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Ensaio

Que valores nos unem? A participação dos cidadãos no projeto europeu

Afinal, o que nos une? Há quem diga que a UE é sobretudo uma comunidade de
valores. Com esta reflexão, iniciamos uma série de textos que, durante quatro meses,
procuram dar pistas sobre o futuro da Europa.

Isabel Baltazar
2 de Janeiro de 2022

“As pessoas têm de estar no centro de todas as nossas políticas. Por isso, desejo
que todos os europeus contribuam ativamente para a Conferência sobre o Futuro da
Europa e desempenhem um papel de liderança na definição das prioridades da União
Europeia. Apenas em conjunto conseguiremos construir a nossa União de amanhã.”

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia

A reflexão sobre A Europa Que Queremos vem responder à Conferência sobre o


Futuro da Europa preparada durante a presidência portuguesa da União Europeia, no
primeiro semestre de 2021, tendo como objetivo mobilizar a participação democrática
dos cidadãos, que são convidados a exercerem uma cidadania ativa sobre o que desejam
para os destinos da Europa, através de propostas concretas apresentadas em debates com
os decisores europeus, numa política de aproximação e de diálogo com os cidadãos. Esta
conferência está previsto prolongar-se até à Primavera de 2022 e envolve as três
instituições da União Europeia (UE): o Conselho, o Parlamento e a Comissão, numa
congregação de esforços, para promoverem um espaço de debate com os cidadãos
europeus, para os envolver na resposta aos desafios da União, discutir os atuais problemas
e estabelecer as prioridades. O conselho executivo desta iniciativa é copresidido por
membros destas três instituições, a saber: o secretário de Estado Gasper Dovzan do
Conselho, o eurodeputado Guy Verhofstadt e a vice-presidente da Comissão, Dubravka
Šuica.
De facto, pela primeira vez, os cidadãos da UE estão a ser convidados a
pronunciarem-se sobre a Europa que querem, através de uma plataforma digital e eventos
presenciais, à distância e híbridos. Na plataforma digital interativa multilingue, os
cidadãos partilham online as suas ideias, e também nos eventos online, presenciais ou
híbridos, bem como nos Painéis de Cidadãos Europeus, através de fóruns de debate e
apresentação e votação de propostas e plenários da conferência, debatidas na presença de
108 deputados do Parlamento Europeu, 54 do Conselho, três da Comissão e 108 de todos
os parlamentos nacionais. Este exercício começou logo no primeiro Painel de Cidadãos,
em setembro de 2021, em que estiveram presentes europeus dos 27 países, de todas as
idades e origens, convidados a apresentarem a sua visão da UE e a discutirem o presente
e o futuro da União. Participam também as autoridades europeias, nacionais e locais, e
toda a sociedade civil, podendo, para isso, organizar eventos ou participar com propostas
sobre o Futuro da Europa. Há nove tópicos principais: alterações climáticas/ambientais;
saúde; economia/justiça nacional/emprego; União Europeia no mundo;
valores/direitos/Estado de direito/segurança; transformação digital; democracia europeia;
migração; educação/cultura/juventude/desporto. A estes podem ser acrescentados outros,
ou seja, trata-se de um debate sobre o futuro do projeto europeu no seu todo e um
verdadeiro exercício de democracia europeia participativa.
Os valores europeus — democracia, direitos, Estado de direito, segurança, entre
outros — estão contidos na Declaração Comum sobre a Conferência sobre o Futuro da
Europa, cujo título, “Diálogo com os Cidadãos pela Democracia”, define o seu âmbito e
objetivo, quando acrescenta: “Construir uma Europa mais resiliente.” Podemos ler neste
documento que instituiu a CoFoE: “Há 70 anos, a Declaração Schuman lançou as bases
da nossa União Europeia. Deu início a um projeto político único que trouxe paz e
prosperidade e melhorou a vida de todos os cidadãos europeus. Importa agora refletirmos
sobre a União, os desafios que enfrentamos e o futuro que queremos construir em
conjunto, com o objetivo de reforçar a solidariedade europeia”, ficando claro que se
pretende uma “Europa centrada nos cidadãos”, num processo “aberto, inclusivo e
transparente”. Reflita-se também como as crises continuam a ser o motor da construção
europeia: “Desde a sua criação, a União Europeia tem ultrapassado múltiplos desafios.
Com a pandemia de covid-19, o modelo ímpar da União Europeia foi posto em causa
como nunca antes. A Europa pode e deve também retirar ensinamentos destas crises,
envolvendo estreitamente os cidadãos e as comunidades.” Este compromisso de envolver
os cidadãos é explícito, quando lemos: “Nós, presidentes do Parlamento Europeu, do
Conselho e da Comissão Europeia, queremos que os cidadãos se juntem a este diálogo e
tenham uma palavra a dizer sobre o futuro da Europa. Comprometemo-nos, em conjunto,
a ouvir os europeus e a dar seguimento às recomendações formuladas pela conferência,
no pleno respeito das nossas competências e dos princípios da subsidiariedade e da
proporcionalidade consagrados nos tratados europeus. Aproveitaremos a oportunidade
para sustentar a legitimidade democrática e o funcionamento do projeto europeu, bem
como para congregar o apoio dos cidadãos da UE aos nossos objetivos e valores comuns,
dando-lhes mais oportunidades para se exprimirem.”
Por último, refira-se que a conferência, a sua governação e os eventos organizados
no seu quadro baseiam-se também nos valores da UE consagrados nos tratados da UE e
na Carta Europeia dos Direitos Fundamentais. Como sinal de esperança fica o aumento
da afluência às urnas nas eleições europeias de 2019, que poderá refletir o interesse
crescente dos cidadãos europeus em desempenhar um papel mais ativo na decisão do
futuro da União e das suas políticas. O futuro o dirá!
Outro marco importante desta Nova Europa dos Cidadãos que se pretende foi o
discurso de 2021 sobre o estado da União proferido pela presidente Ursula von der Leyen,
em Estrasburgo, a 15 de setembro de 2021, que pretende “fortalecer a alma da nossa
União”. É também um regresso aos ideais dos fundadores da Europa, podendo ler-se:
“Robert Schuman afirmou, em tempos: a Europa necessita de uma alma, de um ideal, e
da vontade política para servir esse ideal. A Europa deu vida a estas palavras nos últimos
12 meses.”
Num discurso assertivo, fica a convicção de que as crises são oportunidades de
crescimento, e de que “o nosso espírito — a nossa alma — só revela verdadeiramente o
seu esplendor quando é posto à prova”, numa Europa unida na adversidade, partilhando
e aprofundando os valores europeus e dando alma a essa Europa, dando a voz aos
cidadãos, envolvendo particularmente os jovens, num futuro Programa Alma. Contudo,
se queremos efetivamente moldar a nossa União à sua imagem, os jovens devem poder
moldar, eles próprios, o futuro da Europa. A nossa União precisa de uma alma e de uma
visão de futuro com que os jovens se identifiquem”. De facto, e citando Jacques Delors:
“Como poderemos construir a Europa, se os jovens não a virem como um projeto coletivo
e uma representação do seu próprio futuro?”
Trata-se de construir uma Europa alicerçada na democracia e nos valores comuns,
alicerces europeus dos “fundadores após a II Guerra Mundial”, valores que “derrubaram
a cortina de ferro, valores que uniram os defensores da liberdade há mais de 30 anos” pela
democracia, liberdade de eleger o próprio governo, o Estado de direito, a igualdade de
todos perante a lei, liberdade de expressão, por todos os “extraordinários valores
europeus”, na expressão do antigo Presidente da República Checa Vaclav Havel. Como
reconhece Ursula von der Leyen, estes valores são o fruto da herança cultural, religiosa e
humanista da Europa. Fazem parte da nossa alma, são uma parte essencial daquilo que
somos hoje, e estão consagrados nos tratados europeus, que os Estados se
comprometeram a respeitar e se torna necessário aprofundar numa União com alma. É
este o futuro para a Europa.
Podemos perguntar-nos se estamos, de facto, perante uma genuína originalidade
no processo de construção europeia, ou antes no regresso à visão dos fundadores do
projeto europeu, muito particularmente dos pais fundadores, e também das grandes
figuras europeias, que deixaram uma herança para o futuro da construção europeia. Foi
um dos seus pais fundadores, Jean Monnet, a reconhecer a fragilidade desta Europa: “A
Europa jamais existiu. Não é a adição de soberanias reunidas em conselhos que cria uma
entidade. É preciso criar verdadeiramente a Europa, é preciso que esta se manifeste face
a si própria e face à opinião americana e que ganhe confiança no seu próprio futuro.” Ele
próprio conta nas suas Memórias as dificuldades sentidas para construir a Europa, uma
“Europa à procura de si mesma”.
A Declaração Schuman de 9 de maio ia nesse sentido, como observou Jean
Monnet: “A paz mundial não poderá ser salvaguarda sem esforços criadores à medida dos
perigos que a ameaçam. O contributo que uma Europa organizada e viva pode dar à
civilização é indispensável à manutenção de relações pacíficas.” Em tantas versões do
documento referido, esta introdução subsistiu sem alterações. A Europa deveria ser
organizada numa base federal, mesmo que alcançada inicialmente, apenas, na vertente
económica. Os objetivos e o método da Comunidade Europeia estavam lançados. Agora
só seria necessário avançar: “A França agiu e as consequências da sua ação podem ser
imensas. Esperamos que o sejam. A França agiu essencialmente pela paz. Para que a paz
possa verdadeiramente ter a sua oportunidade, é preciso, primeiro, que haja uma Europa.”
Também os políticos compreenderam a necessidade de construir uma Europa com
rosto, uma Europa com alma, a substituir aquele “Objeto Político Não Identificado” –
OPNI – que chamaria a atenção de Jacques Delors. Esta nova Europa, que precisa dos
europeus para sair da encruzilhada do momento presente, não é uma Europa de estados
unidos (esta já mostrou estar esgotada). Esta Europa terá de ser uma Europa dos europeus
unidos, tarefa bem mais difícil de concretizar, mas com um destino bem mais promissor.
A Europa encontra-se numa encruzilhada. Que caminho seguir? Uns pensam que
há Europa a mais. Outros consideram que há Europa a menos. Todos procuram um futuro
para a Europa. A construção europeia só poderá continuar se tiver como fundamento uma
ideia, além de todas as concretizações económicas ou jurídicas, que lhe garanta um futuro.
É preciso ter confiança no futuro. As coisas grandes chegam pouco a pouco. Como
reconhecia Jean Monnet, as raízes da comunidade já eram fortes no seu tempo, e
acreditava que um dia os “Estados Unidos da Europa” seriam realidade. Não queria
antecipar o futuro considerando a mudança imprevisível. Vivia no presente: “Amanhã é
outro dia... Bastam as dificuldades de cada dia.” Esse amanhã já chegou e os políticos
perceberam que era preciso “dar uma alma à Europa”!
Tendo como lema “Unida na diversidade”, a Europa pretende agora concretizar a
ideia de uma identidade fundamentada na pluralidade cultural, (re)inventar a Europa,
afinal, uma “utopia interessante”, como reconhece Eduardo Lourenço, embora seja
também a “casa da impotência”. A título de exemplo refiram-se as propostas do cineasta
Wim Wenders e do filósofo György Konrad, que defendem relançar a ideia europeia pela
cultura; o escritor Georgi Gospodinov, que julga necessário reinventar o “desejo de
Europa”; ou o historiador Timothy Garton Ash, que propõe que a nossa nova História
seja tecida com seis fios, cada um deles representando um objetivo europeu comum. Estes
fios são os valores europeus: a paz, a liberdade, a diversidade, o direito, a solidariedade e
a prosperidade. A União Europeia é uma comunidade de valores.
No entanto, além da genuína falta de unidade europeia, o pragmatismo político
tem funcionado, sobretudo em momentos de crise, em que a Europa tem reagido
surpreendentemente com uma certa coerência e união, mas “em termos políticos não há
cabeça para a Europa, porque não há União Europeia nesse sentido”.
Então, “o que é a Europa? Nada!”. A perplexidade da resposta de Eduardo
Lourenço revela a essência do problema europeu: a sua falta de identidade. Como o
resolver? O futuro da União Europeia depende da capacidade de fazer uma Europa com
os europeus, de reforçar a democracia europeia, de travar o aumento do extremismo, a
desinformação e o distanciamento entre as pessoas e os seus representantes eleitos, as
ameaças ao Estado de direito, que está no cerne da visão de uma União de igualdade, de
tolerância e de justiça social. Que Europa queremos? Participemos no debate. Não
cruzemos os braços!
https://www.publico.pt/2022/01/02/mundo/ensaio/valores-unem-participacao-cidadaos-projecto-europeu-1990358

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