e
levam décadas quando chegam a ser con- das em cartório passíveis de anulação caso
cluídos. Não há solução simples para a o suposto proprietário não comprovar que
questão fundiária no país, dados os inte- possui um título válido nos termos estritos
resses econômicos, políticos e sociais que da legislação atual.
a envolvem. Mas, sem dúvida, tal solução
deveria passar uma proposta radical de de- Com o mapeamento total da malha fun-
finição sobre o que é terra pública e terra diária, se abririam possibilidades técnicas para
privada10. Há processos de demarcação e uma política pública radical de reordenamento
titulação de comunidades quilombolas em fundiário, associado a um ordenamento am-
curso no INCRA, por exemplo, nos quais biental. Estamos muito distantes, porém, das
estão previstas indenizações milionárias condições políticas e sociais que resultem num
para imóveis cujos supostos proprietários acúmulo de forças necessário para o enfrenta-
apresentam títulos de domínio sem o devi- mento das velhas e novas elites rurais, abole-
do destaque do patrimônio público. tadas sobre as estruturas de um poder político
carcomido e reoxigenadas pela presença do
Estando disponíveis os instrumentos capital internacional no campo. Cabe aos mo-
tecnológicos mais acessíveis e precisos, não vimentos camponeses, aos posseiros, aos sem
seria inviável o georreferenciamento de todo terras, quilombolas, indígenas, geraizeiros,
o território nacional, discriminando imóvel ribeirinhos, quebradeiras de coco, fundos e
por imóvel, assim como as terras ocupadas fechos de pasto, o desafio de apontar os cami-
por posseiros ou comunidades, tornando to- nhos para a libertação da terra e dos povos da
das as matrículas de imóveis rurais registra- terra do julgo dos seus feitores.

As terras com ocupação indígena não são consideradas devolutas.


10

REVISTA CERRADOS
15
A morte silenciosa

Foto: Thomas Bauer - CPT Bahia


dos rios do Cerrado

16 REVISTA CERRADOS
longo de milhões de anos foi sendo depo-
sitada na região, como é o caso do arenito
Urucuia em Minas, oeste da Bahia, noroes-
ALTAIR SALES BARBOSA1 te do Tocantins e o arenito Poty do sul do
Piauí e Maranhão.

D
e maneira geral ou bem espe-
cífica, como é o caso dos cur- Quando a fonte de insulina é in-
sos d’águas do oeste da Bahia, suficiente, os cursos d’águas superficiais
sul do Piauí, noroeste do Tocantins, Mara- entram em desequilíbrio manifestado de
nhão e norte de Minas Gerais, as águas do diversas formas. O desequilíbrio altera a
Cerrado padecem de um mal semelhante à dinâmica do rio, como se afetasse o seu
diabetes escondida ou disfarçada, que, quan- sistema nervoso; aumenta a turbidez da
do se manifesta, dificilmente o portador es- água, como se seus rins deixassem de fun-
capa com vida. cionar; além de que, o veneno utilizado
fica no solo e, quando carreado para o lei-
No caso da diabetes, a doença vai mi- to do rio, afeta seu sistema vital, fazendo
nando paulatinamente alguns órgãos vitais, desaparecer grande parte de sua fauna. A
terminando com a falência deles. A ampu- ausência de água nos lençóis subterrâne-
tação de membros é apenas uma das mani- os provoca a amputação de vários mem-
festações, mas a doença ataca rins, coração e bros integrantes da bacia, amputação ini-
sistema nervoso. cia com a migração das nascentes até o
desaparecimento total de muitos cursos
d’água. Este é o início do fim e se conclui
Não é preciso ser com a morte do rio e todo seu entorno,
especialista para enxergar incluindo a desestruturação de comuni-
dades humanas, por meio da desterrito-
o prejuízo irreversível rialização.
causado nas áreas
do Cerrado Nunca compreendi a atitude de cer-
tos funcionários públicos que, utilizando
de imagens de satélite, argumentam que
A diabetes pode ser considerada uma 40% ou 50% de Cerrado ainda está preser-
doença crônica que tem como causa a falta vado. A imagem de satélite para esta finali-
de produção de insulina no organismo – dade mostra apenas o dossel da vegetação
hormônio controlador da glicose nas cor- arbórea restante, não mostra a vegetação
rentes sanguíneas. Numa comparação rudi- que constitui os estratos inferiores do Cer-
mentar entre a diabetes e os rios do Cerrado, rado, incluindo a vegetação rasteira, consti-
a insulina, que mantém o equilíbrio dos tuída basicamente por gramíneas, com uma
rios, tem origem nos lençóis subterrâneos grande variedade de capins nativos e bam-
(estes são fontes de águas armazenadas nas buzinhos, que, na realidade, exercem uma
rochas porosas sedimentares). Ela, que ao função ecológica vital para Cerrado, pois é

Altair Sales Barbosa é doutor em Antropologia e Geociências Smithsonian Institution de Washington DC. USA. Pesquisador do Con-
1

selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Membro Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás,
e presidente do Instituto Altair Sales.

REVISTA CERRADOS
17
o tipo de vegetação que retém as águas das no Cerrado, a estratigrafia mostra de forma
chuvas que lentamente vão abastecer os len- clara essa oscilação, sendo a estação chuvosa
çóis subterrâneos e formarem os aquíferos demonstrada por camadas claras e a estação
– a insulina dos rios. Fico a indagar: a quem seca explicitada por sedimentos escuros. Este
interessa esse tipo de informação descalça- padrão é tão evidente que não deixa dúvidas
da de uma visão sistêmica do Cerrado? Será quanto à sua existência pretérita. Portanto, o
que é utilizada para justificar mais ocupa- discurso da diminuição da vazão dos rios, as-
ções intensivas ou reflete simplesmente fal- sociado às mudanças climáticas, não passa de
ta de conhecimento? uma falácia.

Não entendo, também, ou talvez não Não é preciso ser especialista para en-
quero entender, a visão obtusa de certos xergar o prejuízo irreversível causado nas
profissionais liberais, funcionários públi- áreas do Cerrado. Basta acessar uma imagem
cos ou freelances contratados para falarem de satélite da região, para constatar grandes
que a vazão dos rios tenha diminuído em quadrículas nos interflúvios com monocul-
função de mudanças climáticas. Ora, to- turas e grandes círculos desmarcados pela
dos nós que estudamos o rol das ciências irrigação de pivôs.
da evolução, incluindo estratigrafia, cli-
matologia, sedimentologia, sabemos que Os motores que fazem funcionar as
mudanças climáticas não ocorrem brus- máquinas da irrigação são tão possantes que
camente, demandam centenas, às vezes necessitam de baterias de motores auxiliares,
milhares de anos para um novo padrão se para colocá-los em operação.
estabelecer. O que pode acontecer é um
período de estiagem mais prolongado, em Quando este complexo começa a fun-
decorrência de fatores naturais, tais como cionar, os rios sofrem impactos gigantescos,
circulação marinha, que afeta a circulação alguns param totalmente do ponto de capta-
atmosférica, resfriamento ou aquecimento ção para baixo. Pensem, se fôssemos animais
das águas oceânicas, ação dos ventos sola- aquáticos o que faríamos? E se fôssemos po-
res, ou mesmo das correntes de convecção pulação ribeirinha, vivendo da produção fa-
existentes no Manto da Terra. miliar, ou se vivêssemos em alguma cidade
ou povoado abaixo destes sistemas, qual se-
Porém, são fatores isolados e isolada- ria a nossa reação?
mente não estabelecem padrões, a não ser
que pendurem por um longuíssimo tempo.
Nunca entendi a
Estudos de estratigrafia e sedimentolo- voracidade da ganância dos
gia, apoiados em diversas datações radiomé- grandes empresários rurais,
tricas, têm demonstrado que o padrão climá- muitos dos quais sequer
tico, com uma estação seca e outra chuvosa,
conhecem a região, mas suas
opera nos chapadões centrais da América do
Sul, área ocupada por Cerrado há, pelo me- ações aniquilam tudo
nos, 45 milhões de anos.
Do final do Pleistoceno e início do Com relação aos animais, a resposta é
Holoceno, quando populações humanas já fácil, mas com relação aos humanos a res-
ocupavam as grutas e cavernas existentes posta é difícil, pois os humanos agem mui-

18 REVISTA CERRADOS
Foto: João Zinclar
Anos e anos à frente de inúmeras pesquisas, Altair Sales nunca conseguiu entender “a voracidade da ganância dos grandes
empresários rurais”, que, segundo ele, não têm compromisso nem com suas próprias gerações e nem com as futuras.
A mineração, como mostra esta imagem de Minas Gerais, é uma das atividades vilãs das águas, seja pela quantidade que
utiliza ou pela poluição causada.

tas vezes por interesses individuais, às vezes cadáver no calabouço. E o entusiasmo que
têm conhecimento dos problemas, porém o impulsiona, qual uma luz de candeia, vai
pode lhes faltar a consciência, elemento fun- apagando pouco a pouco.
damental que o transforma em cidadão e o
faz agir coletivamente, ou seja, em benefício Nunca entendi a voracidade da ga-
da coletividade. Muitos sentem medo de lu- nância dos grandes empresários rurais,
tar contra os lobos – os donos do capital –, muitos dos quais sequer conhecem a re-
mal sabendo que estes já lhe tiraram quase gião, mas suas ações aniquilam tudo. Não
tudo: os ideais, o bem-estar, os amigos, fal- têm compromisso com o Estado ou com
ta apenas lhes tirarem a alma, se é que isto as futuras gerações, seus filhos e netos. Por
já não aconteceu. Seria bom neste momento isso, menos ainda entendo a ação dos po-
indagar: em que aurora se escondem e como líticos e de alguns advogados nacionais,
esperam o amanhecer? que com unhas e dentes protegem esses ex-
terminadores e provocadores de entropias
Já escrevi centenas de artigos sobre o ambientais e sociais. Serão cegos? Mal-in-
assunto, falando sobre as consequências da tencionados? Onde foi que se escondeu a
retirada da cobertura vegetal nativa, dos luz dos olhos deles?
aquíferos, do futuro das águas. Também
chamando atenção para as consequências Não tenho respostas.
que virão em breve, se este modelo preda-
tório de relação com o território continuar. Também não sei onde mora a aurora
daqueles que um dia despertaram para a es-
Quase nada teve ressonância. Um perança.
ou outro idealista (ou grupo de idealistas)
empenha a bandeira da construção de um Só uma certeza eu tenho: no silêncio
futuro melhor, mas, diante de tanto poder, acelerado do tempo, nossos rios vão mor-
só encontra ao final da luta uma espécie de rendo.
REVISTA CERRADOS
19
Exportando injustiça ambiental

Foto: Rosilene Miliotti - FASE


e agrária: experiência de
ocupação do agronegócio nos
Cerrados como modelo para
outros territórios

20 REVISTA CERRADOS
dos e a uma narrativa de produtividade, rele-
gando a segundo plano os conflitos agrários
e ambientais intrínsecos a esta expansão3.
DIANA AGUIAR1
Os conflitos por terra e território ex-

E
m um estudo da Organização pressam projetos políticos em disputa. No
das Nações Unidas para a Ali- marco desses conflitos, os modos de vida e
mentação e a Agricultura (FAO) produção dos povos do Cerrado, quando não
de 2001, o Cerrado brasileiro foi assim defi- são simplesmente ignorados, são apresen-
nido: tados como atrasados, sentenciados a uma
“modernização” homogeneizadora e subor-
A região úmida/seca de savana tropi- dinada, o que representa seu próprio fim en-
cal, conhecida como Cerrado, cobre quanto produção camponesa ou tradicional.
aproximadamente 204 milhões de Nesse processo, esses projetos (alternativos)
hectares no Brasil tropical. Seu de- para os territórios têm sua sustentabilidade
senvolvimento é considerado pelo Dr. política continuamente erodida pela celebra-
Norman Borlaug – ganhador do Prê- ção do “modelo Cerrado” do agronegócio4.
mio Nobel da Paz por seu trabalho de
melhoramento de plantas que fundou A expansão dos monocultivos de soja
a Revolução Verde – como a mais im- no bioma nas últimas décadas contribuiu
portante zona de expansão agrícola fundamentalmente para alçar o Brasil ao
mundial deste século2. posto de maior exportador global de soja,
representando pouco mais de 42% do total
Relatórios, estudos e artigos que ce- das exportações globais da commodity5. Não
lebram a experiência de ocupação do agro- é surpreendente, portanto, que o complexo
negócio no Cerrado abundam na literatura soja seja também o principal produto da
especializada, na produção de organizações pauta exportadora brasileira (chegando a re-
multilaterais e nos discursos e programas presentar mais de 18% do total6), com a car-
governamentais sobre agricultura e seguran- ne poucas posições abaixo no ranking. Esse
ça alimentar. A referência a essa experiência potencial de atração de divisas (recursos fi-
está calcada em números que dizem respei- nanceiros em moeda estrangeira) do setor
to, sobretudo, a ganhos econômicos agrega- agroexportador e sua conexão histórica com

1
Diana Aguiar integra o Grupo Nacional de Assessoria da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e é dou-
toranda pelo IPPUR/UFRJ.
2
Tradução nossa. Disponível em: http://www.fao.org/docrep/004/Y2638E/y2638e08.htm#P0_0
3
Porto-Gonçalves et al. Os cerrados e os fronts do agronegócio no Brasil. In: Conflitos no Campo – Brasil 2016. Goiânia: CPT Nacional
– Brasil, 2016.
4
Sergio Schlesinger (2006) chama atenção para o fato de que não existe um sistema agrário implementado pelo agronegócio no
Cerrado que difira essencialmente do modo de produção e pacotes tecnológicos utilizados, por exemplo, pelo agronegócio do
meio-oeste norte-americano. Logo, demarco aqui que o que se celebra usualmente não é necessariamente um modelo produtivo
singular, mas a experiência de transformação da região ao longo de poucas décadas – através em especial de pesquisas da Em-
brapa que permitiram desenvolver variedades adaptadas ao Cerrado – em uma referência mundial na produção de commodities
agrícolas. Agradeço a Silvio Isoppo Porto pelas reflexões que ajudaram a matizar essa compreensão. A partir deste ponto, me refiro
a “modelo Cerrado” para expressar a referência reiterada na produção de instituições e discursos governamentais à experiência de
transformação do bioma em uma fronteira de expansão do agronegócio integrado a cadeias globais, por meio de um processo
fomentado, e até certa medida dirigido, pelo planejamento e políticas regionais, setoriais e de Cooperação (especialmente com o
Japão) do Estado brasileiro.
5
USDA, 2017.
6
MDIC, 2017.

REVISTA CERRADOS
21
o sistema político brasileiro lhe atribuem do Banco Mundial e do Fundo Monetário
um poder econômico e político incompa- Internacional (FMI) a partir dos anos 1970
rável no país. É um panorama que mobiliza do século passado – que estão no cerne des-
o imaginário de planejadores e investidores sas crises globais9.
aqui e alhures.
Diante da urgência política por so-
Em razão disto, a experiência de ex- luções imposta pela crise de segurança ali-
pansão do agronegócio no Cerrado tem sido mentar, a FAO organizou o Seminário de
exportada como modelo a ser seguido em experts em 2009 (“How to feed the world
outros territórios. Isso se dá, em especial, in 2050”)10 . Na conjugação de fatores para
para outras savanas e planícies do mundo, o aumento da produção, o relatório enfatiza
por causa do apetite do agronegócio por o papel dos ganhos de produtividade diante
terrenos planos, onde monocultivos podem da importância menor atribuída à expan-
se expandir com mais eficiência, utilizando são da área plantada. Não necessariamen-
menos energia7. te ganhos de produtividade em razão de
grandes saltos tecnológicos em relação aos
Fronteira para o agronegócio, padrões atuais, mas, sobretudo, pela aplica-
território de vida para a agricultura ção dos padrões atuais em regiões com me-
camponesa e tradicional nor produtividade relativa. Ainda que esse
possa ser o caso para a maior parte das co-
A partir, especialmente da crise de se- lheitas alimentares (algumas das quais com
gurança alimentar de 2006-20088, emergem previsão de redução líquida da área planta-
relatórios de organizações multilaterais que da, como o arroz) e para os países do Norte
apontam “saídas” para aumentar a produção Global (cuja superfície cultivada vem se re-
agrícola e, assim, assegurar alimentar a po- duzindo ao menos desde a década de 1990 e
pulação crescente do planeta e evitar novas deve seguir nesta trajetória no período pro-
crises. A narrativa, embasada em um im- jetado – 2008-2050)11, no que diz respeito
perativo demográfico, usualmente passa ao ao Sul Global e a algumas commodities que
largo de questões estruturais do regime ne- invadem o Cerrado e outras savanas e pla-
oliberal, tais como os problemas decorrentes nícies, como a soja e a cana-de-açúcar, a re-
da desregulamentação comercial e financei- alidade é diversa.
ra, bem como o contínuo deslocamento da
agricultura familiar e camponesa pela agri- A partir da análise dos dados apresen-
cultura industrial de larga escala – que foi tados no documento12, chama atenção a di-
especialmente acelerado em diversos países vergência entre a narrativa hegemônica do
a partir dos programas de ajuste estrutural agronegócio, apresentado como tech, e a rele-

7
Porto-Gonçalves et al. op.cit.
8
FAO. Lessons from the World Food Crisis 2006-08. In: The State of Food Insecurity in the World. Rome: FAO, 2011. Pp. 21-31. Available
at: http://www.fao.org/docrep/014/i2330e/i2330e04.pdf
9
BELLO, Walden. The Food Wars. London: Verso, 2009.
10
LATINDADD. Basta de Especular con los alimentos: lineamientos para buscar salidas. Lima: LATINDADD, 2011.
11
CONFORTI, Piero (Ed.) Looking ahead in world food and agriculture: Perspectives to 2050. Rome: FAO, 2011. Available at: http://
www.fao.org/docrep/014/i2280e/i2280e.pdf
12
BRUINSMA, Jelle. The resources outlook: by how much do land, water and crop yields need to increase by 2050? In: CONFORTI, Piero
(Ed.). op.cit.

22 REVISTA CERRADOS
vância da expansão de terras cultivadas para “fronteiras” desta expansão da área colhida da
o aumento da produção das culturas de soja soja15 no mundo no período analisado.
e cana, a qual se mostra bastante expressiva
quando comparada ao comportamento de É essa dinâmica de conquista de
outras colheitas13 em que o incremento da terras sobre o Cerrado que é exportada
produtividade se apresenta bem mais deter- ao se colocar a experiência de expansão
minante para o aumento da produção mun- do agronegócio na região como modelo
dial. De 2005/2007 em relação a 1962/1963, para outros territórios – territórios que
42% do aumento da produção de soja e 56% são tratados como fronteiras agricultáveis
do crescimento da produção da cana-de-açú- do mundo, com potencial de serem “de-
car no mundo podem ser atribuídos à expan- senvolvidas”. Mas onde estariam as tais
são da área global cultivada14. Tais variações “fronteiras”? Uma das apresentações do
representam uma expansão de, respectiva- Seminário recupera dados de um estudo
mente, 4 e 2,3 vezes da área global destina- apoiado também pela FAO em 200216 e
da às duas culturas mencionadas. Ressalta-se que apresentava o potencial de expansão
ainda que o Cerrado foi uma das principais da superfície cultivada do planeta17.

Terras cultiváveis (milhões de hectares)


3500

3000
Fronteiras**
2500

2000 Florestas, áreas protegidas e


construídas
1500
Cultivada

1000

500
Elaboração: Diana Aguiar, 2017
0 Fonte: FAO, 2012
Sul Global* Norte Global*

13
BRUINSMA, Jelle. op.cit.
14
Em conjunto, estas colheitas são representativas dos principais usos das terras cultivadas do planeta.
15
AGUIAR, Diana e JABACE, Laís. Nota técnica com base em dados FAO (2009) e CONAB (2017). Rio de Janeiro: 2017. Mimeo.
16
SCHLESINGER, Sergio. O grão que cresceu demais: a soja e seus impactos sobre a sociedade e o meio ambiente. Rio de Janeiro:
FASE, 2012.
17
International Institute for Applied Systems Analysis. Global Agro-ecological Assessment for Agriculture in the 21st Century: Metho-
dology and Results. Luxemburgo: International Institute for Applied Systems Analysis, 2002. Available at: https://www.researchga-
te.net/profile/F_Nachtergaele/publication/246326156_Global_Agro-Ecological_Assessment_for_Agriculture_in_the_21st_Cen-
tury/links/5437ecca0cf2590375c5680c/Global-Agro-Ecological-Assessment-for-Agriculture-in-the-21st-Century.pdf

REVISTA CERRADOS
23
Mesmo reconhecendo que estes nú- grabs) que os povos destas regiões estão en-
meros estão superestimados, pois não le- frentando19. Nos dados revisados de 2012
vam em consideração outros usos (como (gráfico a seguir), o potencial de expansão
cobertura florestal; áreas protegidas e a pre- na América Latina e África Subsaariana re-
sença de assentamentos humanos; e a qua- presenta cerca de 83% do total do Sul Global
lidade variável da terra), o relatório de 2009 – menos do que nos dados de 2009, mas ain-
assim apresenta as principais fronteiras18: da assim de extrema relevância.

90% dos “remanescentes 1,8 bilhões de hec- Além disso, de acordo com os dados
tares em países em desenvolvimento” estão de 2009, a estimativa do potencial de expan-
na América Latina e na África Subsaariana. são para o Brasil é próxima às estimativas
para os demais doze países combinadas. O
Mais precisamente, 2/3 estão concen- Brasil é também o país com a maior área atu-
trados em apenas treze países: Brasil, Repú- almente cultivada entre todos os doze. Não
blica Democrática do Congo, Angola, Sudão, à toa, a experiência de desenvolvimento do
Argentina, Colômbia, Bolívia, Venezuela, agronegócio no Cerrado brasileiro, a partir
Moçambique, Indonésia, Peru, Tanzânia e em especial do projeto piloto do Prodecer
Zâmbia. Não surpreende a corrida por ter- (Programa de Cooperação Nipo – Brasileiro
ras marcada por processos de captura (land para o Desenvolvimento dos Cerrados) da

18
Para os gráficos, utilizei a versão revisada em 2012 pelos mesmos autores dos dados do relatório de 2009: World Agriculture towards
2030/2050: the 2012 revision. FAO, 2012.
* O relatório fonte utiliza as categorias “países desenvolvidos/em desenvolvimento”, adaptadas aqui.
** A categoria utilizada no relatório fonte é “saldo líquido”.
Os dados variam razoavelmente entre o relatório de 2009 e o de 2012 (utilizado aqui na composição dos gráficos), mas o que cha-
ma especial atenção é o cuidado maior do texto mais recente ao excluir as florestas, áreas protegidas e construídas do cálculo do
potencial de expansão das áreas cultivadas. O relatório de 2009, apesar de mencionar que o potencial seria menor em razão dessas
áreas, não as considera diretamente nos números apresentados.
19
FRANCO et AL. The Global Land Grab: A primer. Amsterdam: Transnational Institute, 1974.
PITTA, Fábio T. MENDONÇA, Maria Luisa. A Empresa Radar S/A e a Especulação com Terras no Brasil. Rede Social de Justiça e Di-
reitos Humanos. São Paulo: Editora Outras Expressões, 2015.
BORRAS et AL. Towards a better understanding of global land grabbing: an editorial introduction. In: The Journal of Peasant Studies,
Vol. 38, No. 2. March, 2011. Pp. 209-216. Available at: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03066150.2011.559005

24 REVISTA CERRADOS
segunda metade da década de 1970 até o fi- programa foi desenhado para atrair inves-
nal dos 1990, tem servido como justificativa tidores com capacidade de acesso a merca-
para que o “modelo Cerrado” seja referência dos globais e que possam então incorporar
para o avanço do agronegócio em algumas a agricultura camponesa de forma margi-
das “fronteiras” divulgadas pela FAO. nal e subordinada às cadeias produtivas do
agronegócio. Um “modelo” velho conhecido
Moçambique: destino nosso, que ameaça a (re)existência de proje-
traçado por latitude tos políticos de base camponesa para os ter-
ritórios do norte do país, onde cerca de 80%
Um estudo da FAO e do Banco Mun- da população é rural21.
dial de 2009 analisou as experiências de de-
senvolvimento agrícola do nordeste da Tai- O ProSavana está em crise em razão
lândia e do Cerrado brasileiro para avaliar o das denúncias ao modelo que ele de fato re-
potencial de servirem como modelo para a presenta para além dos discursos e das ma-
“savana africana”.20 Ainda que o estudo reco- nipulações flagrantes no processo de consul-
nheça o problema de concentração fundiária ta22. Mas, longe de significar uma mudança de
da experiência do Cerrado, esta tem sido rei- rumo, em direção a um projeto que fortaleça
vindicada explicitamente por programas de a agricultura camponesa, sem subordiná-la
cooperação e discursos governamentais para ao agronegócio, identificamos um padrão
o “desenvolvimento rural” na África. Não é perverso: investidores privados têm desem-
a sociobiodiversidade dos modos de vida e barcado no país e iniciado a implementação
produção invisibilizados dos Cerrados que de extensos monocultivos, turbinando o pro-
emerge nas narrativas, mas sim o “modelo blema da captura de terras (land grabs). O
Cerrado” do agronegócio, aniquilador da governo moçambicano tem concedido títulos
agricultura de base camponesa e tradicional. de Direito de Uso e Aproveitamento da Terra
(DUAT) que se sobrepõem às terras de ocu-
O caso de Moçambique é simbólico: o pação camponesa, sobretudo as de uso coleti-
Programa de Cooperação Tripartida para o vo, tornando-se vetor ativo destes processos23.
Desenvolvimento Agrícola da Savana Tropi- Considerando-se que a terra em Moçambi-
cal em Moçambique, mais conhecido como que é, por conquista do Movimento de Liber-
ProSavana, tem referência direta no Prode- tação Nacional, de base camponesa e consti-
cer e está supostamente justificado porque tucionalmente de propriedade do Estado, a
o norte daquele país encontra-se na mesma atribuição dos DUATs a grandes investidores
latitude que o Cerrado brasileiro. tem transformado a estrutura e a governança
fundiária, sem mudar ainda essencialmente a
Apesar de oficialmente reivindicar lei de terras. Pior ainda, ao acelerar a conces-
estar dirigido ao desenvolvimento rural da são de títulos, o processo ganha contornos de
agricultura camponesa moçambicana, o regularização fundiária, enquanto na prática

20
MORRIS, Michael L.; BINSWANGER-MIKHIZE, Hans P.; BYERLEE, Derek. Awakening Africa’s sleeping giant: prospects for commercial
agriculture in the guinea savannah zone and beyond. Washington: World Bank Publications, 2009. Available at: http://siteresources.
worldbank.org/INTARD/Resources/sleeping_giant.pdf
21
Porto, Silvio Isoppo. Análise crítica do Plano Diretor do ProSavana. In: AGUIAR, Diana; PACHECO, Maria Emília (Org.). A Cooperação
Sul-Sul dos Povos de Brasil e Moçambique: Memória da Resistência ao ProSavana e Análise Crítica de seu Plano Diretor. Rio de
Janeiro: FASE, 2016. P. 18. Disponível em: https://fase.org.br/wp-content/uploads/2016/11/ProSavana_web.pdf
22
AGUIAR, Diana e PACHECO, Maria Emília (Orgs.). op.cit.
23
Notas da autora em visita de campo em julho de 2017.

REVISTA CERRADOS
25
promove a captura de terras (ou usurpação de naram-se, em pouco tempo, reféns de atra-
terras, nas palavras dos movimentos moçam- vessadores e dos preços impostos por estes.
bicanos).
América Latina: onde a
No contexto dos investimentos, a con- soja desconhece fronteiras
cessão da ferrovia do Corredor de Nacala à
Vale é especialmente impactante para os Não é só na África onde se reivindica
camponeses, pois sua extensão lhe confere o Cerrado do agronegócio como modelo. Na
onipresença territorial. Os impactos vão des- Colômbia, o governo se refere à Altillanura,
de atropelamentos, reassentamentos forçados próxima à fronteira com a Venezuela, como
e problemáticos, bloqueios frequentes ao di- o “Cerrado colombiano” onde o “milagre
reito de ir e vir e a redução drástica do trân- brasileiro” pode ser replicado24. Nesse caso,
sito de trens de passageiros, rompendo com não há programa de cooperação e o papel do
a principal via de comercialização autônoma Brasil não parece ser tão direto (ainda que
da produção camponesa. Os camponeses tor- técnicos da Embrapa já tenham começado

Foto: Campanha Não Ao ProSavana

Em novembro de 2018, na cidade de Tóquio, no Japão, ocorreu a 4ª Conferência Triangular dos Povos
contra o ProSavana. Os outros três eventos anteriores foram realizados em Moçambique. Organizações que
compõem a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado também atuam contra o ProSavana, como a FASE,
a CPT e o MPA.

SEMANA. El ‘Cerrado’ Colombiano. Julho, 2010. Disponível em: http://www.semana.com/economia/articulo/el-cerrado-colombia-


24

no/124179-3 Acesso em: 17/08/2017

26 REVISTA CERRADOS
a prestar assessoria sobre o “modelo Cerra- de tantos desafios enfrentados aqui e em ou-
do”25), servindo mais de referência reivindi- tros territórios, a Campanha tem construído
cada pelo próprio governo colombiano. A redes transnacionais de resistência articu-
questão da regularização fundiária, levanta- lada entre organizações e movimentos, se-
da como entrave pelo último governo e pelo guindo no caminho de tecer lutas e alterna-
agronegócio26, inclusive pelo ex-ministro da tivas comuns.
Agricultura do Brasil e megaexportador de

Foto: Eanes Silva


soja, Blairo Maggi, que tem visitado o país
nos últimos oito anos para avaliar a possibi-
lidade de compra de terra27. As tentativas do
governo de reestruturar a governança fundi-
ária da região têm sido contínuas.

Além da Colômbia, o Bosque Seco


Chiquitano boliviano e o Chaco paraguaio
são biomas de base savânica transfronteiri-
ços ao Cerrado, nomeados de forma singular
em cada país, onde a expansão do agrone-
gócio também tem sido histórica e confliti-
va. Os problemas de captura de terras por
latifundiários brasileiros, causando severos
conflitos agrários e ambientais, são aspectos
dramáticos dessa expansão, em especial no
Paraguai.

A Solidariedade
Sul-Sul dos Povos

A Campanha Nacional em Defesa do


Cerrado tem continuamente afirmado o
Cerrado como uma questão global, buscan-
do desconstruir a narrativa celebratória da
ocupação do agronegócio no Cerrado como
modelo para outros territórios. A partir da
perspectiva dos povos do Cerrado, essa ex- Dona Lucimar é quebradeira de coco do Maranhão e um
das inúmeras apoiadoras da Campanha Nacional em Defesa
pansão tem significado a contínua destrui- do Cerrado que, hoje, reúne mais de 50 organizações e
ção de seus territórios de vida e produção. movimentos sociais do Brasil. A campanha busca valorizar
a biodiversidade e as culturas dos povos e comunidades do
Exportar esse modelo é, portanto, exportar Cerrado, que lutam pela sua conservação. Saiba mais em
seus conflitos agrários e ambientais. Diante www.semcerrado.org.br

25
EL TIEMPO. Experto habla del desarrollo del Cerrado brasileño. Janeiro, 2013. Disponível em: http://www.eltiempo.com/archivo/
documento/CMS-12546942 Acesso em: 17/08/2017
26
LA SILLA VACIA. El futuro agroindustrial de la Orinoquía ya arrancó. Novembro, 2010. Disponível em: http://lasillavacia.com/histo-
ria/el-futuro-agroindustrial-de-la-orinoquia-ya-arranco-19998
27
EL TIEMPO. Minagricultura de Brasil quiso hacer negocios en el país. Maio, 2016. Disponível em: http://www.eltiempo.com/archivo/
documento/CMS-16593902 Acesso em: 17/08/2017

REVISTA CERRADOS
27
Conflito por água em Correntina: o

Foto: Thomas Bauer - CPT Bahia


caso da Igarashi como disputa entre
agri-cultores (as), camponeses (as)
e agro-negociantes absenteístas1

28 REVISTA CERRADOS
publicação “Conflitos no Campo Brasil” da
CPT ao longo de 31 anos, entre 1985 e 2016,
este município aparece como o mais confli-
SAMUEL BRITTO DAS CHAGAS2 tivo da Bahia com 41 casos, o que dá uma
média de 1,32 conflitos por ano.

N
o dia 02 de novembro de
2017, Dia de Finados na tra- A forma como Rui Costa falou sobre
dição católica, cerca de mil os manifestantes, fazendo coro com outros
manifestantes do município de Correntina e críticos da ação nas fazendas da Lavoura e
região, no Oeste da Bahia, ocuparam as fa- Pecuária Igarashi, como o ex-ministro Ro-
zendas São João Vianez, Rio Claro e Curi- berto Rodrigues, que chamou os manifes-
tiba, ambas ligadas à Lavoura e Pecuária tantes de “bandidos” e “vândalos”, e o ex-se-
Igarashi, numa ação que destruiu o sistema cretário de agricultura de São Paulo, Xico
de bombeamento que retirava água do Rio Graziano, que os chamou de “bandidos
Arrojado, incendiando tratores e máquinas e agrários” que promovem o “terrorismo no
outras instalações. Tal ação tomou repercus- campo” é, no mínimo, leviana e equivoca-
são imediata nas redes sociais e nos veículos da. Com isso, manifestam desconhecimen-
de comunicação regional, nacional e inter- to e preconceito com o campesinato Cor-
nacional, o que obrigou as autoridades baia- rentino, que não agiu por iniciativa própria
nas e de outros estados a se posicionarem. para realizar tais ações e, por isso, precisa
Dentre os que se manifestaram destaca-se a “se intitular como movimento social” e,
posição do governador da Bahia Rui Costa numa leitura rasa, não seria protagonista
(PT), que, diante das pressões do agrone- de sua própria vida, por isso o interesse em
gócio, agiu quase que imediatamente numa investigar “quem financiou e quem está por
perspectiva de criminalização, chamando os trás desta destruição (...)”.
manifestantes de “bando que não se intitu-
lou como movimento social (...) eu mandei Pobre governador que desconhece o
a Polícia Civil fazer todo o processo de in- povo para o qual foi eleito para “representar”
vestigação de quem financiou e de quem está e, por isso, de forma precipitada, acaba por
por trás desta destruição no Oeste da Bahia”. agir por impulso. Já os ataques dos ideólogos
dos agro-negociantes não eram de se estra-
Desta forma, o governador assumiu nhar, visto que as ações populares do dia 02
um lado diante dos conflitos socioambien- de novembro provocaram a cólera do agro-
tais que se arrastam por décadas no Oeste negócio brasileiro, e não faltaram interpre-
baiano, dos quais o município de Correntina tações que tiveram como principal objetivo
tem se destacado, pois, segundo a análise do (contra) atacar os manifestantes. Muitos dos
grupo Geografar da Universidade Federal que falaram, inclusive das tribunas do Con-
da Bahia (UFBA) ao interpretar os dados da gresso Nacional, sequer conhecem a realida-

1
Texto elaborado para uma apresentação sintética sobre os conflitos socioambientais no município de Correntina-BA, com desta-
que para as ações populares nas fazendas da Lavoura e Pecuária Igarashi em 02/11/2017. Os termos “agri-cultores” e “agro-nego-
ciantes” dialogam com as ideias de Carlos Walter Porto-Gonçalves, e a ideia de “agricultura absenteísta” parafraseia as ideias de Al-
tair Sales Barbosa, que por felicidade é natural de Correntina, ambos conhecem como poucos as realidades dos Cerrados brasileiros
2
Engenheiro Agrônomo, Aperfeiçoado em Georreferenciamento de Imóveis Rurais, Agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) –
Centro Oeste Núcleo da Diocese de Bom Jesus da Lapa. Contato: samuelbritto@yahoo.com.br

REVISTA CERRADOS
29
de do campesinato nordestino, muito menos ordem, destaca-se o de uma camponesa que
a conflituosa realidade de Correntina, e de quando foi interpelada por um soldado da
forma irresponsável e descabida, como fez Companhia Independente de Policiamen-
Rui Costa, trataram o caso como uma ação to Especializado (CIPE) Cerrado da Polícia
“isolada” cometida por “terroristas”. Tais ata- Militar da Bahia sobre a ação que faziam nas
ques tencionaram os debates, e, no dia 11 de fazendas no dia 02 de novembro, disse em
novembro de 2017, a resposta do povo foi alto e bom tom, num audiovisual gravado
dada nas ruas, quando cerca de 12 mil pes- por outro policial, “Ninguém vai morrer de
soas de Correntina e de outros municípios sede nas margens do [rio] Arrojado”.
da região fizeram um ato pacífico, quando
pautaram a importância da luta em defesa Este grito ecoou Brasil afora e fez com
das águas. Registra-se que Correntina tem que rapidamente se transformasse numa
33 mil habitantes. campanha viral nas redes sociais, com mi-
lhares de pessoas adotando esta frase que
se tornaria símbolo e marca das lutas socio-
Frente a crise do capital
ambientais que movimentam os povos do
pós 2008, os capitalistas Oeste baiano. Dando continuidade ao de-
veem no negócio das águas bate, outra conhecedora da realidade local
uma grande alternativa, e da gravidade dos conflitos, representante
daí regiões de fronteiras do Ministério Público do Estado da Bahia,
agrícolas como o MATOPIBA propôs a realização de Audiência Pública
para tratar da questão e, assim, no dia 01 de
serem alvos da ganância dezembro de 2017, a Dra. Luciana Khoury
impiedosa do capital conduziu, na presença de aproximadamente
3 mil pessoas, uma audiência, onde o povo
Assim, outra leitura dos fatos veio à Correntino mais uma vez fez ecoar a sua
tona, e a opinião pública e as autoridades voz. Os elementos fortes deste momento fo-
regionais e estaduais foram obrigadas a re- ram a expressão popular de insatisfação com
conhecer que por trás da violência da ação os desmandos/desmantelos do agronegócio,
do dia 02 de novembro havia uma intenção a descrença no Estado, em especial o Execu-
dos camponeses e camponesas, que não são tivo, que não se fez presente, e na angústia de
“bandidos”, “vândalos” ou “terroristas”, mas milhares de pessoas por uma busca de solu-
sim homens, mulheres, jovens, idosos e ções a um conflito que se arrasta há décadas.
crianças que, diante do descaso do Estado e
dos desmandos/desmantelos do agronegó- Nesta audiência ficou patente a dispo-
cio, não tiveram outra opção a não ser agir sição do povo da região pela defesa de suas
contra a violência institucionalizada. O res- águas, territórios e direitos e um passado de
paldo social das 12 mil pessoas às ruas, num lutas veio à tona, nos mostrou que a histó-
tempo de total descrédito político, mostra ria recente de Correntina tem sido marcada
que a ação nas fazendas Rio Claro, São João por inúmeros conflitos. Daí ser possível afir-
Vianez e Curitiba tinham de fato uma ra- mar, mais uma vez, sem sombra de dúvidas,
zão de acontecer. Desta forma, as ações das que as ações populares nas fazendas da La-
aproximadamente mil pessoas no dia 02 de voura e Pecuária Igarashi não foram isola-
novembro marcariam para sempre a histó- das. Agrava-se, neste contexto histórico, o
ria, e dentre os vários gritos e palavras de recente avanço do agronegócio, que tem

30 REVISTA CERRADOS
Foto: Thomas Bauer - CPT Bahia
O município baiano de Correntina viu as ruas tomadas pelo povo, em novembro de 2018, que protestou em defesa
das águas e dos territórios. O grito que ecoou Brasil afora dizia foi claro: “Ninguém morrerá de sede nas margens do
Rio Arrojado”. Em seguida, foi realizada Audiência Pública quando a população do município e região expressou sua
insatisfação com os desmandos do agronegócio e do Estado.

como chancela pomposa oficial, o nome de de licenciamento ambientais e de conces-


MATOPIBA, mas que querem os moradores sões de outorgas de direito ao uso da água,
locais chamar ironicamente de MAPITO- o que fez com que o cenário socioambiental
BA, pois quem conhece as gírias locais, sabe historicamente conflituoso se agravasse ain-
muito bem o significado do final da palavra: da mais. Há informações extraoficiais que
“TOBA”. Este trocadilho humorístico não dão conta de que com a descentralização do
tem graça nenhuma à luz da percepção das Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hí-
comunidades locais, que veem a tragédia de dricos da Bahia (INEMA) não tem ocorri-
suas veredas, riachos, rios e lagoas secarem, do visitas a campo para a confirmação dos
diante à ampliação das fazendas, com o au- dados dos projetos de solicitação de licenças
mento exponencial da retirada de água, seja e outorgas, e mais, que os dados referentes
superficial diretamente nos rios, por meio de às vazões dos cursos d’água da região Oeste
quilômetros de canais de derivação, seja pela da Bahia estão com uma defasagem de mais
exploração do Aquífero Urucuia, por meio de 10 anos. O fato é que há distintos olhares
de poços tubulares profundos – em ambos sobre as questões ambientais nesta região e,
os casos para a irrigação de centenas de pi- assim, aqueles que vivem há séculos às mar-
vôs centrais ou lineares. gens dos rios que formam a bacia do São
Francisco clamam, a partir de sua vivência,
Do ponto de vista do Estado, a gestão de suas percepções e sensações, por provi-
do ex-secretário de Meio Ambiente da Bahia, dências diante de uma intensa degradação
Eugênio Spengler, flexibilizou os processos ambiental.
REVISTA CERRADOS
31
Foto: Thomas Bauer - CPT Bahia
Prática comum no Oeste da Bahia, fotografia mostra um pivô central que é alimentado por um “piscinão” (grande lago
artificial). As fazendas nessa região têm retirado milhões de litros de água por dia dos lençóis freáticos para abastecer
monocultivos. Atividade sem controle algum de órgãos reguladores. Para Samuel Britto, a “Lei das Águas”, que
completou 20 anos em 2017, é limitada, possui uma visão econômica da água e aponta para grandes desafios no que se
refere a gestão das águas.

Já os agro-negociantes e os órgãos ofi- expansão do agronegócio na região do MA-


ciais utilizam inúmeros subterfúgios para TOPIBA seria de “céus de brigadeiro”.
afirmarem que não há qualquer desequilí-
brio e, citando dados e informações oficio- Com isso, mais uma vez evidencia-se a
sas, tentam inverter a lógica, e apresentar falta de um compromisso com a construção
uma condição favorável às questões am- de alternativas a este modelo de desenvolvi-
bientais, em que o agronegócio junto ao Es- mento insustentável. Querer negar que haja
tado seriam os principais responsáveis pela impacto e um passivo ambiental enorme, em
conservação dos bens naturais. Na maioria uma região onde o agronegócio é a principal
dos debates ou das manifestações públicas atividade econômica, é no mínimo revoltan-
envolvendo as entidades de representação te, insano ou de muita má fé. Acreditar que
dos produtores rurais, tenta-se a todo o a crise ambiental, com destaque atual para
custo afastar a responsabilidade por quais- a crise hídrica, seja apenas provocada pelas
quer danos ou passivos ambientais de suas mudanças climáticas globais, se esquivando
atividades, inclusive, para isso, contratando de qualquer responsabilidade causal para tal,
renomado cientista do meio acadêmico que mostra que os reais objetivos dos agro-nego-
corrobora com a tese do “negativismo cli- ciantes são os mesmos de qualquer um que
mático”, para o qual as ações humanas nada se paute pela lógica capitalista, ou seja, o lu-
interferem no clima, e que o cenário para a cro. A “Lei das Águas”, como é conhecida a

32 REVISTA CERRADOS
limitada legislação brasileira sobre as águas, O povo Correntino, que habita essa
que em 2017 completou 20 anos, aponta região dos Cerrados do Oeste da Bahia
para os grandes desafios do nosso tempo, há milhares de anos, parece não estar dis-
pois diante da visão econômica da água, de posto a arredar o pé de seus territórios
uma “gestão compartilhada” falaciosa, de es- secularmente ocupados por tradições Ri-
paços tidos como “parlamentos das águas”, beirinhas, Geraizeiras, Fundos de Pasto e
mas onde se vê grandes usuários e governos Fechos de Pasto, que marcam no tempo
se juntarem para agir e da grande carência histórico e no momento atual uma relação
de planos de bacias. Não há para a sociedade compatível e simbiótica com este ambien-
organizada alternativa a não ser agir! te. Os conflitos socioambientais permane-
cem sem solução ao longo de décadas por
Frente a crise do capital pós 2008, os omissão e conivência estatal no município
capitalistas veem no negócio das águas uma de Correntina e parecem fazer com que a
grande alternativa, daí regiões de fronteiras crise vivida traga luzes para o momento re-
agrícolas como o MATOPIBA serem alvos cente evidenciando que há luta, resistência
da ganância impiedosa do capital. Tal ga- e defesa de espaços de vida, mais amplos
nância se concretiza por meio de megaem- que a luta apenas pela terra ou pelas águas,
preendimentos, com proporções escanda- e que trazem em sua essência uma nova
losas, como é o caso das fazendas do grupo perspectiva holística de ver os territórios,
Agri Brasil Holding que pretendem montar a terra, as águas, a cultura, os modos de
nas cabeceiras do Rio Arrojado um empre- vida como uma coisa só.
endimento ainda maior que as fazendas da
Lavoura e Pecuária Igarashi. Segundo os Diante do desgaste da esquerda social
moradores locais, ao saberem das dimensões representativa e da falta de um projeto po-
deste novo empreendimento, afirmaram que lítico comum, colocam para os agri-culto-
“esta seria a cartada final para o Rio Arroja- res (as) camponeses (as) Correntinos (as) o
do e o seu povo”. O processo está sendo aos dever de se apresentarem por meio de suas
poucos movimentado via INEMA, e tem ações como renovação da luta popular. Des-
como responsáveis técnicos PhDs – Philoso- ta forma, concretizando o que nos apresen-
phiae Doctor – formados pela Universidade ta o célebre baiano de Brotas de Macaúbas,
de Brasília (UnB), mais uma vez confirman- Milton Santos, referência mundial na inter-
do a aliança entre representantes de institui- pretação da globalização, advertia serem os
ções públicas com os interesses desmanda- “territórios as últimas fronteiras contra a
dos/desmantelados dos agro-negociantes. globalização”.

REVISTA CERRADOS
33
Especulação com terras

Foto: Rosilene Miliotti - FASE


agrícolas na região do
Matopiba1

34 REVISTA CERRADOS
Em nossas pesquisas recentes, sobre
a expansão de monocultivos para a produ-
ção de agrocombustíveis (www.social.org.
FABIO T. PITTA2 br), percebemos que após a crise econômica
E MARIA LUISA MENDONÇA3
mundial de 2008 há uma tendência de que-

A
região do nordeste brasileiro da dos preços das commodities agrícolas no
chamada de Matopiba4 tem mercado internacional, mas o preço da terra
sido alvo da especulação imo- agrícola no Brasil mantém uma tendência
biliária agrícola e da expansão do agronegó- inflacionária, o que nos levou a perceber o
cio, que conta com incentivos fiscais e crédi- processo de “descolamento” entre o merca-
tos subsidiados pelo Estado para financiar a do de terras e o mercado de commodities
produção de soja, milho, eucalipto, algodão agrícolas. Este fato, somado aos nossos estu-
e cana-de-açúcar. A escalada do preço da dos sobre empresas imobiliárias rurais que
terra no Matopiba transformou a região em foram criadas naquele período, nos levou a
zona de interesse para a especulação fundi- perceber o processo especulativo que apro-
ária. A possibilidade da compra de terras a fundamos na atual pesquisa.
preço baixo ocorre no processo de formação
das fazendas, muitas vezes por meio da gri- A partir do final dos anos 1980, o sis-
lagem, e causa o desmatamento do Cerrado tema financeiro internacional passou por
nativo. Depois de formada a fazenda para a mudanças estruturais e desenvolveu meca-
produção de commodities, ocorre a tendên- nismos de securitização de dívidas dos Es-
cia de inflação do preço da terra. tados e de negociação de preços de ativos
financeiros (os chamados derivativos) em
A expansão territorial de monocul- mercados secundários5 (Xavier, Pitta e Men-
tivos é estimulada por agentes financeiros, donça, 2012). Essa mudança ampliou a li-
principalmente fundos de pensão interna- quidez dos mercados financeiros, aumentou
cionais que se associam ao agronegócio no a alavancagem das empresas e aprofundou a
Brasil. Não há contradição entre os interes- dependência entre a produção de mercado-
ses das empresas financeiras internacionais rias e financeirização da economia mundial.
e da oligarquia latifundista local, ao contrá-
rio, o conhecido mecanismo de grilagem Neste processo de “realimentação do
de terras é utilizado em “novas” fronteiras circuito” financeiro, a securitização das dí-
agrícolas para facilitar a atuação de agentes vidas permitiu que instituições financeiras
internacionais no mercado local de terras. repassassem o risco de seus créditos para
Este processo intensifica a exploração do diversos investidores que atuam nos mer-
trabalho e a violência contra povos indíge- cados de capitais. Além disso, a possibilida-
nas, quilombolas e camponeses. de de negociação dos preços de ativos nos

1
Texto originalmente publicado no Relatório da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos “Direitos Humanos no Brasil 2017”.
2
Fábio Pitta é doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
3
Maria Luísa Mendonça é doutora em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e codiretora da Rede Social de Justiça e
Direitos Humanos.
4
Matopiba é um acrônimo para os Estados brasileiros do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Ficou assim conhecido em reportagens
da mídia e projetos do governo. Academicamente falando, o acrônimo mais utilizado é Bamapito, que se refere ao processo
histórico de chegada da soja nas áreas de chapada no Cerrado.
5
Para descrição de tais mecanismos, ver relatórios de pesquisa da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos: Xavier, Pitta e
Mendonça, 2012; Xavier, Navarro, Pitta e Mendonça, 2014 e Pitta e Mendonça, 2015.

REVISTA CERRADOS
35
mercados secundários de derivativos, ou ocorrer como rolagem de endividamento
seja, mercados de capitais capazes de nego- para estar assentada na inflação de ativos
ciar preços de títulos ou pacotes de dívidas; financeiros.
taxas de juros, câmbio, seguros de créditos;
assim como preços futuros de commodities Até a crise mundial de 1998 (Brenner,
–, aumentou exponencialmente a liquidez 2003), que envolveu os Tigres Asiáticos, a
destes mercados e a procura por parte de Rússia promoveu a maxidesvalorização do
capitais financeiros sobre acumulados por real em 1999, a economia brasileira apresen-
tais tipos de investimentos. Este processo tou índices módicos de acumulação. Porém,
intensificou a inflação dos preços dos ati- após tal momento, o Estado, a fim de com-
vos financeiros em termos mundiais e re- pensar o déficit comercial (Delgado, 2012)
alimentou a criação de novos ativos a se- gerado pela fuga de capitais relacionada à
rem negociados. A “simulação” financeira crise cambial, passou a fomentar, por meio
dos lucros das empresas, inclusive daque- de créditos subsidiados, a agroindústria ex-
las produtoras de mercadorias, deixou de portadora. Se, em meados dos anos 1990,

Foto: Thomas Bauer - CPT Bahia

O Plano de Desenvolvimento Agropecuário do Matopiba (PDA) foi inaugurado em 2015 pela então ministra da
Agricultura, Kátia Abreu, com objetivo de promover e coordenar políticas públicas voltadas ao agronegócio nos estados
do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 90% da área delimitada faz parte do bioma Cerrado. Em 2018, o Greenpeace
divulga um estudo que aponta: “58% dos municípios do Matopiba continuam pobres, com produção e qualidade de vida
piores do que a média de seus estados”.

36 REVISTA CERRADOS
a fronteira agrícola com soja já atingira a Os proprietários podiam hipotecar seus
Bahia e o Maranhão, foi a partir dos finais da imóveis com preços em ascensão e consu-
década de 1990 e início dos anos 2000 que mir, o que impulsionou o aquecimento da
chegou de maneira mais aprofundada ao economia estadunidense. Com a renegocia-
Piauí e Tocantins. ção das hipotecas, os proprietários podiam
comprar novos imóveis, realimentando a
A lógica de inflação de ativos finan- subida de seus preços. A especulação no se-
ceiros passou a dominar os movimentos tor imobiliário nos EUA e Europa influen-
do capitalismo a partir de meados dos anos ciou os mercados de commodities em geral.
1990. A inflação dos preços das ações de em- Os fundos de pensão e os chamados hedge
presas de tecnologia na bolsa estadunidense funds, como enormes poupanças em busca
Nasdaq fomentou a acumulação, na década de valorização, moveram a subida especu-
de 1990, a partir desta economia central. A lativa dos preços desse tipo de mercadorias
lógica da inflação dos ativos financeiros está negociáveis nos mercados de futuros, nos
relacionada a uma subida especulativa do quais se negocia uma promessa de preço
preço de determinado ativo, que atrai novos para uma transação futura.
investidores, mas acaba por levar a uma de-
flação brusca como “estouro” de uma bolha
financeira. A partir de 2001, os preços das
A expansão territorial de
empresas de tecnologia despencaram (Bren- monocultivos é estimulada
ner, 2003) e capitais financeiros ociosos pas- por agentes financeiros,
saram a buscar se valorizar em novos ativos, principalmente fundos de
como no setor imobiliário estadunidense e pensão internacionais que
europeu e nas commodities (Delgado, 2012),
que tiveram seus preços inflados nos merca-
se associam ao agronegócio
dos de futuros (derivativos de commodities). no Brasil

A crise do mercado de hipotecas imo- O momento de alta dos preços de com-


biliárias nos EUA (2007/2008) levou à ban- modities gerou expansão territorial de mo-
carrota de bancos (Lehman Brothers), segu- nocultivos e de produção das agroindústrias
radoras (AIG), empresas (GM e no Brasil, a no Brasil. Foi neste período que a produção
Sadia, por exemplo), assim como de usinas de soja alcançou o Matopiba (Pitta e Men-
de açúcar e etanol (Xavier, Pitta e Mendon- donça, 2015) como resultado da acumula-
ça, 2012) e Estados (como a Grécia e a Is- ção de ativos financeiros e de promessas de
lândia). A crise afetou a economia mundial expansão da produção com a inflação dos
como um todo, em razão da interdependên- preços nos mercados de derivativos. Entre
cia entre suas esferas financeira e produtiva. 2000 e 2014, a área plantada com soja e ca-
na-de-açúcar no Matopiba aumentou 253%
A realimentação que a inflação de e 379% respectivamente (Cerdas, 2016). No
ativos moveu ao entrelaçar os mercados de caso da soja, a área plantada aumentou de 1
capitais com setores produtivos ficou explí- milhão para 3,4 milhões de hectares.
cita na crise imobiliária dos EUA. Investi-
mentos securitizados, tanto para constru- A alta dos preços das commodities
ção de imóveis quanto para crédito pessoal, nos mercados de futuro moveu a ocupação
moveram a subida dos preços dos imóveis. de novas áreas. Foi assim que a produção
REVISTA CERRADOS
37
de soja se expandiu no Matopiba e passou a de uma empresa pode lastrear novas dívidas,
ocupar terras devolutas de chapada, utiliza- que funcionam como investimento e promes-
das secularmente por camponeses e peque- sa de produção futura, movendo a expansão
nos produtores. Estas áreas, com Cerrado do monocultivo com a incorporação de no-
nativo, eram utilizadas de forma comunal vas terras, o que realimenta o aumento dos
pelas populações locais antes de ser foco da preços dos ativos das empresas. A criação de
especulação no mercado de terras. Essas áre- imobiliárias agrícolas transnacionais gerou
as foram apropriadas a custo baixo e depois alta dos preços da terra como ativo financeiro
precificadas para a venda. A demanda por independentemente dos preços das commo-
terra como ativo financeiro move a alta dos dities, revelando o caráter especulativo desse
preços como negócio especulativo. tipo de negócio (Pitta e Mendonça, 2015).

Esse tipo de negócio passou a ser rele- Transnacionais


vante para a agroindústria da soja, que o in- imobiliárias agrícolas ou
corporou em seu portfólio. A alta das ações Land Companies no Brasil
As imobiliárias agrícolas são empresas dessas empresas possuem capital aberto em

Foto: Thomas Bauer - CPT Bahia


que atuam no mercado de terras como prin- bolsas de valores (BM&FBovespa) e algumas
cipal fonte de rendimentos. Nossa pesquisa surgiram a partir de agroindústrias brasilei-
tem como foco algumas dessas empresas ras, como SLC Land Co. (fundada em 2012),
com imensos portfólios de terras e estraté- braço da SLC Agrícola S/A (com capital
gias empresariais distintas,6 principalmente aberto em bolsa desde 2007) e Radar Pro-
na região do Matopiba. priedades Agrícolas S/A (fundada em 2008),
subsidiária da Cosan S/A (com capital aber-
O surgimento deste tipo de empresa é to em bolsa desde 2005).
recente e se relaciona com a expansão ter-
ritorial das agroindústrias, com a alta dos A BrasilAgro S/A (Companhia Brasi-
preços das commodities nos mercados in- leira de Terras Agrícolas), por sua vez, foi
ternacionais e com o aumento no preço de fundada em 2005 com abertura de capital
terras agricultáveis como ativos financeiros em bolsa (IPO: Initial Public Offering ou
para especuladores internacionais. Diversas Oferta Pública Inicial), justamente para

6
Para mais detalhes sobre tais empresas, ver: Oliveira, 2016 e Frederico, 2016 e 2017.
Foto: Rosilene Miliotti - FASE
Para investigar os impactos da financeirização de terras na região do Matopiba, em 2017 e 2018 ocorreram duas
missões internacionais. A Caravana do Matopiba, que ocorreu na região sul do Piauí, teve o trabalho de documentar
as consequências para as comunidades das apropriações de terras e se reuniu com autoridades brasileiras. A segunda
missão ocorreu na Europa e se concentrou no envolvimento de fundos de pensão da Holanda, Alemanha e Suécia na
expansão do agronegócio e nas apropriações de terras no Matopiba.

alavancar seus negócios e adquirir pro- A SLC (Schneider Logemann Com-


priedades agrícolas. Apesar de ter como pany) Agrícola S/A foi fundada em 1977
sócios empresas do ramo imobiliário ur- com foco inicial na produção de tratores.
bano (Cyrela S/A) e do agronegócio (a ar- Depois, passou a produzir soja, milho e al-
gentina Cresud S/A), a BrasilAgro é uma godão, e abriu capital na BM&FBovespa em
empresa com ações em bolsa que negocia 2007 (Oliveira, 2016). Em 2012 constituiu
principalmente terra como ativo financei- um braço imobiliário agrícola, a SLC Land
ro, enquanto SLC Land Co. e Radar S/A são Co., em sociedade com o fundo de investi-
subsidiárias de holdings maiores. Outras mentos inglês Valiance Ltda. O negócio da
transnacionais imobiliárias agrícolas com SLC Land Co. consiste em adquirir, formar e
propriedades no Matopiba são Sollus Ca- vender fazendas. No portfólio da SLC Agrí-
pital, TibaAgro (relacionada ao fundo bra- cola existem várias fazendas (Oliveira, 2016,
sileiro Vision Brazil Investments) e Insolo p. 396) e algumas pertencem também a SLC
Agroindustrial (que não tem uma subsidiá- Land Co. Nesses casos, a SLC Agrícola ar-
ria que negocie a terra como ativo exclusi- renda terras da SLC Land Co. e paga renda
vamente). Nem todas essas empresas pos- pela produção de soja, milho e algodão.
suem capital aberto em bolsas de valores,
mas todas possuem sociedade com capitais Ao analisarmos os relatórios para
financeiros internacionais. acionistas da SLC Agrícola (SLC 2017a e

40 REVISTA CERRADOS
2017b), é possível verificar que a SLC Land Outras empresas transnacionais pre-
Co. formou um banco de terras que ain- sentes no Matopiba7 incluem Sollus Capital,
da não foi negociado. Dessa forma, a SLC relacionada com a Ceagro (com capital da
Land Co. incorpora terras a seu portfólio Mitsubishi-Japão e do Grupo Los Grobo-
de ativos, que determina sua capacidade de -Argentina); XingúAgri (que possui negó-
endividamento e a alta de suas ações em cios com a Multigrain-EUA/Mitsui-Japão e
bolsas de valores, como forma de “simula- com a SLC Agrícola-Brasil); Adecoagro (que
ção” financeira dos lucros a partir da infla- recebe capital de George Soros); Agrinvest
ção de ativos. (com capital dos fundos Ridgefield-EUA e
Touradji-Brasil; CalyxAgro (vinculada ao
Entre áreas próprias (aproximada- Grupo Luis Dreyfus Commodities-França
mente 236 mil hectares) e áreas da SLC Land e ao fundo PineBridge Investment); Grupo
Co. (aproximadamente 86 mil hectares) Colorado (com capital dos fundos Global
(SLC, 2017b), a SLC Agrícola ainda arrenda Oportunity e Black Rock); além de tradings
áreas e possui parcerias agrícolas com outras como Bunge e Cargill.
empresas, como no caso da SLC-MIT, em
parceria com a Mitsui, que controla cerca de Impactos Sociais no
500 mil hectares de terras. O principal ativo Matopiba e no Sul do Piauí
financeiro da SLC Agrícola é a soja. Porém,
a terra tem papel central em seu portfólio A destruição do Cerrado mudou o
(Saweljew, 2016). Já destacamos o caráter regime pluviométrico da região, que agora
especulativo da soja como ativo financeiro sofre com a seca. Muitos rios secaram, pois
para os negócios da SLC Agrícola, sua rela- suas nascentes foram destruídas pelas plan-
ção com a flutuação das taxas de câmbio, sua tações de soja, que retiram água e poluem
dependência de subsídios estatais e crédito o lençol freático, afetando também o abas-
para a simulação de acumulação através do tecimento de água nos baixões. As comu-
endividamento. nidades rurais que habitam os baixões de-
pendem dessa água para consumo humano,
Os relatórios de 2015 e 2016 (SLC, para pesca e para produção de alimentos.
2017a) demonstram que as receitas com Sem os rios e brejos, é impossível sobrevi-
produção agrícola caíram, conforme queda ver nos baixões.
nos preços das commodities (Delgado, 2012
e Pitta, 2016). Seu endividamento subiu, mas O uso de agrotóxicos pelas empresas
o preço da terra como ativo financeiro não do agronegócio também causa graves im-
acompanhou negativamente tais variáveis. pactos socioambientais. Os agrotóxicos são
As variações positivas no portfólio da SLC muitas vezes despejados de aviões, o que
Agrícola, baseadas no preço da terra, per- contamina os rios e o lençol freático, mata
mitem que a empresa as incorpore nos rela- peixes e roças das populações rurais, além
tórios para acionistas e os utilize como base da contaminação de alimentos e do aumen-
para adquirir novas dívidas, assim como to da incidência de doenças como câncer. O
promessas de expansão futura, realimentan- uso de insumos químicos nas fazendas do
do tal processo. agronegócio gera desequilíbrio ambiental e

7
Ver: Oliveira, 2016; Frederico, 2016 e 2017; Pereira e Pauli, 2016. Para mais detalhes sobre tais empresas no Tocantins, ver Lima
(2017).

REVISTA CERRADOS
41
aumenta a quantidade de insetos nas roças baixões (local de moradia e produção de
das comunidades próximas, devastando e roça das populações rurais, que preservam
inviabilizando sua produção de alimentos. O o Cerrado), pois o Cerrado preservado
desmatamento das chapadas no Cerrado ex- nessas áreas serve como justificativa para
tingue a fauna local e a possibilidade da caça as empresas tentarem cumprir a legislação
para alimentação das populações rurais. que exige a manutenção de uma área de
preservação de 35% de cada propriedade.
A irrigação nas plantações de soja na
chapada muitas vezes é feita com barragens Os impactos da expansão do agrone-
nos rios e retirada da água para os pivôs cen- gócio e da especulação com terras no Ma-
trais. Isso agrava o abastecimento de água na topiba geram expropriação das populações
região, que passou a sofrer com a seca cau- camponesas, indígenas e quilombolas, cau-
sada pela redução do regime pluviométrico sando pobreza, fome e necessidade de seus
em consequência do desmatamento. moradores se submeterem a condições de-
gradantes de trabalho nas fazendas, muitas
As terras dos povos indígenas, qui- vezes análogo ao escravo. A elevação do de-
lombolas e camponeses continuam a ser semprego piora as condições habitacionais
alvo de grilagem e expropriação. Como as nas cidades, como resultado da expansão do
áreas de chapada que foram devastadas, as capital financeiro e especulativo no campo
empresas passaram a apropriar terras nos brasileiro.

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REVISTA CERRADOS
43
Foto: João Zinclar
Acumulação por Legislação:
Código Florestal e Cadastro
Ambiental Rural como zoneamento
da expansão do agronegócio e
da apropriação de terras nos
Cerrados

44 REVISTA CERRADOS
tando uma espécie de zoneamento de novas
áreas para consolidação e expansão do agro-
negócio sobre regiões ainda em disputa no
MARCELA VECCHIONE* Cerrado. Em horizontes contestados, como
é o caso das chapadas piauienses, é impor-

U
ma cadeia contínua de monta- tante avançar nesta análise para que possa-
nhas planas no topo desenhan- mos entender padrões deturpados de pre-
do a paisagem, onde se mistura caução ambiental que, em verdade, apenas
o vermelho de terra do solo aos topos verdes garantem mais apropriação. Mantém-se um
de formatos geométricos distintos, que mais padrão já existente, com ainda mais acumu-
parecem os formatos de antigos rios - e eram lação de terras, territórios e biodiversidade,
-, com imensos vales de vegetação diversa, com o adendo de se possuir atualmente mais
desponta no horizonte. Quilômetros e mais proteção por garantia legal desde instrumen-
quilômetros de poeira do seco setembro no tos de controle, monitoramento e incentivos
Cerrado, alguns povoados e cidades, buritizais que, conforme se observará, tem aumentado
em cada lago, e em cada ex-lago resquícios de o nível de conflito.
buritizais. Os resquícios que poderiam ser co-
muns em épocas de seca, tornam-se cada vez Ao passo que se avança com a apro-
mais comuns - na seca e fora dela - nas áreas priação e a acumulação, permite-se a legaliza-
de Cerrado no Brasil. Uma das razões para isso ção de padrões de ocupação que são nocivos
nos últimos tempos, particularmente nas bor- social e ambientalmente. A tais padrões se
das de chapada cerratenses e nos estados do acrescentam, desde a implantação do Cadas-
Piauí, Maranhão, Bahia e Tocantins, áreas ricas tro Ambiental Rural (CAR), outros elementos
de recarga de água e abundantes em diversi- a conflitos já existentes. Soma-se a isso, novos
dade de vida, é a paisagem transformada pela casos de judicialização que têm criminalizado
soja; seja pela possibilidade de sua chegada ou ou podem vir a criminalizar populações locais,
por sua já consolidada expansão. Em um cená- especialmente povos e comunidades tradicio-
rio de luta da diversidade de vida - tão presen- nais e agricultores familiares habitando e cul-
te nos buritizais, nos campos de mangaba, nos tivando terra coletivamente, e que possuem,
pomares nos quintais - contra a economia de portanto, formas distintas de ocupação e uso
um só plantio, que é a soja, e de atividades que da terra daqueles que buscam os expropriar a
a acompanham, algo de oficial e institucional fim de liberar terra para os plantios de soja.
sustenta uma ‘nova natureza’ construída arti-
ficialmente como fato econômico, consumado Assim, o desafio atual se dá em duas
pela ação de latifundiários, grandes comercia- dimensões complementares que podem tra-
lizadoras internacionais (traders) de grãos e zer novidades - para o mal e para o bem - na
imobiliárias agrícolas: o Código Florestal. luta pela terra e pelo território: a junção en-
tre a conservação ambiental e o uso da terra
Espera-se brevemente aqui contar um em um casamento entre as pautas agrária e
pouco de como se consolida esse instrumen- ambiental, seja pelas legislações ou pelas po-
to jurídico, econômico e político no campo, líticas públicas pelas mesmas informadas; e a
especialmente nas regiões de chapada, facili- ideia de que é possível fragmentar uma área

* Marcela Vecchione Gonçalves é professora e pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal
do Pará (UFPA). É Ph.D em Relações Internacionais pela McMaster University. E integra a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.

REVISTA CERRADOS
45
de uso, fragmentando assim a terra em fun- Importante dizer que esta emergência
ções, sendo uma dessas a ambiental. não foi só no campo das ideias, mas, funda-
mentalmente, como política pública. Esta
Estas dimensões nos levam a outros “pauta aliada” a que chamamos ‘socioam-
cenários de luta, ou de como organizar as lu- biental’, emergente ainda nos anos 90 quan-
tas, de direito à terra e ao território com base do a luta por reforma agrária, especialmente
na justiça socioambiental como princípio, na Amazônia, conectava-se de forma con-
mas, também, como prática na exigibilidade tundente à defesa da floresta enquanto espa-
de reconhecimento do direito ao território ço de vida, foi fruto de muita luta dos mo-
ocupado há muito tempo por povos e comu- vimentos sociais e das organizações de base
nidades tradicionais. Essas pessoas e grupos que os apoiavam ou que deles advinham,
contribuem de forma produtiva tanto para como foi o exemplo do movimento de cria-
o cultivo de alimentos diversos, como para ção das Reservas Extrativistas (Mauro Al-
a integridade ambiental de toda uma região meida). Em outras palavras, a política públi-
e do bioma, sendo fundamentais para a exis- ca é o início do processo de reconhecimento
tência e a sobrevivência da biodiversidade de direitos territoriais e de territorialidades
por seus diversos modos de vida. específicas (Almeida, 2011), sendo que estas
territorialidades já estavam em curso como
O Mal - a ambientalização do modo de vida. Por essa visão, pode-se afir-
agrário para fins de apropriação mar que o Estado não deu nada a ninguém.
O Estado reconheceu o modo de vida vivido
Que a pauta agrária converge cada vez desde um desenvolvimento autônomo, base-
mais para a pauta ambiental não é novidade. ado no lugar e suas conexões. Algo também
Especialmente após os movimentos de cria- previsto na Convenção 169 da Organização
ção de áreas protegidas de uso sustentável, Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, da
isto é, sob a definição de que pessoas pode- qual o Brasil é signatário1, particularmente
riam estar e viver nas áreas e desenvolver em seus artigos 05, 06 e 07. Tal reconheci-
suas atividades, sendo as mesmas pessoas mento poderia assim gerar políticas públicas
reconhecidas como fundamentais para con- de reconhecimento que conservariam mui-
servar a natureza dado seu modo de vida, ao tos hectares de terra, atividade que mesmo
mesmo tempo em que precisam da natureza o Estado brasileiro não teria condições so-
para manter seu modo de vida. Assim, a pau- zinho de garantir, ainda que assumindo esse
ta do direito à terra como direito territorial compromisso frente a muitos outros países,
nasce aliada à ideia de que os territórios de desde 1992, a partir das Convenções de Di-
uso sustentável, por si e em si, já nasceriam versidade Biológica (CDB) e de Mudanças
com proteção ambiental especial. Climáticas (CQNUMC). Impulsionadas
pelo Sistema Nacional de Unidades de Con-
servação (SNUC) e por uma série de polí-
Os muitos Cerrados
ticas públicas ambientais e de ordenamento
transformaram-se quase territorial que emergiam de um contexto
todos no conjunto do que se favorável da cooperação internacional2 para
chama bioma Cerrado [...] o meio ambiente no Brasil, as questões agrá-

1
Decreto 5051 que regulamente a OIT no Brasil. Mais tarde o Decreto 6040.
2
PPG7 e Proambiente. Muito focado na Amazônia. PPECOS - para o Cerrado.

46 REVISTA CERRADOS
rias conectadas aos modos de vida tradicio- de determinados grupos de seus territórios.
nais e coletivos, relativas ao uso e ocupação Tal exclusão pode ocorrer seja pela veda-
da terra diferenciados (direitos territoriais) ção por tipo de ocupação - em seu uso sem
tiveram mais atenção a partir dos anos 2000. ocupação ou habitação (muito comum no
extrativismo), ou pela não consideração pe-
A questão é que paralelamente ao los valores sociais e culturais de resguardo, a
avanço da cooperação internacional para a depender da situação e do grupo envolvido
conservação da Amazônia começa a ocor- - o que ocorre com os locais sagrados, por
rer um movimento acelerado de expansão exemplo. O pior disso é que a exclusão pela
de atividades econômicas com alto desma- via da conservação ambiental ou de métodos
tamento associado das áreas de Cerrado de ordenamento para garantir que os territó-
alto, ainda não completamente ocupadas e rios sejam manejados ambientalmente base-
utilizadas pelo agronegócio, rumo às áreas ado em uma razão econômica, via de regra,
de transição para a Amazônia, o que hoje baseiam-se não no intuito de mais expansão,
configura o chamado arco do desmatamen- em vez de mais conservação.
to3. Sendo assim, ao mesmo tempo em que
houve apoio à criação de Unidades de Con- Esse movimento tem como base dois
servação (UC) de uso sustentável, começa pontos importantes para entendermos a co-
em todo o Brasil, a partir da década de 1990, nexão entre a pauta agrária e ambiental pelo
e mais firmemente nos anos 2000, o avanço ponto de vista da racionalidade econômica
dos mecanismos para a construção de Zone- dissociada de uma racionalidade socioam-
amento Econômico e Ecológico (ZEE). biental e cultural. Os pontos se relacionam
tanto a uma justificativa para mais expansão,
O princípio básico do ZEE é categori- ampliando os limites da natureza, sem ava-
zar áreas com fins de ordenar o espaço - por liar profundamente o que seriam esses limi-
bioma, região, estado, município, a depender tes, e a classificação de determinadas áreas
da escala elencada - no objetivo de combi- como consolidadas. O último fator permite
nar autorização para expansão de atividades que se faça uma diferenciação econômica,
econômicas por local e, igualmente, deter- política e também simbólica, entre aquelas
minar aqueles locais onde a expansão estaria áreas que se ‘vale preservar’ e as que implica-
vedada. Partia-se, com isso, do princípio da riam em custos demais para se preservar. Da
combinação entre crescimento econômico e mesma maneira, desresponsabiliza agentes e
conservação ambiental. A convergência com políticas públicas e atores privados, que em
a pauta agrária neste ponto está em que: para combinação geraram sucessivas violações
efetivar a categorização de áreas com base ambientais, de direitos humanos, territoriais
no uso e na ocupação da terra é preciso des- e do próprio direito à terra em seu movi-
tinar as áreas, o que se relaciona direta ou mento de expansão, configurando um fato
indiretamente tanto à distribuição de terras, consumado que é a chamada consolidação.
quanto a vedação de determinados pontos Nessa toada, os muitos Cerrados transfor-
para usos específicos, configurando em pro- maram-se quase todos no conjunto do que
teção por vezes, mas, em outras, em exclusão se chama bioma Cerrado, em uma imensa

3
Pico do Desmatamento em 2005 na Amazônia (INPE) - início do PRODES. Mas, também, no Cerrado, especialmente nas áreas de
transição, prejudicando a manutenção da biodiversidade em níveis alarmantes e, consequentemente, ameaçando as pessoas e
seus modos de vida. Arco do desmatamento - projeto ARPA.

REVISTA CERRADOS
47
área consolidada, com sua alta biodiver- dastro Ambiental Rural (CAR) em oposição
sidade limitada a bordas de validade para ao reconhecimento do direito à terra e ao
a conservação - na forma de áreas de rele- território baseado na ocupação e uso pelos
vante interesse ecológico, por exemplo, ou modos de vida presentes antes da ocupação
de hotspots (algo ameaçado de destruição) dos monocultivos. A última forma garante
- o que acaba garantindo mais expansão, ao por sua suposta regularidade ambiental mais
contrário de mais territórios reconhecidos legitimação para expansão. Atualmente, na
de povos e comunidades tradicionais como forma de política pública, o CAR tem sido
genuinamente de conservação. uma resposta amigável a esse movimen-
to combinado de consolidação e ocupação,
Sob esse prisma dos territórios, um na forma de registro e monitoramento. Se
aspecto importante para ponderar com a di- olharmos para trás, para a maneira como foi
nâmica de consolidação é que em velocidade negociado o Código Florestal, e para a deli-
equiparada a que se estabeleceu o desmata- mitação presente no Código sobre os limites
mento, consolidou-se a ocupação pelos mo- de uso por categoria e nível de preservação,
nocultivos, tal como soja, algodão e milho. a partir da propriedade e o que a mesma sig-
Em várias situações isso garantiu fusão da nifica em cada bioma específico e não para
consolidação agrária (ocupação + atividades que as relações socioecológicas em cada lo-
econômicas) com a consolidação ambiental cal poderiam oferecer de limite à expansão e
(desmatamento pré 2008 + áreas reconheci- à operação da mesma propriedade, a relação
damente de posse), levando ao que Torres amigável do CAR com a expansão econômi-
chamaria de um movimento de que “dono é ca fica ainda mais nítida.
quem desmata”4 (Torres et al 2016).
Os desdobramentos do registro e do
Mais especificamente, o que observa- monitoramento de maneira a quebrar a re-
mos contemporaneamente é uma forma de lação intrínseca entre terra e território e,
alicerçarmento da propriedade que combina portanto, entre a relação de integralidade
ocupação do agronegócio à conservação, na entre terra e natureza em direção a catego-
forma de aderência a Programas de Regu- rias fragmentárias e de definição de limites
larização Ambiental (PRA) a partir do Ca- de propriedade e para a propriedade, tam-

4
Segundo Mauricio Torres e seus co-autores, há um padrão que se conforma com a nova legislação ambiental e particularmente em
combinação com a legislação agrária, que reconhece a posse em áreas de realização de atividades econômicas
bém são evidentes. Em última instância, o Nos municípios de Santa Filomena e

Foto: Eanes Silva


monitoramento do CAR não garante que Bom Jesus, ambos no Piauí, são muitos os
vai deixar de haver mais abertura de áreas relatos e casos comprovados de grilagem de
para o agronegócio, pois a lógica de moni- terras, como visto em recente relatório pu-
toramento é justamente para quando a área blicado em parceria pela Comissão Pasto-
já está aberta. ral da Terra, FIAN Brasil, ActionAid, com
a colaboração de pesquisadores associados
à Campanha Nacional em Defesa do Cer-
Atualmente, na forma de rado5. O que pode se perceber no aspecto
política pública, o CAR tem específico da combinação e consolidação de
sido uma resposta amigável a áreas de cultivo, desmatamento, expulsão de
famílias e apropriação de terras é que com a
esse movimento combinado expansão da soja pelas chapadas piauienses,
de consolidação e ocupação, por exemplo, onde a vegetação nativa do
na forma de registro e Cerrado e a disponibilidade de água ainda
monitoramento existem, o movimento de grilagem se sofis-
ticou a partir do CAR e da legislação am-
biental.
Em passagem pelos Cerrados do su-
doeste piauiense e pela região do entorno Agricultores, povos e comunidades
da Chapada das Mesas no Maranhão po- tradicionais que praticavam o extrativismo
demos observar quebras e avanços apoia- nas chapadas foram sendo pouco a pouco
dos no CAR e no novo Código Florestal, deslocados para os chamados baixões, onde
levando à secundarização da pauta de re- estão os encharcados de água que descem
gularização fundiária (Vecchione 2016) e das recargas de chuva das chapadas, agora
de reconhecimento de territórios de povos ocupadas pela soja, ou funcionando em al-
e comunidades tradicionais, bem como de guns espaços como Reserva Legal (RL) de
agricultores familiares e extrativistas, fren- fazendas consolidadas em cima do espaço
te à regularização ambiental para justificar de vida desses povos. Seja criando seus ani-
mais expansão. mais, coletando mangabas e outras frutas,

5
Relatório disponível no link: http://fase.org.br/wp.content/uplouds/2018/08/Os-Custos-Ambientais-e-Humanos-do-Negócio-de-
Temas-.pdf
especialmente o buriti (nos baixões), além Constituição Federal. A ideia, ao contrário
de selecionando sementes e mantendo as do que ocorreu quando se começou a conec-
lagoas e olhos d’água que se formam nas tar a pauta ambiental à agrária na década de
encostas das chapadas, a área de uso e ocu- 1990 na confecção do que seriam os direi-
pação mais extensa dessas comunidades é tos territoriais, era tão somente de proteger
posta em xeque pela valorização corrente e a floresta sob o enfoque da permanência da
contínua pela qual passam as terras nessas biodiversidade a partir da existência dos
localidades. Nesse processo de valorização recursos naturais, cujo comprometimento
de terras nas recentes frentes de expansão e, ameaçaria a sobrevivência da natureza como
também, de consolidação de áreas nos Cer- um todo. Isso trouxe uma vinculação moral
rados, a regularização ambiental e a conser- de quem compra o alimento, com aceita-
vação, segundo admite e defende o Código, ção de elevação de valor da commodity se
é um dos motivos de agregação de valor. O fosse para garantir conservação, com a lu-
principal instrumento para medir a presença cratividade do produtor, que permaneceria
e garantir a existência dessas áreas é o CAR. ganhando no valor agregado a partir de um
ordenamento monitorado, que, teoricamen-
O Bem - a terra é ambiente, te, não permitia desmatar floresta, rastrean-
território que não se fragmenta do a atividade produtiva. O desmatamento,
assim, era desintegrado da violação de direi-
Criado em 2008 nos estados do Mato tos territoriais e ambientais, portanto, dos
Grosso e do Pará, o CAR foi um instrumen- direitos humanos dos povos e comunidades
to ainda anterior ao Código Florestal (Lei e agricultores ali presentes.
12651/2012), tendo sido pensando na asso-
ciação entre grandes pecuaristas e sojiculto- Somada à desconexão, havia a ideia de
res, governos estaduais, Ministérios Públicos pensar um mecanismo efetivo de monitora-
Estadual e Federal, e organizações não gover- mento que permitia ao produtor crescer, con-
namentais conservacionistas, mais conecta- servando. Ou seja, de manter a viabilidade
das ao que se chama ambientalismo de mer- da propriedade a partir de sua expansão em
cado (Leroy, 2016). A ideia do Cadastro vem áreas de consolidação, com mecanismos de
justamente no momento em que começam a restauração e recuperação, que gerariam con-
se ver os primeiros resultados da acelerada trole e contenção sobre aquelas outras áreas
expansão da pecuária e da soja do Cerrado onde a preservação deveria ser permanente
para a Amazônia, e que a comunidade inter- ou, ainda, a preservação deveria ser manti-
nacional, principalmente europeia, cada vez da, como reserva, a depender do tamanho da
mais compradora das commodities resultan- propriedade e sua localização. Assim, nasceu
tes desses monocultivos, ficava atenta para a o conceito de Reserva Legal (RL) e de Área
origem dos produtos em consonância com o de Preservação Permanente (APP), que nas
aumento do desmatamento. chapadas piauienses têm sido registradas nos
espaços de vida de povos comunidades tradi-
Cabe dizer que em nenhum momento, cionais e agricultores familiares.
ao se pensar o monitoramento, o ponto era
observar violação de direitos ambientais no De certa forma, a leitura desses prin-
sentido de todos terem direito ao ambien- cípios de expansão com conservação para
te saudável e equilibrado, de forma integral o mecanismo do CAR garantiria, acima de
e difusa, conforme coloca o Artigo 225 da tudo, a viabilidade econômica da propriedade

50 REVISTA CERRADOS
em contextos de aumento da demanda global para acesso a crédito agrícola. O acesso ao
dos mercados por regularização ambiental. crédito se dá para a) realização dos mesmos
Esta demanda acompanhou o fato de que os programas e b) como prêmio ou requisito
mesmos mercados começaram a concentrar por já se ter aderido aos mesmos programas,
a produção, transporte e comercialização de podendo, assim, expandir a produção. Em
commodities dada a crise alimentar de 2005 muitos processos de regularização fundiária
e a crise financeira de 2008, tornando a pro- em nível individual, como é o caso dos re-
dução e exportação de commodities intensiva centemente incentivados pela Lei que insti-
e extensiva, acompanhando as consequentes tuiu o Programa Nacional de Regularização
oscilações no valor do preço das mesmas. Em Fundiária (Lei 13465/2017), as atividades e
outras palavras, aumentou-se a demanda por ações realizadas por PRA podem vir a ser
terra para produzir e, ao mesmo tempo, a de- consideradas benfeitorias.
manda por terra como reserva para regulari-
zação ambiental. E para aqueles e aquelas que não fize-
ram o CAR? E para aqueles e aquelas que,
Com o CAR, acreditava-se que o des- principalmente, não têm acesso à informa-
matamento, dada esta intensidade e exten- ção tão específica e, particularmente, ao cré-
são, poderia ser controlado por rastreamen- dito agrícola para as atividades de moder-
to. O fato é que, desde que o Código Florestal nização implicadas na obrigatoriedade dos
foi aprovado incorporando o CAR como seu regimes de regularização ambiental existen-
principal mecanismo, o desmatamento tem te? Estamos entrando em novo momento de
aumentado, justamente pela legitimação da modernização da produção agrícola e suas
expansão. Outro efeito colateral também no- consequências na apropriação e concentra-
tado já por vários observadores, no campo e ção fundiária e a legislação ambiental é cen-
nas universidades, é o de que o mesmo leva tral nesse processo. Quando vemos pessoas
a sobreposições de áreas declaradas de pro- sendo deslocadas das chapadas, primeiro,
priedades à áreas de uso e ocupação de po- e, mais recentemente, dos baixões para que
vos e comunidades tradicionais e agriculto- isso seja garantido, a modernização das téc-
res familiares em projetos de assentamento, nicas aliada à modernização da legislação
sejam os coletivos ou os extrativistas. nos leva a detectar alguns padrões de apro-
priação, com novos caminhos para concen-
Como o instrumento é auto-decla- tração e acumulação.
ratório e a integração das informações am-
bientais estaduais ainda não foram com- No estado do Piauí, o que vemos é que
pletamente sincronizadas com as federais, programas e leis de regularização fundiá-
tampouco chegaram ao estágio de terem a ria de nível estadual, acompanhando a ten-
elas aplicadas mecanismo de análise, têm dência da individualização, têm estimulado
ganho espaço a justificativa para a posse de como essencial a operação (e a viabilidade)
quem primeiro realiza o cadastro, e não tem da agricultura familiar, o registro no CAR,
este sobreposto à área já declarada. Ainda a fim de proceder com a regularidade não
pior, o mesmo CAR é usado como compro- apenas ambiental, mas, também, fundiária
vação para a posse e para a propriedade, e, das propriedades. Em arranjos coletivos de
sobretudo, como ferramenta inicial para terras ainda não reconhecidas, mas, efetiva-
a adesão aos Programas de Regularização mente ocupadas, habitadas e utilizadas, fora
Ambiental (PRA) de áreas degradadas e do esquema de posse e propriedade clássi-
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co, não só é mais difícil de isso ocorrer pe- negócio, mas, deixadas à especulação e va-
los motivos já apontados, como essa noção lorização, o que também garante o ciclo de
de regularidade se apropria da conservação sustentabilidade, por assim dizer, da cadeia
ambiental e da biodiversidade vivenciada na de produção. As áreas deixadas à especula-
prática por povos e comunidades tradicio- ção ou vendidas ao controle de fundos de
nais, quando as áreas de RL e APP são re- investimento, quando regularizadas ou não,
gistradas onde ainda existe água e vegetação levam à permanente vigilância de comuni-
nativa. Isto é, os registros são feitos sobre po- dades habitando estes locais antes de a pro-
vos e comunidades tradicionais e sobre áreas priedade se instituir a força ou pela regulari-
de agricultores familiares não reconhecidas zação ambiental, quando não por ambas. As
nos registros fundiários, e ainda não integra- ameaças são constantes, chegando a agres-
das à cadeia de produção, mas que possuem sões brutais, com derrubadas e incêndios de
os requisitos e porcentagens de conservação casas, destruição de roças, ameaças de mor-
necessários para que o agronegócio local te e judicialização contra os povos que estão
esteja integrado às cadeias internacionais ‘no lugar’, inviabilizando suas vidas.
de produção sustentáveis. Ainda que não
apropriadas para a produção diretamente, as As áreas de RL e de APP passam a ser
terras são apropriadas para que a produção tão importantes quanto as áreas de cultivo
ocorra, legitimamente. neste esquema violento e ascendente de va-
lorização de terras. Exatamente por que são
Como para as propriedades estarem onde as comunidades estão que estas áreas
regulares no Cerrado precisam ter 35% de existem, a pressão sobre as mesmas tende a
Reserva Legal - e muitas vezes não as pos- aumentar com a consolidação dos instru-
suem -, tem sido comum verificar RL de ca- mentos do Código Florestal pelas práticas
dastros sobrepostas aos territórios habitados econômicas dos agentes do agronegócio,
coletivamente por décadas por agricultores sejam estes financeiros, logísticos, empresas
e povos e comunidades tradicionais. Tal mo- agrícolas ou os próprios grileiros e possuido-
vimento gera criminalização desses grupos res de terras. Desenha-se, assim, uma forma
por suas formas de usar a terra, impedindo de grilagem e de captura verde, em cadeia,
seu acesso a territórios específicos antes usa- que, muito embora se baseie em legislação
dos para coleta de frutos e sementes, plan- ambiental, está longe de configurar justiça
tios e criação de animais, bem como para socioambiental e agrária.
o acesso à água de qualidade, tais como as
lagoas, hoje assoreadas pelo uso de veneno Diante do perigo e da ameaça de que
e insumos do monocultivo da soja. Mais o processo de regularização fundiária no
sério ainda, estas áreas registradas no CAR estado do Piauí avance de forma individu-
tem agilizado processos de ocupação advin- alizada6, sem o devido reconhecimento de
dos de grilagem, ou de pressões para que a direitos territoriais de comunidades que já
grilagem efetivamente ocorra, seguidas de se autodeterminam em arranjos de ocupa-
regularização fundiária de fazendas e áreas ção coletiva, e, ainda, de que a mesma re-
ainda não utilizadas para plantio pelo agro- gularização avance em consonância com a

6
Interpi regularização fundiária e decretos estaduais que conectam o ordenamento territorial e ambiental ao processo de regulari-
zação fundiária.

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Foto: Leonardo Milano
Para Marcela Vecchione, a luta dos povos e comunidades tradicionais é fundamental e estratégica para o real
combate da grilagem de terras. Além disso, ela destaca que para esse povo do Cerrado, que possui uma cultura
territorial de convivência com as chapadas cerratenses, são os que sofrem hoje com a pressão da sojicultura e
da intensa especulação imobiliária.

regularidade ambiental que mantém tanto de jure gerada sobre as áreas de vivência das
a posse consolidada do agronegócio, como comunidades.
sua “posse de fronteira”, no sentido de se
modernizar ambientalmente e se antecipar Na realidade, as comunidades são as
para garantir investimentos futuros, os de- que de fato se encontram consolidadas. As-
safios aumentam com os constantes adia- sim, estão - e são - por uma cultura territorial
mentos para a inscrição no CAR nacional- de convivência com as chapadas cerratenses,
mente7. sofrendo hoje a pressão da sojicultura e da
especulação imobiliária em processo de le-
O que vemos, em realidades como a gitimação, no primeiro caso, e de aumento
piauiense, por exemplo, é que o adiamen- dos investimentos associados, no segundo,
to dá tempo aos latifundiários, e consolida pela legislação ambiental. Para essas comu-
novos padrões de grilagem. O tempo aca- nidades, o tempo e a lógica da regularização
ba sendo para esses atores, se nada for fei- ambiental da individualização proprietária
to para alterar as sobreposições digitais do com fragmentação das funções territoriais
CAR, aliado para consolidar uma ocupação e ambientais para geração de lucro tem se

7
O prazo para inscrição no Sistema Nacional do Cadastro Ambiental Rural (SICAR) foi adiado novamente em maio de 2018, sendo
estendido para dezembro de 2018, podendo ser prorrogável por mais dois anos.

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sobreposto a seu tempo de coletividade cria- de inferir é que dentro do próprio código
dora e mantenedora de sociobiodiversidade. há brechas, em associação com o previsto
Neste tempo e nesta lógica, refletida na terra, na Convenção 169 da OIT, que podem le-
que é ambiente, e no território que não se var tanto a se reivindicar um CAR feito de
fragmenta, o presente Código Florestal para forma diferenciada pelos e para os povos e
institucionalizar comunidades tradicionais e povos quilom-
bolas. Os mesmos poderiam utilizar este
O CAR não corresponde ao que seja cadastro diferenciado para se corroborar
a conservação e o uso da terra para povos documentalmente as formas de uso do ter-
e comunidades tradicionais. Entretanto, ritório como afim de contornar e não limi-
podemos pensar em algumas formas de tar a posse. Dessa forma, poderia também
resistência, como já está ocorrendo pela se abrir espaço para questionar o movi-
mobilização por direitos territoriais e am- mento de regularização fundiária manipu-
bientais de povos e comunidades tradi- lado pela pauta do agronegócio a partir da
cionais a respeito do CAR, com base na legitimação construída pela regularidade
Convenção 169 da OIT, e no guarda-chuva ambiental.
institucional e de luta do Conselho Nacio-
nal dos Povos e Comunidades Tradicio- A luta dos povos e comunidades tra-
nais (CNPCT). dicionais para a construção de registros di-
ferenciados no cadastro em áreas em que
Quando em 2013 começaram os pri- nega a existência de povos e comunidades
meiros debates sobre os riscos dos instru- tradicionais, povos indígenas e povos qui-
mentos do Código Florestal sobre territó- lombolas, como é o caso do Piauí, pode ser
rios de uso coletivo, Carlos Marés (2013) estratégica no combate à grilagem nas cha-
já nos apontava para uma dimensão ainda padas do extremo sul do estado. Da mesma
pouco debatida, que é a possibilidade de forma, em se avançando na ideia de um ca-
revertermos a favor dos direitos territoriais dastro aliado a uma política de gestão terri-
dos povos e comunidades tradicionais a fu- torial e ambiental específica, que nada tem
são da pauta agrária e ambiental. Segundo a ver com os zoneamentos e parcelamentos
ele, justamente porque nos artigos 43 e 51 específicos do uso da terra ambientalmente
do Código Florestal se atenta que o uso da regular previsto no código, como os qui-
terra deve ser medido de acordo com os li- lombolas tem feito nacionalmente, pode-se
mites ambientais, respeitando a precaução também trabalhar uma maneira de externa-
e, principalmente, o princípio de integrali- lizar e marcar que o CAR foi pensado para
dade ambiental, em si, povos e comunida- outra realidade. Esta mesma realidade, do
des tradicionais e agricultores familiares vi- latifúndio rebatizado de agronegócio, viola
vendo e usando a terra em regime coletivo, o direito tanto ao território integral como
já disporiam de regime especial protetivo à autodeterminação sobre como ocupar,
ambiental por seu próprio regime de reco- usar e ser neste território, configurando o
nhecimento de terras, em que o ambiental que chamamos de autogoverno; das terras e
e o fundiário não se desconectam ou se da vida, com autonomia e justiça socioam-
parcelam. A partir disso, o que é possível biental e agrária.

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