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CENTRO UNIVERSITÁRIO CARIOCA - UNICARIOCA

CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

O VOTO COMPULSÓRIO E A REPRESENTAÇÃO APÓCRIFA DO BRASIL

JOEL ARAKAKI ALVES

RIO DE JANEIRO
2022
JOEL ARAKAKI ALVES

O VOTO COMPULSÓRIO E A REPRESENTAÇÃO APÓCRIFA DO BRASIL

Trabalho apresentado ao curso de


Bacharelado em Direito do Centro
Universitário Carioca - UNICARIOCA,
como requisito parcial para a obtenção do
título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Antônio Alves


Gomes.

RIO DE JANEIRO
2022
A474v Alves, Joel Arakaki
O voto compulsório e a representação apócrifa do Brasil / Joel Arakaki
Alves. - Rio de Janeiro, 2022.
f.

Orientador: Luiz Antônio Alves Gomes


Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Centro
Universitário UniCarioca, Rio de Janeiro, 2022.

1.Voto obrigatório. 2.Representação apócrifa. I. Gomes, Luiz Antônio


Alves, prof. orient. II. Título.
CDD 341.28
Dedico esse trabalho ao meu amado filho,
Roger.
AGRADECIMENTOS

Ao Senhor Jesus Cristo que, sendo Deus, permitiu-se ser transpassado pelos nossos erros.
(Isaías 53:5).
Aos meus pais, Márcia e Fernando, pela confiança e espírito de curiosidade depositados ao
longo desses anos.
A minha companheira e eterna namorada, Thaís, pela estima e amor verdadeiro.
Ao Brasil que, por meio de uma política assistencial e expansão de crédito, deu completude ao
mandamento constitucional.
Aos imortais que se deitaram ao longo da marcha histórica para que o direito ao sufrágio fosse
petrificado e garantido a nós como nos dias de hoje.
Ao Centro Universitário Carioca por ter me concedido um ambiente agradável e um corpo
docente qualificado.
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor!

Castro Alves, O Povo ao Poder.


RESUMO

O presente estudo versa sobre o instituto jurídico do voto compulsório. Nesta agradável
jornada, dois fios condutores irão auxiliar o pesquisador a fim de que se compreenda o
fenômeno político: o caráter instrumental de dominação legal que tem o voto obrigatório e a
atual desnecessidade relativa ao seu dever legal. O voto, conceito multifacetado, pode ser
definido como a capacidade ativa que decorre do direito ao sufrágio universal, mas também
pode ser visto como um dever cívico. Acerca dessa última acepção se encontra um problema,
pois o dever não seria de natureza principiológica, inerente à autoconsciência do cidadão, mas
um encargo legal, ou melhor, trata-se de uma regra que obriga o comparecimento e a
manifestação de vontade do eleitor. Indigna-se porque a atual representatividade em sentido
lato, fruto da obrigação do voto, tem se revelado apócrifa no sentido de que os interesses da
grei não se harmonizam aos interesses reais do povo.

Palavras-chave: voto; obrigatório; democracia; dominação; desnecessidade.


ABSTRACT

The present study deals with the legal institute of compulsory voting. In this pleasant journey,
two threads will help the researcher to understand the political phenomenon: the instrumental
character of legal domination that compulsory voting has, and the present unnecessaryness of
its legal duty. Voting, a multifaceted concept, can be defined as the active capacity that
derives from the right to universal suffrage, but it can also be seen as a civic duty. There is a
problem with this last meaning, because the duty would not be of a principled nature, inherent
to the citizen's self-awareness, but rather a legal obligation, or rather, it is a rule that obliges
the voter's attendance and expression of will. It is indignant because the current
representativity in a broad sense, fruit of the obligation to vote, has revealed itself to be
apocryphal in the sense that the interests of the political parties are not in harmony with the
real interests of the people.

Keywords: vote; compulsory; democracy; domination; needless.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABERT Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão


ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade

ANPP Acordo de Não Persecução Penal

CE Código Eleitoral

CEBRASPE Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção


de Eventos
CF Constituição Federal

FECOMERCIO Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo

IDEA Institute for Democracy and Electoral Assistance


LIA Lei da Improbidade Administrativa
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PcD Pessoas com Deficiência
PEC Projeto de Emenda à Constituição
PIB Produto Interno Bruto
PRF Polícia Rodiviária Federal
SENAI Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SESC Serviço Social do Comércio
SESI Serviço Social da Indústria
STF Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 12
2 INSTITUTOS CIRCUNFLEXOS AO SUFRÁGIO UNIVERSAL 18
2.1 Do Poder 22
2.2 Do Direito 24
2.3 Da Democracia 26
2.4 Do Voto 29
3 O VOTO POPULAR: INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO 32
3.1 Da Atual Compreensão acerca do Poder 38
3.2 Do Sistema Eleitoral Brasileiro 40
3.3 Da Obrigatoriedade 41
4 INDICADORES DA DESNECESSIDADE DO VOTO OBRIGATÓRIO 52
4.1 Da Democracia Deliberativa 53
4.2 Dos Direitos de 3ª Geração e da Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição 58
4.3 Da Era dos Estatutos e do Protagonismo das Minorias 63
4.4 Do Terceiro Setor e das Entidades Paraestatais 67
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 70
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 77
1 INTRODUÇÃO

Observa-se atualmente no Brasil, através dos principais veículos de comunicação


social, a acirrada polarização entre grupos do espectro1 conservador e progressista. Em
reforço a essa percepção, trata-se o corrente ano de 2022 de ano comemorativo em razão dos
200 anos da Independência do Brasil, 100 anos do nascimento 2 do rádio no país e de 90 anos
da Justiça Eleitoral. Além disso, há a disputa eleitoral para diversos cargos políticos. Se não
bastasse, há a corrida presidencial entre dois personagens com visões de mundo bem distintas,
cujas bases eleitorais alcançam capacidade de norte a sul. Esclarecido o contexto, para um
Estado de Direito3 selecionar o vencedor dos pleitos eletivos que organiza e, com isso, vir a
resolver o impasse republicano dos governos transitórios que se sucedem em seu território,
existem as leis em sentido genérico, que são as responsáveis pelo gerenciamento das regras de
eleição, as quais, por sua vez, aproveitam-se do instrumento político – voto popular – a fim de
outorgar um mandato precário ao então eleito, pois todo poder emana do povo, sendo este
exercido por meio de representantes ou diretamente, nos termos da Constituição.
O procedimento descrito se torna possível devido ao direito positivado e ao regime
democrático em vigor no país. Denomina-se esse status jurídico-político, resultado da união
entre o direito e a democracia, de Estado Democrático de Direito. Em razão disso,
proposições filosóficas como é o caso do anarquismo de mercado entre outros que destoam da
normalidade constitucional pós-moderna não merecem prosperar, pois que aquelas correntes
tendem à promoção da disruptividade e de posições extremistas dentro do ambiente político e
institucional.
Afastando-se da imaturidade intelectual de pensamentos radicais, independentemente
do espectro político, busca-se compreender o instituto do voto popular no Brasil, após a
Constituição de 1988, sabendo que o regime compulsório irradia desde 1932. Em regra, essa
ferramenta política de posse dos cidadãos traz ao lume um consenso utilitarista4, o qual advém
de um determinado recorte populacional, ainda que em alguns momentos o resultado seja

1
De acordo com Diagrama de Nolan, embora se reconheça a existência de críticas ao teste.
2
DIPOSNÍVEL EM: https://www.abert.org.br/web/index.php/notmenu/item/23526-historia-do-radio-no-brasil.
ACESSO EM: 14 set. 2022.
3
Representa a superação do Estado Policial (Polizeistaat) cuja fonte normativa se tratava da própria vontade do
titular do poder.
4
A democracia representativa se encontra pautada na filosofia utilitarista, considerando a supremacia do
interesse público sobre o privado. A reunião de vontades particulares gesta a vontade geral, dando assim
legitimidade aos representantes para administrarem em nome de todos, mesmo que nem todos os cidadãos os
tenham escolhido. Esse poder faz parte da “generalidade” do mandato representativo, segundo Bonavides. Essa
projeção pode levar a democracia a uma “tirania da maioria”, conforme palavras de N. Bobbio.
12
inesperado até mesmo pelos eleitores, ou ainda, mesmo naqueles casos em que se trata de
escrutínios proporcionais, afinal a legenda partidária continuaria tendo que arrecadar mais
votos para assim “puxar” mais candidatos de acordo com os seus interesses.
De uma maneira geral, quando não existe a manifestação de vontade por meio do voto
não há como qualificar determinada organização como democrática, pois não se poderia obter
um consenso majoritário através de outros métodos de seleção5. Em tese, a legitimidade da
cúpula diretiva presente nos regimes democráticos advém da própria votação, desde que sem
fraudes6.
Não obstante, no que tange ao problema a ser enfrentado pelo egresso, escreveu
Arthur Schopenhauer, no século XIX, que o mais importante não seria ver aquilo que
ninguém nunca viu, mas sim vislumbrar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo
mundo vê. A partir deste adágio, nota-se que existe uma lacuna em boa parte da doutrina a
respeito da representatividade política que exsurge a cada eleição. Nessa altura, este trabalho
não pretende diferenciar a representatividade do Executivo à do Legislativo, pois ambas em
última análise são representações de um consenso democrático.
Cumpre ressaltar que a continuidade ou não do voto compulsório, depois 35 anos da
Constituinte Nacional convocada em razão da superação do regime militar, não se trata de
uma questão simplesmente ideológica, mas de uma perspectiva objetiva à luz da ciência
política, bem como do direito natural à cidadania. Sendo assim, torna-se necessário identificar
que a representatividade traduzida no corpo político, consequente do voto obrigatório, não
teria como se enquadrar no mesmo plano de validade e de eficácia daquela representatividade
resultante do voto facultativo, presente em países desenvolvidos. Aceitar essa perspectiva
autopoiética7 do direito que se lança sobre o voto obrigatório seria fundamental para se chegar
à conclusão de que o dirigismo nacional, de fato, pertence aos partidos políticos.

5
Há de se lembrar que as expressões “consenso majoritário”, “bem comum” ou “vontade geral” são conceitos da
doutrina política clássica, o qual Condorcet buscou demonstrar por meio da Lógica que se tratava de conceitos
fictícios, embora úteis para a democracia. O Marquês descobriu que as decisões individuais são transitivas,
enquanto as decisões coletivas (eleições, v.g.) não as são.
6
Situação preocupante se deu com a nota oficial do Ministério da Defesa acerca da integridade das eleições
brasileiras. “embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou
inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”. DIPONÍVEL EM:
https://www.gov.br/defesa/pt-br/centrais-de-conteudo/relatorio-das-forcas-armadas-nao-excluiu-a-possibilidade-
de-fraude-ou-inconsistencia-nas-urnas-eletronicas. ACESSO EM: 10 nov. 2022.
7
“Não roubar, não deixar roubar, por na cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública.
Não é a Constituição perfeita. Se fosse perfeita seria irreformável”. Discurso proferido por Ulysses Guimarães
em 2 de fevereiro de 1987. DISPONÍVEL EM: https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-
discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/. ACESSO EM: 10 jul.
2022.
13
Atualmente é comum o discurso de que no Ocidente há uma forte crise de
representação, pois se compreende que, os parlamentos via de regra sob matriz conservadora,
não têm atendido as demandas que o mundo contemporâneo tem adotado como legítimas. A
moda é no mínimo curiosa, haja vista que toda representatividade per si seria uma crise de
identidade em relação ao recorte populacional que o representa, até mesmo aquelas que se
originam do voto facultativo, pois nenhum corpo político é capaz de representar a todos de
uma só vez. Trata-se de ficção jurídica. A título de demonstração, fato estranhíssimo ocorreu
quando Rodrigues Alves, em 1918, obtendo 99% dos votos válidos, tornou-se presidente do
Brasil.
Considerando que a adoção pela facultatividade também não resolveria a “crise de
representação”, então, por que o voto haveria de ser facultativo. Bem, o problema não seria
exatamente a ficção representativa, mas, de outro modo, a ausência de conflitos sociais em
razão do arranjo republicano instalado no país pela grei, levando em conta a atual conjuntura
em que a maioria dos partidos políticos tem se mostrado favorável a permanência da
compulsoriedade. Desta forma, ao povo não caberia esperar que por meio da via
representativa, teorizada pelos federalistas8, as transformações sociais devessem assim
suceder.
A representação política derivada tanto do voto obrigatório quanto do facultativo tem
prestado mais a uma maneira científica, aperfeiçoada há quatro séculos na França, de se
eleger vencedores para administrar ou legislar em nome de todos, ao passo que estes
representam determinada parcela que os escolheu, do que uma forma legítima de
desenvolvimento socioeconômico em favor das pessoas mais vulneráveis. Em outras palavras,
a redução do corpo burocrático realizada pelo Estado Novo demonstrou que a preocupação à
época se deu com a governabilidade e concentração de poder político junto à burguesia, e esse
fato não significou obviamente que aquela incipiente cúpula administrativa estivesse
apreensiva com a distribuição da riqueza nacional.
Além da ausência de críticas relacionadas às diferentes representações que se originam
dos escrutínios compulsório e facultativo, subsiste também uma apatia no comportamento do
cidadão, provocada pelo processo automatizado do voto obrigatório. Conforme registrado, o
corrente trabalho almeja compreender o voto compulsório no Brasil, enquanto ato jurídico e

8
Nosso atual modelo constitucionalista tornou-se ciência com os Federalistas norte-americanos e os iluministas
no continente europeu, porém, importante menção fez André Ramos Tavares (2012, p. 26) sobre os judeus ao
dizer que “foi KARL LOEWENSTEIN quem identificou o nascimento desse movimento entre os hebreus, que, já
em seu Estado teocrático, criaram limites ao poder político, por meio da imposição da chamada “lei do
Senhor”.”
14
expressão da vida política, cujo instituto, devido à desidratação social que o assola,
demonstrada pelo aumento das abstenções, tem revelado uma situação óptica conhecida por
“fata morgana”. Nesse sentido, diz a lenda que, em razão do efeito marítimo, alcunhou-se o
navio-fantasma da cultura popular de Flying Dutchman, na tradução: o Holandês Voador! De
modo semelhante, o povo, costumeiramente alienado ao processo eleitoral,
independentemente do escrutínio adotado pelo Estado, tem avistado a atividade partidária de
maneira ilusória no tocante à realidade institucional que o envolve.
A partir do panorama traçado, nota-se que no assentamento constitucional, pertinente
aos princípios fundamentais da República, previstos do art. 1º ao 4º da Carta, há uma proposta
patente relacionada à soberania popular9, idealizada por Rousseau no século das luzes.
Afirma-se que todo poder emana do povo. Outrossim, na prática, o arranjo político claramente
tem funcionado voltado à teoria da soberania nacional, formulada por Barnave e cia.
Desnuda-se esta ilusão óptica engendrada no Brasil da seguinte maneira: no caso do cidadão
brasileiro, este é um indivíduo que deve votar compulsoriamente, sob risco de sanção
pecuniária ou interdição de direitos. Além disso, se este cidadão quiser se candidatar a um
cargo eletivo, antes disso, deverá estar filiado a um partido político. Nesse ritmo, tanto a
capacidade ativa, quanto a capacidade passiva do sufrágio carregam consigo uma natureza
compulsória que vilipendia o exercício espontâneo de participação. Após essa breve reflexão,
forçoso ventilar que a cidadania, fundamento republicano, não seria plena e o Estado tem se
mostrado corporativista em sua relação jurídica com as agremiações políticas.
À vista disso tudo, durante esta jornada acadêmica, dois pressupostos darão fôlego aos
objetivos do investigante em busca da compreensão fenomenológica do voto obrigatório, que
são: i) a uma, a tentativa de expor que o instituto jurídico, de modo compulsório, trata-se de
instrumento de dominação legal por parte dos partidos políticos; ii) a duas, demonstrar para o
leitor a desnecessidade do regime obrigatório, pois não seria mais urgente a acepção do voto
como motor do processo democrático, malgrado seja o mais simbólico, haja vista que o
instrumento implica tão somente na escolha de um mandatário. Em contrapartida, o processo
legislativo, que se segue após as eleições, tramita em boa parte, senão completamente, à

9
“Historicamente, foi Rousseau o mais celebrado corifeu da doutrina do sufrágio-direito, que procedeu
coerentemente da sua doutrina da soberania popular”. BONAVIDES, p. 135.
15
revelia da população10. Atualmente, através de outros mecanismos, a sociedade tem exercido
a sua soberania e fomentado a democracia de maneira mais fluida e vivaz.
Entre tantos outros argumentos postos de modo difuso no cotidiano, justifica-se o
pleito acadêmico, porquanto o voto, corolário da democracia representativa – hoje –,
indubitavelmente margeado pela ideologia econômico-política, também não deixou de ser
mais um “produto” fabricado pela Escola da Public Choice11, traduzindo-se como “capital
político” dos agentes eletivos cuja rentabilidade seria praticamente 100% garantida no regime
obrigatório. Ora, a cada período eletivo, ainda que nenhum candidato, em determinado pleito,
abra a boca e emita discursos persuasivos, boa parte do eleitorado, no dia e hora marcados,
comparecerá para votar.
Além disso, mister ressaltar que a obrigatoriedade do voto popular ainda permanece
como uma característica marcante de países subdesenvolvidos – fato brasileiro. Entre os 19312
países oficialmente reconhecidos pela ONU, aproximadamente 14% exigem de seus cidadãos
o voto compulsório, conforme estudo feito pela International IDEA. Em meados de 2010, a
referida organização havia mencionado cerca de 3813 países nessa condição. Contudo, em
2021, em nova publicação científica, o celebrado instituto de pesquisa apontou 2714 Estados,
sendo onze deles somente no continente americano15.
Na América do Sul, além do Brasil, o voto permanece obrigatório também na
Argentina, na Bolívia, no Equador, no Peru, no Paraguai e Uruguai. Já em relação às maiores
economias do mundo, em 2022, de acordo com o ranking da Austin Rating16, entre os 10
maiores PIB’s, apenas o Brasil ainda possui tal exigência (aproximadamente 10%).

10
“Percebe-se certo desencantamento pelo atual modelo de democracia representativa. Nem os partidos nem os
mandatários sentem-se obrigados a manter as promessas e os compromissos assumidos anteriormente, inclusive
no período de campanha. Aliás, por vezes, nem mesmo o ideário do partido é observado. Ao fim e ao cabo, quer
se tão somente ocupar o poder estatal, ainda que à custa de fraudes e mentiras bem urdidas pelo marketing
político. Nesse quadro, é natural que os cidadãos não se sintam representados nas instâncias político-estatais”.
GOMES, José Jairo, p. 69.
11
Teoria que realiza uma abordagem economicista sobre institutos jurídicos do Direito Público, tendo em vista a
noção mercadológica do Direito Privado. Foi desenvolvida por James Buchanan.
12
Até o presente momento, o Sudão do Sul foi o último Estado-Membro a fazer parte da ONU em 2011.
13
DISPONÍVEL EM: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2010/06/11/apenas-17-paises-tem-
punicoes-para-quem-nao-vota. ACESSO EM: 8 jan. 2022.
14
DISPONÍVEL EM: https://www.idea.int/data-tools/data/voter-turnout/compulsory-voting. ACESSO EM: 10
abr. 2022.
15
DISPONÍVEL EM: https://www.idea.int/data-tools/question-view/577. ACESSO EM: 10 abr. 2022. Este fato
pode ser explicado em razão da instabilidade política e desigualdade econômica presente na América Latina,
conforme RIBEIRO, E.; BORBA, J. Protesto político na América Latina: tendências recentes e
determinantes individuais. Opinião Pública, vol. 21, nº 1, 2015.
16
DISPONÍVEL EM: https://www.poder360.com.br/economia/brasil-volta-ao-top-10-no-ranking-de-maiores-
economias-do-mundo/. ACESSO EM: 20 ago. 2022.
16
Conforme se sustenta nestas linhas, o Brasil, além de refratário no que tange aos países
mais ricos do mundo, coabita em uma camada minoritária de países periféricos que ainda
mantêm a exigência coativa do voto. Dessarte, tem permanecido recalcado à famigerada ideia
do “país do futuro”, consubstanciada nos escritos de Stefan Zweig. A consequência desse
processo psicossocial qual seria: a máquina pública está, de modo não peremptório, em fase
de testes, id est, de aperfeiçoamento democrático em busca de um futuro brilhante para a
nação.
Tendo em vista a explanação acerca do problema enfrentado, dos objetivos delineados
e de sua correspondente justificativa, explica-se a metodologia adotada pelo egresso. Quanto à
abordagem da pesquisa científica, caracteriza-se como qualitativa17, pois se pretende
compreender um fato ou um fenômeno: a continuidade do voto compulsório no ordenamento
pátrio. Quanto a sua natureza, trata-se de pesquisa básica com viés expositivo do
conhecimento apreendido ao longo do curso de Direito, sem o fito condizente a sua
aplicabilidade, embora sobre fumus boni iuris. Em relação ao objetivo acadêmico,
dificilmente uma pesquisa pode permanecer pura e sem a influência de outros procedimentos
metodológicos, porém, no que diz respeito ao caráter sobressalente, revela-se descritiva18,
porquanto se estabelece uma relação entre a instrumentalidade de dominação legal e a atual
desnecessidade da obrigatoriedade do voto.
Quanto à estrutura do trabalho acadêmico, a monografia encontra-se dividida em
quatro partes interdependentes. No primeiro capítulo, há uma exposição sobre o contexto
relativo ao hodierno cenário em que se faz presente o voto popular. Já no segundo e terceiro
capítulo, haverá uma abordagem apartidária, sob o ponto de vista jurídico e social,
respectivamente. Apresentar-se-ão argumentos os quais auxiliarão na compreensão acerca do
papel coativo do voto: afinal, seria um ato ou um compromisso obrigatório, ou melhor, um
dever cívico. Para isso, buscar-se-á analisar o arranjo democrático brasileiro, assim como
descrever as atividades sociais presentes no mundo contemporâneo que caminham lado a lado
com o sufrágio universal, funcionando também como instrumentos efetivos em busca da
justiça social.

17
“Os métodos qualitativos são aqueles nos quais é importante a interpretação por parte do pesquisador com
suas opiniões sobre o fenômeno em estudo”. SOARES PEREIRA, Adriana et al. Metodologia da Pesquisa
Científica. 1. ed. Santa Maria, RS. 2018. p. 67.
18
“nesse caso, a pesquisa não está interessada no porquê, nas fontes do fenômeno; preocupa-se em apresentar
suas características”. GONSALVES, E. P. Iniciação à Pesquisa Científica. 3. ed. Campinas: Alínea, 2003. p.
65.
17
In fine, no quarto capítulo, a título de conclusão, será mencionado o direito
fundamental à objeção de consciência de cada indivíduo, como também o direito ao
peticionamento – relacionado ao controle social da Administração Pública –, e, sem prejuízos,
escólio acerca do instituto jurídico recall19 como supedâneo lógico para a correção do
desequilíbrio social existente no pleito brasileiro, tendo vista a continuidade do modelo atual,
pois sem o referido check and balance ofertado aos cidadãos, o domínio sobre a máquina
estatal resta por completo nas mãos dos partidos políticos.

2 INSTITUTOS CIRCUNFLEXOS AO SUFRÁGIO UNIVERSAL

A primeira parte deste trabalho de encerramento pretende apresentar aos leitores


breves reflexões acerca de conceitos jurídicos e assuntos do ambiente político que giram em
torno do voto popular. O poder, o direito, a democracia, bem como a própria votação são
analisados a partir de uma perspectiva objetiva, considerando-se a importância desses temas
para o esclarecimento sobre a continuidade ou não do voto obrigatório. Quanto ao referencial
teórico utilizado neste capítulo e seguintes, encontra-se subsidiado em fundamentos jurídicos,
na ciência política e na literatura, como em Liberdade e Democracia de Norberto Bobbio;
Direito Eleitoral de José Jairo Gomes; Ensaio sobre a Lucidez de José Saramago;
Coronelismo, Enxada e Voto de Victor Nunes Leal; O Voto Obrigatório no Estado
Democrático Brasileiro de George Melão; e por fim, não menos importante, em Ciência
Política de Paulo Bonavides e Elementos de Teoria Geral do Estado de Dalmo Dallari,
compêndios estes comparados à Suma Teológica20 dos estudantes brasileiros no que diz
respeito às ciências sociais.
Cumpre esclarecer que um dos pressupostos deste trabalho consiste na dicotomia entre
os interesses do povo e do corpo político, materializada no século XVIII21, e que se arrasta no

19
“Por tudo isso, já se ouvem vozes a propugnarem a necessidade da superação da concepção atual de
representação político-partidária. Defende-se a implantação de uma efetiva democracia representativa. Nela, o
mandato deve estar sob controle popular, inclusive com risco de perda (recall), de sorte que o mandatário não
se sinta tentado a se enveredar por caminhos eticamente escusos”. GOMES, José Jairo, p. 69.
20 Uma das obras teológicas mais importantes da História, escrita por São Tomás de Aquino no séc. XIII.
21 “Em verdade, o “terceiro estado”, ou seja, a burguesia, não postulava outra coisa senão o poder político,
pois como classe próspera e economicamente dominante se lhe deparava a contradição exasperadora de ver a
máquina do Estado nas mãos do rei e das ordens aristocráticas e privilegiadas”. BONAVIDES, p. 254.
18
Brasil até a presente data. Sendo assim, a governabilidade22 construída por meio da
representatividade que séculos atrás passou a vigorar nos Estados-Nação não deve
necessariamente facultar ao corpo administrativo de agora que este se torne tão estável ao
ponto de estabelecer uma “briga a portas fechadas”, relegando aos concidadãos uma situação
termostática de “plateia” perante as disputas políticas das agremiações, assim como a uma
pueril condição de legitimadores do processo democrático a cada dois anos. A esse tipo de
regime institucional que se prolonga no arco da história brasileira, chama-se de “república da
grei”, na qual partidos políticos, beneficiados pelo arranjo político do Estado, perpetuam-se
sem guardar preocupação com o labor do convencimento ideológico nem com o princípio da
eficiência administrativa.
Tendo em vista a estabilidade funcional do corpo burocrático, a qual poderia ser
facilmente traduzida em vida mansa, entende-se que o referido sistema eleitoral tem permitido
aos mandatários a possibilidade de imprimir esforços apenas para um alvo durante o exercício
do mandato: seus adversários políticos. Faltando-se seis meses para novas eleições, os
mesmos políticos subitamente trazem à memória a existência de outro importante flanco: os
eleitores. Esse movimento é chamado pela doutrina de desincompatibilização 23. No entanto,
de maneira geral, esse fenômeno dos “seis meses” já faz parte do mainstream brasileiro. Em
meados de julho, a título de exemplo, o Congresso Nacional aprovou a chamada “PEC dos
Benefícios”, medida esta flagrantemente eleitoreira. Sem embargos, em Coronelismo, Enxada
e Voto, o autor (2012, p. 33) chama atenção para o sistema de reciprocidade vigente no Brasil
dos anos 30, no que descreve como um “clima propício ao acordo”, o qual:

“também atinge seu ponto ótimo por ocasião das eleições, mas na fase que
precede à tomada de compromissos. Uma vez definidas as posições, entra-se
então na etapa da compressão, que antecede imediatamente ao pleito. Alguns
prováveis aderentes podem ser poupados até mais tarde, enquanto subsiste a
possibilidade de os chamar ao seio confortável da situação. Outros serão
convencidos pelos primeiros indícios de violência”.

22 “Diz ainda o publicista polonês que o processo de representação é mera técnica aplicada ao processo de
governo, com limites que são ditados pela estrutura das relações de poder. O princípio de representação, em
consequência, e apesar de regular relações entre governantes e governados — acentua ele — nenhuma
modificação pode trazer às relações de poder, nenhuma substituição da classe dominante”. Bonavides ao citar
Sobolewsky, p. 131.
23 “Destarte, nas hipóteses de desincompatibilização, o agente público pode escolher entre manter-se no cargo,
emprego ou função – e não se candidatar – ou sair candidato, e, nesse caso, afastar-se temporária ou
definitivamente, sob pena de tornar-se inelegível, já que estará impedido de ser candidato”. GOMES, José
Jairo, p. 194.
19
Em digressão machadiana, a primeira tentativa registrada de emenda à Constituição
Federal com relação ao voto facultativo foi apresentada pelo ex-deputado federal, Pedro Irujo,
por meio da PEC 190/9424. Desde então, mais de 40 PEC’s foram apensadas à primeira
proposta dos anos noventa, contudo nenhuma logrou êxito sobre o disposto no art. 14, §1º, da
Lex Legum. Em 2015, a PEC 190/94 foi apensada à “PEC da Fidelidade Partidária” nº 182/07,
a qual por sua vez também foi aditada à PEC 113/15 (da Reforma Política), num período de
fortes protestos contra o governo de Dilma Rousseff, terminando com a criação da “janela
partidária” prevista na EC nº 91/2016. Por fim, em 17/06/2015, três meses após o ato
administrativo relacionado ao apensamento da PEC 190/94, esta foi declarada prejudicada em
Sessão Deliberativa Extraordinária, segundo consta no sítio eletrônico da Câmara dos
Deputados Federais.
Contrária ao zelo democrático manifestado pela continuidade do “voto educativo”25,
percebe-se uma atividade legislativa mais intensa com relação ao afrouxamento de normas
voltadas à responsabilização dos próprios parlamentares que –, como sucedeu com a
introdução do ANPP26, relacionado aos crimes com pena mínima inferior a quatro anos e
também no caso das modificações27 introduzidas na LIA, – reforça ainda mais a
“crocodilagem” protagonizada pelo staff político que de modo contínuo tem devorado a
infraestrutura de milhares de cidades ao redor do país através do silêncio administrativo,
devorado a fé depositada na força de trabalho, fundamento da ordem econômica, e trucidado o
futuro de crianças, adolescentes e jovens, reflexo este do flagrante descompasso frente ao art.
227 da Constituição. A soma desses vícios existentes no arranjo político tem resultado na
desprogramação gradativa do art. 3º da Carta Jurídica, retirando-lhe a já escassa força
normativa28 em troca da retórica assentada na reserva do possível.
Em razão do prolongamento desse cenário institucional, indiretamente financiado pela
inércia de boa parte dos membros do Ministério Público (art. 129, CF.) – advogados da

24 DISPONÍVEL EM: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/14522. ACESSO EM: 18 de jul. 22.


25 Importante frisar que uma das finalidades dos partidos políticos seria a educação do eleitorado, conforme
sinaliza Bonavides em sua obra para a Lei nº 9.096/95. De modo contrário, registra-se a mudança ocorrida em
2009 na “Lei das Eleições” do parágrafo único do art. 31, que destinava as sobras dos recursos financeiros de
campanha para instituições de pesquisa e educação política.
26 Lei nº 13.964/2019 – “Pacote Anticrime”.
27 Lei nº 14.230/2021.
28 Costuma-se classificar o art. 3º da CF. como norma programática, espécie de comando-valor ao Legislativo
para que este a regulamente. Embora seja norma de eficácia limitada, não se pode retirar a sua força normativa,
consoante definição bastante conhecida de Konrad Hesse.
20
sociedade civil – e demais corresponsáveis pelo controle administrativo29, chega-se à triste
conclusão de que a figura do “político brasileiro” se apresenta de modo estigmatizado30. O
político brasileiro possui uma cartilha de procedimentos escusos que têm sido capazes de
levantar defunto. Ele é uma figura separada do real, presente nos noticiários sempre levando
alguma vantagem sobre outrem: a sociedade invariavelmente, ora outra um particular, e de
vez em quando outro agente político. A continuidade desse modus operandi tem ferido de
morte, entre outros, o princípio da confiança, instituto caro ao Estado Democrático de Direito,
tornando a República numa verdadeira cleptocracia31. Em suma, o político brasileiro é um
desacreditado. E pasmem, parece que tudo isso só o tem beneficiado: do Lindinho ao
Nervosinho, sem olvidar do Caranguejo e Proximus.
Na contramão da lista32 acima à qual os meios de comunicação tiveram acesso em
2016 por meio da Operação Lava-Jato, o senso de humor do político brasileiro parece se
esvair repentinamente quando alguém de fora do círculo de interesses, ou melhor, sujeito
dissociado do lobismo33 crônico que se faz presente na Administração Pública, resolve tecer
críticas sob a forma de charges baseadas em fatos lamentáveis do ambiente político. A
respeito dessa controvérsia, em 2018, a ABERT se viu compelida a propor uma Ação Direta
de Inconstitucionalidade – 4.451/DF – em desfavor do art. 45, incs. II e III, da “Lei das
Eleições” (Lei nº 9.504/97), porquanto se vedava no texto de lei a prática de qualquer
tentativa de “ridicularização” do político brasileiro a partir do dia 1º de julho, em anos
eleitorais, ou seja, a cada dois anos.
Contrário aos interesses da grei, assim declarou os itens 3 e 4 da ementa (ADI
4451/DF), preservando o pluralismo político no Estado brasileiro (art. 1º, V, CF.):

29 “(...) Na verdade, jamais existiu controle sério e eficaz do exercício do mandato. Os inúmeros escândalos a
que se assiste dia após dia fazem com que a população relacione o meio político à corrupção. Avaliações de
organismos internacionais apontam o Brasil como um país com alto índice de corrupção. Vez por outra,
projetos de lei que beneficiam tais práticas são apresentados e até votados no Parlamento; foi o que ocorreu
com a célebre lei da mordaça”. GOMES, José Jairo, p. 69.
30 Estigma Social, teoria desenvolvida por Erving Goffman. Exemplo emblemático se deu com o slogan “Vote
Tiririca, pior que tá não fica”, frase do candidato eleito deputado federal, em 2010.
31 Expressão utilizada pelo então ministro do STF, Gilmar Mendes, em relação às condutas ilícitas do Partido
dos Trabalhadores (PT).
32 “Lista da Odebrecht”: Lindbergh Farias, Eduardo Paes, Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, respectivamente.
33 Bonavides em “a institucionalização dos grupos de pressão”: “Um só país introduziu em suas leis a nova
matéria, dando o primeiro passo no sentido de institucionalizar os grupos de pressão. Com efeito, em 1946, o
“Federal Regulation of Lobbying Act”, aprovado pelo Congresso dos Estados Unidos, disciplinou pela vez
primeira a atividade dos grupos de pressão que desde muito atuavam junto do poder legislativo, debaixo das
seguintes denominações: lobby, ou seja, o grupo organizado (a palavra significa literalmente “antecâmara”,
“corredor”, evocando o local da casa legislativa onde os agentes dos grupos de pressão buscavam de
preferência estabelecer contato ou audiência com os congressistas), lobbying, o método de ação que eles
empregam e lobbyisten as pessoas que se entregam a esse gênero de atuação política”. BONAVIDES, p. 269.
21
“3. São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade
de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável
ao regime democrático. Impossibilidade de restrição, subordinação ou
forçosa adequação programática da liberdade de expressão a mandamentos
normativos cerceadores durante o período. 4. Tanto a liberdade de expressão
quanto a participação política em uma Democracia representativa somente se
fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição
crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes”.

2.1 Do Poder

Não se pretende esconder que durante todas as partes desta lacônica tese há uma
crítica velada em relação ao poder e como este se encontra distribuído no Brasil. Dessarte,
preocupar-se com o status da democracia naturalmente conduz o investigante às entranhas do
funcionamento republicano que tem vigorado dentro do país. Para além do ideal democrático,
em curtas palavras, atualmente pode se afirmar que a democracia se trata de uma situação
socioeconômica manifestada por meio de um estatuto jurídico no qual se reconhece34 a
fragmentação e a transitoriedade do poder em benefício de todos. Nesse sentido, a aludida
fragmentação corresponde às divisões orgânicas do poder em: i) poder estatal/oficial: o qual
diz respeito às atividades estáticas do Estado, baseadas no princípio da legalidade estrita; ii) e
o poder não oficial: exteriorizado através da iniciativa privada, ou melhor, do segundo e
terceiro setor. Por último, quanto à transitoriedade presente na direção da máquina pública,
decorre este fato do princípio republicano assentado na alternância sazonal da cúpula
representativa do Estado.
Tendo em vista que a democracia postula uma defesa em prol da participação de
todos, mas também que a finalidade do Estado repousa na concretização do bem (justiça)
comum, nada mais racional que a democracia seja celebrada como o regime mais apropriado
para os fins do Estado. Dito isso, os doutrinadores costumam descrever o voto como uma
capacidade ativa de participação, bem como os partidos políticos como organizações pelas
quais se busca organizar a vontade popular a fim de assumir o poder para realizarem seus
programas. Levando em conta apenas essa perspectiva, tem-se o retrato fiel da
representatividade apócrifa iniciada no século XVIII, que se perpetua no Brasil, na qual o
povo elege e o eleito governa, pois, de modo contrário, em sentido amplo, a participação
certamente alcança maiores direitos e instrumentos do que o voto. Outrossim, não são apenas

34 Ferdinand Lassale em sua obra refletiu a respeito desse reconhecimento que as constituições escritas
deveriam realizar. Somente seriam eficazes as Cartas Políticas que representassem as constituições reais de
poder presentes no seio da sociedade, caso contrário seriam consideradas meras “folhas de papel”.
22
os partidos políticos que organizam a vontade popular tendo em vista interesses de classe dos
mais variados. Como se observa, portanto, questões pertinentes à atividade democrática estão
umbilicalmente conectadas com a distribuição do poder.
Quanto ao conceito propriamente dito de poder, Norberto Bobbio (2007, p.77) o
define como a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos desejados sobre os
indivíduos ou grupos humanos, sendo a força um dos meios de exercício do poder. Não à toa
o Direito Civil classifica a maneira unilateral de se adentrar na esfera jurídica alheia como
direito potestativo. Em síntese, quanto às espécies relacionadas ao poder social35, o celebrado
autor os discrimina em: i) poder político, aquele representado pelos mecanismos de coerção
oficial, ou ainda, pelo monopólio da violência legítima por parte do Estado; ii) poder
econômico, ancorado na propriedade dos meios de produção e demais direitos reais; iii) e o
poder ideológico, traduzido em discursos carregados de valores e princípios dominantes. Cada
forma sugere um tipo de dominação: representantes e representados, ricos e pobres, e sábios e
ignorantes.
Sem prejuízos, na teoria microfísica do poder, Michel Foucault (2021) traz uma ideia
em que toda ação social seria uma maneira de exteriorização potestativa, visto que a partir da
Idade Moderna o poder se tornara difuso, representado por saberes e discursos, tendo como
mote o controle do cotidiano, enquanto na Idade Média, o mesmo poder se mostrava mais
homogêneo, sendo nítido identificar quem era o titular, e com fulcro no controle territorial.
Nota-se que o autor enfatizou o poder ideológico como sustentáculo dos demais tipos de
dominação, como, por exemplo, quando considerou o Estado “só” mais uma instituição de
poder entre tantas outras, embora tenha aceitado uma ideia conflituosa no tocante ao choque
comunicativo dentro das sociedades. Data vênia, tendo em vista o que se pretende demonstrar
em relação à descontinuidade do voto popular, não faria sentido neste momento compactuar
com tal abordagem. Nesse sentido, o poder permanece delimitado, conforme postulado de
Schumpeter ao dizer que as elites nacionais defenderiam a liberdade apenas para competirem
entre si, sendo a democracia as regras deste “jogo político”.
Foucault tem razão ao ventilar que o poder se exerce nas diversas relações sociais do
dia a dia, mas tão somente à luz do entendimento de Schumpeter, o qual consiste em
desconsiderar nos regimes democráticos a existência de uma “vontade coletiva autêntica”.
Nesse ritmo, vontades difusas não implicam poderes difusos, pois como descreveu Bobbio, a

35 “Esta distinção entre três tipos principais de poderes sociais, embora expressa em formas diversas, é um
dado quase constante nas teorias contemporâneas, nas quais o sistema social em seu conjunto aparece direta ou
indiretamente articulado em três subsistemas: a organização das forças produtivas, a organização do consenso,
a organização do poder coativo”. BOBBIO, 2007, p. 83.
23
vontade deve ter certa capacidade de “produzir efeitos desejados”. Esse salto desarrazoado,
praticado por Foucault, permite se chegar à ridícula conclusão de que os comportamentos da
cúpula dirigente do Estado seriam explicados pelos comportamentos da sociedade civil, ao
passo que ignoraria a enorme parcela de contribuição por parte da burguesia na construção do
contrato social.
Não se planeja rechaçar que as ações citadinas são fórmulas de poder – no entanto, é
inegável que dentro de uma escala abstrata de dominação (política, econômica e ideológica), a
qual se levada em conta, tende a transformar essas pretensas intenções em condutas
microscópicas diante do capital, segundo o próprio autor. Ademais, sendo o poder um
exercício de uma vontade, deve-se considerar a velocidade de cumprimento do mandamus.
Essas ações da vida cotidiana, representadas em saberes e discursos, levam anos para implicar
determinadas situações, enquanto simples movimentos relativos aos preços ou taxas de juros,
influenciados por grupos ou blocos econômicos, transformam toda a superestrutura social.
Não obstante, há nesse modelo de compreensão histórica uma enxurrada de inferências
interlocutórias a fim de se criar narrativas bem ajustadas com o intuito de refazer o passado
visando um futuro não convencional, enquanto a realidade fática do presente é relegada a
segundo plano.

2.2 Do Direito

Levando em consideração a visão materialista em relação ao poder, busca-se delinear a


expressão “direito”. Trata-se de conceito multifacetado, assim como o de “poder” e
“democracia”, alcançando diversas compreensões à luz da semiótica. Sabendo disso,
pretende-se encampar uma noção a qual funcione como norte para o término da
obrigatoriedade política. O termo “direito” tanto pode qualificar uma pretensão objetiva
relacionada à estabilização social quanto pode alcançar um sentimento mais pragmático,
embora as duas acepções não deixem de ser instrumentais. A primeira se verifica na
impessoalidade do Estado para com todos, enquanto a segunda forma se realiza no dirigismo
da classe dominante. Dessa maneira, apresenta-se uma parte “boa” e outra “ruim” acerca do
direito, sendo a ideologia a responsável pela legitimação de ambas as frações, do modo como
as pessoas aceitam a realidade como justa ao lume da estrutura social, isto é, como se introduz
no ser que as relações de trabalho, bem como as forças de produção, como estão, são normais,
apenas mais uma das contingências da vida.
24
Há uma profusão de sentidos que a palavra “direito” pode abraçar, cabendo aos livros
de Introdução ao Estudo do Direito sintetizá-los. Atento à amplitude dessa expressão, apoia-se
na teoria do emérito Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2003, p. 85) a fim de explicar o primeiro
aspecto adotado por este trabalho. Nessa trilha, a decidibilidade36 inerente ao uso do direito
no que condiz com seu viés prescritivo se trata de um fim gnosiológico do Direito. Por meio
do ordenamento jurídico e da hermenêutica, o intérprete do direito decide os conflitos sociais
que despontam de inúmeras pretensões resistidas, respeitando diversos princípios
interpretativos e, por certo, as próprias leis. Esta noção de direito se revela em forma de
mandamentos voltados para a pacificação social, ou ainda, em comandos baseados numa
lógica do razoável, segundo Luis Recaséns Siches. Todavia, nessa perspectiva, não basta
apenas estabilizar o convívio social, deve-se buscar decidir de forma imparcial.
Essa primeira maneira de enxergar o direito se confunde com o sentido de democracia,
ou seja, um compilado de modais deontológicos (hipótese-consequência) que existem para
assegurar as “regras do jogo”, independentemente das individualidades de cada ser humano.
Em contrapartida, a segunda maneira de visualizar o direito encontra guarita na dominação de
uns sobre outros, sendo o direito um complexo jurídico posto de modo intencional com fulcro
nos interesses de classe daqueles que dirigem a máquina pública. Enquanto o primeiro aspecto
repousa numa abordagem científica do direito, o segundo revela um aspecto social inclinado
para o poder, baseado na transformação da realidade e na manutenção do status quo. O tal
“voto educativo37”, nesse passo, é só mais um entre outros mecanismos de controle social.
Percebe-se que neste segundo sentido de direito existe um entrelaçamento semântico com o
próprio Estado38, considerando a imposição da Constituição Federal sobre o eleitorado.
Para terminar este ponto em relação ao direito, o estruturalismo marxista (2011, p.
105) entrega uma generosa explicação por meio do conhecido excerto no qual se ensina que
antiquadas formas de dominação pessoal não costumam desaparecer em razão do surgimento
de novas formas de dominação impessoal. Nesse ritmo, o coronelismo brasileiro não deixou

36 “O primeiro modelo, que poderíamos chamar analítico, encara a decidibilidade como relação hipotética
entre conflito e decisões, isto é, dado um conflito hipotético e uma decisão hipotética, a questão é determinar
suas condições de adequação: as possibilidades de decisões para um possível conflito. Pressupomos aqui o ser
humano como um ser dotado de necessidades (comer, viver, vestir-se, morar etc.), que são reveladoras de
interesses (bens de consumo, de produção, políticos etc.)”. FERRAZ JR., Tercio Sampaio.
37 “Argumenta-se, ainda, que a obrigatoriedade do voto faz que o cidadão se interesse mais pela vida política,
dela se aproximando, e que a “massa popular” não é preparada para o voto facultativo”. GOMES, José Jairo,
p. 77.
38 “Para ser um Estado, a ordem jurídica necessita de ter o caráter de uma organização no sentido estrito da
palavra, quer dizer, tem de instituir órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho para
criação e aplicação das normas que a formam; tem de apresentar um certo grau de centralização. O Estado é
uma ordem jurídica relativamente centralizada”. KELSEN, p. 200.
25
de existir por causa do avanço da social media, mas ambas formas continuaram a exercer seus
domínios. À luz dos ensinamentos de Foucault, essa atualização quanto ao controle social
poderia ser explicada a partir do coronelismo, como uma das possíveis causas do controle
feito através da social media, esquecendo-se, porém, da estrutura social que sustenta ambos os
domínios, isto é, do capital financeiro assegurado ao longo dos anos às classes dominantes
através do ordenamento jurídico, antes dissociado da função social.
Não se pode suprimir os problemas institucionais herdados do liberalismo clássico
mudando a respectiva nomenclatura ou a maneira como os entendemos (tal da
ressignificação), mas, contudo, deve-se combater o efeito concreto desses vícios – a pobreza e
o endividamento das famílias hipossuficientes. Se se tem um ordenamento jurídico em que
não se guarda preocupação com a distribuição da riqueza nacional, permanecendo indiferente
à acumulação primitiva do capitalismo, dá-se azo ao aumento das mazelas do sistema
competitivo cujas “regras do jogo” (direito-democracia) são esculpidas pelo “status quo”
(direito-Estado). Isto posto, não parece que o sistema eleitoral em vigor, baseado no voto
compulsório, esteja preocupado com tal encargo social previsto nas normas programáticas da
Constituição.

2.3 Da Democracia

De acordo com as exposições feitas, cumpre ressaltar que a democracia enquanto


processo é uma vocação da atualidade pós-moderna. Ademais, acerca da cidadania, se
determinadas formas de controle social, como a continuação do voto compulsório,
permanecerem como estão: indiscutíveis perante a maioria das pessoas, então se corre o risco
de a população continuar imersa na confusão sintagmática que tornou “direito-democracia-
poder” a mesma coisa. Esse tipo de dominação ideológica, espalhada no ambiente social,
também é chamada de violência simbólica em razão da falta de educação civil dos mais
vulneráveis. Além da renda precária, o eleitorado não tem conseguido se identificar com as
instituições públicas nem com os demais concidadãos, em causas comuns, pois a falta de
discernimento afasta a sensibilidade aos mecanismos de solidariedade, tornando crível a visão
de Schumpeter, quando defendeu que não haveria na democracia uma “vontade coletiva
autêntica”. Nessa altura, não se esquece do fator consumerista, que também contribui com a
dispersão de pretensões relacionadas à formação de uma vontade geral, tendo em mente a
ampliação do individualismo através da social media.
26
Um dos grandes problemas da democracia contemporânea se encontra justamente na
qualidade da cidadania programada pela agenda39 do Estado. Não se vê um interesse
relacionado à construção deste fundamento republicano, nem mesmo com a própria
moralidade do corpo burocrático. A população in albis se tornou marginal da vida política,
funcionando apenas como ferramenta legitimadora das eleições. Nada obstante a esse
idiotismo, apenas educação não resolve, conquanto qualifique a mão de obra e alimente o
pensamento crítico, pois sem renda, não há voz (mandamus). A educação, de fato, contribui
com a melhora da sensibilidade aos mecanismos de solidariedade, ao passo que torna o
cidadão menos influenciável às ondas consumeristas, entretanto somente por meio da
distribuição de renda é que se pode transferir parcela significativa de poder sem ter de apelar a
caudilhos e à generalidade do conceito relativo à dignidade da pessoa humana.
Neste corrente estado das coisas o que tem se observado é um autêntico “espírito de
porco” para todos os lados, enquanto partidos políticos e correligionários permanecem
incentivando na consciência coletiva a famigerada menoridade kantiana, bem como um
programa inspirado no cartaz “Brasil, país do futuro”. Esse tipo de “bloqueio mental”
arquitetado pela grei deve ser tratado com maior cuidado, posteriormente. Por ora, retorna-se
de maneira mais sucinta à democracia. Foi dito no início deste capítulo que se acredita na
antitética entre os interesses do povo e os interesses do corpo político. Do mesmo modo,
também foi dito que existe uma “briga a portas fechadas” no país, na qual o povo tem
permanecido na posição de plateia do jogo político. Sendo, portanto, difícil justificar que a
democracia brasileira corre bem diante do cenário apresentado.
Por meio da literatura, José Saramago, em Ensaio sobre a Lucidez, construiu uma
interessante distopia na qual descreve a sua visão em relação à antitética que existe entre o
povo e o corpo político. O enredo diz respeito a certas eleições em uma capital desconhecida
de um país não revelado onde o povo daquela cidade resolveu por dois momentos “votar em
branco”, fato este que, além de atestar uma cirúrgica lucidez frente aos representantes que em
nada os representavam, provocou um desconforto irracional na cúpula do Estado, dando causa
a uma declaração de “estado de sítio” na capital a fim de se descobrir quem eram os eleitores
que haviam ensejado aquele “ataque à democracia”. Através do recurso literário, o escritor
português trouxe à tona a imanente fragilidade dos sistemas representativos que acaba se
refletindo nesta monografia. Diz o livro (2020, p. 28), “(...) o primeiro-ministro reconheceu

39 “Cabe aos governos democráticos promover a educação política do eleitorado, através da divulgação
sistemática de conhecimentos, por meio de programas escolares, e concedendo ao povo amplas possibilidades
de exercício livre dos direitos políticos, aproveitando os efeitos educativos da experiência”. DALLARI, p. 168.
27
que a gravidade da situação era extrema, que a pátria havia sido vítima de um infame
atentado contra os fundamentos básicos da democracia representativa”.
A democracia representativa, ou ainda, indireta, é a mesma que Norberto Bobbio
(2000, p. 8) classificou como “democracia dos modernos”, diferenciando-a da democracia
direta, criada pelos antigos. Ensinou o autor que o conceito relativo à democracia não mudou,
mas, sim, a forma como atualmente esta se exerce. As Cidades-Estados da antiguidade, por
exemplo, deram lugar aos Estados-Nação. A partir disso, em nome da governabilidade
postulada pelos federalistas norte-americanos, como também pelos constitucionalistas
franceses, tornou-se o sentido procedimental, em seu aspecto jurídico-institucional, mais
aceito nos dias de hoje do que aquele sentido substancial dos gregos, voltado à época para a
divisão igualitária do poder. Enquanto o sentido procedimental postulado pelas revoluções
liberais implicaria “governo do povo”, o sentido material dos antigos significava “governo
para o povo”.
Nessa mesma perspectiva, o autor italiano já no primeiro capítulo da obra Liberalismo
e Democracia destacou a importante mutação ocorrida na concepção do valor “liberdade”
cultivada pelos antigos e modernos. Para os primeiros, a liberdade estava mais ligada à
divisão igualitária do poder entre os cidadãos, por meio do que, de modo semelhante,
Bonavides (2003, p. 162) descreveu como as bases da democracia grega: isonomia, isotimia e
isagoria. Observa-se que, segundo os antigos, a igualdade permanecia contida no valor
continente de liberdade. Por outro viés, de caráter mais econômico do que filosófico, em
respeito ao surgimento do homo economicus, a liberdade dos modernos repousou na limitação
dos poderes do Estado em favor de atividades privadas, como a expansão do comércio, e das
individualidades humanas40.
Mais uma vez se percebe que determinados interesses de classe inevitavelmente se
confundem com o próprio Estado através do direito que, por sua vez, é produzido com fulcro
na dominação. A inflexão ocorrida no princípio da liberdade, antes vinculado ao da igualdade,
está relacionada diretamente com a gênese democrática dos modernos, robustecida pela
propaganda de valores como a livre iniciativa, livre concorrência e de regras impessoais, sem,
contudo, ter levado em consideração que os indivíduos, embora nacionais do mesmo
território, não são iguais quanto à renda percebida nem quanto à educação construída ao longo
do desenvolvimento escolar. Tais circunstâncias fizeram surgir o chamado Welfare State.

40 “O pressuposto filosófico do Estado Liberal, entendido como Estado limitado em contraposição ao Estado
absoluto, é a doutrina dos direitos naturais do homem elaborada pela escola do direito natural
(jusnaturalismo)”. BOBBIO, 2000, p. 11.
28
Esses primados da filosofia liberal, que se concretizaram a partir da nova concepção
de liberdade, de maneira nenhuma, são negativos quando trabalhados ao lado de políticas
assistenciais. Acerca desse tipo de desenvolvimento socioeconômico, encontra-se amplo
reconhecimento na doutrina, embora esse tipo de abordagem não se faça presente na práxis do
cotidiano. No Brasil, o conceito de democracia se encontra praticamente conectado à ideia do
voto e da representação, segundo as balizas da teoria da duplicidade. Entretanto, o que se
pretende nesta caminhada seria justamente contribuir com o fortalecimento do paradigma da
democracia direta, sem que negligentemente se solape a governabilidade construída por meio
da representação.

2.4 Do Voto

Tendo em vista os estatutos promulgados pelo Estado brasileiro em prol do voto


obrigatório, desde 1932, faz-se necessário trazer à baila o jugo da – representatividade forte –
que paira sobre os ombros do cidadão auriverde. Esta se baseia na frágil compreensão do
passado de que todos devem votar para se eleger os melhores41 mandatários, os quais, por sua
vez, deverão criar ou executar o direito através da reunião de múltiplas vontades, gestando
então a iluminada vontade nacional de Barnave. Hodiernamente, essa fantasia presente no
classicismo libertário não se sustenta, considerando-se fatos relacionados ao mercado
financeiro, ao aumento das taxas de alfabetização básica, ao êxodo rural, à industrialização e
urbanização das cidades, ao aumento do poder econômico, embora ainda muito concentrado
no Brasil, à internet, e, mormente, no caso brasileiro, à redução das fraudes eleitorais. A partir
de 1932, com a criação do primeiro Código Eleitoral e, principalmente, da Justiça Eleitoral,
houve nesse ponto uma significativa evolução. Inclusive, um dos estopins da Revolução de 30
foi justamente a fraude eleitoral das eleições presidenciais.
Em contrapartida ao fenômeno descrito, tem-se o conceito de – representatividade
fraca – a qual se verifica principalmente em países desenvolvidos como, por exemplo, Estados
Unidos, França, Alemanha, Inglaterra. Aquele cidadão tem a faculdade de participar ou não

41
“A grande vantagem dos representantes é que eles são capazes de discutir os assuntos. O povo não é nem um
pouco capaz disso, o que constitui um dos grandes inconvenientes da democracia. Não é necessário que os
representantes, que recebera, daqueles que os escolheram uma instrução geral, recebam outra particular sobre
cada assunto, como se pratica nas dietas da Alemanha. É verdade que, desta maneira, a palavra dos deputados
seria a melhor expressão da voz da nação; mas isto provocaria demoras infinitas, tornaria cada deputado o
senhor de todos os outros, e nas ocasiões urgentes, toda a força da nação poderia ser retida por um capricho.”
MONTESQUIEU, Baron de. O Espírito das Leis. Trad. Cristina Murachco. 3ª Ed., São Paulo: Martins Fontes,
2005. p, 171.
29
do escrutínio periódico, sem, contudo, ser notificado posteriormente pelo Estado de que se
trata de persona non grata, haja vista que, a contrassenso, obviamente a democracia se realiza
de maneira dinâmica42, e não apenas de modo fotográfico com as eleições. Em verdade, como
será visto em breve, toda representatividade é fraca, porque se trata de uma ficção jurídica
para que se garanta tão somente governabilidade ao corpo burocrático. Nesse sentido, o
regime democrático que tem vigorado naqueles países pode ser chamado de
representatividade autêntica, enquanto no Brasil se tem uma representatividade apócrifa,
considerando que este último resiste à ficção jurídica da representação, pois força a
legitimidade do corpo político através do voto obrigatório, elevando os mandatários à
condição de “iluminados”, parafraseando Thomas Sowell.
O voto está intimamente ligado à ideia da representação, pois, através dele, almeja-se
atingir um consenso derivado a partir de um ambiente relativamente democrático. Não
obstante às diferentes representatividades que exsurgem tanto do voto compulsório quanto do
facultativo, por ora, inicia-se a compreensão acerca da natureza jurídica deste instrumento no
Brasil. O prof. José Afonso da Silva (2014, p. 359) leciona em sua obra que a Constituição
Federal trouxe sentidos diversos para os termos “sufrágio” e “voto”, uma vez que o art. 14
diz: o sufrágio é universal, enquanto o voto é direto, secreto e tem valor igual para todos. Na
mesma direção, Pedro Lenza (2012, p 171) busca diferenciar o ato de sufragar ao de votar.
Para este último autor, quando o eleitor opta pela anulação ou subscreve em branco a sua
vontade, apenas sufragou, mas não votou, pois não manifestou uma vontade válida de acordo
com as leis eleitorais.
Importante frisar que o significado da expressão sufrágio repousa em “apoio”, ao
passo que voto quer dizer “oferenda”. As duas palavras de origem latina implicam em
vínculos jurídicos voltados para uma finalidade específica – consenso. Ao lume da ciência
jurídica, a doutrina classifica o sufrágio como um direito de participação o qual se divide em
votar (capacidade eleitoral ativa) e em ser votado (capacidade eleitoral passiva). Nesse mesmo
sentido, de acordo com a Teoria dos Quatro Status de Jellineck, o voto se situaria no status
ativo, porquanto se vislumbra que o cidadão esteja por meio dele interferindo na formação da
vontade estatal. Outrossim, consoante à Teoria Geracional de Vasak, o sufrágio se trata de um
direito de primeira geração, já que se consolidou no período das revoluções liberais do séc.
XVIII.

42 “O século XX conhece sociedades, grupos, classes e partidos como substrato da vida política em substituição
dos antigos mitos do cidadão soberano e da vontade geral, tão usuais na abstrata teoria do Estado que nos veio
da herança liberal. São mitos que só sobrevivem na linguagem jurídica das Constituições e dos publicistas; de
modo algum encontram hoje confirmação nos fatos”. BONAVIDES, p. 264.
30
Frente a essas exposições, torna-se crível concluir que a compulsoriedade tem
deslocado o voto de seu natural status ativo para o status passivo da teoria de Jellineck,
subjugando os cidadãos ao comparecimento obrigatório no dia de eleição, sob a forma de um
discurso normativo que se traduz em “comparecer para se manifestar”, isto é, em “apoio”
popular condicionado pelo Estado, reforçando o sentido de sufrágio ou ato de sufragar, pois,
ainda que não se tenha feito “oferenda” a nenhum candidato, ou melhor, votado nulo ou em
branco, haverá aderência por parte da população às eleições.
A explanação acima pretende evidenciar o redirecionamento implícito do “voto-
direito” para o chamado “voto-função” e, concomitantemente, revelar um regime eleitoral
recalcado naquela incipiente representatividade que se originou dos direitos de primeira
dimensão. Além disso, também pretende reforçar o discorrido acerca do arranjo político feito
pela grei, escorado na disseminação da menoridade kantiana sob o cartaz “Brasil, país do
futuro” de Stefan Zweig (1941). Em razão desse atraso institucional, este trabalho considera
que o fim do voto obrigatório se assemelha à abolição do regime escravagista, porque a queda
do regime compulsório se reveste de conditio sine qua non para qualquer pretensão de
reforma política, mas também que o seu fim certamente ajudaria a soprar ventos democráticos
em direção à região centro-oeste do país, considerando que de lá parte o dirigismo nacional,
assegurado pelo deslocamento da capital federal.
O capítulo seguinte irá refletir de maneira mais analítica sobre o regime compulsório
enquanto instrumento de dominação legal, fomentado pelos ruralistas e a elite industrial43, os
quais se encontram abraçados junto à grei. Agora, de maneira breve, o Brasil ao considerar
apenas a manifestação de vontade válida, segundo critérios legais, tem tornado o direito
público subjetivo em patente função social, todavia, o “pulo do gato” engendrado pela grei,
pouco observado pela doutrina pátria até aqui, encontra-se na necessária distinção do voto
enquanto ato jurídico monofásico e bifásico. Nessa esteira, o desencontro na classificação do
voto brasileiro, se se trata de direito ou função, existe, pois se compreende o voto como ato
monofásico, esquecendo-se que na representatividade apócrifa há um privilégio velado ao
comparecimento e não à manifestação de vontade do eleitor. Logo, seria mais importante para
a grei num primeiro momento combater as abstenções a fim de tornar o processo legítimo. Por

43 “Os grupos querem a “decisão favorável” e não trepidam em empregar os meios mais variados para
alcançar esse fim. Aperfeiçoaram uma técnica de ação que compreende desde a simples persuasão até a
corrupção e, se necessário, a intimidação. O trabalho dos grupos tanto se faz de maneira direta e ostensiva
como indireta e oculta. A pressão deles recai principalmente sobre a opinião pública, os partidos, os órgãos
legislativos, o governo e a imprensa”. BONAVIDES, p. 267.
31
conseguinte, as verbas arrecadadas em razão das abstenções são destinadas ao fundo
partidário, tornando o produto final do arranjo político sempre favorável às agremiações.

3 O VOTO POPULAR: INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO

A dominação e o poder são dois conceitos empregados como sinônimos em diversas


situações do senso comum, como também na ciência especializada. A fim de dirimir eventuais
confusões terminológicas entre as duas expressões, urge destacar que a dominação se encontra
mais próxima a fatores psicológicos, enquanto o poder se aproxima mais ao uso da força. A
depender do critério utilizado pelo cientista, o último pode ser continente ou contido em
relação ao primeiro. Neste trabalho, o poder substancial (força), idealizado por T. Hobbes de
acordo com N. Bobbio, faz parte do continente dominação, pois se compreende que esta,
através da força, nem sempre é legítima, uma vez que o domínio pode não ser consentido,
segundo M. Weber. A título de exemplo, a dominação por parte da Igreja Católica durante a
Idade Média se presta a explicar o ponto de vista desta tese, considerando a vis directiva em
contraposição a vis coactiva do Estado. Nessa perspectiva, como descreveu Bobbio em
Estado, Governo e Sociedade à Santa Igreja cabia o ensinamento dos preceitos morais, ao
passo que ao Estado restava o uso da força militar, sendo dele a última palavra.
Levando em consideração que o poder é a capacidade de produzir efeitos desejados
(B. Russel) e que a dominação seja a probabilidade de encontrar obediência em determinado
mandato (M. Weber), pode-se dizer que o poder social (gênero) demanda uma carga
semântica inclinada à instabilidade, devendo ser materializado pela força, pelo dinheiro ou
pelo saber, consoante à divisão alhures feita por N. Bobbio. Por outro lado, a dominação
carrega consigo certa estabilidade intersubjetiva, a qual pode ser verificada por meio do
consentimento ideológico, ou melhor, da legitimidade. Nesse ritmo, o voto popular se trata de
um instrumento de dominação, tendo em mente a longa duração do instituto prestes a
completar cem anos em 2032, bem como a ausência de impugnações a esse arranjo político do
século passado.
Ante o introito, o que se busca a partir de agora seria compreender a mens legislatoris
de 1932, quando fora instituído o voto obrigatório no Brasil. Para isto, deve-se desnudar a fata
morgana consistente na baixa percepção do nacional acerca de sua cidadania jurídica. Em
termos genéricos, a cidadania é um conceito social que abarca uma participação mais ampla

32
do homem dentro da sociedade como, por exemplo, quando um menor e, portanto, com
capacidade civil relativa, torna-se parte em um litígio processual, assim como quando celebra
determinados tipos de contratos menos complexos. Em contrapartida, o conceito jurídico de
cidadania prescreve que o nacional somente se torna cidadão a partir do alistamento eleitoral.
Cumprido o requisito, poder-se-á exercer plenamente o direito ao sufrágio universal, desde
que atenda as faixas etárias da Constituição Federal e encontre um partido político que o
conceda filiação partidária. O reducionismo é patente.
Do fragmento acima, verifica-se uma das contradições que a dominação legal tem
acarretado, ao obrigar o nacional ser cidadão aos 18 anos, ao passo que ignora os diversos
institutos do direito positivado que cuidam dele como se cidadão já o fosse. Nesse sentido, o
conceito jurídico de cidadão também se revela antiquado, assim como o voto compulsório.
Como será visto no capítulo 3 a partir dos exemplos relativos à desnecessidade do voto
compulsório, o alistamento obrigatório não poderia, como atualmente ocorre, transformar o
indivíduo em cidadão, mas tão somente em eleitor, pois a cidadania não deve ser limitada à
possibilidade de sufragar, tendo em vista as múltiplas formas de manifestação da vontade
dentro do Estado, consoante status ativo da teoria de Jellineck.
Considerando que uma das propostas deste trabalho repousa no reforço aos
mecanismos da democracia direta, os quais serão introduzidos no capítulo vindouro, mister
destacar a lição esculpida por Aristóteles. Em razão das palavras “cidade”, “pólis”, “cidadão”
e “política” possuírem radicais distintos, forjou-se uma confusão semântica que tornou a
proposição material dos antigos em uma ideia mais regimental dos modernos, quando se
prescreve, por exemplo, que o cidadão seria apenas aqueles com capacidade eleitoral ativa.
De certa forma, o raciocínio não está de todo errado, mas a lição do estagirita ia mais além,
pois quando discorreu que o homem era um animal político, quis mais dizer que este era um
ser social, ou melhor, um homem da cidade, da pólis, da convivência. Nesse sentido, a visão
do filósofo grego estava mais conectada ao conceito social de cidadania e não ao emprego
jurídico, aperfeiçoado pelos enciclopedistas séculos mais tarde. Malgrado tenha divido os
homens da Grécia Antiga em “cidadãos” e “habitantes”, estes que se tinham por habitantes
substancialmente também eram homens da cidade, afinal a palavra “cidadão”, de origem
latina, surgiu após os manuscritos de Aristóteles.

“O homem é, por sua natureza, como dissemos desde o começo ao falarmos


do governo doméstico e do dos escravos, um animal feito para a sociedade
civil. Assim, mesmo que não tivéssemos necessidade uns dos outros, não
deixaríamos de desejar viver juntos. Na verdade, o interesse comum também-
33
-nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o
nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular. Reunimo-nos,
mesmo que seja só para pôr a vida em segurança”. ARISTÓTELES. A
Política. São Paulo. Martins Fontes, 2006, p. 53.

Volvendo-se de maneira direta à dominação, se esta não for a questão mais discutida
das ciências humanas do século XX, certamente é uma das mais importantes. De Simmel a
Weber, sem olvidar dos teóricos da soberania estatal, desde J. Bodin, Hobbes, Maquiavel, J.
Locke, I. Kant, J.J. Rousseau, K. Marx e C. Popper, a problemática em relação às formas de
exercício do poder foi largamente desenvolvida pela Academia. De acordo com Paulo
Bonavides, o controle através da força pode ser classificado como uma espécie de dominação
material, ou ainda, em poder de fato. Esse modelo caracterizou os Estados Antigos em
contraposição ao que chamou de poder de direito, baseado em instituições democráticas,
realizado nos Estados Constitucionais. Além de fatores históricos e econômicos, mudanças no
universo jurídico foram fundamentais para a transposição do Estado Policial ao Estado de
Direito como, por exemplo, a passagem do sistema inquisitório para o sistema acusatório,
bem como o reconhecimento da função social nos códex civilistas de tradição amplamente
liberal.
Sem embargos, em Os Três Tipos Puros de Dominação Legítima, Max Weber
discriminou a dominação em: a tradicional, na qual os costumes são tidos como deveres
inquestionáveis em razão da atemporalidade que os mantêm espalhados na consciência
coletiva; a carismática, que se concentra na figura de um líder/mensageiro transmissor de
valores ou ideais para os seus leais seguidores; e, por fim, a racional-legal, que se funda nas
regras (imperativos sancionadores) produzidas pela autoridade competente. À primeira vista,
o voto compulsório não se perfaz como um fenômeno apenas de controle racional, pois além
do atual Código Eleitoral e da Constituição Federal de 1988, o instituto jurídico remonta ao
tradicionalismo do campesinato brasileiro, que perdurou até os anos 60, assim como ao
carisma dos coronéis, os homens cordiais das primeiras décadas do século XX. Em suma, o
voto obrigatório também é um instrumento de traço paternalista e de uma visão pejorativa
para com o povo.
Embora se reconheça a complexidade que envolve o surgimento do voto compulsório
no Brasil para além da autoridade burocrática weberiana, é patente que, num primeiro
momento, o fulcro relativo à criação do sistema obrigatório se deu para acabar com as fraudes
eleitorais. Nessa mesma linha de raciocínio, disse Demétrio Magnoli em debate organizado
pela Fecomercio-SP no ano de 2014: “o voto obrigatório faz parte da nossa herança

34
Varguista e corporativista. Ele garante que por pior que seja o sistema político, ele não será
deslegitimado pelo boicote das pessoas às urnas”. Já em História do Voto no Brasil, Graciela
Elis Reinheimer Jaeger completa dizendo que “as leis eleitorais da República, até 1930,
permitiam toda a sorte de fraudes”, em razão disso, “apontava-se como remédios eficazes
contra tantos desmandos e desregramentos, a justiça eleitoral e o voto secreto obrigatório,
com o gabinete indevassável”.
Após a reflexão a respeito da mens legislatoris no que se refere à redução das fraudes
eleitorais e à diminuição do controle latifundiário dos coronéis, apresentam-se três fatos que
visam a demonstrar o domínio heterônomo do corpo político sobre o povo. Nesta altura,
importante frisar que seria chover no molhado apenas dizer que a relação política entre
representantes e representados fosse marcada pelo domínio legal-racional. Outrossim, vale a
pena resgatar essa maneira de controle desigual quando se verifica que este se materializa em
abuso de direito, em abuso de autoridade, ou ainda, em assédio institucional por parte da
cúpula burocrática, pois além de estarem em uma posição privilegiada, sequer tomam nota
dos pedidos da nação. A título de reforço, em 34 anos pós-Constituição apenas quatro
iniciativas populares se tornaram leis, sendo que todas a posteriori foram apropriadas por
certos parlamentares, seguindo o rito comum ordinário, ou seja, na prática não são leis de
iniciativa populares.
Em 2016 ocorreu um caso emblemático com relação ao referido desprezo por parte do
corpo político frente à população, quando congressistas obstaram mais de duas milhões de
assinaturas44 em favor do pacote de medidas anticorrupção, realizando assim manobras a fim
de desidratar as propostas criadas em razão da Operação Lava-Jato, como também para
dificultar os trabalhos da magistratura e do Ministério Público naquele momento. O Projeto de
Lei nº 4850/2016, desde 2019, encontra-se estacionado no Congresso Nacional. À época o
presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, além de suscitar uma questão
desnecessária acerca da checagem das assinaturas, proferiu uma frase que reflete justamente o
primeiro fato que se pretende apresentar.

44 DISPONÍVEL EM: https://www.poder360.com.br/congresso/camara-tera-de-checar-as-duas-milhoes-de-


assinaturas-do-pacote-anticorrupcao/. ACESSO EM: 21 ago. 2022.
35
“Nós não podemos aceitar que a Câmara dos Deputados se transforme num
cartório carimbador de opiniões de parte da sociedade, que são democráticas,
que são respeitadas, mas que a Câmara de Deputados tem toda a legitimidade
para ratificar, para modificar ou até para rejeitar. Nós aqui não somos
obrigados a aprovar tudo que chega a este Plenário”. 45 (nov. 2016).

Essas palavras pronunciadas pelo então presidente da Câmara não foram ditas em
referência a uma proposta hipotética que visasse restringir direitos fundamentais, ou melhor,
extinguir de modo inconstitucional garantias ao exercício do Poder Legislativo, mas, sim, em
relação a medidas de combate à corrupção do próprio corpo político do qual aquele
parlamentar fazia parte. Mais uma vez, portanto, mostra-se crível a distopia apresentada por
José Saramago narrando que os interesses do corpo administrativo são incompatíveis aos
interesses do povo. Também, por esse motivo, a representação derivada do voto obrigatório
deve ser considerada apócrifa, pois se faz crer através dela que o corpo político busca zelar
pelos interesses do povo, enquanto na verdade representam os interesses particulares da grei.
O segundo fato que se pretende expor acerca da dominação legal diz respeito ao
inevitável fracasso do sistema compulsório que paradoxalmente conduz ao sucesso do sistema
de representação apócrifa. Bem, o que se está dizendo a todo instante neste trabalho é que o
modelo representativo baseado no voto compulsório transforma o produto representativo em
apócrifo, porquanto se prioriza o comparecimento e o combate à abstenção – interesses da
grei. Em contrapartida, garantindo-se primeiramente uma participação suficientemente
legitimadora do processo eleitoral, direciona-se o dinheiro público levantado em razão da
multa eleitoral para o fundo partidário, ou seja, o Estado brasileiro indiretamente faz crer que
o corpo dominante que exsurge a cada eleição de fato se trata do mais puro e santificado para
conduzir os destinos da nação dominada46.
Essa engrenagem legalista, produzida pelo art. 38, I, da Lei nº 9.096/95 combinado
com art. 7º da Lei nº 4.737/65, tornou o sistema político autossustentável ao ponto de
estabelecer uma “briga a portas fechadas”, como assinalado anteriormente. A representação
no Brasil, portanto, não se constitui em uma ficção jurídica como em países de larga tradição
democrática, mas em negócio indispensável sem o qual o Estado e o povo colapsariam (sic).
Esse retrato institucional propalado pela grei por meio do sistema compulsório permanece

45 DISPONÍVEL EM: https://politica.estadao.com.br/blogs/estadao-verifica/reeleicao-de-maia-para-presidencia-


da-camara-faz-frase-enganosa-voltar-a-circular/. ACESSO EM: 21 ago. 2022.
46
“Dizia Montesquieu, um dos primeiros teoristas da democracia moderna, que o povo era excelente para
escolher, mas péssimo para governar. Precisava o povo, portanto, de representantes, que iriam decidir e querer
em nome do povo”. BONAVIDES, p. 163.
36
escorado no capacitismo burguês, uma vez que o voto censitário47 ou capacitário48 de outrora,
atualmente se vê convertido no comando estatal de ir às urnas obrigatoriamente a fim de se
escolher os mandatários supostamente mais preparados ao múnus. Além da legitimidade
ofertada à cúpula diretiva, o sistema compulsório se mostra retardado, segundo um modelo
democrático liberal, pois se prioriza a representação em detrimento de ferramentas diretas de
manifestação popular.
Por fim, o último fato a ser apresentado diz respeito à violência simbólica instada pelo
formalismo da lei sobre as pessoas mais vulneráveis. Nesse ponto, não basta que o povo esteja
numa posição verticalizada em relação ao poder extroverso do corpo burocrático, mas, sim,
que estas pessoas titulares dos cargos eletivos vivenciem uma experiência ímpar de
dominação baseada na representação apócrifa, dando vida diariamente à agenda da grei que,
por sua vez, coaduna-se ao paternalismo estatal e à crença real de que a representação seja
uma necessidade imprescindível do Brasil, e não um modelo científico em prol da
governabilidade dos Estados. Ademais, esse tipo de domínio por meio da linguagem formal
realizado pelos partidos políticos se traduz no elo perfeito entre a dominação psicológica e o
poder de fato (força) discorrido inicialmente.
Por vezes, acredita-se em determinados valores dominantes como: “o exercício do
voto é um fator de educação política do eleitorado”, ou melhor, “a tradição latino-
americana é pelo voto obrigatório”, ou ainda, “o constrangimento ao eleitor é mínimo
comparado aos benefícios ofertados ao processo eleitoral”. Todos esses excertos genéricos
que prestariam à defesa de quaisquer coisas são utilizados para se defender o indefensável à
luz da contemporaneidade. Então, a partir daí a violência psicológica iniciada por meio do
legalismo à francesa no que diz respeito ao escrutínio brasileiro se deflagra em inúmeras
violações do contrato social por parte do próprio funcionalismo público, vindo a ser
reprimidas por meio do poder substancial utilizado pelas forças de segurança do Estado. Ciclo
sem fim.

47
Por exemplo, fracassada “Constituição da Mandioca” de 1823 no Brasil.
48
Art. 6º da “Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia” de 12 de junho de 1776.

37
3.1 Da Atual Compreensão acerca do Poder

Em que pese ter sido pouco mencionada até o corrente momento, a noção geral de
poder atualmente é empreendida sob o viés comunicativo. Poder ideológico ou “Era da pós-
verdade”. Saberes do cotidiano. Nas palavras de Bobbio (2007, p. 78):

“A interpretação mais aceita no discurso político contemporâneo é a terceira,


que se remete ao conceito relacional de poder e estabelece que por "poder" se
deve entender uma relação entre dois sujeitos, dos quais o primeiro obtém do
segundo um comportamento que, em caso contrário, não ocorreria”.

Em razão dessa novel visão a respeito do poder, o combate travado entre as agências
de comunicação49 em busca de uma asserção quanto à definição do que seria ou não fake
news50 é uma realidade. Cada espectro ideológico tem buscado realizar uma releitura dos
discursos feitos pelos seus adversários políticos, visando desacreditar os respectivos
interlocutores. Dentro desse contexto, a rede mundial de computadores hoje representa uma
ameaça àqueles que antes detinham do monopólio da informação, assim como o próprio rádio
anteriormente também se mostrou ameaçador aos interesses do coronelismo brasileiro, de
acordo com Victor Nunes Leal (2012, p. 31).
Com relação a esse embate de discursos, é de amplo conhecimento que as ciências
humanas, como é o caso do jornalismo, em boa parte são traduzidas por meio da estatística,
podendo, sim, os números veiculados serem manipulados51, segundo os interesses do
comunicador ou pesquisador. Reconhecido este maniqueísmo, torna-se necessário também
traçar uma suscinta diferenciação das ciências objetiva e subjetiva (ou humanas). Esta última
demanda por parte do leitor um compreensão subjetiva dos fatos. De outro modo, a ciência
objetiva, ou melhor, ciência autêntica se trata daquela na qual se busca tecer enunciados

49
“A opinião pública das massas, diligentemente “trabalhada” ou “produzida” pela propaganda é objeto de
acurados estudos sociais. Como disse determinado autor, a opinião pública pode ser “criada” ou
“influenciada”, nunca porém “ignorada”. Em alguns países, como nos Estados Unidos, sociólogos há
empenhados profissionalmente na tarefa de investigá-la. Formam-se para tal fim agências especializadas de
sondagem da opinião pública. O “Instituto Americano de Opinião Pública Georg Gallup” e o “Fortune” de
Elmo Roper, bem como os centros de investigação de Chicago e Princeton são típicos a esse respeito”.
BONAVIDES, p. 288.
50 De maneira inovadora, houve no Brasil uma ampliação dos poderes jurisdicionais e administrativos do TSE,

por meio da Resolução 23.714/22, a fim de se combater a veiculação de fake news. O dispositivo normativo foi
judicializado através da ADI 7261 na qual por 9x2 se ratificou a ampliação dos “superpoderes” do TSE durante o
2º turno das eleições presidenciais. Após, prorrogou-se até a posse do candidato Lula.
51
“Dobrar a opinião e em casos mais agudos dar no público uma lavagem cerebral se consegue mediante o
emprego dos instrumentos de comunicação de massas. O grupo mobiliza rádio, imprensa e televisão e por meios
declarados ou sutis exterioriza a propaganda de seus objetivos, quer pela publicidade remunerada, quer pela
obtenção da condescendência e simpatia dos que dominam aqueles meios”. BONAVIDES, p. 268.
38
gerais sobre fenômenos naturais ou lógicos, pouco importando a valoração ética do
destinatário acerca dos fatos, mas, sim, o entendimento firmado através de uma sentença. São,
portanto, dois nichos distintos que nascem com finalidades diferentes.
Participação de robôs, “Big Data” e fake news são assuntos importantes da atualidade
que inerentemente se conectam com o “poder relacional” discorrido por N. Bobbio. Quanto às
fakes news, estas são informações parcial ou totalmente inverídicas que visam a distorcer a
realidade tendo em vista os compromissos de foro íntimo do respectivo emissor, fazendo parte
do ramo das ciências humanas, em regra. Importante frisar que toda mensagem comunicativa
em tese se trata de uma verdade parcial, pois diz respeito à intenção do interlocutor, ao seu
vocabulário, aos fatos que este escolheu valorar, assim por diante. Salvo factoides ou
aberrações flagrantemente falsas, qualquer informação veiculada pode vir a ser “etiquetada”
como fake news, dependendo do viés político de quem fala, bem como daquele que escuta.
Trata-se, portanto, de uma disputa comunicativa entre saberes e discursos, conforme lecionou
M. Foucault, com fulcro na dominação do debate público52.
Há um discurso bastante utilizado em defesa do voto obrigatório que certamente
poderia ser alçado à condição de fake news, ou ainda, à parcela da fata morgana discorrida
mais atrás. Comenta-se que o voto popular não pode ser considerado obrigatório no Brasil,
levando em conta o baixo valor da multa eleitoral. Corroborando com essa ideia, o ex-
Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello proferiu em 2014, no debate realizado pela
FecomercioSP:

“o voto, hoje, em última análise é facultativo, ele não é obrigatório, porque


não podemos cogitar de obrigatoriedade quando alguém pode deixar de
exercer esse direito inerente à cidadania e simplesmente pagar uma multa de
R$ 3,51”.

Bem, a natureza jurídica da justificativa eleitoral e a consequente multa serão


discutidas mais abaixo, porém, neste momento, pode-se afirmar que o eminente jurista
reforçou uma ilusão, quando desconsiderou em seu raciocínio a eventual exclusão do
nacional, por exemplo, para se desenvolver academicamente (direito à educação). Sanção esta
altíssima, se acaso não for satisfeita a multa eleitoral. Outrossim, ao pagar a multa, o nacional
patrocinará o discutível fundo partidário.

52
“A opinião pública, deixando de ser espontânea (ou livre) e racional, para ser artificial e irracional, assinala
assim em seu curso histórico duas distintas fases de “politização” intensiva: a do Estado liberal e a do Estado
social (democrático-ocidental ou autocrático-oriental, de cunho marxista; num e noutro sempre o Estado da
sociedade de massas)”. BONAVIDES, p. 284.
39
3.2 Do Sistema Eleitoral Brasileiro

Nada obstante, o sistema eleitoral brasileiro no que diz respeito ao voto compulsório
está baseado na diferenciação53 entre o nacional e o cidadão, assim como na obrigatoriedade54
do alistamento eleitoral e do voto popular. Podem votar no Brasil os nacionais e os brasileiros
equiparados, na medida que os estrangeiros, os conscritos e os indivíduos que perderam ou
tiveram suspensos seus direitos políticos são tratados como “inalistáveis” pelo ordenamento
jurídico. Quanto à cidadania jurídica, esta se adquire por meio do alistamento junto à Justiça
Eleitoral, tornando-se os inscritos em eleitores de fato, conforme o respectivo domicílio
eleitoral. Acerca do alistamento e do voto propriamente dito, ambos são tratados como
direitos políticos, os quais permitem uma intervenção direta do povo na condução da coisa
pública, segundo Celso Ribeiro Bastos, concretizando-se então a soberania popular, prevista
no art. 1º, p. único, da Carta Magna.
Para se compreender a via crucis do eleitor até o voto obrigatório, torna-se necessário
conhecer de antemão a sua etapa inicial. Desta maneira, o alistamento eleitoral se trata de um
procedimento administrativo que funciona como pressuposto objetivo para o exercício do
voto popular. Nos termos do art. 42 do Código Eleitoral de 1965, a partir da qualificação e
inscrição do interessado, insere-se o nome do eleitor no caderno de votação, como também
nas urnas eletrônicas. Essa obrigatoriedade em relação ao alistamento, junto com a do voto
popular, deu-se com o intuito de acabar com as fraudes eleitorais existentes na chamada
“República Velha”, vindo a reduzir, a partir da criação da Justiça Eleitoral em 1932, os
chamados eleitores “peregrinos”, “fantasmas”, “fósforos” etc., expressões utilizadas à época
para caracterizar o clientelismo gestado pelo coronelismo brasileiro.

“O clientelismo é uma modalidade de comportamento populacional político-


eleitoral. Nos dias de hoje sua prática é mais restrita às zonas rurais e menos
favorecidas economicamente. A política de clientela esteve em evidência
durante uma fase de transição do desenvolvimento político aos processos de
urbanização e modernização do trabalho”. REINHEIMER, 2004, p. 26.

O alistamento eleitoral se trata de uma exigência obrigatória para os nacionais maiores


de 18 anos e as PcD, no que tange às limitações físicas, entretanto, estas pessoas podem vir a

53
Segundo Roberto Moreira (2017, p. 67), “a cidadania, no entanto, exige como requisito prévio a
nacionalidade, ou seja, para ser cidadão é ‘conditio sine qua non’ ser antes nacional, pois todo cidadão é
nacional, mas nem todo nacional é cidadão”.
54
Art. 14, §1º, I, da Constituição Federal c/c art. 6º do Código Eleitoral.
40
ser desobrigadas55 dependendo do grau de impedimento às urnas. De outro modo, o
alistamento se mostra facultativo no ordenamento brasileiro para os analfabetos e índios56,
assim como para as pessoas maiores de 70 anos e para aquelas com mais de 16 anos que ainda
não completaram 18 anos. Não se pode olvidar que os brasileiros equiparados, à luz do
Estatuto da Igualdade, também não são obrigados a se alistarem. Além disso, importante frisar
que o alistado de maneira facultativa, ainda que faça parte do corpo eleitoral não fica obrigado
a comparecer no dia de eleição para manifestar a sua vontade política, pois o voto acompanha
(gravitação jurídica) a natureza do alistamento. Não há, portanto, no estado brasileiro a
possibilidade de voto obrigatório para aquelas pessoas que teriam como pressuposto o
alistamento facultativo. Em síntese, como bem descreveu o prof. Paulo Mascarenhas, o voto
“é “um direito” para as exceções, e um “dever”, para a regra geral”.

3.3 Da Obrigatoriedade

Na primeira parte deste capítulo se buscou compreender de maneira lacônica a mens


legislatoris por trás da instituição da compulsoriedade do voto, além de discorrer sobre a
dominação legal instada pela grei. A partir daí se iniciou uma reflexão acerca da mens legis no
que diz respeito aos artigos esculpidos tanto na Constituição Federal quanto no Código
Eleitoral de 1965. Por conseguinte, neste item se continua tentando assimilar a mens legis do
sistema político. Aliás, nesta parte do trabalho de conclusão repousa a ideia central do
egresso, a qual seja: estabelecer uma compreensão válida com relação ao voto compulsório,
de acordo com as normas em torno deste instrumento. Sendo assim, busca-se assimilar em
primeiro lugar a natureza jurídica do voto em branco e anulado, como também a justificativa
eleitoral e a multa cominada pelo descumprimento da obrigação acessória, haja vista que a
obrigação primária do eleitorado se trata do próprio ato de votar.
Já foi dito que a abstenção não se trata de um risco à legitimidade do corpo político,
porque o fracasso no que tange ao comparecimento às urnas se encontra contornado por meio
de destinação57 das verbas oriundas da sanção pecuniária ao fundo partidário que, por sua vez,
financia as atividades partidárias, fortalecendo de qualquer maneira o sistema de

55
Nos termos do art. 15 da Res. 23.659/2021.
56
Contudo, “São aplicáveis aos indígenas integrados, reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, nos
termos da legislação especial (Estatuto do índio), as exigências impostas para o alistamento eleitoral, inclusive
de comprovação de quitação do serviço militar ou de cumprimento de prestação alternativa”. (TSE – Decisão
no 20.806 – DJ 24-8-2001, p. 173).
57
Art. 38 da Lei 9.096/95 c/c art. 5º, I, da Res. 21.975/04 c/ art. 5º, I, da Res. 23.604/19.
41
representação apócrifa. Nesse sentido, a abstenção não seria uma ameaça à democracia, mas
um sintoma do próprio arranjo político, ou melhor, da representação que nega a ficção
jurídica em nome da governabilidade com o fito de tornar o mecanismo partidário em coisa
imprescindível. Em contrapartida ao abstencionismo, um dos vícios deste sistema carcomido
se encontra no instituto do voto em branco e do voto anulado58, pois estes são nada mais que
ficções jurídicas, as quais proporcionam uma falsa sensação de não participação política,
quando, na verdade, também fazem parte do sistema apócrifo que tem privilegiado o
comparecimento.
De acordo com George Melão (2017, p. 83), o voto em branco e o voto anulado já
foram contabilizados como válidos em legislações anteriores, fato que poderia influenciar
diretamente em eleições proporcionais, já que aumentariam o quociente eleitoral. Entretanto,
a partir de 1965, os votos nulificados deixaram de ser contabilizados, situação que ocorreu
com os votos em branco somente em 1997, com o art. 5º da “Lei das Eleições”. Nesse sentido,
ambos são considerados pela legislação vigente como votos inválidos, tratando-se de mentiras
técnicas consagradas pela necessidade, conforme R. von Jhering. Completa o autor alemão
dizendo “a "ficção” disfarça as dificuldades, sem resolvê-las, não sendo assim senão a
solução cientificamente imperfeita de um problema. (...) facilita o progresso, tornando-o
possível, em uma época em que a Ciência não tenha forças para dar ao problema sua
verdadeira solução. Logo, com as implicações da tecnologia da informação, poder-se-ia
conferir validade aos votos em comento ou extingui-los de vez, pois não prestam a sua
finalidade de repúdio, visto que o eleitor ainda se vê obrigado ao comparecimento,
legitimando a representação apócrifa. Tais instrumentos, como estão, encontram mais
afinidade com as antigas cédulas físicas do que com as urnas eletrônicas.
Ao refletir sobre a dominação em torno dos “votos apolíticos”59 se chega no curioso
caso dos anarquistas, os quais se veem desrespeitados em sua liberdade de pensamento, pois
estes indivíduos não podem se manter afastados do processo eleitoral, situação que tem ferido
de morte o princípio do pluralismo político, inscrito na Norma Fundamental. Conforme
dispositivos do sistema eleitoral, o sujeito cujo pensamento repousa na filosofia anarquista
deverá por força da lei participar do processo democrático, pois quando opta pelo não
comparecimento, encontra-se constrangido por meio da multa eleitoral – destinada ao fundo
partidário. Por outro lado, se opta pelo comparecimento para se manifestar apoliticamente,
58
Expressão mais correta, uma vez que “voto nulo” diz respeito à alguma ilicitude, enquanto o voto nulificado se
trata daquele em que o próprio eleitor o anula por razões de foro íntimo.
59
De acordo com Lenza (2012, p. 334), “Votos “apolíticos” (neologismo do Ministro Marco Aurélio) são os
“votos anulados pelo próprio eleitor” na urna eletrônica, digitando número inexistente e o confirmando”.
42
através do voto em branco ou anulado, por óbvio, cumpriu com aquilo que a grei deseja, isto
é, comparecer no dia de eleição.
Além dos anarquistas, há um segundo caso emblemático no direito brasileiro,
envolvendo os presos com condenação criminal transitada em julgado, porquanto estes não
podem votar, já que se encontram com seus direitos políticos suspensos, enquanto durarem os
efeitos da condenação. Ora, se existe “direitos dos presos”60, reconhecidos inclusive pela
LEP, por óbvio que esses indivíduos deveriam ter o direito de ao menos votar. Sem dúvidas,
porém, a intenção do legislador ao afastar os presos definitivos do ambiente democrático
revela, mais uma vez, um dos pontos de vista desta tese: o corpo eleitoral serve tão somente
para legitimar o processo democrático. E, no caso do preso definitivo, como se trata de
persona non grata, não deveria votar, tendo em vista a imposição da pena que o retirou da
convivência, isto é, da cidade. Como o propósito da representação apócrifa se mostra
centralizado no comparecimento e aqueles presos61 se encontram encarcerados, logo não
devem participar das eleições.
Ocorre que à luz do princípio da proporcionalidade62 de Robert Alexy, essa
causalidade ensejada pelas normas de direito eleitoral não se sustenta, quando se consideram
diversos direitos fundamentais do preso, assim como os direitos políticos do preso provisório.
Reconhecendo-se os avanços tecnológicos, hodiernamente não se justifica a ausência dos
presos definitivos do processo democrático, pois urnas eletrônicas poderiam ser colocadas em
uma área específica do cárcere, com fulcro na prevenção especial positiva, para que os
apenados naturalmente pudessem se manifestar. No entanto, para que isso ocorra, nos dias de
hoje, somente por meio de emenda constitucional, uma vez que a proibição se localiza no
texto da Lex Legum. A respeito desse tema, Carlos Eduardo Cunha Martins Silva (2009, p.
442) escreveu:

“Levando-se isto em consideração, a importância do sufrágio dos presos se


reconheceria no poder que lhes fosse dado para participarem na gerência da
vida pública. Tomando essa incumbência para si, talvez encontrariam um
modo de serem ouvidos e representados socialmente, já que, na atualidade, os
internos do sistema prisional, muitas das vezes encontram na rebelião seu
único meio de expressão”.

60
Do art. 40 ao 43 da Lei de Execução Penal.
61
“(...) é uma sanção extremamente grave, significando, numa democracia representativa, verdadeira morte
civil, pois o indivíduo privado de tais direitos perde a possibilidade de participar do governo, não tendo como
influir sobre a política do Estado e sobre a fixação das regras de comportamento social a que estará sujeito, o
que equivale a dizer, em última análise, que em relação a esse indivíduo o Estado deixa de ser democrático”.
DALLARI, p. 167.
62
A suspensão dos direitos políticos é adequada? Trata-se de medida necessária? Qual o custo-benefício? Não
parece que a imposição constitucional se sustente frente a esses questionamentos.
43
Sem prejuízos, o voto em branco e o voto nulificado, como estão colocados pela
legislação pátria, não cumprem com a sua missão de facultarem ao eleitor “manifestações
apolíticas”, uma vez que o comparecimento permanece como uma exigência ao eleitor e,
sendo confirmados nas urnas, os referidos votos não existirão no mundo fático. Trata-se,
portanto, de dominação legal pois faculta ao eleitor uma aparente sensação de “abstenção”,
quando na verdade o eleitor participou, considerando que compareceu às urnas e se
manifestou por meio de uma ficção. Por outro lado, observa-se que o afastamento dos presos
definitivos revela de forma patente a verdadeira faceta do sistema eleitoral brasileiro, o qual
almeja apenas assegurar legitimidade ao corpo político, pois a compulsoriedade inerentemente
privilegia o comparecimento em desfavor da manifestação de vontade.
Pois bem, tendo em vista que os votos apolíticos também se trata de instrumentos
construídos com fulcro no comparecimento e não na manifestação de vontade do eleitor,
busca-se a partir de então discorrer sobre o instituto da justificação e, por conseguinte, da
multa eleitoral. Importante frisar que, como esculpida no ordenamento jurídico, a justificativa
não se presta a cumprir com a chamada “escusa de consciência” (art. 5º, VIII, CF.), embora
se saiba que muitos eleitores a utilizem sob esse escopo, de modo não declarado. Ainda nessa
direção, uma questão de concurso para ingresso na PRF (2021) recentemente afirmou que “a
Constituição Federal de 1988 não garante o direito à escusa de consciência sobre o dever de
votar para os maiores de 18 anos de idade e para os menores de 70 anos de idade”.
A contrassenso, a banca CEBRASPE entendeu que, sim, a CF/88 garante o aludido
direito fundamental àqueles que não quiserem se manifestar politicamente no dia de eleição,
ou seja, exarou como “errada” a afirmativa acima.
Discorda-se frontalmente do gabarito ofertado pela banca organizadora, visto que a
justificativa eleitoral se trata de obrigação acessória, restrita às situações taxativas, como a de
eleitores que se encontrarem fora do seu domicílio eleitoral, podendo em até 60 dias63 se
justificarem a contar do dia da votação.
A justificação, portanto, não se trata de obrigação alternativa, garantida pelo conectivo
“ou”, isto é, vote ou se justifique. Pelo contrário, a justificação serve para os casos de eleitores
ausentes em razão do afastamento provisório do domicílio eleitoral, pois a representação
apócrifa, construída por meio das normas eleitorais, privilegia o comparecimento e não a
manifestação de vontade do eleitor. Sem prejuízos, nota-se que a objeção de consciência exige
do suscitante o cumprimento de uma prestação alternativa à principal, como se verifica nos

63
De acordo com o art. 16 da Lei 6.091/1974, ratificado pela Res. 23.659/21, art. 126, I, “a”.
44
casos do alistamento militar obrigatório e dos integrantes do Tribunal do Júri. Outrossim, no
caso do voto, a justificação eleitoral não se trata de obrigação alternativa, mas de obrigação
acessória e restrita a casos específicos, os quais escapam de argumentações religiosas,
políticas ou filosóficas. Ora, os anarquistas não poderiam se justificar perante a Justiça
Eleitoral, alegando que não compactuam com o sistema político, todavia, somente poderiam
arrazoar sob este fundamento nos casos de afastamento provisório do domicílio eleitoral.
Para aqueles eleitores que estiverem fora do seu domicílio eleitoral no dia de votação
não cabe escusa de consciência, mas apenas a justificativa eleitoral ou voto em trânsito64.
Além disso, para aqueles que não votarem nem se justificarem em até 60 dias após a
realização das eleições, restará sobre si a aplicação, por meio do poder de polícia, da sanção
pecuniária no valor de R$ 3,51, ou ainda, as consequências previstas no art. 7º, §1º, do Código
Eleitoral. Mister destacar que as restrições de direitos ali previstas são totalmente
desproporcionais65, as quais certamente ultrapassam de maneira ilegítima todos os
fundamentos da República, assentados no art. 1º da CF/88.
Vencida as etapas em relação ao entendimento sobre os “votos apolíticos”, como
também as impressões acerca da justificativa e multa eleitoral, encaminha-se para o
esclarecimento do voto obrigatório. Não cabe a este trabalho adentrar no mérito de quem se
posiciona a favor ou contra a compulsoriedade, mas, sim, expor uma unanimidade na doutrina
pátria: praticamente todos reconhecem que o voto seja um direito e ao mesmo tempo uma
função pública. Daí surge um dilema, pois direito subjetivo implica na facultatividade de
exercício do poder conferido, enquanto a função se traduz numa obrigação de fazer, isto é, de
comparecer e se manifestar. Justamente, por isso, ainda se discute acerca da natureza jurídica
do voto popular no Brasil: seria um direito, um dever cívico, uma função social, uma garantia
contra o autoritarismo etc. Como adiantado no primeiro capítulo, a discussão em torno da
natureza jurídica do voto ainda subsiste em razão de uma “visão monofásica” ou simples
acerca do voto.
Não obstante à aparente contradição citadina, cumpre esclarecer neste momento que a
representação apócrifa tem como pressupostos a cidadania jurídica, a continuação do voto
obrigatório e a noção de que os partidos políticos são coisas imprescindíveis ao
funcionamento do Estado. Ambos os institutos são espelhos do capacitismo burguês, cuja

64
Nos termos da Res. 23.669/21, arts. 27 e 28.
65
Essa conclusão faz parte da mesma análise dirimida pelo estudo do TSE “Sistematização das Normas
Eleitorais: Eixo Temático I: Direitos Políticos e Temas Correlatos” de 2019, o qual ventilou a não recepção de
diversos dispositivos presentes no art. 7º do CE, uma vez que aqueles limitam a natureza alimentar do salário do
trabalhador, bem como ofende o direito fundamental à educação do eleitorado.
45
inspiração se desponta do liberalismo clássico do século XVIII. Destarte, o escrutínio
brasileiro à francesa66 se caracteriza como um evento estanque, de dois em dois anos,
provocando consequências como: a inversão da racionalidade democrática – quando se
transforma o voto em prima face de todas as ações e instrumentos de cidadania que o seguem
– ao revés de ser o clímax desses comportamentos reconhecidos pelo Estado Democrático de
Direito.
Nesse sentido, o voto não se perfaz numa ferramenta consciente, reflexo do cultivo de
ações reiteradas com base na cidadania lato sensu, mas, sim, num ato produzido a partir de
um processo automatizado que supostamente inicia a vida democrática a cada espaço de
tempo entre as eleições. O voto, no atual arranjo, é apenas um “refresh” da democracia. Crivo
legitimador. Também por isso se diz que a representação no sistema compulsório é apócrifa,
pois se resume em um instrumento de dominação de classes (grei) que só almeja legitimação.
Bem, não há nada mais antiquado que permanecer ancorado no liberalismo do século XVIII,
isto é, se o povo é capaz de votar, logo se tem um regime democrático, como se o voto ainda
fosse a quinta essência do regime democrático e não uma concessão obrigatória da
modernidade. Nesse ângulo, existe uma diferença colossal entre enxergá-lo como uma
obrigação do povo e, de outro modo, invocá-lo como uma concessão67 obrigatória das
democracias modernas.
Além da injusta inversão no processo democrático, a combinação dos institutos
relativos à cidadania jurídica, ao lado do voto compulsório e da imprescindibilidade dos
partidos políticos, também tem instaurado uma relação de causa e efeito sem lógica, pouco
discutida no ambiente acadêmico, pois nada garante que o voto facultativo seja capaz de
objetivamente afastar o eleitorado ad eternum das urnas. O eleitor insatisfeito poderia muito
bem deixar de votar em certo escrutínio e, logo depois, votar nas eleições seguintes, se se
sentisse representado pelos novos candidatos que se colocassem à disposição.
Ademais, como anteriormente discutida, a representação apócrifa tem tornado o
sistema representativo em coisa imprescindível ao invés de reconhecê-lo como uma ficção
jurídica em prol da governabilidade, dando azo ao paternalismo, à menoridade kantiana e ao
trágico “Brasil, país do futuro”. E a continuidade deste sistema tende a robustecer a fata

66
“A doutrina da soberania nacional dominou quase todo o direito político da França pós-revolucionária na
idade liberal de seu constitucionalismo”. BONAVIDES, p. 71.
67 Dalmo Dallari (p. 131) identifica três exigências da democracia moderna aos Estados: a supremacia da
vontade popular, a preservação da liberdade e a igualdade de direitos. “A preocupação primordial foi sempre a
participação do povo na organização do Estado, na formação e na atuação do governo, por se considerar
implícito que o povo, expressando livremente sua vontade soberana, saberá resguardar a liberdade e a
igualdade”.
46
morgana dos populares em relação ao abstencionismo, quando este se encontra obliterado em
votos nulificados e em branco, tornando impossível saber o que de fato seriam votos inválidos
e qual seria a real porcentagem de abstenção do corpo eleitoral, sabendo que na representação
apócrifa se privilegia o comparecimento. Por isso, foi suscitado mais atrás que o verdadeiro
problema se encontra nos votos apolíticos, porquanto na representação apócrifa subsiste uma
preocupação velada para com a abstenção, contornada pelo foco no comparecimento e na
permissividade de se votar em branco ou anular o voto.
Em primeiro lugar, a grei tem se preocupado em trazer o corpo eleitoral às urnas, para
depois facultar a ele a “opção” de votar apoliticamente. Logo depois, nasce para o corpo
político o direito adquirido de reaver os valores arrecadados em razão da ausência do
eleitorado ausente. Nesse sentido, existem duas formas de abstenção no sistema em vigor no
Brasil. A abstenção direta na qual o eleitor sequer comparece em sua zona eleitoral e a
abstenção indireta em que se vota em branco ou nulificado (ficção jurídica).
Em síntese, como a representação apócrifa privilegia o comparecimento à
manifestação de vontade, torna-se desnecessário para a grei diferenciar a abstenção direta dos
votos inválidos (brancos ou nulificados), porque não há como saber quantas pessoas tiveram
que ir às urnas apenas para não terem que se justificar ou serem inscritas no cadastro da dívida
ativa. À vista disso, mais uma vez nos deparamos com uma construção racional em torno de
uma dominação legal, a qual busca dar continuidade à fata morgana sobre a população.
A partir dessas reflexões acerca da representação apócrifa, urge então discriminar o
voto obrigatório em ato bifásico, reconhecendo-se como primeira fase o comparecimento e
como segunda fase a manifestação de vontade do eleitor. Essa fragmentação não se encontra
na doutrina dominante, uma vez que se adota atualmente a teoria do voto monofásico68,
compreendido como direito e função ao mesmo tempo. No entanto, essa confusa acepção do
instituto jurídico tem levado o eleitor à difícil missão de internalizar a diferença entre o
“sufrágio” e o próprio “voto”, como aponta Pedro Lenza, ao considerar que votar diz respeito
apenas a manifestação de vontade válida, isto é, não se deve considerar voto aqueles em
branco ou nulificados, mas tão somente atos de sufrágio. Ora, é notório que os votos
apolíticos se trata de manifestação de vontade também, levando em conta o princípio da

68
“A constatação desses dois aspectos, ou seja, de que o povo deve ter a possibilidade de escolher seus
governantes e de que tal escolha corresponde a uma necessidade do Estado, suscitou uma polêmica em torno da
natureza do voto, ou sufrágio, sustentando uns que se trata de um direito, enquanto, para outros, existe apenas
uma função, havendo ainda quem preferisse ver no sufrágio apenas a expressão de um dever eleitoral. A opinião
absolutamente predominante é a de que se trata de um direito e de uma função, concomitantemente”.
DALLARI, 2010, p. 162.
47
realidade fática. Como discutido anteriormente, o verdadeiro problema se encontra em
disponibilizá-los como mera ficção jurídica.
O segundo problema que se pode verificar a partir de uma visão monofásica do voto
popular seria a dificuldade em reconhecê-lo como direito ao invés de uma função. Situação
grave. Torna-se praticamente impossível chegar a um conceito realístico acerca da natureza
jurídica do voto, se este se trata de comparecimento ou de manifestação da vontade. Em
países com voto facultativo, não há nenhuma dificuldade em dizer que o voto é, de fato, ato
político de manifestação da vontade e, portanto, um direito do cidadão. Por outro lado, no
Brasil, admitindo-se o predomínio da visão monofásica, insiste-se em dizer que o voto é
concomitantemente um direito e uma função, embora um anule o outro na íntegra. Direito
subjetivo diz respeito a uma faculdade do seu respectivo titular, enquanto função pública
implica numa obrigação de fazer a usuários e terceiros, ou melhor, de comparecimento do
eleitorado, tornando-o em “agentes necessários”69 ao lume da teoria dos agentes de fato.
Frente a este paradoxo do sistema eleitoral brasileiro, imagine a situação hipotética do
eleitor que comparecer no dia de eleição e votar em branco. Pergunta-se se este cidadão
deixou de votar? Se entendermos o voto como instituto monofásico, torna-se complicado
afirmar que não houve manifestação de vontade, como pretende a doutrina, uma vez que
apenas “sufragou”. Ora, se apenas sufragou, então não votou, e como também não se
justificou, pois não deixou de comparecer, dever-se-ia pagar a multa. No entanto, não é o que
sucede, pois a ficção jurídica (voto em branco) é voto também, embora inválido para efeitos
de contagem.
Longe do plano abstrato, como afirmar na realidade que aquele cidadão não votou? A
ficção jurídica tem permitido a ele simplesmente votar em ninguém. Sem prejuízos, o que se
está tentando demonstrar é que se o voto não for bifásico, este indivíduo deveria pagar a
multa, mas, conforme a lei eleitoral, não deverá pagá-la, uma vez que compareceu e se
manifestou. Logo, sob a perspectiva monofásica, manifestou-se por meio de uma ficção
jurídica que desqualifica o voto dado à condição de manifestação ineficaz. Nesse ponto, é
patente a dominação legal em razão do privilégio conferido ao comparecimento.
Quando a lei diz “deixar de votar”, trata-se de “deixar de comparecer e de se
manifestar”, pois diante da situação ventilada mais acima, aquele cidadão que comparecer e
votar em branco, tecnicamente, como está posto pela doutrina, não votou – mas, conforme a

69
Esta questão suscitada seria mais uma situação jurídica para se refletir, pois, embora agentes necessários no
cumprimento da função social, os eleitores sequer têm direito a folga no dia de eleição.
48
lei, não deverá pagar a multa, porque compareceu e se manifestou – isto é, como sobredito, a
lei confere ficção jurídica a qualidade do voto apolítico.
A Constituição Federal e o Código Eleitoral declaram de modo expresso que o voto é
obrigatório. Como ventilado no capítulo anterior, os constitucionalistas entendem que a Carta
Maior conferiu sentidos diversos para o sufrágio e o voto popular, portanto, não haveria como
visualizar o fenômeno da representação apócrifa sem antes se discriminasse o voto como ato
composto de duas condutas: comparecimento e manifestação de vontade. Sendo assim, para o
eleitor que votar em branco, não se trata de ato de sufrágio, mas de voto inválido (ineficaz)
para efeitos de contagem, pois se reconhece nessa permissividade uma maneira de dominação
legal, localizada na manifestação de vontade, tendo por certo que o eleitor cumpriu com o
comparecimento esculpido pela grei. Nesse sentido, a amplitude do termo sufrágio diz
respeito à capacidade eleitoral ativa e passiva do eleitor e não às possiblidades de
manifestação de vontade subscritas na urna eletrônica.
A fim de concluir esse ponto acerca da dicotomia entre o “direito” e a “função”,
imagine uma segunda situação. O cidadão que comparecer a sua zona eleitoral, assinar o
caderno de votação e, logo após, recusar-se a se manifestar. Indaga-se, então, se ele deixou de
votar. Óbvio que sim, todavia compareceu. Nesse sentido, o caderno de votação está para o
comparecimento, assim como as urnas estão para a manifestação de vontade do eleitor. Logo,
o comando do legislador não se trata exatamente de comparecimento obrigatório ou
manifestação obrigatória, mas, sim, de ato composto ou bifásico, pois se exige do eleitor o
comparecimento e a manifestação de vontade, ainda que esta última seja inválida (ineficaz)
para efeitos de contagem. A partir do comparecimento do eleitor, a urna eletrônica recebe um
comando do mesário para que aquele eleitor seja o próximo a votar e, enquanto o cidadão não
se manifestar, a urna permanecerá “bloqueada” aguardando a respectiva manifestação
democrática.
Considerando as exposições supramencionadas, pode-se concluir que o epicentro da
representação apócrifa se encontra no comparecimento, isto é, na concepção do voto-função
em detrimento do voto-direito. É possível afirmar também que o voto-direito está para a
soberania popular, assim como o voto-função está para a soberania nacional. E, nessa altura,
localiza-se a última irrupção do sistema apócrifo a qual se pretende demonstrar a partir de
uma interpretação sistêmica da Carta Política, identificando em seu conteúdo uma ordem que
nega si mesma, pois o texto declara que um de seus fundamentos é a soberania ao passo que
diz que todo poder emana do povo. Porém, mais abaixo impõe sobre o povo o dever do voto

49
obrigatório, tornando a soberania nacional70 mais sensível do que a soberania popular no
tocante à democracia participativa do Brasil.
Também, por isso, foi suscitado inúmeras vezes neste trabalho que o sistema em vigor
se revela espelhado no arquétipo liberal71 do século XVIII em que há uma primazia do
princípio da legalidade sobre o da juridicidade, além do fortalecimento do capacitismo
burguês, da atividade partidária transformada em coisa imprescindível e do processo eleitoral
estanque ou fotográfico a cada dois anos.
A fim de compreender melhor a primazia do voto-função em detrimento do voto-
direito, utiliza-se por consignação do Direito Penal duas teorias da conduta a fim de descrever
como a compulsoriedade macula por inteiro o “voto-direito”. À luz da teoria finalista72,
estudada por Hans Welzel, sabe-se que toda conduta involuntária, ausentes de consciência e
vontade, desmancha automaticamente a intenção do agente, uma vez que aquele apenas
“reagiu” de maneira inconsciente ao invés de ter “agido” de modo consciente. Numa
perspectiva monofásica, como a atual, não teria como dizer que o eleitor de fato votou, pois
não se diferencia o comparecimento da manifestação de vontade, sendo ambos obrigatórios e,
portanto, condutas involuntárias.
Dando continuidade a este raciocínio, assim como a caracterização do crime
anteriormente se espelhava no resultado objetivo do tipo penal, conforme teoria causal da
conduta, pouco importando a intenção do agente, assim tem funcionado o atual sistema
eleitoral, afinal este apenas almeja garantir legitimidade ao corpo político, desvalorizando a
maneira (escrutínio) como se escolhe os mandatários. Em suma, não há uma preocupação
subjetiva com a qualidade do voto, mas, sim, com a incolumidade das eleições, isto é, com a
legitimação da república da grei e de seus respectivos candidatos. Nesse ritmo, as eleições
brasileiras se caracterizam como um grande dolo eventual73, pois o eleitorado, de uma
maneira geral, apenas deflagra nas urnas o seu consentimento para com o resultado das
eleições, pouco interessando qual resultado seja este. De outro modo, quanto a sua vontade

70
“Com efeito, pela doutrina da soberania nacional, o eleitor é tão-somente instrumento ou órgão de que se
serve a nação para criar o órgão maior — o corpo representativo — a que delega o poder soberano, do qual
todavia se conserva sempre titular”. BONAVIDES, p. 134.
71
De acordo com Bonavides (2003, p. 128) se trata de um arranjo antiquado, considerando que “a dialética
democracia-representação atravessa agora a fase histórica mais aguda, em que os componentes plebiscitários
se introduzem no organismo das instituições representativas e alteram o equilíbrio e o quadro das relações de
poder entre o eleito e o eleitor”.
72
“Na visão finalista, que adotamos, conduta é a ação ou omissão, voluntária e consciente, implicando em um
comando de movimentação ou inércia do corpo humano, voltado a uma finalidade”. NUCCI, 2014, p. 161.
73
“É a vontade do agente dirigida a um resultado determinado, porém vislumbrando a possibilidade de
ocorrência de um segundo resultado, não desejado, mas admitido, unido ao primeiro. Por isso, a lei utiliza o
termo ‘assumir o risco de produzi-lo’”. NUCCI, 2014, p. 188.
50
oposta nas urnas, caracteriza-se como involuntária, uma vez que tanto o comparecimento
quanto a manifestação de vontade são obrigatórias.
Sem embargos, quanto à visão bifásica ou composta em construção pelo egresso,
deve-se considerar que o comparecimento se trata de uma obrigação objetiva – função pública
– enquanto a manifestação de vontade se trata de uma obrigação subjetiva – direito/dever de
opor uma vontade por meio das urnas. Ocorre que a imposição74 de ter de digitar uma
numeração nas urnas, ainda que inválida, tem fulminado o direito de voto para transformá-lo
em uma função pública com base na teoria da soberania nacional, ao passo que ajuda
fomentar um sentimento de vanguarda dos partidos políticos em relação à concretização da
justiça social, através da representação apócrifa. Estadismo e Corporativismo.
Da mesma forma como se tratava de um grande equívoco caracterizar a ocorrência de
um crime simplesmente em razão da ocorrência fática da conduta típica, sem considerar a
intenção do agente, o sistema eleitoral brasileiro falha ao considerar as eleições como
democráticas apenas porque é legitimada pelo comparecimento dos cidadãos, embora a
qualidade do voto ou vícios de manifestação da vontade aconteçam.
A principal missão ao descrever o voto como ato composto ou bifásico serve de
auxílio para entender como o sistema eleitoral brasileiro se trata de uma dominação legal, de
como se gestou a fata morgana e fora dado continuidade a ela no período pós-regime militar,
por meio do discurso “temos uma jovial democracia pela frente, devemos manter o voto
educativo para fortalecer as instituições democráticas” e, por último, para melhor visualizar
a espécie de representação apócrifa baseada na cidadania jurídica, no próprio voto
compulsório, na primazia da soberania nacional e na imprescindibilidade dos partidos
políticos como gestores necessários da máquina estatal.
Vale o registro de que a obrigatoriedade do voto deveria ser de natureza
principiológica, considerando os índices relacionados à educação de base do eleitorado e, por
conseguinte, a percepção individual de um dever para com a sua sociedade. No entanto, a
obrigatoriedade em vigor não se trata de um dever moral, mas, sim, de dever legal, dizimando
por completo a retórica dos defensores do chamado “dever cívico”. Há de se concordar que
existe uma diferença muito grande entre a percepção individual do cidadão assentada em um
dever principiológico, gestado pela educação e mecanismos de solidariedade, à obrigação
estatal de se dirigir às urnas no primeiro domingo de outubro (1º turno). Ninguém discorda

74
“Se houver qualquer fator de coação, direta ou indireta, viciando a vontade do eleitor, sua manifestação já
não será autêntica. E a falta de autenticidade no pronunciamento de muitos eleitores compromete todo o
processo eleitoral, retirando-lhe o caráter democrático”. DALLARI, p. 168.
51
que, por princípio, os cidadãos devessem assumir o compromisso social por meio do voto. Em
contrapartida, não há como concordar que o eleitor deva obrigatoriamente votar para tão
somente legitimar a representação apócrifa do Brasil.
Por derradeira, levando em conta as reflexões compartilhas acerca da dominação
legal, do sistema eleitoral brasileiro e da natureza jurídica do voto popular, propõe-se uma
singela, mas oportuna mudança na sistematização do conceito de democracia que os
constitucionalistas têm apresentado. Para fins acadêmicos, leciona-se que a democracia pode
ser dividida em democracia direta e democracia indireta (representativa), vindo a reunião
dessas espécies ser classificada como democracia mista75 ou participativa. Ocorre que a não
discriminação da democracia representativa em a) representação autêntica, fruto do voto
facultativo, e b) representação apócrifa, produto do voto compulsório, tem permitido, entre
outras, à grei dar continuidade ao projeto de dominação legal através do sistema partidário de
coalizão que se tem no Brasil, sem que as pessoas identifiquem a causa dos males do arranjo
vigente – ou seja, o voto obrigatório, visto até a presente data como ato monofásico.

4 INDICADORES DA DESNECESSIDADE DO VOTO OBRIGATÓRIO

À primeira vista, se for trazido à baila princípios como a liberdade de expressão e de


consciência, o voto obrigatório certamente se tornaria anátema diante da nova ordem
constitucional consubstanciada na valorização da pessoa humana, pois se tornaria complexo
demais aceitar que a manifestação de vontade de um cidadão pode ser considerada válida pari
passu não seja voluntária. A teoria finalista da ação, como adiantado no capítulo anterior,
racionaliza muito bem esse paradoxo do regime compulsório, quando no Direito Penal,
subentende-se como fato atípico a conduta involuntária e, portanto, crime inexistente. De
maneira analógica, se não existe conduta, não poderia também existir uma intenção de voto.
Logo, no sistema compulsório, o dito “voto consciente” não faz muito sentido, considerando a
ausência de liberdades civis elementares. Além disso, foi visto mais atrás que o voto
obrigatório faz parte de um sistema representativo apócrifo, sendo, portanto, mais interessante
se discutir elementos concretos em detrimento de proposições filosóficas, dado que a questão

75
“Democracia semidireta é, na verdade, democracia representativa com alguns institutos de participação direta
do povo nas funções de governo, institutos que, entre outros, integram a democracia participativa”. SILVA,
José Afonso. 2014, p. 138.
52
não repousa em uma reflexão das liberdades individuais do cidadão, mas, sim, na
demonstração de um arranjo político retardado.

4.1 Da Democracia Deliberativa

A razão de ser (télos) da discussão que se prolonga nesta tese é, como não poderia ser
diferente, a busca por ferramentas, sistemas ou instrumentos mais eficazes na luta pela
efetivação da justiça social. Aprimoramento do sistema eleitoral76. Nesse sentido, a
representação tradicional, também alcunhada de “democracia indireta”, claramente resta
sucumbida com relação ao projeto de concretização da igualdade material entre os homens,
consoante “liberdade dos antigos”, uma vez que o Estado e a sociedade permanecem como
corporações dissociadas entre si, concretizando, assim, o pressuposto trazido acerca da
inerente dicotomia entre o corpo político e o povo. O nosso modelo representativo tem se
caracterizado como um procedimento bem estruturado, por meio da ciência política, cujo
escopo se encontra voltado para a efetividade da decisão política (governabilidade),
independentemente se as decisões são justas ou não, se estas priorizam a “liberdade dos
modernos” ou não.
Não obstante, no mundo contemporâneo, as transformações sociais tendem à
materialização de novas formas de representação social advindas do contexto comunicativo e
da ação social de cada indivíduo, no que Peter Häberle chamou de “sociedade aberta”. A
representação deixou de ser apenas um instrumento jurídico de garantia de governabilidade
para também se tornar um clímax de efervescência social, traduzindo diversos níveis de
interação humana, retirando dos partidos políticos77 a primazia da engenharia social, se é que
um dia na história estes a tiveram. Os Estados Republicanos ganharam consistência, sendo
das repartições públicas a incumbência de agir em nome de todos. Atualmente, todos os

76
“O sistema eleitoral adotado num país pode exercer — e em verdade exerce — considerável influxo sobre a
forma de governo, a organização partidária e a estrutura parlamentar, refletindo até certo ponto a índole das
instituições e a orientação política do regime”. BONAVIDES, p. 146.
77
“Podemos concluir este capítulo com a observação de que os constituintes optaram por um modelo de
democracia representativa que tem como sujeitos principais os partidos políticos, que vão ser os protagonistas
quase exclusivos do jogo político”. SILVA, José Afonso, 2014, p. 147.
53
homens buscam se representar à luz do pluralismo social78 e, concomitantemente, exigem
representatividade do corpo político que se elege a cada pleito.
Urge reconhecer dentro desse novo ambiente político o relevante papel exercido pela
comunicação social, bem como a crescente valorização das ações de cada indivíduo. Dentro
desse contexto, registra-se a influência cada vez maior da imprensa tradicional (rádio, TV,
jornais etc.) e da nova imprensa (internet) na formação da opinião pública79, bem como a
eminente noção relativa à “democracia de massas”. Como visto no capítulo anterior, existe
uma contradição80 sistêmica entre o arranjo político brasileiro e as novas formas de
representação social, que, entre outras respostas, pode ser explicada perante a falta de
prestígio que o modelo racionalista do século dezoito atualmente suporta. Nesse sentido, a
democracia contemporânea não se perfaz em um modelo puramente instrumental, mas, sim,
em uma lógica comunicativa na qual se tem buscado um entendimento constante entre os
concidadãos. Janela de Overton. Em outras palavras, como já apontado por N. Bobbio, o
poder hodierno se encontra subsumido na vigilância da dominação ideológica, ou melhor, na
tentativa do convencimento de comportamentos desejáveis sobre o próximo. A antiga
“vontade geral” deu lugar a moderna “opinião pública”.
A mídia como um todo, também conhecida como quarto poder, seria uma das
responsáveis pela orientação da consciência coletiva. Esta é a protagonista pela modulação da
opinião pública e o canal de contato da chamada “democracia de massas”81. Na corrente “era
do conhecimento” ou “era da informação”, a maioria das pessoas, guardadas as devidas
proporções, tem conseguido se conectar de modo instantâneo com os assuntos do cotidiano,
embora se reconheça o perigo das “fakes news”. Além disso, como estamos inseridos dentro
de uma sociedade cujo modo de produção é capitalista, quase tudo tende a ser comercializado
ou potencialmente precificado aos olhos das massas. O conhecimento, antes alocado em
ambientes acadêmicos, a partir de então também se vê distribuído a fim de ser consumido
pelos indivíduos. A cultura não é mais um conjunto refinado de valores e princípios reiterados

78
“A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista que respeita a pessoa humana e sua liberdade, em lugar
de uma sociedade monista que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. O pluralismo é uma
realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais,
econômicos, culturais e ideológicos”. SILVA, José Afonso, 2014, p. 145.
79
“Sendo a opinião pública a mais eficaz forma de presença indireta do corpo social na formação da vontade
política, não é de admirar que sua excepcional força haja sido já proclamada e reconhecida por governantes,
filósofos e cientistas políticos, do século XVIII aos nossos dias”. BONAVIDES, p. 279.
80
“Com a Constituição de 1988, houve um retrocesso a esse respeito: em matéria de sistema representativo, a
‘duplicidade’ voltou a prevalecer sobre a ‘identidade’”. BONAVIDES, p. 128.
81
“A massa se rege por sentimentos, emoções, preconceitos, como a psicologia social já demonstrou
exaustivamente. A opinião das massas formando a opinião pública será por consequência irracional”.
BONAVIDES, p. 285.
54
ao longo do tempo, mas ações e linguagens efêmeras que surgem, são comercializadas e logo
desaparecem para darem lugar a novas formas de entretenimento digital.
A partir do entendimento supra firmado, pode-se lançar mão de alguns postulados a
respeito de um modelo democrático mais autêntico: em primeiro lugar, como escreveu
Schumpeter82, de fato, o povo serviria apenas para eleger representantes, consoante o
raciocínio assentado na razão instrumental dos iluministas. Ocorre que a existência humana
em todas as suas singularidades ultrapassa a noção de eficiência pregada dentro do chamado
“mundo do trabalho” (tecnocrático). Desta forma, com relação à representação política e às
eleições, o papel do povo parece ser este: eleger representantes. No entanto, no chamado
“mundo da vida”, de uma maneira mais ampla, reconhece-se que o ser humano (e não o
cidadão jurídico) seja um animal de ação e de linguagem, cuja demanda não se limita a
representações políticas, mas alcança toda a engenharia social. Desde a escola primária até as
propagandas comerciais mais básicas. Toda existência humana, durante a vida, seria uma
representação de si, como suspeitou A. Schopenhauer, noção esta que ultrapassa a
representação política, delegada a mandatários eleitos.
Nesta altura do campeonato indubitavelmente pode ser cristalizado que a
representação política se espelha em um modelo liberal de democracia, baseado na razão
instrumental dos publicistas, e com fulcro na governabilidade (decisão eficiente) da cúpula
administrativa. Em contrapartida, as demais representações da vida humana, isto é, todas
aquelas que não integram a democracia indireta propriamente dita, caracterizam de maneira
mais assertiva a democracia deliberativa, a qual se encontra sustentada numa razão
comunicativa de acordo com Habermas. Daí o protagonismo dos veículos de comunicação.
Não à toa também que, segundo os liberais mais ortodoxos, a legitimidade dos governos
republicanos pode ser resumida a uma consequência das eleições, enquanto para os novos
democratas, a legitimidade da cúpula diretiva deve ser aferida necessariamente junto à
liberdade de imprensa ofertada pelo próprio Estado.

82
“O leitor deve recordar que nossas principais dificuldades no estudo da teoria clássica centralizavam-se na
afirmação de que o povo tem uma opinião definida e racional a respeito de todas as questões e que manifesta
essa opinião — numa democracia — pela escolha de representantes que se encarregam de sua execução. Por
conseguinte, a seleção dos representantes é secundária ao principal objetivo do sistema democrático, que
consiste em atribuir ao eleitorado o poder de decidir sobre assuntos políticos. Suponhamos agora que
invertemos os papéis desses dois elementos e tornamos a decisão de questões pelo eleitorado secundária à
eleição de representantes, que tomarão, neste caso, as decisões. Ou, em outras palavras, diremos agora que o
papel do povo é formar um governo, ou corpo intermediário, que, por seu turno, formará o executivo nacional
ou governo”. SCHUMPETER, 1961, p. 321.
55
A respeito dessa nova compreensão de democracia, que deixou de ser mero
procedimento para também ser constantemente espiada, dado a sua fluidez83 dentro do que
Habermas chamou de “esfera pública”, pode ser ventilado que a democracia deliberativa
doravante funcione como um status qualificador da capacidade dos cidadãos de se
expressarem e influenciarem84 o poder político através das representações de si. De outra
maneira, a democracia liberal de outrora, atualmente pode ser descrevida como um “regime
democrático”, ou melhor, de acordo com a regular autonomia das instituições republicanas.
Importante frisar que a democracia deliberativa não representa uma superação da
democracia liberal, mas, sim, uma compreensão igualitária firmada sobre as bases dos direitos
de primeira geração, sendo, portanto, uma interseção entre os princípios da igualdade e da
liberdade. Não se trata mais de mero procedimento nem de um estado ideal de coisas, porém
de representações de si, ao lume do pluralismo social, as quais somente podem ser exercidas
se todos tiverem liberdades relativamente iguais, que, por sua vez, devem ser verificadas
sobretudo através da renda auferida pelas pessoas, como dito no primeiro capítulo.
Durante todas as partes deste trabalho de conclusão se classificou a representação
política do Brasil como mentirosa (apócrifa), porquanto o sistema brasileiro faz crer que a
representação política seria mais do que atualmente ela de fato o é. Fata Morgana. Observa-se
que o cidadão tem servido apenas para oportunizar seu consentimento ao corpo político,
enquanto o voto se faz obrigatório e os representantes permanecem superestimados à luz da
razão instrumental – teoria da duplicidade. Esse cenário tem produzido cidadãos opacos e
indiferentes à novel compreensão acerca das representações sociais, permitindo que o corpo
político se sinta incumbido de uma missão divina e que os partidos políticos se coloquem na
vanguarda do progresso nacional, sem os quais a ordem jurídica do Estado colapsaria. Além
disso, considerando a falta de percepção do cidadão médio frente às atividades dos veículos

83
“A sociedade liberal-burguesa descobriu o conceito de opinião pública, irmão gêmeo da soberania popular, e
num certo sentido mais eficaz que esta, pois sendo como técnica democrática a mesma coisa, e não estando,
qual a soberania popular, necessariamente vinculada a um órgão de representação — a poderes instituídos,
assembleias legislativas, etc. — poderia mover-se, dada sua natureza intrinsecamente inorgânica e difusa, com
mais liberdade e presença, e passar através das instituições como um sopro quente da vida, que tanto serve de
animá-las como de desfalecê-las”. BONAVIDES, p. 282.
84
“No final do século XX foi proposta, e teve grande repercussão prática, a intensificação da participação
direta do povo nas decisões políticas, por meio de manifestações coletivas, aprovando proposições para a
adoção de políticas públicas. Essa prática passou a ser identificada como “democracia participativa” e já vem
sendo objeto de estudos teóricos; como nova possibilidade de efetivação das ideias e dos princípios contidos no
conceito de democracia”. DALLARI, p. 136.
56
de comunicação de massa, a manipulação85 da opinião pública tem se revelado constante no
Brasil.
Sem embargos, já se admitiu nessas tábuas que o cidadão jurídico serve86 tão apenas
para eleger representantes, de acordo com a razão instrumental. Isso não é um problema. No
entanto, há barreiras institucionais que precisam ruir a fim do sistema representativo se tornar
autêntico como em outros países. Por exemplo, o voto facultativo casa perfeitamente com a
assunção relativa ao simples papel do cidadão de eleger representantes. É uma forma
inclusive mais justa de se abordar o povo87, elemento constitutivo do Estado, levando em
conta que os representantes são vistos hoje em dia como “comissariados”88 do poder.
Outrossim, a facultatividade do voto esmaga a superestima do corpo político para então
colocá-lo subestimado diante da imensidão de representações da vida humana e das diversas
ferramentas democráticas à disposição do povo. Como já registrado, não se deseja propor o
fim da representação política, pois que seria um devaneio sem medidas. Todavia é preciso
reconhecer que o sistema eleitoral brasileiro não tem acompanhado o avanço da democracia
deliberativa, priorizando uma fórmula indireta em detrimento dos múltiplos instrumentos da
democracia direta.
Antes de demonstrar os institutos que fomentam a democracia direta, resgata-se, mais
abaixo, dois cientistas políticos que buscaram delinear a tal democracia deliberativa. Cumpre
registrar que o objetivo da democracia deliberativa seja a participação de todos na construção
da decisão coletiva, ou melhor dizendo, busca-se nesse modelo alcançar um consenso sem a
exclusão de grupos periféricos. Isagoria89. Essa nova maneira de enxergar a democracia, para
além de um procedimento impessoal, representa uma inversão sobre a lógica liberal cujo
“ponto de partida” da democracia seria as eleições e o voto. De outro modo, atualmente, seria

85
“Na sociedade de massas, de índole coletivista, a opinião aparece “racionalizada” em suas fontes
formadoras, mediante o emprego da técnica, com todos os recursos científicos de comunicação de massas — a
imprensa, o rádio e a televisão — deliberadamente conjugados, a compor um extenso laboratório de “criação”
da opinião, para atender a interesses maciços de grupos ou poderes governantes, acreditando-se no entanto
cada vez menos no teor racional dessa opinião, que todos reconhecem ou proclamam uma força feita
irretorquivelmente de sentimentos e emoções”. BONAVIDES, p. 286.
86
“Com efeito, pela doutrina da soberania nacional, o eleitor é tão-somente instrumento ou órgão de que se
serve a nação para criar o órgão maior — o corpo representativo — a que delega o poder soberano, do qual
todavia se conserva sempre titular”. BONAVIDES, p. 134.
87
“E de ordem material, o elemento humano, que se qualifica em graus distintos, como população, povo e
nação, isto é, em termos demográficos, jurídicos e culturais”. BONAVIDES, p. 29.
88
“O termo representação passou pois por aquela ‘depravação ideológica’ a que se refere Hans J. Wolff e o
sistema representativo culmina logicamente numa depreciação progressiva da independência do representante,
cada vez mais ‘comissário’, cada vez menos ‘representante””. BONAVIDES, p. 126.
89
“trata-se do direito de palavra, da igualdade reconhecida a todos de falar nas assembleias populares, de
debater publicamente os negócios do governo. Correspondeu esse princípio essencial da democracia antiga,
segundo o já mencionado pensador, àquilo a que nós chamamos liberdade de imprensa”. BONAVIDES, p. 162.
57
mais correto considerar que a representação delegada seja o “ponto de chegada”, em respeito
aos mecanismos da democracia direta, uma vez que as ferramentas desta última são mais
plurais e dinâmicas em relação àquela, caracterizada como estanque e fotográfica.
O “mundo da vida” junto com o crescimento da comunicação social tem exigido uma
velocidade e um acompanhamento às mudanças de entendimento etc., construídas dentro da
esfera pública, que a democracia indireta não é capaz de lidar, sem antes reconhecer que a
participação popular cresce cada vez mais, além de ser um caminho sem voltas.
Em 1995, por meio do Journal Of Philosophy, J. Habermas e J. Rawls desenvolveram
uma discussão acadêmica em torno da democracia deliberativa. A despeito do objetivo ser
descrever um sistema político capaz de gestar um consenso sem exclusão, ambos discordavam
em relação ao procedimento a ser realizado para que se alcançasse o dito consenso
democrático, porém concordavam que a decisão coletiva carregaria consigo, ainda que
empiricamente racionalizada pela “ética do discurso” de Habermas ou hipoteticamente
legitimada pelo contratualismo da “posição original” de Rawls, uma natureza irracional em
razão do pluralismo inerente aos indivíduos. Cada ser humano tem as suas particularidades
morais, políticas, religiosas etc. Diante desse cenário, o mais importante seria reconhecer que
a democracia contemporânea seria sobretudo discursiva e a opinião pública um fenômeno que
deve ser construído por todos da sociedade civil, sem olvidar, claro, do poderio dos meios de
comunicação, que desregulados, podem se aproveitar da fluidez das massas para manipular
interesses de classes como se do povo os fossem.

4.2 Dos Direitos de 3ª Geração e da Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição

A democracia direta se mostra conectada aos ideais dos povos gregos, enquanto a
democracia indireta se encontra vinculada aos postulados dos iluministas do século XVIII.
Tendo em vista a discussão realizada em torno da democracia indireta e os seus efeitos no
sistema eleitoral brasileiro, neste momento, almeja-se apresentar algumas ferramentas da
chamada democracia direta. De acordo com o art. 14 da Constituição Federal, a soberania
popular deverá ser exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor
igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: plebiscito, referendo e a iniciativa popular.
Em retro reflexão oposta neste trabalho, discorreu-se que o voto, como disposto pelas leis
brasileiras em sentido genérico, não se trata de instrumento da soberania popular, mas, de
outro modo, de mecanismo da soberania nacional, uma vez que o cidadão auriverde é
58
juridicamente compelido a comparecer e se manifestar. Nesse sentido, considerando que não
existe norma, desde que interpretada pelo respectivo destinatário, o caput do art. 14 tem se
mostrado incoerente, quando se observa, por exemplo, os números cada vez maiores de
abstenções por parte dos intérpretes da Carta Política.
Em relação às ferramentas da democracia direta, elencadas nos incisos I, II e III do art.
14, são importantíssimas, na medida que materializam os direitos de terceira geração90,
porém, ainda sim, mostram-se vinculadas a atividades do Congresso Nacional, variando
apenas quanto ao procedimento adotado para cada instituto. Além destas, o ordenamento
pátrio faculta ao cidadão a possibilidade do manejo da chamada Ação Popular, instrumento
que visa a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à
moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. Nessa
altura, surge no cenário dessa breve reflexão acerca do voto e da representação brasileira, uma
ferramenta poderosa, do dia a dia, e de natureza jurisdicional, pois além de controlar a
atividade administrativa do Estado, convalida o exercício da chamada democracia deliberativa
na práxis.
Cita-se alguns dispositivos da Lei da Ação Popular91: É facultado a qualquer cidadão
habilitar-se como litisconsorte ou assistente do autor da ação popular; Ao despachar a inicial,
o juiz ordenará a requisição, às entidades indicadas na petição inicial, dos documentos que
tiverem sido referidos pelo autor (art. 1º, §6º), bem como a de outros que se lhe afigurem
necessários ao esclarecimento dos fatos, ficando prazos de 15 (quinze) a 30 (trinta) dias para o
atendimento; Se o autor desistir da ação ou der motiva à absolvição da instância, serão
publicados editais nos prazos e condições previstos no art. 7º, inciso II, ficando assegurado a
qualquer cidadão, bem como ao representante do Ministério Público, dentro do prazo de 90
(noventa) dias da última publicação feita, promover o prosseguimento da ação; e por fim, A
sentença terá eficácia de coisa julgada oponível "erga omnes", exceto no caso de haver sido a
ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá
intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
À luz dos dispositivos citadinos, percebe-se o interesse do legislador volvido ao
fortalecimento do debate republicano e, ao mesmo tempo, a oferta do Estado para com o
cidadão de um instrumento consubstanciado no princípio da sindicabilidade, isto é, no
controle contínuo do povo sobre as ações da Administração Pública lato sensu. Nessa mesma

90 “Os direitos fundamentais da 3.ª dimensão são marcados pela alteração da sociedade por profundas
mudanças na comunidade internacional (sociedade de massa, crescente desenvolvimento tecnológico e
científico), identificando-se profundas alterações nas relações econômico-sociais”. LENZA, 2019, p. 1763.
91
Lei nº 4.717/1965, recepcionada pela Constituição Federal.
59
linha de raciocínio, na legislação brasileira, fulgura uma segunda ferramenta de natureza
jurisdicional, tão importante quanto à ação popular. Trata-se da Ação Civil Pública92. Com
um rol menor de legitimados, também busca estimular a democracia deliberativa por meio de
ferramentas de discurso, como as audiências e consultas públicas, as quais, por sua vez,
permitem o ingresso de terceiros interessados ou Amicus Curiae a fim de que se amplie o
debate público acerca dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Ambas as ações jurídicas são capazes de acompanharem a velocidade das
transformações sociais, diferentemente do voto popular que se concretiza de dois em dois
anos no Brasil.
No âmbito dos processos administrativos93 também existe a possibilidade de
realização de audiências e consultas públicas. Inclusive, atualmente ganha força o conceito da
Administração Pública Dialógica94, a qual tem se distanciado do formato burocrático e
monológico, criando mecanismos95 que aprimoram o debate, aproximando o setor privado do
interesse público. Os diálogos proporcionam razoabilidade aos poderes discricionários do
Estado. A essa nova forma de participação, torna-se preciso esclarecer que a capacidade
econômica do particular em conversas com a Adm. Pública deve ser levada em conta, pois um
simples “direito de petição” pode descambar em “lobismo” por parte do setor privado. Sendo
assim, além da preocupação com a corrupção ativa e passiva que eventualmente pode ocorrer,
deve-se estar atento com as desigualdades econômicas dos indivíduos para que mais pessoas
estejam em contato com Administração, trazendo seus interesses particulares para o âmbito
público, com fulcro no desenvolvimento sustentável e, mormente, no consenso democrático.
Além da ação popular e da ação civil pública – petitórios da democracia direta – existe
no direito brasileiro a possibilidade do ajuizamento de mandado de segurança e de injunção,
tanto de maneira individual quanto coletiva. Independentemente do rol de legitimados, são
institutos jurídicos que também podem ser caracterizados como ferramentas da democracia
direta (ou deliberativa), uma vez que o interesse de agir não se manifesta de maneira
extroversa, ou melhor, de dentro para fora, como tipicamente ocorre através dos atos do
Estado. São mecanismos que concedem parcelas de poder ao povo para que este, através da
sua iniciativa ou de quem os faça as vezes, realize o controle das atividades do Estado,
concretizando assim a teoria da soberania popular. Nota-se que as “parcelas de poder” aqui

92
Lei nº 7.347/1985, recepcionada pela Constituição Federal.
93
Lei nº 9.784/1999, aplicada no âmbito da Adm. Pública Federal.
94
“A expressão desta Administração Dialógica se dá, principalmente, pela criação das parcerias firmadas entre
o Estado e particulares com a finalidade de satisfazer as necessidades coletivas”. CARVALHO, 2017, p. 688.
95
A título de demonstração se tem o “Diálogo Competitivo”, previsto na Nova Lei de Licitações.
60
opostas não se assemelham àquela visão foucaultiana, baseada em práticas de convencimento
ideológico, mas, sim, em comportamentos interessados dos populares, os quais somente são
possíveis se estes homens tiverem capacidade econômica minimamente considerável. Quanto
mais equilibrada for a distribuição da riqueza nacional, menos abstrata será a soberania
popular.
Todas as ferramentas da democracia direta, que acima foram citadas, concretizam o
chamado conjunto dos direitos de terceira dimensão. Sem olvidar de doutrinas divergentes, a
maioria dos experts atualmente considera que estes direitos se referem ao valor da
solidariedade96, isto é, aos direitos coletivos de maneira geral, ou ainda, a uma crescente
preocupação com a vida em sociedade, no que Durkheim chama de passagem das sociedades
mecânicas para as sociedades orgânicas. A comunicação social, inclusive, faz parte dessa
nova geração de direitos, os quais fornecem ao povo uma faculdade de exercício relativo à
cidadania em seu mais amplo aspecto, para além do cidadão jurídico propalado pelo
racionalismo iluminista. Uma pena que, em relação à ação popular, nos termos da
Constituição, somente o cidadão jurídico poderá protocolizá-la.
Mister ressaltar que a todo instante se almeja consignar neste capítulo que o consenso,
o debate, a solidariedade, a renda (importante), entre outros, são elementos da novel
compreensão democrática, que devem ser discutidos por todos dentro da esfera pública. Não
se governa mais distante da participação popular, ainda que o sistema eleitoral permaneça
recalcado em um modelo à luz da teoria da duplicidade97, tornando esse distanciamento um
fenômeno quase que natural (fata morgana) aos olhos dos mais distraídos.
Iniciou-se este trabalho comentando brevemente acerca dos espectros políticos, os
quais se dividem em alas conservadoras e ondas progressistas. Além disso, quando se
comentou acerca de um consenso democrático, obviamente que se imaginou um cenário mais
racionalizado possível e ao mesmo tempo integrativo, levando em conta as pautas de ambos
os espectros, conquanto que estas não vão de encontro com os direitos fundamentais. Janela
de Overton. Nesses termos, todos os instrumentos da democracia direta, apresentados neste
capítulo, também fazem parte de algo mais profundo, envolvendo a realidade constitucional
do país frente ao texto frio da Carta Maior. Segundo Peter Häberle, toda a dinâmica

96
“Os direitos da 3.ª dimensão são direitos transindividuais, isto é, direitos que vão além dos interesses do
indivíduo; pois são concernentes à proteção do gênero humano, com altíssimo teor de humanismo e
universalidade”. LENZA, 2019, p. 1763.
97
“Nessa organização, os representantes se fizeram depositários da soberania, exercida em nome da nação ou
do povo e puderam, livremente, com sólido respaldo nas regiões da doutrina, exprimir ideias ou convicções,
fazendo-as valer, sem a preocupação necessária de saber se seus atos e princípios estavam ou não em
proporção exata de correspondência com a vontade dos representados”. BONAVIDES, p. 117.
61
imaginada pelo egresso até aqui, ou seja, de pessoas conscientes, com uma renda
minimamente considerável, apresentando seus interesses perante o Estado, concretizam a
chamada “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”. Essa realidade98 social tomada a
partir das normas interpretadas rompe com a chamada “sociedade fechada” em que apenas
juízes e autoridades oficiais dão vida à Constituição.
Nada obstante, o ativismo do Poder Judiciário se trata de um fenômeno considerado
por alguns entusiastas como uma evolução do pensamento moderno em relação à teoria geral
do Estado. Para outros, toma-se como um refúgio institucional contra a tirania do fascismo
que se insurge diante de movimentos populistas. Independentemente dessas visões que muito
se aproximam de questões políticas em detrimento de tópicas jurídicas, parece que a atuação
da cúpula do Judiciário, principalmente no cenário brasileiro, desandou99. Atualmente o
Supremo Tribunal Federal se encontra politizado, ferindo de morte os ideais da “sociedade
aberta”, quando toma para si a exclusividade da interpretação de todas as leis, para além do
controle constitucional, fazendo crer que o seu avanço ditatorial se justifica em nome de “algo
maior” – a defesa da democracia. Ora, o reconhecimento de um numerus apertus de
intérpretes da Constituição faz com a que o próprio texto também se torne aberto100, sendo,
portanto, uma teoria hermenêutica que alimenta o pluralismo político e a democracia
deliberativa.
A lacônica crítica realizada em desfavor do ativismo judicial não tem o condão de
invalidar as atividades jurisdicionais que dão proteção aos direitos fundamentais, afinal a
aludida “sociedade aberta” tem como escopo a imprescindível defesa de tais direitos. Ocorre
que a situação do Brasil, certamente se revela atípica, pois o Poder Judiciário claramente tem
negado a autoridade constituída do Executivo Federal em nome de uma suposta “defesa da
democracia”, porquanto subentendem que: se o atual presidente (J. Bolsonaro) não for
rechaçado, a sua autoridade poderá vir a se tornar autocrática, uma vez que assim se deu com
os movimentos fascista e nazista. Obviamente que essa retórica frankfurtiana, tão bem

98
“Segundo Häberle, todo aquele que vive o que é regulado pela norma constitucional é também um intérprete
dela. Isso significa que praticamente todas as ações humanas seriam ao mesmo tempo reguladas pela
Constituição e uma manifestação de uma interpretação constitucional, o que teria como consequência o fato de
que nenhuma área da vida teria independência das normas constitucionais”. LENZA, 2019, p. 152.
99
“A Corte, que deveria manter-se equidistante e alheia às paixões, parece a cada dia mais contaminada pelo
noticiário, como se devesse prestar contas à opinião pública, não à lei ou à Constituição”. Trecho do Editorial
do jornal “O Globo”. DISPONÍVEL EM: https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial/post/2022/06/ativismo-do-
stf-representa-risco-preocupante.ghtml. ACESSO EM: 8 out. 2022.
100
“Ao afirmar que a interpretação não mais deve ficar confinada dentro de uma sociedade fechada, Häberle
propõe a ideia de que a interpretação não possa ficar restrita aos órgãos estatais, mas que deve ser aberta para
todos os que “vivem” a norma (a Constituição), sendo, assim, esses destinatários, legítimos intérpretes, em um
interessante processo de revisão da metodologia jurídica tradicional de interpretação”. LENZA, 2019, p. 289.
62
difundida nos livros, não se sustenta na realidade fática, considerando que tais movimentos
não surgiram apenas em decorrência de um ufanismo de valores patriarcais, mas de um
universo de fatores ímpares, entre eles a tecnocracia do positivismo e a nacionalização tardia
tanto da Itália quanto da Alemanha. Outrossim, críticas plausíveis às atividades do STF não o
torna “párea” do Estado brasileiro, mas certamente o “força” a trabalhar de maneira mais
transparente e democrática.

4.3 Da Era dos Estatutos e do Protagonismo das Minorias

Hodiernamente se encontra espalhado nos setores acadêmicos, assim como dentro do


universo da comunicação social, o protagonismo latente das “minorias”101. Em relação a essa
fragmentação realizada nas últimas décadas pelo criticismo, importante destacar dois pontos
de vista. De ordem quantitativa, se for observado que o agente dominante dentro desta
retórica seja o “homem, branco, ocidental, cristão e heterossexual”, tem-se que a dita
“minoria”, na verdade, tratar-se-ia da maioria da população mundial, visto que somados esses
grupos periféricos, formados por mulheres, pretos, orientais, não cristãos e homossexuais,
logicamente seriam bem maiores do que a figura típica associada ao patriarcado. Ora, então
por que a maioria é classificada como minoria? Certamente por questões econômicas.
Destarte, mais uma vez, busca-se assinalar que a renda se trata de um pressuposto
democrático, quando se vislumbra um cenário de pessoas ativas dentro da sociedade. Em
contrapartida, ao se desprezar o elemento econômico do debate público, torna-se o país como,
por exemplo, no caso do ativismo judicial, numa “democracia de gabinete”, em que ministros
se veem obrigados a defender a democracia, mesmo sendo órgãos contramajoritários.
Quando o Poder Judiciário age reiteradamente desta maneira não está defendendo a
permanência da democracia, haja vista a liberdade de imprensa e a atividade regular do
Congresso Nacional, mas, sim, fomentando um tipo de leitura histórica baseada no
progressismo102 a qualquer custo. Data vênia, existe dentro do país uma elite intelectual que
insiste em falar sobre o povo como se fosse “proprietária” do povo, no entanto, quando
populares de camadas inferiores se autodeclaram “cristãos”, são hostilizados e descartados
como “coisas” (animais de rebanho) por essas mesmas autoridades e chefes de grupos de
101
“O problema de mais difícil solução na democracia representativa é o da representação das minorias.
Tentando solucioná-lo foi que na Bélgica se introduziu, no ano de 1900, o sistema de representação
proporcional, que seria acolhido por muitos Estados depois da I Guerra Mundial”. DALLARI, p. 170.
102
Barroso, ministro do STF, tem chamado essa atividade do Judiciário de “papel iluminista da Corte”, uma vez
que se trata de atuação “correta, justa e legítima”. Este trabalho não concorda com essa linha de pensamento.
63
comunicação social. Lamentavelmente, este cenário nietzschiano não poderia ser deixado de
lado pelo egresso.
Em um segundo momento, de ordem qualitativa, abraça-se nas lições de J. Rawls a
respeito da diferenciação realizada pelo autor entre a noção de “bem” e de “justo” para
finalizar a pertinente observação em relação às minorias sociais. Claro que ao realizar tais
ressalvas, não se deseja uma “ditadura da maioria”, como infelizmente se inclinou o
utilitarismo dos sistemas representativos, afinal o próprio Rawls se mostrou contrário ao
postulado utilitarista em sua formulação neocontratualista. Entende o autor que a noção de
“bem” faz parte de uma particularidade de cada ser humano, enquanto a “justiça” pode
carregar uma noção de caráter público, desde que racionalizada. Ao renunciar às suas
particularidades sob o “véu da ignorância”, o homem seria capaz de formular um sistema
democrático mais justo, sem esquecer, durante este processo de racionalização, que os
recursos são escassos e, principalmente, da existência da pluralidade humana, situação que
não pode ser desprezada, sendo cuidada a posteriori da materialização da “justiça comum”.
Nesse sentido, o consenso sobreposto presente na teoria do autor norte-americano
poderia ser traduzido neste trabalho de conclusão como uma situação política em que todos os
cidadãos poderiam concordar com um senso de “justiça comum”, estabelecido a partir de suas
noções particulares de “bem”, tendo em vista que uma das premissas basilares dos liberais é:
não acreditar na existência de um autêntico “bem comum”, no qual deva ser buscado pela
sociedade, mas, sim, em uma associação espontânea de pessoas com objetivos particulares, os
quais devem ser assegurados pelo Estado Mínimo por meio da segurança pública. Outrossim,
de acordo com Rawls, pensador do “liberalismo igualitário”, uma sociedade justa somente
poderia existir se assegurasse igual liberdade para todos, se respeitasse as diferenças derivadas
através do trabalho de cada um e, por último, se oferecesse oportunidades iguais para os mais
vulneráveis.
Em respeito ao pluralismo social, considerando que cada pessoa tem um conceito
íntimo de “bem” à luz da sua eticidade, quando um grupo minoritário qualquer busca exercer
a sua militância em torno de questões que favorecem a própria “bolha social”, entende-se que,
embora democrático o exercício da liberdade de expressão etc., as pautas aprovadas por essas
pessoas não dão completude à chamada justiça social, por mais contraditório que a princípio
possa parecer. Nesse ritmo, quando aprovadas legislações (Estatutos Jurídicos) em benefício
próprio de grupos periféricos, compreende-se que um “bem” foi feito, segundo a visão
particular daqueles militantes, e não a “justiça” em favor de todos presente na sociedade. Por

64
isso que, segundo Rawls, a justiça deveria ser tomada como “equidade”, porque esta se
encontra baseada na premissa de que a todos deve o Estado assegurar, além da segurança
pública, acesso aos bens primários, semelhante à proposta da pirâmide de Maslow.
Em razão da repartição do tecido social em questões de grupos: mulheres, pretos,
índios etc. o alcance da “justiça” se tornou uma situação jurídica cada vez mais complexa,
haja vista que cada “grupo de pressão”, segundo definição de Bonavides, almeja puxar a
sardinha para o seu campo político, de acordo com a sua inclinação moral acerca do que
entende por “bem”, enquanto a “justiça” tem se tornado cada vez mais afastada do debate
público, cada vez mais idealizada (horizonte normativo). Daí, mais uma vez, resgata-se que a
captura da “justiça” seja uma atividade intrinsicamente conectada à renda das pessoas,
conforme a própria conclusão de Rawls, em relação ao acesso de bens primários por todos da
sociedade. De maneira não distante, a ordem social (art. 193) da “Constituição Cidadã”
esclarece que a sua base é o trabalho e seus objetivos o bem-estar e a justiça social. Nesse
sentido, o trabalho humano funciona como uma ponte de acesso entre o ser natural e o ser
social, derrogando narrativas non sense baseadas em um suposto complô histórico e
consciente do “homem, branco, rico, ocidental, cristão e heterossexual”.
Após o esclarecimento de ordem quantitativa e qualitativa acerca das chamadas
“minorias”, busca-se reconhecer o papel de destaque que esses grupos têm no que se refere à
“sociedade aberta de intérpretes da Constituição”. A teoria de Peter Häberle tem como norte a
concretização dos direitos fundamentais, enquanto a democracia deliberativa se revela como
um ambiente propício para o acontecimento dessas atividades hermenêuticas por parte desses
grupos sociais. Segundo Gustavo Tepedino, estamos na “Era dos Estatutos” em que
microssistemas são positivados a fim de tratar com mais pertinência de assuntos que antes não
eram pautas da “sociedade oitocentista”. Diversas mudanças ocorreram no mundo, bem como
inúmeros paradigmas foram quebrados e outros ainda permanecem sendo desmanchados. Em
razão dessas novas complexidades, o legislador brasileiro também se viu compelido a criar
“estatutos próprios” voltados para alguns grupos em detrimento das “cláusulas gerais”
previstas no códex civilista. Além da constitucionalização da vida pública, as normas da vida
privada tiveram que ser alteradas a fim de que a convivência entre as pessoas, que são plurais,
pudesse ser mais harmônica.
Obviamente que, diante do cenário acima, o voto, instrumento basilar da democracia
representativa, não se mostra capaz de oferecer respostas, na velocidade que se espera, a todas
essas mudanças. No entanto, os trabalhos legislativos (Estatutos Jurídicos) que se operam são

65
devidos aos representantes das casas legislativas, eleitos por meio do voto popular.
Justamente, por conta desse aparente dissenso, fora dito mais atrás que o voto popular junto
com as eleições deve ser encarado como um desfecho da atividade democrática, que se
desenvolve no país, afinal o eleitor tem servido apenas para eleger representantes, e não como
um “motor de arranque”, conforme a grei tem arquitetado. O fundo partidário, as reformas do
art. 17 da Constituição e a aprovação do chamado “orçamento secreto” revelam que os
partidos políticos estão em uma posição de superestima estatal, umbilicalmente conectados
com os órgãos e as pessoas do Estado, ferindo de morte princípios como a impessoalidade e a
publicidade da Administração. De volta ao protagonismo das minorias. a atividade
democrática em torno desses grupos da chamada “esquerda identitária” desenvolveu a partir
da década de quarenta do século passado uma ampla discussão no seio da sociedade a respeito
dos chamados “valores dominantes” e uma forte relativização da antiga normalidade judaico-
cristã. Forças sociais que até então estavam fragmentadas, aglutinaram-se a fim de buscar
direitos e provocar novas demandas ao Estado. Se de um lado havia o tradicionalismo
representado pela formação original das primeiras famílias, no outro se tem um complexo de
formas de expressão comportamental, de crenças, de valores e da própria concepção de
família. A partir da irradiação dos valores constitucionais e, portanto, dos direitos
fundamentais, novas interpretações da vida constitucionalizada surgiram e inegavelmente
carregam notória legitimidade para tanto. Todos, independentemente da sua concepção de
“bem”, estão sob o mesmo jugo da “justiça” propalado pela força normativa da Lex Legum.
Nesse diapasão, a teoria do conflito, amplamente desenvolvida por Karl Marx, ajuda a
explicar muito bem a dinâmica do parágrafo anterior, assim como a própria eleição
presidencial de 2022 entre Bolsonaro e Lula. Em linhas gerais, de acordo com o espectro da
direita, o Estado deve ser encarado como um garantidor da incolumidade física das pessoas,
enquanto a sociedade se traduz como uma associação organizada pelos costumes, a qual reúne
diversos interesses particulares. São, portanto, dois entes separados103. Por outro lado,
segundo o espectro da esquerda, o Estado é visto como um ente responsável pelo dirigismo da
vida em sociedade, o qual deve organizar os setores sociais a fim de equilibrar o acesso aos
meios produzidos e de produção, enquanto a sociedade seria uma consequência da atividade
do Estado. Sendo assim, os movimentos identitários, pertencentes ao campo da nova
esquerda, acreditam que os responsáveis pelas mazelas da sociedade são os atores do espectro
103
“A burguesia triunfante abraça-se acariciadora a esse conceito que faz do Estado a ordem jurídica, o corpo
normativo, a máquina do poder político, exterior à Sociedade, compreendida esta como esfera mais dilatada, de
substrato materialmente econômico, onde os indivíduos dinamizam sua ação e expandem seu trabalho”.
BONAVIDES, p. 25.
66
da direita, uma vez que estes pregam uma visão de Estado muito simplista perante a
complexidade da vida pós-moderna.
Por meio da luta de classes, entre dominantes e dominados, que atualmente parece ter
perdido certo sentido, considerando que a esquerda identitária não conseguiu demonstrar, até
a presente data, o animus domini desses tais “valores dominantes” ao longo da história, isto é,
não existe evidências de que houve uma intenção ativa de criar determinadas visões de mundo
com o intuito de deixar de lado determinados grupo sociais, acredita-se que as mudanças
aconteçam ao lume do conflito. Antes por meio de revoluções, hoje por meio do domínio do
debate público com forte apoio da comunicação social (direito de terceira dimensão). A
marcha histórica que antes se desenvolvia de maneira espontânea através de rebeliões, guerras
e conversões religiosas, atualmente se dá de modo tecnocrático, com uma fé inabalável na
intervenção estatal e no controle das mídias. Isto posto, não raro encontrar mais defensores do
voto obrigatório que sejam militantes do espectro da esquerda, pois estes acreditam que a
consciência coletiva se construa a partir dos aparatos da democracia de massas.

4.4 Do Terceiro Setor e das Entidades Paraestatais

A doutrina especializada identifica como terceiro setor a composição de entidades


privadas voltadas para o desempenho de atividades de interesse público. A razão de ser desta
classificação104 perpassa pelo reconhecimento do Estado como agente do primeiro setor e do
mercado como segundo setor. Por sua vez, o terceiro setor é um ambiente socioeconômico
normatizado por um regime jurídico híbrido cujas principais caraterísticas são: entidades
paraestatais105 de direito privado, sem fins lucrativos, que desempenham atividades de
interesse público, mediante fomento e controle do Estado. Em relação a essas pessoas
jurídicas de direito privado, tem-se os Serviços Sociais Autônomos (SESC, SESI, SENAI
etc.), Entidades de Apoio, Organizações Sociais, Organizações da Sociedade Civil de Int.
Público, e por fim, as Organizações da Sociedade Civil. Entre as diversas atividades de
desenvolvimento e fortalecimento da cidadania, encontram-se as de amparo aos

104
“Os teóricos da Reforma do Estado incluíram essas entidades no que denominaram de terceiro setor, assim
entendido aquele que é composto por entidades da sociedade civil de fins públicos e não lucrativos; esse
terceiro setor coexiste com o primeiro setor, que é o Estado, e o segundo setor, que é o mercado”. DI PIETRO,
p. 1138.
105
“As entidades paraestatais são definidas como pessoas jurídicas de direito privado, instituídas por
particulares, com ou sem autorização legislativa, para o desempenho de atividades privadas de interesse
público, mediante fomento e controle pelo Estado”. DI PIETRO, p. 1137.
67
hipossuficientes, de qualificação da mão de obra brasileira e, de maneira geral, de assistência
à sociedade.
Por meio de convênios, contratos de gestão, termos de parceria etc. junto ao poder
público, aquelas entidades se vinculam ao Estado para a prática de atividades de caráter
coletivo, dando azo aos chamados direitos de terceira dimensão e, portanto, materializando o
valor da solidariedade. Devido à importância dessas atividades sociais, algumas entidades do
terceiro setor, atendidos os requisitos em lei, podem até ficar imunes a impostos no que se
refere ao seu patrimônio, à renda e à prestação de seus serviços (art. 150, VI, “c”, da CF.).
Ora, não se pode deixar em branco que os próprios partidos políticos também fazem jus a tal
imunidade, embora não faça muito sentido, levando em consideração toda a exposição feita
até aqui. A grei tem se colocado numa superposição normativa dentro do ordenamento
jurídico, indo de encontro com a realidade comunicativa da atualidade, permanecendo
superestimada aos olhos do cidadão médio.
Além da breve apresentação do terceiro setor, importante frisar duas situações: os
serviços sociais autônomos são capazes de arrecadar tributos parafiscais, ou melhor,
contribuições profissionais para o custeio das suas atividades; outrossim, os templos de
qualquer culto também são imunes a impostos. Nesse sentido, no que se refere ao
constrangimento legal que tais pessoas são capazes de realizar e, ainda, de que outras pessoas
são capazes de permanecerem imunes a tais constrangimentos fiscais, pode-se sumariamente
presumir que estas entidades componentes do terceiro setor são agentes transformadores da
realidade social e que, ao revés do voto popular, são capazes de lidar com a velocidade do
mundo contemporâneo, merecendo amplo reconhecimento da Constituição em vigor.
Mais conhecidas como ONGs na linguagem coloquial, estas pessoas lidam
diariamente com grupos sociais, aglutinam ideias, orientam movimentações de cunho político,
filosófico, social ou religioso. Na contramão dos partidos políticos que se estruturam apenas
com fulcro no aumento de capital político (voto popular), as entidades paraestatais agem de
modo mais ideológico, trabalhando sob o binômio identidade-alteridade de maneira mais
autêntica do que a grei tem feito até então.
É possível observar que diversas organizações sociais, atualmente mais identificadas
com o espectro político da esquerda, têm realizado um papel de fomento à cidadania ao lume
do que a Igreja Católica106 fez durante muito tempo e ainda permanece fazendo. O modus

106
Compêndio da Doutrina Social da Igreja, organizado pelo Bispo de Roma, João Paulo II. DISPONÍVEL EM:
https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_c
ompendio-dott-soc_po.html#_ftnref5. ACESSO EM: 8 out. 2022.
68
operandi é o mesmo. A substituição gradativa de uma hegemonia de pensamento fez com que
múltiplas formas de contato com as pessoas também surgissem. Essa adaptação das
instituições assistenciais pode ser traduzida em razão de um descolamento do paradigma
cristão como forma de justificação para o comportamento individual e a atuação estatal. Nesse
ponto, o próprio iluminismo, muito criticado pelas “ondas identitárias”, também representa
um marco inicial da secularização da assistência social.
O ponto alto da reflexão acerca da atuação de diversas instituições de caridade ou de
assistência social, independentemente se ligadas à Santa Igreja ou a movimentos sociais
secularizados, está na percepção do mundo como vontade e como representação. A
globalização dos produtos e serviços, o armazenamento de dados, o fluxo de informações, a
organicidade das sociedades contemporâneas, a coletivização dos direitos fundamentais, a
força normativa das Constituições, o direito de ação, entre outros, são sintomas de um
“mundo da vida” mais interconectado. Aldeia Global. Nesse sentido, a representação política,
baseada nos postulados iluministas, configura-se como uma espécie de representação arcaica
frente às mudanças retro mencionadas, ainda mais quando esta se trata de um fruto do sistema
compulsório de votação.
Ora, quando um cidadão qualquer escolhe seu hipotético representante, nada garante
que este será o representante daquele, enquanto a apuração de votos não for liquidada. Se o
candidato não for eleito, aquele eleitor então não terá representantes durante o mandato que se
segue? Claro que não. Por outro lado, se eleito, tal mandatário será representante das ideias do
cidadão que o elegeu? Em partes, sim. Sem prejuízos, a independência do político eleito é
amplamente reconhecida pela doutrina especializada e os seus compromissos não hão de ser
sinalagmáticos com o eleitorado que o elegeu. Desta forma, a título de reforço, a
representação política nada mais poderia ser do que uma ficção jurídica cujo escopo máximo
é a governabilidade da cúpula diretiva a fim de dar eficiência às decisões políticas. Em
contrapartida, a vida humana caminha para além das reuniões do Executivo e das assembleias
ordinárias ou extraordinárias do Legislativo, facultando a cada indivíduo se fazer representar a
partir de diversas ferramentas da democracia direta.
O mundo como representação e vontade, teorizado pelo filósofo A. Schopenhauer,
implica nesta teoria afirmar que a representação: o caminho do entendimento que se inicia no
objeto até o sujeito; e a vontade: iniciado no sujeito até a objetificação das coisas, são
estruturas do pensamento contemporâneo que de maneira inevitável tendem a revogar a
superposição e a superestima da grei, colocando o homem, junto com as suas múltiplas

69
organizações sociais, no centro do desenvolvimento democrático e, por consequência, da
cidadania. Ainda que a representação de si se dê em sua grande maioria das vezes por meio do
consumismo, essa nova maneira de existir desperta uma contradição sistêmica entre o “mundo
político” e o “mundo da vida”, porquanto que na democracia indireta a ideia central passa
pela admissão de uma delegação popular a determinados mandatários, ao passo que diante do
pluralismo político da atualidade, esta maneira de delegação da vontade a um grupo pequeno
de cidadãos também tem se mostrado contramajoritário107, além de engessado diante das
mudanças sociais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante a marcha que se desenvolveu ao longo deste trabalho de conclusão, notou-se


que a representação política lato sensu permite o infeliz surgimento da dicotomia, tão bem
desenhada por J. Saramago em Ensaio sobre a Lucidez, entre os interesses reais do povo e do
corpo político que exsurge a cada eleição. Esse mecanismo fictício de governo, aprimorado no
período das luzes, aqui no Brasil, também tem se norteado pelo privilégio da democracia
indireta sobre os instrumentos da democracia direta, embora o regime constitucional em vigor
seja misto, produzindo uma questão problemática com relação à qualidade da cidadania
(idiotismo) presente no Estado brasileiro, uma vez que a menoridade kantiana permanece
difundida na consciência coletiva dos indivíduos e a renda dessas pessoas não se vê
distribuída por meio de políticas públicas emancipadoras. Paternalismo.
A democracia no Brasil, como foi demonstrada mais atrás, encontra-se sobretudo
centralizada nas eleições, no voto e na própria – representação – ao revés da dinâmica
comunicativa presente nas democracias deliberativas do hemisfério norte. Em razão disso,
para que se responda neste momento acerca do porquê o voto ainda permanecer obrigatório,
deve-se ter em mente que um dos pilares da representação apócrifa do país seja o próprio voto
compulsório. Nesse sentido, a fim de que se entendesse a obrigatoriedade do voto,
necessariamente, dever-se-ia também examiná-lo como um ato composto de duas fases, pois,
além da íntima conexão com a representação, caracteriza-se como voto-função tendo por mote
o comparecimento do eleitorado em prejuízo à manifestação de vontade.

107
“A decisão com escolha de opções fundamentais se transferiu em larga parte dos governantes tradicionais
para o círculo menor e restrito de técnicos, cuja participação privilegiada acaba monopolizando o processo
decisório do mesmo passo que lhes confere o título adequado de tecnocratas”. BONAVIDES, p. 274.
70
A natureza jurídica do voto, atualmente descrita pela maioria da doutrina
especializada como ato simples, tem prejudicado a percepção do cidadão – fata morgana – em
relação aos mecanismos de dominação nos quais aquele se encontra vinculado. Ademais, essa
maneira monofásica acerca da compreensão do voto tem eliminado a possibilidade de
melhores análises quanto aos vícios do sistema eleitoral, impedindo, por exemplo, a captura
dos “votos inválidos” como ferramentas que, por sua vez, também dissimulam a vontade
popular, escondendo assim o grande objetivo da grei: o comparecimento às urnas e a
consequente legitimação do corpo político, facultando ao eleitorado uma falsa sensação de
manifestação, enquanto, em verdade, trata-se de atos jurídicos sem eficácia nenhuma.
Além disso, a visão monofásica não se mostra capaz de nos dizer categoricamente se o
ato jurídico por meio do qual se manifesta o direito de sufrágio se trata de um direito subjetivo
público ou de uma função social. Na verdade, esse é um dilema do sistema compulsório. Se
seria direito ou dever. Isto posto, desenvolveu-se no capítulo dois uma proposta bifásica
acerca do voto obrigatório: sendo a primeira etapa o comparecimento obrigatório e a segunda
etapa a manifestação obrigatória. Por outro lado, em relação ao voto facultativo, observou-se
que não há dificuldades em entendê-lo como direito subjetivo, uma vez que se trata de
autêntico ato monofásico cujo escopo se resume a uma etapa: a manifestação de vontade do
eleitor.
Ao mascarar a percepção dos vícios do sistema eleitoral por meio dos votos apolíticos
(em branco e nulificados), bem como impedir que se chegue a um consenso acerca da sua
natureza jurídica, o voto obrigatório, hodiernamente visto como ato monofásico, deveria então
ser reconfigurado pelo egresso a fim de que se explicasse o que seria a representação apócrifa
e o seu fulcro: o comparecimento do eleitorado brasileiro nos dias de eleição. Não obstante, o
voto, entendido como ato composto, implica em uma melhor compreensão de diversas normas
do direito eleitoral como modais de dominação política por parte dos partidos políticos. Assim
sendo, torna-se possível constatar, de maneira clara, a prima preocupação daquelas regras com
a incolumidade das eleições em detrimento da efetiva participação popular.
Tanto o é assim, como retro exposto, que fora apresentado no corpo deste trabalho
exemplos como os casos dos anarquistas e dos presos definitivos. Ambos são, cada um à sua
maneira, vilipendiados em razão do foco do escrutínio brasileiro se dar no comparecimento do
eleitor ao invés da manifestação de vontade. Ademais, através dos esclarecimentos acerca da
natureza jurídica dos votos apolíticos e da justificação, assim como da multa eleitoral,
concluiu-se que o sistema compulsório, de fato, busca privilegiar o comparecimento do

71
eleitorado a fim de tão somente garantir legitimidade ao corpo político, embora as razões
históricas que justificassem o voto obrigatório, em 1932, não mais subsistam.
À luz do raciocínio citadino, fora dito que para se compreender a representação
apócrifa, dever-se-ia anteriormente esclarecer o porquê de o voto ser obrigatório. Outrossim,
afirmou-se que para entender o voto obrigatório também se deveria de antemão classificá-lo
como ato composto por duas fases, sem o qual o dilema permaneceria: tratar-se-ia de direito
ou função social. Pois bem, nessa esteira, pretende-se firmar um entendimento acerca do que
seria a representação apócrifa em vigor no Brasil. Toda a estrutura partidária do país pode ser
resumida em dois sintomas: a superestrutura normativa e a superestima social dos partidos
políticos. De um lado existe um complexo jurídico que os favorecem. De outro, há uma
relação umbilical da grei junto aos órgãos e pessoas jurídicas do Estado.
Dentro do diagnóstico traçado, o qual se observa através dos veículos de comunicação,
assim como nos livros especializados, a representação apócrifa se trata de um fenômeno que
se encontra sustentado em um tripé normativo constituído: pela cidadania jurídica
(alistamento obrigatório), pela primazia da representação indireta sobre a direta, como
também pelo próprio voto compulsório. Ambos tem permitido a grei estabelecer um
movimento centrípeto cujo poder social se perfaz depositado nas entranhas dos partidos
políticos, dando azo às múltiplas formas de corrupção estatal, pois as pessoas em diálogo com
a Administração Pública lato sensu necessariamente se veem compelidas a manter um
“trânsito positivo” com a grei, ferindo de morte a famigerada impessoalidade do Estado.
Tendo em vista essa maneira singular de representação política, presente no Brasil
desde 1932, quando então o voto se tornara comando compulsório sobre os cidadãos jurídicos
(corpo eleitoral), chegou-se a dois grupos distintos de representação política presente na
democracia indireta: o primeiro, fruto do voto obrigatório, trata-se de uma representação forte
caracterizada pela primazia: da teoria da duplicidade; dos interesses do corpo político sobre os
anseios populares; da própria representação indireta sobre os institutos da democracia direta;
do voto enquanto função social do eleitorado; do liberalismo e da soberania nacional; e, por
fim, da razão instrumental dos iluministas.
De maneira mais branda, o segundo grupo de representação política, fruto do voto
facultativo, poderia ser traduzido na primazia: de uma teoria da identidade mitigada; dos
interesses do povo, podendo também ser chamada de representação autêntica, uma vez que
privilegia os instrumentos da democracia direta em oposição à representação apócrifa; esta
representatividade, presente em países desenvolvidos, diferentemente da primeira em vigor no

72
Brasil, perfaz-se no zelo institucional com a democracia deliberativa, com a soberania popular
e tem se sustentado de maneira teórica na razão comunicativa.
O Brasil ao permanecer ancorado na sistemática burguesa dos séculos passados, isto é,
nos ideais da soberania nacional, no afastamento dos concidadãos dos debates que se seguem
após as eleições, preso no sentido de sufrágio “apoio” (comparecimento) ao invés dos votos
“oferendas” (manifestação de vontade) a candidatos compromissados com o país, e não com
assuntos exclusivamente partidários, continuará a realizar na prática o escopo normativo da
grei, ou seja, as eleições permanecerão centralizadas no comparecimento do eleitorado e este,
por sua vez, se verá diante de um compromisso firmado, contra a sua vontade, por meio do
voto-função, afinal, assim, encontra-se programado o funcionamento da representação
apócrifa.
Essa maneira como a máquina pública tem funcionado, como visto no capítulo de
encerramento, mostra-se totalmente arcaica aos dias de hoje. A representação política que se
gestou a partir dos excertos iluministas, com fulcro na governabilidade, postulava que havia
pessoas mais gabaritadas do que outras para administrar o Estado Nacional. Por meio do voto
político, os populares então seriam convidados a eleger os “iluminados” da sociedade
estamental, pois a estes cabiam dizer e executar os propósitos da nação sobre os demais. Com
as transformações sociais ocorridas nos séculos XIX e XX, bem como as sucessivas Guerras
Mundiais, chegou-se à conclusão de que a democracia não seria mais um regime
predominantemente liberal nem socialista, mas, sim, comunicativo.
Diante deste novel cenário, a representação apócrifa, fruto do voto obrigatório, ainda
em vigor no país, tem se revelado flagrantemente ultrapassada. A superposição normativa e a
superestima social dos partidos políticos, por conseguinte, deveriam dar lugar ao exercício
dos direitos de terceira dimensão, à efetividade da sociedade aberta dos intérpretes da
Constituição, às atividades das entidades paraestatais do terceiro setor, às ferramentas
jurídicas da democracia direta, consubstanciadas no direito de ação, à profusão da Era dos
Estatutos Jurídicos e ao latente protagonismo das minorias sociais. Concluiu-se, portanto, que
essas novas formas de cultivo da democracia condicionam o voto popular a uma autêntica
posição de desfecho dos acontecimentos democráticos do país, ou seja, o voto deixa de ser o
marco inicial da vida democrática do país para se tornar aquilo que deveria ser: o desfecho
diante das atividades democráticas vivenciadas durante o interregno entre cada período
eletivo.

73
Além dos fenômenos jurídicos acima, os quais indicam uma notória necessidade de se
privilegiar a democracia direta sobre indireta, destaca-se o direito ao peticionamento, instituto
jurídico que pode ser efetivado a qualquer momento pelo nacional, sob a forma de controle
permanente, na contramão do voto que se dá a cada dois anos no Brasil. Esse instrumento de
posse do indivíduo permite ao administrado que este chame a atenção do Poder Público
acerca de um problema do cotidiano social. Trata-se de direito fundamental e, portanto, de
cláusula pétrea inscrita no artigo 5º da Constituição Federal, possibilitando ao cidadão um
direito de resposta acerca de uma questão levada às autoridades públicas.
Sem embargos, a razão de ser deste trabalho de conclusão nasceu a partir do interesse
do egresso em aprimorar o sistema eleitoral a fim de que se pudesse contribuir de fato com a
efetivação da justiça social, conforme vontade constitucional, assim como se deu a partir de
uma percepção ímpar em relação ao protagonismo dos partidos políticos sobre a máquina
pública. Nesse sentido, considerando a representação apócrifa em vigor, buscou-se expor a
dominação racional operacionalizada por meio do voto obrigatório, bem como se quis
demonstrar que esta obrigatoriedade do voto não seria mais necessária, quando se leva em
consideração as novas ondas da democracia deliberativa, as quais inevitavelmente relegam o
voto à condição de encerramento da atividade democrática a cada eleição.
A atual democracia deliberativa, como foi discriminada durante todo capítulo três, não
se perfaz mais na diminuição filosófica do Estado – Liberalismo – nem se reduz aos discursos
do Socialismo para que se aumente os aparatos do Estado. No entanto, de modo integrativo, a
democracia hodierna tem se realizado por meio do discurso, isto é, como uma espécie de
interseção entre os valores da liberdade e da igualdade, antes dissociado através dos espectros
políticos da direita e da esquerda. Janela de Overton. Isto posto, o protagonismo dos veículos
de comunicação dentro desse novo contexto político se trata de uma realidade. A antiga
“vontade geral” gradativamente foi sendo substituída pelo crescimento da chamada “opinião
pública”. Não se acredita mais na formação de uma vontade coletiva autêntica, mas, sim, em
pressões por parte de grupos de interesses junto ao Estado e à própria imprensa.
De acordo com a teoria de Habermas, através da passagem da democracia liberal até a
republicana, chegando então à democracia deliberativa de hoje em dia, ou ainda, por meio da
evolução histórica do conjunto dos direitos fundamentais, iniciado com os direitos de primeira
geração até a chegada nos direitos de terceira dimensão, constatou-se que a representação
política, operada por meio da delegação de consentimento, caducou frente às mudanças
estruturais da contemporaneidade, dando lugar às múltiplas representações de si do homem

74
enquanto ser individual. Nesse ritmo, o voto popular não se mostra capaz de lidar com as
mudanças diárias que se operam constantemente no seio da sociedade. Entretanto, de maneira
singular, as representações de si acontecem a todo instante, seja através do consumismo
gestado pelo capitalismo, seja por meio das novas formas de exercício da democracia direta.
A representação política, consubstanciada na razão instrumental e no “mundo do
trabalho”, reduziu o cidadão jurídico à condição de legitimador das eleições, enquanto a
democracia deliberativa, baseada na razão comunicativa, tem buscado realizar um movimento
centrífugo, na medida que distribui os poderes, as forças, as vontades e as representações de si
do ser humano. Em razão dessa mudança de paradigma, o voto facultativo se mostrou
plenamente coerente com a atual realidade discursiva, pois o seu foco se dá na manifestação
de vontade do eleitor e, como se sabe, a vontade faz parte da construção subjetiva do
indivíduo à luz das suas representações. Mudar a Constituição Federal a fim de tornar o voto
facultativo seria colocar o eleitor no centro dos debates, isto é, no protagonismo do cenário
democrático ao revés do que se opera hoje em dia em favor dos Partidos Políticos.
Ao lume do que fora dito acerca da justificação eleitoral, o voto facultativo de fato
permitiria a materialização da objeção de consciência em favor dos eleitores.
Hipoteticamente, a partir de uma decisão de foto íntimo, qualquer cidadão pode não se ver
representado pelos candidatos que se colocarem à disposição em determinado pleito eletivo.
Ora, deixar de votar em determinada eleição não quer dizer que o eleitor nunca mais votará
em pleito algum. Da forma como se encontra positivada a justificativa eleitoral, apenas tem
prestado para o afastamento da multa de eleitores que se encontrarem afastados de seu
domicílio eleitoral de origem. Ademais, de maneira ilícita, muitos eleitores se utilizam do
instrumento para deixarem de votar e, assim, concretizar a sua escusa de consciência de
maneira não declarada.
De modo contrário, não sendo possível a mudança da Carta Política por meio do poder
reformador, postula-se de maneira subsidiária em favor da positivação do instituto de origem
norte-americana chamado recall. Segundo Bonavides (2003, p. 175), “É a forma de
revogação individual. Capacita o eleitorado a destituir funcionários, cujo comportamento,
por qualquer motivo, não lhe esteja agradando”. Ora, o voto facultativo certamente seria
capaz de operar uma reforma gigantesca em relação à superposição normativa da grei, porém,
não sendo o caso de tal mudança legislativa, dever-se-ia optar pelo recall a fim de que se
corrija a desigualdade do pleito eleitoral brasileiro, pois sem esta ferramenta política, o poder
social resta por completo nas mãos dos partidos políticos.

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O recall se trata de um instrumento político de posse do cidadão para que este,
insatisfeito com promessas descumpridas pelo mandatário, ou ainda, descontente com a
ineficiência do candidato eleito, possa, por meio da aderência de outros cidadãos que assim
chegarem a mesma conclusão, revogar a procuração conferida ao político antes mesmo do
término do mandato. Nesse sentido, tratar-se-ia de mais uma ferramenta da democracia direta,
como também de um remédio constitucional para pôr termo aos problemas institucionais do
país. Tanto o voto facultativo quanto o recall podem funcionar sem maiores ressalvas como
mecanismos de fomento à democracia direta à luz da razão comunicativa do mundo pós-
moderno.
Ex Positis, espera-se que através deste trabalho de conclusão de curso (TCC), referente
à graduação de Bacharel em Direito, alguma contribuição possa ter sido realizada à
comunidade jurídica a fim de que se some essas ideias aos debates em torno do sistema
eleitoral, bem como da própria concepção em torno da justiça social. Outrossim, de modo
residual, que ao menos a centelha reflexiva acerca do voto facultativo possa vir a iluminar a
mente dos mais capacitados para que o sistema compulsório seja finalmente despojado do
ordenamento jurídico brasileiro, porquanto sem este avanço da norma constitucional, não se
poderá engendrar nenhuma espécie de reforma política legítima. C’est fini la utopia.

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