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Olhos de Luiza

Luiza estava atrasada. Toda terça era a mesma coisa, recebia a visita de Carlos, seu
amigo do grupo de estudos nas noites de segunda, perdia a hora na manhã seguinte com
mais frequência do que gostaria de admitir. Saía com uma torrada na boca, calçando os
sapatos enquanto descia as escadas do seu apartamento e pensando na noite anterior,
estudar não era exatamente a ocupação dos dois.

Trabalhava em um consultório dentário. Não tinha a menor intenção de ser dentista ou


algo parecido, mas gostava de trabalhar lá pelas vidraças. A dentista preferia ambientes
com bastante luz natural, o que resultou em grandes janelas, voltadas para uma
movimentada avenida, onde dava para ver muita vida acontecendo. Era isso sua maior
paixão, observar a vida acontecendo, ali, na sua frente, ao vivo.

Isso às vezes lhe gerava alguns problemas, como a vez que se concentrou tanto em olhar
um casal visivelmente apaixonado, dando beijos para lá de excitantes, bem na esquina,
sem qualquer preocupação com os olhares daqueles que ali passavam, que quando
percebeu, havia colocado o sugador no nariz do paciente. Uma experiência nada
agradável, pior do que a advertência, só o sermão e a vergonha embutidos junto.

Uma vez ela afirmou com certeza absoluta que a senhora do outro lado da rua estava
planejando um assalto à casa lotérica que ficava ao lado do consultório. Tudo isso
porque observou que a senhora ficava toda terça e quinta, às 16 horas, por um tempo
considerável, parada, observando o movimento e vez ou outra fazia uma ligação. Gerou
tanta curiosidade que a secretária da advogada do andar de cima foi falar com a senhora,
o que terminou em muitas gargalhadas de todos os envolvidos, já que a suspeita havia
afirmado que era mãe de um funcionário da lotérica, fazia hidroginástica naqueles dias
da semana e ficava ali, esperando o filho lhe dar uma carona.

Em casa, não havia vidraças ou sacada, então usava a imaginação para criar os mais
variados cenários para seus vizinhos. Imaginava seus segredos mais íntimos, se sentia
mais humana quando fazia isso. A vizinha do lado, por exemplo, gostava de ouvir
música clássica sempre aos sábados pela manhã, Luiza se perguntava por que apenas
nesse dia específico? Talvez dias de semana não fossem dignos de sinfonias? Quem
sabe não seria nesse dia e horário que ela recebia alguma visita em especial ou quem
sabe ainda ela guardasse um segredo obscuro e o som da música fosse apenas para
ofuscar o barulho de seja lá o que ela estivesse fazendo, tantas possibilidades, Luiza se
perdia pensando nas mais variadas situações que poderiam ocorrer.

O casal do primeiro andar então, era o que mais lhe intrigava e levava horas a fio de sua
imaginação. Ambos eram carrancudos, não importava que dia fosse, respondiam um
bom dia com voz e olhar de quem nem sequer sabe o que isso significa. Luiza ficava
muito curiosa para entender de onde vinha tanta amargura, ambos saíam para trabalhar
cedo, vez ou outra se esbarravam com Luiza nas escadas. Seria o trabalho desses dois
tão miserável que lhes tirou o gosto da vida? Teriam eles tido um filho que veio a
falecer? Nunca vi eles com crianças, refletia, talvez tenham alguma doença crônica, que
gere dores tão intensas que sorrir não seja uma opção, pensava. Tentou por inúmeras
vezes observar mais para decifrar o mistério, mas nada conseguiu além de silêncio e
vazio.

As pessoas não entendiam a sua curiosidade pela vida e a forma como ela se desenrola,
para a grande maioria de seus ouvintes, ela era uma mera fofoqueira e sem afazeres.
Depois de vários episódios um tanto quanto desastrosos, como o da possível senhora
assaltante, Luiza resolveu não dividir mais com ninguém suas teorias e observações,
isso já tinha lhe causado muitos problemas. Com o tempo foi deixando de olhar pelas
vidraças todos os dias. Quando percebeu já fazia uma semana que perdia o horário que
os vira-latas do Sr. Luiz do prédio da rua de trás passavam passeando e fazendo aquela
algazarra. Já não via o bonitão do consultório médico da sala 25 saindo pontualmente às
15h30min toda sexta-feira e nem dava mais tchau da janela para a dona Rosa que ia à
padaria sempre no final da tarde comprar pão para o café da manhã do dia seguinte,
“detesto ir à padaria de manhã, muito lotada”, dizia à Luiza sempre que a encontrava.

Em casa, perdeu o interesse pelos misteriosos vizinhos do primeiro andar e até deixou
de observar os que haviam acabado de se mudar no andar de baixo. A música clássica
aos sábados já não lhe causava questionamentos e o latido do cachorro do bloco vizinho
não lhe despertava mais a curiosidade em saber se era um problema respiratório ou só
um latido esquisito mesmo. Luiza se sentia estranha, talvez sua observação fosse apenas
fofoca revestida de interesse pela vida acontecendo mesmo, deixou de olhar para fora, e
também não quis mais olhar para dentro.

Seguiram semanas assim, tudo parecia cinza, a luminosidade das vidraças lhe causava
incômodo aos olhos, resolveu se sentar de costas para as janelas e não olhar mais para
trás. Suposições sobre acontecimentos aleatórios já não lhe causavam interesse, parecia
apenas algo que não valia a pena ser observado ou ouvido.

E assim foi, até o dia em que um alarme ensurdecedor disparou e todos correram para a
vidraça ver o que estava acontecendo. Policiais chegavam de todos os lados. “A lotérica
foi assaltada”, gritou Marisa, a recepcionista. “Um acontecimento e tanto, vários
assaltantes, levaram todo o dinheiro arrecadado na semana, chegaram pouco antes do
horário do carro forte, até parece àqueles assaltos bem planejados...” continuou
falando.

Luiza, como se saísse de um transe, não pôde deixar de observar todos os detalhes do
que estava acontecendo, olhou para os policiais, o dono da lotérica gritando
desesperadamente, a dona Júlia, funcionária antiga da loja ao lado falando tudo que viu,
Sr. Roberto, o zelador do prédio dizendo ter visto algum dos assaltantes sem máscara.
Todos que passavam pela calçada paravam para ver o que estava acontecendo, afinal,
não era todo dia que aglomerações desse porte aconteciam.
De repente, tudo começou a ficar interessante novamente, observar cada detalhe, nas
suas menores minúcias, parecia ser o que ela mais queria fazer. Lembrou-se de todas as
situações em que riram dela e zombaram de suas observações. Decidiu analisar a cena
do crime, ao seu modo, mas em silêncio, guardando informações preciosas somente
para si.

Nesse instante, seus olhos alcançaram o outro lado da rua, e cruzaram diretamente com
os da senhora que tanto havia observado, semanas atrás. Parada, no mesmo lugar de
sempre, olhou para Luiza e sorriu, um sorriso meio maroto, com uma espécie de
satisfação, e lhe deu uma piscadela. Luiza congelou, um pouco por vergonha ao ver que
também estava sendo observada e um pouco porque achou aquele ato um tanto quanto
estranho. Afastou-se das janelas, foi tirar o raio X do paciente que já havia enjoado do
grande show lá embaixo.

Aquele gesto, daquela senhora, que suspeito... O que ela quis dizer com aquele olhar? E
aquela piscadela? O que foi aquilo? Luiza ficou o atendimento inteiro intrigada com o
que havia visto, praticamente uma obsessão. Decidiu que não falaria sobre o assunto
com ninguém mais, suas aventuras seriam somente suas, seu olhar seria sua bússola,
quem sabe não começava a escrever um livro de contos, pensou. Quando percebeu
estava sentada voltada para as vidraças e toda aquela luminosidade refletia em seus
olhos como uma espécie de alimento para sua alma. Luiza voltou a brilhar, por fora, e
por dentro.

PS: O assalto aconteceu em uma quinta-feira, às 16 horas. Maria, uma antiga cliente da
lotérica que vai sempre no mesmo dia e horário jogar o jogo da quina, disse que um dos
assaltantes tinha um corpo bastante parecido com o de uma mulher, mais
especificamente uma senhora, pois andava mais devagar e um pouco curvada. Ninguém
acreditou, acharam bem absurda a ideia de que uma senhorinha seria uma assaltante,
mas ela, jura que sabe bem o que viu. Fim.

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