Você está na página 1de 400

Bjarke Rink

Desvendando
O Enigma
do Centauro
como a união homem-cavalo acelerou
a história a transformou o mundo

Equus brasil
www.equusbrasil.com.br
Copyright © 2008: Infomappas Editora Ltda
Copyright © do texto: Bjarke Rink
ISBN: 978-85-61-792-00-8
Revisão: Adriana Bonone
Projeto gráfico: Heloisa Campos
Editoração eletrônica: Luanda Esteves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Rink, Bjarke
Desvendando o Enigma do Centauro: como a união homem-cavalo
acelerou a história e transformou o mundo / Bjarke Rink - São Paulo: Equus
Brasil, 2008

1. Cavalos 2. Equitação 3. Equitação - Aspéctos filosóficos


4. Equitação - História 5. Relações homem-animal I. Título

08-06267 CDD-798.2

Índices para catálogos sistemáticos:


1. Cavalos e homens: Relacionamento: Equitação: Esporte 798.2
2. Homens e cavalos Relacionamento: Equitação: Esporte 798.2

Todos os direitos resevados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada
ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico,
por fotocópias, gravações, etc. - nem apropriada ou estocada em sistemas de
bancos de dados sem a expressa autorização da editora.

Uma edição EQUUS BRASIL - www.equusbrasil.com.br


Para Mara,

por mil e uma razões.


APRESENTAÇÃO DO EDITOR

Como quebrar preconceitos e destruir paradigmas centenários

A Equus Brasil decidiu lançar em português, numa tradução do próprio


autor, a obra The Centaur Legacy – Desvendando o Enigma do Centauro.
Trata-se de apresentar ao leitor brasileiro e português a investigação re-
alizada pelo cavaleiro e divulgador científico Bjarke Rink, tão bem recebida
nos Estados Unidos e no Reino Unido. (Veja depoimentos de leitores da edi-
ção inglesa.)
Num fascinante processo historiográfico, o autor nos revela uma antolo-
gia temática, organizada na forma de enredo que, além de bem escrita, bem
argumentada, e bem pesquisada, revela porquê o “Centauro” não foi apenas
mais um ser fabuloso no extenso panteão da mitologia grega. Segundo Bjarke,
o Centauro existe e sempre existiu.
A obra abre as portas para uma nova compreensão do fenômeno equita-
ção que, por muito tempo, foi apresentado de forma errônea ou era simples-
mente desconhecido. O autor, com seu olhar oblíquo, conseguiu enxergar um
leitmotiv na relação simbiótica homem-cavalo que outros autores e pesquisa-
dores, com visão mais retilínea, não haviam descoberto.
Essa obra surge como importante instrumento para o entendimento da
extraordinária evolução da simbiose Homo-Caballus e as múltiplas consequ-
ências que a união da inteligência do homem com a velocidade do cavalo
promoveram no mundo por mais de 6 mil anos.
Bjarke Rink, nascido na Dinamarca e criado no Brasil, nos revelou outro
fato interessante: ele acredita que a diversidade biológica e a riqueza cultural
brasileira foram as principais responsáveis para o desvendar do “enigma do
Centauro”. Mas pensando bem, Bjarke Rink é apenas mais um estrangeiro
a se encantar pelo Brasil – Georg Langsdorff, Charles Darwin e Peter Lund
confessaram o mesmo.
Os fatos e teorias apresentadas nessa obra são muito mais que novos pa-
radigmas – os elos da cadeia causal da equitação foram identificados e estu-
dados um a um por Bjarke Rink, quebrando preconceitos e destruindo dog-
mas centenários. “Não basta explicar, como fizeram os mestres do passado,
é necessário provar utilizando todos os recursos da ciência moderna”. E foi
partindo dessa premissa que Bjarke desenvolveu seu trabalho.

Paulo Junqueira Arantes

5
The Centaur Legacy, a versão em inglês do Desvendando o Enigma do
Centauro foi incluida na coleção Horse Travel Books e lançada em 2005 em
Londres na Royal Geographical Society.

Leia abaixo os primeiros depoimentos sobre esta obra.

“Bjarke nos apresenta um impressionante e completíssimo panorama de


relacionamento do homem com o cavalo, alinhavando tópicos de história,
biomecânica, fisiologia, psicologia, etologia e arte da equitação com
maestria, levando o leitor a uma percepção completamente nova e ao mesmo
tempo extremamente lógica no assunto. Excelente.”
Dra. Adriana Busato - Coordenadora do curso superior de Ciências Equinas
da PUCPR – Brasil.
“...o maior mérito desta obra é tornar o tema “cavalo” não apenas palatável,
como fascinante também para pessoas que nunca chegaram perto de um
cavalo. A ideia de que o homem a cavalo representa o mais elevado estágio
evolutivo de vida no planeta terra é aqui defendida com tamanha maestria e
solidez de argumentos que não fica difícil prever uma nova onda de interesse
por cavalos e equitação em nosso país, depois que este livro tiver sido
assimilado pelo público brasileiro.”
Claudia Leschonski - Médica Veterinária, instrutora de equitação, professora
universitária, consultora e escritora de assuntos equestres. - SP – Brasil.
“The Centaur Legacy é um trabalho de monumental importância. Ninguém
jamais teve a coragem, o conhecimento, a competência e a compreensão
para escrever um livro que quebrasse tantos paradigmas.”
Jeremy James, FRGS, autor de Saddletramp, The Tippling Philosopher,
Vagabond e Dívida de Honra – A História da Liga Internacional para a
Proteção aos Cavalos – Reino Unido.
“The Centaur Legacy já alterou o meu modo de pensar a equitação e mudou
a minha maneira de ensinar. Eu sinto que o livro tem me ajudado a explicar
a equitação e, mais importante, tem ajudado aos cavaleiros fazerem uma
melhor conexão com seus cavalos.”
Robert Jones, diretor da British Horse Society – Londres.
“Imensamente interessante, provocativo e informativo, este impressionante
livro oferece uma nova e frequentemente irreverente visão da interligada
história do homem e do cavalo.”
Caroline Burt, Editora da Allen-Hale Publishing – Londres.

6
“Tive grande prazer em ler este livro. É uma verdadeira obra-prima.
Obrigado por ter contribuído para o mundo com esta obra maravilhosa.”
Douglas Preston, autor de Cities of Gold e Talking to the Ground – EUA.
“The Centaur Legacy é interessante e provocativo, com idéias novas e
desafiadoras.”
Matthew Mackay-Smith, DVM, editor da EQUUS magazine – EUA.
“Acredito que temos aqui algo absolutamente novo sobre equitação.
Utilizando uma abordagem científica, a busca pelos fatos de um jornalista,
e com um toque de humor, Rink teve a audácia de entrelaçar fisiologia e
biomecânica com a longa história de equitação.”
Dr. Renan Sampedro, PhD em Fisiologia do Exercício, Catedrático da
Universidade Federal de Santa Maria/RS – Brasil.
“Rink realizou um trabalho maravilhoso revendo um tema há muito
negligenciado na literatura. The Centaur Legacy é interessante,
compreensível, com idéias novas e desafiadoras.”
Dr. Holm Newman MD. American Board of Orthopaedic Surgery – EUA.
“Este é um livro fascinante e profundamente absorvente. É uma leitura
essencial para qualquer pessoa interessada na origem da equitação e no
desenvolvimento das civilizações.”
Garry Ashton-Coulthon, editor da HORSE magazine – Londres.
“Revolucionário! O mais importante livro equestre do início do século 21.
Os conceitos de Rink não podem ficar limitados a uma língua ou um país.
Leia e se impressione.”
CuChullaine O’Reilly, FRGS, Fundador da The Long Riders’ Guild, autor de
Khyber Knights – EUA.

7
I. Prefácio da edição inglesa
Jeremy James

Quando aparece um livro que deixa sua mente fervilhando com per-
guntas e respostas pipocando por todo lado – o que é que você faz? O que
é que você faz? Eu sei o que você faz: você vai correndo para casa de um
amigo ou amiga, gritando “Ei, você! Largue tudo e LEIA ESTE LIVRO”.
Põe o livro em suas mãos. E vai para casa e espera. Espera até que ele lhe
telefone. Quando a ligação chegar – e ela vai chegar – haverá um minuto
de silêncio antes de ele falar: uma breve pausa antes da torrente. E você
então saberá que ele também terá encontrado no livro o mesmo que você.
E será um momento maravilhoso.
A primeira vez que o Long Riders’ Guild me entregou este livro, olhei
para ele com alguma hesitação. Parecia-me meio abstrato, não que eu te-
nha algo contra isso, muito pelo contrário, mas abstrato de uma forma que
não fazia muito sentido para mim. Outrossim, o fato de o próprio autor,
Bjarke Rink, dizer que era uma antologia de ensaios me deu uma sensação
de que o assunto era um tanto remoto e, talvez, muito acadêmico para
meu gosto. Eu não sabia muito bem no que ia dar, uma vez que a editora
não me deu nenhuma informação prévia. Pensando bem, eu agora com-
preendo a razão daqueles sorrisos egnimáticos.
Seja lá como for, peguei o livro, falei qualquer coisa, fechei minha
porta, suspirei, sentei confortavelmente, abri o livro e comecei a ler.
As palavras se moviam pela página: as páginas do livro viravam. To-
das as distrações sumiram. Barulhos vindo do mundo exterior cessaram.
Tudo que existia na minha vista periferal desapareceu. Somente as pala-
vras existiam. Movendo-se pela página.
De repente, sentei ereto diante de minha escrivaninha, segurando o
livro com as duas mãos, os olhos arregalados e ouvi uma voz dizer, repe-
tidas vezes, “macacos me mordam”; olhei para o meu relógio. Tinham se
passado quatro horas.
Esta é a primeira vez que tenho esta reação perante um livro desde
que lí Dudinsev na década de 70.
Desvendando o Enígma do Centauro é um trabalho impressionante.
É profundo. É erudito. É elegante. É totalmente surpreendente. É de cair
o queixo. É vigoroso. É espirituoso, e é divertido. É malcriado. É ótimo!
E leva você a lugares onde nunca ninguém pisou, e faz conexões que nin-

8
guém tinha visto antes. O livro traz à luz todo um mosaico de riquezas da
equitação que ninguém nunca pensou em juntar, e o resultado é a primera
versão filosófica da equitação já produzida. E isto, por si só, é um feito
impressionante.
Mas o livro é muito mais.
Quando eu era jovem, havia na televisão inglesa diversas séries.
Uma delas era Civilização de Lord Clarke, outra A Ascensão do Homem
de J. Bronowski e, por último, Cosmos de Carl Sagan. Cada um desses
programas tinha um efeito formidável: você realmente sentia sua mente
se expandir, indo a regiões nunca antes exploradas, mostrando fatos que
teriam um efeito profundo no seu jeito de pensar. Lembro-me, na minha
adolescência, de sentar de pernas cruzadas no chão da sala, boquiaberto e
com lágrimas nos olhos enquanto Jakob Bronowski me explicava, na mi-
nha sala de estar, como funcionava a teoria da relatividade. Para mim, que
nunca havia passado em nenhuma prova de matemática e nem de física,
de repente, entender a teoria da relatividade, lá na sala de estar da família,
devido à habilidade de Jakob Bronowski de apresentá-la de maneira inteli-
gível. Não só consegui entender, mas consegui explicá-la. Estas três séries
me enriqueceram de uma maneira extraordinária. E milhões de pessoas as
assistiam. Eram mais populares do que as novelas, do que qualquer outro
programa no mesmo horário: eram imperdíveis.
Este livro, Desvendando o Enigma do Centauro, está na mesma ca-
tegoria. Da mesma forma que os três homens ilustres destes programas,
Bjarke nunca faz concessões. Ele nunca assume um ar superior, nunca
se põe num patamar acima do leitor. Em vez disso, ele, como os outros,
estende a mão ao leitor, ele mostra. Revela. Olhe, diz ele. Veja por você
mesmo. Estou simplemente colocando tudo na sua frente. Lá está. Sempre
esteve lá. Como o mestre de seu ofício, tal como Bronowski, Sagan e Cla-
rke, ele não perde tempo com efeitos artificiais: a obscuridade sumiu: os
mitos sumiram; sumiu o faz-de-conta. Ele não dá lugar nem ao mistério
ou misticismo, as ditas ‘leis dos cavalos’, as mistificações do sussurador
de cavalos, conhecimentos exclusivistas, e todas as bobagens comentadas
por aqueles que nem conseguem entender nem explicar o que chamam
de sua área de conhecimento. Qualquer pretensão de que seria necessário
ter algum conhecimento especial ou talento para entender ou controlar
um cavalo é corretamente dispensada como sendo a bobagem que é. Ele
diz aquilo que você sempre sentiu instintivamente, mas nunca conseguiu
por em palavras. Ele dá os fatos, a verdade, alí expostos, a céu aberto, cla-

9
ramente, lucidamente, inteligivelmente e totalmente indiscutível. Tudo o
que você tem a fazer é sentar e assimilar.
Quantas pessoas conseguem um feito igual? Quantas pessoas conse-
guem explicar idéias complexas de maneira simples, como se você tivesse
sabido de tudo o tempo inteiro, e o que Bjarke fez foi simplesmente acen-
der a luz.
Não é maravilhoso quando um intelecto consegue falar com você
desta maneira? É tão reconfortante. É tão tranquilizador. É tão terrivel-
mente revelador. É como ver alguma coisa pela primeira vez sem qualquer
obstrução.
Não vou tentar explicar o que essas páginas contêm, mas vou deixar
que você, leitor ou leitora, descubra por você mesmo. Deixe Bjarke levar
você! É uma viagem memorável. Uma viagem que deixará você com uma
visão final irrefutável, como eu. Sentí que, se eu não tivesse lido esse li-
vro, eu não teria conhecido um mundo inteiramente novo relacionado à
equitação que não somente me deu mais conhecimento daquele mundo,
mas me fez entender a relação homem-cavalo de uma maneira totalmente
nova que eu não tinha antes. Bjarke me mostrou, melhor do que qualquer
outro autor ou pessoa que eu tenha conhecido, como lidar com um cavalo
e me deixou a certeza de que, se eu não tivesse lido este livro, eu não deve-
ria estar lidando com cavalos.
Jeremy James
Powys, País de Gales
Fevereiro de 2005

___________________
Jeremy James é autor de Saddletramp, Vagabond, The Tippling Philosopher e Debt of Honor –
The Story of the International League for the Protection of Horses. Membro fundador do The
Long Riders’ Guild, Jeremy se tornou membro do Royal Georgraphical Society em reconheci-
mento pelas suas investigações equestres.

10
II. Introdução
De como a Humanidade Chegou aonde Chegou

Esta antologia de ensaios foi escrita, sobretudo, para as pessoas que


gostam de estar bem informadas sobre os avanços da ciência contemporâ-
nea. O livro aborda o pouco compreendido impacto do cavalo e da equi-
tação sobre a expansão cultural da humanidade no passado, a sua impor-
tância no presente e perspectivas para o futuro.
A idéia partiu de um amigo que um certo dia me perguntou: “o que
teria sido do mundo se não existissem cavalos?” Essa pergunta extrema-
mente perspicaz me lançou na maior aventura investigativa da minha
vida, experiência que está durando 17 anos e ainda não acabou. A resposta
para essa indagação é quase inacreditável: se o cavalo tivesse sido extin-
to, a exemplo do mamute, ou se ninguém tivesse pensado em montá-lo e
quebrar a barreira da velocidade humana, hoje não existiriam automóveis,
computadores, engenharia genética ou estratégias globais. As civilizações
mais adiantadas do planeta estariam estacionadas em algum ponto da sua
história passada, mais provavelmente no “Velho Testamento”, exatamente
como ocorreu com as culturas indígenas das Américas que não tiveram
acesso ao cavalo nem à equitação.
É questão inegável que, sem o cavalo e a equitação, as civilizações
da Europa estariam hoje no estágio sócio-político-econômico de cidade-
estado e as massas continentais que hoje chamamos de América do Norte
e América do Sul estariam sendo ocupadas somente pelas suas populações
indígenas originais.
Desvendando o Enigma do Centauro é dividido em três partes. A pri-
meira, “O Catalisador da História”, é uma investigação das questões bioló-
gicas, antropológicas, históricas e sociais que marcaram a equitação desde
a pré-história até o século 19. A segunda parte, “Em Busca do Centauro”,
é uma análise da equitação do século 20, na qual o leitor assistirá ao declí-
nio do ‘velho mundo do cavalo’, o eclipse de um tradicional estilo de vida
e o renascimento de um novo espírito equestre orientado pela ciência. A
terceira parte, “Odisséia na Ciência”, é um mergulho na simbiose, na psi-
cologia, na neurofisiologia, na biomecânica e na comunicação que envol-
ve a equitação, e que procura dar uma visão das grandes mudanças que,
provavelmente, transformarão as práticas equestres nos próximos anos.
Reconheço que esse livro talvez devesse ter sido escrito por um an-

11
tropólogo, cuja tarefa é classificar as características humanas, ou por um
biólogo dedicado a estudar as conexões simbióticas do mundo animal,
ou, ainda, por um historiador, cujo objetivo é lembrar o que os outros
esqueceram (obrigado, Hobsbaum). Ou, ainda melhor, por seis compe-
tentes mãos. Mas, por uma razão muito simples, esse livro foi escrito por
um cavaleiro: nós somos os únicos profissionais do planeta a trabalhar na
‘fronteira dos sentidos’ onde Homo sapiens se funde com Equus caballus
– uma área do conhecimento humano ainda virtualmente inexplorada.
Como não acredito que um cientista ‘não cavaleiro’ pudesse lhe guiar com
segurança por meio desta ‘terra incógnita’, uma viajem atribulada que nos
levará a desvendar o enigma do Centauro, você terá que vir comigo. Mas
não se preocupe; eu tenho um mapa confiável e um cavalo que conhece
o caminho. Portanto, encilhe seu corcel – mesmo que esse animal mara-
vilhoso só exista em seus sonhos mais felizes – e vamos galopar por este
mundo afora e descobrir o que cientista algum se deu ao trabalho de pro-
curar! Vamos, nós conseguiremos!
B.R.

12
Índice

I. Prefácio.......................................................................................... 8
II. Introdução................................................................................... 11

Parte I
O Catalisador da História.................................................................. 17
1 Homo Quem?.........................................................................................18
2 Homo Sapiens – a Máquina de Aprender...........................................22
3 Equus Caballus – a Máquina de Correr..............................................26
4 O “Big Bang” da Revolução Biológica.................................................30
5 Homo-Caballus, o Catalisador da História........................................34
6 Homo-Caballus Quebra a Barreira do Tempo...................................38
7 Sobre Átila e Einstein............................................................................43
8 A Dinâmica Equestre Impulsiona o Mundo......................................48
9 Sob o Domínio do Centauro................................................................54
10 Os Mestres do Tempo e os Mestres do Espaço..................................60
11 Homo-Caballus por Cinquenta Séculos de História.........................67
12 Subtrair o Cavalo é Implodir a História..............................................71
13 O Tempo Biológico das Sociedades Pedestres...................................76
14 Homo-Caballus nas Civilizações Sedentárias....................................81
15 A Ascensão do Homo-Caballus na Europa........................................85
16 Equitação-Trabalho...............................................................................91
17 Equitação-Esporte.................................................................................95
18 Equitação-Arte.....................................................................................100
19 Xenofonte – Nasce a Equitação Acadêmica.....................................105
20 Federico Grisone, Fundador da Equitação Clássica........................108
21 Antoine de Pluvinel – a Equitação Elevada à Sétima Arte.............111
22 La Guérinière, o Herdeiro da Equitação Científica.........................116
23 François Baucher – Guerra Civil na Equitação Clássica.................120
24 Gustav Steinbrecht – Entra em Cena o ‘Sistema Alemão’..............125
25 Federico Caprilli, a Revolução Inacabada........................................130
26 Os “Anos Dourados” da Equitação....................................................135
27 O Último Mito......................................................................................140
28 ‘Horse Power’ Supremo.......................................................................144

13
Parte II
Em Busca do Centauro..................................................................... 148
29 Uma Largada Auspiciosa....................................................................149
30 A Extinção do Centauro.....................................................................155
31 Um Mundo Sem Cavalos?..................................................................159
32 O Espírito do Centauro Vive!.............................................................162
33 Sobre Carros e Cavalos........................................................................165
34 A Equitação Científica do Século 20.................................................170
35 Equitação – Voar é Preciso.................................................................174
36 Em Busca do Centauro........................................................................177
37 O Milagre da Neurofisiologia da Equitação.....................................181
38 A Neurociência Revela os Princípios da Equitação.........................186
39 A Organização da Equitação em Reflexos Automatizados............191
40 O Código de Comandos da Equitação..............................................195
41 A Fusão do Homem com o Cavalo....................................................198
42 Sobre Dr. Pavlov e General L’Hotte...................................................202
43 Sobre Equitação e Liderança..............................................................205
44 Sobre Equitação e Atrelagem..............................................................209
45 O Poder do Prazer na Equitação........................................................213
46 Equus Ludens.......................................................................................217
47 Homo Communicator.........................................................................221
48 A Inteligência Emocional na Equitação............................................224
49 Embocadura, a Conexão Cerebral.....................................................228
50 Sela, Mão Dupla no Tráfego dos Sentidos........................................237
51 Repensando o Chicote e a Espora......................................................243
52 Desvendando o Enigma do Centauro...............................................247

Parte III
Odisséia na Ciência...................................................................................257
53 A Dança das Ilusões.............................................................................258
54 Serão os Ecos do Passado a Música do Futuro?...............................268
55 O Fim da Visão Mecanicista da Equitação.......................................274
56 Uma Revolução em Ebulição.............................................................279
57 Equitação – Esportes em Evolução....................................................284
58 Equitação: Simbiose ou Escravidão?.................................................288
59 Dançando com Cavalos?.....................................................................296
60 A Linguagem Natural dos Movimentos............................................302

14
61 Comunicando-se com os Cavalos.....................................................307
62 Estratégias e Ciclos de Vida no Treinamento dos Cavalos.............315
63 Construindo um Centauro a Partir de um Cavalo..........................322
64 Um Homem Chamado Cavalo...........................................................329
65 Equitação Simbiótica – Transformando o Desejo em Realidade.......334
66 Caprilli e Além.....................................................................................340
67 A Zona Cibernética do Centauro......................................................346
68 Equitando na ‘Zona do Conforto’......................................................352
69 Por que Montar a Cavalo?...................................................................359
70 Sabedoria Nômade Numa Cultura Urbana......................................366
71 A Formação Cultural do Equitador Moderno.................................373
72 Uma Estrutura Moderna para os Esportes Equestres.....................380
73 Odisséia na Ciência.............................................................................385
74 Brasil, Mostre a Sua História..............................................................390

15
I. O Catalisador da História

Então o Oriente
Foi o berço de uma sociedade dinâmica
Organizada em torno do cavalo
Que irradiou sua energia
Em todas as direções das estepes:
Norte, Sul, Leste, Oeste,
Mudando o ‘Padrão do Tempo’
De todas as culturas que tocava

17
Bjarke Rink

CAPÍTULO 1

Homo Quem?

Há algumas centenas de milhões de anos, o proto-homem era uma


criaturinha anônima vivendo assustada nas florestas de samambaias fu-
gindo de Tyranossauros, Apatossauros, Brontossauro, Stegosauros e outros
‘sauros’ de menor consequência. Um dia, cansado de fugir da sua própria
insignificância, a criaturinha foi buscar sossego na copa das árvores como
fizeram os seus primos, os macacos. Mas, depois de milhões de anos pulando
de galho em galho, a insignificante criatura, eternamente insatisfeita consi-
go mesma, voltou para o solo e reassumiu uma posição entre os mamíferos
terrestres. Por nunca ter desenvolvido algum tipo de estratégia especial de
sobrevivência – garras, dentes, chifres ou velocidade – a criatura foi parar
no fim da fila evolutiva dos mamíferos – e lá ficou – até há alguns poucos
milhões de anos, quando ela começou a revelar ao mundo o seu verdadeiro
e assustador diferencial biológico.
Na savana de Laetoli, no Quênia, há cerca de 4 milhões de anos, apa-
receu o primeiro mamífero bípede. Essa estranha e, aparentemente, ino-
fensiva criatura não chamou muita atenção dos cavalos, zebras, elefantes,
girafas, leões, hipopótamos, rinocerontes e gazelas que lá habitavam. O
novo vizinho tinha cerca de 1 metro de altura e vivia em pequenos grupos
de seus familiares às margens de lagos como o Turkana. O mais curioso é
que a criatura tinha cara, corpo e jeito de macaco, porém não tinha o pêlo

18
Parte I Catalisador da História

característico dele, andava sobre duas pernas como as aves, mas não sabia
voar. (A forma bípede de locomoção é mais lenta do que a quadrúpede e
consome mais energia por quilômetro, uma razão pela qual o novo vizi-
nho não era caçador)1. Mas, apesar de sua visão policromática e estereos-
cópica, audição, olfato e tato bem desenvolvidos, a inofensiva espécie não
tinha dentes afiados nem unhas poderosas para abater animais e rasgar a
pele para comer a carne – a criatura passava o dia pacificamente à procu-
ra de folhas, frutas, nozes, sementes e raízes para comer, sem incomodar
ninguém – (o antropólogo Raymond Dart, um dos seus descendentes, ba-
tizou a espécie de Australopteco).
Mas, depois de 2 milhões de anos nessa vidinha doméstica, preocu-
pado apenas em procurar comida, fazer e criar os filhos, os outros animais
da savana começaram a perceber com horror que os hábitos do “macaco
pelado”2 estavam lentamente mudando. Ele agora formava pequenos ban-
dos de caçadores para abater animais e depois, de volta no acampamento,
rompia o couro e cortava pedaços da carne com o uso de pedras lascadas
afiadas como facas! O “macaco pelado” também usava pedras para raspar
o couro dos animais abatidos e fabricar rudes vestimentas com as quais
agasalhava a sua ridícula nudez. (Um outro descendente do macaco pela-
do, o antropólogo Louis Leakey, batizou essa etapa evolutiva da estranha
criatura de Homo habilis).
Mais de 1,5 milhão de anos se passaram e os vizinhos começaram a
notar mais uma diferença desconcertante nos hábitos do “macaco pelado”
– ele agora dominava uma tecnologia de subsistência simples, mas eficien-
te: aprendeu a manejar o fogo e estava cozinhando os seus alimentos para
amaciar a textura. (Curiosamente chamaram este novo estágio evolutivo
de Homo erectus – ereto ele já era na etapa Australopteco). Mas, ainda
assim, o “macaco pelado” não era uma grande ameaça para os outros ani-
mais – todos maravilhosamente dotados com estratégias eficientes de so-
brevivência – garras, dentes ou chifres para lutar ou grande velocidade
para fugir. Equipado com apenas duas pernas para correr, carne, felizmen-
te, ainda era uma parte muito pequena da sua dieta. Mas gostar de carne
o “macaco pelado” gostava – às vezes os seus vizinhos os viam às turras
1
Michael Johnson, o velocista americano que quebrou o recorde dos 400 m em 1999, com o
tempo de 43.18 segundos, perderia essa mesma corrida se competisse com um rato de esgo-
to.
2
“Macaco pelado”: a esplendida definição de ‘humanidade’ do prof. Desmond Morris; uma gran-
de contribuição ao significado mais profundo de antropologia e à condição zoológica da espécie
humana.

19
Bjarke Rink

com hienas, cachorros do mato e aves de rapina, disputando os restos das


carcaças de animais abatidos pelo rei da savana... o leão.
Mas, que diabo! Somente 480 mil anos depois de aprender a manejar
o fogo, o “macaco pelado” apareceu com mais uma novidade – desta vez
realmente perigosa – o arco e a flecha. (O seu descendente, Carlos Lineu,
num arroubo de entusiasmo inexplicável, chamou este novo estágio evo-
lutivo de Homo sapiens). Agora, para se poupar do trabalho de correr
atrás da caça, ele arremessava flechas na direção do alvo com um arco
feito de madeira flexível. Todo mundo da fauna reconheceu que, à medida
que o “macaco pelado” estava se desenvolvendo tecnologicamente, ele se
tornava um vizinho cada vez mais inconveniente – uma verdadeira ame-
aça para a integridade física dos outros animais da savana (que ainda não
tinham visto nada da confusão que este bicho ia ser capaz de arrumar no
futuro).
Há 30 mil anos, o Homo faber (a denominação para a criatura que
usaremos na maior parte deste livro) já era dominante entre as outras es-
pécies e, com isso, assumiu a liderança de toda a cadeia biológica – agora
ele era o rei dos animais – o número 1 da cadeia evolutiva e estava come-
çando a dar uma canseira até no rei leão.
Há 14 mil anos, e apenas 8 mil anos depois de inventar o arco e flecha,
o Homo pelado inventou mais uma novidade: começou a domesticar ani-
mais como cachorros, cabras, porcos e gado bovino. Com essa nova moda,
ele não precisava mais ter o trabalho de caçar para comer carne – bastava
dar um pulo até o cercado e pegar o almoço. A sua criatividade parecia
não ter fim.
Há cerca de 10 mil anos, apenas 4 mil anos depois de domesticar os
animais, ele realizou o seu maior invento – até agora – descobriu como
semear e colher plantas e cereais na terra fofa e nutritiva que beirava os
grandes rios. Isto causou uma verdadeira revolução no seu modo de vida.
Uma revolução de costumes que os biólogos, seus descendentes, iriam
chamar de ‘Revolução Biológica’. Passados apenas mais mil anos, ele in-
ventou a cerâmica, e com mais mil anos estava fabricando cordas, janga-
das, tijolos e foices. Repare que o tempo transcorrido entre cada invento
diminuía geometricamente. No início, havia uma diferença de milhões de
anos entre um invento e outro, mas agora começavam a surgir inovações
com intervalos de apenas alguns milhares de anos. A mente do “macaco
pelado” parecia acumular experiências que possibilitavam novos inventos
com a progressão de uma bola de neve morro abaixo.

20
Parte I Catalisador da História

Há 6 mil anos, o “macaco pelado” deu mais um importante passo


tecnológico ao dominar a fundição e o uso do bronze – metal que substi-
tuiu as pedras e os paus com os quais ele, até então, fabricava suas armas
e utensílios de trabalho. Nos 100 anos seguintes, o “macaco sapiens”, des-
culpe, o Homo faber, teve um surto de criatividade – inventou a escrita, o
uso de barcos e a carroça com rodas. Inevitavelmente, com o acúmulo de
tanta tecnologia – manejo do fogo, domesticação de animais, agricultura,
cerâmica, jangadas, botes, foices, irrigação, rodas, cobre e bronze, velas,
escrita e calendário – ele, há 5.100 anos, fundava a primeira organização
cultural que podemos chamar de nação – o Egito – um país ribeirinho
onde todos os seus inventos reunidos formavam o que os historiadores
viriam a chamar de ‘civilização’.
Com a capacidade tecnológica de formar um país como o Egito, o
Homo faber alcançou um patamar evolutivo que parecia então ser o auge
da sua criatividade, nada mais restando para confirmar a sua grandeza
entre os animais da fauna terrestre. Mas, neste momento, a surpreendente
criatura realizou mais um salto evolutivo e deu início à maior aventura
da sua história. Uma aventura que começou com ele andando a cavalo e
acabou com ele caminhando na lua.

Ao mostrar a capacidade tecnológica de construir uma civilização com a


complexidade do Egito, Homo faber atingiu o que parecia ser o auge da
sua criatividade. Mas, neste exato momento, esta surpreendente criatura
realizou um salto evolutivo que deu início a maior aventura de todas!
Mas, antes de continuar a história, vamos examinar como e porque essa
estranha criatura mudara tanto na sua aparência e comportamento,
enquanto os outros animais da fauna mudaram tão pouco.

21
Bjarke Rink

CAPÍTULO 2

Homo Sapiens –
a Máquina de Aprender

Os grandes avanços da neurociência estão ajudando a reescrever, entre


outras coisas, a antropologia. Com a compreensão do funcionamento do
cérebro, os neurocientistas estão colocando a evolução da humanidade em
nova perspectiva. Hoje compreendemos que o gênero ‘Homo’ apostou todas
as suas ‘fichas’ evolutivas no desenvolvimento do seu cérebro. O debate que
engajou inúmeras gerações de filósofos – se é a educação ou a natureza que
determina o comportamento humano – também está mudando de rumo.
Atualmente, os cientistas estão preocupados em ‘como’ a genética interage
com o meio ambiente na formação do padrão cerebral e ‘como’ este deter-
mina o comportamento. Segundo a ciência contemporânea, a organização
social foi o verdadeiro catalisador do tamanho, da estrutura e do funcio-
namento do cérebro humano. As conquistas materiais – o uso de utensílios
de pedras, fogo, bronze, ferro ou silicone – são apenas as consequências do
nosso desenvolvimento cerebral. Portanto, a história da formação da estru-
tura social é mais importante do que a história da evolução material da
humanidade.
O que os outros animais que conviviam com o Homo habilis na pla-
nície africana de Laetoli não sabiam é que o “macaco pelado”, para com-

22
Parte I Catalisador da História

pensar o seu débil sistema locomotor, acabou dotado com uma estrutura
cerebral com grande capacidade de desenvolvimento. Por meio do apren-
dizado, a atividade das suas células modifica a estrutura física do cérebro.
Isto significa que, quanto mais experiências o homem vive, mais conexões
vão interligando as suas células nervosas – o que, por sua vez, lhe permi-
te realizar novas experiências, num processo de aprendizagem infinito.
(A natureza não agraciou o “macaco pelado” com garras, dentes e chifres
para lutar – mas o que o seu cérebro é capaz de maquinar até Deus, arre-
pendido, deve estar começando a duvidar).
Mas o que estimulou o “macaco pelado” a desenvolver o cérebro?
Qual foi o motor do seu progresso intelectual? Os antropólogos do passa-
do pensavam que a pressão ambiental, a luta pela sobrevivência, obrigou o
Homem a realizar sempre novos inventos e esses estímulos desenvolveram
a sua mente – afinal, a descoberta de utensílios de pedra, bronze e ferro
contam, com provas materiais, a história do seu crescimento econômico.
Karl Marx, o filósofo do materialismo, afirmava que a principal diferença
entre os homens e os animais reside no fato de que, para satisfazer suas
necessidades, os homens criam ferramentas e, com elas, transformam o
meio ambiente. Na sua opinião, “o homem aprimorou os seus sentidos
e seu intelecto por meio do trabalho e na relação com os objetos por ele
produzidos conheceu o sentimento de prazer e auto-realização”.
Richard Leakey, em seu livro People of the Lake, oferece uma expli-
cação científica mais atualizada para o desenvolvimento do intelecto hu-
mano. Ele diz: “o grupo é uma entidade dinâmica, um caleidoscópio das
modificações de assuntos práticos e do humor social. O mundo prático é
em si relativamente previsível. Apesar de que há a necessidade de grandes
doses de habilidade para explorar os diversos recursos alimentares espa-
lhados numa determinada região, estas se tornam relativamente simples
se comparadas com a exigência intelectual de se fazer alianças sociais para
realizar manobras políticas e para se obter avanços sutis na hierarquia
social ou, simplesmente, interagir com um outro indivíduo imprevisível”
(principalmente quando do sexo oposto). O comportamento de plantas e
animais é relativamente previsível. O comportamento de seres humanos
em organizações sociais não é. “Você precisa de maior juízo para lidar com
as incertezas relativas em eterna transformação de uma organização social
do que se relacionar com as certezas relativas do meio ambiente,” conti-
nua Leakey. “Tecnologia e outros meios de subsistência devem também
ter tido alguma influência no desenvolvimento do cérebro, porque até as

23
Bjarke Rink

formas mais primitivas de utensílios trazem alguma vantagem econômica.


Mas a locomotiva do cérebro é a pressão social” – afirma Richard Leakey.
Entre 3 e 1 milhão de anos passados, a tecnologia do uso da pedra
se desenvolveu a partir de algumas poucas ferramentas de cortar e raspar
até atingir um ‘kit’ com cerca de 12 instrumentos com funções específicas
– cortar, raspar, lascar, moer, furar, etc. Apesar de ser um grande avanço,
não se pode dizer que foi o “pico” da tecnologia humana. E, mesmo assim,
o cérebro do Homo, neste período, dobrou de peso e tamanho! Entre 1
milhão e 250 mil anos atrás, a invenção de utensílios avançou a passos de
cágado, mas o cérebro do homem aumentou um terço em tamanho. “O
aspecto crucial para se fazer funcionar uma economia de coleta e caça”
– argumenta Leakey – “é a intensa interação social – particularmente as
complexidades psicológicas e emocionais que envolvem a cooperação:
repressão das emoções, persuasão, tato, submissão, agressão, percepção
e senso de humor (muito senso de humor); tudo faz parte de um bom
trabalho realizado em regime de cooperação”. (Uma vez, ao perguntarem
a Einstein porque o homem fora capaz de descobrir o átomo, mas não um
meio de controlá-lo, ele respondeu com o seu habitual senso de humor –
“Isso porque, meu filho, a física é matéria mais simples do que a política”).
Hoje, os cientistas concordam que, apesar de não se dar exclusividade a
nenhuma força isolada como catalisadora do enorme desenvolvimento
do intelecto humano – a evolução nunca trabalha de forma tão simplista
–, o relacionamento social foi o maior responsável pelo crescimento do
cérebro do homem. Isto é, os ancestrais do homem começaram, desde o
início, a tecer a rede social responsável pelo nosso atual desenvolvimento
social e tecnológico. A rede social é, portanto, uma das maiores obras da
humanidade.
Na savana de Laetoli, o insignificante Homo habilis fez muito mais
do que inventar e fabricar novos instrumentos – ele procurou, sobretudo,
organizar incursões em busca de comida e material para a sua tecnologia
de base. Sem um compromisso com a ordem social, sem lealdade para o
bando, sem um lugar na cadeia de tarefas, o indivíduo, numa economia de
coleta e caça, simplesmente morreria. No início, os cientistas só enxerga-
ram os inventos de utensílios – o uso de pedras, do fogo, do arco e flecha
– como o motor do desenvolvimento intelectual. Mas agora eles sabem
que o fator que realmente modificou o comportamento humano foi o seu
desenvolvimento psicológico e emocional estimulado pelo relacionamen-
to social. O seu cérebro já estava com o atual potencial pronto e acabado

24
Parte I Catalisador da História

há cerca de 50 mil anos.


Depois de mais de 2 milhões de anos coletando experiências cultu-
rais, o homem aparentemente havia atingido o auge do seu desenvolvi-
mento intelectual. Este acúmulo de conhecimentos e realizações permitiu
que o Homo sapiens, há 5.100 anos, fundasse a primeira nação às margens
do rio Nilo. Mas, como qualquer colegial sabe, a fundação do Egito na
história da humanidade é café pequeno. Há cerca de 6 mil anos aconteceu
um fato ainda mais importante para o desenvolvimento da mente humana
– uma simbiose provocou uma explosão de conexões dos seus neurônios,
impulsionando-o, como um foguete, em direção ao século 20.

Ao dotar Homo sapiens com um cérebro capaz de fazer associações


infinitas entre os fenômenos naturais, Deus, em compensação, dotou-o
com o pior aparelho locomotor entre os mamíferos – o sistema bipedal. (Foi
certamente com o mesmo critério que Ele não deu asas às cobras). Mas,
durante os milhões de anos em que o homem formava a sua inacreditável
rede de neurônios, havia um outro mamífero na cadeia evolutiva que
apostava todos os seus recursos biológicos no desenvolvimento do seu
aparelho locomotor.

25
Bjarke Rink

CAPÍTULO 3

Equus Caballus –
a Máquina de Correr

Se um predador cometer um erro e a sua presa escapar, ele viverá para


atacar outro dia. Mas, se um cavalo, ao ser atacado por um predador, co-
meter algum erro, este poderá ser o último. “Para sobreviver, tudo no cavalo
foi sacrificado em favor da velocidade, fazendo do animal uma Máquina
Cursora”, definiu E. Scott, paleontólogo americano. Isto significa, biologi-
camente, que toda a fisiologia do cavalo gira em torno da sua velocidade.
Em outras palavras, o cavalo evoluiu em função de agilidade, velocidade e
resistência. A sua sobrevivência bem-sucedida por 58 milhões de anos pode
ser atribuída ao aperfeiçoamento constante do seu aparelho locomotor, em
consequência do qual todo o resto – sistema de alimentação e comportamen-
to social – se adaptou.
Desde a pré-história, a beleza da locomoção do cavalo tem fascinado
a humanidade. As pinturas paleolíticas nas cavernas da Europa mostram,
quase sempre, o cavalo em ação. O fotógrafo E. Muybridge, em 1884-5,
conduziu uma série de experimentos em que analisou quadro a quadro
vários tipos de andamento do cavalo. (Esta tecnologia chamada de zo-
opraxografia ajudou a dar início à indústria cinematográfica). Todos os
estudos da locomoção equina indicam que o cavalo, no reino animal, foi

26
Parte I Catalisador da História

dotado de uma combinação única de atribuições funcionais – velocidade,


agilidade e resistência. O cavalo moderno atinge a velocidade de 70 qui-
lômetros por hora e os cavalos de corrida completam mais de dois ciclos
de galope por segundo. Se algumas espécies de animais desenvolveram
chifres, garras e dentes como estratégias para enfrentarem a competição
pela vida, o cavalo se especializou em correr. As linhas do seu corpo fo-
ram totalmente concebidas para desenvolver velocidade. O seu diagrama
aerodinâmico, os seus músculos e ossos, o seu aparelho locomotor, com
andamentos em dois, três e quatro tempos, foram estruturados para exe-
cutar movimentos rápidos e sustentados. As pernas são longas e esguias
para fornecer empuxo máximo com movimentos mínimos e o cavalo toca
o chão com a ponta dos pés com a leveza dos bailarinos. “Ficar nas pontas
dos pés é difícil para o homem, mas é a posição natural para o cavalo”,
comenta Harold Barclay.
Vamos ver, com os estudos de Bruce MacFadden, alguns exemplos
de como esse sistema cursor único e quase milagroso se modificou por
dezenas de etapas desde o pequeno Hiracotério pré-histórico até o cavalo
do nosso tempo.
O Equus caballus moderno é bem diferente dos seus antepassados.
Nas centenas de mutações fisiológicas e morfológicas identificadas pelos
paleontólogos durante os 58 milhões de anos de sua evolução, todas as
modificações do cavalo têm a ver com o aumento do desempenho do seu
sistema locomotor. O cavalo é uma máquina de movimentos de propulsão
e o seu sistema alimentar e digestivo foi concebido para que ele possa co-
mer e se deslocar incessantemente. O cavalo, em sua vida natural, ‘nunca’
se empanturra. Com um estômago pequeno, ele é obrigado a comer qua-
se continuamente, mantendo, assim, um fluxo digestivo constante, o que
evita o acúmulo de um grande e pesado bolo digestivo; isto para facilitar
o seu deslocamento. O potro está apto, poucas horas depois de nascer, a
acompanhar, em grande velocidade, a movimentação da mãe e da mana-
da.
O paleontólogo McNaughton apresentou um estudo interessante na
qual ele demonstra que a habilidade para se locomover em grande velo-
cidade, e por muito tempo, foi uma adaptação favorável para os cavalos
que fazem longas viagens, em diferentes estações do ano, para aproveitar
recursos alimentares distantes entre si. O estudo reforçou a comprovação
da teoria de que muitas modificações no sistema locomotor dos equídeos
foram para lhes dar resistência a longos percursos. Outras modificações

27
Bjarke Rink

lhes dão, ainda, explosão de movimentos e lhes permitem atingir alta ve-
locidade em frações de segundo. A soma dessas características faz com
que o Equus caballus ocupe o maior espaço vital entre os mamíferos, uma
informação importante para o argumento desse livro.
Uma das principais características evolutivas do equídeo foi a mu-
dança do pé tridáctilo – com três dedos – em monodáctilo, com os três
dedos transformados num único casco. Outra foi a suspensão dos jarre-
tes do chão para dar maior alavancagem às passadas. Essas características
são todas favoráveis ao torque. No cavalo tridáctilo, o dedo central dava
suporte ao peso do animal e os dois dedos laterais davam apoio nas mano-
bras em grande velocidade, principalmente em terrenos lamacentos.
Segundo Bruce MacFadden em seu livro Fossil Horses, “E. Renders
estudou em 1984 algumas impressões do tridáctilo Hipparion preserva-
dos na lama vulcânica em Laetoli, na Tanzânia. Esta locação arqueológica,
datada de 3,5 milhões de anos, é, além do mais, de grande interesse por
conter também fósseis humanos. Renders, num estudo minucioso, con-
cluiu que as pegadas do Hipparion indicam um andamento marchado,
chamado ‘running walk’. Esta maneira de se deslocar permite uma veloci-
dade de 6,5 a 15 quilômetros por hora utilizando a mesma coordenação
motora do passo. Nesta velocidade, ao contrário do galope e do trote, to-
das as quatro patas do animal nunca estão fora do chão simultaneamen-
te. “Os dedos laterais do Hipparion tocavam o solo a grande velocidade”,
explica Renders. “Por ser um especialista em velocidade, o Equus caballus
moderno tem estas múltiplas opções de andamentos, inclusive a marcha”,
finaliza o paleontólogo. Por exemplo, na velocidade intermediária, a mar-
cha pode substituir o trote e a andadura com vantagem. “Isto significa que
o passo sendo o andamento mais estável do animal, o Hipparion podia
sustentar grande velocidade durante mais tempo, menos gasto de energia
e com menor risco de uma queda” – conclui MacFadden. “Este modo de
se locomover, herdado pelo Equus caballus do seu ancestral, o Hipparion,
é uma opção de andamento que enriquece o uso do cavalo moderno. Até
os estudos de E. Renders aparecerem, era comum se pensar ser a marcha
um andamento artificial ensinado pelo homem”, conclui MacFadden.
O sistema locomotor do Equus caballus revela outra característica
inédita, herdada dos seus antepassados: um mecanismo de sustentação
localizado nos joelhos das pernas dianteiras e traseiras, que ‘trancam’ os
membros do animal, permitindo que durma em pé. Este mecanismo im-
pede o colapso do corpo e conserva aquecida a sua musculatura durante

28
Parte I Catalisador da História

o sono, para uma eventual e súbita emergência. Este mecanismo foi uma
das razões da sobrevivência do Equus caballus no planeta. “Se longa vida
pode ser vista como uma medida de sucesso, então os equinos tridáctilos
que existiram há 3,5 milhões de anos foram vencedores de sua categoria”,
conclui MacFadden.
O sistema locomotor do Equus caballus e a estrutura cerebral do
Homo sapiens são características únicas no reino animal. Se estas duas
criaturas tivessem a oportunidade de unir as suas notáveis faculdades fi-
siológicas, formariam um ser superior ao Homo sapiens e ao Equus ca-
ballus, individualmente. Na improvável hipótese de haver uma comunhão
entre estes dois seres, o animal resultante teria todas as condições para se
tornar o senhor absoluto da terra! O impossível, às vezes, acontece – não
perca o próximo capítulo.

29
Bjarke Rink

CAPÍTULO 4

O “Big Bang” da
Revolução Biológica

Três milhões de anos separam o Australopiteco da savana de Laetoli


do Homo sapiens, fundador do Egito. Para nós, um tempo enorme – para o
nosso ancestral, apenas o tempo necessário para desenvolver o seu cérebro a
ponto de poder organizar a complexa rede social que resultou na primeira
grande civilização do planeta. Depois dessa enorme façanha, e num espaço
de tempo muitíssimo mais curto – apenas 5.100 anos – uma outra nação
evoluída desembarcou um de seus homens na Lua e uma boa parte da hu-
manidade assistiu ao feito sem sair de casa! A que fator podemos atribuir
este gigantesco passo tecnológico num espaço de tempo relativamente tão
curto? Existiu algum fato novo a partir do qual esta aceleração tecnológica
se tornou possível? Existiu. O impossível aconteceu!
O grande desenvolvimento intelectual que acompanhou a domestica-
ção de plantas e animais promoveu o maior avanço tecnológico até então
experimentado pelo Homo sapiens. Para se viver da coleta e da caça, basta
conhecer as particularidades de plantas e animais. Para plantar lavouras
e criar animais domésticos, é preciso conhecer as leis que regem a natu-
reza – os princípios da biologia. Este avanço tecnológico, conhecido por
‘Revolução Biológica’, foi realizado por povos diferentes em vários pontos

30
Parte I Catalisador da História

do planeta. A Revolução Biológica, na sua versão moderna, cuida da en-


genharia genética que produziu a Dolly e agora, com grande estardalhaço,
quer clonar pessoas (como se uma cópia em cera, no museu de Mme.
Tussaud, não fosse o suficiente para atender os narcisistas mais exigentes).
A técnica de plantar e colher grãos floresceu nas regiões com o meio
ambiente mais adequado para o sucesso deste empreendimento: as mar-
gens e deltas dos grandes rios da Ásia, da África e da Europa. Os agru-
pamentos humanos que lá se estabeleceram para cultivar a terra deram
início às primeiras grandes cidades e nações. Estes povos são chamados de
sedentários – ou assentados. Nos ensinam na escola que a mais importan-
te adaptação do homem ao meio ambiente, o fato que mais transformou a
face da terra, foi a adoção da agricultura como meio de vida. Embutem na
nossa cabeça que a ‘Revolução Biológica’ foi possibilitada pela incessante
capacidade de imaginação do Homo faber, aliás Homo oeconomicus, ou
Homo loquax, ou ainda Homo sociologicus, ou também Homo ludens,
ou mesmo Homo sapiens (só estelionatário e terrorista tem mais nomes
do que o gênero Humano). O que ninguém nos explica é que esta revolu-
ção teve um “big bang” – um acontecimento catalisador – que modificou
qualitativamente a capacidade fisiológica do ser humano. Um fato que
ninguém aparentemente entendeu e que é o capítulo mais espetacular da
‘Revolução Biológica’: a simbiose do Homo sapiens com o Equus caballus
que resultou numa terceira espécie superior aos dois – o Homo-caballus.
Vejamos como essa nova espécie surgiu e qual foi o impacto que a nova
criatura teve sobre o desenvolvimento social e econômico da humanidade.
Afirmam os antropólogos que, a cada novo invento, o Homo faber
modifica o seu comportamento e apura a sua habilidade. A agulha, o ma-
chado, a sovela, a panela, a grelha, a pá, o prego, o parafuso, o barbante,
o nó, o anzol, o botão, o sapato, o cordão, o fole, o palito, o zíper, a ficha
telefônica, o controle remoto são pequenos passos tecnológicos que au-
mentaram o domínio do Homo faber sobre o seu meio ambiente. Mas a
equitação do cavalo não foi apenas mais uma descoberta como foi o uso
da pedra lascada, o domínio do fogo, a invenção da roda, a domesticação
do boi, a agricultura, a novela das oito, e demais maquinações criativas do
ex-Homo habilis. A união da fisiologia do homem com a do cavalo está
mais próxima do processo das fundições de metais. Por exemplo: fundir
o cobre com estanho para conseguir o bronze que possui têmpera mais
resistente, ou o ferro com o carbono para obter o aço. A fundição é o meio
utilizado para ligar dois metais para obter um terceiro mais forte. Ligar

31
Bjarke Rink

duas fisiologias para produzir uma terceira mais forte é, no entanto, infi-
nitamente mais complexo do que ligar dois metais – pergunte só a alguém
que está começando a aprender a montar a cavalo.
Se todas as pequenas descobertas do Homo faber até então modifi-
caram o seu comportamento e desenvolveram a sua habilidade, imagine
o salto criativo que o homem teve que dar para iniciar o relacionamento
com um outro ser vivo, muito mais forte e veloz do que ele e muito bem
aparelhado pelas mãos de Deus para fugir de intrusos com intenções de
comer ou montá-lo. Imagine as doses de persuasão, indução, auto-repres-
são, tato, equilíbrio emocional, capacidade de observação e critério analí-
tico necessários para entender e obter a cooperação produtiva e confiável,
na guerra e na paz, de um ser altamente complexo como o Equus caballus.
Mas, antes de continuar nesta linha de raciocínio, voltemos à ‘Revolução
Biológica’ na sua versão convencional – aquela que aprendemos na escola
e lemos nos livros.
Conta J. Bronowski, num tom romântico, em seu ótimo livro A As-
censão do Homem que, durante a Revolução Biológica, “de repente a plan-
ta e o homem se uniram como numa história de fadas da genética” (e
viveram felizes para todo o sempre, o primeiro sendo comido pelo segun-
do). Bem, se o casamento do Homem com a beterraba é uma história de
fadas, a simbiose do Homo sapiens com o Equus caballus é o maior épico
da história da genética universal, incluindo-se o incrível capítulo em que
alguns dinossauros viraram pássaros. A união neurofisiológica do homem
com o cavalo representa um salto qualitativo na fisiologia da humanidade
e dá início a uma série de super-homens do naipe de Alexandre Magno,
Júlio César, Atila, Genghis Khan, Carlos Magno, Pizarro, Wellington e Na-
poleão que fizeram fama e fortuna em união com seus cavalos. (Diz Gabby
Hayes, o filósofo da equitação, que se não fosse o cavalo, o nome de Gen-
ghis Khan seria inevitavelmente – Genghis Quem?) Vejamos o porquê:
Com o cultivo do trigo e de outras plantas, o homem aumentou dra-
maticamente o consumo de carboidratos e vitaminas, e o comércio da sa-
fra excedente permitiu ao lavrador acumular riquezas e construir cidades
(para a alegria e o encanto dos arqueólogos). Com a domesticação do boi
para tração, o homem ganhou energia além da sua própria força muscular.
Mas carboidratos são encontrados em outros alimentos e a força de cinco
ou seis homens equivale à força de um boi. Portanto podemos afirmar,
sem solicitar o aval de instâncias superiores, que esta parte da ‘Revolução
Biológica’ foi apenas uma conquista ‘quantitativa’. Aumentou-se a quanti-

32
Parte I Catalisador da História

dade daquilo que já existia.


O “big bang” da ‘Revolução Biológica’ foi indiscutivelmente a união
simbiótica do homem com o cavalo porque esta união agregou ao homem
um valor qualitativo. Isto porque, cinco, dez ou cem homens não podem
atingir a velocidade de um homem a cavalo – o que faz da simbiose ho-
mem-cavalo um fenômeno qualitativo e representa o pináculo de toda a
Revolução Biológica.

Transformar manadas de cavalos selvagens numa economia de pastoreio


bem- sucedida foi um processo de ensaio e erro que durou milhares de
anos. Os vestígios arqueológicos desta fase da história são relativamente
escassos, como é escasso tudo o que envolve a evolução das mentalidades
humanas antes da escrita. Temos como testemunho do sucesso das
sociedades pastoris das estepes o impacto devastador (ou o sucesso
esmagador, a depender do ponto de vista) das suas guerras contra as
civilizações agrárias que, no mesmo período, estavam construindo suas
cidades através da Eurásia. Do choque entre agricultores assentados e
pastores nômades nasceu uma estrela que brilharia no céu das civilizações
avançadas por 50 séculos – o Homo-caballus, o catalisador da história.

33
Bjarke Rink

CAPÍTULO 5

Homo-Caballus,
o Catalisador da História

A formação cultural de uma sociedade de pastores nômades envolve o


profundo conhecimento do manejo de cavalos em campo aberto. Esta tecno-
logia pressupõe a tal confiança entre as duas espécies envolvidas – o homem
e o cavalo. Para controlar emocionalmente uma manada, é preciso conhecer
os hábitos, os costumes e a organização social dos cavalos para, a partir daí,
administrá-la. Esta experiência exigiu mais criatividade do Homo sapiens
do que lascar pedras, aprender a cozinhar, atirar com arco e flecha – e até
mesmo plantar e colher. Por meio do manejo do cavalo, o homem das estepes
atingiu uma organização socioeconômica de grande sucesso. Mas, no início
da nova atividade, o pastor de cavalos encontrou um problema difícil de
ser resolvido – ao contrário do trigo e da cevada, o cavalo é cheio de idéias
próprias e quando resolve correr ninguém o segura.
Há 4 milhões de anos, o homem não era especializado em nada; co-
mia o que aparecia, de gengibre a cupim. Mas, com o aumento da po-
pulação e da complexidade social, que provocou o desenvolvimento e o
aumento do seu cérebro, muitas tribos abandonaram a coleta e a caça e
passaram a explorar melhor os recursos das regiões em que viviam. Na
Ásia Central, em algum ponto entre o Mar Negro e o Cáspio, há cerca de 6

34
Parte I Catalisador da História

mil anos, surgiram alguns agrupamentos humanos que se especializaram


em manejar cavalos. Binóculo neles:
Lá estão eles, correndo a pé e caçando cavalos com arco e flecha igual
aos povos que pintaram estas cenas nas cavernas de Altamira, Lascaux,
Les Combrelles e Chauvet. Mas repare que, com o passar dos anos, eles pa-
ram de caçar os animais e aprendem a acompanhar os bandos e a conviver
com os cavalos. Este novo modo de vida requer técnicas mais difíceis do
que as de caçar, mas trazem grandes vantagens econômicas. Pastoreando
os cavalos, os nômades administram melhor os recursos disponíveis e evi-
tam as correrias desenfreadas que, frequentemente, terminavam com as
suas barrigas vazias.
Enquanto o agricultor ao sul da Ásia aprendia a prever as estações do
ano para controlar o tempo do plantio, o pastor nômade ao norte apren-
dia a controlar o circuito do pastoreio dos cavalos nas diferentes estações
do ano. A primeira regra desta técnica é a de conviver em harmonia com
os animais. Para estabelecer um relacionamento de confiança mútua, é
preciso que o cavalo aprecie e aceite a companhia do homem. Por isso, os
antigos pastores nômades desenvolveram uma ‘técnica de aproximação’
do cavalo que se tornaria a base de um relacionamento de confiança. Des-
ta técnica de aproximação nasceria um código de relacionamento social
homem-cavalo, onde o homem cuidava do cavalo, sendo responsável por
sua alimentação, tratando de suas feridas, jamais abatendo um animal à
vista da manada e protegendo-os contra os seus predadores.
A domesticação de éguas para produzir leite também foi um passo
importante para assumir a liderança dos cavalos selvagens. Com gran-
de capacidade de percepção, o pastor nômade aprendia ‘como’ os cavalos
se organizavam em hierarquias e, para controlar a manada, ele passava
sutilmente a controlar os seus líderes – principalmente as éguas. Tudo o
que envolve cavalos requer muita sensibilidade, organização e raciocínio
rápido. Por exemplo, se o pastor prender uma égua durante toda a noite,
ao soltá-la de manhã ela o levará ao encontro do bando, onde quer que
estivesse. Para controlar o bando também era necessário castrar os gara-
nhões excedentes e identificar quem era dono de qual cavalo, fazendo-se
um corte na orelha ou aplicando uma marca na pele. Curar a diarréia de
potros, reconhecer e combater doenças com ervas fazia parte do dia-a-dia
do pastor nômade. Como consequência de toda esta tecnologia, o homem
das estepes aos poucos assumiu a liderança da manada e construíram-se
as primeiras sociedades pastoris baseadas na criação de animais, princi-

35
Bjarke Rink

palmente cavalos.
Repare que todas estas experiências com cavalos são altamente so-
fisticadas, do ponto de vista do aprendizado humano. A neurociência já
nos ensinou que o relacionamento com seres vivos requer uma compre-
ensão de causa e efeito maior do que o manuseio de ferramentas e coisas
inanimadas. Por isso, o nômade, vivendo no meio dos cavalos, se tornou
um perito na difícil arte de lidar com este tipo de animal. Assim como
o plantador ao sul aprendeu a manejar a sua lavoura, o pastor ao norte
aprendia a manejar a sua manada. Enquanto o homem da lavoura inven-
tava ferramentas – enxadas e foices para plantar e colher – o homem do
cavalo inventava a peia e uma série de laçadas de corda para imobilizar e
melhor tratar dos seus animais.
Um dia se iniciariam os confrontos militares entre essas duas cul-
turas, que determinariam qual o sistema social – o nômade ou o agrário
– viria a promover maior desenvolvimento da mente humana e maior su-
cesso econômico. Aguarde.
Para o nômade das estepes, a manada de cavalos se tornou a razão
da sua existência, do mesmo modo que a plantação era para o agricul-
tor especializado em plantas. O cavalo transportava os seus utensílios de
acampamento em acampamento; os animais forneciam carne e as éguas
leite, coalhada e queijo, que eram a base da sua alimentação. O feltro fa-
bricado com pêlo de cavalos cobria as suas tendas e com os fios da cauda
elaborava enfeites, utensílios e cordas de amarrar. O cavalo era moeda de
barganha e os nômades se transformaram em grandes comerciantes de
animais. Numa criação de cavalos, “nada se perde, tudo se transforma”,
diria Lavoisier em meu lugar. Existia, entretanto, um problema no manejo
de cavalos que parecia insolúvel para o nômade. Quando os cavalos, por
algum motivo, resolviam disparar – não havia quem os segurasse. Isto era
para o pastor – equipado com o pior sistema locomotor da natureza – uma
questão da maior gravidade. Se um leão, lobo ou raio estourasse a mana-
da, em poucos minutos os cavalos desapareciam no horizonte. Depois, só
com sorte e muitos dias de busca seria possível aos homens, a pé, locali-
zarem os animais sem perdas. É claro que os nômades tomaram muito
prejuízo até descobrirem uma solução para o problema, que viria a ser um
verdadeiro o “ovo de Colombo”.
Ninguém sabe ao certo o que levou ao desenvolvimento da equitação.
Harold Barclay, em seu livro O Papel do Cavalo na Cultura do Homem, cita
vários autores, mas mostra mais simpatia por uma das teorias que é, a meu

36
Parte I Catalisador da História

ver, a única viável: a equitação foi desenvolvida para controlar a manada.


Porque somente montado em um cavalo o homem pode atingir a veloci-
dade do cavalo! Parece simples, mas é claro que não é. Dominar um cavalo
a partir de uma posição no seu dorso é teoricamente a pior maneira para
conter o animal. Dificilmente uma pessoa no seu juízo normal pensaria
em tal solução. Então como surgiu a equitação? É provável que a idéia
tenha surgido com as crianças.
Crianças nômades, ao manejarem mansas éguas de leite, desenvolve-
ram brincadeiras de montar nos animais. Foco neles: lá está um menino
esperto que monta numa égua e cai. Agora monta uma menina corajosa
que também cai. A criançada zoa, mas a égua, com quem estão brincan-
do, está se acostumando com a farra. De repente, vendo que é tudo uma
grande brincadeira, a égua decide entrar no jogo e pára de se incomodar.
Olha só, a égua está começando a andar por entre as barracas do acampa-
mento nômade com uma criança em cima que a conduz para onde quer
com uma corda na cabeça. Os adultos param os seus afazeres e olham
para a cena rindo – essas crianças inventam cada uma! Nos dias seguintes,
depois de tirar o leite das éguas, as crianças-cavaleiros montam nas éguas
mansas para conduzir a manada até o pasto. Os adultos, que estão por
ali assistindo à traquinagem, acabam compreendendo que o impossível
aconteceu naquele acampamento:

É Possivel Se Conduzir Um Cavalo a Partir


De Uma Posição No Seu Dorso!

Esta descoberta mudou o destino da humanidade e acelerou os acon-


tecimentos históricos até o século 20.

Montado a cavalo, o homem pode alcançar velocidade superior à


programada pela sua constituição biológica, e cavaleiro passou a ter uma
relação com o tempo e o espaço diferente do resto da humanidade. Para ele,
as distâncias diminuíram e o futuro se aproximou – amanhã podia ser hoje
e semana que vem, amanhã. O mundo encolheu e tudo ficou ao alcance
da sua ambição. Há cerca de 6 mil anos, a união simbiótica homem-cavalo
quebrou a barreira do tempo biológico da humanidade e deu início à
história, como a conhecemos.

37
Bjarke Rink

CAPÍTULO 6

Homo-Caballus Quebra
a Barreira do Tempo

A invenção da equitação aconteceu em algum ponto acima do mar


Negro e Cáspio. Incorporando a fisiologia do cavalo à sua, as sociedades
pastoris daquela região passaram a ter a mesma autonomia das manadas
de cavalos selvagens que vagavam pelas estepes infinitas que se estendem da
Hungria até a China. A estes grupos, que incluíam os cimérios, citas, sar-
matios, magiares hunos, turcos e ávaros, os etnólogos dão o nome genérico
de ‘nômades das estepes’. Os arqueólogos não lhes dão grande importância,
preferem os povos sedentários – sumérios, egípcios, indianos, gregos, roma-
nos e chineses que premiam as suas escavações com esplêndidos tesouros
arqueológicos – cidades, monumentos, artefatos e obras de arte. Do Homo-
-caballus das estepes relativamente poucos vestígios sobraram: alguma arte,
ossos e pedaços de equipamento equestre. No entanto, a maior contribuição
ao desenvolvimento da humanidade – a quebra da barreira do tempo – é
um feito dos cavaleiros das estepes eurasianas.
É muito provável que a equitação tenha sido desenvolvida com o ob-
jetivo de controlar os bandos de cavalos – assim como o vaqueiro a cavalo
controla a manada de bovinos. Além da velocidade para perseguir a tropa
em disparada, os animais aceitam melhor ser direcionado por homens a

38
Parte I Catalisador da História

cavalo do que por homens a pé. Todo vaqueiro, gaúcho ou caubói, sabe
disso – pode perguntar. A tecnologia da equitação inventada pelos nôma-
des das estepes envolveu uma importante adaptação entre o homem e o
cavalo. Para ganhar mobilidade total, o nômade fundia a sua neurofisiolo-
gia com a do cavalo. Ele não se preocupava em fazer pose e afirmar a sua
masculinidade mostrando que era ele quem mandava (como é frequente
na equitação do mundo civilizado). A preocupação do cavleiro nômade
era se tornar altamente eficiente na caça e na guerra. Isto significa que,
durante a equitação, o sistema sensitivo-motor do cavalo e o do cavaleiro
tinham que entrar em sintonia fina. Esta fusão sensitivo-motora do Ho-
mem com o cavalo resultou num superpredador equipado com a ambição
do homem e a velocidade do cavalo. Um predador que se especializou em
atacar seres humanos – os agricultores e acumuladores de riquezas que
viviam nas cidades ao sul das estepes, à beira dos grandes rios. Além da
equitação, não há registro de outro fenômeno cultural que tenha causado
maior impacto na vida humana do que a união do homem com o cavalo.
Já aprendemos com a neurociência que o relacionamento com as in-
certezas dos animais é mais estimulante para o cérebro humano do que
lidar com as certezas das plantas. Com o controle absoluto da manada de
cavalos por meio da equitação, os povos das estepes desenvolveram muito
seu cérebro, que foi estimulado a fazer trilhões de novas conexões entre os
seus neurônios para administrar as múltiplas situações de uma sociedade
equestre sempre em movimento. Na sua interação com o meio ambiente
centrado no cavalo, o nômade desenvolveu uma capacidade de raciocínio
tático e estratégico sem similar em outras culturas. Com o desenvolvi-
mento de toda a tecnologia que envolvia o manejo e a equitação do cava-
lo – reprodução, seleção, alimentação, doma, adestramento, treinamento
e manejo dos animais – o antigo pastor-equitador atingiu o ponto mais
alto do desenvolvimento mental da humanidade. A fusão neurofisiológi-
ca do homem com o cavalo na equitação e a agilidade no deslocamento
das sociedades pastoris durante suas frequentes mudanças desenvolveu
nos cavaleiros uma visão abrangente do mundo, impossível ao agricultor
assentado. Da formação e hierarquização de chefes guerreiros escolados
no confronto armado veloz, característico das estepes; da criação de todos
os equipamentos necessários à avançada equitação de guerra – cabeçadas,
rédeas, embocaduras, selas, cilhas, barrigueiras, forros, loros, estribos e
látigos – o material que auxilia a realizar a fusão sensitivo-motora entre
o homem e o cavalo; do domínio do cavaleiro no uso da temível arma

39
Bjarke Rink

clássica da cavalaria ligeira – o arco equestre; do domínio da técnica de


reposição de montarias durante o deslocamento militar, sem a necessi-
dade da remuda; da estratégia e da tática de avanço, recuo, dispersão e
reorganização relâmpago dos cavaleiros armados, os hunos dominaram
grande parte do Velho Mundo e os mongóis formaram o maior império
da história da humanidade.
Um ataque nômade tinha a coordenação instantânea de uma “re-
voada de águias” onde milhares de cavaleiros faziam manobras militares
como se fosse um só. Esta coordenação entre o homem e o cavalo e entre
todos os integrantes da cavalaria rendeu-lhes o nome de Sagitário dado
pelos romanos. A soma desses conhecimentos formou uma gente vivaz,
inquieta, inteligente, de movimentos rápidos e com os olhos sempre volta-
dos para o horizonte e as oportunidades que o futuro lhe oferecia.

40
Parte I Catalisador da História

Os Hunos, afirmavam testemunhas chinesas, estão sempre montados


a cavalo. Às vezes sentam até de lado, se esta posição for mais conveniente
para a realização de alguma atividade (urinar, por exemplo). Não existe
ninguém naquela nação – homem, mulher ou criança – que não possa
ficar montado no seu cavalo por dias e noites seguidos. A cavalo eles com-
pram, vendem, comem, bebem e se reclinam para dormir. O seu esporte
predileto é até hoje praticado no Afeganistão com o nome de Buz Kashi
– um jogo veloz e competitivo que envolve até 300 cavaleiros. Em vez de
uma bola, eles jogam com o corpo de um bezerro. Não é jogo de equipe.
O bezerro é disputado por todos os cavaleiros e vence o homem que con-
seguir agarrar o bezerro, contornar uma bandeira no canto do campo e
voltar com o troféu para um círculo marcado no meio do campo. Desne-
cessário relatar o grau de destreza equestre que esse jogo, o precursor do
pólo, exige de homens e cavalos. Um antigo emissário chinês escreveu que
esse povo equestre faz os seus conselhos de guerra montados e o seu país é
o dorso do seu cavalo. E, naturalmente, o lugar em que se encontrava o seu
cavalo passava também a ser o seu país. De acordo com crônicas chinesas
da época, as crianças hunos aprendiam a montar quando os filhos dos
outros povos aprendiam a andar. A dieta dos cavaleiros era leite e carne
de cavalo consumida fresca, charqueada ou defumada. O leite de égua
era bebido fresco ou em forma de coalhada. Quando necessário, o huno
abria uma veia no pescoço do seu cavalo e bebia o sangue. Isto aumentava
a autonomia da cavalaria nômade em comparação com as cavalarias das
civilizações sedentárias como os gregos, romanos e chineses.
Quando os nômades inventaram a equitação e quebraram a barreira
do tempo humano,3 quebraram também a barreira das suas fronteiras na-
turais, invadiram as culturas sedentárias e deram ao mundo um show de
estratégia militar. A soma das velocidades do raciocínio, do cavalo e das
flechas mudou o padrão do uso do tempo e transformou as suas guerras
em vitórias militares acachapantes. A ação militar dos nômades, princi-
palmente dos cimmerios, citas, hunos, turcos magiares e mongóis, deu
início ao ciclo dos Centauros em cerca de 1.500 a.C e provocou a primeira
grande corrida armamentista da história – uma corrida das sociedades
agrárias para comprar cavalos e dominar as técnicas equestres.
A cultura equestre oriental deu início a uma filosofia de redução do
tempo, que mais tarde seria levada às últimas consequências na cultura

Montado a cavalo, o homem quebrou a barreira do seu tempo biológico e, pela primeira vez,
3

ultrapassou a velocidade dos seus pés.

41
Bjarke Rink

ocidental com importantes descobertas científicas nos setores de trans-


porte e comunicação. Mas, até o século 19, o povo que melhor se adaptou
ao cavalo foi o herdeiro da terra e de todas as coisas que nela existia.

A incorporação do esplêndido sistema locomotor do cavalo libertou o


homem da sua limitação biológica original e tirou o freio da sua ambição.
Com a capacidade de locomoção do cavalo, os hunos de Átila realizaram
uma das grandes proezas da humanidade – capturaram partes da China,
do Oriente Médio e da Europa Central, e fizeram sua capital na Hungria –
ocupando uma extensão territorial de 8 mil quilômetros. O princípio deste
fenômeno – a alteração da relação tempo-espaço do homem a cavalo – um
outro Homo (verdadeiramente) sapiens, chamado Einstein, definiu como a
Teoria da Relatividade do Tempo.

42
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 7

Sobre Átila e Einstein


Com a colaboração involuntária de J. Bronowski

O reino de Átila, com sede na Hungria, pode ser considerado o primei-


ro momento de glória dos cavaleiros das estepes na Europa. Einstein, que
nasceu 1426 anos depois da morte de Átila, teve com o rei dos hunos uma
relação histórica interessante. Átila sendo um formidável representante dos
homens que quebraram a barreira do tempo e Einstein, o primeiro homem
a entender a relatividade do tempo – um conceito de extraordinária sutileza
– representam dois momentos importantes na evolução cultural e científica
da humanidade.
O modo de vida dos povos nômades da Ásia Central levava os
cavaleiros a incursões militares e saques velozes que requeriam forte
liderança e grande senso de organização. Sem planejamento intensivo
e disciplina rigorosa, a vida na estepe seria impraticável. A história co-
nhecida dos hunos começou em 221 a.C. com os conflitos destes com
os chineses. As incursões militares dos hunos na China e o posterior
sucesso das campanhas chinesas contra os nômades provocaram ondas
de emigração em vários sentidos do compasso – tanto em direção à
Europa quanto à Índia. Em 128 a.C., o imperador chinês Wu-ti lan-
çou uma ofensiva decisiva para exterminar os hunos – uma guerra que
durou 100 anos e não teve vencedor. Durante estas ofensivas, muitas

43
Bjarke Rink

tribos de hunos, com sua extraordinária mobilidade, rolaram como


grandes ondas de arqueiros em direção ao Ocidente e acabaram inva-
dindo a Europa.
Átila “O Huno”, (406-453) nasceu na Panônia,4 sucedeu a morte de
seu pai e ascendeu ao trono em 433. Passou os primeiros oito anos do seu
reinado lutando contra outras tribos nômades até tornar-se virtualmente
supremo na Europa Central – na região compreendida entre o Mar Cáspio
e o rio Reno. Átila, durante muitos anos, assolou a península balcânica e
chegou a ameaçar Constantinopla, a parte oriental do Império Romano.
Mas o Imperador Marciano resistiu às suas incursões militares e Átila vol-
tou a sua cavalaria contra o Império Romano do Ocidente, governado por
Valens. Átila aliou-se então aos francos, atravessou o Rio Reno e saqueou
a maior parte da Gália belga. Os bispos da Igreja Católica Apostólica Ro-
mana não gostaram nem um pouco do sucesso militar de Átila que arra-
sava as suas dioceses e o chamaram de “O flagelo de Deus” (em referência
às suas irresistíveis campanhas militares). Dirigindo a sua cavalaria para
o sul, Átila sitiou Orléans, na França, que foi salva por uma confederação
dos exércitos romano e gótico. A famosa batalha dos Campos Catalúnicos
durou um dia inteiro, com ambas as partes sofrendo pesadas baixas, e ter-
minou empatado, com os hunos se retirarando para a Panônia.
Em 452, Átila, com a sua cavalaria de arqueiros, voltou-se para a Itá-
lia, onde atacou Aquiléia, Concórdia, Altinum e Pádua. Os sobreviventes
destas cidades arrasadas, buscando refúgio na costa do mar Adriático,
fundaram Veneza. A seguir, a cavalaria de Átila saqueou Milão e as ci-
dades da Lombardia ocidental.5 Ao se aproximar de Mântua, o rei dos
hunos recebeu a visita do Papa São Leão I em pessoa, que o convenceu
(provavelmente com um rico suborno) a voltar para a Panônia. Dizem os
historiadores mais modernos que, longe de ser o saqueador brutal e san-
guinolento descrito pela lenda, Átila, “O Huno”, era o governante de um
império nômade muito bem organizado. O preconceito contra Átila sur-
giu da reação das sociedades agrárias contra uma arma quase invencível:
a cavalaria ligeira formada por arqueiros com enorme mobilidade e dis-
posição para lutar. (No século 20, a capacidade de destruição do canhão,
da metralhadora e do tanque provocou reações de repúdio semelhantes
das suas vítimas). Nas estepes, a simbiose neurofisiológica entre homem e

4
Panonia: uma província conquistada pelos hunos na Europa Central que engloba os atuais es-
tados da Hungria e da Romênia.
5
Lombardia: região do norte da Itália com a capital regional em Milão.

44
Parte I Catalisador da História

cavalo havia criado uma máquina militar de enorme eficiência, que agora
arrasava a Europa.
Entretanto, a contribuição civilizatória dos cavaleiros das estepes não
foi caracterizada pela construção de cidades com arquitetura suntuosa e
monumentos requintados. Os nômades pouco construíram, mas forma-
ram uma estrutura social altamente eficiente, forjada pela velocidade de
seus cavaleiros. O legado cultural dos povos nômades para a humanidade
foi o desenvolvimento da equitação que promoveu um ‘novo padrão do
tempo’, e que lhes permitiu uma independência inteiramente revolucio-
nária. Este conceito físico de espaço e tempo só foi compreendido muitos
anos depois por um homem incomum nascido numa das antigas zonas de
conflagração entre os cavaleiros hunos e os agricultores europeus. Vamos
conhecer um pouco da história deste extraordinário sábio.
Albert Einstein nasceu em 1879 no sul da Alemanha, na cidade de
Ulm, às margens do rio Danúbio. Desde cedo, o menino Albert mostrava
vocação para os estudos. Em outubro de 1895, dois anos antes da idade
mínima permitida, ele obteve autorização para prestar exame de admissão
para a academia Polytechnikum de Zurique. Fez provas de matemática,
física, química, história literária e política. Não foi aprovado em história
literária e política. Talvez esse contratempo tenha causado a impressão
errônea de que Einstein fosse mau aluno no colégio. Não foi. Na verdade,
ele gostava dos estudos, mas não da escola. (Provavelmente ele achava os
professores medíocres, o que seria normal para um gênio).
Einstein terminou os estudos e, em julho de 1900, recebeu o diploma
de professor de ciências. Mas todas as suas tentativas de ingressar como
assistente nas universidades foram recusadas. Somente em junho de 1902
conseguiu um emprego permanente – um cargo júnior no Registro de Pa-
tentes de Berna, na Suíça. Nesta época, o universo newtoniano ainda batia
firme como um relógio Patec Philipe, mas estava por um fio para enguiçar.
J. Bronowski, com seu costumeiro charme, nos conta o episódio de
Einstein e a Teoria da Relatividade. “O universo de Newton já estava co-
meçando a ser questionado pelo mundo científico”, escreve Bronowski.
“Ninguém sabe, no entanto, se o jovem Albert estaria informado sobre
estas coisas. Parece que ele não teria prestado muita atenção ao assunto na
universidade. Sabe-se, porém, que na adolescência já teria se perguntado
o que as nossas experiências pareceriam do ponto de vista da velocidade
da luz”. A resposta para essa pergunta está cheia de paradoxos e, como to-
dos os paradoxos, a parte mais difícil não é achar a resposta e sim formu-

45
Bjarke Rink

lar a pergunta. O gênio de homens como Newton e Einstein consiste exa-


tamente nisto: eles fazem perguntas aparentemente ingênuas que depois
passam a ter respostas de magnitude catastróficas. Mesmo que Einstein
fale em ‘cavalgar um facho de luz’ ou em ‘cair pelo espaço sideral’, ele está
sempre cheio de ilustrações simples destes princípios. Vamos acompanhar
a descrição de Bronowski:
“Vou até a torre do relógio e entro no bonde que Einstein costumava
pegar todos os dias para ir ao trabalho. O pensamento que Einstein tinha
na cabeça desde a adolescência era este: como seria o mundo se ele caval-
gasse em um facho de luz? Suponhamos que o bonde estivesse num facho
de luz e se afastasse do relógio da torre na praça, no qual ele via a hora.
Com o bonde na velocidade de um raio de luz, o tempo teria de parar.
Deixe-me explicar melhor: suponhamos que o relógio que ficou para trás
na praça mostre meio-dia no momento da partida do bonde; eu agora me
afasto na velocidade de 279 mil quilômetros por segundo, a velocidade da
luz; isto deverá levar um segundo; mas o tempo marcado pelos ponteiros
do relógio continuará a mostrar meio-dia, porque a minha viagem leva
o mesmo tempo que a imagem do relógio, também na velocidade da luz,
leva para chegar até onde estou. Pela hora do relógio que eu vejo, e pela
velocidade do bonde onde viajo, se eu mantiver a velocidade da luz, a
passagem do tempo pára. Este paradoxo esclarece duas coisas. Uma óbvia:
o tempo universal não existe. E outra mais sutil: a experiência é muito
diferente entre o viajante e o que fica em casa, e para cada um de nós
em nosso próprio caminho. A experiência com o bonde é consistente: eu,
Bronowski, no bonde, descubro as mesmas leis, a mesma relação entre
tempo, distância e assim por diante. Mas os valores que eu ganho do tem-
po, distância, etc., não são os mesmos do homem parado na calçada. Este
é o cerne da Teoria da Relatividade.”
Agora vamos finalmente chegar à proposta de reunir estes dois per-
sonagens aparentemente díspares – Átila e Einstein – no mesmo capítulo.
A descoberta da equitação reduziu drasticamente a relação de tempo e
distância para os povos equestres da Ásia Central. Quebrar o seu tempo
biológico foi uma experiência que lhes trouxe enormes benefícios quando
eles usaram este diferencial contra os povos pedestres ainda limitados à
velocidade da locomoção humana. O cavaleiro nômade, sem a riqueza
material do homem assentado e usando somente o componente ‘veloci-
dade’, saqueou cidades, conquistou impérios e fez o que teve vontade de
fazer – um conceito hoje profundamente ligado ao gênero Homo. Ou,

46
Parte I Catalisador da História

como disse Einstein, “os valores que eu ganho do tempo, distância, etc.,
não são os mesmos do homem parado na calçada”. O cavaleiro nômade
simplesmente encurtou a distância entre o hoje e o amanhã e, se você
pode estar num lugar hoje em vez de amanhã, você mudou totalmente os
valores da sua existência. Este ‘diferencial de tempo’ desenvolvido pelos
cavaleiros das estepes foi o motor da humanidade até os dias de hoje e
tem, na formação da Internet, o seu mais novo momento de glória. O
fato é que a quebra da barreira do tempo por meio da equitação, e as suas
consequências físicas, chegaram a Einstein através de sucessivas culturas
equestres que aceleraram a história e formaram o pensamento da socieda-
de ocidental – da qual ele foi um expoente.
A sensação de ultrapassar a velocidade do seu próprio limite físico
foi experimentada pela primeira vez quando o homem, a cavalo, libertou
o seu corpo da sua limitação pedestre e passou a navegar em um ‘novo
padrão de tempo’. A libertação do corpo trouxe a libertação da mente e,
sem esta experiência, a humanidade não poderia ter chegado à Teoria da
Relatividade na época em que foi formulada. Como disse Bronowski em
outro trecho do seu livro – “Acho que o cavalo e a equitação, na história
da Europa, foram subestimados”. Mas eu sou ainda mais radical – acredito
que o impacto do cavalo e da equitação no destino da humanidade ainda
não foi sequer compreendido.

Newton, ao observar a queda de uma maçã, formulou a Lei da Gravitação


Universal e Einstein, com mais 200 anos de experiência intelectual
acumulada, se colocou no lugar da maçã e formulou a Teoria da
Relatividade. E tudo isso foi possível porque a nova dinâmica equestre
havia quebrado a barreira do tempo da humanidade, impulsionando as
civilizações equestres em direção à revolução tecnológica do século 20.

47
Bjarke Rink

CAPÍTULO 8

A Dinâmica Equestre
Impulsiona o Mundo

Será que a humanidade tem consciência da súbita aceleração dos acon-


tecimentos históricos depois do desenvolvimento da equitação, e que resul-
tou no desembarque do homem na lua? Será que a ignorância pública sobre
a importância da equitação pode ser debitada apenas à falta de perspectiva
histórica depois da vertiginosa trajetória dos países do ocidente para a pros-
peridade, que começou durante a Renascença, há apenas 500 anos? Agora,
a antropologia e a neurociência podem começar a iluminar a era em que a
capacidade cerebral do homem ultrapassou a capacidade de locomoção dos
seus pés e ele descobriu que podia diminuir o tempo e aumentar o seu suces-
so com a incorporação do sistema locomotor do cavalo.
Todo ser vivo – desde a invisível ameba até a gigantesca sequóia –
nasce, desabrocha, espalha o seu gene e morre. Mas animais como insetos,
répteis, pássaros e mamíferos nascem com um sistema locomotor com o
qual eles conseguem diminuir o tempo e o espaço entre eles e uma oportu-
nidade – seja para comer uma noz, encontrar uma parceira, ou aumentar
a distância entre eles e algo desagradável que se aproxima. Pernas são as
estratégias mais comuns para o deslocamento dessas criaturas, mas asas
também são bastante populares e alguns animais sem vestígios de asas ou

48
Parte I Catalisador da História

pernas podem alcançar grande velocidade ao se rastejarem para livrar-se


de uma situação difícil.
A capacidade de locomoção levou estes animais a demarcarem a área
que eles acreditam ser necessária para viver – conhecida como ‘espaço
vital’. Para se movimentar em seu território e vigiar as suas fronteiras,
muitos mamíferos desenvolveram cascos nos pés para resistir ao desgaste
da sua locomoção diária. Como cascos fendidos não são recomendáveis
para longas e velozes viagens e os animais equipados com este tipo de
calçado geralmente ocupam um “espaço vital” menor, eles, em compensa-
ção, desenvolveram chifres para ajudar a se defenderem. Quando o boi foi
domesticado, o ‘espaço vital’ da humanidade não foi aumentado porque
gado bovino não ocupa, individualmente, grandes extensões de terra.
Mas o Equus caballus, como o conhecemos, passou por um longo
período de evolução, desde um pequeno animal com quatro e até cinco
dedos em cada pé, até se transformar no solípede monodáctilo, como os
estudiosos insistem em chamar o cavalo. Com a estratégia de dedos múl-
tiplos, os antigos equinos provavelmente ocupavam um ‘espaço vital’ me-
nor do que o Equus caballus, o cavalo moderno. O novo membro unidi-
gital, capaz de desenvolver grande velocidade sustentada, possibilitou ao
cavalo transitar sobre vastas áreas de pastagens – e, mesmo tendo o hábito
de marcar o seu território com pilhas de estrume, ele não tem a mesma
dependência com o seu “espaço” como alguns outros animais. Mesmo as-
sim, o cavalo tem um certo ciclo de pastoreio que ele vai cumprir desde
que haja abundância de capim. Mas, se o produto rarear, ou a manada for
importunada por um predador, com um piscar de olhos ela vai desapare-
cer no horizonte à procura de uma vizinhança mais tranquila. O Equus
caballus é um cidadão do mundo! Quando os nômades da Ásia Central se
uniram ao cavalo e, mais tarde, desenvolveram a equitação, eles passaram
a adotar o seu ‘espaço vital’ e também se tornaram cidadãos do mundo.
Porque, como já vimos, o homem foi agraciado com o pior sistema loco-
motor do reino animal, pois o gênero Homo foi concebido por Deus para
se deslocar pelos galhos das árvores utilizando os braços e não para andar
com os pés no chão.
Antes do desenvolvimento da equitação, o homem só se deslocaria da
sua terra natal movido por alguma catástrofe ou em razão de algo urgente
como relatado no livro A Guerra do Fogo, por J. H. Rosny. Não é para
menos; equipado com apenas duas pernas que terminam com dois pés
longos e moles, andar a pé nunca foi muito popular para o Homo sapiens.

49
Bjarke Rink

Por isso, os antropólogos nos informam que o homem foi concebido para
viver sua vidinha no torrão de sua terra natal até o chamado do nosso
Senhor, porque o ‘espaço vital’ dos hominídeos era bastante limitado. Mas
o cavalo e a equitação iriam mudar isso tudo.
Como já vimos, a simbiose com o cavalo foi ainda mais importante
para a expansão tecnológica da humanidade do que o desenvolvimento da
agricultura. Entretanto, o problema da equitação (nada é perfeito) é que o
sistema de locomoção humano vem acompanhado de um cérebro capaz
apenas de coordenar um sistema bipedal. O cavalo, por outro lado, é capaz
de coordenar um ágil sistema locomotor de dois, três e quatro tempos. O
cavaleiro nômade, para capacitar o seu cérebro a interagir com o sistema
locomotor do cavalo, teve de submeter a sua capacidade de aprendizado

50
Parte I Catalisador da História

a um duro teste, pois a coordenação dos dois, três e quatro tempos do ca-
valo é dificílima para o cérebro de um ser bípede. Mas quando o nômade
da Ásia central conseguiu conectar e afinar o seu sistema neurofisiológico
com o do cavalo, formando assim o Homo-caballus, este novo ser conse-
guiu ocupar o espaço vital do cavalo – a estepe da Eurásia, que se estende
da Europa oriental à China ocidental. Em associação com o cavalo, o ho-
mem se tornou o dono do mundo e de todas as coisas que ele continha! A
equitação havia iniciado uma nova dinâmica do tempo!
Há cerca de 60 séculos, a Ásia Central foi o berço de uma sociedade
dinâmica, organizada em torno do cavalo, que se irradiou em todas as
direções – Leste, Oeste, Norte e Sul, mudando a concepção do tempo de
todas as culturas que contatava.
O cavalo se tornou fundamental para o desenvolvimento humano e,
com o tempo, a criação de cavalos aumentou muito com a demanda de
animais para sela das sociedades agrárias do sudeste da Ásia e da Chi-
na, preocupados em formar cavalarias para se defender das incursões dos
seus vizinhos das estepes. Através do comércio e da guerra, as cavalarias
nômades impuseram uma nova dinâmica do tempo ao processo civiliza-
tório da humanidade. Desde a sua origem, a equitação e o poder equestre
se espalhou pelo mundo em círculos cada vez mais amplos.
No Mediterrâneo, os gregos e os romanos foram diretamente afeta-
dos pela equitação persa,6 mas, como aconteceu com os outros povos se-
dentários, eles se preocuparam mais com seus carros de guerra puxados
por cavalos e por isso nunca atingiram uma equitação de qualidade. Esta
falta de tecnologia equestre lhes custaria o império. Em Roma, o crescente
tropel das ondas de cavaleiros nômades estourando contra as fronteiras
do império foi ouvido durante séculos sem que os magistrados romanos
dessem importância. Quem poderia enfrentar o poderio de Roma? Mas,
quando as cavalarias das tribos nômades arrebentaram as fronteiras e
inundaram a bota italiana, elas tragaram no seu vórtice o maior império
do Planeta como se fosse a água servida de uma banheira!
A península Ibérica, Portugal e Espanha adotaram a dinâmica equestre
dos seus conquistadores mouros, e tornaram-se os melhores cavaleiros da
Europa Ocidental. Na Europa Central, as regiões que mantinham contato
direto com as estepes – a Polônia, a Hungria e a Áustria – foram muito
influenciadas pela dinâmica equestre e também formaram boas cavalarias.

A Pérsia havia sido formada com várias etnias de pastores nômades e, por isso, possuía uma
6

sólida cultura equestre.

51
Bjarke Rink

Mas o noroeste da Europa, sobretudo a Inglaterra, França, Bélgica,


Holanda e a Alemanha, seria por muito tempo intocados pela ‘nova onda
equestre’ que se espalhava como uma epidemia por toda a Eurásia. Estas
regiões, isoladas por florestas e pântanos, impróprias para ações de cava-
laria, levariam muitos séculos para desenvolver a equitação. Neste meio
ambiente de comunicação lenta, as notícias não circulavam direito até a
Renascença, e o lavrador europeu era tão ignorante sobre o mundo como
o homem paleolítico. Enquanto o duque de Newcastle podia se especiali-
zar na Escola de Equitação de Nápoles, a maioria de seus agregados nunca
sairia do condado inglês em que nasceram.
Por milhares de anos o noroeste da Europa não seria tocado pela ‘di-
nâmica equestre’ que transforma os hábitos e expande os conhecimentos
com a circulação de novas idéias. Mas, eventualmente, a dinâmica eques-
tre chegaria lá também.
A difusão da ‘dinâmica equestre’ no noroeste da Europa teve o seu
início entre os nobres na Idade Média que, além de se tornarem cavaleiros,
contrataram uma rede de mensageiros para se comunicar com os nobres
de outros reinos. Essa ‘dinâmica equestre’ deu início à comunicação mo-
derna. Postos de correios públicos e a equitação particular começariam a
furar as bolhas de ignorância que persistiam em muitos cantos da velha
Europa até a Renascença.
Mas, no dia em que um camponês de Grassington disse: “eu tenho
um tio em Gloucester que me escreveu que, se você descansar a terra por
um ano, no próximo ela produzirá em dobro”, este foi um sinal seguro de
que as notícias estavam começando a fluir entre todas as classes sociais da
Europa. A circulação universal de informações é importante para uma so-
ciedade dinâmica, pois a retaguarda mal-informada é sempre um estorvo
para a vanguarda bem-informada. (Como hoje é o caso de pessoas que
não têm condições de se conectar ao world wide web). Com as mudanças
socioeconômicas que a equitação trazia para uma sociedade, a dinâmica
equestre desentupiu as velhas artérias da Europa e deu, ao mundo ociden-
tal, uma nova noção da capacidade transformadora de novas idéias.
A equitação na Europa nunca atingiria a agilidade técnica dos cava-
leiros das estepes, mas todos os inventos europeus para economizar tem-
po foram inspirados no cavalo e na equitação, que acabaria lhes dando o
domínio do mundo. A atual idéia da globalização é a consequência mais
visível de uma mentalidade equestre capaz de entender a integração global
das nações. E, é claro, no Ocidente foi Alexandre Magno e seus cavalos

52
Parte I Catalisador da História

de Fergana que mobilizaram este conceito revolucionário e no oriente foi


Genghis Khan. (Veja cap. “Subtrair o Cavalo é Implodir a História”).

O aumento da velocidade da informação e uma coesão social mais ampla


foram as reais contribuições da ‘dinâmica equestre’ para as civilizações
da Eurásia. Mas, apesar de que o cavalo como instrumento de guerra
também teve a capacidade de fragmentar uma sociedade, o perdedor
seria absorvido na sociedade vencedora, formando uma unidade política
mais forte. Esta crescente rede de poder econômico e político baseado na
‘dinâmica equestre’ foi a força que acabaria arremessando o homem à
Lua. E, se este evento não foi a maior façanha do século 20, pelo menos
foi o maior espetáculo tecnológico e um marco evidente de 50 séculos de
dinâmica equestre. Mas, se a importância do cavalo foi subestimada na
história, o impacto do Homem-cavalo sobre o imaginário humano criou
a figura mais extraordinária da mitologia grega – o Centauro, cabeça de
homem e corpo de cavalo.

53
Bjarke Rink

CAPÍTULO 9

Sob o Domínio do Centauro

O mito do Centauro, a fantástica figura meio homem, meio cavalo,


primeiramente citado por Homero, simboliza os cavaleiros da Ásia Cen-
tral que, desde o terceiro milênio a.C., devastavam os povos agrícolas em
grandes partes da Eurásia. As incursões das cavalarias nômades somente
serenaram cinco séculos antes da Era de Ouro da Grécia Clássica, deixan-
do no seu rastro o mito do Centauro. Por isso, a mitologia grega é ambígua
em relação ao Centauro – às vezes apresentando-o como um inimigo trai-
çoeiro e, em outros momentos, como inteligente, conhecedor da equita-
ção, caça, música e medicina. A razão para esta dualidade de atitude é que
o Centauro – o guerreiro das estepes – era, quando amigo, o mais precioso
e, quando inimigo, o mais perigoso.
Na medida em que a expansão do poder equestre se alastrava pela
Ásia Central, as incursões de cavaleiros nômades saqueando os vilarejos
dos camponeses ao sul das estepes se tornaram mais frequentes. E, en-
quanto as fronteiras dos povos cavaleiros se expandiam em todas as dire-
ções do Velho Mundo, o “efeito Cortês”, o pavor dos agricultores indefesos
que avistam pela primeira vez a aproximação de cavaleiros armados para,
em seguida, serem capturados ou mortos e terem as suas vilas saqueadas,

54
Parte I Catalisador da História

deixou marcas profundas nas sociedades agrícolas. Este medo atávico da


combinação Homem-cavalo é a razão da mitologia do Centauro, que tem
assombrado os povos sedentários desde tempos imemoriais.7
Os arqueólogos agora acreditam que os ataques dos cavaleiros nôma-
des aos assentamentos agrícolas começaram já no terceiro milênio a.C.,
provocando as chamadas “migrações dos povos”,8 quando populações in-
teiras, arrasadas pelas cavalarias nômades, devastavam outras comunida-
des agrícolas em seu caminho de fuga, causando ondas de destruição em
massa por grande parte da Eurásia. O impacto dos ataques dos guerreiros
montados, e as ondas de fugitivos desesperados tomando outras terras de
assalto, mudou o mapa étnico e político de grande parte da Eurásia. O tro-
pel dos Centauros saqueadores só cessou no primeiro milênio a.C., cerca
de 150 anos antes de Homero. Quando Heródoto,9 no século quinto an-
tes de Cristo, escreveu A História de Heródoto, o mundo dos agricultores,
depois de milênios de opressão das cavalarias nômades, havia finalmente
conseguido se organizar politicamente, construir cidades muradas, me-
lhorar a qualidade de suas armas, e adotar o cavalo como arma de guerra
para enfrentar os ataques dos “bárbaros”. No tempo em que Heródoto, o
“pai da história”, viajou pela Ásia Menor, Oriente Médio, Itália e a Sicília
para documentar a história de seu tempo, a cultura das sociedades pas-
toris estava em declínio e as civilizações sedentárias, agora adaptadas ao
cavalo, estavam em ascensão.
O primeiro parágrafo de Heródoto faz a luta travada entre o Leste e
o Oeste ficar muito clara – “Estas são as pesquisas de Heródoto de Hali-
carnasso, que ele publica na esperança de preservar a lembrança do que os

7
A história universal confirma este medo do Centauro. O objetivo fundamental da Grande Mu-
ralha da China não era impedir a penetração dos nômades. A sua finalidade era impedir que os
hunos passassem com seus cavalos; o verdadeiro inimigo não era o homem – e sim o Homem-
-cavalo. Hernán Cortês conquistou, com apenas 16 cavalos, a capital asteca – um império com 2
milhões de habitantes. Quando a infantaria ameríndia do Rei Montezuma avistou o avanço dos
fabulosos animais guerreiros com duas cabeças, fortemente armados e em enorme velocidade,
aterrorizada, submeteu aos deuses invasores o seu império com mais de 500 anos de cultura e
tradição.
8
A ‘Migração dos Povos’ foram sequências de invasões de tribos cavaleiros da Ásia Central,
devastando povos sedentários da Ásia Menor e Oriente Médio que provocou, durante milênios,
a fuga de populações inteiras que, por sua vez, saqueavam outros povoados em seu caminho de
fuga.
9
Heródoto (485-425 a.C.): historiador grego, nascido em Halicarnasso na Ásia Menor. Viajou
extensamente por grande parte do Oriente Médio, Itália, e Sicília, onde coletou material para
a sua grande narrativa histórica que registrou as batalhas entre os gregos e os persas. Cícero o
chamou de o ‘Pai da História’.

55
Bjarke Rink

homens fizeram, e evitar que as grandes e maravilhosas ações dos gregos


e dos bárbaros percam o seu devido tributo de glória; e registrar nos anais
à razão das suas disputas”. Como você pode ver, os historiadores ociden-
tais têm sistematicamente chamado todo o tipo de cavaleiro com tradição
pastoril de “bárbaro”. Os “bárbaros” do tempo de Heródoto eram princi-
palmente os persas que formaram um vasto império no Oriente Médio,
que ao norte margeava o Mar Cáspio, ao sul alcançava o Golfo Pérsico, ao
oeste a Líbia e ao leste o atual Paquistão. Heródoto começou a escrever os
seus anais alguns séculos após a subjugação dos cavaleiros nômades pelas
civilizações clássicas e a cultura grega aproximava o seu auge.
Pode-se dizer que a ‘Idade Equestre’, o período histórico em que ca-
valos e cavaleiros estavam no centro dos acontecimentos mundiais, come-
çou em 1500 a.C., quando os citas ocuparam as terras ao norte e a leste do
Mar Negro e estenderam o seu domínio até o Mar Cáspio. Neste período,
até a Idade Média, a supremacia militar tem pendido alternadamente en-
tre as federações de cavaleiros nômades e as civilizações de agricultores
sedentários. No tempo de Heródoto, as sociedades pastoris estavam pas-
sando por sua primeira “Idade das Trevas”, o eclipse do seu poder militar,
mas, mil anos depois, os impérios sedentários estariam novamente ceden-
do à pressão dos cavaleiros nômades e a crise do mundo clássico atingiria
o seu auge no século quinto d.C com o declínio do Império Romano e a
consequente “Idade das Trevas” do Ocidente.10
A Eurásia, no auge do Império Romano, já estava totalmente mobi-
lizada pela ‘dinâmica equestre’, e Epona, uma divindade celta protetora
dos cavalos, foi adotada pelas unidades de cavalaria do exército romano e
a sua imagem colocada em estábulos por toda a Europa ocupada. Baixos
relevos encontrados na Europa romanizada mostram Epona montada em
seu cavalo, trajando uma longa capa e segurando as chaves do estábulo.
O Cavalo Branco de Berkshire é a mais dramática representação de um
cavalo pelos celtas na Idade do Ferro. Essa gigantesca figura, medindo
quase 200 metros de comprimento, foi esculpida em baixo relevo numa
encosta de giz no condado de Berkshire, na Inglaterra, 100 anos antes do
nascimento de Jesus Cristo, e 50 anos antes da primeira invasão romana,
liderada por Júlio César. A figura de Berkshire é provavelmente uma re-
presentação zoomórfica de Epona – uma espécie de Centauro feminino
dos celtas.

A Idade das Trevas é considerada o período entre o declínio de Roma no quarto século d.C. até
10

o período imediatamente anterior à ascensão de Carlos Magno no século 6.

56
Parte I Catalisador da História

Para os guerreiros vikings, o barulho do trovão era causado pelo car-


ro de batalha de Odin, o deus da guerra, galopando para mais um combate
nos eternos campos do céu. Os eslavos da Europa central, descendentes
dos hunos, adoravam a Muromyets, cujo fantástico poder sobre os mor-
tais era multiplicado mil vezes por seu cavalo alado. A civilização grega
floresceu com uma riquíssima mitologia envolvendo o cavalo. Os nume-
rosos deuses e divindades do Olimpo estavam frequentemente associados
a cavalos. É grega também a figura mítica mais fantástica de todas – o
Centauro – meio homem e meio cavalo. Essa figura mitológica foi prova-
velmente inspirada nos citas, um povo nômade cavaleiro que, desde 1500
a.C., estava expandindo a sua influência na Ásia entre o Mar Negro e o
Cáspio. A durabilidade do mito do Centauro tem, certamente, muito a ver
com o impacto milenar das sociedades pastoris e suas cavalarias sobre as
civilizações sedentárias do Velho Mundo.
Em grego, a palavra Centauro significa ‘guardião do gado’ e é uma re-
ferência óbvia aos povos cavaleiros das estepes. Alguns historiadores afir-
mam que essa fabulosa criatura foi inspirada nos cavaleiros da Tessália,
pastores da Grécia antiga. Mas acho mais plausível que o mito do Centau-
ro tenha surgido depois do terceiro, e, especialmente, do segundo milênio
quando os cavaleiros da Ásia Central devastaram grande parte da Eurásia
com consequências dramáticas para as culturas vivendo às margens do
Mar Egeu, o Oriente Próximo, o Oriente Médio e até o Egito.
As sociedades pastoris e as culturas sedentárias estiveram em opo-
sição feroz desde que a domesticação dos animais dividiu as populações
humanas em dois tipos de sociedades: assentados e nômades, a depender
da disposição do indivíduo de trabalhar numa comunidade agrícola fe-
chada ou vagar pelo mundo a cavalo em busca das várias oportunidades
oferecidas por Deus e pelos homens. Em razão desses dois estilos de vida
completamente diferentes, as economias pastoris e agrícolas forjaram so-
ciedades com mentalidades opostas que estiveram em conflito por quase
toda a história conhecida. Durante a Idade Equestre, a fortuna da guerra
penderia a favor de uma ou outra cultura – geralmente vencia aquela que
estivesse mais bem adaptada ao cavalo e à equitação.
“O cavaleiro é mais do que um homem – montar um cavalo simbo-
liza o ato de domínio sobre toda a Criação”, escreveu J. Bronowski em A
Ascensão do Homem; “Não é possível, hoje, recapturarmos o terror que o
aparecimento de homens montados a cavalo despertou no Oriente médio
e na Europa oriental. Isto porque, há uma diferença de escala que só posso

57
Bjarke Rink

comparar com a chegada de tanques à Polônia em 1939, varrendo tudo


que estava à sua frente”. As Escrituras encontradas nas cavernas do Mar
Morto também narram, com palavras de dor e ódio, a chegada dos roma-
nos em Israel, há cerca de 2.100 anos:
“Mais velozes do que panteras, seus cavalos, mais ligeiros do que
os lobos do deserto. Seus cavalos, galopando, se espalham, de longe eles
voam como aves de rapina em direção ao alimento, todos com intenções
violentas, seus rostos sempre voltados para frente. Os kittim11 pisoteiam a
terra com seus cavalos e bestas. De longe eles vêm, da costa do mar, para
comer o povo como abutres insaciáveis. Com raiva, hostilidade e arrogân-
cia... seus rostos sempre voltados para frente”.
Estas frases descrevem com uma clareza comovente a tragédia de um
povo sendo devastado por uma horda de Centauros. Tentar recriar a es-
tranheza, logo transformada em pavor, de um grupo de agricultores da
Antiguidade que desconhecem a equitação e são atacados, pela primei-
ra vez, por um bando de guerreiros montados é impossível. O pavor da
morte só pode ser compreendido por quem já foi por ela ameaçada. Mas,
imagine por um instante que nós dois somos agricultores da Antiguidade
e notamos, ao longe, um grupo de estranhas criaturas que se movimen-
tam em nossa direção com uma determinação só conhecida nos animais
predadores. A gente pára de cavar a terra e começa a notar detalhes apa-
vorantes dos monstros que se aproximam: cada animal tem duas cabeças,
seis pernas e dois braços. A parte debaixo, que galopa junto ao chão, pa-
rece um bicho selvagem, mas acima das orelhas do animal aparece uma
outra cabeça pintada que é, sem dúvida, de gente. Antes que possamos
distinguir mais detalhes dessas monstruosidades que avançam a galope
em nossa direção, eles, subitamente, formam numa linha paralela ao ho-
rizonte e aumentam a carreira como feras fechando o cerco. E, antes que
o horror da presença desses animais apavorantes penetre inteiramente no
nosso consciente, as flechas começam silvar por todos os lados à procura
das partes delicadas do nosso corpo.
A mitologia grega é ambígua quanto aos Centauros – às vezes mos-
trando-os como inimigos traiçoeiros e, às vezes, como sábios na arte da
equitação, caça, música e medicina. A moral disso é que, historicamente, o
Centauro – o homem com a força e a velocidade de um cavalo era, quan-

“Kittim” era o nome popular dado aos romanos, mas pela qualidade da equitação descrita
11

no versículo esses cavaleiros eram, provavelmente, uma força de cavalaria mercenária berbe-
re.

58
Parte I Catalisador da História

do amigo, o mais valioso de todos e quando inimigo, o mais perigoso. A


dicotomia ‘amigo’ e ‘inimigo’ provavelmente representa as alianças e as
guerras entre os agricultores gregos e os cavaleiros das estepes nos tempos
anteriores à adoção do cavalo na cultura grega.12 Na mitologia grega, os
antigos heróis sempre derrotavam os Centauros, o que é, sem dúvida, uma
versão correta das disputas entre as culturas pastoris e agrícolas na Idade
de Ouro helênica. O que Heródoto não poderia ter previsto era o futuro
declínio do Império Greco-Romano causado por novas ondas de Centau-
ros – hunos, avaros, alanos, godos, turcos, magiares, lombardos e mongóis
– que, no segundo milênio d.C., estavam novamente em ascensão e causa-
riam a queda dos maiores impérios sedentários do planeta.

A mitologia do Centauro – o sonho do homem organicamente unificado


ao cavalo – é certamente o arquétipo das cavalarias nômades da Ásia
Central – cimérios, citas, hunos, sarmátios, turcos e tantos outros – que,
por milhares de anos, desafiaram o sonho das populações domesticadas
de viver uma vida segura e previsível. Os guerreiros das estepes eram os
símbolos da liberdade das leis urbanas, da burocracia, da superpopulação
e da artificialidade ambiental. O Estado de guerra entre as sociedades
nômades pastoris e civilizações urbano-agrárias foi o catalisador dos
principais eventos históricos até a Renascença.

O medo atávico da combinação Homem-cavalo pode estar por trás da proibição chinesa e do
12

descaso dos russos aos esportes equestres uma vez que, por meio do regime comunista, os cam-
poneses tomaram as rédeas do governo e, por isso, passaram a odiar os cavalos, símbolos da sua
opressão passada. Na Inglaterra a tentativa de proibir a caça à raposa pode estar relacionada a
essa mesma causa.

59
Bjarke Rink

CAPÍTULO 10

Os Mestres do Tempo
e os Mestres do Espaço

Se for correta a afirmação científica de que os neurônios humanos de-


senvolvem padrões cerebrais para lidar com o meio ambiente, o planeta Ter-
ra deve ter produzido dois tipos principais de mentalidades: a inteligência
urbana-agrária e a inteligência nômade-equestre. A mente urbana-agrária
desenvolveu a agricultura e a arquitetura, e a mente nômade-equestre, o
pastoreio e a equitação. Estes dois tipos de mente formaram dois tipos dis-
tintos de vida, que se tornaram muito bem-sucedidos e na História iriam
entrar em choque com frequência. O século 13 seria palco de um dos maio-
res duelos entre estes dois estilos de vida, quando as cavalarias mongóis rom-
peram as suas fronteiras, conquistaram um quarto da massa terrestre do
planeta e desafiaram a Europa Ocidental para um duelo.
A agricultura e a arquitetura foram duas tecnologias desenvolvidas
por povos com o mesmo tipo de padrão cerebral, já que planejar lavouras
e construir casas é o produto de um senso espacial muito bem desenvol-
vido. Depois de inventar a agricultura, o Homem seria a única criatura
terrestre capaz de adaptar o meio ambiente às suas necessidades e vonta-
des. Isto levou os povos sedentários a desenvolver uma economia urbana
e agrária que moldou todas as sociedades modernas. Com a evolução das
técnicas agrícolas – do pau de cavar na Antiguidade, ao arado de boi na

60
Parte I Catalisador da História

Idade Média – as técnicas de arquitetura saltaram do casebre de pau-a-


-pique à suntuosa estética da arquitetura gótica.
Mas, enquanto os pedreiros europeus desenvolviam a sua habilidade
de adaptar o espaço urbano e agrícola para o uso humano, na estepe asi-
ática um outro meio de vida também estava se tornando bem-sucedido
– o manejo de cavalos e a equitação, que produziu a ‘dinâmica equestre’,
focada na velocidade do cavalo, no movimento constante da comunidade,
que resultou num amplo conhecimento topográfico e num alto senso de
estratégia global desenvolvidos pelas sociedades pastoris.
Está imbuída no cérebro humano a vontade de desenvolver tudo o
que funciona bem, e, por isso, as culturas sedentárias desenvolveram con-
tinuamente estratégias para criar novas e belas soluções arquitetônicas. Da
casa de taipa à alvenaria inca, da pirâmide egípcia à pirâmide maia, dos
templos gregos aos arcos romanos, a arquitetura foi ficando cada vez mais
elaborada, bonita e grandiosa.
Entretanto, enquanto os povos assentados desenvolviam as suas téc-
nicas agrárias e estilos arquitetônicos, os nômades na grande estepe asiáti-
ca, depois de se promover a simbiose com o cavalo e anexar o seu sistema
locomotor, estavam também aprendendo a formar um sutil repertório de
movimentos cooperativos com os movimentos do animal – desenvolven-
do um sentimento instintivo para a equitação, que transformaria a combi-
nação Homo-Caballus no maior predador da história, capaz de conquistar
reinos e impérios com o poder da sua velocidade física e mental.
No século 12, o mundo assistiu a duas das maiores façanhas intelec-
tuais da humanidade: o surgimento da arquitetura gótica e a formação do
Império Mongol. A arquitetura gótica foi o produto de um desenvolvido
sentido espacial capaz de transformar um bloco de mármore numa ima-
gem de Cristo, e uma pilha de pedras num templo de Deus. Por outro
lado, o Império Mongol foi o resultado de um senso de estratégia global,
que pôde transformar a ação militar de cavalaria em enormes conquistas
territoriais e materiais. Ou, como Einstein mais tarde definiu o fenômeno
da velocidade: “Os valores que eu ganho do tempo, distância, e assim por
diante, não são os mesmos para o homem parado na calçada”.
Nenhuma obra arquitetônica pode ser comparada às catedrais góti-
cas que vieram à luz no século 12! Os estudiosos estão maravilhados com
elas. E elas realmente são um trabalho de alvenaria de altíssima qualidade.
Pode-se dizer que as catedrais góticas representam o ápice da mente urba-
na-agrária, com os neurônios interligados para perceber a profundidade

61
Bjarke Rink

do espaço cúbico e dar-lhe forma material. O maçom, ao utilizar a força


natural da gravitação, assentando a pedra no nível exato e inventando o
arcobotante pênsil, transformava pedras brutas numa catedral que existia
unicamente na cabeça do construtor!13 A cultura ocidental, urbana e agrá-
ria havia se tornado mestre do espaço cúbico!
Entretanto, nenhuma conquista jamais poderá ser comparada a do
Império Mongol, formado por Genghis Khan no século em que os pedrei-
ros franceses iniciaram a construção da catedral de Reims. No trabalho da
sua vida, Genghis Khan conquistou mais terra e súditos do que todos os
reis e imperadores de Roma reunidos! Ele construiu um império tão vasto
que, em suas próprias palavras, levava um ano para viajar do centro para
qualquer um dos lados dos seus domínios!
Genghis Khan, o imperador nômade, desenvolveu uma mente capa-
citada para o raciocínio tático/estratégico que, utilizando o tempo de uma
forma revolucionária, lhe trouxe grande sucesso material. Com o uso da
velocidade do cavalo, a cavalaria mongol era capaz de derrotar qualquer
outro exército do seu tempo, e a rapidez das suas comunicações permitia
coordenar esforços militares a centenas de quilômetros distantes uns dos
outros. No século 13, os mongóis haviam se tornado os indiscutíveis ‘mes-
tres do tempo’.
A construção da catedral gótica de Reims, na França, começou no
século 12. As paredes parecem feitas de luz. O corpo do prédio dá a im-
pressão de ser mais alto do que é na realidade porque ele afina em direção
à cúpula. A fachada apresenta-se ornada com 2.500 estátuas de santos. Os
pilares são cruciformes e coroados com folhagens esculpidas. No interior,
as janelas, alongadas e repetidas em relevo, refletem nas paredes cinza-
-azuladas as luzes coloridas dos seus vitrais. Os majestosos espaços inter-
nos são sustentados, não por paredes maciças, mas por colunas delicadas
e ricamente decoradas com uma fina estatuária de ouro, pedras preciosas
e tapeçarias da mais pura lã e seda. O arcobotante, ligando as nervuras da
abóbada aos contrafortes das naves laterais, recebeu formas finas e gracio-
sas, aumentando a beleza do exterior. A catedral gótica de Reims é uma
obra de arte que transformou esta cidade no centro artístico da Europa
Medieval, onde eram coroados os reis da França.
Mas, enquanto os maçons, Jean d’Orbais, Jean Lioup e Gauchier de
Reims, dedicavam as suas vidas a realizar esta maravilhosa obra de arte,

Os construtores medievais não usavam ‘plantas baixas’ – um projeto arquitetônico estava arma-
13

zenado na cabeça do mestre-de-obras que o implementava de memória.

62
Parte I Catalisador da História

que seria considerada uma das mais belas da arquitetura Ocidental, Ogdai
Khan e Batu Khan, filho e neto de Genghis Khan, estavam expandindo a
grande obra político-militar dos nômades asiáticos: o Império Mongol.
Quando os mongóis, em 1237, desencadearam a sua vitoriosa cava-
laria sobre a Europa, uma extensa expedição logística havia precedido a
invasão. Com o detalhamento que caracterizava as operações militares
dos mongóis, um plano fora traçado para que o grande exército não ti-
vesse de atravessar um território desconhecido. Depois de cinco anos de
colheita de informações, os Khans iniciaram a sua cavalgada em direção
à Europa, numa coluna de cavaleiros disciplinados que se estendia por
900 quilômetros, com cavalos condicionados e homens treinados para a
guerra. Este foi certamente um dos grandes momentos da história militar
da humanidade. A brilhante ‘mente equestre’ dos conquistadores mongóis

63
Bjarke Rink

estava prestes a arrebatar um dos prêmios mais altos que a inteligência


humana poderia aspirar, depois da conquista da China – a conquista do
mundo ocidental. E o Equus caballus, o melhor companheiro do homem,
forneceu a velocidade e a resistência sustentada que ele havia desenvolvi-
do através de milhões de anos vagueando pelos continentes do planeta.
Depois da expedição de reconhecimento mongol, centenas de pro-
blemas táticos haviam sido resolvidos acerca do tempo e da distância que
o exército teria de vencer. Detalhes das rotas mais curtas, as fontes d’água,
a qualidade dos pastos, as travessias de montanhas e rios, a oposição mi-
litar a ser enfrentada, a localização precisa de fortes, vilas e cidades que
tinham de ser conquistadas para fornecer provisões – tudo fazia parte da
grande estratégia militar para conquistar a Europa.
O gigantesco exército de 120 mil cavaleiros (não era uma “horda”
como os invejosos historiadores ocidentais iriam chamá-lo depois) avan-
çava 90 quilômetros por dia e a intercomunicação dos ‘ordus’14 podia co-
brir 750 quilômetros em 24 horas, com o uso de uma combinação de men-
sageiros velozes e sinais de fumaça colocados em posições estratégicas.
Cada cavaleiro levava um farnel para dez dias e três cavalos para trocar
de montaria – além de sua disciplina de ferro. Foi um movimento militar
brilhante, com centenas de milhares de Centauros se aproximando de um
objetivo situado cinco anos adiante no tempo: quando a Europa ocidental
deveria receber o “freio de ouro” – como os cavaleiros asiáticos chamavam
metaforicamente as suas conquistas!
A Bulgária, na costa do Mar Negro, foi o primeiro reino da Europa a
cair diante da cavalaria de Batu Khan, com a assistência do general Sabu-
tai. A seguir, numa extraordinária campanha de inverno, Sabutai atacou
os principados Russos a oeste do rio Volga e, antes que o degelo de 1238
tivesse transformado o chão num lamaçal, os principados de Ryazan, Vla-
dimir e Moscou não mais existiam!
Agora, firmemente acampado nas estepes ao sul da Rússia, Sabutai
lançou a sua cavalaria contra Kiev, que caiu no dia 6 de dezembro. A Li-
tuânia, a Polônia e a Hungria seriam os próximos principados a receberem
o “freio de ouro”. O exército de cavaleiros avançava com extraordinária
rapidez e, em março de 1241, a Cracóvia estava em chamas. Em Legniz, o
exército de Henrique II da Polônia, reforçados pelos Cavaleiros da Ordem
Templário e os Cavaleiros da Ordem Teutônica, tentaram interromper o
avanço da cavalaria nômade. Mas a cavalaria européia não estava à altura
Ordus: divisão da cavalaria mongol.
14

64
Parte I Catalisador da História

da cavalaria mongol. O cavaleiro asiático, cavalgando como uma unidade


biológica com seus cavalos, onde todo um grupo armado podia manobrar
como se fossem uma revoada de águias, era guiado por bandeiras colo-
ridas durante o dia e tochas flamejantes durante a noite – uma cavalaria
irrefreável. Bombas de fumaça mascaravam os ataques mongóis e os exér-
citos europeus raramente sabiam de onde viria o próximo ataque.
As lentas táticas defensivas dos paladinos europeus, pesadamente
equipados com armaduras, escudos e lanças, não podiam ser comparadas
com a velocidade e a precisão da equitação nômade. No dia 9 de abril de
1242, o exército de Henrique II foi aniquilado e a Polônia foi conquistada
pelos “Cavaleiros do Diabo”, como os historiadores ocidentais iriam cha-
mar a cavalaria voadora dos mongóis.
Apesar de operarem em ‘ordus’ separados, os Khans trabalhavam
num esforço militar coordenado. Kuiuk Khan, em Hermstadt na Romê-
nia, distante 900 quilômetros de Subutai, foi informado das suas vitórias
na Polônia no dia seguinte da batalha, e conseguiu destruir o exército da
Transilvânia antes de se deslocar para a Hungria. Tendo conquistado a Po-
lônia, os exércitos dos Khans se juntaram para tomar a Hungria, o portal
de entrada da Europa. Kuiuk Khan estava entrincheirado com seu exército
perto da cidade de Gran, em território húngaro; Batu Khan havia atraves-
sado as montanhas Carpátias e se aproximava na velocidade de 90 qui-
lômetros por dia; e Sabutai vinha pelas margens o rio Tisza com rapidez
igual. No dia 11 de abril, depois de um combate violento, o exército do rei
Bela foi totalmente destruído no planalto de Mohi, e a Hungria ocupada.
(Bela escapou). Depois do massacre, uma testemunha informou que en-
controu cadáveres de cavaleiros europeus numa extensão de dois dias de
viagem. Todas as terras entre o Mar Báltico e o rio Danúbio haviam sido
conquistadas pelo exército Mongol.
Depois da Hungria, o próximo país na linha de conquista dos Khans
era a Áustria e, em seguida, a Europa ocidental, e todos tremiam! No ve-
rão de 1242, a “Horda Dourada” marchou sem oposição até os portões de
Viena. Um diplomata inglês que acompanhava o exército de Batu Khan foi
enviado para exigir a rendição da cidade. Este acontecimento poderia ter
mudado o destino da Europa e do mundo.
Enquanto os moradores de Viena aguardavam horrorizados os re-
sultados das negociações, numa manhã as planícies em frente da cidade
amanheceram sem cavaleiros! Ogodai havia falecido na Mongólia e os
príncipes e os líderes militares foram convocados a Karakorum, a capital

65
Bjarke Rink

do Império Mongol, para a eleição do novo Khan. A Europa Ocidental foi


salva pela disciplina de ferro do exército dos Khans!
Para julgar o desenvolvimento da civilização ocidental na Idade Mé-
dia, basta observar as catedrais góticas em Alcoçaba, Trondheim, Wro-
claw, Castel do Monte e, especialmente, as da França e da Inglaterra.
Mas compreender a tecnologia equestre e a inteligência estratégica
dos mongóis, sem estar de posse de provas materiais do seu poder mental,
é um assunto a ser discutido por antropólogos no futuro. Entretanto, a
moderna estratégia de ‘pensar globalmente e agir localmente’ é uma he-
rança equestre proveniente das ações de cavalaria. E ninguém jamais utili-
zou esta estratégia melhor do que os Khans do Império Mongol.

A aceleração da história, por meio da velocidade do cavalo, e o


desenvolvimento do tipo de inteligência catalisado pela equitação –
nunca foram claramente entendidos pelos nossos estudiosos. A fúria de
historiadores ‘eurocentrados’ contra os “bárbaros”, geralmente acusando-os
de “crimes contra a humanidade”, é um dos fatores que tem impedido a
compreensão destes fenômenos. Mas entender ‘como’ a cavalaria mongol
se transformou na ‘máquina de guerra’ mais eficiente da história da
humanidade será, provavelmente, uma das revelações a serem feitas
por antropólogos e historiadores com o desenvolvimento da história das
mentalidades no século 21.

66
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 11

Homo-Caballus por Cinquenta


Séculos de História

Por mais de 5 mil anos, a história do homem se confundiu com a his-


tória do cavalo. Desde as grandes culturas equestres dos hititas, assírios e
egípcios; passando pelas ondas de arqueiros hunos saídos da Ásia Central;
a mortífera cavalaria de Genghis Khan, os Cavaleiros de Cristo na Idade
Média, até as guerras nacionalistas e os conflitos imperialistas da Europa
que grassaram até o século 19. Sob o impacto do ‘dinâmica equestre’, nações
se formaram, impérios foram conquistados, e a coesão desse caleidoscópio
político foi mantida com a velocidade do cavalo. Os impérios antigos usaram
o cavalo para puxar os seus carros de guerra, considerados uma ‘sofisticada’
arma militar. Mas, com o tempo, este tipo de combate se tornou obsoleto em
face da maneabilidade da cavalaria nômade. Depois da queda do Império
Romano, a cavalaria pesada assumiu a supremacia militar na Europa e deu
as cartas políticas e econômicas até o século 20.
A primeira cena da história do homem e do cavalo teve início há al-
guns poucos milhões de anos, quando o Homo-habilis, enjoado de comer
insetos acompanhados com salada de folhas, começou a caçar pequenos
mamíferos, entre eles o Hiracotério, um ancestral do Equus caballus. Há
apenas 15 ou 10 mil anos, o cavalo começou a ensaiar a segunda cena

67
Bjarke Rink

da sua história com o homem. As manadas de cavalos, na sua incessante


procura por alimentos, eram frequentemente seguidas por tribos de caça-
dores e coletores que delas viviam. Com o tempo, algumas éguas mansas
passaram a fornecer leite durante o verão. Mas essas sociedades nômades,
em perpétuo movimento, tinham, depois da questão alimentar, um outro
grande problema para ser resolvido – o transporte de seus utensílios do-
mésticos nas mudanças frequentes de um acampamento para outro. Na
Idade Paleolítica já se usava o cachorro, atrelado entre duas varas, para
ajudar a arrastar as sobras de comida, artefatos de caça e demais utilidades
essenciais. Na Idade Neolítica, o cavalo passou a fornecer a melhor força
muscular que a humanidade, até então, conhecera – a ‘dinâmica equestre’
ou Horse Power (até hoje, símbolo da nossa medida padrão de força mo-
triz).
Há 5500 anos, a roda foi inventada na Mesopotâmia e, com o tempo,
a feliz idéia se espalhou pela Índia, Irã e em direção do Cáucaso, sendo
utilizada em veículos de tração bovina. A expansão da cultura da roda
um dia se chocou com o avanço da cultura do cavalo originada com os
nômades das estepes, agora também em franca expansão. Nesta ‘pororoca’
cultural, o povo da roda aprendeu que o cavalo se movimentava muito
mais depressa do que o boi e não precisava descansar duas vezes por dia
para ruminar, e assim adotou o cavalo. O povo do cavalo, por sua vez, no-
tou que o carro de boi transportava muito mais carga que o velho sistema
de varas arrastando no chão, e adotou o carro com rodas. Com esta nova
traquitana, ficou consolidado o melhor sistema de transporte de carga que
a humanidade até então concebera – a carroça, com duas ou quatro rodas,
puxada a cavalo. Como tudo o que o Homem inventa, ele procura logo
um jeito de levar vantagem sobre o vizinho. E, uma vez resolvidos os pro-
blemas mecânicos para transformar a carroça (devagar quase parando),
puxada a boi, em um carro veloz puxado por cavalos, o caminho estava
livre para o terceiro ato da história do homem e do cavalo: o do carro de
guerra, em forma de biga e quadriga, uma moda que tomou conta de to-
das as sociedades sedentárias (que sempre adoraram carros) que tivessem
acesso a cavalos.
A cultura do carro de guerra se desenvolveu há cerca de 4 mil anos,
num ponto intermediário entre o Mar Cáspio e o Mar Negro, e entre o
Mediterrâneo e o Golfo Pérsico – uma região fronteiriça entre a Rússia,
a Turquia, o Irã e a Síria. A cultura do carro depois se espalhou em todas
as direções do compasso – inicialmente em direção à Pérsia, ao Iraque,

68
Parte I Catalisador da História

à Síria, à Índia e ao Egito para, em seguida, tomar o rumo da Grécia, da


Europa Mediterrânea e, finalmente, por toda a Europa. Por onde o carro
e o cavalo de guerra chegavam, surgia uma “elite”, cujo “direito divino”
era pilotar o moderno veículo militar. O carro de guerra acabou, porém,
apresentando o mesmo defeito do automóvel moderno – só funcionava
bem em terrenos planos, sem obstáculos. Qualquer impedimento como
uma vala, um barranco ladeiro, um rio, uma pedra, um tronco ou até mes-
mo uma outra biga quebrada no caminho poderia parar o veículo. Com
o tempo, essa limitação funcional tornou os carros de guerra obsoletos
e estes começaram a ‘sair de linha’, primeiramente na Pérsia, depois na
Europa Mediterrânea e, finalmente, na Europa do Norte, uma das regiões
mais atrasadas da Eurásia.15
Em todas as culturas agrárias, o carro de guerra cedeu lugar à cavala-
ria. Os últimos a substituí-lo foram os povos das Ilhas Britânicas. Quando
Julio César, em 55 a.C., invadiu a Inglaterra, ele escreveu o seguinte rela-
to: “Os carros de guerra continuam uma parte importante do arsenal in-
glês. Esta é a maneira deles lutarem com os carros: primeiro, eles galopam
em todas as direções jogando lanças e, normalmente, o terror inspirado
por seus cavalos e a barulhada das rodas jogam as linhas inimigas em
confusão. Desta maneira, eles demonstram em batalha a mobilidade da
cavalaria e a estabilidade da infantaria e, com a pratica diária, eles conse-
guem controlar os cavalos ao galope até em barrancos e lugares íngremes,
parando-os e virando-os em um momento”. Agora, caro leitor, você pode
acreditar no que acaba de ler? Sobre a maneabilidade de 4 mil bigas em
batalha? Esta ficção foi obviamente escrita para impressionar os senadores
romanos e fazê-los conceder a Julio César o direito de realizar um desfile
triunfal após vencer um inimigo extremamente “feroz”. Podemos até acre-
ditar que os carros de guerra pudessem aterrorizar os aborígines Celtas
que habitavam o resto da ilha – mas a maneabilidade destas bigas é pura
fantasia e jamais assustaria a uma falange romana. Quando, em 42 a.C., o
Imperador Cláudio invadiu as ilhas Britânicas e quebrou o poder do rei
Cassivellaunus (sem um arranhão à sua pessoa, como ele mesmo confes-
sou), o símbolo do atraso dos ingleses, notado e comentado por um oficial
numa carta escrita para a família, foram as “charangas” de guerra, cujas
formações anacrônicas foram esmagadas pela infantaria romana. Em
quem você acreditaria – em César, o homem que queria ser cônsul, ou em

Como esporte, as corridas de biga, primeiramente citadas nos poemas Homéricos, continua-
15

ram sendo populares até o Império Bizantino, há mil anos.

69
Bjarke Rink

Cláudio, o Imperador que não possuía rivais? O desaparecimento do carro


de guerra iniciou uma nova era para as culturas sedentárias – um tempo
de cavaleiros, paladinos, hussardos e cavalarianos. Agora chegara a vez
das cavalarias e a sua extraordinária mobilidade nos campos de batalha.
A transformação universal do cavalo de carro em cavalo de sela foi
último ato da história do homem e do cavalo. O Exército Imperial de
Roma, na época a maior potência militar do planeta, transformou lenta-
mente as suas formidáveis legiões de infantaria em uma força de cavalaria,
no tempo compreendido entre os últimos cônsules da República (Pompeu
e Crasso, 80 a.C.) e os últimos imperadores romanos do Ocidente (cerca
de 400 d.C.).
A primeira verdadeira batalha entre duas armas de cavalaria aconte-
ceu em 378 d.C., quando um exército romano, liderado pelo Imperador
Valens, atacou um campo fortificado dos godos perto de Adrianópolis.
Enquanto os romanos assaltavam o trem de suprimentos, eles foram sur-
preendidos por milhares de cavalarianos godos e hunos que voltavam de
uma ação de pilhagem. Com lanças e sabres, os cavaleiros godos, apoia-
dos por arqueiros hunos, dizimaram 40 mil soldados romanos e o próprio
Imperador Valens foi morto no combate. Foi uma das batalhas decisivas
que precipitou a queda do Império Romano e iniciou 1500 anos de su-
premacia da cavalaria pesada na Europa. E, assim, a cavalaria continuou
suprema até as primeiras décadas do século 20, quando inventaram o Ford
“bigode”, o avô do fusca. E foi iniciada a era dos automóveis.

Por 50 séculos de civilização, a equitação acelerou o desenvolvimento


social, decidiu conflitos militares, circulou informações e fortaleceu a
economia mundial. Mas, o que teria acontecido ao homem se o Equus
caballus não tivesse aparecido, como a carruagem da Cinderela, para
salvá-lo da sua condição de pedestre e conduzí-lo para a maior aventura
da sua História? É uma pergunta que merece uma resposta. Enquanto
os antropólogos e demais ‘ólogos’ a quem esta causa pertence não se
pronunciarem, vamos para mais uma eletrizante aventura do Homo-
caballus na história da humanidade.

70
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 12

Subtrair o Cavalo
é Implodir a História

É difícil se estimar quanto o relógio cultural da civilização ocidental


teria de ser atrasado se o cavalo e a equitação não existissem, e quanto os
avanços tecnológicos da humanidade teriam sido reduzidos se o homem es-
tivesse amarrado à velocidade dos seus próprios pés. Sem cavalos, em que
estágio de desenvolvimento se encontraria os países do ocidente hoje? A Eu-
ropa estaria provavelmente organizada em cidades-estado fortemente ar-
madas no modelo da Alemanha medieval, e se as Américas tivessem sido
descobertos haveria lá provavelmente alguns assentamentos semelhantes ao
longo da costa atlântica. Se o cavalo tivesse sido extinto juntamente com o
mamute, a história da humanidade teria de voltar a algum ponto passado,
ninguém sabe qual.
Quando Moisés liderou a fuga dos judeus do cativeiro no Egito, o
Mar Vermelho não se abriu espetacularmente para dar passagem aos fi-
lhos de Jeová. Pra quê tanta pressa? Os soldados do faraó Ramsés II, que
perseguiam os israelitas a pé, estavam a muitas horas de distância dos fu-
gitivos (estamos imaginando a história sem cavalos). A seguir, Charlton
Heston, na margem egípcia do Mar Vermelho, negociou calmamente com
alguns pescadores árabes que, por um punhado de shekels, transporta-
riam tranquilamente o Povo Escolhido para a Terra Prometida. Viu só?

71
Bjarke Rink

Sem cavalos, até o Velho Testamento perderia a graça.


Agora, vamos falar sério. Sem cavalos, o primeiro Império, o dos hi-
titas, não se materializaria. Se os exércitos hititas, a pé, conseguissem con-
quistar a Anatólia, seria impossível consolidarem um grande império com
uma administração centralizada, sem um intercâmbio veloz de informa-
ções. Em outras palavras, sem a dinâmica burocrática possibilitada pela
velocidade do cavalo, não seria possível administrar um império formado
por diversos reinos e, estes, compostos por muitas cidades.
E sem cavalaria como é que Alexandre “O Grande” poderia ter inva-
dido o Oriente Médio, a África e a Índia? O seu exército de 35 mil homens
atravessaria o Helesponto, a bordo de 169 barcos trirremes e rumariam
em direção à Síria e ao Egito. As batalhas contra os persas seriam travadas
exatamente como nos conta Arnold Toynbee. Infantaria contra infantaria,
homem contra homem, espada contra espada. Depois, Alexandre (sem
Bucéfalo) dirigiria a sua hoste em direção aos rios Tigre e Eufrates, in-
vadiria o coração do Irã, de lá atravessaria os Portões do Cáspio. Batalha
seguiria batalha e Alexandre, com a sua infantaria grega, sairia sempre
vencedor – até atravessarem o rio Indus e enfrentar o rei de Porus que,
literalmente, esmagaria o seu exército de infantaria com a sua moderna
tecnologia militar – esquadrões de elefantes de guerra. Este seria o fim do
Alexandre e o seu sonho de unificar o Ocidente e o Oriente.
Esta é, naturalmente, uma descrição linear da derrota de Alexandre
“O Grande” sem a velocidade da sua cavalaria. Mas, esta hipótese tem uma
leitura muito mais sutil. Sem o cavalo, Alexandre nunca teria tido a idéia e
nem os meios de tentar formar um Império Universal – a sua permanente
contribuição para a História. Vejamos o porquê:
A cultura grega foi a primeira a organizar os fenômenos naturais em
sequências de causa e efeito, em vez de atribuir estes acontecimentos à
vontade de deuses pirracentos. Aristóteles foi o primeiro Grego a realizar
extensas pesquisas sobre história, biologia e zoologia. O universo aristo-
télico tinha princípio, meio e fim – e a sua visão do mundo (com todas
as imperfeições) era universal. Alexandre teve Aristóteles como tutor, e
é muito provável que a sua idealização de um mundo unificado tenha se
formado a partir das idéias do seu mestre. Alexandre, quando lançou a
sua expedição lendária para conquistar o mundo conhecido, controlava
todas as variáveis ideológicas e tecnológicas do empreendimento. O seu
sucesso foi resultado de um risco calculado – e o cavalo foi o motor que
possibilitou a épica façanha. A campanha de Alexandre foi, em primeiro

72
Parte I Catalisador da História

lugar, um movimento político. A sua hoste era um centro administrativo


móvel, composto por escribas, engenheiros, técnicos, administradores, di-
plomatas e astrólogos (seguro morreu de velho). O seu objetivo único era
estender a influência política da Macedônia para todo o mundo conheci-
do. Alexandre deixou no seu rastro 70 novas cidades e postos comerciais
fortificados.
Mas, como já disse Clausewitz, “A guerra é a política exercida por
outros meios”, Alexandre também trouxe consigo estes “meios” – a sua
cavalaria. Alexandre contou com 5 mil cavaleiros para dar apoio logístico,
político e militar à sua expedição. Grupos de cavalarianos se adiantavam
incessantemente para reconhecer o terreno e voltar para orientar o corpo
da hoste. Ondas de cavaleiros se irradiavam em todas as direções para
garantir o constante suprimento de alimentos (o raide durou dez anos,
cobriu 33 mil quilômetros, e não contava com suprimentos vindos da
Grécia). Comitivas equestres, compostas por diplomatas e altas patentes
macedônicas, se movimentavam continuamente entre o exército de Ale-
xandre e as cidades dos reis e príncipes que dominavam os territórios por
onde passava. Sem cavalos não haveria como negociar alianças ou decla-
rar a guerra antes da chegada do impressionante exército da Macedônia.
Sem cavalos, Alexandre – o pupilo de Aristóteles – não teria corrido o ris-
co desta aventura sócio-política sem paralelo na história da humanidade.
Porque, sem o cavalo, o projeto de Alexandre seria tão inviável como seria
impossível o desembarque de Neil Armstrong na Lua sem a espaçonave
Apolo.
Pouca coisa do que nos contam os historiadores teria acontecido sem
cavalaria. Poderíamos descartar inteiramente a formação do Império Per-
sa e a unificação da China. O povo da Pérsia, hoje Irã, que ficou famoso
pelo seu uso do cavalo para comunicação e guerra, nada teria realizado
como aparece na História – a sequência infinita de invasões e alianças
que formaram o seu mapa político. A unificação da China também foi de
guerras constantes. Sem a comunicação equestre, o sistema fiscal e legal
desenvolvido no reinado de Ch’i não poderia ter sido imposto aos súdi-
tos, o que esvaziaria a possibilidade de unificação política das cidades que
ocupavam tamanha massa territorial.
Já a história da expansão do Império Romano é diferente. Os roma-
nos não precisariam de cavalos para derrotar os etruscos e fundar Roma.
A sua situação estratégica no centro do Mar Mediterrâneo também per-
mitiria a conquista da costa da África, Ásia e Europa mediterrânea com

73
Bjarke Rink

seu poder naval. Mas, sem o cavalo a sua expansão poderia ter sido bre-
cada por Aníbal nas guerras púnicas. Mas supondo que Roma, sem cava-
laria, tivesse conseguido derrotar Cártago, a próxima etapa da expansão
do Império nunca teria se materializado – as conquistas da Gália e da
Germânia por Caio Júlio César e a subjugação final das Ilhas Britânicas
pelo Imperador Cláudio. A dinâmica burocrática,16 necessária para dar
manutenção política e administrativa a estas províncias distantes, seria
impensável sem cavalos.
Como consequência, a França, a Alemanha e a Inglaterra não teriam
sido romanizadas. E, sem estas três locomotivas a puxar o progresso da
Europa Ocidental, a Lex Romana não teria inspirado o Código de Na-
poleão e a Lex Britânica. Sem a existência dessas potências, a pressão re-
ligiosa e política da Europa renascentista também não teriam, em 1620,
obrigado os puritanos chatos do Mayflower a abandonarem a Inglaterra
e iniciarem a colonização da América. Assim sendo, os Estados Unidos
teriam a sua história irremediavelmente retardada. Mas, vamos supor que
os marinheiros ingleses, franceses e holandeses tivessem içado as suas ve-
las e conquistado a costa Atlântica da América do Norte no século em que
realmente aconteceu. Seria possível a sua expansão continental sem cava-
los? Como teria sido o confronto dos ingleses, sem cavalos, com as nações
Iroquesas, Delaware e Cherokee? Quantos anos levariam para estender a
influência da tribo anglo-saxão pedestre desde a costa do Atlântico até a
costa do Pacífico? Sabemos que, 400 anos antes de Colombo, Leif Ericson
tentou uma conquista da América sem cavalos. Sabemos que os bravos
vikings morreram lutando nas praias. Sem cavalos, a progressão da hu-
manidade teria pouco a ver com a história conhecida. O filme seria outro.
Sem o cavalo, em que estágio evolutivo estaria hoje o chamado Pri-
meiro Mundo? Bem, é difícil estimar – mas quando Homo sapiens assu-
miu a velocidade do Equus caballus e se tornou nômade, ele aumentou
exponencialmente a velocidade do seu desenvolvimento político e militar.
Se as civilizações da Eurásia não tivessem adotado a ‘dinâmica equestre’
para promover o seu desenvolvimento socioeconômico, a Europa teria
tido a sua progressão civilizatória reduzida à velocidade pedestre dos seus
habitantes. Neste caso, a Europa estaria hoje organizada em cidades-esta-
dos, fortemente armadas e semi-independentes, como os burgos livres da
Alemanha medieval. E, se a América do Norte realmente tivesse sido des-

A ‘dinâmica burocrática’ é a velocidade com que as informações do Estado circulam para man-
16

ter a operação administrativa à frente das forças políticas de oposição.

74
Parte I Catalisador da História

coberta por Colombo, ela estaria hoje com uma organização semelhante à
da Europa Medieval por toda a extensão da costa Atlântica e a conquista
do Oeste, para a felicidade da sua população nativa, estaria aguardando os
acontecimentos pedestres do Terceiro Milênio.

É difícil estimar em quantos anos o relógio cultural do Primeiro


Mundo teria de ser atrasado sem a dinâmica equestre – e talvez nunca
saibamos com certeza. Mas, de uma coisa podemos estar seguros: se, por
falta de cavalos, o nosso atraso cultural fosse de irrisórios 100 anos (e
provavelmente seria de muito mais), nenhum dos inventos do século 20
teriam ocorrido e não teríamos automóvel, televisão nem computador
em casa. Vamos examinar, agora, o que aconteceu historicamente com o
progresso social e econômico de importantes sociedades sedentárias que
não conheceram o cavalo.

75
Bjarke Rink

CAPITULO 13

O Tempo Biológico
das Sociedades Pedestres

Os sociólogos reconhecem que a facilidade de estabelecer contatos entre


as sociedades – a aceleração do processo de transculturação – a troca recí-
proca de valores culturais onde os parceiros são ao mesmo tempo doadores e
receptores – é um mecanismo de enriquecimento cultural fundamental para
a evolução de uma civilização, seja por meio de contatos pacíficos ou beli-
cosos. Todo tipo de contato faz a sociedade se modificar, se aperfeiçoar e se
desenvolver. O impacto da dinâmica equestre sobre uma sociedade foi trans-
formador. O cavaleiro foi, por milênios, o mais eficiente criador e difusor
de cultura entre as sociedades do Velho Mundo. O seu poder de gerar novas
idéias, modificar hábitos, formar instituições, inspirar técnicas e fortalecer a
cultura e a economia de um povo, foi fantástico. Mas, o que será que acon-
tece quando uma sociedade não se torna equestre, e o seu padrão do tempo
biológico permanece pedestre?
Nas Américas, alguns grupos indígenas iniciaram a Revolução Bio-
lógica há cerca de 3.500 anos e a cultura do milho se tornou a base da
sua vida, num início de civilização que guarda grande semelhança com
a da Suméria antes da introdução do cavalo. Com a agricultura, muita
gente passou a viver em vilas permanentes e algumas destas chegaram a

76
Parte I Catalisador da História

se transformar em grandes cidades. A cultura Inca, a maior de todos os


Estados pré-colombianos, se instalou num vale no alto dos Andes peru-
anos por volta do ano 1 300 d.C., com a capital em Cuzco. A civilização
consolidou-se em 1438, (quinze anos antes da queda de Constantinopla),
quando o inca Pachacuti assumiu o trono e implantou um estado forte-
mente centralizador. Com Pachacuti no poder, a cultura incaica se expan-
diu para 4 mil quilômetros lineares, de Quito no Peru a Santiago do Chile.
Uma administração bem treinada controlava diariamente a vida de cada
súdito, registrando as horas de trabalho, o tempo de lazer e até os seus tra-
jes! Como no Egito Antigo, funcionários do governo supervisionavam as
grandes obras públicas – estradas e templos eram construídos pelo povo
como forma de tributo.
Contam os pesquisadores, admirados, que os incas desenvolveram
estradas interligadas por caminhos secundários numa rede de aproxima-
damente 40 mil quilômetros. Para encurtar distâncias, escavaram túneis e
construíram pontes suspensas, superando áreas pantanosas e atravessan-
do rios de até 70 metros de largura. A extensa rede viária inca permitia
que as informações viajassem, a pé, facilitando a chegada de tropas aos
lugares de conflitos. Mas apenas os emissários do governo podiam utili-
zar as estradas e se abrigar nos mais de mil ‘tambos’ – estalagens para o
descanso dos mensageiros oficiais. Os estudiosos, entusiasmados, revelam
que, no século 16, o sistema viário dos Incas era o melhor do mundo, mui-
to superior às estradas da Europa que só começaram a melhorar no século
17, depois da invenção do coche. Mas, apesar do desenvolvimento, com a
chegada de Francisco Pizarro em 1532, a cultura Inca desabou como um
castelo de areia! Por que será?
A história da civilização Asteca, separada dos incas por apenas 3 mil
quilômetros de floresta tropical, teve início em 1345. Enquanto os povos
europeus ainda estavam engajados nas Cruzadas, sem dúvida um dos
grandes momentos da transculturação da Eurásia, os astecas ocuparam
a lagoa central do planalto mexicano. De lá, eles se espalharam rapida-
mente, ocupando Tlaxcala, destruindo os Toltecas e escravizando outros
povos mais atrasados. A sua sociedade militar formava uma espécie de
federação de tribos onde os Tenochas, a mais eficiente tribo dos Astecas,
fundaram Tenochtitlan, que 300 anos depois, com mais de 200 mil habi-
tantes, se tornou uma das maiores cidades do planeta.
Essa civilização aumentou espetacularmente a sua área agrícola,
criando ilhas artificiais de fibras vegetais com caminhos suspensos interli-

77
Bjarke Rink

gando as plantações. A sua criatividade e nível cultural eram comparáveis


aos da Mesopotâmia há 7 mil anos. Em 1376, a maior parte da Mesoamé-
rica e dos Andes Centrais estava civilizada. Tecnologicamente, os astecas
poderiam ser considerados uma civilização adiantada: eles possuíam um
sistema de escrita, o fator Zero da matemática e muitas leis avançadas da
astronomia. Mas, sem boi e cavalo, eles não fizeram a descoberta mais im-
portante: a roda. Com a chegada de Hernán Cortés, a civilização Asteca,
com 2 milhões de habitantes, desabou como um castelo de cartas! Dá para
entender?
Os estudiosos explicam que “A América pode ser considerada pe-
los arqueólogos, que estudam o Velho Continente, como uma ‘prova de
laboratório’ de que, em condições parecidas, dois grupos humanos de-
senvolvem estruturas sociais, práticas econômicas e técnicas artesanais se-
melhantes, mesmo encontrando-se completamente isolados um do outro.
É como se os primeiros seres humanos que se espalharam pelo mundo
tivessem no seu cérebro um protótipo de civilização que apenas esperava
as condições e o clima favorável para materializar-se”. Até aí, tudo bem.
“A transição à vida sedentária, após a domesticação de plantas e animais,
demorou 5 mil anos, aproximadamente o dobro do tempo do Oriente Mé-
dio. Esta lentidão criou um desequilíbrio entre o Velho e o Novo Mundo
que perdurou até a invasão européia”, explicam os estudiosos, sem real-
mente dizer o porquê. A partir daí, eles confessam candidamente que não
sabem a razão pela qual a economia dos impérios pré-colombianos era tão
lenta e as sociedades tão frágeis. Os estudiosos confessam não saberem
porquê estas culturas, quando atingiam o estágio de desenvolvimento do
Velho Reinado do Egito, perdiam o rumo e simplesmente implodiam.
Os estudiosos não sabem explicar por que as civilizações mais po-
derosas do Novo Mundo – a Inca e a Asteca – desmoronaram ao fazerem
contato com um punhado de cavaleiros do Velho Mundo. Eles dão, como
causas principais, a falta de coesão entre as classes sociais incas, a falta de
uma linha bem definida de sucessão, além do impacto que os espanhóis
causaram com suas vestimentas, armas e cavalos. No caso dos Astecas,
eles falam também da traição de Cortés, do temor ingênuo de Montezuma
de que os barbudos estrangeiros fossem Quetzalcóatl – um deus do além-
-mar – e debitam a derrocada final à propagação de doenças infecciosas
trazidas pelos conquistadores.
É difícil discernir quem são os mais ingênuos – os estudiosos ou os
indígenas. No futuro, a sociologia, reescrita com a ajuda da neurociência,

78
Parte I Catalisador da História

nos explicará que a interligação da rede de neurônios dos povos pré-co-


lombianos estava muito aquém das experimentadas pelos povos equestres
do Velho Mundo. Por esta razão, os impérios indígenas eram socialmente
inexperientes – formados por culturas cujo aprendizado se resumia exclu-
sivamente a experiências regionais. (Os Incas e Astecas, distante apenas 3
mil quilômetros, nem trocaram figurinhas.) Entretanto, os cérebros indí-
genas tinham o mesmo ‘potencial’ dos europeus, é claro, mas por falta de
troca de experiências, realizaram menos conexões neuronais, expandiram
menos as suas mentes, do que os conquistadores, filhos de um país en-
riquecido com a fusão de dezenas de outras culturas equestres. A Espa-
nha foi colônia de Cartago,17 província de Roma, centro de uma cultura
visigótica e, em 1532, estava recém libertada de uma avançada cultura
muçulmana. A sociedade espanhola era a saudável síntese das experiên-
cias sócio-culturais da Europa, Ásia e África, interligadas pela ‘dinâmica
equestre’. A sua economia já havia passado pelo sistema feudal e estava
em plena expansão mercantilista, numa Europa que já tinha fundado as
suas primeiras empresas de capital aberto. Sabendo que todo tipo de in-
tercâmbio faz a cultura se modificar, se aperfeiçoar e se desenvolver, por
isso é fácil entender porque a Espanha do século 16 era uma das principais
potências da Europa.
Os conquistadores pertenciam a uma das mais experientes nações
equestres do Velho Mundo. O impacto dos Espanhóis sobre as civilizações
Asteca e Inca foi o de uma cultura formada com experiências ‘globaliza-
das’ contra sociedades, cujos membros só tinham experiências ‘locais’. Os
impérios indígenas eram sociedades escravistas fechadas, no estágio dos
antigos druidas. O seu sistema social se equilibrava precariamente sobre
a mais abjeta sujeição do indivíduo ao trabalho escravo com o assassinato
em massa, em nome de crenças escatológicas. As tribos indígenas subju-
gadas estavam em contínua revolta contra os seus opressores.
Quando os conquistadores desembarcaram na América, a colisão da
cultura equestre ibérica com a cultura sedentária indígena rompeu o espí-
rito da sociedade, e os impérios desmoronaram como castelos de cartas.
Curiosamente, um sistema social é semelhante a um sistema imunológico:
se não for exercitado, isto é, fortalecido com novas experiências, cai vítima
do primeiro ataque oportunista que aparecer. Os impérios das Américas

Durante a segunda guerra púnica, no século 2 a.C., o general cartaginês Aníbal utilizou Nova
17

Cartago, uma colônia cartaginesa na Espanha, para invadir a Itália por terra, atravessando os
seus exércitos pelos Alpes.

79
Bjarke Rink

tiveram seus dois sistemas – o social e o imunológico – atacados simul-


taneamente pelo impacto avassalador do Homo-caballus ibericus – e, por
falta de anticorpos, sucumbiram. A mentalidade dos cavaleiros espanhóis,
acelerada pela transculturação promovida pela ‘dinâmica equestre’, derro-
tou a mentalidade pedestre dos indígenas americanos.

Nenhuma sociedade desprovida de cavalos jamais se desenvolveu


politicamente além de cidade-estado. A implosão sistemática das
civilizações pré-colombianas apenas comprova que a ausência da
‘dinâmica equestre’, e da consequente aceleração do processo de
transculturação, faz uma civilização ruir de dentro para fora. Antes da
chegada dos conquistadores, várias civilizações Americanas haviam florido
e de forma misteriosa desaparecido. Ninguém, aparentemente, lembrou-se
da ‘aceleração do tempo histórico’ através do cavalo e da equitação e que o
México, depois do cavalo, atualmente com 98 milhões de habitantes, não
está dando sinais de implodir.

80
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 14

Homo-Caballus nas
Civilizações Sedentárias

Os cavaleiros nômades das estepes, através do comércio e da conquis-


ta, divulgaram a equitação por todo o Velho Mundo. As primeiras comu-
nidades agrárias a adotar o cavalo foram as civilizações asiáticas para se
defender dos ataques das cavalarias nômades, seus vizinhos ao norte. Mas
o modo de vida sedentário modificou intrinsecamente o relacionamento
homem-cavalo. Nas culturas assentadas, o cavalo passou a participar cada
vez menos da vida privada do cavaleiro e cada vez mais no seu desenvol-
vimento econômico. Neste meio ambiente, o homem e o cavalo perderam o
seu estreito convívio, e isto desorganizou completamente a cultura equestre
desenvolvida pelos pastores nômades, onde a relação era baseada na convi-
vência íntima entre cavalo e cavaleiro.
O estreito relacionamento com o cavalo deu ao cavaleiro nômade
grande compreensão da psicologia e da fisiologia equina, que se tradu-
ziu na sua extraordinária habilidade equestre. O início da escravização
sistemática do Equus caballus começou quando os povos sedentários
adotaram o cavalo para conquistar os seus impérios e trabalhar nas suas
lavouras. A soma da capacidade de acumular riquezas com a mobilidade
equina das populações urbano-agrárias possibilitou, como nunca antes, o

81
Bjarke Rink

armazenamento de mais riquezas e a formação de impérios cada vez mais


vastos. Mas o homem sedentário sempre preferiu o carro ao cavalo. Nos
impérios antigos, o carro de guerra – a biga puxada a cavalo – era consi-
derado o máximo em desenvolvimento tecnológico e a equitação, com o
cavaleiro montado no dorso do cavalo, era vista como coisa de “bárbaro”.18
Nos impérios modernos, até o século passado, o uso de coches, carrua-
gens, diligências, tílburis e charretes eram formas de transporte que tam-
bém distanciavam fisicamente o homem do cavalo. Com o cavalo atrelado
ao carro, não podia ocorrer o mesmo fenômeno de união sensitivo-motor
com o homem, como ocorre na equitação. (Gabby Hayes afirma que andar
de charrete é como chupar picolé sem tirar o papel.) Mas, para combater
as eficientes cavalarias nômades, as civilizações agrárias da Eurásia aca-
baram formando as suas próprias cavalarias – e isto mudou a maneira do
homem se relacionar com o cavalo – o que, por sua vez, alterou os princí-
pios biológicos da equitação.
O modo sedentário de viver tem sido baseado na construção de obras
que dêem segurança, conforto e facilidade para a vida do cidadão: pa-
lácios, prédios públicos, residências particulares, igrejas, estádios, forta-
lezas, muralhas, aquedutos, sarcófagos, esgotos, ruas, avenidas e parques
compõem o imobiliário urbano. Neste eterno edificar, o homem assenta-
do construiu duas coisas que iriam destruir o seu relacionamento com o
cavalo: o curral e a baia. Num curral ou baia a aproximação do homem
não precisa ser amigável – o cavalo está subjugado pelo seu confinamento.
Se o animal não gosta da pessoa que se aproxima, ele não tem como fugir.
Em campo aberto, a interação entre o nômade e seu cavalo previa um
relacionamento ‘consentido’, situação que deixou de existir com o manejo
do cavalo em regime confinado. E, pior, o cavalo passou a não ser mais
tratado pelo seu dono orgulhoso ou por sua família dedicada. Nas socie-
dades agrárias a lida passou a ser feita por escravos ou empregados, que
frequentemente davam expansão às suas frustrações existenciais às custas
do cavalo do patrão. Nas sociedades sedentárias foi criada uma nova di-
visão do trabalho, onde surgiram os ‘tratadores’ e ‘práticos’ do cavalo que,
como é comum, guardam os seus “segredos” profissionais como se fosse
a fórmula da Coca-Cola. Nos exércitos, a situação não era muito melhor.
O cavalo normalmente pertencia ao Estado, fazia parte do equipamento
fornecido ao soldado – e como equipamento era tratado. Essa união força-

Muitos faraós e outros chefes militares foram enterrados com as suas bigas, numa demonstra-
18

ção da estima que os proprietários nutriam por seus carros de guerra.

82
Parte I Catalisador da História

da entre recruta e cavalo foi responsável pelo baixo nível de equitação dos
soldados na maioria das sociedades sedentárias, apesar de que, entre os
oficiais, sempre houve bons equitadores. Isto porque os postos de oficiais
de cavalaria eram normalmente ocupados pela nobreza que, em muitos
países, traziam os seus próprios cavalos e tratadores. Nas comunidades
rurais das civilizações assentadas, o confinamento dos cavalos em pastos
e piquetes e a construção de currais, também liquidaram com o relacio-
namento ‘consentido’ que estava na origem simbiótica da equitação dos
cavaleiros nômades.
Para entendermos melhor a história da degradação do relaciona-
mento homem-cavalo nas sociedades sedentárias, temos de fazer uma
distinção entre as culturas agrárias orientais e as ocidentais. No Oriente, o
grau de deterioração do relacionamento homem-cavalo foi provavelmente
menor do que no Ocidente. Isso porque as civilizações do Oriente eram
frequentemente descendentes dos cavaleiros nômades das estepes. O Im-
pério Persa recebeu a sua cultura equestre diretamente dos Medas, de
quem descendiam culturalmente. No Oriente, mesmo sendo necessário o
confinamento dos cavalos em pastos e baias, a técnica do amansamento e
do manejo paciente dos animais, que fazia parte da herança nômade, deve
ter sobrevivido. Provavelmente é por esta razão que Xenofonte, em seu
livro Manual de Cavalaria, escrito no ano 400 a. C., prega a paciência e o
tratamento sem castigos na doma e no adestramento do cavalo. (Veja ca-
pítulo “Xenofonte – Nasce a Equitação Acadêmica”) É importante lembrar
que, naquela época, era estreito o intercâmbio cultural entre a Grécia e o
Oriente Médio, principalmente com a Pérsia. Historicamente, a Grécia foi
o elo de ligação entre o Ocidente e o Oriente, portanto, é muito provável
que os persas tivessem um relacionamento mais franco com seus cavalos
porque eles estavam, em tempo e espaço, mais próximos da cultura eques-
tre das sociedades pastoris.
A Pérsia, no tempo de Xenofonte, era um conglomerado político
conquistado por nômades iranianos – um povo reconhecido pela sua ex-
traordinária capacidade de usar o cavalo para as guerras e as comunica-
ções. Xenofonte, um general da cavalaria grega, chefiou um exército de
mercenários gregos a serviço de Ciro, que travava uma guerra de suces-
são contra seu irmão, o rei Artaxerxes da Pérsia. É mais do que provável
que Xenofonte, com o raciocínio sistêmico dos gregos, tenha aprendido
muito sobre cavalos e equitação com os cavaleiros persas, herdeiros di-
retos de uma grande cultura nômade. Pessoalmente, Xenofonte fez raras

83
Bjarke Rink

referências à equitação Persa (será, sem trocadilho, por xenofobia?). No


seu livro, ele se refere muito a Simon, um general grego contemporâneo,
que também teria escrito um manual de cavalaria, mas que se perdeu.
O livro Manual de Cavalaria de Xenofonte é provavelmente uma síntese
das experiências de um Homem do cavalo extremamente culto e da sua
capacidade de observação e síntese durante uma longa e rica experiência
vivida entre duas culturas avançadas – a grega e a persa.

A degradação da cultura equestre nas civilizações sedentárias é um fato


que deverá ser confirmado pelos antropólogos ainda no século 21. A
formação da cultura equestre da Europa foi a mais tardia do Velho Mundo,
mas com o rápido desenvolvimento econômico depois da Idade Média,
muito tempo e dinheiro foram usados para o burguês desenvolver uma
equitação eficiente que pudesse fomentar o mesmo desenvolvimento social
e econômico que havia transformado todo o continente Eurasiático desde a
evolução da equitação.

84
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 15

A Ascensão do Homo-Caballus
na Europa

Depois da queda de Constantinopla e do rompimento das vias terres-


tres com o Oriente pelos turcos, Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Itália
e Holanda foram os países que melhor integraram as suas comunicações
navais em busca de novos mercados além mar. Em consequência da nova
prosperidade européia, também foram fundadas as primeiras academias de
equitação. Mas estas instituições ainda davam ênfase em ‘quebrar o espí-
rito’ do cavalo em vez de conquistar a sua confiança. A brutalidade, que
fazia parte do relacionamento social na Idade Média, produziu na Europa
uma equitação violenta e de baixo nível técnico. Mais tarde, a tentativa de
explicar a equitação por meio das leis da mecânica fez com que o equitador
europeu enxergasse o cavalo apenas como um veículo! Com a intenção de
organizar uma equitação ‘científica’, o equívoco, a confusão e a polêmica se
prolongaram até o século 20.
A Europa do Norte teve uma longa tradição com cavalos de tração
– um tipo de equino de maior porte, nativo de suas florestas. Por esta
razão, a equitação européia acabou como uma extensão da tecnologia de
atrelagem. A Europa medieval não conheceu nada que se assemelhasse à
habilidade equestre das cavalarias nômades. Com o tipo do cavalo euro-

85
Bjarke Rink

peu – grande, forte e linfático – a tática militar se resumia ao ‘choque de


cavalaria’, onde os cavaleiros, com suas lanças procuravam “atropelar” a
infantaria inimiga e derrubar os cavaleiros adversários de suas selas. Uma
equitação bastante rudimentar se comparada com a velocidade estratégica
e a maneabilidade tática da equitação oriental, principalmente a dos nô-
mades da Ásia Central. Incorporar a fisiologia do cavalo de tração à sua
cultura deve ter atrasado o desenvolvimento social e econômico da Euro-
pa até a revolução cultural da Renascença. “Os camponeses da Europa, em
seu modo de vida, eram quase tão ignorantes sobre o que se passava fora
do seu distrito, quase tão embotados, quanto os habitantes das aldeias”,
escreve Eric Hobsbawm. Mas, em breve, os neurocientistas provavelmente
vão nos explicar que, usando um cavalo mais lento, o homem ocidental
não realizou tantas conexões neuronais quanto o oriental, o que poderá
explicar a razão do atraso com que a Europa ganhou importância no ce-
nário internacional – fenômeno ocorrido há menos de 500 anos.

86
Parte I Catalisador da História

No século 16, as guerras nacionalistas e a expansão urbana e agrícola


começaram a exigir mais e mais ‘horse-power’ – como hoje precisamos de
cada vez mais petróleo e energia elétrica. Já se calculou que, no século 15,
o emprego de animais para carga e tração forneceu à Europa uma força
motriz cinco vezes superior a da China na mesma época. Na Inglaterra,
Alemanha e França, só o camponês absolutamente miserável não possuía
um cavalo para o seu transporte. Os países da Europa Ocidental eram
equestres, sem dúvida, mas possuíam uma tecnologia bem diversa da de-
senvolvida no Oriente.
O relacionamento brutal do europeu com o cavalo espelha a sua ati-
tude diante de todos os fenômenos da natureza, e isto iria se refletir ne-
gativamente na sua cultura equestre. Na Europa, a expressão ‘civilização
humana’ era sinônimo de ‘conquista da natureza’ – e a natureza era algo
que devia ser ‘submetida a ferro e a fogo’. Francis Bacon afirmou que “o
objetivo da ciência é devolver ao homem o domínio sobre a ‘natureza’ que
este perdera com o pecado original”. William Forsyth afirmou em 1802
que “A natureza será dominada, gerida e utilizada a serviço da vida huma-
na”. Nos manuais equestres que começaram a surgir no século 16, montar
a cavalo não era somente um modo de transporte mais rápido e confortá-
vel. Era descrito como um espetáculo no qual se mostrava o “domínio” do
homem sobre “feras domadas”. A equitação simbolizava a ‘racionalidade’
humana dominando a ‘irracionalidade’ animal. A doma violenta e irra-
cional dos animais – uma consequência desta cultura atrasada – se tornou
corrente. A montaria em cavalos “bravios” virou espetáculo de arena, e os
“domadores” eram confundidos com bons cavaleiros. O espetáculo de um
nobre equitador atemorizando um cavalo supostamente “feroz e cruel”
criava majestade e terror aos olhos dos camponeses. À medida que o ca-
valeiro fazia o cavalo saltar, corcovear, galopar e dar voltas, ou habilmente
se mover de lado, o ginete proclamava não só a sua ‘superioridade social’
como o seu domínio sobre toda a criação animal.
O adestramento dos animais ocorria em clima de violência e é com-
preensível que os cavalos detestassem serem montados e criassem perigo-
sos mecanismos de defesa que eram combatidos com mais violência. Os
escrúpulos quanto ao tratamento cruel do cavalo eram afastados pela con-
vicção de que ‘Deus criara o mundo para o homem’. O Europeu acreditava
que havia uma diferença fundamental entre a humanidade e as outras for-
mas de vida. (O sucesso do “macaco pelado” do Ocidente já estava lhe su-
bindo à cabeça). Tudo isso gerou uma cultura equestre de baixa tecnologia

87
Bjarke Rink

que, no Renascimento, obrigou o surgimento de duas novidades: a escola


de cavalaria e o manual de equitação criado para que o nobre e o burguês
pudessem aprender o que o nômade, o criador da equitação, já nascia sa-
bendo. E, infelizmente, os livros produzidos a partir do século 18 analisam
o “fenômeno equitação” cada vez mais por meio da tecnologia mecânica
(puxa aqui, solta ali e aperta acolá), e os cavalos na Europa passaram a ser
montados cada vez mais como se fossem veículos! Não existia tradição
cultural, ou conhecimento científico, para que as pessoas entendessem
conceitos como ‘coordenação sensitivo-motora entre cavalo e cavaleiro.
Isto, aliás, era impensável na Europa. Não se aceitava qualquer paralelo
entre o mundo humano e animal! “Os hábitos dos animais devem ser ob-
servados com muita cautela”, afirmou Hartley Coleridge em 1835. “Não se
deve descrevê-los como se desempenhassem ações humanas, com as quais
seu comportamento não guarda semelhança ou analogia imagináveis”. Se,
para o Europeu, a fisiologia humana e equina não guardava semelhança
alguma, é lógico que o equitador jamais pensaria em ‘coordenar’ os seus
sentidos e movimentos com os do cavalo para formar o conjunto perfeito.
Mas também está claro que os grandes mestres da equitação faziam exa-
tamente isto – por intuição. Mas, quando se propunham a escrever um
manual de equitação, descreviam fielmente uma operação mecânica.
Na Europa, o equitador era visto como um homem dirigindo uma
carroça, uma extensão lógica da tecnologia desenvolvida para o cavalo
de tração. Embocaduras, gamarras, rédeas múltiplas e uma longa lista de
aparelhagens de contenção artificial foram inventadas para dar uma ‘van-
tagem mecânica’ ao cavaleiro e acabavam tirando a liberdade de movi-
mento do cavalo, que hoje sabemos ser a base da equitação simbiótica ou
de alto desempenho. O cavaleiro do Ocidente montou a cavalo, durante
séculos, com a idéia fixa de utilizar a energia do animal como se usa a for-
ça do vapor para movimentar uma máquina. Com o tempo, as escolas de
equitação concentraram seus esforços na equitação-arte – a execução de
figuras da Alta Escola – afastando-se completamente do uso prático do ca-
valo para o trabalho, o esporte e até para as funções militares. Isto criaria
um eterno desentendimento entre os ‘artistas da sela’ e os cavaleiros que
gostam de praticar esportes. A ignorância equestre grassou desimpedida,
fazendo vítimas como as pestes, enquanto a economia feudal da Europa
se abria para o mercantilismo, e depois para o capitalismo, o mundo do
cavalo se fechava para o fechicismo e, a seguir, para o mecanicismo.
Em resumo: com a descoberta do livro Manual de Cavalaria por

88
Parte I Catalisador da História

Xenofonte, que reuniu as boas práticas de equitação da Grécia antiga, o


renascimento da equitação clássica na Europa ganhou grande impulso.
Federico Grisone tentou aplicar a receita de Xenofonte, mas apimentou-a
com os métodos brutais que marcaram a sociedade européia do seu século.
Havia uma luta eterna, travada com chicotes e esporas, para transformar
os cavalos de tração da Europa em animais ‘leves’ e ‘elegantes’, como os
cavalos orientais. No século 17, Monsieur Antoine de Pluvinel, o cavaleiro
perfeito, entendeu e aplicou as técnicas suaves de doma e adestramento de
Xenofonte, e deu grande atenção à escolha dos animais adequados para
o adestramento. Ele teve a capacidade para intuir que, se o animal não
tivesse nascido com os reflexos rápidos necessários para a Alta Escola,
pancadaria e terrorismo não iriam modificar o seu sistema nervoso e seus
movimentos mais lentos.
No século 18, François Robichon de la Guérinière refinou a equita-
ção-arte com reprises de movimentos ornamentais de grande beleza vi-
sual. Suas apresentações tinham a precisão de uma máquina e, com ele, a
equitação erudita chegou ao auge do seu figurino mecanicista. No século
19, o talentoso François Baucher, na confusão que existia entre equita-
ção-arte e equitação-esporte, se tornou o pivô de uma enorme contro-
vérsia. Uma parte da comunidade francesa se rebelou contra a ditadura
da equitação-arte, e este sentimento foi o cerne da briga entre Baucher e
D’Aure. Na Alemanha, Gustav Steinbrecht escreveu um manual de grande
precisão técnica que se tornaria a referência do sucesso militar e esporti-
vo Alemão até os dias de hoje. No final do século 19, a ciência européia
estava em grande efervescência e um capitão italiano, Federico Caprilli,
iniciou uma nova técnica de equitação que incluía a perfeita união do cen-
tro de gravidade do cavalo e do cavaleiro, com movimentos unificados
do conjunto, descartava a necessidade da reunião constante do animal e
reconheceu sua individualidade e inteligência. Caprilli pareceu entender
que a boa equitação tem de ser exercida como uma parceria entre dois
indivíduos inteligentes e não como um homem se exibindo a bordo de
um carro alegórico. Muito parecido com a equitação dos nômades! No
século 20, a equitação clássica finalmente se dividiu em duas disciplinas:
a equitação-arte representada pelo concurso de Adestramento clássico e a
equitação esportiva na forma do concurso de Salto. Entendida a diferença
entre esporte e arte, o círculo vicioso começou a ser substituído pelo cír-
culo virtuoso.

89
Bjarke Rink

A falta de compreensão das motivações do cavalo, a atitude arrogante no


relacionamento com o animal, a tentativa de explicar questões neurológicas
por meio de conceitos mecânicos, a proliferação de preconceitos gerados
por ignorância e charlatanismo no mundo fechado do cavalo, foram os
principais obstáculos para o desenvolvimento de uma equitação de alta
tecnologia na Europa, até o final do século 20.

90
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 16

Equitação-Trabalho

De todas as invenções e descobertas do Homo sapiens – da roda denta-


da à energia elétrica – os diversos usos do cavalo foram os que mais impul-
sionaram o progresso econômico da humanidade. A equitação de trabalho,
tanto militar quanto civil, é registrada historicamente desde o tempo dos
hititas. Nenhuma outra tecnologia trouxe tantos benefícios, mudou tantos
hábitos e empregou tanta gente como a equitação e a atrelagem. Entretanto,
de todos os usos do cavalo, a equitação foi a que mais afetou a organização
socioeconômica da cultura ocidental. E a equitação de trabalho deu origem
a várias modalidades de esportes, tanto clássicos quanto rurais, que prova-
velmente acompanharão a humanidade até o último pôr-do-sol. Conhecer
um pouco da história da equitação-trabalho é compreender um pouco da
importância da equitação para a prosperidade humana.
Houve um tempo em que os principais atores do “filme da vida”
eram os homens do cavalo ou os homens do mar. O restante da hu-
manidade – o peão da lavoura, o operário da fábrica e o balconista da
loja – existia somente para fazer figuração, como se diz na linguagem
cinematográfica. Mas o “Oscar” de melhor ator coadjuvante do nosso
progresso tecnológico deveria ser entregue ao cavaleiro anônimo que
costurou a malha da enorme rede de comunicação que consolidou a ci-
vilização Ocidental.

91
Bjarke Rink

A equitação de trabalho formou a Grécia clássica, construiu o Im-


pério Romano, gerou dezenas de novas profissões na sociedade civil e
militar da Europa medieval e, com a descoberta do Novo Mundo, esten-
deu a ‘dinâmica equestre’19 para todas as Américas. Por meio do cavaleiro
anônimo, o senado romano administrava as suas províncias na Grécia, na
Gália e na Germânia, distantes 1.200 quilômetros de Roma, com a mesma
facilidade com que o rei Zozer do Egito Antigo administrava, de barco,
os mil quilômetros do Baixo ao Alto Egito. Com um eficiente sistema de
mensageiros equestres e navegação marítima, Caio Júlio César Otaviano,
mais conhecido como o Imperador Augustus, recebeu na Grécia, em ape-
nas cinco dias, a notícia do assassinato do seu pai adotivo, Caio Júlio Cé-
sar, em Roma. Isto é uma inegável prova da eficiência das comunicações
romanas.
Com o fim do Império Romano e do interregno da “Idade das Tre-
vas”, patrocinado pelos melhores cavaleiros do mundo – os Hunos das
estepes – milhares de cavaleiros civis e militares da Europa, comovidos
com as palavras do Papa Urbano II – “Renuncia a ti mesmo, tomai tua
cruz e siga-me”, formaram as Cruzadas para conquistar o Santo Sepulcro
em Jerusalém. Porém, mais importante do que as lutas que travaram, os
cruzados deram novo impulso ao comércio e à circulação de idéias no Ve-
lho Mundo. Ainda na Idade Média, inúmeras novas cidades floresceram
por toda a Europa, com muitos centros urbanos se tornando densamente
povoados. O Homo faber não parava de construir.
As imensas feiras criadas nessas cidades negociavam artigos trazidos
de barco e caravana de todos os pontos da Eurásia. Comerciantes italia-
nos, transalpinos, florentinos, milaneses, luqueses, genoveses, venezianos,
alemães e provençais eram os responsáveis por essa enorme atividade co-
mercial. O tráfego de mensageiros oficiais e privados era intenso entre
todas as cidades-estado. A famosa Liga Hanseática, sediada na Alemanha,
foi o exemplo vivo de uma aliança econômica entre inúmeras socieda-
des interligadas a cavalo. A Liga possuía posto fortificado de comércio
da Holanda à Rússia. No ápice do seu poder, contava com 100 cidades
que, praticamente, monopolizaram o comércio do norte da Europa. Os
mensageiros montados a cavalo eram os únicos homens capazes de trafe-
gar em qualquer época do ano e por qualquer tipo de estrada ou terreno.
Em Basiléia, o comerciante Andréas Ryff, que fazia cerca de 30 viagens a

Estou utilizando a expressão ‘dinâmica equestre’ para indicar a aceleração da transculturação e


19

dos acontecimentos históricos depois da equitação.

92
Parte I Catalisador da História

cavalo por ano, dizia: “Tive tão pouco sossego, que a sela nunca deixou de
me aquecer a bunda.”
O primeiro país da Europa a organizar um sistema de correio público
foi Henrique VII (1457-1509), rei da Inglaterra que inaugurou uma rede
de post offices, conectando a Inglaterra à Escócia e ao País de Gales. Os
carteiros, rapazes leves, percorriam mais de 200 quilômetros por dia com
os seus malotes postais, enfrentando chuva, nevasca, vendavais, poeira,
lama e assaltos. Os cavalos e cavaleiros anônimos irrigavam todo o siste-
ma mercantil com informações, e esta rede de comunicação tornou-se o
sustentáculo do empresário anglo-saxão. Esses diziam, orgulhosamente,
estarem a construir o maior império do mundo, depois do Romano. Na
Europa, no século 16, para enfrentar as necessidades de informação do
comércio internacional em expansão, a máquina bancária foi posta em
movimento pelos banqueiros, que estavam começando a financiar gran-
des empreendimentos comerciais. Na época, a rede de notícias formada
para servir à agência central dos Fuggers, na Áustria, pode ser comparada
aos modernos sistemas de comunicação eletrônica. Em todos os impor-
tantes centros comerciais, correspondentes a cavalo transmitiam, em ca-
deia, notícias sobre os grandes acontecimentos que poderiam influenciar
o comércio e o valor da moeda. Veja algumas mensagens típicas: “Veneza,
13 de dezembro de 1596. O Rei da Espanha ordenou, severamente, que
nenhum ouro ou prata seja exportado do reino ou usado com objetivos de
comércio”. “Roma, 29 de janeiro de 1600. O camarista papal mandou ava-
liar novamente todas as moedas de prata, locais e estrangeiras, decretando
que, no futuro, ninguém poderá levar para fora da cidade mais de cinco
coroas”. A velocidade das informações fazia e desfazia fortunas.
Dizem as más línguas que Napoleão retardou a notícia da vitória da
batalha de Marengo para permitir um golpe na bolsa de Paris. E a notícia
da vitória inglesa em Waterloo foi providencial para a casa bancária dos
Rothschild. Na Europa, se a velocidade da informação era a alma do negó-
cio, a velocidade do cavalo era a alma da economia. Com o mercantilismo
praticado pela Inglaterra, França, Holanda e Espanha, os economistas eu-
ropeus começaram finalmente a descobrir o que fazia as nações enrique-
cerem. “Uma nação não é rica porque dispõe de minas de ouro e prata”,
escreveu Adam Smith em seu livro A Riqueza das Nações, “A riqueza de
um país não deve ser estimada pela soma das suas mercadorias acumula-
das, mas sim pela sua renda – não como um estoque, mas como um fluxo”.
Veja que no século 18 já se sabia que “mais do que produzir mercadorias,

93
Bjarke Rink

a riqueza de uma nação reside em circular informações e mercadorias! E,


além de circular informações e mercadorias, o cavalo e a equitação dis-
seminavam a própria tecnologia que permitia produzir mais e melhores
produtos. A velocidade do cavalo favorecia também a unidade política e
administrativa das nações emergentes, um dos fatores básicos que fizeram
o progresso da humanidade. A equitação foi o primeiro motor da ‘world
wide web’ que agora está se expandindo e se acelerando através da rede de
computadores.
Além da equitação de trabalho urbano e interurbano existia, tam-
bém, a equitação ligada ao trabalho rural. Os gregos antigos, na região
da Tessália, foram os primeiros vaqueiros europeus a empregar o cavalo
para a lida com o gado. Na Espanha, no século 12, esta atividade equestre,
que mais tarde se tornaria vital para o desenvolvimento das Américas,
começou a ganhar importância. A caça ao gado selvagem nos campos da
Espanha exigia grande tecnologia equestre. Laços, ferros de marcar e selas
especiais, depois conhecidas como mexicanas, eram utilizados para faci-
litar o trabalho. Depois do século 15, a pecuária espanhola já estava orga-
nizada em torno da criação de gado doméstico, e as primeiras técnicas de
tourada foram aprendidas com o manejo do gado nos grandes currais das
“haciendas”. A Tauromaquia – a tourada a cavalo – se popularizou e, ainda
na Idade Média, as técnicas equestres tornaram-se cada vez mais sofistica-
das. Grandes arenas foram construídas nas principais cidades ibéricas, e o
toureio a cavalo é, atualmente, um dos maiores atrativos turísticos de Por-
tugal e Espanha. Hoje, toureiros como Domecq “El Rejoneador” oferecem
espetáculos que estão entre as melhores apresentações de equitação do
mundo. No século 17, toda a complexa tecnologia equestre utilizada para
a criação de gado a campo, desenvolvida na Espanha e em Portugal, foi
exportada para as Américas, e formam a base do ‘know-how’ do vaqueiro
argentino, mexicano, brasileiro e do caubói americano.

A equitação de trabalho, o principal motor da sociedade ocidental durante


o segundo milênio, será no Terceiro Milênio substituída pela comunicação
eletrônica, cada vez mais eficiente. Mas a equitação-esporte, baseada em
muitos dos princípios da equitação-trabalho, certamente acompanhará a
humanidade até o último pôr-do-sol. O cavalo e a equitação ainda têm
muito a ensinar à humanidade.

94
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 17

Equitação-Esporte

O desejo de exibir habilidade e proeza no trabalho faz parte da na-


tureza humana. As lidas equestres do passado deram origem a um grande
número de esportes. Estes jogos são uma reencenação da utilização do cava-
lo no trabalho civil e militar e alguns, como o turfe, existem desde a domes-
ticação do cavalo. Nenhuma outra atividade inventada pelo homem gerou
tantos esportes diferentes quanto os trabalhos equestres.
A simples lógica nos indica que a corrida de cavalos é o mais antigo
dos esportes equestres. Uma vez compreendido o modo de conduzir um
cavalo no trabalho diário, o segundo passo é o de provar aos amigos (e
principalmente às amigas) quem é que tem o cavalo mais veloz da redon-
deza. Essas corridas, disputadas entre os membros mais jovens das comu-
nidades pré-históricas, não deixaram vestígios arqueológicos, mas podem
ser inferidas com a mesma certeza de que atrás de toda bola vem um me-
nino, depois de cada dia vem uma noite e tudo que sobe tem de cair.
O primeiro registro histórico de corridas de cavalos atrelados vem
das sociedades mais avançadas do Oriente, onde o carro de guerra se tor-
nou o veículo dos nobres. Os hititas nos deixaram um manual completo
de treinamento e manejo de cavalos para biga. A primeira descrição de
uma corrida de bigas encontra-se na Ilíada de Homero. Apesar de não
definir a data, o poeta detalha as regras e as convenções ligadas ao esporte

95
Bjarke Rink

(o primeiro prêmio era uma mulher versada nas prendas domésticas! Não
foi à-toa que o esporte se tornou tão popular). O primeiro registro histó-
rico de uma corrida de cavalos foi no ano 644 antes de Cristo e ocorreu
na 31a olimpíada em Atenas. Na Inglaterra, a primeira corrida de cavalos
aconteceu em 1174 no reinado de Henrique II, em Smithfields nos por-
tões de Londres. A primeira referência a apostas – 40 libras em ouro vivo
– aparece no reinado de Ricardo “Coração de Leão”. João “Sem-Terra”, o
irmão de Ricardo, mesmo sendo um “sem-terra”, não foi um “sem cavalo”.
João foi o primeiro rei da Inglaterra a instituir a tradição dos estábulos
reais. Desde o tempo de João “Sem-Terra”, praticamente todas as raças de
cavalos na Europa foram iniciadas por algum rei, príncipe ou, no mínimo,
duque. Charles II, também conhecido como o “Pai do Turf ”, foi excelente
equitador, um grande apaixonado pelas corridas, e frequentemente pilota-
va os seus próprios cavalos para as vitórias (quem se arriscaria a derrotar
um rei?).
O Pólo é um esporte oriental antigo, e o rei da Pérsia, Dario “O Gran-
de”, era considerado bom equitador e notável jogador de Pólo. Na China, a
dinastia Tang praticava pólo, que como todos os outros esportes com bo-
las, não teve a sua origem no trabalho e sim no lazer, inspirado em táticas
de cavalaria militar.
A falcoaria – a caça com falcões – foi também uma atividade de lazer
extremamente popular na Idade Média. Era muito praticada pelas classes
altas – reis, príncipes e bispos – até a queda de Constantinopla e o fim do
Império Bizantino, quando se tornou extremamente perigoso cavalgar no
campo, longe das cidades, em razão das incursões militares dos turcos
otomanos em toda a Europa central.
A caça a cavalo com matilhas de cães já era praticada na Grécia an-
tiga e Xenofonte deixou em seus escritos algumas regras que ensinam a
selecionar e manejar cães de caça. Na Europa, a França tem a mais antiga
tradição deste tipo de caça – veados e javalis foram as principais presas
dos caçadores. Na Inglaterra, a caça a cavalo foi introduzida pelos con-
quistadores franceses no século 11. O filho de Guilherme “O Conquista-
dor”, Guilherme Rufus, era viciado em caçadas, atividade que ele levava
tão a sério quanto às obrigações de Estado (morreu num controvertido
acidente durante uma caçada).
A Justa era o esporte equestre mais popular da Idade Média. Nas-
ceu da guerra e refletia o exato momento onde os lanceiros, durante um
choque de cavalaria pesada, procuravam derrubar os adversários de suas

96
Parte I Catalisador da História

montarias. A guerra, no sistema feudal, era uma relação simbiótica, entre


nobres e servos, que envolvia os membros de toda a sociedade. O senhor
feudal dava proteção aos seus súditos que, em compensação, tinham de
lutar nas suas guerras. A infantaria era proveniente da plebe, e aos filhos
da nobreza eram oferecidos os postos na cavalaria. Mas a guerra tinha
muitas desvantagens. Era necessário se pegar em armas, ora a favor da
Igreja em defesa do ‘Nosso Senhor no Céu’, ora a favor do senhor feudal, o
‘nosso senhor na Terra’. A guerra também tinha o grande inconveniente de
poder causar a morte por obra do inimigo ou por obra de alguma doença.
Isso, além das longas marchas e contramarchas, das refeições de quantida-
de escassa e qualidade duvidosa, das noites mal dormidas com o aposento
coberto por estrelas (quando não chovia) – situações desagradáveis para
os nobres cavaleiros. A guerra tinha, é claro, a sua compensação em pres-
tígio, butim e mulheres. Por estas razões, a Justa, como esporte, caía como
uma luva para a nobreza da Idade Média.
Os cavaleiros formavam equipes de lanceiros e, numa simulação do
choque de cavalaria, com as lanças em riste, procuravam derrubar os ad-
versários dos seus cavalos. Nos torneios de Justas, que entraram na moda
no século 11 d.C., o cavaleiro podia conquistar as glórias da guerra sem
o derramamento de sangue, principalmente do seu. Isto, além de evitar a
sujeira, os piolhos, as doenças e os demais desconfortos das campanhas
militares. O nobre cavaleiro das justas era um profissional semelhante ao
caubói moderno – planejava antecipadamente a sua participação no cir-
cuito de competições, equipando-se com o que havia de melhor, e prepa-
rava bons cavalos para se apresentar duas ou três vezes por mês durante a
temporada do verão.
No século 13, os torneios deixaram de ser minibatalhas campais para
se transformar em espetáculos muito bem organizados e com combates
programados entre duplas de cavaleiros famosos. Os torneios se tornaram
tão populares que as autoridades civis, militares e eclesiásticas passaram
a combatê-los – nenhum jovem nobre estava mais disposto a participar
das Cruzadas, nem de todas aquelas outras guerras sujas promovidas pelo
Estado e pela Igreja. Bom mesmo era ficar em casa, longe da guerra e bem
próximo do belo sexo, faturando alto nos torneios de justas. O declínio da
Justa no século 14 se deu em razão das mudanças de regras que tornaram
os combates cada vez menos perigosos e mais enfadonhos para o público.
Note que a Justa era uma ocupação da classe nobre, como havia sido a
corrida de biga nos tempos do Primeiro Testamento.

97
Bjarke Rink

A caça à raposa é a versão mais moderna da caça a cavalo. O salto


clássico, o esporte originário da caça à raposa, é praticado desde o reinado
de James II, no século 17, mas não foi oficializado até 1865, quando a So-
ciedade Real de Dublin programou uma competição de “pulos” de altura
e largura na Irlanda. “Mas é preciso se fazer uma ressalva sobre a caça a
cavalo”, explica Charles Chenevix Trench. “Muitos dos caçadores não são
cavaleiros por convicção – caçam a cavalo porque não existe outro veículo
mais indicado para perseguir uma raposa no campo, atravessar regatos,
saltar por cima de cercas, pau, pedra e vala. Se carro, motocicleta ou bici-
cleta dessem melhores resultados, adeus cavalo de salto”. O cavaleiro vo-
cacionado pratica o hipismo em provas de salto clássico que simulam, na
pista, os obstáculos da caça à raposa no campo.
O cavaleiro de salto atua como um general impetuoso, cuja estratégia
para a vitória é a velocidade e o avanço implacável sobre qualquer obstá-
culo à sua frente. Para vencer, tem à sua disposição recursos ilimitados.
A virtude da coragem comanda a progressão do conjunto. Um refinado
senso espacial e de oportunidade comanda a ação. Estrategicamente, o
cavaleiro tem um tempo determinado para superar as dificuldades do
percurso. Taticamente, cada obstáculo exige uma abordagem própria que
terá de ser julgada por duas inteligências emocionais que, em centésimos
de segundo, avaliam, e ajustam o gesto exato a ser executado para superar
cada dificuldade.
Os enduros equestres são uma simulação das grandes cavalgadas
empreendidas pelos mensageiros no passado. O mensageiro profissional
tinha de imprimir a maior velocidade possível sem prejudicar a saúde do
cavalo, que pertencia à empresa contratante. Cada etapa tinha uma dura-
ção exata, previamente calculada, levando-se em conta a dificuldade do
terreno. Em cada posto de troca do cavalo, o gerente avaliava o estado do
animal para ver se ele tinha sido montado sem abusos. Nada podia retar-
dar a velocidade calculada pela empresa. Nem pontes quebradas, enchen-
tes de rios ou deslizamentos de encostas e outras intempéries do ‘El Niño’,
que não foi inventado no século 20, como podem pensar alguns. Todos
estes desafios estão presentes no moderno enduro equestre.
A arquearia montada, como o pólo, é um esporte que exige velocida-
de e precisão. Surgiu na Ásia Central e, como vimos, provavelmente é o
esporte d’armas mais antigo do mundo. Aprender a galopar num cavalo
conduzindo-o somente com as pernas enquanto você tem de municiar um
arco com flechas e acertar um alvo de dez em dez metros exige boa equita-

98
Parte I Catalisador da História

ção e a habilidade de manusear o arco. Arquearia montada é uma prática


esportiva complexa porque, além de bom cavaleiro, o arqueiro precisa ser
ótimo arqueiro e estar habilitado a municiar o arco e disparar para o lado,
para frente e para a retaguarda sem perder o controle sobre o cavalo a
galope. A arquearia montada esta em franca expansão no mundo e tem
havido grande interesse no Brasil.

Os esportes equestres são uma consequência natural do trabalho realizado


por homens e cavalos na construção socioeconômica desde os impérios
antigos até os estados modernos. E a aventura de um homem conduzir
um cavalo para disputar jogos equestres é certamente o maior desafio já
imposto ao poder da mente humana. Mas, ainda na Antiguidade, alguns
homens e alguns cavalos se revelaram acima e além dos mortais comuns,
e transformaram a equitação na mais nobre das Artes Dinâmicas – hoje
conhecido como Adestramento Clássico ou Dressage.

99
Bjarke Rink

CAPÍTULO 18

Equitação-Arte

A equitação pode ser exercida de maneira casual ou passional. É pas-


sional quando a habilidade e o sentido estético da execução se desdobram
em beleza e originalidade. Toda arte, quando exercida de forma repetitiva,
faz do autor um artesão. Quando a execução da obra acontece de modo pas-
sional, faz do autor um artista. A pintura, a escultura e a poesia deixaram
um acervo magnífico de obras que ainda podem ser vistas séculos depois
da morte dos seus autores. A equitação-arte, no entanto, foi uma arte sem
memória. Os grandes mestres não nos deixaram as suas obras – as reprises
equestres. No máximo, o apaixonado artista da sela nos deixou as suas téc-
nicas escritas e desenhos gravados. Mas, um livro escrito por Michelangelo
registrando as técnicas que usou para pintar a Criação de Adão não teria
o mesmo impacto emocional que assistir ao seu afresco na Capela Sistina.
A equitação-arte é mais breve do que a vida, mas nem por isso deixa de ser
sublime ou deixa de ser arte.
Os gregos consideravam a arte como a habilidade adquirida em pa-
ciente exercício e voltado para um fim definido, fosse estético, ético ou
utilitário. No sentido moderno, o termo geralmente só abrange as ativida-
des que se voltam para o estético: as artes estáticas – arquitetura, escultura,
pintura e as artes dinâmicas – a música, a dança e as artes cênicas. É certo
que as obras de arte não envelhecem, mas é impossível definir a sua eter-

100
Parte I Catalisador da História

nidade como fruto exclusivo da habilidade humana. Veja-se o caso de um


dos maiores artistas de todos os tempos, o supremo Leonardo Da Vinci.
Como provas da sua grandeza de espírito, ainda admiramos as obras de
arte que ele deixou – La Gioconda, A Última Ceia, O Batismo de Cristo e
A Batalha de Anghiar – que não se deixam explicar somente pela perícia
e a habilidade de Da Vinci. Esses quadros comunicam, com um elemento
enigmático, a alma da arte. Na sua intemporalidade, a pintura de Da Vinci
viverá enquanto viverem os homens. A ciência envelhece porque é clara e
explícita, a arte é eterna porque o enigma do mistério a conserva.
Na história, a atividade artística foi frequentemente criticada como
supérflua e obrigada a servir a objetivos políticos e sociais de alguma so-
ciedade materialista. Mas nada perpetua melhor uma cultura do que a sua
arte. A função da arte é transmitir emoções, criar impacto e beleza memo-
rável; dar ao homem a percepção da sua dimensão simbólica e transcen-
dental, atendendo assim a uma necessidade fundamental da sua condição
humana – o senso poético e estético da vida.
A equitação-arte, como realizada na Grécia clássica, em Roma, e de-
pois nas picarias e manèges da Renascença, é uma das artes dinâmicas, fruto
também de uma habilidade adquirida em paciente exercício e voltado para
um fim estético definido. Ela é a capacidade do cavaleiro de pôr em prática
a sua habilidade equestre, valendo-se da faculdade de compreender profun-
damente o espírito do cavalo, e conhecer seus complexos movimentos. É a
busca da perfeição e da beleza estética dos movimentos do conjunto cavalo-
-cavaleiro. Além de ser a arte de utilizar os movimentos naturais do cavalo
numa coreografia de graça e beleza visual. É, sem dúvida, uma arte erudita
– como a música, a dança e o teatro. Tem o ritmo e a cadência da música e
a beleza visual do balé. O artista da sela reúne, na mesma ação, a expressão
corporal de um dançarino e as mãos inteligentes de um pianista.
A equitação-arte é uma das atividades artísticas mais antigas do
mundo. Os shamãs celtas, citas e hunos certamente executavam figuras de
alta-escola para homenagear seus deuses. Os cavaleiros germânicos que
serviam as legiões romanas davam exibições de figuras de adestramento
nas horas vagas. Os gregos e os romanos executavam movimentos de alta-
-escola, como o piaffer e o passage, e no Império Bizantino, com a ajuda
de sela, do estribo e do freio, essa equitação se desenvolveu e foi exportada
para a Itália Renascentista de Federico Grisone.
Se for certo que as obras de arte não envelhecem, o mesmo não pode
ser dito da equitação-arte. Nas artes plásticas morre o autor, mas fica a

101
Bjarke Rink

obra para nos falar do autor. Na arte equestre, as figuras executadas pelo
conjunto – a obra do cavaleiro artista – se desfazem ao serem feitas. Xeno-
fonte, o general e equitador ateniense, não nos deixou a imagem de suas
figuras de equitação, como fez Dédalo, o escultor cretense do seu tempo.
Antoine de Pluvinel não nos deixou nenhuma das suas obras, como o fez
seu contemporâneo, Rembrandt, com o “Vigia Noturno”. E sabemos que
François Robichon de la Guérinière era um grande artista da sela, mas as
suas reprises equestres não sobreviveram a ele, como “O Beijo Furtivo”
do seu conterrâneo e contemporâneo, Jean Honoré Fragonard. François
Baucher adestrou os cavalos Capitain e Partisan, que ajudaram a fazer a
revolução do seu estilo equestre na Paris de Jean-Auguste Ingres. Admi-
rados em suas apresentações equestres, os cavalos Capitain e Partisan não
existem mais. Mas os quadros de Ingres, “O Banho Turco” e o “Retrato de
Bertin”, ainda podem ser admirados no Louvre.
Inúmeras vezes na história, a atividade artística tem sido criticada
como supérflua, e daí vai apenas um passo para considerá-la como obri-
gada a servir a algum governo medíocre de plantão. Por esta razão, muitos
equitadores tentaram justificar a equitação-arte como sendo arte marcial!
O croupade, o cabriolle e os demais movimentos da Alta Escola seriam
úteis no ‘calor de um confronto da arma de cavalaria’. “O cavaleiro comba-
te com lança ou espada e o cavalo com patadas e coices”, escreve Manoel
Carlos de Andrade, picador da Picaria Real portuguesa, para o príncipe
regente D. João em 1750. “A nobre Arte da Cavalaria é, entre todas as
artes, a mais sublime, a mais principal, a mais ilustre, justificarão as suas
utilidades tantas vitórias alcançadas na campanha pela força da cavalaria”,
conclui o nobre português. Mas, confundir arte-equestre com arte marcial
pode ser ingenuidade ou, simplesmente, a maneira de justificá-la diante
de uma sociedade utilitária. Mas o mundo do cavalo, como veremos mais
adiante, é um universo complicado. A confusão é grande e a equitação-
-arte foi frequentemente criticada pelos cavaleiros “práticos”, os que mon-
tam a cavalo para trabalhar, para caçar, esportes e viagens. O Duque de
Newcastle, que não confundia arte com guerra, costumava dizer dos seus
críticos: “Estes falastrões vão perguntar para que serve um cavalo que não
sabe fazer outra coisa além de dançar e fazer piruetas. Se estes senhores
reduzirem todas as coisas que lhes despertarem a curiosidade ou que lhes
dão prazer, e admitirem só a existência do que lhes é útil, eles devem fazer
a sua casa numa árvore oca, vestir folhas de parreira, comer nozes e beber
somente água”.

102
Bjarke Rink

Os artistas da sela, estes estranhos seres que buscam dentro de si a


perícia e a habilidade para realizar altos ares, produzir belas quadrilhas
equestres e reprises de Adestramento, foram também alvos de muita críti-
ca e desconfiança. Ou não foram compreendidos ou então foram endeusa-
dos e convocados para ensinar a sua arte em academias militares – como
se arte, de qualquer espécie, pudesse ser ensinada a qualquer pessoa, prin-
cipalmente a recrutas convocados compulsoriamente para prestar serviço
militar.
O não reconhecimento da equitação-arte como uma expressão artís-
tica está intimamente relacionada com outra questão de temporalidade:
a maioria dos artistas plásticos do passado só teve a sua arte reconhecida
depois da morte – o que é impossível para o artista da sela, cuja obra tem
vida mais curta do que a sua. Da equitação-arte só fica a lembrança e essas
se desmancham no ar, então devem ser apreciadas como uma orquídea
em flor ou um arco-íris num dia de primavera – é uma obra efêmera que
existe por um momento fugaz.
O equitador de Adestramento é o artista do movimento. Durante
uma reprise, ele molda os movimentos do cavalo em figuras de harmonia,
fazendo combinações infinitas dos seus movimentos naturais: alternando,
repetindo, sequenciando, invertendo, acelerando, girando, desacelerando
e executando movimentos até quando parado, sem sair do lugar. Como
um mágico, ele produz o inesperado; como um escultor, ele dá forma à
forma; como um músico, ele dá harmonia ao som; como um filósofo, ele
dá significado ao significado.

A equitação pode ser exercida em diversos níveis de excelência. A mais


simples é a equitação de trabalho e a mais complexa é a equitação-arte. A
função da arte é criar beleza e deslumbramento. A função da equitação-
arte, hoje conhecida como Adestramento, é a de criar um momento de
beleza que se traduza num objeto de memória.

104
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 19

Xenofonte – Nasce
a Equitação Acadêmica

Os antigos Gregos jônicos foram os primeiros pensadores a afirmarem


sistematicamente que são as leis da natureza, e não os deuses, os responsá-
veis pela existência do mundo. O pensamento grego influenciou todas as
ciências e não deixou o cavalo e a equitação à margem do saber. O livro inti-
tulado Manual de Cavalaria escrito por Xenofonte, talentoso general grego,
é a mais antiga obra sobre a sistematização da equitação. E, mesmo depois
de 24 séculos, ainda é um guia excelente sobre equitação e manejo do cavalo.
O livro, escrito em 400 a.C., desapareceu por 1.800 anos, e podemos dizer
que a equitação da Europa só se tornou acadêmica depois que Manual de
Cavalaria reapareceu durante a Renascença Italiana. Xenofonte está para
a equitação clássica assim como Sócrates para a filosofia, Aristóteles para a
história natural ou Pitágoras para a matemática. Ele estabeleceu paradig-
mas observados até os dias de hoje.
Xenofonte era natural de Atenas e foi, sobretudo, um produto do seu
tempo efervescente – a Grécia clássica – onde pensadores como Sócrates,
Platão, Aristóteles, Arquimedes, Pitágoras e tantos outros, estabeleceram
o fundamento intelectual da nossa lógica, metafísica, ética, política, retó-
rica, poesia, biologia, zoologia, física, psicologia – e da equitação clássica

105
Bjarke Rink

também. Xenofonte, amigo pessoal e seguidor de Sócrates, foi observador


sensível, pensador profundo, sintetizador arguto e escritor compreensível.
E, como por milagre, a sua obra sobreviveu ao declínio da cultura grega,
ao declínio de Roma, à Idade das Trevas e, por sorte ou destino, caiu nas
mãos de Federico Grisone, equitador Renascentista, diretor da Escola Na-
politana de Equitação. Xenofonte é normalmente citado como autor do
primeiro tratado equestre (assim como Neil Armstrong tem o crédito de
ter sido o primeiro homem a pisar na lua). Mas isto é uma homenagem
abaixo dos seus méritos. Alguns autores, no entanto, começam a se aproxi-
mar mais do verdadeiro valor de Manual de Cavalaria. Este livro, na longa
história do homem e do cavalo, representa o marco do início da equitação
clássica do Ocidente. Antoine de Pluvinel, professor de Arte equestre de
Luiz XIII da França, extraordinário cavaleiro e seguidor dos princípios de
Xenofonte, publicou na introdução do seu livro Le Maneige Royal, edita-
do em 1623, uma passagem esclarecedora sobre o livro de Xenofonte: “O
conceito da boa equitação defendida por Xenofonte era fundamentado
no seu agudo senso de observação, no seu sentido de beleza e harmonia,
e na sua percepção da mente e dos sentidos do cavalo. O seu treinamento
do cavalo era baseado em métodos suaves – o amansar em vez de domar”.
E o próprio Xenofonte escreveu: “As embocaduras leves são melhores do
que as pesadas. Se você botar uma embocadura pesada na boca do cavalo,
deve torná-la leve afrouxando as rédeas. O que o cavalo faz sob coação é
feito sem compreensão, e não há beleza nisto”.
Xenofonte, em sua obra, deixa claro que o tratamento paciente e ra-
cional do cavalo traz melhores resultados na doma, no adestramento e na
equitação. Monsieur de Pluvinel escreveu que “a Renascença restaurou o
‘espírito humanitário’ e que este transformou a equitação, como também
afirma Rabelais, numa arte ao nível da música, da poesia, da matemática
e da astronomia”. Mas é improvável que Xenofonte, um general, vetera-
no da guerra do Peloponeso, comandante das forças gregas à serviço de
Ciro “O Jovem” e veterano de muitas batalhas sangrentas, acostumado a
‘ver a morte sem chorar’, como diria Geraldo Vandré em meu lugar, reco-
mendasse a ‘paciência’ para se lidar com cavalos por elevados sentimen-
tos humanitários. Todos os seus ensinamentos são práticos e em nenhum
lugar ele expressa qualquer tipo de ‘amor’ especial pelo cavalo, ou reco-
menda que o cavaleiro deve conquistar a “afeição” do cavalo por moti-
vos humanitários. Quando o general Xenofonte recomenda que “nunca
se deve lidar com um cavalo quando se está mal-humorado”, é no sentido

106
Parte I Catalisador da História

de, num momento infeliz, não prejudicar todo o trabalho que se está fa-
zendo. Quando ele diz: “seja bom para o seu cavalo”, ele acrescenta em
seguida – “porque então o cavalo fará o que você deseja”. Xenofonte faz
ótimas recomendações para se equitar cavalos fogosos – “Quando você
montar, deve acalmá-lo por mais tempo do que o cavalo comum e, ao fa-
zê-lo avançar, utilize os comandos mais suaves possíveis... uma ação súbita
pode causar susto... nunca o deixe galopar a toda velocidade e nem ao lado
de outro cavalo... cavalgadas longas e calmas aquietam o cavalo ardente,
mas não pense em acalmá-lo indo longe com velocidade... ao ouvirem o
grito de guerra, ou o tocar do trompete, você não deve parecer assustado
para o seu cavalo, nem agir de modo que possa lhe causar alarme... se as
condições permitirem, você deveria levar pessoalmente as suas refeições”.
Xenofonte sabia perfeitamente que as emoções trafegam entre o cavaleiro
e o seu cavalo, e reconhece também que há a necessidade do cavaleiro
conquistar a confiança do cavalo, inclusive alimentando-o pessoalmente,
e nunca puni-lo severamente. Mas, lembra Xenofonte – “com um cavalo
preguiçoso, você deve fazer exatamente o contrário”. Xenofonte conhecia
aspectos importantes do sistema sensitivo-motor do cavalo e sabia que o
tratamento suave dá melhor resultado no treinamento do cavalo. E hoje a
ciência moderna confirma os seus métodos. Com o livro Manual de Ca-
valaria, Xenofonte pretendeu produzir um bom cavalo de batalha e, ao
mesmo tempo, um belo cavalo de parada – um animal com uma presença
altiva e passos elegantes, de onde o comandante possa se exibir gloriosa-
mente à frente da sua cavalaria.

Sem que conhecesse os fatos científicos da neurofisiologia da equitação,


Xenofonte e todos os grandes mestres equitadores da Europa
compreenderam, por observação e intuição, que o tratamento racional e
paciente do cavalo trazia melhores resultados na doma, no adestramento
e no treinamento do cavalo. Todos, menos os primeiros mestres da Europa
Renascentista que, no século 16, ao começarem a sistematizar a equitação,
introduziram todos os preconceitos e maus costumes da primitiva
sociedade medieval, muitos das quais perduram até hoje.

107
Bjarke Rink

CAPÍTULO 20

Federico Grisone, Fundador da


Equitação Clássica

O movimento intelectual, que promoveu o Renascimento da pintura,


escultura, arquitetura e poesia helênica na cultura ocidental, foi também
responsável pelo renascimento da equitação acadêmica. Federico Grisone
foi contemporâneo de Nicolau Copérnico que, no seu tempo, virou a as-
tronomia de cabeça para baixo, colocando o sol, e não a terra, no centro
do universo. Foi nessa época que apareceram os primeiros textos técnicos
simples que foram um grande passo à frente em relação ao obscurantismo
do alquimista e do mago. A turbulência intelectual do século 16 iniciou a
revolução científica que deu origem à Revolução Industrial. Foi uma época
de grandes acontecimentos para a história da humanidade e também para
a história da equitação.
Os princípios do picadeiro e da moderna equitação cross-country fo-
ram sistematizados e transformados em livro por Federico Grisone, nobre
italiano, fundador de uma das primeiras escolas de equitação da Europa.
Em consequência da conquista de Nápoles pelo Império Bizantino, a Es-
cola Napolitana de Equitação foi fundamentada em técnicas equestres bi-
zantinas que, como as gregas e as romanas, incluíam a ‘reunião’ do cavalo,
e já eram compostas de figuras de adestramento como o piaffer e o pas-

108
Parte I Catalisador da História

sage. Estes movimentos já eram realizados na Antiguidade com o auxílio


de freios equipados com barbelas. “Grisone e os demais mestres italianos
do seu tempo devem ter ficado fascinados ao descobrir que suas idéias so-
bre a ‘reunião’ do cavalo já tinham sido formuladas por Xenofonte, 1.800
anos antes”, escreve Charles Chenevix Trench, em seu livro Uma História
da Equitação. “Na Renascença italiana, a equitação-arte foi baseada em
princípios de reunião tão grotescos que o cavalo corria perigo de perder
toda a sua capacidade de movimento”, critica Trench. Entretanto, a Escola
Napolitana de Equitação se tornou o ‘point’ da cultura equestre européia e
era frequentada por vips egressos de todos os principais centros da Euro-
pa: França, Alemanha, Espanha e Inglaterra.
Os métodos de Federico Grisone e do seu sucessor, Giambatista Pig-
natelli, publicados no livro Gli Ordini di Cavalcare – O Sistema de Ca-
valgar – se espalharam rapidamente pela Europa. Mas, a primeira coisa a
chamar a atenção nos seus métodos era a ênfase em quebrar a resistência
do cavalo e ‘recompensar’ a sua ‘submissão’ com o cessar dos castigos, em
vez de ganhar a sua confiança com paciência e dedicação, como fôra o
princípio de Xenofonte. Segundo Grisone, o método indicado para iniciar
um jovem cavalo começava com um trabalho na guia onde o animal era
chicoteado em círculos até que ‘o diabo da desobediência fosse exorcizado
do seu corpo’. As embocaduras eram idealizadas para dar ao cavaleiro o
poder de provocar dor no cavalo. Voz, chicote, freios e esporas eram usa-
dos para “corrigir” os erros e deficiências do animal. Era corrente se dizer
que você ‘ajuda’ o cavalo para que ele não erre, e corrige-o nos erros que já
cometeu. Na concepção da moderna equitação simbiótica, baseada no co-
nhecimento neurofisiológico da equitação, o cavaleiro não ‘ajuda’ o cavalo,
pois ele é parte do cavalo. Durante o adestramento são ambos professor e
aluno: o cavaleiro aprende a administrar o elenco de movimentos naturais
do cavalo e este aprende a reconhecer o código de comandos corporais do
cavaleiro.
Mas, curiosamente, Grisone alertava os alunos sobre as embocaduras
cruéis que poderiam estragar a boca do cavalo, e os ensinava a cavalgar
“com uma embocadura suave e mãos delicadas... porque fique certo de
que é a arte e a boa técnica de equitação que fazem uma boa boca e não a
embocadura”, dizia. Mas, quem conhece as embocaduras utilizadas na Es-
cola Napolitana não entende bem o que ele quis dizer com embocaduras
‘suaves’. Ele, Grisone, também recomendava utilizar ‘comandos de pernas’
para fazer mudanças de direção e não somente para aumentar a velocida-

109
Bjarke Rink

de do cavalo, que foi uma das técnicas mais importantes a serem introdu-
zidas na equitação depois de Xenofonte. Grisone também ensinava que
“a voz é a melhor forma de corrigir o cavalo sem levá-lo ao desespero, ao
passo que o chicote pode desesperá-lo e acovardá-lo”. Mas, a exemplo de
provérbio popular ‘o seguro morreu de velho’, Grisone mantinha a pre-
sença de um homem armado com chicote na pista de treinamento, para
obrigar o cavalo a obedecer aos desejos dos alunos.
Na Idade Média, o cidadão do sexo masculino se julgava feito à ima-
gem e semelhança de Deus, estando as mulheres e os animais em degraus
inferiores na hierarquia dos viventes! Durante séculos, os teólogos vi-
nham discutindo se o sexo feminino tinha alma ou não. Já no século 18,
um certo Nicholas Woodies teria afirmado que não – as mulheres não
possuíam alma, só os homens! E, é claro que toda essa arrogância mescla-
da com ignorância só podia atrapalhar a fusão neurofisiológica do homem
com o cavalo. No século 16, a iniciação de um cavalo para os altos ares
previa muita pancadaria e seções de torturas. Na escola, o professor batia
nas crianças para fazê-los bons alunos, na Igreja, o Santo Ofício tortura-
va as pessoas para fazê-los bons católicos, e na academia de equitação o
treinador espancava os animais para fazê-los bons cavalos. Bons tempos
aqueles!

Federico Grisone foi um homem do seu tempo e percebe-se, na sua


interpretação das técnicas sutis de Xenofonte, uma forte influência dos
métodos de Tomás de Torquemada e da brutalidade do Santo Ofício que
ainda dominava a Europa Renascentista. Mas mesmo fazendo um ‘samba
do crioulo doido’, misturando sabedoria grega com a brutalidade medieval,
a Escola napolitana iniciou o treinamento de Antoine de Pluvinel – ‘o
melhor homem que já usou esporas’.

110
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 21

Antoine de Pluvinel – a Equitação


Elevada à Sétima Arte

Monsieur Antoine de Pluvinel, segundo seus contemporâneos “O me-


lhor homem que já usou esporas”, passou seis anos na Escola Napolitana
de Equitação. De volta a Paris, Monsieur de Pluvinel trabalhou muito para
modificar certas práticas da Escola Napolitana das quais discordava – espe-
cificamente o uso de embocaduras pesadas e o tratamento brutal que, tanto
Grisone quanto Pignatelli, dispensavam aos cavalos. Antoine de Pluvinel
deu um passo importante para a Equitação Acadêmica: sendo um homem
racional e humanitário, aproximou novamente as práticas equestres aos sá-
bios ensinamentos de Xenofonte, conforme ele explicou em seu livro Le Ma-
neige Royal editado após a sua morte em 1623.
Monsieur Antoine de Pluvinel (1555-1620) foi contemporâneo de Ga-
lileu Galilei que, em 1623, lançou o famoso livro intitulado O Ensaiador
onde, com estilo fino e mordaz, ridicularizou os opositores da teoria helio-
centrista de Copérnico, o que causou uma tempestade de protestos e o seu
notório processo pela Inquisição. Mas, apesar de toda essa revolução filosó-
fica e tecnológica – principalmente da física mecânica, a equitação clássica
permaneceu no estágio da equitação-arte. Era estacionária, com cavaleiros
executando figuras equestres como passages, ballotades, cabriolles e outros

111
Bjarke Rink

movimentos da alta escola e dos altos ares, dirigidos para os nobres espec-
tadores na platéia. Era uma equitação desenvolvida para a guerra (diziam)
e dava ênfase à ‘reunião’ absoluta do cavalo em todos os andamentos e fi-
guras. Monsieur de Pluvinel foi soldado, diplomata, conselheiro, mestre de
equitação, e comandava em Paris uma academia para jovens nobres, onde
ensinava esgrima, dança, matemática e filosofia, mas com prioridade para a
mais nobre das artes – a equitação. Pluvinel, além de professor de equitação,
era também professor de virtude e moralidade que, além da arte equestre,
ensinava os valores morais da honra, magnanimidade, moderação, cortesia,
bom senso, coragem e todos os atributos morais que entravam na formação
do cavaleiro clássico, o ‘honnête homme’ – o homem honrado.
A pedido do seu mais ilustre discípulo, o jovem Rei da França,20 Plu-
vinel escreveu um livro intitulado Le Maneige Royal. A obra foi escrita em
forma de diálogo entre o respeitoso, mas autoritário, Monsieur de Pluvinel e
o seu ilustre aluno, Sua Majestade, o futuro rei Luiz XIII da França.21 Neste
diálogo, vamos procurar pinçar os fatos que hoje, quase 400 anos depois,
ainda constituem a base para uma boa equitação. O frontispício do livro
Le Maneige Royal deixa claro a filosofia de Pluvinel e o seu compromisso
com os princípios de Xenofonte. Do lado direito da ilustração aparece uma
figura chamada ‘Robur’ (Robusto). Com um físico invejável e portando um
tacape na mão, Robur está com visível dificuldade em controlar um cavalo
transtornado e aprumando que ele tenta conduzir pelo cabresto. Do lado es-
querdo da gravura está uma elegante jovem chamada ‘Scientia’ que conduz
com facilidade um garanhão obediente, enquanto com a outra mão segura
um livro aberto, que ela estuda com atenção. (Interessante o mestre Plu-
vinel ter escolhido uma mulher para simbolizar a equitação racional, não
é, machões?) A ilustração deixa claro as vantagens da equitação racional e
científica em oposição a métodos brutais e irracionais como os de Federico
Grisone. Com o texto, fica claro que os princípios da boa equitação existem,
escritos em livro desde a Grécia antiga e a Renascença francesa – e hoje,
mais do que nunca, só não aprende quem não quer.
“Eu desejo aprender”, diz o jovem Rei na abertura do 1° capítulo, “o
que é preciso para se tornar um excelente equitador”.
Responde Pluvinel: “O cavalo deve sentir prazer na equitação, se não
o cavaleiro não conseguirá fazer nada direito”. (Uma resposta que tem
20
Na França o herdeiro do trono era coroado na infância para evitar as disputas sucessórias quan-
do o rei morria.
21
Luis XIII se tornou um bom cavaleiro e a França foi vitoriosa na ‘Guerra dos Trinta Anos’ con-
tra os Habsburgos da Áustria.

112
Parte I Catalisador da História

uma enorme diferença com a seção de pancadaria recomendada pelo seu


ex-instrutor, o Sr. Pignatelli).
“Como”, pergunta o Reizinho, “deve-se tratar um cavalo que desobe-
dece?” (Era inteligente este Reizinho, botou logo o dedo na ferida!).
Responde Pluvinel: “É muito melhor ensinar com bondade do que
com severidade. Se o cavalo se recusar a obedecer, o bom cavaleiro desco-
bre o que lhe impede. O cavalo só deve ser chicoteado por lerdeza. Deve-se
ser ‘pobre’ em punições e ‘pródigo’ em carinhos. (Ouviu, ‘seu’ Grisone?) É
importante que se estude a individualidade do cavalo. Alguns são estúpi-
dos (burros), medrosos e tão fracos que não são capazes de andar algumas
léguas. Estes são melhores para puxar carroça do que para o manège”.
Pergunta o Reizinho: “O senhor faz distinção entre um cavaleiro ele-
gante e um cavaleiro criterioso?”.
Responde Pluvinel: “Sim, ninguém pode se tornar um cavaleiro per-
feito se lhe faltar qualquer uma dessas qualidades. Para ser um cavaleiro
elegante, basta ter olhos para observar o que é elegante e o que não é, ter
ouvidos e memória para guardar o que se aprende. Mas, para ser um cava-
leiro criterioso, que saiba adestrar um cavalo, é preciso ter um julgamento
consistente – uma droga rara pela qual se recebe pouco, se considerarmos
os preços pagos aos farmacêuticos”. (Com esta fina ironia, Pluvinel mostra
que a falta de bom senso no meio equestre já era endêmica na sua época).
“Sim, eu tenho notado isto”, diz o Reizinho, “e é por este motivo que
desejo aprender com o Senhor”.
Responde Pluvinel: “Será muito fácil à Sua Majestade entender a arte
equestre e lhe fazer bom uso – porque Deus lhe dotou com um corpo
perfeito e uma vasta e sólida mente. (Essa ‘rasgação de seda’ era normal
na conversa entre os nobres e bem nascidos nas cortes da Renascença). É
importante que o aluno seja um homem e não um animal vestido de gen-
te, e que ele possua duas coisas importantes: um corpo esbelto e o desejo
de aprender”.
Mais adiante, o Reizinho comenta: “Aqui, na primeira aula, o Senhor
inicia o cavalo nas Voltes (um circulo a galope com 5,5 metros de diâme-
tro), que ouço o Senhor dizer que é o movimento mais difícil que o cavalo
pode fazer”.
A esta pergunta responde o duque de Bellegarde, o equitador do Rei
Henrique IV (o paizão), que faz parte da comitiva Real: “O Senhor pode
observar como os potros correm alegremente atrás das suas mães e como,
de vez em quando, fazem uma demi-volte, girando e parando nos pos-

113
Bjarke Rink

teriores e, às vezes, completando com uma courbette”. (Aqui ficamos sa-


bendo que no século XVII já se notava a correlação entre os movimentos
naturais do cavalo e a sua correspondência com os movimentos da equita-
ção, como bem sabiam os nômades da Ásia Central).
Pergunta o Reizinho: “É, então, por este motivo que o Senhor repete
o exercício da ‘volte’ com mais frequência do que os outros?”
Responde Pluvinel: “Exatamente. Bons cavalos, para os quais a na-
tureza concedeu leveza e força, aprendem mais rapidamente e podem de-
sempenhar melhor e por mais tempo. Todavia, cada cavalo tem uma vo-
cação própria, a qual o cavaleiro deve reconhecer. Cavalos aprendem com
bons hábitos e não com discursos (onde se percebe que o ‘papo furado’
não é exclusivo dos nossos tempos) e, se o cavaleiro equitar o cavalo cien-
tificamente, ele deverá diminuir o uso das ajudas até que os espectadores
pensem que o cavalo está atuando por vontade própria” (esse Pluvinel era
gênio).
Diz o Reizinho: “Da maneira que o Senhor ensina os alunos, eu per-
cebo que tanto o cavalo quanto o cavaleiro recebem juntos as aulas”.
“Correto”, responde Pluvinel: “Eu tenho tentado encurtar o tempo
que leva para ensinar cavalos e cavaleiros”.
O Reizinho então inicia o seguinte diálogo: “Monsieur de Pluvinel, eu
posso ver que, com os seus métodos, a pessoa aprende a julgar, num curto
espaço de tempo, tanto o cavalo quanto o cavaleiro”.
Responde Pluvinel: “Vejo que Sua Majestade entende perfeitamen-
te do que consiste um cavalo bem adestrado. Os equitadores criteriosos
saberão sempre escolher os cavalos mais dóceis para serem adestrados e
torná-los dignos de Sua Majestade. Não tentarei fazer distinção entre ra-
ças de cavalos, porque tenho visto bons e maus cavalos em todos os países.
Tudo depende do julgamento do cavaleiro em observar se os movimentos
do cavalo são vigorosos e executados com energia, leveza, elegância e agi-
lidade. Sou da opinião de que todo cavalo é apto a algum grau de escola-
ridade, embora uns mais do que outros. Sabemos que nem todo o homem
de belo físico é capaz de saltar e pular (a razão deste fenômeno está na
constituição neurológica do indivíduo – pessoa ou cavalo – matéria que só
veio a ser estudada através da neurociência no século 20). Deve-se evitar o
uso da força, porque eu nunca vi nada de positivo sair disso. Meu objetivo
é trabalhar o cavalo com calma, por pouco tempo, mas sempre”.
Pergunta o Reizinho: “Existem outras regras que o senhor deseja en-
fatizar?”

114
Parte I Catalisador da História

Responde Pluvinel: “Tomo o cuidado de verificar se o cavalo respon-


de melhor a um calcanhar do que ao outro, ou se ele se vira melhor para
um lado do que para o outro. Não existe nenhum cavalo que não tenha al-
gum tipo de limitação, à qual temos de superar com suavidade e paciência
e não com o uso de força. Os cavalos só aprendem por meio de aulas boas
e repetidas, para que a equitação se torne um hábito. Antes da introdução
dos meus métodos, muitos cavalos ficavam velhos e gastos em vez de bons
e bem treinados.” Hoje, a ciência revela que aulas boas e repetidas para a
equitação se tornar um hábito, como explicou Pluvinel, é a organização
da equitação em reflexos condicionados instalados através da repetição
sistemática dos movimentos equestres para que se tornem automatizados.
“E o que o Senhor tem a dizer sobre freios e embocaduras?” pergunta
o Reizinho.
Responde Pluvinel: “Eu estou satisfeito em usar somente uma dúzia
de embocaduras. É importante que a embocadura dê prazer para a língua
do cavalo. Temos de procurar o que o cavalo prefere para o seu conforto.
Devemos tomar cuidado para que a embocadura pouse direito nas barras
do animal. A barbela deve encaixar corretamente no seu lugar. Cuidar
para que a embocadura não belisque o canto da boca do cavalo. Todas
essas coisas devem ser consideradas com critério. Mas a mão suave do
cavaleiro é, no final, o melhor instrumento do cavaleiro”.
Monsieur Antoine de Pluvinel, como todos os grandes mestres da
equitação clássica, compreendia que a embocadura é apenas uma ferra-
menta como outra qualquer – serrote, pincel ou bisturi – que, bem ma-
nejada, faz um bom serviço e, mal manejada, resulta num trabalho me-
díocre. Compreendia também que a mudança da ferramenta não traz
nenhuma alteração positiva no resultado de um trabalho executado por
mãos desastradas.

Para Pluvinel, a equitação não era uma demonstração do domínio


da ‘besta’ irracional pelo homem racional e nem a prova da sua
masculinidade (como ainda vemos nas culturas atrasadas). E, apesar
do início da equitação acadêmica ter sido na Itália, foi graças a homens
como Pluvinel que a França superou a Escola Napolitana fundada por
Grisone, e se tornou líder no treinamento de homens e cavalos na Europa.
A França, do século 17, deu à arte equestre a sua direção e marca, e
François Robichon de la Guérinière, no século 18, foi o principal herdeiro
da ‘equitação científica’ de Pluvinel.

115
Bjarke Rink

CAPÍTULO 22

La Guérinière, o Herdeiro da
Equitação Científica

O legítimo herdeiro de Pluvinel foi François Robichon de la Guérinière


que, em 1751, ou seja, 128 anos depois da publicação do livro Le Maneige
Royal, escreveu o livro École de Cavalerie que alcançou grande sucesso em
todas as cortes da Europa. Chegamos também ao período em que a física
moderna foi finalmente estabelecida em sua plenitude. Quando isso acon-
teceu, houve um completo rompimento com os últimos vestígios do universo
aristotélico, reintroduzido na Renascença. No universo newtoniano, a ma-
temática tornou-se uma ferramenta onde resultados científicos podiam ser
expressos em números. O mundo saía de uma revolução científica e entrava
na revolução industrial. Mas a equitação acadêmica continuava estacioná-
ria. Depois da revolução da percepção humana acerca dos fenômenos cien-
tíficos, o equitador clássico ainda montava a cavalo como na Renascença.
Estes acontecimentos demonstram o conservadorismo natural do cavaleiro
ocidental e o seu tradicional compromisso com o passado.
No século 18, a equitação clássica ganhou grande impulsão, e os en-
sinamentos racionais de Antoine de Pluvinel começaram a se fazer sentir
na França. Passaram pela Escola de Equitação de Versalhes nomes como o
do ‘ecuyer’ Louis Cazeau de Nestier, equitador criativo até hoje lembrado.
O manejo e a veterinária também evoluíram, deixando legados científicos

116
Parte I Catalisador da História

como os do equitador Claude Bourgelat da Academia de Lyon. Mas, ape-


sar de toda essa efervescência técnico-científica do século de Göethe e da
Luz e da Razão, a equitação clássica se manteve praticamente no mesmo
estágio do tempo de Grisone, 200 anos antes. No seu tempo, François Ro-
bichon de La Guérinière não via as coisas com otimismo. Como todos os
cavaleiros antes e depois, ele se considerava o último baluarte da boa equi-
tação. “Eu tenho feito todo o possível para reviver a excelência equestre da
‘época dourada da equitação’”, escreve ele no prefácio de seu livro Escola
de Cavalaria. “É preciso admitir, com vergonha, que perdemos algo de
nossa habilidade dos tempos passados” (ele não está se referindo aos hu-
nos, é claro). “Hoje, estamos satisfeitos com apresentações equestres ape-
nas medíocres”. As palavras de Guérinière repetem a mesma insatisfação
de M. de Pluvinel, antecipam o inconformismo de François Baucher no
século seguinte, e de Decarpentry no século 20. Nenhum grande cavaleiro
esteve satisfeito com a equitação do seu tempo e, como nós, todos tiveram
sentimentos de nostalgia do passado – da época dourada da equitação –
seja lá quando tenha sido isso. Todos estes grandes mestres trabalharam
com absoluto respeito e reverência pelos seus antecessores. Enquanto a
ciência evoluía em busca do futuro, a equitação se mantinha estacionária
e voltada para o passado.
Ricardo Berenger, que foi discípulo de François Robichon de la Gué-
rinière em 1771, descreve a posição do assento e a posição das mãos do
cavaleiro quase com as mesmas palavras usadas pelo Duque de Newcas-
tle, aluno de Pignatelli na Escola Napolitana 200 anos antes. Escreveu Be-
renger: “O conhecimento da natureza diferenciada do cavalo [em relação
aos outros animais] juntamente com seus vícios e imperfeições, e também
da exata proporção das partes do seu corpo, é o fundamento onde cons-
truímos a teoria da nossa Arte. A desobediência do cavalo está mais fre-
quentemente relacionada com a incompetência do cavaleiro do que com
alguma imperfeição do próprio cavalo. Três coisas podem dar origem a
isso: ignorância, mau temperamento [do cavalo], ou a incapacidade física
do cavalo em realizar o que foi exigido. Se um cavalo não sabe como fa-
zer alguma coisa e for pressionado, vai rebelar-se – nada é mais comum.
Ensine-o e ele saberá. Frequentes repetições das suas aulas converterão
este conhecimento num hábito e você o reduzirá a ‘submissão’ precisa”.
Há nestas palavras muita sabedoria, mas nenhuma evolução sobre os co-
nhecimentos passados. As ‘ajudas’ descritas por La Guérinière no capítulo
“Ajudas e castigos” têm os mesmos princípios de Federico Grisone: “As

117
Bjarke Rink

‘ajudas’ são utilizadas para antecipar o erro do cavalo e o castigo é para


corrigir o erro cometido e, como o cavalo só obedece com medo do casti-
go, as ‘ajudas’ são apenas para avisar ao cavalo de que será castigado caso
não obedeça. O chicote é, ao mesmo tempo, uma ‘ajuda’ e um castigo”. La
Guérinière afirmava que “poupar o uso das ‘ajudas’ e do castigo é uma das
características mais desejáveis do equitador”. Resumindo, La Guérinière
faz a apologia das ‘ajudas’ como método de castigo e a seguir as desacon-
selha.
Enquanto a ciência estava dando saltos qualitativos em todas as
frentes, François Robichon de la Guérinière só pensava em reviver o “es-
plendor” equestre do passado. Mas os cavalos no tempo de La Guérinière
não eram todos de alta escola, um passatempo de gente rica e para o qual
poucos cavalos eram fisicamente aptos. A maioria era usada para viagens,
caça, corrida, guerra e também para o trabalho. Isto, naturalmente, pro-
duziu um conflito de opiniões entre os cavaleiros da equitação clássica e os
de trabalho sobre o melhor uso do cavalo, sendo comum algumas cabeças
‘quentes’ trocarem insultos e comentários ácidos a respeito da atividade
equestre do próximo. (Exatamente como a turma da equitação clássica
faz hoje com a galera da equitação rural, e vice-versa). Os cavaleiros da
equitação de trabalho argumentavam que o excesso de reunião exigido
do cavalo na equitação-arte tirava a impulsão do animal e o tornava inú-
til para qualquer trabalho de velocidade. Como já vimos, os defensores
da alta escola ainda usavam os argumentos de Newcastle que distinguia,
com bastante clareza, a diferença entre a equitação-arte e o uso prático do
cavalo. Mas, o próprio La Guérinière resumiu o capítulo sobre saltos de
obstáculos em seu livro, a meia página, e dá apenas alguns conselhos dis-
plicentes sobre como treinar o cavalo para ‘pular’. (Um sinal claro do seu
desprezo por este esporte.) O objetivo era, claramente, reviver a ‘era dou-
rada’ da equitação-arte do passado, mesmo que ninguém soubesse quan-
do teria sido isso. “E o mundo foi rodando nas patas dos meus cavalos”,
como cantou Geraldo Vandré, com os equitadores clássicos do século 18
a insistir no rigor escolástico da equitação-arte e não admitindo qualquer
outra forma de equitação.
Os cavaleiros Prussianos deste período também esqueceram da li-
ção que Frederico “O Grande” havia lhes ensinado na Guerra da Sucessão
Austríaca: “O cavaleiro deve superar com rapidez qualquer obstáculo do
terreno – e avançar, avançar, avançar”, e, depois das agruras da guerra,
voltaram-se, saudosamente, para a equitação estacionária do manual de

118
Parte I Catalisador da História

La Guérinière. A magnífica cavalaria russa, incluindo os cossacos (lamen-


tavelmente), foi também orientada para seguir o exemplo dos Prussianos.
Mas, como os oficiais russos só haviam ‘ouvido o galo cantar, mas não
sabiam onde’, alguém traduziu o livro École de Cavalarie de La Guérinière
para o russo e os andamentos velozes foram eliminados, a reunião intro-
duzida, e os cavalos perderam todo o seu condicionamento e se tornaram
incapazes de exercer qualquer atividade de campo. Felizmente (para os
Russos), na guerra Russo-Turca de 1828, a cavalaria turca também tinha
sido disciplinada a ‘la France’ e os soldados, com as técnicas novas e tú-
nicas apertadas, caiam frequentemente dos seus cavalos, que também
não sabiam avançar sobre os escombros da guerra e se atrapalhavam com
qualquer obstáculo do terreno. (A guerra Russo-Turca terminou, é cla-
ro, numa grande videocassetada, com um empate técnico entre os trapa-
lhões). Confundir equitação-arte com arte marcial só podia mesmo dar
nisso.
Este desentendimento entre os cavaleiros que achavam que a “verda-
deira” equitação era representada pela alta escola, estacionária e espetacu-
lar, e os que preferiam a equitação esportiva, veloz e avante, está na raiz
da grande controvérsia havida na França 100 anos depois, entre François
Baucher e Antoine Cartier D’Aure. Só que, depois da Revolução Francesa,
algum malvado trocou os discursos dos adversários, e a nobreza, repre-
sentada por D’Aure, agora defendia a nova equitação esportiva, enquanto
a burguesia, representada por Baucher, preferia a tradicional equitação-
-arte. O Duque de Newcastle, em seu túmulo, deve ter coçado a cabeça,
sem entender mais nada.

O livro, École de Cavalerie, escrito por François Robichon de la Guérinière,


mesmo sem ter introduzido nenhuma grande novidade para a equitação
acadêmica, influenciou muito a equitação do século 18, refinando os
movimentos da Alta Escola e elaborando as quadrilhas equestres. Esta bela
equitação-erudita pode ser vista inalterada até os dias de hoje na Escola
Espanhola de Viena, onde homens e cavalos são treinados rigorosamente
segundo os princípios introduzidos há mais de 250 anos pelo grande
mestre ‘ecuyer’ François Robichon de la Guérinière. No século seguinte, a
equitação-arte teria outro grande mestre francês – François Baucher – um
verdadeiro artista ou apenas um manipulador da opinião pública? Você
decide.

119
Bjarke Rink

CAPÍTULO 23

François Baucher – Guerra Civil


na Equitação Clássica

François Baucher (1796-1863) se tornou conhecido com apresentações


de Alta Escola em circos-manèges de Paris, introduziu ao adestramento
clássico a troca-de-pés-ao-tempo e fez demonstrações no picadeiro de trote
e galope à ré. Grande equitador e hábil treinador de cavalos, foi também
o personagem catalisador da mais acirrada controvérsia da história da
equitação acadêmica. O famoso cavaleiro escreveu vários livros, dos quais
o mais explosivo foi Método de Equitação Baseado em Novos Princípios.
Este livro teve o poder de rachar a opinião pública francesa em duas fac-
ções: os baucheristas que admiravam os resultados espetaculares obtidos por
Baucher, e os anti-baucheristas, conhecidos como d’auristas, liderados pelo
conde Antoine Cartier D’Aure. (O escritor Honoré de Balzac era d’aurista).
Mas, afinal, quem era este homem que tinha a audácia de anunciar um
‘novo método de equitação’ no centro equestre mais desenvolvido do mundo?
François Baucher era natural de Versalhes e pouco se sabe da sua ori-
gem, provavelmente porque pouco há para contar. Alguns historiadores
afirmam que ele nasceu perto da Escola Real de Equitação de Versalhes e
o próprio Baucher declarou que assistia diariamente aos exercícios e des-
files lá realizados – e que admirava, sobretudo, o ecuyer Conde d’Abzac (o
mestre equitador da Escola de Versalhes) nas suas idas e vindas para as

120
Parte I Catalisador da História

paradas militares. A vida profissional de Baucher começou sob a tutela do


tio, num manège de Milão. Por volta de 1820, aos 24 anos, ele foi para Le
Havre, na Bélgica, e lá assumiu o comando de um manège particular. Em
1834, insatisfeito por achar que estava longe dos grandes centros eques-
tres – e possuído por um alto senso de missão para ensinar os métodos
que estava desenvolvendo – Baucher mudou-se para Paris. Lá se associou
a um membro de uma ilustre família de equitadores, Jules Charles Pellier.
O novo sócio era proprietário de um circo-manège, uma nova forma de
espetáculos circenses que, além das tradicionais apresentações de mala-
baristas, mágicos, domadores e palhaços, apresentava reprises da Alta Es-
cola.
O circo-manège estava entrando na moda em Paris e, além de atrair o
‘menu peuple’ (o povão, como diríamos no Brasil), os espetáculos eques-
tres começavam a atrair a nobreza, concorrendo com as óperas e os balés.
Nesta época pós-revolucionária, pós-napoleônica e pós-restauratória dos
Bourbons no trono da França, o país estava num torvelinho ideológico,
com a nobreza ficando mais burguesa e a burguesia ficando mais nobre
– dá para entender? Mas a crescente popularidade de Baucher, o burguês,
nos espetáculos equestres do circo-manège começou a alinhá-lo em rota
de colisão com outro equitador famoso, o conde Antoine Cartier D’Aure,
também defensor de uma “nova equitação”, menos voltada para os espe-
táculos e mais orientada para os esportes equestres praticados ao ar livre,
em consonância com a equitação inglesa e prussiana. Na França, D’Aure
foi o introdutor da sela inglesa, dos loros curtos e do trote elevado – “Uma
equitação avante, mais uma vez avante e avante novamente”, como gostava
de dizer. Era uma filosofia de equitação voltada para o esporte, que mobi-
lizava muita gente.
Em 1840, Baucher e D’Aure eram duas locomotivas se aproximando
em alta velocidade, nos mesmos trilhos. Mais cedo ou mais tarde haveria
uma colisão ideológica entre os dois cavaleiros. A publicação, em 1842,
do livro Méthode d’Equitation e um convite a Baucher para ensinar a sua
“nouvelle méthode” nas academias militares de Paris, Saumur e Lunéville,
precipitou o sinistro. Baucher foi convidado a ensinar os seus métodos no
exército francês entre 1842 e 1845. Mas com a morte do seu padrinho, o
duque D’Orleans, e com a ascensão do irmão deste, o duque de Nemours
(um d’aurista ferrenho) para a chefia do comitê de cavalaria francesa,
aconteceu o inevitável: caiu Baucher e subiu D’Aure.
Depois da derrota política, François Baucher saiu de Paris e viajou

121
Bjarke Rink

pela Europa onde se apresentou em vários circos-manèges para platéias


sempre entusiasmadas. E os dois cavaleiros, o burguês e o nobre, se tor-
naram adversários e críticos mútuos para o resto da vida; com um escre-
vendo e o outro desmentindo em livros e folhetins sucessivos. Mas nesta
guerra de comunicação, quem levou a melhor foi Baucher. Após a publi-
cação do livro Método de Equitação, de François Baucher, o conde D’Aure
escreveu uma crítica intitulada Observações Sobre o Novo Método, onde
D’Aure simplesmente afirma que “o uso do cavalo, a equitação e os meios
de controlá-lo são demasiadamente conhecidos para alguém chegar e
anunciar que descobriu um “novo método”. Mais adiante ele declara que
“para alguém interpretar a equitação da maneira de Baucher, esta pessoa
nunca deve ter usado o cavalo fora do circo – que é bem diferente de se
equitar um cavalo no campo”. “Infelizmente”, continuou D’Aure, “quando
as técnicas de Grisone, Pluvinel, Newcastle e outros grandes equitadores
do passado foram reintroduzidas na equitação clássica, foram usadas para
treinar cavalos de circo. E agora, quando aparece “alguém” falando em
ramener e rassembler as pessoas pensam que estão ouvindo e vendo coisas
novas. Além do mais, fazer um cavalo trocar de pés, elevar as mãos, dan-
çar e valsar, atividades que parecem novidade hoje em dia, já foi mostrado
por Astley, Franconi e todos os organizadores de espetáculos equestres – e
até por Monsieur de Pluvinel, no seu famoso carrossel promovido para
festejar o casamento de Maria de Medecis com Henrique IV.”
“Toda esta confusão”, reclamava D’Aure, “produziu poucos resultados
e só serviu para ferir os sentimentos de muita gente, além de dividir a opi-
nião pública. Espero que este conflito provoque uma reação que faça sur-
gir a verdade”. D’Aure estava, evidentemente, sendo o porta-voz de uma
facção de equitadores melindrados com a fama de Baucher. Mas, é impor-
tante notar que nos seus ataques a Baucher e ao Novo Método, D’Aure, ao
contrário de outros críticos, evitou desmerecer o talento e o valor artístico
da equitação de Baucher. O que estava em discussão era a ‘eficiência’ dos
métodos de Baucher para o uso do cavalo fora do manège – sobretudo nas
competições esportivas de salto e cross-country.
Baucher, para se defender, partiu para o ataque. Respondeu aos seus
críticos escrevendo: “Se o meu método era conhecido antes de mim, por
que não era praticado em toda a sua plenitude? Não existe um equitador
sequer que não preferiria obter bons resultados de treinamento em um
dia, em vez de um mês”. E acrescenta com ironia: “Ou eles não enten-
deram ou fingiram não entender, porque não encontraram nos manuais

122
Parte I Catalisador da História

do passado as palavras corretas que correspondessem a este trabalho”. (O


comentário de Baucher sobre as ‘palavras corretas’ é importante e voltare-
mos ao assunto na terceira parte deste livro). A ‘verdade’ é que Baucher foi
o primeiro cavaleiro de Adestramento clássico a escrever um manual ‘mo-
derno’ sobre equitação.22 O ‘novo’ não era tanto a equitação descrita no
seu livro, era sobretudo a sistematização do método e a linguagem técnica
utilizada. Baucher conseguiu, impulsionado pelos novos conhecimentos
da revolução industrial do século 19, o que ninguém até então havia con-
seguido: escrever uma obra acadêmica sobre Dressage, numa linguagem
de grande acurácia técnica, do ponto de vista da ciência mecânica. Entre-
tanto, o verdadeiro problema foi que Baucher e D’Aure também confun-
diram equitação-arte com equitação esportiva. Baucher era claramente o
artista e D’Aure o esportista, e ambos se dedicaram a disciplinas equestres
com objetivos diferentes. D’Aure percebeu intuitivamente que a fase da
glória militar equestre estava em rápido desaparecimento e que o futuro
da equitação estava nos esportes.
Além de grande equitador, Baucher foi o grande comunicador da sua
época. Ele só não soube distinguir a diferença entre arte e esporte e, assim,
evitar a confusão que o seu trabalho provocou entre seus colegas de pro-
fissão – todos extremamente vaidosos e conservadores (como nós equita-
dores sempre fomos no passado e continuaremos a ser no futuro). Na res-
posta aos ataques de seus críticos, Baucher escreveu um folheto intitulado
Respostas às Observações de M. D’Aure onde ele, por sua vez, apontou erros
graves no livro de D’Aure, intitulado Tratado de Equitação, e mostrou que
este, depois da publicação do livro de Baucher, apressou-se em reeditar a
sua obra, corrigindo várias ‘heresias’ contidas na primeira versão. E, de
fato, Baucher pegou D’Aure em várias contradições e tirou grande pro-
veito disso. “Quanto às minhas apresentações em circos, Shakespeare e
Molière também o fizeram, para o engrandecimento do teatro inglês e
francês”, escreveu Baucher, com sarcasmo. Tanto Baucher quanto D’Aure
se agastaram bastante com a ‘controvérsia do século’, nome dado pelos jor-
nalistas ao embate. No final, quem saiu ganhando foi a equitação clássica
que, com os debates, se tornou mais técnica e, sobretudo, a França, que se
transformou novamente no principal centro equestre do mundo – posição
que, no tempo de Baucher, havia sido ocupada pela Alemanha Prussiana.

Esta informação só é verdade para os anglófilos e francófilos porque, no tempo de François Bau-
22

cher, o alemão Gustav Steinbrecht lançou um livro – A Academia do Cavalo – muito mais técnico
e detalhado, mas que, infelizmente, ficou sem tradução para outras línguas por muitos anos.

123
Bjarke Rink

E o conde D’Aure foi, sem dúvida, um individualista e um inovador – foi


o precursor do ‘salto clássico’ como disciplina equestre independente. E
Baucher, apesar da sua “nouvelle méthode”, foi um continuador da tra-
dicional alta escola. E, apesar de introduzir novos movimentos, como a
troca de pés ao tempo e obter grande flexibilidade e controle de seus ca-
valos em apresentações espetaculares, o seu tipo de equitação se manteve
estacionário e orientado para o público espectador, como o de Pluvinel,
Newcastle e La Guérinière nos séculos anteriores.
Mesmo introduzindo novas técnicas na equitação, nem D’Aure ou
Baucher trouxeram qualquer modificação técnica à equitação clássica.
Mas as suas diferenças de opinião representaram o divisor de águas,
onde o Adestramento e o Salto tomaram caminhos distintos. O trabalho
de D’Aure teve continuação com Caprilli, e resultou nas provas de salto
clássico e o trabalho de Baucher teve continuação com L’Hotte e Decar-
pentry, e transformou-se na reprise do Dressage moderno.

Mesmo que François Baucher não tenha contribuído nada relevante


para a equitação moderna, a sua história é um capítulo importante
nos acontecimentos equestres do século 19. A enorme controvérsia de
seu ‘novelle methode’ causou uma polêmica tão grande que acabou
beneficiando a equitação. Depois da controvérsia, a Equitação Clássica
começou a ser dividida em Adestramento e Salto.

124
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 24

Gustav Steinbrecht – Entra em


Cena o ‘Sistema Alemão’

A Academia do Cavalo foi o mais detalhado manual de Adestramento


Clássico já escrito, e superava em precisão técnica todas as obras clássicas
publicadas antes do seu aparecimento. Steinbrecht, mesmo que de forma
empírica, demonstra pressentir, antes dos cientistas da sua época, várias im-
portantes questões da relação neurológica do homem e do cavalo durante a
equitação, que só poderiam ser desvendadas depois dos avanços da fisiologia
e da neurologia do século 20.
Pode-se dizer que A Academia do Cavalo representa a sabedoria de
muitas gerações de cavaleiros alemães que formaram o Estado da Prússia,
iniciada pela Ordem dos Cavaleiros Teutônicos, ainda no século 13.
O autor, Gustav Steinbrecht, nasceu nos tempos conturbados das
guerras napoleônicas e, durante a sua vida, assistiu à unificação dos Esta-
dos germânicos e a formação do ‘Deutches Reich’, um dos períodos mais
esplêndidos da história da Alemanha. Vamos voltar um pouco no tempo
e olhar o contexto político em que Steinbrecht viveu e escreveu a sua obra.
De todos os 360 reinados que vieram a formar a primeira confedera-
ção germânica, a Prússia sempre se impôs aos demais Estados por meio
de uma dinastia de cavaleiros militares – os Junkers – que formavam a sua
classe dominante. O cavalo, a equitação e a cavalaria foram, desde o início

125
Bjarke Rink

da sua história, os sustentáculos do poderio militar prussiano.


O século 19, entretanto, não começou bem para a Prússia. Em 1806,
dois anos antes do nascimento de Steinbrecht, Napoleão Bonaparte derro-
tou fragorosamente as forças prussianas nas batalhas de Iena e Auerstadt.
Gustav Steinbrecht nasceu em 1808, em Amfurt, na Saxônia, numa
Alemanha recém-derrotada por Napoleão e tomada por grande fervor pa-
triótico. O movimento nacionalista alemão estava mais uma vez centrado
em Berlim, a capital da Prússia.
O jovem Gustav, filho de um pastor Luterano, não se sentiu atraído
pela batina e escolheu estudar veterinária em Berlim. A lida diária com
cavalos acabou seduzindo Gustav pela equitação e, por meio da amizade
com o notável cavaleiro Lois Seeger, o jovem veterinário calçou botas e
esporas, e começou a sua carreira equestre. Nesta época, o exército prus-
siano havia sido reorganizado e depois, na batalha de Waterloo, ajudara a
completar a vitória dos Aliados que derrotaram definitivamente o exército
de Napoleão. A estrela da Alemanha estava em franca ascensão.
Steinbrecht ficou oito anos trabalhando no manège de Lois Seeger,
o tempo necessário para se tornar um bom equitador e conquistar a mão
da sobrinha do patrão (sempre um bom início na carreira de um jovem
ambicioso). Mas, em 1834, no mesmo ano em que François Baucher se
mudou para Paris, Steinbrecht resolveu assumir a direção de um manège
particular em Magdenburgo, a 160 quilômetros de Berlim. Porém, depois
de passar oito anos na “província”, Steinbrecht decidiu voltar para Berlin
e trabalhar novamente com Seeger que, agora, se encontrava no auge da
sua fama.
Depois da revolução liberal e nacionalista de 1848, a Alemanha havia
retomado o seu crescimento econômico e estava a caminho de tornar-se
uma grande potência européia. Em 1849, Steinbrecht foi nomeado diretor
do Seegerhof, o manège de Seeger e, nesta época, começou a transcrever
as notas que se transformariam no livro “Gymnasium des Pferdes” – A
Academia do Cavalo. Mas, em quê a obra de Steinbrecht se diferenciava
dos demais manuais até então escritos na França, na Itália e em Portugal?23
A Academia do Cavalo é dedicada exclusivamente ao Adestramento clás-
sico e à Alta Escola, e não aborda outras questões do tipo ferrageamento,
alimentação e manejo de equinos. Foi o mais completo texto sobre o trei-
namento de cavalos até então escrito. Steinbrecht aborda a proposta do

A Luz da Liberal e Nobre Arte da Cavalaria de Manoel Carlos de Andrade escrito em 1790 e
23

dedicado a D. João, o príncipe do Brasil, mais tarde D. João VI.

126
Parte I Catalisador da História

Adestramento como disciplina equestre, descreve minuciosamente a ação


do cavaleiro nos movimentos de Alta Escola e Altos Ares, explica como
iniciar o cavalo jovem, desenvolver impulsão com uma posição natural de
cabeça, flexionar pescoço, nuca, coluna dorsal e os membros posteriores.
É um sistema de treinamento progressivo e não deixa nenhuma questão
sem explicação.
No capítulo “Treinamento Sistemático do Cavalo”, Steinbrecht des-
creve o sentido de ‘propriocepção’ do cavaleiro com todas as letras... “É a
primeira obrigação do cavaleiro manter as partes, com as quais ele sente
o cavalo, macias e flexíveis. Se o seu assento cumpre essa função, ele logo
sentirá o movimento das patas do cavalo e será capaz de distinguir cada
um deles; ele então terá os meios à sua disposição para controlá-las como
se fossem as suas.” Steinbrecht também descreve minuciosamente COMO
adestrar e tirar melhor proveito das qualidades de um bom cavalo, apesar
de que, a exemplo dos outros mestres de seu tempo, ele não tinha como
saber PORQUE o seu método dava certo. No seu tempo a fisiologia, a
psicologia, e a neurociência ainda estavam engatinhando e a cibernética
só surgiria no século 20.
Em seu livro, Steinbrecht critica severamente as técnicas de seu con-
temporâneo, François Baucher: “O maior exemplo de charlatanismo é o
Sr. Baucher que, com a audácia das suas afirmações e a enormidade das
suas promessas, trouxe uma colossal discordância e confusão para o mun-
do equestre. O seu método consiste em gradativamente roubar a força
natural do cavalo, que o Sr. Baucher considera ser o inimigo, para então
fazê-lo subserviente. Por meio de uma ‘reunião’ artificial, ele faz os seus
cavalos se tornarem acabrunhados e frouxos, roubando-lhes a força da
sua garupa, da sua ação avante natural. As pobres criaturas perdem todos
os seus apoios e não são mais úteis para qualquer proposta prática. Sr.
Baucher pode se gabar, com justiça, que na arte da equitação ele é o único
a ter descoberto movimentos que nenhum mestre antes dele tenha descri-
to e demonstrado. Estes são os movimentos infames de andar para trás,
para os quais ele joga as rédeas no pescoço do cavalo e afunda as esporas
no flanco com toda a força, e também o de galopar à ré (...). O seu mé-
todo deveria ser chamado de “sistema retrógrado”. Já tendo assombrado
o mundo do cavalo por tempo demais, ele foi finalmente banido para o
circo, para o alívio de todos os cavalos.” (Steinbrecht e o Conde D’Aure
obviamente comungavam das mesmas idéias).
A realidade parece ser que alguns mestres no passado utilizaram de-

127
Bjarke Rink

terminadas técnicas equestres contrárias à natureza do cavalo, mas que,


com o tempo e a repetição, o animal aprendia a superar, deixando o ca-
valeiro na ilusão de que a sua técnica estava “correta” porque o cavalo
respondia corretamente a ela. (É frequente se observar cavalos mais inteli-
gentes do que os seus cavaleiros.) Steinbrecht, por sua vez, é extremamente
minucioso na definição do seu sistema de treinamento, e na descrição das
técnicas e dos movimentos da Alta Escola consegue, mesmo não tendo
conhecimento dos paradigmas científicos que regem a biologia, apresen-
tar com grande acurácia certas questões neurofisiológicas que só seriam
desvendadas um século mais tarde. É este o caso do sentido de ‘Proprio-
cepção’ que Steinbrecht descreve com precisão, sem saber que este sentido
só seria identificado cientificamente na década de 1970. (Veja o capítulo
Desvendando O Enigma do Centauro, na segunda parte desse livro).
Em 1859, Steinbrecht adquiriu em Dessau, a 100 quilômetros de Ber-
lim, o seu próprio manège. Na mesma época, Guilherme I ascendeu ao
trono da Prússia e o novo monarca confiou a reorganização do exército
prussiano a Helmuth Moltke que, depois de duas vitórias militares, res-
pectivamente contra a Dinamarca e a Áustria, colocou a Alemanha entre
as grandes potências da Europa. A cavalaria alemã foi a arma fundamental
para garantir estas vitórias.
Em 1865, com 57 anos de idade, Steinbrecht e a sua esposa, ambos
com saudade dos acontecimentos políticos e sociais da capital, voltaram
novamente para Berlim. Quatro anos depois, a França de Napoleão III
declarou guerra contra a Alemanha e, na batalha de Sedan, a Prússia mos-
trou novamente o seu gênio militar ao esmagar os exércitos franceses.
Com esta vitória, Guilherme I foi proclamado Imperador de todas as Ale-
manhas, agora novamente lideradas pelo Estado da Prússia.
Os historiadores atribuem o fracasso dos franceses na guerra Fran-
co-Prussiana à desorganização endêmica das suas instituições, à falta de
liderança do exército de Napoleão III e a superior artilharia do exército
alemão. ‘A artilharia alemã conquistou e a infantaria alemã ocupou’, rego-
zijam os estudiosos, esquecendo-se, completamente, de que antes de exis-
tir o telefone e o avião militar não havia como fazer a artilharia e a infan-
taria de um exército operar de forma coordenada sem a participação da
cavalaria em todas as manobras táticas e momentos cruciais das campa-
nhas. No século 19, a cavalaria era o centro nervoso do exército como hoje
em dia é a Internet. Portanto, numa análise mais acurada, não há como
negar a importância da cavalaria prussiana na ascensão da Alemanha para

128
Parte I Catalisador da História

as grandes potências da Europa. Enquanto a indústria e o comércio dos


Estados germânicos unificados ajudaram a formar uma economia forte,
a cavalaria manteve a balança política pendendo favoravelmente para a
hegemonia prussiana.
Gustav Steinbrecht viveu este brilhante florescimento político, eco-
nômico e militar, e teve a oportunidade de ver, na batalha de Sedan, os
cavalos e os cavaleiros germânicos assegurarem a mais acachapante vitó-
ria da história da Prússia, e o maior triunfo militar da história da Alema-
nha moderna. Uma vitória assegurada pela melhor cavalaria da Europa e
sua secular tradição de excelência equestre. No ano da batalha de Sedan,
Steinbrecht, agora com 62 anos, já havia se tornado um dos mais consa-
grados mestres equitadores da Alemanha e, residente em Berlim, perma-
neceu treinando cavalos até a sua morte em fevereiro de 1885. E, con-
forme diz Hans Heirich Brinckmann em seu prefácio: “os ensinamentos
de Steinbrecht serão sempre os mais consistentes e de fundamento mais
confiável porque ele construiu o seu sistema com as leis da natureza na
qual toda verdadeira arte deve se basear”.
O livro A Academia do Cavalo, por reunir o que havia de melhor
do sistema alemão de adestramento de cavalos, foi adotado pelo exército
da Alemanha e transformou-se na ‘doutrina’ da cavalaria do “Deutsche
Reich”, e tem também sido uma fonte de inspiração e esclarecimento para
todas as gerações de cavaleiros de língua alemã e para as suas seguidas
vitórias no Adestramento Clássico das Olimpíadas.

Gustav Steinbrecht trouxe para o Adestramento clássico uma descrição


minuciosa, progressiva e de grande precisão técnica. O livro A Academia
do Cavalo se tornou a obra de cabeceira de todas as gerações de cavaleiros
da Alemanha que formaram as equipes vencedoras de salto e adestramento
nas Olimpíadas. Steinbrecht foi o único autor a descrever o sentido de
‘propriocepção’ que está no fundamento da equitação de alta performance,
sem ter noção de que este sentido só seria identificado no século 20.
Contudo, o Hipismo só deu um salto qualitativo com a ajuda dos conceitos
revolucionários do capitão Federico Caprilli que poderiam ter encerrado a
Idade Mecânica da equitação, já no início do século 20.

129
Bjarke Rink

CAPÍTULO 25

Federico Caprilli,
a Revolução Inacabada

Xenofonte, com o seu livro Manual de Cavalaria, fundou a equitação


clássica 400 anos antes de Cristo. Federico Grisone, no século 16, descobriu
este manual. No século 17, Antoine de Pluvinel refinou a equitação-arte de
Grisone. La Guérinière, no século 18, deu o acabamento final nas técnicas
da alta escola. François Baucher, no século 19, com a força da comunicação
do seu ‘nouvelle méthode’, criou uma enorme controvérsia na França. Gus-
tav Steinbrecht trouxe para o Adestramento clássico a clareza de idéias e a
pureza de linguagem do sistema alemão. E coube a Federico Caprilli intro-
duzir o conceito mais revolucionário de todos – elevou o cavalo de objeto ao
status de indivíduo, aumentando, assim, infinitamente o seu desempenho no
Salto Clássico. Mas este extraordinário conceito, por razões históricas, caiu
no esquecimento por muitos e muitos anos.
A equitação no final do século 19 e nos primeiros anos do século 20
ainda era baseada em conceitos militares clássicos, originários da alta es-
cola, que estavam agora se tornando irrelevantes nos campos de batalha,
onde o crescente poder das armas de fogo havia mudado completamente
o uso estratégico da cavalaria. As mudanças foram ainda maiores do que
as imaginadas por Frederico “O Grande” da Prússia no século anterior.

130
Parte I Catalisador da História

O capitão italiano Federico Caprilli (1868-1907), instrutor da Escola


de Cavalaria de Pinerolo, em Turim, reconheceu que, nesta nova realida-
de, as técnicas de treinamento clássico do cavalo de guerra estavam ultra-
passadas, e que o novo papel da cavalaria seria o de reconhecimento to-
pográfico, realizado por formações equestres capazes de se deslocar com
grande velocidade em qualquer terreno e superar todo tipo de obstáculo
imposto pela natureza – tarefa impossível para qualquer veículo mecâ-
nico antes do avião. Com este objetivo, Caprilli treinou os cavaleiros de
Pinerolo para, em vez de ‘reunir’ o cavalo como se fazia no Adestramento
clássico, exigir o avanço desimpedido e alongado do animal (ponto para
Frederico “O Grande” e o Conde D’Aure) – e fazendo com que os homens
se ajustassem ao centro de gravidade e aos movimentos do cavalo (o prin-
cípio número um da fusão neurofisiológica tratada no capítulo com este
nome). Caprilli, prevendo as mudanças que inevitavelmente atingiriam
a cavalaria no seu tempo, introduziu conceitos de equitação inovadores

131
Bjarke Rink

que acabaram se ajustando como uma luva ao Salto Clássico, um esporte


já praticado na Inglaterra desde James II e que se consolidou em todo o
mundo no século 20. Caprilli, entretanto, não ficou sabendo que a função
militar do cavalo desapareceria em menos de 40 anos após a sua morte. E
nem poderia imaginar que a equitação esportiva moderna ressurgiria na
década de 80 do século 20, e se consolidaria no século 21, como o mais
completo esporte já concebido pelo homem. Caprilli trabalhava apenas
para reformar a cavalaria militar, introduzindo uma equitação mais efi-
ciente e moderna, do ponto de vista tático-estratégico.
A equitação moderna gravita em torno da necessidade de se fundir
a neurofisiologia do cavalo com a do cavaleiro. De transformar o equita-
dor numa parte fluente da ação equestre, em perfeito sincronismo sen-
sitivo-motor com o cavalo. O cavaleiro precisa deixar de ser um ‘corpo
estranho’, que se exibe no dorso de um cavalo e dá palpites incessantes de
como o animal deve abordar e executar obstáculos e figuras – um ‘corpo
tão estranho’ que acaba frequentemente ‘rejeitado’ pelo cavalo. A fusão
neurofisiológica do conjunto equestre se efetua por meio do treinamento
sistemático do cavalo e do cavaleiro, quando a atuação esportiva é organi-
zada em reflexos condicionados interativos. Esta coordenação sensorial é,
no entanto, mais fácil de descrever do que realizar e, para concretizá-la, a
neurociência, a biomecânica e a fisiologia do exercício começam, a cada
dia, a fornecer mais dados e informações. Mas, voltemos ao capitão Fede-
rico Caprilli. Caprilli ensinava aos seus alunos que o cavalo é perfeitamen-
te capaz de se reequilibrar nas mudanças dos andamentos, nas mudanças
de velocidade e nos saltos, sem a intervenção do cavaleiro, desde que este
mantivesse o seu eixo de equilíbrio em perfeita continuidade com o do
cavalo. Em português claro: desde que o cavaleiro não o atrapalhe e o de-
sequilibre com uma porção de “ajudas” desnecessárias. Caprilli dizia, por
exemplo, que o cavalo não precisava receber uma pressão de pernas três
galões antes, e um comando específico, para se lançar ao salto (e outras
dicas semelhantes). Tudo desnecessário insistia: “O cavalo que foi treina-
do para saltar com um cavaleiro no dorso, no princípio com obstáculos
baixos, será perfeitamente capaz de julgar a distância e decidir se deve
aumentar ou diminuir os seus galões e regular o momento da saída do
chão para o salto. A equitação deve ser executada sem essas instruções
ao cavalo, sem “ajudas” ou outras teorias de distribuição de peso, e sim
com o cavaleiro se antecipando e se ajustando aos movimentos do cavalo”,
ensinava o capitão.

132
Parte I Catalisador da História

Caprilli era radical e descartava inteiramente o conceito clássico de


‘reunião’ porque, dizia ele, “isto inibe a impulsão do cavalo para frente. A
mão deve seguir a rédea e a rédea acompanhar o movimento do cavalo.
Tudo o que é necessário é o cavaleiro interferir o menos possível com o
equilíbrio natural do cavalo e se ajustar à maneira do animal se movimen-
tar”. Caprilli não cavalgava com as rédeas soltas, mas mantinha, através do
bridão, um leve contato com a boca do cavalo sem exigir o flexionamento
da coluna e da cabeça do animal. Caprilli ensinava aos seus discípulos a
galopar inclinados para frente e, nos saltos, a se elevar nos estribos com o
corpo paralelo ao pescoço do cavalo (o cavaleiro imitando o gesto do ca-
valo para o conjunto realizar um único gesto, como todos fazemos hoje).
Para facilitar o deslocamento do peso do cavaleiro para frente, ele manda-
va encurtar os loros da sela, à maneira oriental, ou a ‘gineta’. O costume,
apesar dos ensinamentos de D’Aure, era o contrário – montava-se com os
loros compridos, como os cavaleiros medievais, e nos saltos de obstáculos
inclinava-se o corpo para trás, na crença de que isto “aliviava” o cavalo no
momento da ‘recepção’ (o que é, na verdade, um reflexo incondicionado
do cavaleiro provocado pelo medo de cair). Como era de se esperar, a
sociedade ultraconservadora da equitação “fin de siècle”, não deu a menor
importância para Caprilli e seus discípulos até o ano de 1904 – quando
eles assombraram o mundo ganhando com facilidade as competições de
salto na Mostra Internacional do Cavalo, na Itália!
Com a morte prematura de Caprilli, o seu sistema de equitação, que
foi chamado eufemisticamente de “assento adiantado”, fundiu-se com os
tradicionais conceitos clássicos militares e acabou, infelizmente, circuns-
crito apenas a alguns momentos das provas de salto. A equitação proposta
por Caprilli foi tão revolucionária que, para ser compreendida, exigiria
uma revolução na mente do equitador. Esta revolução só começaria 100
anos depois, na década de 90, considerada pelos cientistas como a ‘década
do cérebro’, quando a humanidade finalmente começou a receber infor-
mações científicas dos aspectos mais sutis do funcionamento do cérebro
humano.
Hoje, devemos ao arrojado capitão italiano, Federico Caprilli, a com-
preensão da importância da participação do cavalo, não apenas como um
veículo, mas como um parceiro inteligente, capaz de decidir sobre ajustes
de velocidade e equilíbrio nas provas hípicas realizadas na Europa no iní-
cio do século 20. Caprilli desafiou a concepção mecanicista da equitação
em vigor desde a Idade Média e, ao reconhecer a individualidade do ca-

133
Bjarke Rink

valo, concebeu o moderno ‘conjunto’ equestre – muito parecido com a


equitação altamente eficiente dos nômades da Ásia Central. É uma pena
que ele nunca tenha chegado a escrever um livro – e a maioria dos que
escreveram por ele parecem não ter entendido a dimensão dos seus pen-
samentos.24

A revolução de Caprilli não se resumiu ao “assento adiantado”, como


querem alguns autores. O assento adiantado foi a ‘ponta do iceberg’ de
uma nova percepção do cavalo e da equitação que elevava o cavalo de
objeto a indivíduo. Depois de muitos séculos de uso mecânico do cavalo,
Caprilli percebeu o valor da união neurofisiológica do homem e do cavalo,
mesmo que, no seu tempo, não se tinha conhecimento deste termo usado
hoje na neurociência. Mas, curiosamente, todos os antigos mestres e
‘artistas da sela’ sofreram com uma estranha saudade do passado – uma
crença de que em alguma época anterior à equitação teria vivido os seus
‘anos dourados’.

Felizmente, um dos alunos de Caprilli, o capitão Piero Santini, reuniu os apontamentos de


24

Caprilli e editou um pequeno livro que contém os conceitos básicos do mestre.

134
Parte I Catalisador da História

CAPÍTULO 26

Os “Anos Dourados”
da Equitação

Os equitadores clássicos sempre sofreram de uma curiosa nostalgia do


passado. Um sentimento de que, em alguma época anterior a sua, a equita-
ção teria vivido os seus “anos dourados”. La Guérinière lamenta o estado da
equitação no século 18. O General Decarpentry se mostra profundamente
preocupado com a equitação no século 20. Mas, se houve um passado per-
feito, quais terão sido realmente os “anos dourados” da equitação na história
da humanidade? Será que foi no século 17 de Antoine de Pluvinel, ‘o melhor
homem que já usou esporas’? Ou o apogeu da excelência equestre ocorreu no
século de François Baucher e Antoine D’Aure? Ou ainda, será que o paraíso
do cavaleiro na terra teria sido no Velho Oeste de Búfalo Bill Cody, Wild Bill
Hickock e Touro Sentado?
Quero pedir licença para discordar das opiniões de quem, porven-
tura, situa os “anos dourados” da equitação em algum século após a Re-
nascença Italiana. Apesar da minha inegável satisfação com a evolução
da equitação clássica na última década do século 20 – e da convicção de
que o desenvolvimento da ciência e da informática do século 21 vai gerar
melhores cavalos e cavaleiros do que em qualquer outra época da história
ocidental – confesso que, na minha mente, o “paraíso equestre” na Terra

135
Bjarke Rink

está recuado muito mais no tempo. Acredito que o pretérito perfeito da


equitação terá provavelmente sido vivido pelos nômades das estepes e, de-
pois, pelos nômades dos desertos e os índios americanos. Não vá embora,
deixe-me explicar.
O incansável trabalho de paleontólogos e antropólogos está come-
çando a nos revelar como ocorreu a domesticação do cavalo e de que ma-
neira os nômades da Ásia Central, com o desenvolvimento de toda uma
vasta tecnologia equestre, formaram a sua dura, mas bem-sucedida, eco-
nomia volante. A vida nas estepes foi, sem dúvida, o meio ambiente mais
favorável para a plena compreensão da psicologia do cavalo e da verdadei-
ra natureza da equitação.
Numa sociedade nômade, todas as pessoas estavam envolvidas, de
alguma maneira, com o cavalo. A intimidade do relacionamento homem-
-cavalo era total e o conhecimento psicológico e funcional dos animais era
a base da boa equitação dos cavaleiros nômades. Não havia segredos – o
mundo do cavalo era um livro aberto que toda a comunidade compre-
endia. O nômade não se achava superior ao seu cavalo, como acontece
na cultura ocidental. Esses antigos povos equestres estavam muito me-
lhor sintonizados com a natureza, e a equitação era o resultado natural
do seu relacionamento simbiótico com o cavalo. Para entender melhor os
detalhes desse relacionamento, vamos imaginar um enredo com os dados
antropológicos de que dispomos.
Ao nascer, Allita, um menino nômade, aprende primeiro a reco-
nhecer a mãe, depois o cavalo do pai e, por último, o próprio: alô, papai.
Quando ele atinge a idade de 15 anos, já terá conhecido três gerações de
cavalos na tribo – desde o avô do potrinho que acabou de nascer no pasto.
Em noites frias, ou de tempestade, os cavalos preferidos da família de Alli-
ta são recolhidos para o interior da ‘ger’25 para se abrigarem com a família.
Lá, a parentada conta histórias que envolvem todos os presentes – cavalos
e cavaleiros. Quando a família come, o cavalo predileto também come. O
pai de Allita, um chefe huno que ‘ama mais o seu cavalo do que a própria
mulher’ (como se diz dos povos das estepes), enquanto come, dá ao seu
cavalo de guerra uma parte da sua comida. A infância e a adolescência de
Allita são enriquecidas com jogos equestres que imitam as aventuras do
pai, dos tios e dos irmãos mais velhos. Nestes jogos, sempre a cavalo, Alli-
ta, seus irmãos, irmãs e o seu cavalo aprendem a compartilhar o prazer da
25
Ger: uma casa redonda desmontável construída com varas intrelaçadas e coberta por feltro,
típico das sociedades pastoris da Mongólia e Ásia Central.

136
Parte I Catalisador da História

brincadeira e a aventura de galopar pelas estepes.


Um dia, na passagem da puberdade para a idade adulta, Allita é
convidado para participar do seu primeiro raide contra uma aldeia de
gente assentada – isto é, de agricultores que vivem da terra. É um con-
vite honroso que demonstra que os guerreiros mais velhos já notaram a
sua destreza na equitação, e o seu orgulho não têm limites. A estratégia
do raide é discutida em reuniões noturnas. Para participar do evento
memorável, Allita escolhe o cavalo com quem já se exercitou em mui-
tas caçadas e brincadeiras de guerra. A empatia, que está na base do
seu relacionamento com o cavalo, já é um fato estabelecido. Os dois –
o menino e o cavalo – se gostam muito. Na noite do raide, é grande
a agitação entre cavalos e cavaleiros. Estão todos impacientes para dar
início à aventura. Allita está agitado e ele, como sempre, passa os seus
sentimentos para o cavalo, que já está dando pulos de impaciência para
partir. O ataque à manada de cavalos do inimigo ocorre como planejado
e os guerreiros, com velocidade e habilidade, conseguem reunir os ani-
mais na planície e afastar-se em grande velocidade. Na disparada, alguns
cavalos se desgarram do bando e Allita gira instantaneamente, retorna a
galope, passa à frente dos animais em fuga e, numa rápida manobra, faz
com que quebrem a carreira e voltem em direção ao bando principal. A
maneabilidade do conjunto é tão perfeita que parece que é o cavalo de
Alitta que comanda a ação. Mas sentinelas inimigas avistam Allita e se
lançam em perseguição. Com a rápida aproximação dos cavaleiros, Alli-
ta se inclina por cima do pescoço do seu cavalo e pede mais velocidade
– os comandos relampejam de cérebro a cérebro e o medo de Allita in-
vade o sistema sensitivo-motor do seu cavalo que, com uma forte reação
do medo, alonga o seu galope, como se ele estivesse sendo perseguido
pelo demônio. Com a sintonia fina das suas emoções, o conjunto cavalo-
-cavaleiro afasta-se em disparada e o ruído do tropel dos perseguidores
começa a desaparecer na noite. Na volta triunfal dos guerreiros ao acam-
pamento está consolidada a forte ligação entre Alitta e seu cavalo. Agora,
o novo guerreiro da tribo deve a vida ao seu cavalo.
Este raide será apenas a primeira de uma série de façanhas equestres
que marcará a vida de Allita que, depois de se tornar chefe militar como o
pai, formará uma união vitalícia com os seus cavalos de guerra. Quando,
um dia, Deus chamar Allita para galopar nas estepes além da vida, o seu
cavalo de guerra, numa elaborada cerimônia religiosa, será sacrificado e
enterrado junto com ele. Na estepe, a união Homem-cavalo, além de per-

137
Bjarke Rink

feita, é eterna.
A grande intimidade entre cavalo e cavaleiro era a base da perfeita
equitação dos nômades das estepes. Do seu profundo conhecimento de
cavalos em geral, e da intimidade com o seu cavalo em particular, surgia
a fusão fácil entre as emoções e ações dos parceiros. O processo da união
homem-cavalo começava com a difícil seleção de um animal que tivesse
características de índole e temperamento em sintonia com as do cavalei-
ro. O animal que apresentasse alguma incompatibilidade de gênio não
seria escolhido para a sua montaria. Seria muito arriscado um guerreiro
confiar a sua vida a um cavalo do qual não gostasse. A falta de empatia
impossibilitaria a fusão dos seus sentidos e sistemas nervosos. O con-
junto cavalo-cavaleiro era consolidado depois de algum tempo de ob-
servação e de trabalho mútuo. Entre as tribos nômades, havia também
um processo de seleção eficiente de cavalos, que garantia a sobrevivência
dos melhores: o cavalo de má-índole, aquele que não gostasse de gente,
de temperamento linfático, ou que não gostasse de trabalhar – aquele
cavalo que não servisse para sela, seria aproveitado na panela. Outro
dado importante da cultura nômade: a criação de cavalos em campo
aberto exige uma convivência de harmonia entre o homem e o cavalo.
Sem cercas, piquetes e baias, o relacionamento tem de ser pacífico e de
confiança mútua. O homem e o cavalo permanecem juntos porque am-
bos encontram vantagens no relacionamento. É um perfeito exemplo de
simbiose animal. Nas estepes, a base do relacionamento homem-cavalo
era a confiança, que só a verdadeira empatia possibilita. Na guerra de
Flandres, em 1793, o general Morand, do exército francês, comentou,
surpreso, sobre o desempenho militar dos cossacos: “Estes rudes cava-
leiros mantêm seus cavalos junto às pernas. Eles partem da imobilida-
de para o galope e do galope para a imobilidade – os cavalos são tão
hábeis quanto os cavaleiros e parecem fazer parte deles; estes homens
estão sempre alertos e se movem com rapidez”. Mas para atingir este alto
nível de equitação, o treinamento do cavaleiro nômade era ainda mais
longo do que o do equitador “civilizado”. A sua excelência equestre era o
resultado de um relacionamento que começava e terminava com a vida
e era a razão da sua existência.

Se houve uma “época de ouro” na longa relação entre o homem e o cavalo


é provável que esta tenha sido vivida pelos nômades das estepes. Quando
as civilizações sedentárias adotaram o Equus caballus, houve um

138
Parte I Catalisador da História

afastamento físico e emocional entre o homem e o cavalo, que resultou


numa perda da compreensão da psicologia da equitação. O novo meio
ambiente sedentário gerou novas pressões sociais e estas modificaram,
quase totalmente, a base do relacionamento homem-cavalo. Mas, por um
breve momento, os “anos de ouro” foram ressuscitados nas planícies da
América do Norte.

139
Bjarke Rink

CAPÍTULO 27

O Último Mito

No século 19 surgiu o principal mito equestre a povoar a literatura


e o cinema do século 20. E, curiosamente, não foram os grandes mestres
da equitação acadêmica como François Baucher, James Fillis ou Federico
Caprilli que capturaram a imaginação pública. Foi uma figura muito mais
simples que participou, com o seu cavalo, na formação da nação, hoje, a
mais poderosa do mundo – o caubói norte-americano. Mal-pago, ignorante,
e encarregado da lida dos rebanhos bovinos necessários para alimentar a
população urbana do país emergente, este personagem tornou-se um mito
maior do que São Jorge, Roland, Rei Arthur, Sir Gawain, Sir Lancelot, D.
Sebastião e o próprio El Cid Campeador. Por que? Provavelmente o caubói e
o seu cavalo simbolizam a liberdade vivida pelos nossos ancestrais, os nôma-
des nas estepes – uma liberdade perdida que, de quando em quando, assola
o imaginário do homem urbano.
No século 19, os vaqueiros do oeste americano incendiaram de tal
maneira a imaginação popular que o mito do ‘faroeste’ extrapolou todas
as fronteiras nacionais para se tornar o único símbolo equestre a sobreviver
de um período em que a maioria de civis e militares dependia do cavalo
na sua vida cotidiana. Os filmes western, produzidos nos Estados Unidos,
popularizaram um figurino composto de botas, chapéus, camisas, coletes,
franjas e fivelas, que vendem milhões em todo o mundo. A idolatria da

140
Parte I Catalisador da História

imagem do vaqueiro vagando livre e solto pelas pradarias americanas é


certamente uma reação natural do homem urbano contra a Revolução
Industrial. É uma repulsa inconsciente à megalópole suja, escravizante e
artificial, que tolhe a aspiração (e a respiração) de liberdade do cidadão
inconformado. A fábrica e o escritório limitam os movimentos físicos do
homem e a urbe, congestionada, impede a sua livre circulação. No século
19, nas pradarias americanas, foi ensaiada a última luta entre nômades e
sedentários na história da humanidade. A fronteira não era, na realidade,
a que existia entre a União dos Estados Americanos e as terras ainda do-
minadas pelos indígenas, mas a disputa, desde o surgimento da equitação,
entre os povos nômades e sedentários. Provavelmente, o oeste americano
representa, para o inconsciente da humanidade, a última vez em que o
cavaleiro montado no seu cavalo sentiu-se dono de todos os horizontes
e a sua pátria era o solo ocupado por seu cavalo. É uma nostalgia antiga
que ainda sopra na alma humana, avivando imagens das longínquas este-
pes da Eurásia dominadas, há milênios, pelo extraordinário Centauro – o
catalisador da história.
Neste sentido, o oeste americano foi, de fato, a última fronteira do
cavaleiro na terra. O papel do cavalo na formação dos Estados Unidos
não é subestimado como é na Europa e no Brasil. A imagem do cava-
leiro é a própria essência do ‘American way of life’. A liberdade de ação
do vaqueiro montado no seu cavalo encontra grande ressonância entre
os americanos, cuja identidade cultural está muito ligada aos direitos de
liberdade do indivíduo. O caubói representa o domínio da imensidão da
natureza e das incertezas do destino por um cavaleiro destemido que, com
um revólver na mão e um senso de justiça na cabeça, escreve o roteiro da
sua vida como ele acha que deve ser escrito. Na lei do Oeste americano, a
união entre o homem e o cavalo era tão forte que o roubo de um cavalo era
penalizado da mesma forma que o assassinato de uma pessoa: o ladrão era
‘pendurado pelo pescoço até ser declarado morto’! A exemplo das estepes
asiáticas, o cavalo era riqueza, alegria e liberdade – era a razão da própria
vida do seu cavaleiro.
Parece incrível, mas até o Grão Duque Alexis, terceiro filho do Czar
Alexandre II da Rússia, foi “mordido” pelo mito americano, e em 1872
abalou-se das estepes russas – o berço do Centauro e da vasta e rica cultu-
ra equestre dos Cossacos – para caçar búfalos em Nebraska com o notório
Búfalo Bill Cody e o seu cavalo Brigham. Búfalo Bill, um dos ‘monstros
sagrados’ da mitologia do Oeste, teve as suas façanhas grandemente ma-

141
Bjarke Rink

quiadas, quando não puramente inventadas, por um novelista de cordel


chamado Ned Buntline, que um dia chegou ao forte Kearney em Nebraska
com a intenção de entrevistar o famoso pistoleiro Wild Bill Hickok. Wild
Bill se negou a conceder a entrevista – ele provavelmente tinha mais o que
fazer – e sugeriu ao jornalista falar com Billy Cody, um rapaz que, naque-
le exato momento, dormia a sono solto debaixo de uma carroça e que,
segundo Wild Bill, tinha alguma experiência contra os peles-vermelhas.
Sabendo que o nome dos atores não altera o resultado, Buntline, sem
piscar, trocou o sobrenome Hickok por Cody, e o resto é história. Mas,
voltemos ao safári russo-americano nas planícies de Nebraska. Acompa-
nhado por um trem de apoio completo com locomotiva, vagões-dormitó-
rios, um vagão restaurante e um vagão frigorífico estocado com codornas,
champanhe e caviar (é compreensível a revolução bolchevique), o Grão
Duque contratou como guia nada mais nada menos do que o general da
guerra civil americana, Philip Sheridan, e no seu staff incluiu o notório
General George Custer e mais uma figuração de mil índios Sioux. Não
sabiam os integrantes do nobre safári russo que aqueles mesmos peles-
-vermelhas iriam, dentro de 4 anos, trucidar e escalpelar o General Custer,
e toda a 7ª Cavalaria, na fatídica batalha de Little Big-Horn. Um combate
inócuo, onde todos levaram a pior – os soldados brancos perderam a vida
e os soldados vermelhos perderam a liberdade, e os Estados Unidos per-
deram a credibilidade dos direitos humanos. Da 7ª Cavalaria americana
só sobreviveu um cavalo chamado Comanche que mais tarde morreu de
velhice e permanece altivo e empalhado no Smithsonian Institute... Mas
acho que perdi o fio da meada.
O Oeste americano está consagrado no panteão da mitologia do oci-
dente. Daqui a mil anos, a força dos personagens equestres – caubóis e ín-
dios – e as aventuras reais e imaginárias de Búfalo Bill, Kit Carson, Whyatt
Earp, Cavalo Louco, Nuvem Vermelha e Jerônimo, terão a mesma força
das sagas de Zeus, Peleu, Aquiles e os Centauros no panteão mitológico
da Grécia. Como dizem os ‘old timers’, do estado de Montana, “enquanto
houver um pôr-do-sol, haverá um Velho Oeste”. Tomara.
O século 19, com suas guerras européias, conquistas coloniais, in-
dependência de países sul-americanos, com milhares de incidentes his-
tóricos cheios de aventuras equestres, com super-heróis da magnitude
de Wellington, Napoleão, Garibaldi, Zapata, Kitchiner, Baucher, Fillis,
D’Aure, L’Hotte, Caprilli e até Búfalo Bill, Wild Bill Hickok e George Cus-
ter, é um tempo onde o cavalo é indústria, comércio, pompa diplomática,

142
Parte I Catalisador da História

mito, música, moda, esporte, lazer e ostentação para os ricos e bem-nasci-


dos. E profissão, ganha-pão e oportunidade de aventura e enriquecimento
para os pobres mal-nascidos. É natural que, para a posteridade, o século
19 pareça ter sido o ápice da cultura equestre da humanidade. A herança
que as aventuras do século 19 nos legou é a de ter jogado uma sombra
mítica tão poderosa sobre o pobre século 20, o primeiro século não eques-
tre da história da humanidade, que passamos quase 100 anos sofrendo
com uma aguda crise de identidade equestre, que afetou profundamente
o desenvolvimento da nossa equitação. O extraordinário conceito da indi-
vidualidade do cavalo proposto por Caprilli foi esquecido, atropelado por
guerras quentes e frias, revoluções políticas e pela revolução tecnológica
da Idade Digital que rapidamente transformou o modo de vida e de pen-
sar das populações de todos os países desenvolvidos.

A lenda do ‘Velho Oeste’ foi um mito que ajudou o cavalo e a equitação


a chegarem sãos e salvos ao terceiro milênio. O caubói e seu cavalo
certamente auxiliaram a manter viva a chama equestre durante a pior
crise da história da equitação – desde que, no tempo de Homero, os citas
foram chamados de ‘Centauros’ pelos poetas gregos. Vamos, agora, às
aventuras do homem-cavalo no penúltimo século do milênio e procurar
entender porque, para nós nascidos no século 20, aqueles 100 anos
pareceram ser o momento de glória de toda a história da equitação.

143
Bjarke Rink

CAPÍTULO 28

‘Horse Power’ Supremo

O século 19 foi inaugurado ao som dos canhões de Napoleão Bonaparte


nas batalhas de Marengo e Hohenlinden. Com estas vitórias sobre a Áustria,
a França iniciou a sua supremacia continental na Europa, estendendo seu
domínio, em batalhas sucessivas, (Ulm, Austerlitz, Friedland, Eylau, Essling,
Wagram) de Nápoles a Varsóvia e de Lisboa a Viena. Nunca, na história da
Europa, o cavalo fora o pivô da conquista de tanta riqueza material e poder
político como durante as guerras napoleônicas. O cavalo, que se tornou a
mola mestra da Revolução Industrial iniciada no século 18, foi, no século 19,
o fiel da balança do seu delicado equilíbrio político. A diferença entre uma
vitória e uma derrota militar estava intimamente ligada a ‘Poder Equestre’
das nações do primeiro mundo.
Na economia urbana, o cavalo era a força motriz da distribuição de
todos os produtos agrícolas e manufaturados, fornecendo, também, tra-
ção para movimentar as barcaças da rede de canais que cortava a Europa.
Nas grandes cidades, o cavalo distribuía a cerveja, o leite e o pão nosso de
cada dia. Puxava carruagens, coches, cabriolés e tílburis, o transporte de
todos os passageiros urbanos. Em Ludgate Circus, em Londres, na primei-
ra metade do século, já começou a haver congestionamento de trânsito
equino que nada ficava a dever aos engarrafamentos de automóveis de
hoje. Para aumentar a confusão, os carros do corpo de bombeiros uti-
lizavam centenas de cavalos para combater os incêndios endêmicos nas

144
Parte I Catalisador da História

grandes cidades. O cavalo também dava uma velocidade nunca antes vista
ao sistema postal, nacional e internacional. Nos Estados Unidos, o Pony
Express cobria 375 quilômetros por dia – fazendo o trajeto de Nova York
a São Francisco em apenas dez dias! Na França, nos suntuosos circos-
-manège, espetáculos de alta escola e de cavalos amestrados estavam entre
as grandes atrações para o ‘distinto público’. No século 19, o cavalo era
transporte, esporte, trabalho, lazer e segurança nacional para os países do
primeiro mundo. (Era muita responsabilidade).
Na economia rural, o cavalo arava a terra, puxava as colhedeiras, de-
bulhava os grãos e transportava a produção para as regiões de consumo
e para os portos fluviais e oceânicos. Em 1872, um quarto da população
equina dos Estados Unidos morreu em decorrência de uma epidemia de
vírus. A vida e a indústria americana daquela década foi enormemente
prejudicada por falta de cavalos. No século 19, o ‘horse power’ fazia sozi-
nho o que a energia elétrica, o petróleo, e o biodiesel somados, fariam no
século 20.
Nas operações militares, os grandes canhões da artilharia eram puxa-
dos por dezenas de cavalos. (Daí o nome cavalo de ‘tiro’ dado aos animais
de tração pesada.) A cavalaria tinha funções estratégicas nos ataques e
táticas no apoio ao avanço da infantaria, e fazia a comunicação entre as
unidades do exército. Numa eventual derrota, a cavalaria dava cobertura
aos soldados em retirada e, em caso de vitória, fazia a ‘faxina’ final dos
últimos bolsões de resistência, além de perseguir o inimigo desbaratado.
Os oficiais da cavalaria formavam a elite da sociedade, ditavam a moda
e os maneirismos da burguesia e eram os centros das atenções nos bai-
les elegantes da alta sociedade. Os cavaleiros eram presença obrigatória
nos desfiles militares e representações diplomáticas. Os principais espor-
tes equestres também tiveram início, ou eram praticados, pelas escolas
de cavalaria daquele século – o pólo, o pig sticking, o tent pegging, o salto
clássico, o cross-coutry. As façanhas da cavalaria deixaram nomes lendá-
rios como Marechal Ney, ‘o mais bravo dos bravos’ generais de Napoleão,
Hodson, Lorde Cardigan, Murat e, naturalmente, o vencedor de Waterloo,
o Duque de Wellington.
O Império Napoleônico se desfez definitivamente no campo de
Waterloo, na Bélgica, num confronto decisivo entre Napoleão, montado
no seu cavalo Marengo, apoiado por uma tropa de 16 mil cavalarianos,
e Wellington, montado em Copenhagen, com 13 mil dragões montados.
Como todos sabem, Wellington pilotando Copenhagen, em dia de grande

145
Bjarke Rink

desempenho, atropelou Napoleão Bonaparte conduzindo Marengo, e pas-


sou na linha de chegada por um focinho de vantagem. A bolsa de apostas
de Londres delirou naquele dia 18 de junho de 1815.
O resto do século 19 foi pontilhado pelas estripulias do Império Bri-
tânico nas suas múltiplas colônias, com grandes conflagrações equestres.
Uma das mais importantes sendo a Guerra da Criméia, contra a Rússia,
culminada pela surpreendente vitória da Brigada Pesada inglesa que, su-
perada de um para cinquenta pela cavalaria do Czar, conseguiu manter a
‘frente’ de Balaclava. Minutos depois, houve a mortífera carga da Brigada
Ligeira contra uma posição de artilharia Russa. Esta foi a mais extraor-
dinária façanha de heroísmo (ou inacreditável trapalhada tática) na his-
tória da cavalaria britânica.26 A Guerra da Secessão norte-americana foi
também decidida por ‘horse power’, e os estados sulistas, essencialmente
agrários, só resistiram por cinco longos anos ao poderio da União dos
Estados do Norte, rica e industrial, por conta dos magníficos cavalos do
Kentucky. (Se isso não for uma verdade absoluta, espalhe.) Na Europa, a
ascensão da Alemanha à posição de poder continental, depois da guerra
franco-germânica, liderada pela Prússia, foi decidida inequivocamente
por sua cavalaria na batalha de Sedan, que marcou a queda de Napoleão
III e a ascendência da equitação germânica no mundo até, pelo menos, as
Olimpíadas da China.
Há também a última importante guerra colonial inglesa, a Guerra
dos Boers na África do Sul, que terminou no século 20 porque não coube
na lotada agenda militar britânica do século 19. Nesta infame guerra, a
cavalaria do, então, maior império do mundo, (depois do Romano), foi
surrada por um punhado de matutos holandeses montados num bando
de pangarés. Foi o primeiro sinal do declínio do Império Britânico. Entre-
tanto, a guerra dos Boers não tem comparação com a gloriosa derrota de
Valens pelos Godos em Adrianópolis, que em 378 d.C. precipitou a queda
do Império Romano. A Guerra dos Boers foi uma trapalhada que precisa
ser lida, porque contada ninguém acredita. Winston Churchill participou
como correspondente do jornal londrino Morning Post e narra a epopéia
em seu livro A Força de Campo de Malakand.
No final do século 19, o ocidente atingiu o auge da sua industriali-
A Carga da Brigada ligeira foi um dos atos de heroísmo mais inacreditáveis da história. Um
26

batalhão de 673 cavaleiros ingleses atacou de frente uma bateria de canhões russos. Eles en-
frentaram fogo cerrado por mais de 2 quilômetros, capturaram os canhões, mas perderam dois
terços de seus homens e cavalos. Os oficiais enfrentaram uma corte militar que acabou em
pizza.

146
Parte II Em Busca do Centauro

zação e o século 20 foi saudado como uma versão ainda mais gloriosa e
bem-sucedida do que o século que havia passado. (Mas, espere só para ver
a caca que o ‘macaco pelado’ conseguiu fazer daquele século.)

Para nós, o século 19 pareceu o momento de glória suprema dos 60 séculos


de parceria do Homo sapiens com o Equus caballus. Foi também o palco
de algumas das maiores aventuras equestres do Ocidente. As suas guerras
e revoluções geraram histórias, heróis e mitos de tal magnitude que a pobre
equitação clássica do século 20 levou muitos anos sofrendo com um agudo
complexo de inferioridade. Uma crise de identidade que só começou a se
dissipar na última década do século. Mas, com a ajuda da ciência e da
informática, o melhor da equitação virá agora.

147
Bjarke Rink

II. Em Busca do Centauro

Quando a ciência moderna


Se encontrou com a sabedoria Antiga
O cavalo e a equitação,
A maior herança cultural da humanidade,
Foram para sempre resgatadas

148
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 29

Uma Largada Auspiciosa

“O cavalo é definitivo, mas o automóvel é somente uma coqueluche


– uma mania passageira”, previu o presidente do Michigan Savings Bank
para Horace Backam, seu cliente de investimentos que estava pretendendo
comprar ações da Ford Motor Company, uma sociedade anônima formada
para fabricar ‘carruagens sem cavalos’. Horace Backam não acreditou na
história, investiu na Ford e ganhou uma fortuna. Este diálogo otimista foi
travado quando o século 20 estava nos seu terceiro ano e o velho mundo do
cavalo parecia sólido como o banco de Londres.
No raiar do século 20, os impérios equestres27 – Britânico, Germâ-
nico, Francês, Austro-Húngaro, Russo e Otomano – se julgavam sólidos
como as Pirâmides do Egito.28 Com a morte da Rainha Vitória, em 1901,
o Príncipe de Gales e futuro rei Eduardo VII, foi aclamado pelo povo de
Londres ao passar para abrir o seu primeiro Parlamento, na magnífica
carruagem real puxado por seis cavalos tordilhos. Em 1902, Eduardo foi
devidamente coroado Rei da Inglaterra em Westminster Abbey, e depois
partiu para um circuito internacional de pompa e circunstância, que in-
cluiu visitas a Lisboa, Nápoles, Roma e Paris, todas abrilhantadas com pa-

27
Estou denominando de ‘Império Equestre’ para todas as grandes organizações políticas que se
formaram com a utilização do cavalo e da equitação.
28
Dezoito anos depois, somente o Império Britânico ainda estava de pé.

149
Bjarke Rink

radas militares e supershows equestres.


No Império Austro-Húngaro, o Imperador Franz Joseph ainda pro-
movia memoráveis reprises equestres na sua centenária Escola Espanho-
la de Equitação em Viena. Na Europa, os oficiais de cavalaria dominavam
os esportes, a estratégia militar, o rito cerimonial e davam glamour à alta
sociedade. O cavalo era o motor dos transportes urbanos e, em Londres,
uma corrida de táxi motorizado era mais barata do que o mesmo trajeto
percorrido num coche puxado por cavalos.
Mas um ‘revolucionário veículo de alto desempenho acabara de ser
fabricado para o Cônsul Geral do Império austro-húngaro! “A aparência
deste magnífico carro é muito diferente do que uma carruagem”, anunciou
um repórter entusiasmado, e a maravilhosa geringonça foi batizada com
o nome da filha do cônsul, Mercedes. Um “maravilhoso” carro de alto de-
sempenho sem cavalos? Algo estranho estava ocorrendo no ‘velho mundo
do cavalo’.
Em 1901, os jornais da Europa anunciaram que o intrépido aviador
brasileiro –Santos-Dumont – caíra em Bolonha com seu dirigível, depois
de dar a volta pela Torre Eiffel e, neste mesmo ano, os primeiros bondes
elétricos foram inaugurados na cidade inglesa de Portsmouth. Mas, em
1902, carros de bombeiros ainda puxados a cavalo combateram um gran-
de incêndio na cidade de Londres. Em 1903, quando festas escandalosas
estavam na moda em Nova York, o jantar a cavalo no restaurante Sherry’s,
promovido pelo milionário C. K. G. Billings, onde os comensais come-
ram, beberam e conversaram a noite toda montados nos seus cavalos, foi
muito comentado nas folhas. Possuir um ‘motor’ – um automóvel – era
mais um sinal de extravagância do que um indício de bom gosto.
Mas em 1903, Henry Ford fundou uma montadora de automóveis
na América e, no ano seguinte, o Senhor Rolls e o Senhor Royce fizeram
uma sociedade em Londres para vender os seus carros Rolls Royce. Algo
estranho estava realmente acontecendo no ‘velho mundo do cavalo’.
“O avião é um brinquedo interessante, mas sem nenhum valor mili-
tar”, declarou o Marechal Ferdinand Foch, oficial de cavalaria e futuro co-
mandante do exército aliado na I Guerra Mundial. Em homenagem a esse
novo “brinquedo”, os oficiais da cavalaria inglesa inventaram um novo
esporte – ‘aviation push-ball’ – um jogo equestre disputado com quatro
cavaleiros em cada time, raquetes na mão, uma bola de tênis e um gol de
cada lado. Naquele início de século, a cavalaria continuava a ditar a moda
e os cavaleiros eram as locomotivas da sociedade.

150
Parte II Em Busca do Centauro

Depois da declaração da I Guerra Mundial, as nações beligerantes


convocaram os seus melhores oficiais de cavalaria para pilotar os pri-
meiros aviões militares, por estes homens serem considerados os únicos
com a coragem e a habilidade necessária para domar a perigosa máquina
voadora. O caso mais notório de um cavaleiro-piloto foi o de Manfred
Freiherr Richthoften, um oficial da cavalaria alemã convocado para co-
mandar o 11o Esquadrão de Caças, mais conhecido como ‘O Circo Voa-
dor’. Manfred, depois conhecido como o “Barão Vermelho”, foi o maior ás
da aviação de todos os tempos, com o crédito de 80 vitórias aéreas – 80
aviões aliados derrubados em combate.
Mas o futuro não se aproximava a galope, se aproximava a jato. Nos
primeiros anos do século 20, foi dada a partida para a maior corrida tec-
nológica de todos os tempos, a corrida das comunicações; um páreo em
que o Centauro largou na frente, mas que terminou com a folgada vitória
de Bill Gates, com muitos corpos de vantagem. Em 1901, Marconi já de-
monstrara a viabilidade de interligar o Globo terrestre com um aparelho
telegráfico ‘sem fios’. Estava nascendo a tecnologia que iria mexer tanto
com a vida do planeta quanto o domínio do fogo, a invenção da roda e o
desenvolvimento da equitação.
Vejamos a opinião de algumas celebridades da época sobre os inven-
tos que iriam transformar o mundo: “O rádio não tem futuro”, declarou,
em 1897, o ex-presidente da Royal Society, Lorde Kelvin. Um outro figu-
rão, Charles H. Duell, um especialista em inventos, afirmou categorica-
mente: “Tudo o que podia ser inventado já foi inventado” – Duell sabia das
coisas, pois fora comissário de patentes dos EUA até 1899. “O que poderá
esta empresa fazer com um brinquedo elétrico?”, perguntou o presidente
da Western Union, William Orton, ao rejeitar a oferta de Graham Bell
para a compra da sua deficitária companhia telefônica.
Aparentemente, ninguém acreditava no futuro. Norbert Wiener, cer-
ta vez, chegou a alertar em seu livro O Uso do Homem pelo Homem, que
‘a Revolução da Informática deveria ser acolhida como sendo ainda mais
transformadora do que foi a Revolução Industrial’. Continuou Norbert
Wiener: enquanto a Revolução Industrial mudou a sociedade, a Revolu-
ção da Informática mudará a própria natureza das mudanças. A Revo-
lução Industrial, por ter sido uma revolução mecânica, ampliou a nossa
força muscular, mas os computadores estão ampliando o poder da nossa
mente, para entender a nossa mente.
O fato é que o século 20, que seria repleto de catástrofes, crises, incer-

151
Bjarke Rink

tezas, desmoronamentos ideológicos, falecimentos econômicos, rupturas


sociais, e assassinatos em massa, começou com uma confiança inabalável
em si mesmo – e nos cavalos!
Nos países desenvovidos, ainda fundamentalmente equestres, a cor-
rida de cavalos era assunto dominante tanto para o povão, que apostava
nos animais, quanto para a elite, que os criava. Cavaleiros destemidos e
amazonas determinadas povoavam a prosa e a poesia romântica da época.
No livro Ulisses, os personagens de James Joyce discutem calorosamente o
provável vencedor da Copa Ouro de Ascot que ocorrerá na tarde do dia 16
de junho de 1904. Será vencedor o cavalo Maximum ou Zinfalder? Sceptre
ou talvez o zebra Throwaway? (Deu zebra). Flaubert, em Madame Bovary,
tem a personagem (a adúltera) Emma, sonhando em ser raptada ao galope
de quatro cavalos pelo amante (e cretino) Rodolphe Boulanger. Cavalos e
cenas equestres davam colorido aos romances de Dickens, às óperas de
Wagner e aos espetáculos circenses de Astley. Mas, em 1908, o novo au-
tomóvel Ford T foi saudado pela imprensa como ‘o carro das multidões’...
Então o cavalo começaria a ser dispensado da vida moderna!
No início daquele século, a modernidade era equestre e os cavaleiros
estavam no epicentro de tudo. Mas também havia problemas. Em Lon-
dres, um membro do parlamento britânico declarou em plenário que “se
continuar deste jeito, a cidade será brevemente enterrada debaixo de uma
montanha de estrume!”. Em Nova York, o trânsito era atravancado por
150 mil cavalos de carroça, seges, cabriolés, tílburis e outras traquitanas
que, naturalmente, provocavam enormes efeitos colaterais na 5ª Avenida e
adjacências – lama, buracos, atropelamentos e engarrafamentos infernais
eram cenas do cotidiano urbano. Em dias secos, Liverpool, Berlim, Paris,
Chicago, e em todas as grandes cidades do mundo, uma fina camada de
poeira de esterco de cavalo cobria prédios e passantes.
Em 1910, quando a Primeira Guerra Mundial já se avolumava no
horizonte, os jornais de Londres alertaram que a Grã-Bretanha poderia
sofrer uma séria falta de cavalos, caso estourasse uma guerra contra a Ale-
manha. A Associação Britânica dos Fornecedores de Cavalos foi informa-
da que 170 mil cavalos seriam necessários assim que iniciassem as hosti-
lidades, e este número deveria ser reposto de seis em seis meses. Naquela
época, criar cavalos era um bom negócio. Mas o trânsito de automóveis
estava lentamente crescendo.
Em 1913, a burrice do automóvel provocou a primeira tragédia au-
tomobilística de nota registrada na Europa. Em Paris, os filhos da famosa

152
Parte II Em Busca do Centauro

bailarina Isadora Duncan estavam sendo conduzidos para casa de carro,


depois de uma visita à casa do pai, quando o veículo enguiçou numa la-
deira. O motorista saltou, levantou o capô para ver o que havia acontecido,
e a maldita engenhoca começou a rolar ladeira abaixo de costas, e acabou
mergulhando no rio Sena. A babá e as duas crianças morreram. (Vinte
e quatro anos mais tarde, a própria Isadora teve o pescoço quebrado e
morreu em consequência de um acidente com o seu traiçoeiro Bugatti).
Naquela época, os jornalistas nem desconfiavam o quê o “macaco nu” e o
seu novo veículo automotor seriam capazes de fazer um contra o outro em
matéria de acidentes. Mas você, que nasceu no século 20, ficou sabendo.
Ainda em 1913, as mulheres inglesas estavam lutando pelos seus di-
reitos civis e a ativista Emily Davidson, num ato tresloucado, invadiu a
pista de corridas no Derby e atirou-se debaixo dos cavalos de corrida, con-
seguindo ser atropelada e morta pelo cavalo do rei George VII. Na época,
os machos alfa estavam decididos a manterem o direito do voto só para
eles, e as fêmeas alfã29 haviam decidido conquistá-lo, a qualquer custo.
Em 1916, a revolução automobilística, liderada por Henry Ford, pro-
duziu vastas mudanças sociais nos Estados Unidos, e a construção de vias
pavimentadas, garagens e bombas de gasolina fizeram quase tanto para
estimular a economia americana quanto a lucrativa guerra na Europa. Na-
quele ano, um vendedor de carros comentou com um comprador: “Um
automóvel leva vantagem sobre uma charrete – a viagem é mais rápida
e barata”. (Oitenta anos depois, os cavalos, com a sua memória infinita,
jogariam esta afirmativa na cara dos motoristas, quando o trânsito das
grandes cidades havia ficado ainda mais lento do que nos tempos das car-
ruagens).
No raiar do século 20, um grupo de afoitos cientistas americanos,
num artigo publicado em Newsweek, saudou o desenvolvimento do auto-
móvel – a carruagem sem cavalos – como uma forma “limpa e eficiente de
transporte”. Como o meu prezado leitor da geração Internet pode atestar,
a previsão do futuro nunca foi e, provavelmente, nunca será, uma ciência
exata. Atualmente, depois do crime organizado, o automóvel é o maior
problema dos grandes centros urbanos.
Mas, nos primeiros anos daquele século sombrio, pensadores, artis-
tas e cientistas já faziam incursões dentro dos novos e perturbadores ter-
ritórios da mente. Sigmund Freud trabalhava para desvendar os segredos
dos sonhos, e os fisiologistas estavam à procura da fonte da vida. Como
Os zoólogos chamam de ‘alfa’ os animais líderes de um grupo.
29

153
Bjarke Rink

isto tudo afetará o homem e o cavalo? Vamos iniciar uma viagem de aven-
turas nas ciências e tentar achar a resposta.

O século 20 foi sofrido, como foram sofridas todas as épocas de grandes


revoluções tecnológicas. Depois dos milhares de anos em que durou a Idade
Mecânica, a Era Digital causou e continua causando um grande número
de vítimas – agora em escala global. Mas a primeira vítima da corrida
tecnológica daquele século foi, sem dúvida, o cavalo e a equitação.

154
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 30

A Extinção do Centauro

Nas primeiras décadas do século 20, ficou evidente que a velha socie-
dade, a velha economia, o velho sistema político e o velho poder equestre
haviam se esgotado nos países desenvolvidos. Pela primeira vez na história,
uma superioridade em cavalos e cavalaria não tinha mais o poder de favo-
recer o destino das nações. Na economia, a energia elétrica e o petróleo subs-
tituíram a força do cavalo, e nos transportes até a ridícula bicicleta podia ser
mais veloz. Depois de participar decisivamente do desenvolvimento social,
econômico e militar da humanidade por 6 mil anos, o Centauro desocupou
rapidamente o cenário internacional e passou a habitar lugares onde a mo-
dernidade não havia chegado ou o saudosismo não havia partido.
Se examinarmos fotos das grandes capitais do mundo tiradas nas
duas primeiras décadas do século 20, veremos nas ruas alguns poucos
automóveis e bondes elétricos perdidos no meio de um mar de veículos
puxados a cavalos.
Veja o texto deste anúncio da Lincoln Motor Company, publicado em
1928: ‘Conduzir um cavalo puro-sangue ágil, dócil, senti-lo obedecer às
mais súbitas exigências sem hesitações, compreendendo instintivamente
a vontade do cavaleiro ou, ainda, lançá-lo a galope para contê-lo, repen-
tinamente, com uma leve pressão de mão ou do pé – é prazer idêntico
de quem dirige um carro Lincoln’. Evidentemente, as emoções da equi-
tação ainda eram suficientemente fortes para atrair consumidores para o

155
Bjarke Rink

automóvel. Mas, esta realidade começou a se inverter nas fotos tiradas a


partir da terceira década. Repare só: agora, em Chicago, Londres e Paris
há alguns veículos de tração animal perdidos no meio do tráfego de au-
tomóveis e ônibus elétricos, no Brasil, chamados de bondes. Até o trole
puxado por burros estava sendo substituído pelo ônibus elétrico. “Eram
caminhões, bondes, autobondes, anúncios luminosos, relógios, faróis, rá-
dios, motocicletas, telefones, gorjetas, postes, chaminés... Eram máquinas
e tudo na cidade era só máquina”, reclamou Mário de Andrade sobre São
Paulo, na década de 30.
Na primeira metade daquele século, a Grã-Bretanha, a principal po-
tência econômico-militar do mundo, a família real inglesa, assim como o
cavalo, passou a ter função meramente ornamental e protocolar na função
do governo. Durante a reorganização militar da Grã-Bretanha, acontecida
no final da década de 30, os dragões do Enniskillen foram um dos últimos
regimentos da cavalaria a serem mecanizados. Numa foto emocionante,
publicada na revista Life em 1939, vemos um jovem e engalanado oficial
de cavalaria dando um beijo de despedida no focinho do seu cavalo de
guerra. Um estilo de vida estava desaparecendo. Mas, em nenhum outro

156
Parte II Em Busca do Centauro

país, a reforma militar foi mais rápida do que nos Estados Unidos. Até o
verão de 1940, toda a cavalaria foi transformada em unidades mecaniza-
das. Até mesmo a 7ª Cavalaria do famoso general Custer, que tinha sido
recauchutada depois do incidente com Touro Sentado em Little Big-Horn,
passou pela indignidade de ser transformada numa unidade de helicóp-
teros (que atuou com helicópteros ‘Apache’ durante as guerras no Kosovo,
Afeganistão e Iraque).
A previsão de Caprilli se concretizara – a utilidade da cavalaria mi-
litar chegara aos estertores. Apesar de, em alguns momentos, a cavalaria
ter se mostrado insubstituível, a Segunda Guerra Mundial já foi uma con-
flagração essencialmente mecânica. Entretanto, em meio ao cenário de
destruição da Grande Guerra, a revista Life publicou uma foto da visão fu-
tura do destino do cavalo e da equitação: os participantes da caçada anual
de Aldeham, liderados pelo Major Sir Jocelyn Morton, vestidos de fraque
vermelho e capacete preto perseguindo – entre os escombros das casas de
uma vila bombardeada – uma raposa. Você está rindo? Então você não
conhece o ‘upper crust’ – a nata – da sociedade inglesa.30
Mas, em 1942, o exército alemão cambaleava por todos os 3 mil qui-
lômetros da frente Russa, diante dos ataques da infantaria, artilharia e ca-
valaria vermelha. Estas ofensivas seriam os últimos assaltos de cavalaria
a terem uma participação vitoriosa numa guerra moderna. Mas o fim do
cavalo de batalha não estava próximo, já havia acontecido. Conto, pois,
como foi a última cena da derrocada do Centauro e do estilo de vida que
o cavalo nos possibilitou por 60 séculos de convivência. Uma história dra-
mática que decepou, com um só golpe, o cavalo do processo civilizatório
da humanidade, deixando-nos sozinhos na fria companhia das máquinas.
Dia 16 de agosto de 1939, as tropas da Alemanha invadiram as cer-
canias da cidade de Kutno, na Polônia. O oficial polonês de plantão orde-
nou imediatamente uma carga de cavalaria contra os “Hunos” do Tercei-
ro Reich. Os galantes oficiais poloneses e seus nobres cavalos de guerra
lançaram-se de peito aberto, crinas ao vento e espadas em riste, contra
as forças inimigas – como sempre o fizeram por toda a sua história. De
repente, acima do tropel ensurdecedor dos cavalos, ouve-se o que parece
ser uma longa e intensa trovoada de verão. O fogo mortal dos ‘panzers’
germânicos abateu, de uma só vez, todo o esquadrão de cavalaria polonês.
O partido trabalhista inglês procura, desde 1999, aprovar uma lei que proíbe a caça à raposa na
30

Inglaterra. Esta foi a última vingança política do partido dos trabalhistas do século 20 contra o
‘mundo do cavalo’. Os camponeses que hoje estão em todos os níveis do governo trabalhista não
vêem com bons olhos o cavalo e a equitação considerados, equivocadamente, de ‘elite’.

157
Bjarke Rink

Mortos estavam cavalos e cavaleiros – no chão, o centauro esquartejado.


Terminada estava a era de supremacia militar do Homo-caballus.

A Revolução Industrial criou bens materiais de todo o tipo. Promoveu


o camponês do século 17 a burguês do século 18, o cidadão do século
19 a consumidor no século 20. Novas tecnologias e novas idéias foram
rapidamente transformadas em produtos de consumo que davam o
máximo de conforto ao camponês, aliás, burguês, aliás, cidadão, aliás,
consumidor. A ‘quebra da barreira do tempo’, que possibilitou ao homem
diminuir o tempo e as distâncias, atingiu uma tal velocidade que o
Centauro, seu iniciador, acabou descartado do processo civilizatório como
o estágio queimado de um foguete interplanetário. O que será que o futuro
reserva ao cavalo e à equitação?

158
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 31

Um Mundo Sem Cavalos?

O século 20 foi o primeiro século não equestre na história da humani-


dade. E, apesar de que ele começou cheio de cavalos e espetáculos equestres,
a equitação minguou rapidamente a partir da terceira década. Podemos di-
vidir os ciclos equestres daquele século em quatro fases: 1900/1924, cheia;
1925/1939, minguante; 1940/1969, eclipse; 1970/1999 – crescente. A pró-
xima cheia está prevista para começar na primeira década do século 21,
quando uma nova percepção do cavalo e a compreensão da fisiologia da
equitação trarão a rápida transformação tecnológica na equitação e no ma-
nejo do cavalo.
“O cavalo desapareceu da vida moderna porque se tornou desne-
cessário, e o seu futuro vai depender de quanto o homem continuará a
desejar o desnecessário para viver. Este livro é, na verdade, um livro de
memórias”. Com estas dramáticas palavras, Harald Lange e Kurt Jeschko
terminam o livro The Horse Today & Tomorrow? – O Cavalo Hoje & Ama-
nhã? – editado em 1972. O tom pessimista dessas palavras traduz com
realismo a crise de identidade que assolou o cavalo e a equitação na maior
parte do século 20. Para quê serve um cavalo para uma sociedade que
possui múltiplas opções de transporte?
O general Decarpentry, que foi juiz de Adestramento de 1933 a 1947
pela Federação Equestre Internacional e escreveu o livro Équitation Aca-

159
Bjarke Rink

démique publicado em 1949, considerado uma das poucas obras clássicas


da literatura equestre daquele século, também se preocupava com o futuro
da equitação acadêmica. Escreveu E. Schmidt-Jensen, no prefácio do li-
vro: “O eclipse de interesse na equitação como arte, outrora tão auspiciosa
e ilustre na França, e refletida com uma literatura rica e importante, era
uma fonte de grande preocupação, para não dizer desgosto, para Decar-
pentry”. O próprio Decarpentry escreveu: “o livro Equitação Acadêmica é
uma tentativa de remediar e reviver a literatura equestre para a comuni-
dade moderna”. Decarpentry, um discípulo dos métodos de François Bau-
cher e L’Hotte, e membro do Cadre Noir de Saumur, era considerado um
dos últimos grandes mestres equitadores de França. O Português Nuno de
Oliveira, discípulo de um discípulo de Baucher, foi outro mestre equitador
que tem sido qualificado como um dos ‘últimos grandes mestres’ da equi-
tação internacional – categoria esportiva de repente considerada por mui-
tos como uma espécie condenada à extinção, como o mico-leão-dourado,
o tamanduá Bandeira e a baleia Azul. E, até Alois Podhajsky, saudado por
muitos como o maior equitador da modalidade Adestramento do século
passado, foi também visto como o último grande homem do cavalo da
Europa. Sem dúvida, a equitação do século 20 foi julgada e praticada com
os olhos no retrovisor.
O fato é que, até a II Guerra Mundial, o cavalo e a equitação perde-
ram lentamente espaço para os novos inventos, principalmente na área
dos transportes. Depois da Guerra, e da perda da importância militar do
cavalo, os cavaleiros sobreviventes tentaram reconstruir o ‘mundo do ca-
valo’ como ele era antes. Ou seja, o século 20 foi parcialmente perdido na
tentativa de se reconstruir um modelo equestre que não cabia mais no
figurino de uma sociedade moderna. Durante mais de 50 anos, tentou-
-se abrir uma porta eletrônica com uma chave medieval! Por esta razão,
frequentemente, o cavalo ainda carrega o ônus da imagem do seu papel
antigo – o transporte universal, a poderosa arma de guerra, o pedestal da
nobreza e, sobretudo, o animal mitológico que mais inspirou a imagina-
ção humana. Então, se estabelece o paradoxo: todo o mundo sabe que o
transporte moderno é feito por veículos bem mais eficientes; para a guer-
ra, existem armas muito mais destrutivas; com o advento das repúblicas,
a nobreza também anda democraticamente de automóvel e, nos dias que
correm, lugar de mito é em seriado de televisão e videogames.
Se a pergunta a fazer naquele final do século 20 era a dos pessimistas
Harald Lange e Kurt Jeschko: “Será que o homem vai continuar a desejar

160
Parte II Em Busca do Centauro

o desnecessário para viver?”, podemos respondê-la com outras perguntas:


o que é ‘necessário’ e ‘desnecessário’ no mundo da informática, telecomu-
nicações e robótica? Obras de arte são necessárias? Um bom livro é des-
necessário? Um carro do ano é necessário? Um iate é desnecessário? Uma
viagem à Paris é necessária? E, sobretudo, praticar esportes é necessário?
Mas vamos ao ponto que interessa: “o jogo, no sentido esportivo, é
um fato mais antigo do que a própria cultura. O esporte tem aumentado
a sua influência, em escala nacional e internacional. O estado de paz exis-
tente entre as grandes potências faz dos esportes a grande oportunidade
de impor a soberania nacional, e do cidadão se orgulhar do próprio país.
No jogo, existe alguma coisa em ‘jogo’ que transcende as necessidades
imediatas da vida e confere um sentido à ação. Sociologicamente, é no
esporte, e pelo esporte, que uma civilização surge e se desenvolve”.31 O
jogo se constitui numa preparação do jovem para as tarefas sérias que
mais tarde a vida lhe exigirá. É um exercício de autocontrole e controle
de grupo indispensável ao indivíduo. O princípio do esporte satisfaz um
impulso inato para descobrir e exercer importantes faculdades fisiológicas
e satisfazer o desejo de dominar ou de competir. O jogo tem uma finali-
dade biológica – testa os limites físicos e psicológicos do indivíduo e tem
um caráter profundamente estético. Por isso, o esporte gera paixão e a
sua capacidade de estimular, fascinar e excitar está na base da sua prática
universal. Nada substitui a tensão, a alegria e o divertimento do esporte.
O esporte começou antes da civilização, e se esta se extinguir, ainda nos
restará o esporte. E os esportes mais extraordinários já inventados pelo
homem são os esportes equestres, onde o atleta humano atua com veloci-
dades e forças além da sua programação biológica.

O cavalo não pertence mais ao mundo da indústria, do comércio e da


glória militar. O cavalo pertence ao mundo dos sonhos, da fantasia e das
vitórias esportivas. Este é um mundo que não se acaba, é um império
onde o sol nunca se põe. O cavalo encerrou definitivamente o seu ciclo
militar e iniciou, decididamente, o seu ciclo esportivo. E você, cavaleiro
da atualidade, não é o último representante de uma espécie em extinção –
mas sim um dos pioneiros do bravo mundo novo da equitação moderna. O
melhor virá agora.

Do livro Homo Ludens por Johann Huizinga.


31

161
Bjarke Rink

CAPÍTULO 32

O Espírito do Centauro Vive!

“A televisão não tem condições de preservar qualquer mercado consu-


midor por mais de seis meses. As pessoas vão enjoar de ficar olhando para
uma caixa de madeira todas as noites”, previu em 1946 Darryl F. Zanuck,
chefe da 20th Century Fox. “Os computadores do futuro vão pesar, talvez...
somente uma tonelada e meia”, vaticinou a revista Popular Mechanics em
1949. “Para a maioria das pessoas, o uso de tabaco tem um efeito benéfi-
co”, declarou Dr. Ian G. Macdonald, cirurgião de Los Angeles, nos anos 50
(tomara que tenha contraído enfisema). “O homem nunca chegará na Lua,
independentemente de todos os avanços científicos no futuro”, afirmou Lee
Deforest, inventor do tubo de vácuo, em 1957. Quando o século 20 já esta-
va meio caminho andado, ninguém tinha a menor noção dos rumos que o
mundo iria tomar, depois da derrocada do cavalo.
No princípio dos anos 50, começaram os primeiros tímidos sinais do
ressurgimento da equitação no mundo desenvolvido. Das cinzas da Gran-
de Guerra, e em plena reconstrução européia, percebemos a discreta volta
dos cavalos para o esporte e o lazer. Na América do Norte e na América
do Sul foram formadas as principais associações de registro das raças de
cavalos. Na Inglaterra, nos anos 60, o crescimento dos esportes equestres
foi tão grande que o governo se viu obrigado a providenciar técnicos em

162
Parte II Em Busca do Centauro

ferrageamento para visitarem os condados32 e ensinarem às pessoas a fer-


ragear os seus cavalos – pois a profissão de ferrador havia desaparecido na
hecatombe da guerra.
Na década de 70, a humanidade urbanizada já estava consolidada no
padrão que hoje a conhecemos. Em todo prédio havia elevador, em todo
‘apê’, televisor, e em todo rádio, um transistor. Sedentário por opção, o
homem urbano estava estratificado como um robô engravatado de com-
portamento pasteurizado. Para a juventude urbana, vencer na vida signi-
ficava se tornar teleator, e o indivíduo fracassado era condenado a virar
telespectador. O mundo mecânico estava se tornando eletrônico, e na rua,
em vez da barulheira ensurdecedora dos veículos puxados a cavalos e a
gritaria infernal dos cocheiros malcriados, ouvia-se a cacofonia das buzi-
nas e aceleradas de motoristas neurotizados, num trânsito que... também
não andava. A ‘poeira de estrume’ em dias secos virou ‘nuvem de poluição’
o dia todo. Da transição tecnológica do tráfego de cavalos para o trânsito
de automóveis só restou a etimologia triste da palavra ‘atropelar’ – passar
por cima da vítima a tropel de cavalo – agora com números muito mais
impressionantes. A cidade grande, que não convivia bem com o cavalo,
provou ser incompatível também com o automóvel.
Mas, nos países desenvolvidos, ainda nos anos 70, o automóvel come-
çou a perder o seu status absoluto de sucesso social. Afinal, a última gran-
de novidade saída de Detroit fora a transmissão automática nos anos 40.
De lá para cá, os fabricantes repetem a mesma receita de bolo, mudando
somente o glacê: cor, forma e pequenos detalhes funcionais e ornamentais
são anunciados com grande pompa e estardalhaço publicitário. Mas o au-
tomóvel, que fora inventado para substituir o cavalo, acabou sendo o prin-
cipal instrumento da sua ressurreição. Como o cavalo provou ser insubsti-
tuível, os dois fizeram as pazes e acabaram tornando-se complementares.
Entre os moradores da ‘selva de pedra’ vivia dispersa uma tribo dis-
tinta. No peito de muitos homens, mulheres e crianças de Paris, Londres,
Nova York e Rio de Janeiro batia um coração com um ritmo diferente – a
cadência do conjunto equestre. Nas profundezas do inconsciente humano,
o Centauro vivia e começava a dar sinais de vida. Bebês nasciam e, antes
de aprender a falar, já apontavam para um cavalo ou foto com grande agi-
tação. Pequenas experiências de uma criança com um cavalo na infância
viravam memórias deliciosas do adulto. Muitas pessoas tinham fascínio
por lojas de equipamento equestre. Conversava-se sobre cavalos em avi-
O condado inglês é uma unidade política semelhante ao município português.
32

163
Bjarke Rink

ões, convenções, reuniões, saunas, quadras de tênis, coquetéis e hotéis.


Algumas pessoas agiam cedo sobre este sentimento, mas outras, com me-
nos oportunidade, tinham de esperar mais tempo para libertar a emoção
equestre. O Centauro viajava na mente diurna e povoava os sonhos notur-
nos do equitador sem cavalo. E aí, aconteceu o inesperado.
No rastro da invenção do automóvel, assim como aconteceu depois
da invenção do coche, a malha viária dos países adiantados começou a se
estender. Nos anos 80, freeways, viadutos, túneis, pontes e trevos aumen-
tavam a velocidade média do automóvel para 100 quilômetros horários
(150 na Europa e nos Estados Unidos). Isto permitiu que as populações
urbanas povoassem, nos finais de semana, casas de campo, sítios e fazen-
das num raio de até 400 quilômetros – a autonomia de combustível de um
carro moderno – e a distância tolerável para se viajar no fim de semana.
Em municípios distantes, a sociedade se reorganizava com critérios ba-
seados nos gostos de cada um quanto ao esporte e ao lazer. E o conceito
de cavalo de esporte e lazer se tornou universal. A sociedade urbana, que
nos anos 70 redescobriu as suas pernas e começou a correr, nos anos 80
redescobriu o cavalo e começou a equitar. A ontogênese repete a filogêne-
se e, como no passado, o novo Homem-cavalo se organizou em tribos e
começou novamente a impactuar o mundo civilizado.

No século 20, a ciência mecânica possibilitou inventos que nem Julio Verne
teve a capacidade de imaginar. Com a fabricação de automóveis, aviões e
espaçonaves, mais uma vez o “macaco pelado” conseguiu se superar. Mas,
naquele tumultuado século, vários setores da ciência conspiraram, sem o
saber, pela volta da equitação em grande estilo. Vamos abrir os olhos para
o futuro porque um novo cavaleiro ocidental está prestes surgir das brumas
da Idade das Trevas.

164
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 33

Sobre Carros e Cavalos

Depois de ter inventado uma grande quantidade de carros – bigas, co-


ches, charretes, carruagens e dezenas de outras traquitanas puxadas à tra-
ção animal – há mais ou menos 100 anos o Homo faber, urbano, e sedentá-
rio, finalmente conseguiu construir o veículo dos seus sonhos – uma viatura
capaz de funcionar sem tração animal. O advento do automóvel foi recebido
como sendo uma extraordinária contribuição ao progresso da humanidade
e o cavalo declarado irrevogavelmente obsoleto. Mas o cavalo e a equitação
sobreviveram e novas gerações de cavaleiros estão em formação em todos os
países desenvolvidos. Por que? A neurociência já pode explicar o fenômeno.
Quanto mais veloz um veículo, mais o homem tem de ser protegido
em caso de um acidente, e quanto mais ele é protegido, menos os seus
neurônios receberão as informações necessárias para processar e com-
preender os fatores ambientais da velocidade do veículo. Acima de 60
quilômetros por hora, o cérebro humano estará trafegando além da sua
programação biológica e perde a sua capacidade de lidar com o fator tem-
po-espaço. Mas o cavaleiro experiente pode viajar numa velocidade acima
da humana e o seu cérebro continua sendo capaz de lidar com o desafio.
A grande diferença entre carros e cavalos é a maneira como os neu-
rônios humanos interagem com eles. O automóvel é concebido para trazer
o máximo de conforto para o seu motorista. A chuva não molha, o vento

165
Bjarke Rink

não incomoda e o sol não torra. Com o toque de um botão, as portas e


as janelas se abrem e um computador controla o sistema elétrico, o ní-
vel da gasolina e faz uma série de outras operações de segurança, antes e
durante a corrida. Dentro do carro, o motorista está protegido por uma
cabine acolchoada e climatizada, equipada com telefone e, em breve, o
ambiente será enriquecido com outros dispositivos multimídia que estão,
neste instante, na prancheta computadorizada dos designers das monta-
doras. Tudo foi projetado para dar ao motorista uma agradável sensação
de despreocupação e bem-estar, como se estivesse em sua própria casa.
Para o rechonchudo automobilista, a paisagem lá fora, emoldurada pelo
pára-brisa, passa de maneira distante e irreal, como se fosse a imagem da
um programa de televisão. Quando o CD toca uma das suas músicas pre-
feridas, o motorista tem, na estrada em alta velocidade, a mesma sensação
de ‘bem-estar’ que sente em casa diante da televisão. E qual é a leitura que
os neurônios do motorista fazem desta situação?

TUDO CALMO, SEM PERIGO à VISTA

– e o seu sistema bioquímico fabrica, calmamente, serotonina, e ou-


tras substâncias que produzem a sensação de bem-estar. Se, eventualmen-
te, por descuido ou azar a tragédia explodir no seu pára-brisa, será para
ele como se, de repente, a sua televisão explodisse na sala de estar! O sis-
tema nervoso do motorista é pego completamente desprevenido. Carro
não é cavalo, e a grande diferença entre os dois está na maneira em que os
neurônios humanos interagem com os carros e com os cavalos.
O grande problema da direção automobilística é que o cérebro hu-
mano não pode ser conectado para lidar com velocidades muito acima da
velocidade humana, portanto, esta atividade contribui muito pouco para
o desenvolvimento mental do motorista (e nem para ele assumir uma li-
derança). Muito pelo contrário, o automóvel só contribui para o desen-
volvimento cerebral dos engenheiros que projetam os modelos de carros,
dos marqueteiros responsáveis pela estratégia de vendas e dos vendedores
que terão de convencer o consumidor a comprar a sua marca de veículo. O
cérebro do motorista fica de fora de todo o processo criativo – e pior – os
automóveis são construídos especificamente para não desafiarem o corpo
e a mente do motorista. E, com carros de corrida, o problema é ainda pior.
Vamos ver como a mente humana funciona numa pista de corridas.
O piloto, a ‘estrela’ da pista de corrida, é afivelado firmemente no

166
Parte II Em Busca do Centauro

‘cock-pit’, vestindo o seu capacete pintado sob encomenda, com lindos


desenhos gráficos, o seu uniforme de náilon cheio de logotipos dos patro-
cinadores, os bolsos fechados com zíperes, a frente fechada com velcro, os
punhos ajustados e as mãos vestindo luvas, tudo para garantir a ‘proteção’
do seu corpo do calor, do frio e qualquer eventual abrasão. O pára-brisa
assegura que os seus sentidos serão isolados da sensação da própria velo-
cidade. Os seus olhos, que poderiam ajudar a compensar a falta do senti-
do táctil, também estão prejudicados pelo capacete e pela má visibilidade
causada pela lataria do carro. De fato, o piloto só tem boa visibilidade a
sua frente.
Depois da largada, o truque na pista de corrida é manter a velocidade
da ‘matilha’, os outros carros, e tentar dar um ‘pulo de rã’ para ultrapassar
o veículo da frente, quando pintar uma chance. As corridas são bastante
monótonas e o único trabalho mental do piloto é tentar posicionar o seu
carro para não ser ultrapassado pelo carro de trás, enquanto ele pisa no
acelerador, desesperadamente, para se manter ‘colado’ ao carro da frente,
enquanto as suas mãos se agarram ao volante com muita força. Nas cur-
vas, a tensão cresce, mas até mesmo a sua tentativa de aumentar a ‘mordi-
da’ dos pneus de trás ao sair delas é trabalho vagaroso que leva vários se-
gundos. O piloto não consegue ‘entender’ a velocidade de 300 quilômetros
por hora, portanto, ele manobra o carro como um garoto manobrando um
‘joystick’ – através de um programa-motor cerebral bastante simplificado.
A única estratégia possível para vencer a corrida é tentar passar ‘por baixo’
do carro da frente, se a oportunidade aparecer. Durante a corrida, muitos
segundos se passam sem nada acontecer. Mas, enquanto a tensão do pilo-
to em vigiar o ‘seu rabo’ e cuidar da sua frente é indubitavelmente real, a
situação não é favorável para o raciocínio estratégico e o desenvolvimento
cerebral – porque o ás do volante não está sendo alimentado por seus
sentidos com as informações ambientais que deflagram ações e raciocínio
rápidos,33 e por isso o estresse físico e mental é muito alto entre os pilotos
de corrida. (O vencedor de esportes físicos ficará exultante com as suas
vitórias, mas o piloto de corrida fica completamente estressado pelo meio
ambiente artificial.)
A verdadeira ação dinâmica nas corridas de automóveis vem dos lo-
cutores de rádio e televisão que, com muita imaginação, narram o “fan-
tástico desempenho dos pneus, da suspensão, da máquina de muitos ci-

Na fisiologia do exercício, as ações rápidas são aquelas executadas automaticamente em centé-


33

simos e décimos de segundos.

167
Bjarke Rink

lindros, e as dramáticas batalhas dos ‘heróis do volante’ combatendo as


estratégias uns dos outros!” Do ponto de vista da fisiologia do exercício,
as corridas de automóveis não podem ser consideradas como esportes,
e o piloto não é um esportista; trata-se, apenas, de um evento de mídia
fabricado exclusivamente para consumo público.
Vamos examinar alguns detalhes deste processo neurofisiológico
e entender porque a direção automobilística pouco beneficia o corpo e
amente humana.
O cérebro do Homo sapiens funciona exatamente como o seu corpo
– ele precisa ser ‘alimentado’ com um certo número de experiências para
se manter em forma. Com a falta de uso, o cérebro reage à semelhança
dos músculos do seu corpo – se atrofia. As conexões cerebrais do cérebro
humano que não forem exercitadas regularmente são, com o tempo, des-
conectadas. O cérebro, para se manter vigoroso e ágil como o próprio cor-
po, precisa de uma ‘dieta’ de experiências variadas. Quanto mais áreas do
cérebro forem interligadas, mais respostas mentais ‘inteligentes’ o corpo
e a mente serão capazes de realizar. Por exemplo: para o cérebro humano,
uma ‘dieta’ exclusiva de computação, que exercita, sobretudo, o sistema
viso-motor – a coordenação entre os olhos e mãos – seria como o sistema
digestivo receber apenas enormes quantidades de macarrão. O cérebro,
como o corpo, necessita de variedade e não de quantidade. Quanto mais
áreas do cérebro são interligadas para lidar com os desafios esportivos,
mais respostas inteligentes o corpo e a mente serão capazes de dar. Quanto
mais ‘saudável’ o esporte, melhor ele desafiará a visão, o tato, a audição, o
equilíbrio, a propriocepção e a flexibilidade do corpo e seus movimentos.
O piloto de veículo automotor correrá sem desafiar a maioria dos seus
neurônios e, com o tempo, milhões serão desconectados; isto é, se ele não
praticar um esporte de verdade.
Por isso, o piloto de corrida não é um esportista no sentido da fisio-
logia do exercício, mas somente um homem cumprindo uma tarefa peri-
gosa, porém bastante monótona, como meio de ganhar a vida. E, mesmo
que os automóveis também possam ser o caminho para a fama e a fortuna,
eles são fracos na estimulação dos neurônios humanos e os motoristas não
devem esperar se transformar em catalisadores da história como foram os
cavaleiros no passado. Programar a mente de um piloto de corrida é quase
tão simples como interligar o cérebro de um menino para jogar um ‘vide-
ogame’. É preciso apenas treinar a interação viso-motora – a relação entre
os olhos e as mãos – como um empacotador de supermercado. No auto-

168
Parte II Em Busca do Centauro

mobilismo, a grande diferença é o elemento perigo – circunstância que


cria um sentimento de impotência, profundamente estressante. A única
solução do piloto é rezar – que faz bem à mente, mas é inútil para o corpo.
A humanidade, há milhares de anos, sabe intuitivamente que o cava-
lo e a equitação estão ligados à liderança, não apenas como símbolos, mas
contribuem com a própria capacidade de liderar. Os esportes equestres
provocam a plena atividade do cérebro humano. A mente torna-se vivaz
e o corpo flexível. Sendo o cérebro o órgão responsável pela posição do
indivíduo na hierarquia do gênero Homo, a equitação, por causa da sua
capacidade única de mobilizar a totalidade da fisiologia humana, pode se
tornar o próprio agente catalisador da liderança. Carro não é cavalo, em
nenhuma circunstância.
E somente a neurociência contemporânea será capaz de comprovar e
medir a estimulação cerebral provocada em cavaleiros e motoristas. Isto é,
se os cientistas se interessarem pelo assunto. Li recentemente que os estu-
diosos estão trabalhando intensamente num projeto para criar a pílula do
exercício – uma droga que fará o cidadão sedentário queimar calorias sem
fazer força. O que irá acontecer com o cérebro e os músculos do cidadão
o artigo não revelou.

Em todas as sociedades avançadas, marcadas pela rapidez das mudanças


tecnológicas e sociais, os esportes equestres estão sendo reconhecidos
como altamente eficientes para exercitar o poder psicofísico de homens e
mulheres supereficientes. Mas, para que as novas gerações de cavaleiros
possam aprender uma equitação mais natural e eficiente, a fisiologia
da equitação precisa ser cientificamente compreendida para ser
cientificamente ensinada. Por isso, a partir do próximo capítulo, vamos
pegar a trilha para desvendar o enigma do Centauro: o que é a equitação à
luz da ciência contemporânea?

169
Bjarke Rink

CAPÍTULO 34

A Equitação Científica
do Século 20

Os nômades da Ásia Central, desprovidos de ciência, foram os melhores


cavaleiros do mundo. No Ocidente, Federico Caprilli, foi contemporâneo de
Ivan Pavlov, Charles Sherrington e Sigmund Freud, que começavam a des-
vendar o mundo da fisiologia, da bioquímica e da psicologia. Caprilli elevou
o cavalo de objeto a indivíduo – o que estava em perfeita sintonia com o
avanço da ciência do seu tempo, e também com a equitação dos cavaleiros
nômades! Mas, qual foi realmente o avanço da equitação científica no século
20?
A ciência é um conjunto de conhecimentos obtidos mediante a ob-
servação e a experimentação dos fatos. Entretanto, os cientistas ocidentais,
urbanos e sedentários, sempre tiveram grande dificuldade em entender o
conjunto de conhecimentos que os povos ditos “primitivos” obtêm, não
por meio das pesquisas, mas simplesmente por serem uma ‘parte natural’
do sistema ecológico. “Como o mundo é governado das cidades, onde os
homens se acham desligados de qualquer forma de vida que não a huma-
na, o sentimento de pertencer a um ecossistema não é revivido”, escreveu
Berthrand de Juvenel. Outra dificuldade que tem atravancado o pensa-

170
Parte II Em Busca do Centauro

mento ocidental acerca dos conhecimentos das sociedades primitivas é


que, sendo a ciência tratada como uma ‘ideologia secular de progresso’,
uma tribo de indígenas vivendo na Idade Neolítica, aos olhos do homem
moderno, simplesmente não poderia saber mais do que um cientista,
acerca de qualquer coisa. Puro e ledo engano.
No Brasil, aprendemos com Darcy Ribeiro que um índio Kaiapó, por
exemplo, tem uma sofisticada classificação do seu meio ambiente que lhe
permite viver com fartura onde o etnólogo Claude Levi-Strauss, com toda
a sua bagagem científica, morreria de fome. O nômade das estepes da Ásia
Central e o seu cavalo formavam um ‘sistema fisiológico integrado’ – sin-
tonizados à perfeição por muitos séculos de aprendizagem bilateral. Um
cita montava a cavalo como a Márcia Haydée dança balé, ou o Von Kara-
jan rege uma orquestra – com a sabedoria da alma. Os cavaleiros nôma-
des não precisavam de livros para passar os seus conhecimentos equestres
para as novas gerações – todo membro da sociedade começava a aprender
o ofício equestre desde quando nascia.
Entretanto, nas sociedades urbanas e sedentárias, organizadas em
profissões especializadas, o aprendizado é muito diferente. As técnicas
equestres precisam ser registradas em livro para serem ensinadas às novas
gerações. Aí surgiu o problema da equitação científica no século 19: como
conhecer a fisiologia do fenômeno equitação se nem a ciência, e muito
menos a sociedade, conheciam a psicologia, a fisiologia, a neurofisiologia
e a bioquímica do cavalo e a sua função na equitação (e por que não dizer,
no processo de centaurização?).
Entretanto, os grandes mestres equitadores do passado sempre pro-
curaram dar uma orientação científica ao seu trabalho. Pluvinel, no século
17, sem entrar em maiores detalhes, deixou clara as vantagens da equita-
ção racional e ‘científica’ em oposição aos métodos brutais e irracionais.
Mas, durante o século 19, a física e a mecânica avançaram com uma velo-
cidade cada vez maior, e assuntos que eram matérias distintas começaram
a convergir, criando novas sínteses e novas descobertas. Por isso, as pala-
vras de Baucher ecoam nos dias de hoje como uma descrição puramente
mecânica: “Cada movimento do cavalo é a consequência de uma posição
específica que, por sua vez, é produzida por uma ‘força transmitida’ pelo
cavaleiro”. A imagem que temos do cavalo descrito por Baucher é a de uma
máquina, formada por pistões e alavancas, e a força do cavalo é descrita
como se emanasse do cavaleiro, todo poderoso. O cavaleiro de Grisone e
de Baucher era o ‘centro’ do mundo equestre (assim como, na Antiguidade,

171
Bjarke Rink

a Terra era o centro do universo), e nos seus livros o fenômeno equitação


se transformou numa grande metáfora da ciência mecânica do seu tempo.
Já, no século 20, as idéias de Caprilli elevaram o cavalo de objeto mecânico
a indivíduo sensível, capaz de fazer julgamentos próprios – um salto mo-
numental sobre o mecanicismo do passado. Com as idéias de Caprilli, de
repente, o cavalo e o cavaleiro se tornaram parceiros. Caprilli incorporou
o cérebro do cavalo e o seu sofisticado sistema neurofisiológico a sua filo-
sofia de trabalho e, por isso, se tornou o mais importante cavaleiro da sua
geração. Mesmo não conhecendo neurofisiologia, ele considerave a fusão
dos sentidos e a união dos gestos do conjunto como fatores importantes
na equitação. Nos circuitos de salto, as suas técnicas foram adotadas com
grande sucesso e a equitação clássica estava pronta para dar um salto es-
petacular – da Idade Mecânica para a Era da Neurociência.
  Mas, naquele momento, infelizmente, o mundo parou de se preo-
cupar com o cavalo, e todo o esforço científico – as novas e importantes
descobertas da neurologia, da psicologia, da química e da informática
(matérias que ninguém havia associado com a equitação) – se voltou para
resolver os problemas sociais, políticos e militares, que pulularam no ator-
mentado século 20. O cavalo e a equitação se tornaram obsoletos, como
uma pena de ganso depois da invenção da pena de metal, da pena de me-
tal depois da caneta-tinteiro, da caneta tinteiro depois da máquina de es-
crever e da máquina de escrever depois do computador. A banda próspera
da humanidade parou de se interessar por cavalos para viver um tórrido
romance com o automóvel; um terço da população do planeta ardeu com
a febre do comunismo, só curada com doses maciças de consumismo.
Deus estava morto, Marx estava morto e o Centauro era, aparentemente,
mais uma espécie extinta.
Com o discreto renascimento equestre nos anos 50, os ‘entusiastas’
do cavalo se voltaram para a Equitação Acadêmica do passado em busca
das soluções para o presente, da mesma maneira que a sociedade medie-
val se voltou para a cultura clássica grega durante a Renascença. As obras
clássicas sobre equitação (algumas já discutidas aqui) foram espanadas e
postas em prática, com grande reverência e respeito. A Idade Mecânica
foi restaurada ao poder do mesmo modo que o universo aristotélico foi
restaurado na Renascença – como se a revolução tecnológica do século
20 não estivesse em pleno curso. Infelizmente, é preciso dizer que a equi-
tação “científica” do século 20 foi uma cópia xerox em preto e branco da
equitação pouco científica do século 19. Precisamos urgentemente rever

172
Parte II Em Busca do Centauro

as técnicas da equitação clássica à luz das grandes descobertas científicas


que estão mudando os paradigmas de todas as áreas do conhecimento
humano.

Vamos começar a revolução equestre quebrando alguns dogmas


da Era Mecânica que ainda sobrevivem em certas grotas de ignorância e
preconceitos e que tem impedido a visão de uma equitação mais avançada.
Vamos começar uma linha de raciocínio sobre a equitação cujos princípios
podem se sustentar diante da ciência contemporânea. Como disse Abie
Hoffman: ‘As vacas sagradas fazem os melhores hambúrgueres!’ Encilhe o
seu cavalo e vamos partir para a terra do Centauro.

173
Bjarke Rink

CAPÍTULO 35

Equitação –
Voar é Preciso

Einstein, durante um jogo de xadrez a bordo de um transatlântico, pergun-


tou ao seu adversário se ele via algum movimento das pedras no tabulei-
ro. Quando o amigo lhe respondeu que não – as pedras estavam imóveis
– Einstein, com o seu habitual senso de humor, lembrou que estava tudo em
movimento: os dois estavam a bordo de um transatlântico viajando para a
Europa, a terra girava em torno do sol e também sobre si, e tudo fazia parte
da gravitação universal. Os cavaleiros dificilmente percebem, no seu tempo,
que a equitação não é uma disciplina estática e que ela está, ou deveria estar,
em permanente desenvolvimento. A compreensão da evolução constante do
fenomeno equitação é de grande importância para que a nossa geração e as
gerações futuras possam também contribuir para que os esportes equestres se
tornem cada vez mais belos, eficientes e prazerozos para o conjunto.
Cavalgar, nos primórdios das civilizações, se resumia ao simples trans-
portar de uma pessoa por um equídeo nas tarefas diárias de ir e vir, sem
muita preocupação com ética e estética. Além de pessoas, os equídeos tam-
bém transportavam água, lenha, mantimentos e outras cargas pesadas. Ca-
valgar era sinônimo de transporte. Com o passar do tempo, essas pessoas
transportadas aprenderam que, associando a sua inteligência à velocidade

174
Parte II Em Busca do Centauro

do cavalo, poderiam formar um conjunto invencível na arte de pilhar o pró-


ximo. Quando, mais tarde, as sociedades agrárias transformaram o cavalo
em sofisticada arma de guerra, teve início a sistematização das técnicas de
equitação. Mas esta equitação primária levou séculos evoluindo lentamente
sob a ótica dualista de um cavalo carregando um fardo. Nos primeiros está-
gios da cavalaria na Europa, os soldados eram transportados a cavalo até o
local da batalha, onde então desmontavam e combatiam a pé. Essas tropas
militares são chamadas de ‘infantaria montada’. Só mais tarde alguns povos
europeus desenvolveram uma equitação mais evoluída que lhes permitiu
combaterem montados. Na invasão da Inglaterra por Guilherme, em 1060,
os soldados do Rei Haroldo chegaram ao campo de Hastings montados a
cavalo, apearam e lutaram a pé. Guilherme, que embarcou da Normandia
apelidado de ‘o Bastardo’, combateu a cavalo e terminou a batalha ostentan-
do o heróico cognome de Guilherme ‘O Conquistador’. O seu uso do cavalo
foi mais eficiente e a ele coube os frutos da vitória.
A equitação moderna gravita em torno da necessidade de se fundir
o sistema neurofisiológico do cavalo com o do cavaleiro – de transfor-
mar a carga humana numa parte interativa da ação equestre. Gravita, mas
ainda não assumiu inteiramente esta fusão. Como já vimos, devemos ao
arrojado capitão Federico Caprilli a adoção deste conceito nos torneios de
salto realizados na Europa. Como também já vimos, Caprilli iniciou uma
revolução, lamentavelmente interrompida por sua morte aos 39 anos de
idade. Se Caprilli tivesse tido tempo de concluir o seu trabalho, a equita-
ção moderna estaria certamente muito mais avançada.
Tod Sloane, um jóquei americano contemporâneo de Caprilli, tam-
bém contribuiu decisivamente com a equitação moderna, ao introduzir
no turfe internacional um novo estilo de montar. Em pé nos estribos e
agachado sobre o pescoço do cavalo, numa posição aparentemente pre-

175
Bjarke Rink

cária, que seus críticos chamaram de ‘um macaco trepado num galho’,
ele imprimia grande velocidade na sua montaria e levou o turfe a novos
recordes. Veja a descrição de Charles Chenevix Trench sobre o estilo de
Sloane: “A essência do estilo de Tod Sloane era unir o centro de gravidade
do cavalo à do cavaleiro. A toda velocidade, o centro de gravidade do ca-
valo se adianta e o centro de gravidade do jóquei também deve se adiantar,
numa posição conseguida ao encurtar os loros, com o assento fora da sela,
o corpo paralelo ao pescoço do cavalo e os braços esticados para frente.
Além de ajustar o centro de gravidade do conjunto, essa equitação reduzia
o impacto do ar e, ao liberar o dorso do cavalo, permitia que esse adiantas-
se mais os posteriores, aumentando mais os seus galões”. Assim descreveu
Trench, em seu excelente livro Uma História da Equitação, a de equitação
de Tod Sloane, que deu início à montaria típica dos jóqueis profissionais.
A literatura internacional compara esta forma de equitação com os
princípios mecânicos da dinâmica automobilística – ajustes do centro de
gravidade, melhor distribuição do peso, diminuição da quebra do impacto
do ar, etc. Vou pedir licença aos meus leitores para dar um passo em outra
direção: o jóquei em pé nos estribos e agachado sobre o pescoço do cavalo
recebe a pressão do ar da mesma forma que o princípio da aerodinâmica
atua sobre a asa do avião: o ar passa por cima das costas do cavaleiro e por
baixo do seu corpo, criando um ‘diferencial de pressão’ semelhante ao que
anula o peso do avião e o faz voar. Ou melhor, o ar que passa por cima do
jóquei acelera, ficando mais veloz que o ar que passa por baixo, aumentando
assim a pressão dinâmica sobre o seu corpo e diminuindo o seu peso. No
caso do avião, quando este atinge a velocidade de ‘rolagem’, como dizem os
pilotos, o aparelho é ‘sugado’ para cima, e o aparelho levanta vôo. No caso
do cavalo de corrida, galopando a cerca de 70 quilômetros por hora, a velo-
cidade não permite o vôo, mas o princípio do ‘diferencial de pressão’ atuará
sobre o corpo do jóquei, fazendo com que o seu peso corporal seja drastica-
mente reduzido. Reduzido a quanto? Só uma pesquisa dirá.

Na equitação científica do século 21 ‘haverá mais coisas entre o céu e


a terra, Horácio, do que supõe a sua vã filosofia’, diria Shakespeare em
meu lugar. Portanto, vamos continuar por este caminho indicado pela
ciência moderna e buscar na psicologia, na fisiologia, na neurofisiologia,
na biomecânica e na bioquímica os fenômenos biológicos responsáveis
pelo processo de formação do Centauro, a entidade mitológica que tanto
intrigou os gregos antigos.

176
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 36

Em Busca do Centauro

A observação do cavalo, a especulação sobre a sua natureza, e a ex-


ploração das suas potencialidades, esteve presente em sucessivas civilizações
desde tempos imemoriais. A habilidade do Homem em dominar e usar a
velocidade do cavalo tem influenciado decisivamente o curso da história.
Como a vida moderna e suas atividades são cada vez mais influenciadas
pela ciência, é imperativo o estudo do fenômeno equitação para se conhecer
os acertos e erros que envolveram o desenvolvimento das artes equestres. E,
com a ajuda dos avanços científicos do presente, pavimentaremos o caminho
para que a equitação possa ser exercida em toda a sua plenitude, como sabe-
mos que já foi num distante passado na Ásia Central.
É fato que, na pré-história, o relacionamento do cavalo e do homem
era apenas gastronômico – com os dois almoçando juntos, este comendo
aquele. No início da Idade Neolítica, há 6 mil anos, o uso da força do
cavalo e da carroça foram descobertas de grande relevância para a huma-
nidade, com aquele puxando esta. Na primeira parte desse livro, revimos
um pouco da história militar do cavalo e seria natural chegar o dia (e o
capítulo) em que a ciência nos possibilitasse fazer melhor uso do cavalo
– corpo e mente. E para dar suporte a essa afirmação auspiciosa, desco-
briremos uma verdade surpreendente: nós temos muito mais em comum
com o cavalo do que pensávamos. E, mais: nós não somos tão racionais

177
Bjarke Rink

como supúnhamos e nem o cavalo tão irracional como julgávamos. Por-


tanto, vamos voltar os nossos cavalos para o século 17 e começar uma
nova investigação.
René Descartes nasceu num mundo que começava a viver o impacto
da revolução mecânica. No seu tempo, relógios, bonecos automáticos e
máquinas de todo tipo surgiram para o deslumbramento geral e, ele, Des-
cartes, não pestanejou em escrever no seu livro Discurso do Método, edi-
tado em 1697, que “os animais são meras máquinas desprovidas de alma
e mente” – uma tese que consolidou a Psicologia Mecanicista que explica
todo o comportamento animal mecanicamente. Mas a ciência, que come-
çou a avançar com muita velocidade no século 19 de Baucher, progrediu
ainda mais rapidamente no século de 20 de Decarpentry. Tanto trabalho
forneceu, naturalmente, uma vasta quantidade de novas informações
científicas que conduziram a alguns conceitos complexos do mundo na-
tural – tal como a revolução nas ciências físicas provocadas pela teoria da
relatividade e quântica de Einstein. Houve, também, o prodigioso desen-
volvimento que se realizou na biologia, cobrindo a fisiologia humana e
animal, a hereditariedade e a evolução das espécies. Estes avanços científi-
cos também possibilitaram a nova disciplina da biologia molecular, cam-
po em que a física, a química e a teoria genética se uniram de um modo
extremamente importante para o futuro... de quem? Do Centauro, é claro.
Entretanto, ainda nos primeiros anos do século 20, ressurgiu a crença
de que todos os fenômenos da vida podiam ser reduzidos às ‘leis básicas’
da química e da física! Jacques Loeb, alemão da Prússia, foi um dos líderes
dessa nova escola mecanicista, uma extensão do mecanicismo cartesiano.
Loeb anunciou enfaticamente os seus pontos de vista em um trabalho in-
titulado “A Concepção Mecanicista da Vida”. Esta teoria foi amplamente
aceita durante a década de 1920. Mas dez anos depois, o ponto de vista
de Loeb se chocou com a oposição de alguns biólogos que procuravam
encontrar relações no comportamento e na organização física das diferen-
tes partes de um organismo. Para eles, não era suficiente estudar apenas
partes ‘isoladas’ de um corpo. Os sistemas vivos não são ‘simples’ agrupa-
mentos de moléculas, mas sistemas com um comportamento altamente
organizado, diziam. Com este raciocínio, foi possível obter maior preci-
são com as experimentações na fisiologia e, mais particularmente, com
os estudos da condução nervosa e da organização do sistema nervoso do
homem e dos animais. Estes dois pontos de vista – o mecanicista e o in-
tegrado, ou sistêmico – são encontrados nos estudos do sistema nervoso

178
Parte II Em Busca do Centauro

dos seres vivos.


Aqueles cientistas que adotaram uma concepção mecanicista, ou ma-
terialista da vida, estavam inclinados a reduzir tudo a reações físicas bá-
sicas. A outra concepção adotada por pesquisadores ingleses e franceses
na década de 50 encarava o sistema nervoso como um todo. Isso levou à
percepção de que havia uma diferença entre os nervos que se dirigem à
coluna vertebral do animal e os que dela partem. O primeiro indício do
circuito neuromotor na ciência.
A escola Holística fez um estudo interessante do sistema reflexo (res-
ponsável por ações como o impulso involuntário do joelho quando golpe-
ado abaixo da rótula). Notáveis abordagens do problema foram feitas pelo
russo Ivan Pavlov. Conhecido por seus estudos da ação reflexa, Pavlov
começou a se interessar por ela ao notar que, quando realizava a rotina de
alimentação dos cães de laboratório, os animais começam a salivar antes
da apresentação da comida. Pesquisas cuidadosas acabaram levando Pa-
vlov a concluir, não somente que um processo de aprendizado estava se
realizando, mas também que essa aprendizagem era feita pela composição
de ‘reflexos em cadeia’: o uso repetido de um estímulo particular cria uma
resposta – um reflexo automatizado – que o pesquisador poderia acionar
à vontade’. (Você, admirador de cavalos ou cavaleiro moderno, está natu-
ralmente começando a vislumbrar a consequência disso tudo para a equi-
tação). Com este trabalho, Pavlov descobriu a importante relação entre o
comportamento e a fisiologia do sistema nervoso. Um conceito holístico
e não mecanicista da ciência. Sherrington, o fisiologista inglês, publicou
em 1906 (um ano antes da morte de Caprilli) o livro Ação Integrada do
Sistema Nervoso, que incorpora a sua abalizada opinião de que existem
três níveis em que se deveria estudar o comportamento animal: o nível
físico-químico, que dava ao animal aspecto de ‘máquina’ (que os equita-
dores já conheciam); o nível da psique, no qual o processo neurológico se
une para formar uma criatura pensante e perceptiva; e, em terceiro lugar,
um nível de relacionamento mente-corpo. Um raciocínio de pleno acordo
com a filosofia de equitação que estava sendo introduzida, na época, por
Federico Caprilli.
Chegamos, finalmente, ao ponto crucial na história da equitação:
até o século 20, o cavaleiro, no seu relacionamento com o cavalo, só con-
seguiu entender e dominar o nível físico-químico – que dá ao animal o
aspecto de máquina. O nível da psique, no qual o processo neurológico
se une para formar a criatura pensante, sensitiva e perceptiva, e o nível

179
Bjarke Rink

do relacionamento mente-corpo, que subordina todas as funções vitais ao


cérebro e ao sistema nervoso, eram desconhecidos. Mas, foi nesta mesma
época, na década de 1930, que a sociedade ocidental começou a se desin-
teressar pelo cavalo e ninguém propôs rever as nossas práticas equestres à
luz da ciência moderna. Ou seja, investigar de que maneira o sistema ner-
voso humano interage com o sistema nervoso equino, produzindo o pro-
cesso de centaurização; a equitação de alta sensibilidade, ou simbiótica.
Agora, com o grande renascimento equestre no mundo, é a partir
deste ponto que devemos retomar os estudos da nossa relação neurológica
com o cavalo, para então dar um salto espetacular na eficiência da nossa
equitação. No futuro, todo cavaleiro evoluído saberá reconhecer a parte
mecânica da equitação, e também o aspecto psicológico e neurofisiológico
do desempenho equestre. O bom cavaleiro saberá distinguir qual a sua
própria função na equitação e o que compete somente ao cavalo, além
de saber como desenvolver uma atitude mental de cooperação do animal
com relação ao adestramento e ao treinamento esportivo. Esses são os elos
que faltavam para levar mais cavaleiros a uma equitação simbiótica e de
alta performance.

O que Caprilli sentiu instintivamente, e tentou nos mostrar, é que o


cavalo, sendo dono de uma constituição neurológica muito desenvolvida, é
perfeitamente capaz de tomar certas decisões nos percursos hípicos, sobre
equilíbrio e velocidade, por exemplo. E, portanto, o cavalo precisa ser
treinado não como um ‘objeto irracional’ (até porque objetos irracionais
não são passíveis de serem treinados), mas como um parceiro esportivo, um
indivíduo inteligente, sensitivo e participante do jogo equestre. E, agora,
para entendermos a fisiologia da equitação, a ciência moderna tem muito
a contribuir, basta a gente procurar.

180
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 37

O Milagre da Neurofisiologia da
Equitação

Quando o homem e o cavalo, para realizarem tarefas conjuntas, se


fundem numa única unidade biológica, forma-se uma rede de cooperação
neurofisiológica entre os parceiros. Esta interação entre os sistemas nervo-
sos do homem e do cavalo ocorre, nas diversas modalidades equestres, em
graus diferentes, e esta variação determina a dificuldade e a qualidade da
equitação. Podemos afirmar que a equitação é um milagre de coincidências
biológicas que, à primeira vista, o bom senso julgaria impossível de aconte-
cer – isto porque só um milagre permitiria que dois seres programados pela
natureza para a realização de tarefas vitais tão diferentes pudessem unir
os seus recursos fisiológicos para realizar uma mesma tarefa – e com o alto
grau de eficiência verificada em algumas modalidades equestres.
A cooperação funcional entre homens e animais não é em si uma
novidade. Desde a Antiguidade, o homem buscou, entre os animais, aque-
les que pudessem lhe ajudar a sobreviver e até a enriquecer. Na Índia, os
elefantes fazem, há milênios, o trabalho do guindaste. Em todas as socie-
dades agrárias, os bois puxam arados, os jumentos transportam cargas,
e entre os povos nômades os cavalos, as renas e os camelos servem tanto
para o deslocamento de carga como para o transporte individual. Todas

181
Bjarke Rink

essas tarefas exigem algum grau de cooperação funcional entre homens e


animais. O que diferencia a equitação de todos os outros usos de animais
– e até do uso do cavalo para tração – é a ‘fusão neurofisiológica’ neces-
sária para que o conjunto homem-cavalo se transforme em um único ser
biológico, capaz de realizar operações conjuntas na guerra, nos trabalhos
e nos esportes.
Mas o homem e o cavalo possuem diferenças morfológicas tão acen-
tuadas que, à primeira vista, a equitação seria um fenômeno inacreditável.
A impossibilidade teórica de um homem conduzir um cavalo a partir de
uma posição no dorso do animal foi confirmada em todas as ocasiões em
que povos pedestres se chocaram pela primeira vez com povos equestres
(o efeito Cortés). As populações pedestres viam os cavaleiros com a mes-
ma incredulidade que você veria se um chipanzé, pilotando um hipopó-
tamo, ganhasse o Grande Prêmio Brasil no Jockey Clube. Entretanto, se
olharmos o fenômeno equitação com muita atenção, poderemos distin-
guir ‘onde’ e ‘como’ a maioria das características anatômicas e neurofisio-
lógicas das espécies Homo sapiens e Equus caballus se completam para
formar o fenômeno Homo-caballus. Se a diferença entre as duas espécies
é grande, as coincidências são maiores ainda!
Em homenagem ao criador da equitação, o Homo sapiens, vamos
examinar primeiramente quais as suas características morfológicas e neu-
rológicas que favorecem o fenômeno equitação. Sabemos que o corpo
do homem é dividido em cabeça, tronco e membros, exatamente como
o do cavalo. Mas existe uma relação de flexibilidade muito especial entre
as partes do corpo humano que não existe no cavalo. O Homem evoluiu
basicamente para se locomover na copa das árvores. Sim, fomos progra-
mados para ‘braquear’, isto é, para nos deslocarmos de galho em galho nos
impulsionando com os braços e usando as pernas para dar mais empuxo e
firmeza. O antecessor do Homo era o ‘saltimbanco da floresta’, um verda-
deiro ‘acrobata do cipó’. A contribuição sensitivo-motora do homem para
a equitação é o nosso grande senso de equilíbrio e, sobretudo, um cérebro
que evoluiu para lidar com a instabilidade das copas das árvores. (Veja
capítulo “A Dança das Ilusões”.) O meio ambiente arbóreo desenvolveu a
nossa capacidade de usar os braços independentemente das pernas, uma
postura de tronco ereto que permite deslocar o centro de gravidade para
frente e para trás conforme a velocidade do cavalo, um grande número de
sensores nervosos e músculos especializados que permitem excelente co-
ordenação, entre olhos e mãos, para o manuseio de objetos. Todavia, essa

182
Parte II Em Busca do Centauro

habilidade ‘manipuladora’ é boa e ruim. Muitas pessoas não conseguem


desenvolver uma boa equitação porque a sua ‘compulsão manual’ destrói
o delicado equilíbrio sensitivo-motor necessário para o bom desempenho
equestre. Para equitar bem, o homem tem de descartar os seus movimen-
tos amplos e usar apenas os movimentos finos. (Quebrar pedras é mais
fácil do que lapidar diamante). Mas, do ponto de vista neurológico, o ho-
mem desenvolveu um órgão fundamental que possibilita todo o milagre
da equitação – um cérebro capaz de estabelecer enormes sequências de
relações entre os fenômenos naturais e que transformou a espécie humana
numa ‘máquina de aprender’. Perceba, portanto, que o bom cavaleiro se
notabiliza, primeiramente, pela sua capacidade de ‘aprender’ com o cavalo
e não pela sua capacidade de ensinar ao cavalo – uma questão que obvia-
mente tem atrapalhado muitos candidatos a cavaleiro, porque as pessoas
imaginam caber a eles ‘ensinar’ o cavalo a ser cavalo.
A espécie humana, através de milhões de anos, a maioria deles de
vida arbórea, desenvolveu uma série de reflexos incondicionados, isto é,
involuntários, que foram passados de geração a geração e hoje represen-
tam o grande elenco de movimentos humanos. Outros reflexos são condi-
cionados por estímulos do meio ambiente e são desenvolvidos no proces-
so de aprendizado do indivíduo. Na equitação, estes dois tipos de reflexo
– o condicionado, ou automatizado, e o incondicionado – vão interagir
com os reflexos naturais do cavalo. (Veja capítulo A Cadeia de Reflexos da
Equitação.) Os movimentos e as ações da equitação são iniciados pelo sis-
tema sensitivo-motor do cavaleiro e completados pelo sistema sensitivo-
-motor do cavalo. Isto é, os movimentos da equitação são deflagrados pelo
cérebro do homem e finalizados pelo sistema nervoso do cavalo, os dois
sistemas funcionando em cadeia de cooperação. Vejamos agora a morfo-
logia funcional do cavalo.
O cavalo é um animal com grandes diferenças funcionais e morfoló-
gicas, se comparado com o homem. Como já vimos, a cabeça, o pescoço,
o tronco e o aparelho locomotor do cavalo evoluíram para desenvolver
grande velocidade em qualquer terreno. O esqueleto do cavalo, com uma
construção semelhante ao do homem é, no entanto, horizontal para se
tornar mais aerodinâmico. Mas o cavalo não tem a mesma agilidade do
homem. “Existe uma crença comum que o cavalo é um saltador natural
com um corpo flexível capaz de manter o seu equilíbrio em todos os an-
damentos e velocidades”, escreve R. H. Smythe em seu livro A Estrutura e
o Movimento do Cavalo. “A realidade é muito diferente. Comparando com

183
Bjarke Rink

todos os animais atletas, o cavalo foi provido por um tronco de grande


volume e peso que depende exclusivamente das pernas para se deslocar
sobre o terreno, que funciona (negativamente) como um lastro. O equilí-
brio do cavalo depende de pés pequenos, muitas vezes precários devido ao
uso de ferraduras. Esses quatro pés têm de suportar e equilibrar o cavalo
na reta, nas subidas e descidas, ao aterrissar depois de um salto, e como
freio para desacelerar a sua velocidade. Nas curvas, ele tem de manter o
equilíbrio, às vezes em grande velocidade, e suportar as interferências [do
cavaleiro] que, normalmente, ocorrem em competições. Uma análise mais
atenta poderia sugerir que esta espécie animal não é recomendada para
todas essas tarefas. Entretanto, sejam quais forem as suas limitações, o
cavalo, hoje, consegue desincumbí-las muito bem”, conclui Smythe. Note
que a análise de R. H. Smythe é inteiramente mecanicista – isto é, do pon-
to de vista da sua mecânica, o cavalo é inadequado para a equitação! O
que supera esta aparente limitação mecânica é o seu sofisticado sistema
nervoso, que Smythe não menciona. Donde se conclui que, como no caso
do homem, a mais importante contribuição do cavalo para a equitação é o
seu sistema nervoso. O velho adágio ‘No foot no horse’, muito popular no
passado, deve ser reescrito para ‘No brain no horse’, muito mais de acordo
com a realidade equestre da era digital.
Encontramos na conformação do cavalo algumas coincidências que
favorecem a ajustes com a morfologia do homem. Um costado com a lar-
gura adequada para o homem açambarcar com as pernas, um lugar no
final da cernelha para o cavaleiro se posicionar sobre o dorso, ideal para o
alinhamento do seu centro de gravidade com o do cavalo. O corpo relati-
vamente inflexível do Equus caballus é, no entanto, um dos principais ele-
mentos a favorecer a equitação. Se o cavalo tivesse a coluna dorsal flexível
como o de um gato, seria impossível de ser montado. Se tivesse a pele sol-
ta como a do cachorro, também. As coincidências psicomotoras também
são notáveis. A coincidência de temperamentos é outro fator que permite
a ‘fusão neurofisiológica’ do conjunto. O grande elenco de movimentos
naturais do cavalo é inteiramente utilizado na equitação moderna e total-
mente administrável pelo homem treinado para a equitação. No aspecto
psicológico, existem também as semelhanças necessárias para completar
o milagre da equitação. Sentimentos como o medo, o prazer, a confiança,
a curiosidade e a determinação fazem parte da psicologia tanto do ho-
mem quanto do cavalo, e eles também são responsáveis para o sucesso da
fusão psiconeurofisiológica na equitação. E, talvez, campos magnéticos e

184
Parte II Em Busca do Centauro

determinadas ‘ondas’ elétricas ainda desconhecidas pela ciência possam


também ser responsáveis pelo ‘sincronismo de movimentos’ e o senso si-
multâneo de direção e velocidade verificado nos grandes conjuntos eques-
tres. O século 21 provavelmente nos dirá.
Depois de uma análise, mesmo rápida, da neurofisiologia do homem
e do cavalo, pode-se concluir que o ‘saltimbanco da floresta’ e o ‘corredor
da savana’ são os únicos seres vivos capazes de se unir para formar um
‘terceiro’ organismo mais eficiente do que os dois indivíduos que o for-
maram. Isto é, quando o instinto de independência do cavalo e instinto
de interferência do homem não entrarem em choque para as tomadas de
decisão durante a equitação.

A equitação de alta sensibilidade é provavelmente uma das tecnologias


biológicas mais complexas já dominadas pelo homem. A capacidade de
interagir com o complexo sistema nervoso do cavalo, que produz um
processo de feedback entre os parceiros, exige do equitador respostas
reflexivas instantâneas aos reflexos incessantes produzidos pelo cavalo.
Administrar as ações de um cérebro estruturado para mobilizar um
organismo muitas vezes mais potente do que a do homem, é um
enorme desafio para os 10 bilhões de células nervosas que compõem
o tronco cerebral, o cerebelo e o cérebro do Homo sapiens. Felizmente,
a neurociência já começa a nos fornecer os dados necessários para
analisarmos e tirarmos conclusões dos princípios neurológicos da
equitação.

185
Bjarke Rink

CAPÍTULO 38

A Neurociência Revela os
Princípios da Equitação
Com a participação involuntária de Dr. James Rooney

A equitação pode, e deve, se beneficiar com as novas informações cien-


tíficas que não param de enriquecer o conhecimento humano. Na busca por
técnicas mais eficientes para se montar a cavalo convém, além de rever os
velhos manuais de equitação, procurar novas fontes e fatos nas ciências con-
temporâneas que possam nos ajudar a ampliar os limites da nossa percepção
do cavalo e da fisiologia da equitação. Acredito que, para se contribuir com
o que já é sabido, não basta traduzir, transcrever e concordar com a biblio-
grafia existente. Hoje, mais do que nunca, é preciso equitar, avaliar, duvidar
e pesquisar para, então, ajudar a reconceituar os paradigmas existentes à
luz da ciência. “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente
aprende” escreveu, com grande sabedoria, Guimarães Rosa.
Antes de nos aprofundarmos numa filosofia avançada da equitação,
vamos analisar a neurologia do cavalo que permite a equitação em si, se-
gundo uma pesquisa realizada por Dr. James Rooney, professor de Pa-
tologia Veterinária da Universidade da Pensilvânia. O estudo, intitulado
A Cadeia de Reflexos da Equitação, realizado nos anos 70, revela que o
cavalo reage aos comandos do cavaleiro por meio de reflexos automati-

186
Parte II Em Busca do Centauro

zados, organizados durante o processo de treinamento do animal. Esta


extraordinária informação pode estabelecer bases sólidas para se realizar
uma fusão mais completa do sistema neurofisiológico do cavalo com o
do cavaleiro. As técnicas para esta fusão de sentidos foram desenvolvidas
instintivamente pelos criadores da equitação, os nômades da Ásia Central,
e por outros grandes cavaleiros do passado. Como vimos, um deles foi
Caprilli, que acabou sendo conhecido apenas como o criador do ‘assento
adiantado’.
A fusão dos sistemas nervosos do cavalo com o do cavaleiro pode
ser descrita assim: o cavalo e o cavaleiro evoluem na ação equestre como
um único ser, o cavaleiro em perfeita sintonia com os ciclos musculares
do cavalo, os dois unidos por uma ação de gestos, sentidos e objetivos
alinhados. O cavalo é a extensão do cavaleiro e este, o prolongamento do
cavalo. Entre os dois seres neurofisiologicamente conectados, um fluxo
de informações retroalimenta continuamente a ação do conjunto. Visual-
mente, tem-se a impressão de que o cavalo comanda a ação, tal a sutileza
dos comandos do cavaleiro e a harmonia do desempenho do conjunto.
A partir desta imagem, fica claro que existe muito mais por trás de
uma equitação de alta performance do que o uso de mãos, pernas, espo-
ras e chicotes – as tradicionais ‘ajudas’ que, usadas indiscriminadamente,
atrapalham mais do que ajudam, provocando uma ação equestre feia e de
pouco rendimento esportivo. “Para se obter um alto nível de desempenho
esportivo”, diz Dr. James Rooney, “é importante se conhecer o funciona-
mento da coordenação motora do cavalo, para dela tirar melhor proveito”.
E, a partir daí, aprender a desencadear uma sequência de comandos que,
por sua vez, vai catalisar no cavalo a cadeia de respostas automatizadas da
equitação, um processo neurofisiológico muito mais próximo da ciberné-
tica do que das leis da mecânica convencional.
“A deflagração dos reflexos naturais do cavalo”, continua Dr. James
Rooney, “está ligada a dois pontos na espinha dorsal do animal chamados
de dilatação cervical e dilatação lombar. A dilatação cervical comanda as
ações dos membros anteriores, e a dilatação lombar, a ação dos membros
posteriores. Esses dois pontos são dilatações do sistema nervoso central,
que tem início no cérebro e corre pela coluna vertebral até a garupa do
cavalo, e também desce pelos membros para controlar os movimentos das
pernas. Essas duas dilatações nervosas, quando estimuladas pelos nervos
sensores, deflagram os reflexos que determinam o andamento do cavalo
– o passo, o trote (ou a marcha), e o galope – e também as mudanças de

187
Bjarke Rink

direção, mudanças de velocidade e demais ações equestres” explica Dr.


Rooney.
É bom lembrar que o ser humano possui um sistema reflexo automa-
tizado semelhante que permite, por exemplo, que possamos caminhar e
conversar ao mesmo tempo, ou dirigir um automóvel e simultaneamente
discutir com um amigo o desempenho do nosso time de futebol, enquan-
to acionamos a alavanca do câmbio com a mão direita, pisamos na embre-
agem com o pé esquerdo, aceleramos com o pé direto, começamos a girar
o volante enquanto conferimos, com um olhar, o espelho retrovisor – tudo
ao mesmo tempo e sem nos concentrarmos diretamente no que estamos
fazendo. Poderíamos chamar essa sequência de movimentos de ‘reflexos
automatizados da direção automobilística’.
Vamos examinar um exemplo prático do funcionamento da cadeia
de reflexos da equitação: depois de montar o cavalo, solicitamos, com uma
pressão das pernas, a saída do animal para o passo. Esse comando é capta-
do pelos nervos sensores, localizados atrás do encilhadouro do cavalo, que
mandam um sinal elétrico para a dilatação cervical. De lá, um estímulo
nervoso corre até o ‘músculo protator’ e libera uma substância química
com a qual o músculo se contrai e movimenta a perna para frente. Estes
nervos, que provocam o movimento, são chamados nervos motores. Para
desencadear um passo regular, este processo se repete alternadamente,
com o ‘músculo retrator’ movimentando o membro para trás e o músculo
protrator impulsionando para frente, e assim por diante. Toda esta série
de reações musculares, que determinam a coordenação das passadas, é
chamadas de ações reflexas. (Atenção, nem pensar em pular este trecho
do livro porque esta descrição tem para a neurofisiologia da equitação a
mesma importância que a Teoria da Relatividade de Einstein para as leis
da física!).Se não compreender de cara leia de novo.
Então, prosseguindo: note que os nervos sensores do cavalo captam
o toque das pernas do equitador, enviam a informação para a dilatação
lombar, que transforma o comando do cavaleiro num gesto automatizado
– ou seja, o início da movimentação do passo. “Isto quer dizer”, explica
Dr. Rooney, “que a protração e a retração – o movimento para frente e
para trás dos membros – que realiza a ação de andar, trotar ou marchar e
galopar pode ser regida exclusivamente pela dilatação cervical e lombar,
sem a participação direta do cérebro do cavalo no processo. Isto é, com
a ‘automatização’ dos andamentos não há interferência do cérebro”. Mas,
como se insere o cérebro do cavalo na sua coordenação motora? Conti-

188
Parte II Em Busca do Centauro

nua Dr. Rooney: “Numa área do cérebro, abaixo do cerebelo, existe um


conjunto de centros nervosos responsáveis pela coordenação e regulagem
dos movimentos do cavalo. Eles determinam o andamento (passo, trote
ou marcha e galope) e a sequência em que as pernas vão se movimentar.
Se um cavalo, na sua vida natural, estiver pastando e se, por algum moti-
vo prático, tomar a decisão cerebral de andar, o andamento será repetido
automaticamente até haver uma nova vontade de mudar de andamento ou
parar”, finaliza Dr. Rooney.
Ao meu ver, esta pesquisa permite uma conclusão extraordinária:
um cavalo bem adestrado não tem como distinguir, nos centésimos de
segundo em que ocorrem as ‘ajudas’, se elas estão partindo do cavaleiro
ou do seu próprio sistema sensitivo-motor. O cavalo não só parece estar
comandando a ação – o próprio cavalo terá a sensação de estar coman-
dando a ação.
O Dr. James Rooney (que é veterinário e não equitador) fez, a meu
ver, uma ou outra observação que não me parece corresponder com a
realidade da equitação. A interação neurofisiológica entre o cavalo e o ca-
valeiro nos esportes equestres está, provavelmente, fora da área de atuação
dos médicos veterinários e ainda não ingressou no currículo dos especia-
listas em fisiologia do exercício humano. Resta, portanto, a nós equitado-
res fazermos a ponte do fenômeno fisiológico interativo da equitação. Dr.
Rooney não tratou, por exemplo, do fato de o cavaleiro também ter de
organizar os seus ‘próprios reflexos’ da equitação em ações automatizadas,
que se coordenarão com os reflexos do seu cavalo – fenômeno que es-
tou chamando, aqui, de fusão neurofisiológica homem-cavalo. Transcrevi,
para este livro, as observações que me pareceram as mais importantes na
ótica da prática interativa da equitação, que chamaremos de ‘neurofisio-
logia da equitação’, um termo que me parece faltar no vernáculo da equi-
tação.
Acredito que o estudo da cadeia de reflexos da equitação do Dr. James
Rooney está para a equitação como o heliocentrismo de Copérnico está
para a astronomia. Como um Copérnico moderno, Dr. James Rooney nos
possibilitou ter uma visão científica de um mundo até então desconhecido
– o mundo interior do desempenho equestre – um universo tradicional-
mente povoado por mitos, equívocos, conclusões conflitantes, burrice e
até charlatanismo. A compreensão da fisiologia da equitação – que englo-
ba a interação da psicologia e da neurofisiologia do homem e do cavalo
– vai modificar radicalmente os antigos métodos de ensino da equitação

189
Bjarke Rink

que foram sistematizados a partir da renascença italiana. A revolução na


percepção do cavalo e da equitação será tão abrangente como as transfor-
mações da economia global, decorrentes da introdução da informática.
Para a equitação, o século 21 vai ser muito diferente daquele que passou.

Como acabamos de ver, o cavalo não obedece ao cavaleiro por medo


ou para lhe agradar. O cavaleiro, para obter uma determinada ação do
cavalo, terá de acionar a sua cadeia de reflexos locomotores (mesmo que
ele não saiba disso), que vem a ser uma ‘programação’ do sistema nervoso
que o animal usa na sua vida natural. Isto significa que a equitação é
um processo de aprendizado bilateral. O equitador aprende a reconhecer
os movimentos do cavalo e a deflagrar os seus reflexos, e este aprende a
reconhecer e a automatizar o código de comandos do cavaleiro.

190
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 39

A Organização da Equitação em
Reflexos Automatizados
Com a participação involuntária de Dr. James Rooney

Em sua vida natural, o cavalo usa o cérebro para acionar a sua cadeia
de reflexos, mas não para sustentar a ação dos andamentos depois que co-
meça a se movimentar. Quando o cavalo é montado, é o cavaleiro quem
aciona a cadeia de reflexos do animal e determina a direção que o conjunto
deve tomar, a velocidade e as ações que irão executar. Entender como fun-
ciona esse sistema é um grande passo para se aprender a usá-lo e ganhar
uma equitação de alta sensibilidade.
Quando o cavalo é bem adestrado, o cavaleiro assume o comando das
decisões para as mudanças de velocidade e direção com muita facilidade.
Ou melhor: a decisão do cavaleiro substitui a decisão do cavalo para acio-
nar o seu sistema reflexo que dará início à sua cadeia de movimentos. O
corpo e as pernas do animal começam a se movimentar automaticamente,
mais ou menos como um avião voando ‘no piloto automático’. A questão
que deve ser lembrada neste momento é que o cérebro do cavaleiro aciona
a sequência de movimentos do cavalo e estes são mantidos automaticamente
em funcionamento pelas células do sistema nervoso do cavalo situadas nas
dilatações cervical e lombar. Mas o cavalo é perfeitamente capaz de, du-

191
Bjarke Rink

rante a equitação, tentar tomar decisões por conta própria. Por exemplo,
querer disparar de volta para as baias se não estiver gostando do passeio,
aproximar-se de outro animal, parar para pastar ou simplesmente empa-
car diante de alguma coisa que o amedronta. Neste instante, haverá uma
disputa entre o cavalo e o cavaleiro pelas tomadas de decisões. E, geral-
mente, o cavaleiro inexperiente tenta retomar o comando à força usando
esporas e chicote, que despertam o cérebro e a consciência do animal e,
em consequência disso, a sua rebeldia – e a confusão estará armada, como
já vimos centenas de vezes por aí. Numa situação semelhante, o cavaleiro
experiente, ao contrário do novato, retomará sutilmente o comando da
situação sem se fazer muito notado pelo cavalo; no máximo, o animal per-
ceberá a sua presença quando ele transmite, com atitudes e gestos tranqui-
lizadores, a necessidade de avançar. Porque o bom cavaleiro possui todos
os atributos naturais de um líder – carisma, competência para resolver
problemas e a capacidade de persuadir e motivar.
O conhecimento da cadeia de reflexos da equitação é de grande im-
portância para o cavaleiro moderno que pode, finalmente, contar com um
paradigma científico para a orientação de como organizar as suas ‘ajudas’
de maneira mais técnica e eficiente.
O adestramento e o treinamento modernos são a organização de
toda a ação equestre em reflexos que foram automatizados pelo adestra-
dor durante muitas horas de treinamento. Esta organização dos reflexos
da equitação do cavalo começa com o ‘adestramento primário’, também
conhecido como ‘doma de chão’, onde o animal aprende a andar, trotar
ou marchar, galopar, e mudar de direção, com os comandos emitidos pelo
adestrador. A ‘doma’ moderna34 deve ser entendida como um vôo simula-
do na aviação, na qual o cavalo aprende todas as manobras sem os perigo
da ação real. O potro, durante o adestramento primário, vai aprender as
ações da equitação35 administradas de forma compreensiva e progressiva,
até receber o cavaleiro no dorso, quando então começa o adestramento
básico, também conhecido como ‘doma de cima’, que é uma continuação
dos mesmos comandos ensinados durante o adestramento primário, ago-
ra acionado pelo adestrador montado no dorso do cavalo. Etapa por eta-
34
Particularmente, eu não chamo de ‘doma’ a iniciação do cavalo para a equitação. Prefiro a expres-
são ‘adestramento primário’, porque este estágio se refere exatamente à fase primária da educação
na qual o animal aprende a aprender – sobretudo como lidar com os seres humanos com quem
ele, em breve, vai ter de fundir os seus recursos neurofisiológicos durante a equitação.
35
Na fisiologia do exercício, as ações rápidas são aquelas executadas automaticamente em centé-
simos e décimos de segundos.

192
Parte II Em Busca do Centauro

pa, o animal, com sua memória infinita, aprende a se movimentar com a


destreza e mantendo o seu equilíbrio natural, em todos os momentos da
equitação.
O Adestramento Clássico é a modalidade equestre que mais depende
da organização dos reflexos naturais do cavalo em sequências de reflexos
automatizados. Todos os andamentos, as transições, as piruetas e os apoios
laterais dependem de um longo treinamento do cavalo (e do cavaleiro)
para atingirem a fluência e perfeição destes movimentos cooperados. No
hipismo, a aproximação dos obstáculos e a organização corporal do cavalo
e do cavaleiro, para realizarem o salto com movimentos alinhados, tam-
bém requerem uma sequência de reflexos ensaiados e automatizados para
garantir o rendimento máximo da ação. Poderíamos até dizer que o salto
ideal deveria ser ensaiado com a precisão de uma figura de ‘Adestramento’.
Na equitação rural, as provas de baliza e três tambores também são
figuras automatizadas. Mas, na apartação, por exemplo, a maioria dos co-
mandos não parte do cérebro do cavaleiro. Os comandos reflexos partem
do sistema nervoso do boi que deflagra as respostas do cavalo em centé-
simos de segundo. É um duelo entre o cavalo e o boi, onde a função do
cavaleiro é apontar qual o boi da manada que precisa ser separado e, a
partir daí, procurar não atrapalhar o trabalho do animal. Organizar a ação
equestre em reflexos automatizados, sem provocar dor no cavalo (porque
isto despertará a consciência e a rebeldia do animal), é o grande segredo
da equitação simbiótica, ou alta sensibilidade, que está formando os gran-
des conjuntos e campeões da atualidade.
Com esta nova percepção da realidade equina, deverão também ces-
sar as velhas rivalidades entre os sistemas de adestramento das escolas de
equitação romana, germânica e de trabalho (‘western’), que se digladiam
há séculos sobre as melhores técnicas de se adestrar cavalos. Agora se sabe
que o bom sistema é aquele que organiza os movimentos equestres na se-
quência natural em que o próprio cavalo se movimenta. Agora, também,
podemos compreender porque os grandes mestres da equitação acadêmi-
ca, os homens que fizeram a história da equitação ocidental – Xenofonte,
Pluvinel, Newcastle, Nestier, Eisenberg, La Guérinière, Baucher, L’Hotte,
Fillis, e tantos outros – recomendavam o adestramento e o treinamento
paciente, sem provocar dor no cavalo, com aulas curtas e frequentes para
não estressar o animal. “Meu objetivo é trabalhar o cavalo com calma, por
pouco tempo, mas sempre”, escreveu Antoine de Pluvinel. “O cavalo deve
ser devolvido a sua baia com o mesmo bom humor que saiu”, recomenda

193
Bjarke Rink

La Guérinière. E a neurologia e a psicologia moderna confirmam estas


declarações.

Organizar a equitação em ações automatizadas, tanto no cavalo quanto


no cavaleiro, demanda tempo e paciência. Mas esta informação científica
é certamente o maior trunfo da equitação do século 21, que agora promete
se tornar mais bonita, e mais satisfatória tanto para o cavalo quanto
para o cavaleiro. Agora vamos examinar uma parte da ‘neurofisiologia
da equitação’ que Dr. Rooney, sendo veterinário, não teve possibilidade
de investigar: ‘a cadeia de reflexos de equitação humana’ que, interligada
com a cadeia de reflexos da equitação do cavalo, produzem a equitação
simbiótica.

194
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 40

O Código de Comandos
da Equitação
Com a participação involuntária de Dr. James Rooney

Agora que analisamos a fusão neurofisiológica do cavalo e do cavaleiro,


podemos começar a verificar como o equitador deve se comunicar com o ca-
valo. De que maneira deve transmitir os seus comandos para o seu parceiro
da forma mais sutil, promovendo uma equitação de maior beleza e precisão.
Uma equitação, em perfeita consonância com a ciência contemporânea, que
envolva tanto a união da mente quanto do corpo do cavalo e do cavaleiro.
O grande segredo da equitação de alta performance é induzir o cavalo
a obedecer ao cavaleiro com comandos que acionem automaticamente o
seu sistema reflexo. Estes comandos devem ser lógicos (do ponto de vista
da motricidade natural do cavalo) e sem propósitos conflitantes: isto é,
não usar o mesmo comando para solicitar ações contrárias. Por exemplo:
aplicar as esporas para executar um recuo.36 Induzir significa, segundo o
popular Aurélio, inspirar, incutir, instigar, incitar, sugerir ou persuadir, e

As esporas, quando necessárias, devem ser utilizadas para induzir um reflexo de afastamento
36

no cavalo. A espora do lado direito deve provocar o afastamento para o lado esquerdo e vice-
-versa. O uso das duas esporas deve induzir o deslocamento do cavalo para frente, mas nunca o
contrário; isto é, para o recuo.

195
Bjarke Rink

não usar ‘força’ ou causar ‘dor’ ao cavalo. Já vimos que a punição física
aciona o cérebro do animal que então poderá reagir com corcoveios, apru-
madas, disparadas ou outras reações negativas – um espetáculo fantástico
num rodeio, mas lamentável durante uma prova de equitação. É claro que
o cavaleiro ‘xucro’, do tipo “machão”, vai recomendar, para os casos da
rebeldia do animal, a velha receita de Grisone: uma boa surra de chico-
te para ‘exorcizar o diabo da desobediência do corpo do cavalo’ – o que,
para uma preparação rudimentar e de baixa tecnologia do animal, pode
até funcionar. O cavalo surrado e intimidado poderá tentar obedecer aos
desejos do seu “senhor”, mas nem esse cavalo nem esse cavaleiro37 poderão
se credenciar para uma equitação superior, a matéria que estamos tratan-
do aqui. Lembremos o que escreveu Xenofonte há 2.400 anos: “O que o
cavalo faz sob coação é feito sem compreensão, e não há beleza nisto”. Na
equitação clássica, que é um esporte de público e de mídia, a harmonia e a
beleza da apresentação são fundamentais.
Para administrar a cadeia de reflexos automatizados do cavalo, o ca-
valeiro, ao montar, deve acionar o seu código de comandos com toques,
dicas e sutis movimentos corporais que imitam os andamentos do cavalo
e que nunca cessam, enquanto o cavaleiro e o cavalo estiverem em mo-
vimento. Esta ação é comparável a um pianista que se lança de corpo e
alma em sua música alternando, repetindo e superpondo as notas musi-
cais numa cascata de toques suaves nas teclas. Mais do que as mãos, ele
usará na execução da sua música todos os sentidos que possui. Vou dar
um exemplo: ao montar e se posicionar na sela, o cavaleiro provoca o pri-
meiro elo da cadeia de reflexos automatizados do cavalo quando o animal
dorsiflexa, o que inicia uma série de contrações musculares que firmam as
suas pernas e o predispõe para a ação. O cavaleiro então faz uma pressão
com as pernas, indicando o cavalo para tomar o passo. Mais uma leve
pressão inicia o trote ou a marcha. Para tomar o galope, o cavaleiro rea-
liza uma combinação de movimentos: nova pressão das pernas, um leve
deslocar do corpo para frente indicando o aumento da velocidade, um
discreto recolhimento das rédeas para se conectar com a boca do cavalo –
e o animal (adestrado desta forma) tomará o galope. Você agora direciona
o cavalo, com uma leve pressão da perna direita, em direção a uma baliza
a sua esquerda; quando a baliza estiver na altura da sua perna esquerda, o
A origem da palavra portuguesa ‘peão’ vem do substantivo ‘pé’, acrescido do sufixo ‘ão’; ou seja,
37

o peão era um empregado de fazenda que não sabia ou não estava autorizado a montar a cavalo
e lidava com o gado bovino e equino a pé. No Brasil, por alguma razão misteriosa, peão virou
sinônimo de cavaleiro.

196
Parte II Em Busca do Centauro

seu corpo se desloca sutilmente para este lado, e a perna e a rédea direita
pressionam levemente o costado e o pescoço, e o cavalo (adestrado desta
maneira) fará a curva para a esquerda com equilíbrio e naturalidade. As
pressões de pernas e os toques de calcanhar são tão sutis que não serão
notados pela platéia. Visualmente, deve parecer que o cavalo comanda a
ação.
Na equitação simbiótica de alta sensibilidade, as rédeas servem basi-
camente para flexionar e administrar a velocidade do animal e, sobretudo,
para estabelecer uma conexão de entendimento neural entre as mãos do
cavaleiro e a boca do seu cavalo. O que faz a boa equitação não é a boa
mão, mas o bom cérebro do cavaleiro: as mãos apenas obedecem. (Veja o
capítulo Embocadura, a Conexão Cerebral.) As pernas do cavaleiro geram
a impulsão e fazem as mudanças de direção, ou melhor, você solicita a
energia da equitação ao cavalo com as pernas e administra a impulsão
gerada com as mãos.
Mas, lembra Dr. Rooney: “Não é possível ensinar novos movimentos
para o cavalo; só é possível se utilizar o repertório de reflexos já existente e
para a qual a vida natural do cavalo foi programada”. Entretanto, dominar
e executar todas as combinações reflexas possíveis da motricidade equina
possibilitadas pelas mudanças de direção e velocidade é uma arte com-
plexa que dispensa inovações. “Leva mais tempo para se formar um bom
equitador do que formar um bom médico”, lembra Gabby Hayes.
Podemos definir o grande equitador do futuro como tendo a vocação
de Antoine de Pluvinel somada aos conhecimentos de psicologia e fisiolo-
gia humana e equina que estão à disposição do cavaleiro moderno.

No código da comunicação escrita – o alfabeto, as palavras, a sintaxe


e os recursos linguísticos – devem ser utilizados de modo que dêem
clareza à leitura. No código de comando da equitação, o cavaleiro deve
igualmente buscar a clareza dos seus comandos para que estes possam ser
decodificados automaticamente pelo cavalo. Para isto acontecer, é preciso
compreender como os comandos atuam sobre o sistema nervoso do cavalo
durante a equitação. Se a clareza é a cortesia do autor para os seus leitores,
a clareza dos comandos da equitação é a cortesia do cavaleiro para o seu
cavalo.

197
Bjarke Rink

CAPÍTULO 41

A Fusão do Homem com o Cavalo

Os antigos Gregos representavam o Centauro como um homem com


o corpo de cavalo. Mas os gregos antigos não possuíam os conhecimentos
científicos para mergulharem nas profundezas do cérebro humano, com os
seus bilhões de neurônios interligados através do sistema nervoso, todas as
partes do organismo, e compreender que o Centauro de fato existiu. Vislum-
brar a sinergia cooperativa do cérebro humano e equino funcionando como
um circuito integrado de sentidos, que permite a perfeita coordenação dos
movimentos equestres, foi uma aventura do intelecto, muito além da ciência
de Aristóteles. Com o avanço da ciência e a interação de todas as disciplinas
criando novas frentes de pesquisas, podemos começar a enxergar a contri-
buição da ciência do século 20 para os Centauros do Terceiro Milênio.
Quando, há alguns milhares de anos, a primeira pessoa sentou no
dorso de um cavalo com a intenção de dirigir os seus movimentos e caval-
gá-lo, foi invadida a fronteira entre o interior e o mundo exterior do ani-
mal – o seu espaço extrapele. Com o homem se colocando em cima e aci-
ma do animal, e assumindo uma posição de liderança, o mundo privado
do cavalo e o seu senso natural de hierarquia foram para sempre alterados.
Os cavaleiros nômades da Ásia Central iniciaram, intuitivamente, um
processo de fusão neurofisiológica que lhes permitiu realizar a coordena-
ção sensitivo-motora entre eles e o cavalo. Esta interação neurológica já

198
Parte II Em Busca do Centauro

pode ser compreendida com a ajuda da neurofisiologia, da biomecânica,


da bioquímica, da cinesiologia, da psicologia, e da aprendizagem motora
– disciplinas desenvolvidas pela ciência ainda no século 20.
A fusão sensitivo-motora do Homem-cavalo começa com a união
dos centros de gravidade dos dois corpos, para que eles adquiram equilí-
brio total em todos os movimentos e ações da equitação. Na Grécia antiga,
vê-se nas figuras pintadas em vasos e esculturas em baixo relevo os cava-
leiros sentados muito atrás do centro de gravidade do cavalo. Nas pinturas
de Goya, pintor contemporâneo de François Robichon de la Guérinière,
percebe-se nitidamente que, na impossibilidade de encontrar um centro
de gravidade comum, os cavaleiros reuniam os cavalos exageradamente,
trazendo o animal para o centro de gravidade do cavaleiro! Os antigos
nômades da Ásia Central e os índios norte-americanos (provavelmente
por não possuírem uma tradução do École de Cavalerie, o manual de equi-
tação clássica escrito por la Guérinière), lançavam-se por cima do pescoço
do cavalo, unindo, por instinto, o seu centro de gravidade com o do cavalo
durante o galope. No século 20, foi o jóquei americano Tod Sloane que
iniciou esta prática, para a surpresa e o escândalo da comunidade con-
servadora. Caprilli, como já vimos, colocou-se no eixo de equilíbrio do
cavalo e eliminou inteiramente qualquer grau de reunião para, segundo
dizia, não impedir a impulsão do cavalo para frente.
A mais complexa etapa da fusão do Homo-caballus é uma perfeita
coordenação sensitivo-motora entre cavalo e cavaleiro, que já pode ser ex-
plicada com os conhecimentos fisiológicos e psicológicos adquiridos pela
ciência contemporânea. Isto nos permite vislumbrar a possibilidade de
avançar ainda mais na compreensão da neurofisiologia da equitação, ao
entendermos o funcionamento do sistema de percepção auditiva, visual e
tátil do cavalo, e combiná-lo com o nosso, ganhando, nesta coordenação,
uma ação equestre de grande precisão. Compreendendo o sistema nervo-
so do cavalo, organizado em circuitos nervosos ‘receptores’ e ‘emissores’,
podemos ajustar este mecanismo com o nosso para melhor nos integrar
na ação equestre. O homem que já havia, há séculos, dominado o nível
físico-químico do cavalo, que dava ao animal aspecto de “máquina”, pode
agora compreender o nível da psique, no qual o processo neurológico do
animal se une para formar uma criatura pensante e perceptiva.38 Nesta

A equitação de baixa tecnologia pode ser considerada uma agressão ao cavalo. A equitação de
38

alta tecnologia deve ser entendida como uma reorganização técnica de uma parte da vida do
cavalo para fins esportivos, sem prejuízos psicológicos e físicos para o animal.

199
Bjarke Rink

etapa da união sensitivo-motora homem-cavalo, não estamos somente


compreendendo como funciona o sistema nervoso do cavalo, estamos in-
terligando o funcionamento das nossas sinapses e impulsos nervosos com
as dele, e nos transformando em um único ‘ser galopante’. A unificação
do sistema neurofisiológico do cavaleiro e do cavalo permite que ambos
atuem com movimentos cooperados e objetivos alinhados, evitando a re-
jeição do cavaleiro pelo cavalo como se o primeiro fosse um ‘corpo estra-
nho’ encravado no dorso do segundo.
Com esta nova compreensão do fenômeno equitação, finalmente, es-
tarão conectados os sistemas neurológicos do conjunto, do ponto de vista
do significado funcional da equitação, e completando, assim, o relaciona-
mento do homem e do cavalo, visando a formação de um novo e poderoso
superorganismo, o Homo-caballus ou o Centauro, como os gregos chama-
vam o animal mitológico.
E acredite-me – todo bom cavaleiro é, na verdade, um paradoxo para
o cavalo. Em alguns momentos ele é indistinto do próprio cavalo e, em ou-
tros, ele é um líder que sabe tomar decisões e resolver problemas. Durante
uma prova de equitação, as ‘ajudas’ do cavaleiro e as respostas do cavalo
trafegam, entre os parceiros, em milésimos de segundo – as correções de
velocidade e direção de uma ação imperfeita ocorrerão em centésimos de
segundo. O cérebro racional do cavaleiro administra o percurso da prova,
a sequência de obstáculos, as complexidades das figuras, ou o percurso da
bola de pólo, as mudanças de velocidade e direção – tudo o que ocorrer
até o décimo de segundo. A partir daí – nas frações de centésimos de se-
gundo – a mente racional do cavaleiro perde a capacidade de processar as
informações e a sua mente emocional, conectada com a mente emocional
do cavalo, estará atuando, por meio de reflexos ‘automatizados’ consolida-
dos durante os treinamentos. No espaço de centésimo de segundo, todos
os movimentos serão automatizados – com ações tão rápidas que o olho
humano não perceberá os detalhes da execução.
Durante momentos cruciais da equitação, o comando se origina no
cérebro do cavaleiro e percorre as suas fibras nervosas até os nervos mo-
tores de todas as partes do seu corpo que deverão efetuar os movimentos
reflexos de cada ‘sequência de comandos’ – através do tensionamento e
deslocamento do corpo e o sutil uso de pernas e mãos que estarão atuan-
do em cooperação com os membros do cavalo. Esta linguagem corporal é
captada pelos nervos sensores do cavalo – na superfície da pele e no inte-
rior da boca – e são enviadas pelas fibras nervosas até o seu cerebelo, que

200
Parte II Em Busca do Centauro

desencadeia respostas reflexas para todas as partes do corpo que precisam


executar as ações solicitadas pelo cavaleiro. As dezenas de metros de fi-
bras nervosas são percorridas pelos impulsos nervosos do Centauro na
velocidade de 106,68 metros por segundo. Os comandos do cavaleiro são
percebidos pelo cavalo, e traduzidos em ação, em milésimos de segundo.
As ações executadas com perfeição dão vantagens de centésimos de se-
gundo quando a prova equestre é disputada contra o relógio, e vantagens
em centímetros quando é uma prova de velocidade. O cavalo equitado
com técnica e sutileza não tem condições de identificar se a origem dos
comandos parte do seu próprio sistema nervoso. O Centauro é, sem dúvi-
da, um ser de grande complexidade neurológica.

O cavaleiro atua na fronteira dos sentidos onde as suas ‘ajudas’ se


transformam nos movimentos do cavalo. Os grandes mestres equitadores
do passado sabiam como fazê-lo, mas não sabiam porque os seus métodos
davam certos. E, por falta de conhecimentos científicos, cada geração
produziu pouquíssimos bons cavaleiros. Não havia paradigmas para serem
observados. A ignorância, o preconceito e o charlatanismo produziram
axiomas que confundiam mais do que esclareciam. Cada pessoa tinha de
descobrir, sozinha, o caminho das pedras, e nesse processo empírico só os
gênios conseguiam atravessar o rio – o restante dava com os burros n’água
e, antes de afundar, estragavam irremediavelmente os seus cavalos. Mas,
nos últimos 100 anos tudo isso poderia ter sido evitado se dois importantes
personagens da história tivessem se encontrado.

201
Bjarke Rink

CAPÍTULO 42

Sobre Dr. Pavlov e General L’Hotte

Os últimos anos do século 19 podem ser considerados o clímax da cultura


equestre ocidental. O mundo tinha entrado na era da energia elétrica, do aço
e do telégrafo, e vivia um turbulento ‘romance com a produção em massa’. E,
como já vimos, a equitação acadêmica estava no auge do seu prestígio inter-
nacional e alguns dos melhores cavaleiros da Europa comandavam as escolas
de Saumur, Pinnerollo, Weedon e a Escola Espanhola de Viena. Nesta época,
duas personalidades trabalhavam – um com pesquisas fisiológicas e o outro
com adestramento de cavalos – sem se darem conta da relação intrínseca que
havia entre as duas atividades. É tentador imaginar um encontro entre o Dr.
Ivan Petrovitch Pavlov e o General Alexis François L’Hotte e o resultado que
uma conversa entre o doutor e o general teria tido para a equitação contem-
porânea.
Em 1897, em Londres, 50 mil cavaleiros imperiais, a maioria de Hus-
sardos das Cavalarias Pesadas e Ligeiras, vindas de todas as partes do Im-
pério Britânico, homenagearam o Jubileu de Diamante da Rainha Vitória
– os 60 anos de seu reinado – com o maior desfile militar já realizado
em tempo de paz na Inglaterra e, provavelmente, no mundo. A parada
foi liderada por Lorde Roberts de Kandahar, montado no seu belo corcel
Vonovel, e seguido pelas brigadas da Grã-Bretanha e da Cavalaria de Nova
Gales do Sul, os esquadrões de Hussardos do Canadá, os Carabineiros de

202
Parte II Em Busca do Centauro

Natal, os Oficiais do Serviço Imperial da Índia, a polícia montada de Hong


Kong, tropas Hausas de Niger e Costa do Ouro, a cavalaria da Turquia e
da Índia, um esquadrão de Dykas do Bornéu, e um esquadrão de cavalaria
Cipriota. Colunas de cavaleiros magnificamente engalanados desfilaram
por Fleet Street durante todo o dia a caminho da Catedral de Saint Paul.
Talvez nunca, no ocidente, o cavalo tenha sido tão importante para o bri-
lho, a pompa e a circunstância de uma grande potência mundial.
O que mais intriga é que, num mundo povoado por cavalos em altíssimo
nível de adestramento e treinados por grandes mestres da equitação como o
próprio general L’Hotte, o Dr. Pavlov tenha usado cachorros (mesmo que por
acaso) para comprovar a sua mais famosa teoria. Isto só pode ter ocorrido
porque ele, o Dr. Pavlov, não enxergava na equitação acadêmica o que ela
realmente é: uma sofisticadíssima organização do sistema reflexo natural do
cavalo em reflexos automatizados para a equitação, realizada por verdadeiros
artistas do adestramento acadêmico. Por outro lado, é surpreendente que o
General L’Hotte também não tenha relacionado o seu trabalho de adestra-
mento com o trabalho de pesquisa do Dr. Pavlov. Homem culto que era o
general L’Hotte provavelmente acompanhava pela imprensa francesa a divul-
gação das principais notícias do mundo. Principalmente experimentos da im-
portância das do Dr. Pavlov, que acabaram merecendo a maior homenagem
da comunidade científica – o Prêmio Nobel de Medicina.

203
Bjarke Rink

O que prova, mais uma vez, que o homem e o cavalo vivem numa socie-
dade fechada – um mundo esotérico, talvez. Vejamos o que diz o dicionário
Aurélio: ‘Esotérico: Adj. Todo ensinamento ministrado a círculo restrito e
fechado de ouvintes. Diz-se aos ensinamentos ligados ao ocultismo. Com-
preensivo apenas para poucos; obscuro, hermético’. Perfeito, é isso! O homem
e o cavalo vivem num mundo esotérico. A comunidade equestre é marcada
por seu caráter fechado. Ela ainda guarda um toque de ‘magia’ e ‘ocultismo’,
matéria só para os iniciados. É obscuro, hermético e compreensível só para
poucos. O Dr. Pavlov, em seu laboratório, não associava o magnífico e mito-
lógico cavalo com seus experimentos fisiológicos com cachorros, e L’Hotte
não percebera nenhuma relação entre as pesquisas realizadas com simples
cachorros e os cavalos que ele adestrava em reprises de alta escola em Saumur,
e que seu professor e amigo Baucher apresentava nos circos-manèges de Paris.
Ficamos nós, agora, a imaginar o salto que a equitação acadêmica
poderia ter dado se, por uma feliz coincidência, o Dr. Pavlov e o General
L’Hotte tivessem se encontrado no Jubileu da Rainha Vitória e trocado
algumas idéias sobre o trabalho que ambos faziam. Imagine se os dois
tivessem sido apresentados por um amigo comum e iniciado o seguinte
diálogo: “Dr. Pavlov?”, exclama o general – “Prazer em conhecê-lo, Gene-
ral L’Hotte!”, responde o doutor. Depois de ambos expressarem a sua sa-
tisfação em terem sido apresentados diz o general francês: “Dr. Pavlov, eu
li nos jornais, recentemente, sobre as suas maravilhosas experiências com
cães – o senhor vê alguma relação entre esse trabalho com cachorros e o
adestramento de cavalos como nós cavaleiros fazemos em Saumur, Wee-
don e Saugur, os trabalhos em duas pistas, o piaffer, o passage e a pirue-
ta?”... Como nos Contos de Aladim, o General possuía o mapa do tesouro
e o Doutor tinha a chave do cofre. O General L’Hotte sabia como adestrar
cavalos e o Dr. Pavlov estava começando a entender porque os animais
– e o cavalo – ficavam adestrados! Mas, infelizmente, este encontro não
aconteceu. E nós levamos mais 100 anos para começar a compreender o
maravilhoso mundo interno, quando o sistema nervoso humano e equino
entra em cadeia de cooperação... o enigmático processo de centaurização.

Mesmo que os dois eminentes professores de equitação e de fisiologia


tenham estado em St. Paul no dia 22 de junho de 1897, como tantos
outros milhares de notáveis convidados de todo o mundo, eles não se
encontraram, não conversaram e a equitação acadêmica continuou a viver
num mundo pré-científico por mais um século.

204
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 43

Sobre Equitação e Liderança

A boa equitação é, sobretudo, um exercício de liderança. E a liderança,


como tudo na vida, pode ser exercida de maneira inteligente ou de maneira
estúpida. É inteligente quando atinge um alto nível de satisfação e realização
tanto para o líder quanto para o liderado, e é estúpida quando a liderança
serve apenas para a satisfação pessoal do líder e para a sua consequente
e inevitável queda do poder. A qualidade de equitação de um povo esteve
sempre vinculada ao seu desenvolvimento cultural, e o nível de equitação
atingida por uma pessoa reflete inequivocamente o seu preparo para o exer-
cício do poder. A equitação é uma metáfora da vida – e o tombo do cavalo
e a queda do poder estão diretamente ligados à incompetência no exercício
da liderança.
Há milhares de anos os nossos antepassados começaram a organizar
sistemas de cooperação através dos quais foram capazes de organizar me-
lhor as tarefas de coletar, caçar e defender o grupo, atividades vitais para
a sobrevivência de todos. Em cada bando de hominídeos havia uma hie-
rarquia, sendo que os machos e as fêmeas dominantes tomavam decisões
acerca da formação de grupos para a coleta de alimentos, a captura de
animais e a defesa contra as ameaças externas. Os cavalos selvagens, pela
mesma razão, formam hierarquias e cada animal cumpre a sua função de
acordo com o seu lugar na ordem social. O macho dominante é responsá-

205
Bjarke Rink

vel pela fertilização das éguas e as fêmeas dominantes cuidam da ordem


interna do grupo – isto é, elas colocam animais com comportamento anti-
-social no seu devido lugar e determinam quem vai beber primeiro em
bebedouros apertados e quem vai pastar nos melhores espaços do campo,
além de cuidar dos seus próprios filhos.
Quando um homem e um cavalo, vindos de duas organizações so-
ciais com estruturas básicas semelhantes, mas com sistemas de comunica-
ção diferentes, se unem para formar um conjunto equestre, os elementos
mais importantes para o sucesso deste empreendimento é a capacidade do
homem compreender quais são os seus deveres e limites na equitação. Em
outras palavras: para o cavaleiro fazer o cavalo se integrar às suas propos-
tas esportivas, é importante ele entender os princípios que regem a hierar-
quia equina. Considerando que não existem indivíduos iguais na nature-
za, – todo ser é ‘único’, e por isso é impossível haver igualdade – alguém
precisa assumir o comando. O homem, apesar da sua natural inclinação
para a demagogia, também sabe que não existe igualdade no exercício do
poder. Por esta razão, ele inventou a palavra ‘monarquia’ para denominar
o governo exercido somente por uma pessoa e ‘triunvirato’ para o caso de
três indivíduos dividirem o poder. Mas não existe um nome para definir
o poder exercido igualmente por duas pessoas, porque isto é uma impos-
sibilidade política. Portanto, o primeiro passo para um cavaleiro obter
sucesso esportivo é assumir a liderança do conjunto – seja o seu parceiro
um garanhão, égua ou cavalo castrado. Diante de uma liderança firme,
justa, leal, e que também traga satisfação para o liderado, qualquer cavalo
normal se submeterá à liderança do cavaleiro na hierarquia da equitação.
Mas, é aí que mora o perigo. O exercício da liderança pode estimular o
‘melhor’ e o ‘pior’ do caráter humano, como você já deve ter notado. Agora
os cientistas sociais estudam como a nossa natureza reage ao exercício do
poder e já começam a entender como isto determina o sucesso ou o insu-
cesso de uma liderança.
Os conceitos básicos de liderança servem tanto para governar uma
nação quanto para administrar uma empresa ou para se equitar um cava-
lo. Se um animal for submetido a uma equitação tirânica, ele poderá ser
levado ao desespero ou à rebeldia, principalmente se o seu temperamento
e índole o qualifica para ocupar um posto alto na hierarquia equina. Se, ao
contrário, ele for submetido a uma equitação sem liderança, procurará as-
sumir o governo das rédeas, mesmo que o seu lugar natural na hierarquia
equina seja de baixo nível.

206
Parte II Em Busca do Centauro

Assumir uma liderança ou se submeter a uma posição subalterna no


grupo é, para o cavalo, natural e necessário – porque é dessa maneira que
ele sobrevive como espécie há milhões de anos.
À exceção das antigas culturas equestres dos nômades da Ásia Cen-
tral, que se desenvolveram num meio ambiente natural que dificilmente
poderá ser repetido no mundo de hoje, os cavalos raramente foram lide-
rados com compreensão e justiça. Na máquina econômica e militar do
ocidente, o animal foi utilizado e manejado como um escravo, por pes-
soas, de um modo geral, desqualificadas para esta importante responsa-
bilidade. Na Inglaterra, no século 19, acreditava-se que os trabalhadores
braçais fossem incapazes de desenvolver uma boa equitação por terem
perdido a ‘sensibilidade’ das mãos, calejadas pelo trabalho. Isto é apenas
mais um equívoco do ‘velho mundo do cavalo’. Algumas pessoas realmen-
te não conseguem atingir um bom nível de equitação – mas não por terem
excesso de calos nas mãos, apenas por falta de uma educação que poderia,
também, ter lhes dado um posto mais alto na hierarquia humana (o que
lhes pouparia os calos na mão).
Para ganharmos maior compreensão sobre o conceito de liderança na
equitação, convém fazermos uma breve análise do que esta palavra signifi-
ca na vida real. Vejamos: exercer uma liderança é saber se fazer obedecer e
a forma mais elementar é por meio da repressão e da tirania. Este modelo
de liderança tem sido exercido nas organizações militares há milênios. A
forma repressiva de liderança se consolidou entre nós porque ela é mais
econômica – dispensa muita conversa, sutileza e diplomacia, possibilitan-
do a administração de um grande número de pessoas por um pequeno
número de comandantes. Mas temos, também, exemplos de liderança ca-
rismática vindo dos altos escalões militares. O discurso de Henrique V, da
Inglaterra, para os seus soldados antes da batalha de Agincourt, na qual os
ingleses estavam em desesperada minoria contra os franceses, está entre
os melhores exemplos de liderança já registrados. Disse o rei dos ingleses:
“Se nós estamos marcados para morrer somos, em número, o bastante
para fazer falta ao nosso país; e se estamos marcados para viver, quanto
menos formos, maior será o nosso quinhão de glória; deste dia em dian-
te, até o fim do mundo, nós seremos lembrados; nós, os felizes poucos;
nós, um bando de irmãos”. As palavras do monarca ainda são capazes de
emocionar, quatro séculos depois da manhã chuvosa em que elas foram
pronunciadas.39
39
Trechos do discurso de Henrique V, segundo a peça de Shakespeare com este nome..

207
Bjarke Rink

O repressivo sistema militar se consolidou de tal maneira na nossa


sociedade que, até a década de 60 do século 20, serviu de modelo admi-
nistrativo para grandes empresas americanas e européias. E, há séculos,
o nosso relacionamento com o cavalo e as técnicas de doma e equitação
também foram exercidas com os critérios disciplinares repressivos copia-
dos do exército. E deu no que deu.
O cavalo atleta tem necessidades básicas, tanto fisiológicas quanto
psicológicas, que precisam ser satisfeitas para que ele atinja um alto nível
de desempenho. A forma mais eficiente de liderança, e a melhor para se
lidar com a natureza do animal, é a liderança esportiva onde o carisma e
a capacidade de inspirar os atletas é a alma do sucesso. Aquele décimo de
segundo a menos na corrida, aquele centímetro a mais na vertical do salto,
aquela manobra radical no pólo e o toque extra de precisão no Adestra-
mento são impossíveis de se obter por meio de coação – como já explicou
Xenofonte há mais de 2 mil anos. Aquele ‘algo mais’ que determina as
vitórias surge da absoluta cumplicidade entre cavaleiro e cavalo, quando
estes fundem as suas qualidades fisiológicas para se tornarem uma só for-
ça avassaladora na conquista dos seus objetivos.
A decisão de se tornar cavaleiro envolve, mais do que tudo, assumir
uma liderança inteligente capaz de motivar o cavalo, desenvolver a voca-
ção atlética do animal; reconhecer os seus limites psicológicos e físicos, e
encontrar soluções que favoreçam o desempenho do animal. Não é por
acaso que a liderança e a equitação estão associadas ao progresso indivi-
dual e social da humanidade desde que os primeiros bandos de guerreiros
nômades da Ásia Central compreenderam que, com o cavalo e a equita-
ção, eles tinham descoberto a chave para conquistar o mundo.

A sensibilidade de desenvolver uma liderança inteligente, de assumir


responsabilidades, de resolver problemas, de reconhecer o erro e tentar de
novo, está na base do sucesso – qualquer tipo de sucesso. Por sua natureza
biológica, a equitação é uma metáfora da vida, e está intimamente ligada
à capacidade de uma pessoa assumir uma liderança, da sua capacidade
de compreender, motivar, inspirar e encontrar soluções para o bom
desempenho de outros. Por isso, a queda do poder e a queda de um cavalo
estão ligadas ao exercício da liderança e à arte do bem conviver. Existe
mais por trás das palavras ‘cavalheirismo’ e ‘nobreza’ do que se possa
imaginar.

208
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 44

Sobre Equitação e Atrelagem

Na Antiguidade, o cavalo na Europa era utilizado para puxar carros e


os métodos de equitação europeus foram uma adaptação destas técnicas de
atrelagem. Por esta razão, muitos autores clássicos nos apresentam técnicas
de equitação que, sem dúvida, sobreviveram das antigas práticas de atre-
lagem. Mas é preciso que os cavaleiros modernos compreendam que existe
uma grande diferença entre a equitação de um cavalo e conduzir o animal
numa charrete, e que a mistura destas técnicas terão um resultado negativo
sobre a qualidade final da equitação. Por meio da neurofisiologia da equita-
ção poderemos verificar que as técnicas para se conduzir veículos de tração
devem ser diferentes das utilizadas para montar o cavalo.
Para ganhar uma visão mais precisa do mundo sensorial da equita-
ção, teremos de começar a explorar a fonte dos movimentos do cavalo
– os reflexos incondicionados com os quais o animal reage aos estímulos
externos. A origem dos movimentos, explicam os neurocientistas, são os
reflexos incondicionados com os quais os cavalos (e os humanos) respon-
dem automaticamente a estímulos e desafios ambientais. Portanto, para
compreender os movimentos produzidos pelo homem e pelo cavalo na
equitação precisaremos, primeiro, levar em consideração dois reflexos na-
turais do cavalo que o homem tem utilizado para montar e também para
conduzir carros de tração animal desde o tempo dos carros de guerra dos

209
Bjarke Rink

hititas e da cavalaria mongol.


Portanto, vamos focar a nossa atenção no sistema nervoso do cava-
lo e seus movimentos naturais: para se movimentar em seu território, os
animais desenvolveram um sistema sensitivo-motor que deflagra dois re-
flexos primários: um deles poderemos chamar de ‘reflexo de afastamento’
e o outro, de ‘reflexo de oposição’. A maioria das estratégias de defesa e
ataque de animais e plantas envolve esses dois reflexos. Os espinhos das
plantas e as picadas dos insetos são utilizados para acionar o ‘reflexo do
afastamento’ do animal intruso. Ao ser arranhado por um espinho, ou
picado por um inseto, o invasor aprende a não violar o território alheio. O
‘reflexo de afastamento’ também pode ser acionado por cheiros (gambás),
sons (cascavel), cores (cobras) e atitudes de agressividade, associadas, por
instinto ou experiência, a perigos reais ou imaginários. As chifradas e os
coices de alguns animais, e todas as atitudes e gestos de ameaça que eles
ensaiam antes da luta, servem para provocar o ‘reflexo de afastamento’ do
seu opositor por intimidação ou por combate.
No seu habitat natural, cheiros desagradáveis, sons ameaçadores e
circunstâncias perigosas, que o instinto ou a experiência passada associa
a situações intoleráveis ou potencialmente perigosas, podem provocar o
‘reflexo de afastamento’ do cavalo.
Já o ‘reflexo de oposição’ do cavalo é utilizado, por exemplo, para me-
dir força em lutas corporais, ou para se desembaraçar de algo que lhe tolha
a fuga. Alguns autores chamam esses comportamentos de ‘luta’ ou ‘fuga’
mas, seja qual for a palavra que escolhamos para usar, o fato é que, no ca-
valo, esses reflexos naturais podem ser moldados através do treinamento
para ser utilizado na tração de veículos e para a equitação.
Por meio do ‘reflexo de oposição’, o animal procura superar a força
opositora, aplicando uma força ainda maior. No comportamento dos ca-
valos selvagens, o ‘reflexo de afastamento’ é ativado no momento em que
o animal se torna consciente da presença de um predador e o seu sistema-
-motor automaticamente deflagra o galope. Dois garanhões rivais vão
ostensivamente demonstrar atitudes ameaçadoras, aprumadas selvagens,
relinchos desafiadores, e a intenção desse comportamento é deflagrar o
‘reflexo de afastamento’ do rival... ou então... a luta.
O ‘reflexo de afastamento’ é muito bem desenvolvido nos cavalos de
sangue ‘quente’, de menor porte, e o ‘reflexo de oposição’ é uma caracterís-
tica dos cavalos de sangue ‘frio’, de grande porte e força, que também fez
desses animais os ideais para o trabalho de tração. Por viver em florestas,

210
Parte II Em Busca do Centauro

o grande cavalo europeu teria de romper barreiras de folhagens e outros


impedimentos naturais para fugir de seus predadores, ou então confiar
no seu tamanho para enfrentar o adversário. Por isso, a sua estratégia de
defesa se baseia mais em força do que em velocidade. Neste caso a força
muscular é uma qualidade positiva que ajudou o cavalo selvagem da Eu-
ropa a sobreviver.
O Equus caballus está equipado com estes dois reflexos, os quais o
Homo sapiens administra com o seu código de comandos para atrelagem
ou para a equitação, conforme o caso.
O ‘reflexo de oposição’ é o reflexo natural que está na base da tecno-
logia de atrelagem. Quando o cavalo é atrelado a um coche e sente o peso
do veículo lhe impedir o movimento para frente, ele instintivamente pro-
duz uma força superior para quebrar o impasse. Através de treinamento,
o cavalo aprende a puxar e a fazer manobras laterais entre os varais do
veículo, sempre fazendo uma força de oposição ‘contra’ o fator que impe-
de o seu livre movimento – o veículo. Na técnica de atrelagem, o ‘reflexo
de afastamento’ é apenas provocado pelo cocheiro, quando esse utiliza o
chicote. As longas rédeas servem para conectar as mãos do cocheiro com
a embocadura do cavalo e transmitir os sinais de mudança de direção e
redução de velocidade. O chicote, como já vimos, provoca o afastamento
do cavalo e a embocadura, quando puxada para trás, é o sinal para reduzir
ou interromper a marcha. Na atrelagem, o cocheiro e o cavalo trabalham
distantes um do outro e a técnica não envolve as complexidades da fusão
neurofisiológica da equitação, onde as vibrações musculares do cavalo e
do cavaleiro fazem parte do ‘código de comunicação’. A atrelagem é uma
técnica de comandos essencialmente mecânicos. O cavalo é apenas o mo-
tor de um veículo.
Na equitação, o reflexo mais utilizado é o ‘reflexo de afastamento’, um
reflexo que pode explodir instantaneamente, com a mais sutil provocação.
Este reflexo é naturalmente (ou deveria ser) o mais utilizado na equitação
porque a sua resposta é rápida, e isto convém à maioria das disciplinas
equestres. O reflexo de afastamento provoca o movimento para frente
quando encostamos a perna ou as esporas no cavalo. Como se fossem
espinhos, a espora induz o afastamento do animal. Mas os cavalos velozes
também possuem o reflexo de oposição, e isso acontece quando um ani-
mal se atira violentamente para trás na hora de ser amarrado ou quando
dispara e quanto mais o cavaleiro inexperiente puxa as rédeas para tentar
fazê-lo parar, mais velozmente ele galopa.

211
Bjarke Rink

Ao estudar os novos e velhos manuais de equitação descobri, sur-


preso, que muitos recomendam comandos que estimulam os ‘reflexos de
afastamento’ e outros os ‘reflexos de oposição’ do cavalo. E mais: algumas
escolas ensinavam a estimular o ‘reflexo de oposição’ e outras, o ‘reflexo
de afastamento’ para a mesma ação. Por exemplo, alguns recomendam
que o cavalo se oponha à pressão da perna do cavaleiro com uma pressão
contrária, para se movimentar lateralmente, em vez de ceder e se afastar
da pressão da perna do cavaleiro. Não quero causar polêmica, caso algum
leitor siga essa prática, mas acredito que, num estudo mais profundo para
a padronização de um código universal de comandos da equitação, será
imprescindível que este contra-senso seja examinado. As próprias escolas
clássicas deveriam estudar melhor o uso dos reflexos de oposição na equi-
tação. Eles são, provavelmente, uma herança da prática de atrelagem que
foi a primeira forma que os antigos habitantes da Europa fizeram uso do
cavalo. O uso do reflexo de oposição na equitação está por trás da filosofia
mecanicista da equitação – aquela que transformou o cavalo em puxa-
dor de carro. Com o ‘reflexo de oposição’, o cavalo se opõe ao comando
do cavaleiro em vez de ceder. É possível que uma boa parte da confusão
que ocorre no aprendizado de cavalos e cavaleiros seja ocasionados pelo
uso de dois pesos e duas medidas na organização dos reflexos automati-
zados da equitação do cavalo. Se o cavalo é ensinado a se ‘opor’ às ajudas
do cavaleiro, não é de espantar que tantos cavalos disparam quando são
montados. Eles podem ter aprendido este truque na escola de equitação.
(Veja capítulo A Organização da Equitação em Reflexos Automatizados.)
As ações decorrentes do ‘reflexo de afastamento’ são sempre mais rápidas
do que as dos reflexos de oposição e, por isso, elas me parecem mais indi-
cadas para os esportes equestres modernos, fundamentados na agilidade
de movimentos e na velocidade da ação.

O ‘reflexo de afastamento’ é uma ação de velocidade ‘instantânea’ e o


‘reflexo de oposição’ é uma ação muscular de força ‘aplicada’. A agilidade
e a velocidade são os elementos que buscamos na equitação avançada e o
‘reflexo de afastamento’ é certamente o melhor dos dois reflexos naturais do
cavalo para ser estimulado numa equitação que visa a alta performance.

212
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 45

O Poder do Prazer na Equitação

No passado, o relacionamento do homem com o cavalo foi, sobretudo,


uma história de trabalho e de guerra, atividades que encerram um baixo
índice de prazer para os envolvidos (menos para os ‘workaholics’ e sádicos,
é claro). Nessas circunstâncias, é compreensível que o trato dispensado aos
cavalos e a tecnologia equestre empregada fossem geralmente de baixa qua-
lidade. Dois indivíduos estressados inevitavelmente vão se desentender. Mas
hoje, o cavalo para lazer e esporte deve aprender a ter prazer na equitação,
porque não há praticamente limite no desempenho de um cavalo que gosta
do que faz. Vejamos como, numa equitação de alta tecnologia, o conceito do
prazer é a força que move o bom desempenho do conjunto equestre.
Na Primeira Guerra Mundial, os soldados ingleses diziam que po-
diam pressentir a chegada da cavalaria francesa pelo cheiro... cheiro das
feridas purulentas dos cavalos cansados e malmanejados. “A Inglaterra é
o paraíso das mulheres, o purgatório dos homens e o inferno dos cavalos,”
disse John Florio,40 certa vez. Vejamos agora como na equitação simbióti-
ca o conceito de prazer pode se tornar a força motriz de um desempenho
vencedor.
Além do medo que provoca, o ‘reflexo de afastamento’ – a fuga – e

John Florio (1533-1625): Lexicógrafo nascido em Londres, autor de Uma Perfeita Introdução
40

para as Línguas Inglesa e Italiana.

213
Bjarke Rink

o antagonismo que provoca o ‘reflexo de oposição’ – a luta – existe um


sentimento ainda mais poderoso que ajuda no aprendizado e na formação
de cavalos vencedores: o prazer. Com a emoção do prazer no homem e no
cavalo, uma cadeia de mudanças biológicas, originárias do sistema nervo-
so central, inibe os sentimentos negativos, aumenta a energia e provoca a
diminuição do centro gerador de preocupações. O sentimento do prazer41
da mente emocional do cavalo está na base do aprendizado do animal.
Federico Grisone utilizava o medo para adestrar os seus cavalos. Ini-
ciava os jovens animais com um trabalho de guia onde eram chicotea-
dos em círculos até que o ‘diabo da desobediência fosse exorcizado de
seus corpos’, lembra? Os seus métodos de adestramento davam ênfase em
‘quebrar’ a resistência do animal e recompensar a sua ‘submissão’ com o
cessar dos castigos. Para evitar a brutalidade, o cavalo acabava, com gran-
de estresse, aprendendo a fazer, desajeitadamente (e com muitos animais
inutilizados), o que se desejava deles.
Já o mestre M. de Pluvinel recomenda um procedimento diferente:
“O cavalo deve sentir prazer na equitação, senão o cavaleiro não consegui-
rá fazer nada direito. É importante que a embocadura dê prazer à língua
do cavalo. Temos de procurar o que o cavalo prefere para o seu conforto.
Devemos tomar cuidado para que a embocadura pouse direito nas barras
do animal. A barbela deve se encaixar corretamente no seu lugar. Cuidar
para que a embocadura não belisque o canto da boca do cavalo. Todas essa
coisas devem ser consideradas com critério”, são os sábios conselhos de
Pluvinel para a Sua majestade, o Reizinho Luís XIII, lembra? Quando M.
de Pluvinel adotou, de fato, os métodos racionais de Xenofonte – o aman-
sar em vez de domar – e procurou dar ‘prazer’ ao trabalho de treinamento
do animal, os seus cavalos se tornaram tão eficientes que provocaram o
deslocamento do centro de excelência equestre da Itália para a França (o
que, no mundo de hoje, seria como deslocar a vanguarda da informática
da Califórnia para Kyoto). O poder do prazer na equitação é reconhecido
por todos os grandes cavaleiros há séculos.
O prazer e o conforto são condições de trabalho plenamente confir-
mados pela neurociência do nosso tempo. A equitação de alta sensibilida-
de é também uma equitação conduzida a partir do sentimento do prazer
produzido pela mente emocional do cavalo e do cavaleiro. Para começar,

O prazer é um sentimento tão importante que ele é responsável pela manutenção do indivíduo
41

através do apetite alimentar e pela manutenção das espécies através do apetite sexual. É enorme
o poder do prazer na vida de pessoas e cavalos.

214
Parte II Em Busca do Centauro

o conjunto equestre deve ser formado a partir de um sentimento chama-


do empatia: a capacidade dos dois – homem e cavalo – de perceberem as
emoções um do outro, o que gera o prazer de trabalharem juntos. Se um
cavalo não gosta do jeito de ser do cavaleiro, do seu temperamento, ou
índole, da sua atitude agressiva na equitação, da sua forma de conduzir os
exercícios, do próprio relacionamento extratrabalho entre eles, o conjunto
não terá uma boa base emocional para formar uma parceria vencedora.
O adestramento diário de cavalo, para a organização dos reflexos
automatizados interativos, tem de ocorrer num clima de harmonia, que
produza um sentimento de prazer com o que se está fazendo. O mesmo
prazer que o cavaleiro sente por estar montado no seu cavalo deve ser
transferido para o animal que, estimulado com a criatividade da mente
humana, estará executando sequências de ações que, normalmente, ele
não realizaria por conta própria. Isto poderá estimular um fluxo de subs-
tâncias químicas como a endorfina e a dopamina, que alimentará o prazer
da ação do conjunto. O prazer, um senso fisiológico que transmite o sen-
timento de que ‘é assim que as coisas devem ser’, está por traz dos grandes
triunfos das artes e da tecnologia, e as técnicas da equitação são, sem dú-
vida, uma das grandes conquistas humanas. O cavalo, como nós, gosta dos
movimentos, dos exercícios e da velocidade das provas (ele evoluiu em
função de velocidade, lembra?) e pode ser levado a executar sequências de
movimentos complexos – saltos espetaculares e galopes velozes – mobili-
zado pelo puro prazer de estar em ação.
Mas, atenção: só o cavaleiro cuidadoso consegue perceber onde está
o limite entre o prazer da ação e a fadiga do trabalho e a fronteira entre
o prazer de aprender e o estresse das repetições disciplinares. Exercícios
enfadonhos e repetidos, treinamentos prolongados e cansativos, castigos
corporais (que despertam o cérebro e provocam a rebeldia), dores mus-
culares após os exercícios e um clima repressivo de trabalho provocam na
memória emocional do cavalo uma rejeição instintiva à equitação, o que
criará má-vontade e toda sorte de problemas que, no final das contas, são
a defesa do cavalo para preservar a sua integridade física. “Meu objetivo
é trabalhar o cavalo com calma, por pouco tempo, mas sempre”, concluiu
o gênio da arte equestre, M. de Pluvinel, que compreendeu, há séculos, a
força do prazer na aprendizagem. Porque tão pouca gente tem compreen-
dido e utilizado o prazer na equitação é um mistério. Voltaremos a esse
assunto na terceira parte do livro.

215
Bjarke Rink

O prazer é o motor da vida. Um conjunto cavalo-cavaleiro movido


pelo prazer é um adversário imbatível. Se uma sequência de ações do
treinamento for gratificada com um afago ou torrão de açúcar, a mente
emocional do cavalo registra com mais clareza este fato e, nas próximas
oportunidades, vai procurar repetir as ações na sequência que levaram
ao momento prazeroso. E o sentimento do prazer do conjunto pode elevar
a equitação a novos níveis de excelência. Mas, existe ainda um outro
sentimento que vale a pena analisar – a psicologia do jogo e da brincadeira
que, além da empatia e do prazer, é um anseio que sabemos ser comum
ao homem e ao cavalo. Mas será o cavalo capaz de ser mobilizado para
brincar, como nós? Não perca o próximo capítulo.

216
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 46

Equus Ludens
Com a participação involuntária de Johan Huizinga

“Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a desig-
nação (ou melhor, auto intitulou-se) de ‘Homo sapiens’. Com o passar do
tempo, acabamos por compreender que, afinal de contas, não somos tão ra-
cionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século 18 nos fizeram
supor, e passou ser moda designar nossa espécie ‘Homo faber’ (o homem que
fabrica). Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na existência
humana quanto na vida animal, que é tão importante quanto o raciocínio
e a fabricação de objetos que inspiraram a denominação ‘sapiens’: o jogo”.
Johan Huizinga.
Para se entender melhor a natureza do cavalo, e se utilizar todo o
seu potencial em busca de uma equitação mais evoluída, já analisamos
a interação dos reflexos automatizados do cavalo e do cavaleiro, e como
esta sinergia é o resultado dos treinamentos que aperfeiçoam a integra-
ção neurofisiológica do conjunto. Examinamos, também, a inteligência
emocional aplicada à equitação, o valor do sentimento do prazer, e vamos
agora fazer uma análise para procurar, dentro da constituição psicológica
do cavalo, outros elementos da sua inteligência emocional que poderão
nos ajudar a realizar a união psicológica do Centauro. Vamos analisar o
jogo, no seu significado maior, dentro do seu sentido lúdico, e ver como

217
Bjarke Rink

este poderia atuar em relação à equitação de alta performance, segundo os


estudos do filósofo Johan Huizinga.42
“O jogo é fato mais antigo que a própria cultura, pois esta, mesmo
em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade hu-
mana; mas os animais brincam tal qual o homem”, escreveu Huizinga.
Realmente, se olharmos o potrinho brincando com outros companhei-
ros, podemos verificar que, em suas alegres evoluções (onde já podemos
observar todas as ações da equitação, inclusive as figuras mais complexas
do Adestramento e da Alta Escola), estão presentes todos os elementos es-
senciais do jogo humano. Os potrinhos convidam-se uns aos outros para
brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam as regras
que os proíbem de morder ou escoicear o companheiro, pelo menos com
violência. Fingem ficar zangados, murcham as orelhas, ameaçam morder,
dão rabichadas e, o que é mais importante em tudo isso, experimentam
obviamente imenso prazer e divertimento. Essa brincadeira dos potrinhos
constitui uma forma mais simples de jogo. Entre os cavalos adultos em
regime de liberdade, podemos observar verdadeiras competições, às vezes
em grupo, com belas apresentações destinadas a serem vistas pelos outros.
É exibição pura.
“Mesmo em suas formas mais simples, em termos de animal, o jogo
é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico. O jogo
ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma
função que encerra um determinado sentido”, continua Huizinga. O leitor
mais atilado, com certeza, já entendeu onde estou querendo chegar e já
teve o seu ‘insight’. Estou, é claro, raciocinando na perspectiva de uma
profunda compreensão psicológica do homem a respeito do cavalo, pre-
tendendo agora uni-los por mais um laço: o instinto que sabemos que as
duas espécies compartilham – o aspecto lúdico do jogo e da brincadeira.
A equitação esportiva, que não visa a violência militar ou as tarefas
de trabalho escravizantes, pode ser praticada puramente para satisfazer a
necessidade de esporte e de lazer dos participantes, que sabemos ser um
desejo comum das pessoas e animais com boa saúde. A psicologia moder-
na procura determinar a natureza e o significado do jogo, atribuindo-lhe
um lugar no sistema da vida. “Como fenômeno, o jogo ultrapassa a esfera
da vida e é impossível que tenha seu fundamento em qualquer elemento
Johan Huizinga (1872-1945): filósofo e historiador holandês, foi reitor da Universidade de Ley-
42

den. Conhecido por seu trabalho na história da cultura da Idade Média, o seu importante tra-
tado, “O Jogo como Elemento da Cultura”, foi utilizado como argumento desse capítulo Equus
Ludens.

218
Parte II Em Busca do Centauro

racional, pois, nesse caso, limitar-se-ia à humanidade”, argumenta Huizin-


ga. Se os cavalos são capazes de brincar, demonstram que são muito mais
do que seres mecânicos, como imaginava Descartes ou Loeb. Se brincam,
com sentido lúdico, é porque são mais do que simples seres irracionais,
“pois o jogo é irracional, e só pode ser praticado por seres racionais”, afir-
ma Huizinga. O jogo lança sobre nós um feitiço – é fascinante e cativante.
Está cheio de ritmo e harmonia. Produz tensão, equilíbrio, compensação,
contraste, variação, solução, união e desunião – elementos lúdicos que
apelam tanto para a inteligência racional do homem quanto para a inte-
ligência emocional do cavalo. Para associar o jogo à equitação, é preciso,
antes de tudo, lembrar que o jogo é uma atividade voluntária. As crianças
e os animais brincam porque gostam de brincar, e é precisamente em tal
fato que reside a liberdade. Chegamos, assim, à primeira das caracterís-
ticas fundamentais do jogo: o fato de ser livre e de representar a própria
liberdade.
Fica claro que, para se realizar uma fusão de intenções entre o ho-
mem e o cavalo nos esportes equestres, o instinto lúdico deste precisa ser
compreendido, capturado e utilizado por nós. “Em todas as designações
do jogo, o ponto de partida do seu significado parece ser a idéia de mo-
vimento rápido. O jogo é uma ocupação voluntária, exercida dentro de
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, – mas absolutamente obrigatórias – dotado de um fim em
si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão, alegria e de uma
consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”. Assim definido, abran-
gemos tudo aquilo a que chamamos ‘jogo’ entre os animais, as crianças e
os adultos. Os jogos envolvem força, velocidade, destreza e exibições de
habilidades de todo o gênero. “Parece que a categoria do jogo é suscetível
de ser considerada um dos elementos espirituais básicos da vida”, afirma
Johan Huizinga.
Se Huizinga está correto nesta análise, e não há nenhuma razão de
pensarmos o contrário, podemos avaliar os fenômenos descritos e bus-
car a relação destes com os jogos equestres compartilhados pelo conjunto
homem-cavalo. Vejamos: para que a equitação seja entendida como um
‘jogo’ ou ‘brincadeira’ pelo cavalo (que adora movimentos radicais, pois é
assim que ele brinca), o animal precisa sentir liberdade de movimentos.
Todo bom cavaleiro consegue induzir o cavalo a realizar seus passos, to-
mar a direção desejada, imprimir a velocidade necessária, obter harmonia
extrema e destreza completa com ritmo, cadência e com liberdade de mo-

219
Bjarke Rink

vimentos, que são as regras básicas do Adestramento.


Já vimos como os animais convidam-se uns aos outros para brincar,
mediante um certo ritual de atitudes e gestos. O bom equitador saberá dar
ao seu trabalho um clima de jogo mediante um certo ritual de atitudes,
gestos e fala. A duração do tempo de treinamento deve ser rigorosa. O
cavalo só deve trabalhar dentro de um tempo compatível com a sua idade
e condição física – senão o jogo vira jugo. “O jogo é exercido dentro de
regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, com um
fim em si mesmo”, lembra Huizinga.
Se o adestrador treinar o cavalo dentro de um tempo determinado
e com regras absolutamente obrigatórias, num clima de entusiasmo ge-
nuíno, será perfeitamente entendido pelo instinto lúdico do animal. E,
se o treinamento for acompanhado com um sentimento de alegria e uma
consciência de ser diferente da vida cotidiana, o trabalho será bem-su-
cedido e o conjunto poderá se tornar praticamente invencível. (Veja na
terceira parte, ‘Estratégias e Ciclos de Vida no Treinamento de Cavalos’).
Este sentimento de alegria é perfeitamente compreendido pelo cavalo
inteligente que poderá ser levado, por um parceiro hábil, a fazer o jogo da
equitação com prazer e desprendimento. Aliás, todo bom adestrador sabe
disso, mesmo que não tenha formulado os seus pensamentos exatamente
desta maneira.

O equitador que souber cativar o espírito lúdico do cavalo poderá


levá-lo a níveis superiores de excelência equestre. Trabalhando com
o sentimento do ‘prazer’ na organização dos ‘reflexos automatizados
da equitação’ e buscando o espírito lúdico que sabemos existir na base
emocional do cavalo, o bom cavaleiro poderá transformar o seu parceiro
num companheiro de aventuras inigualável e obter resultados esportivos
insuperáveis. Uma meta absolutamente impossível nos esportes que
envolvem bolas, veículos e outras invencionices mecânicas.

220
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 47

Homo Communicator

Movimento é beleza, movimento é comunicação. A estética do movimen-


to é expressa em vários esportes e artes dinâmicas – o balé, as danças moder-
nas, a ginástica rítmica. A intercomunicação de grupos de animais também
permite uma variedade de combinações de movimentos espetaculares como,
por exemplo, o vôo simétrico de aves de migração, a figura artística de uma
revoada de pombos, a perfeita coordenação dos movimentos de um cardume
de peixes e as evoluções a galope de uma manada de cavalos selvagens. Em
todos esses grupos, os animais agem, em seu conjunto, como um só indivíduo,
com movimentos, velocidade e percursos ajustados. É um desafio à percepção
humana como estes animais, às centenas, conseguem atuar com um só padrão
de movimento. A compreensão da coordenação desses espetáculos de agilidade
e precisão faz parte da compreensão do fenômeno equitação.
O grupo segue um líder e imita, em frações de segundo, os seus mo-
vimentos e evoluções. A ação simultânea dos animais é executada por
comunicação visual – o sistema ocular conectado à mente emocional do
líder, de reflexo imediato, coordena, em milésimos de segundo, os seus
movimentos, e a ação se reflete instantaneamente para todo o grupo. Esta
comunicação é facilitada por ser intra-espécie – isto é, os participantes da
coreografia têm, todos, o mesmo padrão cerebral, a mesma morfologia,
repertório de movimentos e código de comunicação idêntico.

221
Bjarke Rink

Na harmonia dos movimentos entre humanos, existe também espetá-


culos com atuação sinergética, onde grupos realizam movimentos coorde-
nados. A parada militar, a esquadrilha da fumaça, o show musical e a or-
questra sinfônica. Ou quando um par de bailarinos realiza um pás de deux,
um casal de patinadores faz acrobacias no gelo, dois músicos improvisam
um dueto de jazz, ou repentistas nordestinos se desafiam na viola, temos in-
divíduos de uma mesma espécie executando, em frações de segundo, ações
sinergéticas auditivas e visuais, altamente coordenadas e harmoniosas.
O que faz da equitação um esporte único e extraordinário para os olhos
é a perfeição da interação cavalo-cavaleiro que, sendo membros de espécies
diferentes, com estruturas neurológicas, morfológicas, repertório de ações re-
flexas e sistemas de comunicação diversos, conseguem se comunicar e atuar
como um só. O que permite essa sinergia inédita entre essas duas espécies,
aparentemente tão diferentes? São, naturalmente, as suas coincidências bioló-
gicas. Além da semelhança da inteligência emocional, do sentimento lúdico,
do prazer do homem e do cavalo, o Homo faber é um comunicador compul-
sivo, como define David Attenborough, em seu livro Vida na Terra.
O Homo sapiens, ou communicator,43 desenvolveu um repertório in-
finito de sistemas de comunicação que vão desde expressões faciais, que
refletem sentimentos de entusiasmo, desgosto, nojo, encanto, amor, ódio,
arrojo, cautela, coragem, medo, interesse, tédio, surpresa, tristeza, paixão,
até expressões de concordância e discordância comunicadas com acenos
de cabeça, combinados com movimentos manuais. A maioria dos gestos
que compõem a nossa linguagem corporal é universal e serão entendidos
por qualquer pessoa, em todo lugar do mundo. Um acenar vertical com a
cabeça é entendido por uma vendedora numa loja japonesa, como sendo
uma concordância com o preço, e um meneio horizontal com a cabeça
para um ‘barman’, num pub londrino, indicará a discordância da marca
do whisky oferecido. E, além disso, temos a linguagem falada, a nossa for-
ma mais eficiente de comunicação. Nos últimos 100 mil anos, desenvolve-
mos muito o nosso sistema de comunicação.
Nas caçadas paleolíticas, gestos sutis entre os participantes comuni-
cavam a posição da presa, e os caçadores combinavam, em silêncio, que
ações deveriam ser tomadas para cercar e abater a caça. Nas aldeias dos
nossos antepassados, a linguagem falada, com palavras definindo situa-
ções e objetos, permitiu melhor a comunicação entre os aldeões. Tambo-

Homo communicator é um neologismo para enfatizar uma das principais características huma-
43

nas: uma capacidade aparentemente infinita de se comunicar.

222
Parte II Em Busca do Centauro

res primitivos transmitiam códigos de som além do perímetro da aldeia.


O código alfabético da linguagem escrita possibilita à geração presente
entender as gerações passadas e de se comunicar com as gerações futuras.
Os cavalos encurtavam o espaço ao diminuir o tempo entre os lugares
mais distantes. Atualmente, ondas de rádio e satélites mandam imagens e
som para todos os cantos do mundo. E, finalmente, com a Internet esta-
mos hoje numa sociedade absolutamente interligada que permite a todos
os conectados o acesso a todas as informações (ou quase). Vivemos, final-
mente, a era da informática para a qual o homem trabalhou incessante-
mente por milhares de anos, desde que inventou o tambor.
A extraordinária capacidade do homem em se comunicar, e a incrí-
vel capacidade do cavalo de entender a sua comunicação estão na raiz da
equitação de alta performance. Quanto melhor a técnica de comunicação
homem-cavalo, melhor a equitação. A nossa linguagem corporal, e a nos-
sa capacidade de engajarmos os sentidos do cavalo e induzi-lo aos jogos
equestres é a nossa contribuição com o desempenho do conjunto. A nossa
técnica de comunicação biológica, o fato de conseguirmos expressar para
um ser de outra espécie – um animal com outro repertório de movimentos,
outras motivações e outro sistema de comunicação – o que desejamos, e
fazê-lo entender, agir e nos imitar em frações de segundo, como os animais
em formação grupal imitam o seu líder, ajuda muito a explicar a excelência
equestre. Como já vimos, o bom equitador consegue assumir uma liderança
e dominar a comunicação interespécies, que é uma das formas de comuni-
cação mais complexas já dominada pelo homem. O bom cavalo tem o dom
de imitar os movimentos e reagir às ‘ajudas’ do seu líder humano em frações
de segundo, e os dois, juntos, têm a capacidade de participar nos jogos mais
complexos já concebidos pela humanidade – os esportes equestres.
Se comparada à velocidade de outras espécies, os homens têm uma
capacidade locomotora bastante limitada. Mas, montados e se comuni-
cando em sintonia fina com o cavalo, a história da humanidade mudou,
literalmente, de figura – passado, presente e futuro.

A capacidade da imitação é um dos fatores básicos do aprendizado animal.


Quando o conjunto cavalo-cavaleiro é capaz de realizar uma sequência de
ações que, se refletida num lago, o cavalo responde aos comandos do cavaleiro
com a mesma velocidade que a imagem a reflete no espelho d’água, podemos
dizer que o Centauro é a espécie mais evoluída da cadeia biológica do planeta
– uma superestrutura biologicamente superior à soma das suas partes.

223
Bjarke Rink

CAPÍTULO 48

A Inteligência
Emocional na Equitação
Com a participação involuntária de Daniel Goleman

O Homo sapiens e o Equus caballus são duas espécies bem-sucedidas de


mamíferos, cujos antepassados conseguiram sobreviver às grandes transfor-
mações do planeta. Na África, em descobertas recentes, foram encontrados,
no mesmo sítio arqueológico, ossos do proto-homem e do protocavalo data-
dos da mesma época – 3,5 milhões de anos. Mas quais os fatores biológicos
que permitiram ao Equus sobreviver, com a mesma competência do Homo,
por todos esses milhões de anos? A resposta está na mente emocional, alta-
mente desenvolvida, que o cavalo possui. A comunicação entre o homem e
o cavalo flui por meio da sintonia possibilitada pela mente emocional que
as duas espécies possuem. A liderança do homem sobre o cavalo se estabe-
leceu através de uma nova forma de inteligência desenvolvida somente pelo
Homem – a mente racional. Entender o funcionamento da mente equina, as
suas semelhanças e diferenças com a mente humana, ajuda a compreender
cientificamente o que está na raiz do bom desempenho equestre.
A sobrevivência de todas as espécies de animais no planeta está dire-
tamente relacionada com a sua capacidade de adaptação às mudanças do
meio ambiente. Esta aptidão para se ajustar a novas realidades é possibili-

224
Parte II Em Busca do Centauro

tada pelas emoções que comandam o sistema nervoso dos mamíferos su-
periores (entre eles, nós e o cavalo). As emoções são muito desenvolvidas
tanto no Homem quanto no Cavalo, e são responsáveis pela capacidade de
ambos agirem, reagirem e sobreviverem às ameaças externas – e também
pela capacidade de se fundirem num conjunto equestre.
A última década do século 20 se notabilizou por um grande avanço
nos estudos das emoções. Hoje, uma nova geração de neurocientistas está
trazendo novidades para mapear o funcionamento do cérebro e desven-
dar mistérios da mente que as gerações anteriores de cientistas achavam
impenetráveis. Descobertas dramáticas foram possibilitadas pelas novas
técnicas eletrônicas de gravação de imagens do cérebro em funcionamen-
to e isso permitiu, pela primeira vez na história da ciência, se observar
como os neurônios trabalham quando pensamos, planejamos, nos emo-
cionamos, dormimos e... ahm, mentimos, sofismamos, trapaceamos, etc.
Agora, sabemos, também, como o cérebro dos mamíferos superiores é
semelhante ao nosso. Se descontarmos o neocórtex, que é mais desen-
volvido no Homo sapiens e lhe permitiu inventar a bomba atômica (que,
convenhamos, não foi uma idéia tão ‘sapiens’ assim), o funcionamento
do cérebro do homem e do cavalo é estruturalmente semelhante, e esta
coincidência neurológica está na base da equitação de alta performance.
“O cérebro do homem é dividido em duas mentes: uma emocional e
outra racional”, explica Daniel Goleman no seu livro A Inteligência Emo-
cional. “A mente emocional44 existe há mais tempo do que a racional. De
um modo geral, a operação da mente emocional alimenta com informa-
ções a mente racional e esta avalia as informações, tornando racionais as
atitudes resultantes. Mesmo assim, a mente emocional e a mente racional
são faculdades semi-independentes que podem, ocasionalmente, entrar
em choque, com a emocional sequestrando a racional”, continua Daniel
Goleman. Quando isto acontece, a pessoa estará cometendo um ato de
impulso ou impensado – como comprar além do limite do seu cartão de
crédito, brigar com alguém por razões fúteis ou maltratar o seu cavalo
durante um treinamento. Xenofonte já dizia: “Nunca se deve lidar com
um cavalo quando se está mal-humorado; num momento infeliz, pode
perder todo o trabalho que se estava fazendo”. O general tinha razão: a ira
é péssima professora.
A mente racional se situa no neocórtex e dá ao homem todas as suas

A mente emocional é também conhecida como mente biológica, antigamente chamada de ‘ins-
44

tinto’.

225
Bjarke Rink

características humanas: o raciocínio abstrato e estratégico, a fala, a me-


galomania, a fofoca, a mentira, o sofisma, e ‘la merde qu’est l’envie’, como
diria Nicolas Sarcozy, em meu lugar. O neocórtex produz o pensamento,
elabora e compreende as informações fornecidas pelos sentidos – olfativo,
gustativo, tátil, auditivo, visual e proprioceptivo. Ele é usado para o pla-
nejamento estratégico a longo prazo, os triunfos da arte e da cultura (para
entender esse texto enrolado), e para dar ao Homem uma certa liderança
na equitação (mas sem a necessidade de interferir incessantemente na atu-
ação do cavalo, como pensavam alguns equitadores do passado, e os atuais
cavaleiros atrasados).
A mente emocional é responsável por grande parte da aprendizagem e
do comportamento dos animais, e permite à égua cuidar do seu potro até a
desmama. A mente emocional e racional da mulher permite-a cuidar do fi-
lho até a desmama, e depois colocá-lo numa escola de equitação para ele ou
ela aprender a montar direito. O nosso repertório emocional, desenvolvido
durante milhões de anos, é grande, e cada emoção é responsável por uma
ação específica. A nossa aprendizagem emocional também permite uma
série de atos executados por reflexos automatizados, entre eles as nossas ca-
deias de reflexos da equitação, como já vimos em capítulo anterior.
Nós, humanos, também desenvolvemos uma tendência dicotômica
para distinguir entre o bem e o mal, o mocinho e o bandido, e Hollywood
frequentemente nos provoca este sentimento em filmes de mistério. Numa
cena de alta carga emocional, o público pode subitamente identificar um
suposto ‘bom moço’ no elenco como o facínora. Através de certos indícios
introduzidos no contexto pelo roteirista, a platéia pode, repentinamente,
desconfiar das mudanças de comportamento que irão transformar uma
pessoa até então aparentemente charmosa num assassino implacável. A
mudança emocional de mocinho para bandido não ocorreu, necessaria-
mente, pela expressão do suspeito, mas foi introduzido na mente dos te-
lespectadores por sutis detalhes no enredo.
Vejamos, agora, como as emoções provocam as reações ou reflexos
incondicionados: com o sentimento da raiva, o sangue flui para as mãos
do homem e para as pernas do cavalo para permitir, ao primeiro, pegar
uma arma e bater no seu inimigo e, ao segundo, dar-lhe [no inimigo] um
coice bem acertado. Em ambos os casos, o batimento cardíaco aumenta e
um fluxo de substâncias neurotransmissoras e hormônios, como a adre-
nalina, gera grande energia para uma ação vigorosa. Com o sentimento
do medo, o sangue flui para os grandes músculos ligados às pernas, faci-

226
Parte II Em Busca do Centauro

litando a fuga do homem ou do cavalo. Circuitos no centro emocional do


cérebro liberam um fluxo de substâncias que deixam o corpo em alerta
geral, e a atenção de todos os sentidos do indivíduo se fixa no objeto da
ameaça para melhor avaliar que curso de ação tomar. Mas, antes de fugir,
o corpo fica imóvel por uma fração de segundo, o que dá chance ao indi-
víduo avaliar se, em vez de correr, a melhor solução não seria a de subir
para o velho endereço – no caso do homem, uma árvore.
Dr. Joseph Doux, um neurocientista (da nova geração) que trabalha
no Centro de Ciências Neurais da Universidade de Nova York, explica
como um órgão, situado na região cerebral, chamado amídala, pode as-
sumir o controle das nossas ações (tanto do homem quanto do cavalo).
“No momento em que o homem [ou o cavalo] se depara com algo que lhe
aparece ameaçador, a amídala deflagra uma mensagem de crise para todas
as partes do cérebro. Quando a amídala soa o alarme do medo, além das
mensagens para o cérebro, ela deflagra os hormônios da luta ou da fuga,
ativa o sistema cardiovascular e muscular; isto, além de descontinuar a
ação que estava em curso, aumenta a pressão sanguínea e diminui a respi-
ração. Outros sentidos fixam a atenção na origem da ameaça e preparam
os músculos para reagir de acordo”. (E tudo que acabei de descrever acon-
tecerá em menos de cinco décimos de segundo).
Como podemos ver, entre os fenômenos que possibilitam o milagre
da equitação, as semelhanças na estrutura cerebral e a possibilidade de
coordenar os reflexos naturais do homem e do cavalo, por intermédio da
inteligência emocional, formam a base para a ação do bom desempenho
equestre. Os grandes mestres do passado não tinham esses conhecimen-
tos. Mas, informações científicas como estas ajudarão os grandes mestres
do futuro a atingirem um nível de equitação jamais sonhado por Guéri-
nière, Baucher ou mesmo L’Hotte. Vamos guardar na mente o que nós
vimos nesta parte do mundo dos Centauros e penetrar novos territórios
da complexa relação simbiótica Homem-cavalo.

A compreensão da mente emocional do cavalo está na base da equitação


de alta performance. Quando todos os movimentos do cavaleiro deflagram
a resposta reflexa correta do cavalo, o conjunto estará conectado por um
fluxo inconsciente de emoções que forma uma parte substancial da ‘cadeia
de reflexos da equitação’. Essa interação das emoções nunca poderia ter
sido desvendada por análise mecânica, já que a equitação não pode ser
ensinada por um glossário mecânico e destituído de emoções.

227
Bjarke Rink

CAPÍTULO 49

Embocadura,
a Conexão Cerebral

Nenhuma embocadura, em nenhuma época da história, teve o poder de


realizar o que os seus inventores preconizaram. Poucas ferramentas foram
alvo de tanta mistificação e julgamentos equivocados quanto os freios e os
bridões do passado, e a sua eficiência foi sempre enormemente exagerada.
Mas uma coisa é certa: O mau uso das embocaduras é o maior responsável
por todos os cavalos imprestáveis que já habitaram e ainda habitam este
planeta. Com o tempo e com o conhecimento científico, as embocaduras se
tornarão mais simples, suaves e inteligentes – e com a ajuda da neurociên-
cia, a sua ação positiva ou capacidade destrutiva poderá ser definitivamente
compreendida.
A questão mais polêmica da equitação sempre foi o critério do uso
das embocaduras. Tipos diferentes de cavalos recomendam tipos diferen-
tes de embocaduras? Trabalhos ou esportes diferentes recomendam o uso
de embocaduras diferentes? Idades diferentes exigem embocaduras dife-
rentes? O cavalo tem de gostar da embocadura? A embocadura deve ser
um meio de indução ou uma ferramenta para a subjugação do cavalo? O
cavalo tem de usar embocadura, ou existiria outro meio para se controlar
o animal?

228
Parte II Em Busca do Centauro

Essas perguntas foram formuladas por todas as gerações de cava-


leiros através da história, cada povo encontrando a sua própria solução,
dependendo do seu estágio de evolução cultural. Quanto mais atrasada
a comunidade, mais cruéis as suas embocaduras. Mas as perguntas mais
importantes vamos fazer agora: qual é realmente o papel da embocadu-
ra na ‘cadeia de reflexos automatizados’ da equitação? Como o cavalo se
relaciona com ela; ou seja, o animal bem adestrado usa-a em seu próprio
benefício? E finalmente, o nível de equitação do cavaleiro poderá influen-
ciar no tipo de embocadura que o seu cavalo deveria usar?
A idéia simplista de que podemos melhorar a equitação de um cavalo
trocando a embocadura por uma mais forte é particularmente obtusa, até
para o Homo faber que tem uma longa lista de invenções idiotas no seu
passado. A filosofia do enfrenamento que nós praticamos hoje sobreviveu
da Idade Média que, como já vimos, teve início com as técnicas de tração
de carros. Como nós já vimos no capítulo “Sobre Equitação e Atrelagem”,
a distância física entre o cavalo e o cocheiro fez com que se desenvolvesse
um sistema de comunicação de via única – do cocheiro para o cavalo: uma
técnica que não funciona bem na equitação. O cocheiro sacode as rédeas,
grita as ordens, bate no cavalo com o chicote e o carro começa a rolar. Mas
o cavaleiro tem de conectar o seu sistema nervoso com o do cavalo e se
comunicar por vibrações musculares para o animal se movimentar. O ca-
valo e o cavaleiro podem se comunicar por meio dos seus próprios movi-
mentos que trafegam nos dois sentidos dos corpos unificados. Utilizando
a ciência moderna, podemos definir a equitação como um sofisticado sis-
tema de intercomunicação, que exige a mobilização de todos os sentidos
do cavalo e do cavaleiro. E, neste caso, não poderá haver dúvida de uma
coisa: poucas vezes, na história da tecnologia, a mente humana galopou
tão longe e na direção errada quanto nas teorias das embocaduras que ofe-
recem soluções mecânicas para resolver problemas emocionais. (Quando
a mente altamente volátil do homem sequestra a sua capacidade de ra-
ciocinar, não tem como prever em que atoleiro intelectual ele acabará se
metendo.) Em termos de irracionalidade absoluta, nenhuma outra idéia,
além da invenção de cigarros, álcool, e óleo de cobra, tem sido defendida
por seus inventores de modo tão equivocado como a filosofia do uso das
embocaduras.
Na Idade Média, os violentos freios com barbela eram utilizados para
dar aos cavaleiros maior domínio sobre o cavalo, já que as suas mãos es-
tavam ocupadas para manejar o escudo, a espada ou a lança, durante as

229
Bjarke Rink

cargas de cavalaria. Mas, você não vai acreditar no que eu vou dizer agora
– na Renascença, quando a equitação ocidental recomeçou de forma sis-
temática, a embocadura começou a ser definida como ‘a chave para a boa
equitação’. Estas ferramentas eram todas do tipo freio, isto é, com barras
rígidas, ou enormes argolas internas, equipadas com rodinhas e até sini-
nhos! As câimbras eram longas para aumentar a alavancagem e produzir
mais dor. O lado direito da barra era frequentemente construído de modo
diferente do lado esquerdo para forçar o cavalo se tornar mais leve nas
viradas para a direita! Descartes deveria ter ficado encantado.
Na Escola Napolitana de Equitação dirigida por Federico Grisone,
contra a lei do mais forte usava-se a lei do mais cruel. Na Europa, até
o século 19, as embocaduras eram usadas como uma ferramenta para a
subjugação do cavalo e hoje, nas culturas equestres mais atrasadas, que

230
Parte II Em Busca do Centauro

ainda praticam a baixa tecnologia equestre, é comum, quando o cavaleiro


não consegue dominar o cavalo, ele passar a usar uma embocadura mais
“pesada”. Isto seria como um mau jogador de futebol, que não consegue
marcar um gol, pedir para trocarem a bola; ou o mau pintor que, ven-
do a lambança que produziu, pede para lhe substituírem o pincel. Uma
embocadura, como qualquer outra ferramenta – serrote, pincel ou bisturi
– não possui competência própria. Ela transmite a habilidade de pessoas
competentes – o resto é ignorância pura, uma doença que, aparentemente,
nunca teve cura. “A embocadura não deve incomodar mais a um cavalo
em treinamento do que uma gravata a um homem no escritório”, ensina
Gabby Hayes.
O pensamento mecânico da equitação, que grassou da Idade Mé-
dia até a atualidade, produziu infinitas variedades de embocaduras, cada
qual com ‘recomendações’ específicas para o seu uso. Uma embocadura
era concebida para realizar uma determinada operação mecânica e re-
solver certos “problemas” do cavalo, como se ela fosse a “chave” para
abrir uma porta. Ainda no século 19, L. Picard, instrutor da Escola de
Saumur, publicou o livro Origines de l’École de Cavalarie et de Ses Tra-
ditions Équestres, que apresenta uma relação de 150 embocaduras di-
ferentes, cada qual com uma ‘recomendação’ específica de uso. Havia
embocaduras indicadas para éguas prenhes, cavalos turcos, puro sangue
inglês, cavalos que ‘disparam’, cavalos que ‘boleiam’, etc. Pensava-se que
cada tipo de cavalo necessitava de uma embocadura própria, que seria
a ‘chave’ para o seu bom desempenho! Isto tudo, para ouvidos afinados
por pesquisas, que começaram com Ivan Pavlov e chegaram a James Ro-
oney, soa como um imenso besteirol; coisa de Casseta e Planeta. Não
é de espantar que tão pouca gente consegue dominar as técnicas mais
avançadas da equitação.
Monsieur de Pluvinel (sempre ele), menciona em seu livro, Le Ma-
neige Royal, o número exagerado de embocaduras usadas em seu tempo,
e declara só usar 12 ou 13 freios em seu trabalho. Mas ele não explica a
diferença funcional de um tipo de freio para o outro.
No século 21, a compreensão do sistema nervoso do cavalo está
modificando radicalmente a concepção do uso das embocaduras. Sua
função, na equitação de alta performance, não é a de “puxar” mecanica-
mente a cabeça do cavalo de um lado para o outro, no momento de fazer
as mudanças de direção, ou para puxar a cabeça do animal para trás na
hora de parar, como fazem os cocheiros. Sabemos, hoje, que a emboca-

231
Bjarke Rink

dura está posicionada num ponto da anatomia do cavalo – a boca – que,


por ter importante função na seleção dos alimentos do animal, reúne
grande número de sensores nervosos. A mão do cavaleiro, como a boca
do cavalo, é um órgão que também possui grande quantidade de termi-
nais nervosos ligados ao cérebro porque, antropologicamente, o homem
faz com as mãos o mesmo trabalho de seleção alimentar que o cavalo faz
com a boca.
Por esta razão, a rédea conectada entre a boca sensível do cavalo e as
mãos sensíveis do cavaleiro é o “fio condutor” que leva e traz informações
sobre o percurso do cérebro humano para o sistema nervoso equino. A
embocadura deverá, no máximo, dar uma leve vantagem mecânica para o
cavaleiro definir a amplitude das passadas do cavalo e determinar o limite
de seus movimentos finos – vantagem que se tornará cada vez menor com
o avanço da fusão neurofisiológica entre o cavaleiro e o cavalo. A rédea
também permite ao cavaleiro sentir o alongar e o reunir do corpo do cava-
lo – para que ele transmita, com pressões exatas nos momentos certos, os
seus comandos de alongamento e reunião em forma de leves contrações
dos dedos; sinais que a embocadura retransmite para o cerebelo do cavalo,
que o decodifica e ajuda a deflagrar automaticamente a ação solicitada, e
que foi automatizada durante os treinamentos. Por essas razões, o cavalo
não deve ser controlado através da alavancagem bruta da embocadura,
porque isto destrói a sensibilidade dos seus terminais nervosos e reduz
a sua capacidade de dar respostas reflexas precisas aos comandos sutis
do cavaleiro. Os comandos do cavaleiro e as respostas automatizadas do
cavalo relampejam, de sistema nervoso a sistema nervoso, no tempo de
centésimo de segundo – as correções de velocidade e direção ocorrerão
em décimos de segundo e as vitórias esportivas ocorrerão com diferenças
de centésimos de segundo.
Então fica claro que a função da embocadura na equitação é lidar
com os movimentos “finos” (mãos hábeis) e movimentos amplos (pernas
humanas) que serão decodificadas pela boca sensível do cavalo. Quando
um caubói executa um corrupio, as pernas provocarão os movimentos
amplos e as mãos definirão o momento de parar, ou seja, o movimento
fino. Quando um equitador de Adestramento Clássico executar um pia-
ffer, a sua pélvis e pernas induzirão a cadeia de ação das pernas do cavalo
e as suas mãos vão manter o cavalo sem avançar, que é o movimento fino
deste tipo de figura.
A embocadura também tem a vantagem prática de ter comando so-

232
Parte II Em Busca do Centauro

bre a estrutura óssea do cavalo. Com seu uso, é possível induzir a flexão
do pescoço do animal e fazê-lo colocar as pernas na posição correta para
dar início a uma cadeia de respostas automatizadas. Ou, em outras pala-
vras, a embocadura pode induzir o cavalo a tomar a posição que os seus
movimentos naturais exigem, que em si já é um “comando” natural para o
cavalo executar os movimentos desejados. O cavalo não deve ser “contro-
lado” apenas com o manejo da embocadura porque, como já vimos, isto
destruiria os terminais nervosos na sua boca e, ao perder esse sentido, o
animal precisará de uma embocadura mais forte, o que dará início a uma
“escalada” em busca de embocaduras cada vez mais “pesadas”.
As rédeas, que ligam as mãos do cavaleiro com a boca do cavalo,
podem ser descritas como o “duto” que pluga a mente humana com o
sistema nervoso do animal para monitorar os seus movimentos e vice-
-versa. As rédeas transmitem as ‘dicas’ sutis do cavaleiro para a embo-
cadura, que as transmite para os receptores nervosos situados na boca
do cavalo, que os decodifica automaticamente e indica os movimentos
automatizados a serem deflagrados e que foram treinados nas sessões de
adestramento.
Agora, a questão que faltava: como é que o cavalo se relaciona com a
embocadura? Ela é, de fato, um meio prático para o cavalo compreender o
limite dos seus movimentos. Pela posição da embocadura, o cavalo pode
antecipar o comprimento de cada ciclo muscular, e é por isso que o ani-
mal bem adestrado procura ‘encostar’ na embocadura acionada por mãos
competentes.

A EMBOCADURA AJUDA O CAVALO A DEFINIR


OS LIMITES DOS SEUS MOVIMENTOS

A embocadura deve ser manuseada com um pensamento na cabe-


ça: o cavalo será automaticamente atraído para a sua ‘zona de conforto,’45
o que significa que, quando o animal está se movimentando na direção
certa com a velocidade certa, ele deverá estar atuando sem a interferência
A psicologia moderna explica como os animais buscam a sua ‘zona de conforto’ em qualquer
45

circunstância da vida. Aplicando esta teoria à equitação, fica claro que o uso de embocaduras
está relacionado exatamente com a busca do conforto do cavalo. Quando o animal está execu-
tando o movimento desejado, na velocidade adequada, a embocadura não deverá estar em ação
e o cavalo precisará estar na sua ‘zona de conforto’. Ela é utilizada para ‘induzir’ o animal ao
movimento desejado e é liberado assim que o movimento estiver sendo cumprido. Quando isso
ocorre, o adestramento do cavalo caminha para o sentido total de liberdade, como você verá no
capítulo Desvendando o Enigma do Centauro.

233
Bjarke Rink

de ajudas de qualquer espécie. Quando a embocadura é acionada para


produzir uma mudança de velocidade ou direção, a pressão deve parar no
momento exato em que o cavalo fez a correção. Ao dar conforto à boca do
cavalo, o cavaleiro vai garantir que o animal tomará a direção correta com
a velocidade certa. O que significa que, neste momento, a embocadura
não exercerá qualquer pressão e acompanhará suavemente o movimento
da cabeça do cavalo. (Aprofundaremos mais esta questão na terceira parte
do livro).
Quando o General L’Hotte, no final do século 19, fez a famosa reprise
de Adestramento, com as rédeas substituídas por um barbante, a platéia
pôde ver que não havia o uso da força na sua equitação. A demonstração
foi, é claro, uma comprovação espetacular dessa realidade neurológica,
antes de se conhecer as razões que possibilitavam o fenômeno neurofi-
siológico da equitação. Os leves toques de mãos, combinados com sutis
pressões de pernas, são captados pelos nervos sensores do animal, levan-
do cavalo e cavaleiro a evoluir na pista como um só. Dois seres neurologi-
camente conectados com um fluxo de informações trafegando, em centé-
simo de segundo, nos dois sentidos, retroalimentando continuamente as
complexas ações de mudanças de velocidade, direção e sustentação dos
andamentos. Mas como saber que tipo de embocadura escolher para o
seu cavalo?
O bridão é a embocadura indicada para iniciar a maioria os cavalos.
Na fase do aprendizado, em que o cavalo ainda se movimenta com dese-
quilíbrio, um freio pode causar danos aos sensores nervosos da sua boca.
Entretanto, o cavalo destinado ao turfe, cross ou o salto clássico, modali-
dades que exigem pouca ‘reunião’ do animal, pode permanecer, depois
da iniciação (doma) e do adestramento, usando o bridão por toda a vida.
Para o Adestramento Clássico, que precisa de grande ‘reunião’ do cavalo,
a combinação simultânea do freio com o bridão tem sido a mais indicada
– bridão para coordenar os movimentos finos e o freio em caso da neces-
sidade de um reforço do comando. Aos cavalos que não toleram qualquer
tipo de embocadura, principalmente durante o adestramento básico, o
uso do ‘hackamore’ costuma resolver este problema. Para o salto e o endu-
ro, duas disciplinas que exigem pouca reunião dos cavalos, o ‘hackamore’
também tem funcionado com sucesso e de modo permanente.
Na fase da iniciação do cavalo (doma), que envolve a organização
dos primeiros reflexos do animal em cadeias automatizadas, o bridão é
acionado com função mecânica; na etapa do adestramento básico a em-

234
Parte II Em Busca do Centauro

bocadura atua para auxiliar no reforço dos comandos de assento e pernas


que, quando automatizados pelo cavalo, substituirão a ação direta da em-
bocadura. Na fase do adestramento adiantado do animal, a embocadura,
quando levemente acionada, indica a posição de cabeça e a reunião dos
membros que o cavalo deve assumir para executar determinados movi-
mentos da equitação. Podemos dizer que uma importante função da em-
bocadura é também controlar o elemento ‘timing’ dos esportes equestres.
Com a embocadura, o cavaleiro sinaliza com as mãos a progressão ne-
cessária para a aproximação de um obstáculo ou o avanço preciso de um
movimento de ‘passage’, por exemplo.
Nunca permita a um cavaleiro iniciante, que ainda não tenha adqui-
rido equilíbrio, acionar uma embocadura. Os estragos que essa pessoa
pode causar ao cavalo poderão ser permanentes. Alguém disse uma vez
que ‘uma embocadura na mão de um novato solto na pista é como uma
navalha na mão de um chimpanzé solto num berçário’.
Uma embocadura deve ser utilizada “com determinação de aço e
mãos de seda”, como já disse Gabby Hayes.
Podemos então concluir que a construção de uma embocadura só
deverá ter um objetivo: ajustar-se confortavelmente na boca do cavalo – o
que o velho bridão utilizado por Xenofonte parece ter cumprido muito
bem. Mas antes de encerrar o capítulo “Embocaduras”, preciso levantar a
questão dos estribos que, apesar de estarem afixadas à sela, estão intima-
mente ligadas ao trabalho das embocaduras. Vejamos.
A importância dos estribos tem sido subestimado na exata proporção
que as embocaduras foram superestimadas. Os estribos são geralmente
considerados apenas como uma ferramenta que o cavaleiro usa para botar
o pé e se posicionar na sela. Entretanto, o estribo pode ser transformado
num instrumento de grande precisão. E, mesmo que a embocadura nunca
tenha sido a “chave” da boa equitação, o estribo certamente foi a “chave”
do sucesso das cavalarias na história mundial. Mas, qual é a grande dife-
rença de se montar com ou sem estribos?
Como sabemos, na Antiguidade os bons cavaleiros conseguiam qua-
se o mesmo grau de equilíbrio montados sem estribos, como a cavalaria
de Xenofonte. Mas, para o sistema nervoso humano, o estribo age como
uma ‘referência do chão’. Quando o cavaleiro está com o pé no estribo, ele
tem a sensação de ter o chão debaixo dos pés, e o seu senso de equilíbrio se
estabiliza e ele desempenhará melhor – como se realmente estivesse com
os pés no chão. Isto faz uma grande diferença para a postura e o equilíbrio

235
Bjarke Rink

de cavaleiro (veja o capítulo “Desvendando o Enigma do Centauro”). No


mundo da equitação moderna, o estribo deve ser considerado como um
instrumento de “precisão” que funciona em combinação com o bridão. A
ação precisa das mãos na embocadura é possibilitada com o efeito estabi-
lizador dos estribos. Em batalhas de cavalaria, onde os guerreiros lutavam
com lança e sabre, a estabilidade oferecida pelo estribo podia dar a ‘vanta-
gem’ extra que poderia levar à vitória. Nos esportes modernos, o trabalho
suave da embocadura só poderá ser realizado com a precisa coordenação
dos estribos, de onde o cavaleiro tira o equilíbrio exato, a distribuição de
peso e a tensão corporal necessária para comandar corretamente cada ci-
clo muscular da equitação. “Dê-me um ponto de apoio que eu moverei o
mundo”, desafiou Arquimedes – e é exatamente isso que os estribos ofere-
ceram ao cavaleiro, e com o qual ele de fato moveu o mundo!

A embocadura foi a ‘solução’ que mais ‘problemas’ criou na história da


equitação. O homem possui uma tendência manipulativa compulsiva onde
procura resolver tudo com as mãos. O cavaleiro, que pilota manualmente
o seu cavalo, acaba destruindo os terminais nervosos da boca do animal,
tornando-o “duro” ou, melhor, insensível, fazendo com que ele se recuse a
participar no jogo da equitação. A pilotagem manual do cavalo é ‘baixa
tecnologia’, a exemplo de uma máquina de escrever comparada a um
computador.

236
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 50

Sela, Mão Dupla


no Tráfego dos Sentidos

A história das selas é muito menos polêmica do que a das emboca-


duras, mas talvez isso seja devido a nossa tradicional miopia biológica. A
pequena atenção dada às selas está relacionada ao fato de sua função na
equitação ser extremamente sutil. Mas se analisarmos cuidadosamente a
evolução histórica da sela e a sua função na equitação, começará a surgir
uma certa lógica entre as selas da antiguidade e as selas modernas. A cons-
trução de um equipamento capaz de unir duas criaturas tão diferentes entre
si para realizarem trabalhos conjuntos talvez guarde mais segredos do que a
sua aparência externa revele.
Montar num cavalo sem sela é um negócio reconhecidamente sua-
rento e desconfortável, por isso panos e couros começaram a ser colocado
no dorso do cavalo há muitos milhares de anos. Mas os forros usados na
antiguidade serviam apenas para amaciar a equitação nas idas e vindas
das pessoas. Os assírios usavam panos para amaciar a equitação 900 anos
a.C. e os gregos 300 anos depois dos assírios. Na Grécia antiga, quando
freios e bridões já estavam em uso, os cavaleiros ainda montavam sem
sela e Xenofonte, com o sarcasmo dos eruditos, comenta que só os persas
“bundas-moles” usavam peles ou tapetes para amaciar a cavalgada. “Eles

237
Bjarke Rink

forram mais o seu cavalo do que a sua cama, e preferem o conforto à segu-
rança”, criticou o famoso general grego.
O segundo estágio da evolução das selas foi provavelmente uma ge-
ringonça parecida com uma cangalha, equipada com uma laçada de couro
cru para ajudar o cavaleiro a subir e se posicionar no dorso do cavalo. Mas
o uso de estruturas de madeira começou a provocar problemas de feridas e
dor nas costas dos cavalos. Por esta razão, há indícios de que os cavaleiros
da antiguidade procuraram durante muitos séculos fabricar algum tipo
de sela que pudesse dar a eles e aos seus cavalos uma união mais segura e
confortável.
As selas, como as conhecemos hoje, ganharam a sua atual forma e
estrutura na Ásia Central, provavelmente ainda no primeiro milênio a.C.,
e depois disso poucas mudanças estruturais ocorreram, além de adapta-
ções do equipamento para se ajustar a diferentes tipos de trabalho e para
as funções militares.
As selas podem ser divididas em dois tipos principais: selas leves para
viagens e selas pesadas para o trabalho. A sela pesada foi concebida como
uma “cadeira” que dava ao cavaleiro medieval um assento mais seguro
para o manejar de armas. Na Idade Média, o guerreiro precisava ficar en-
caixado dentro da sela, que era construída com cepilho e patilho altos
para ajudá-lo a resistir aos impactos dos choques de cavalaria. As selas
de trabalho, das quais a ‘western’ americana é um bom exemplo, é uma
adaptação da sela ibérica de guerra, modificada para ajudar o vaqueiro
mexicano, e depois o texano, nas suas tarefas diárias. O princípio dessa
sela é de funcionar como uma “cadeira”, a mais confortável possível, para
o cavaleiro poder passar muitas horas realizando as suas tarefas.
Pesquisas arqueológicas revelam que o grande avanço na construção
da sela ocorreu na Ásia Central e se espalhou para a Europa através das
incursões de conquistadores hunos, magiares e sarracenos. A armação da
sela das estepes era simples, mas engenhosa, como tantas outras soluções
tecnológicas avançadas. A sela oriental, sem revestimento de couro, era
esculpida em quatro peças de madeira – o cepilho, o patilho e dois tra-
vessões de ligação, tão bem torneados que, quando unidas, distribuíam
o peso do cavaleiro sobre o dorso do cavalo sem pressionar a sua coluna
dorsal e sem causar feridas. Os travessões laterais eram levemente encur-
vados na frente para permitir que as espáduas do cavalo pudessem traba-
lhar em liberdade. Esse tipo de sela, com o espaço livre entre os travessões
(suadouros), aumentava em muito a autonomia da cavalaria nômade.

238
Parte II Em Busca do Centauro

“Esse tipo de sela expressa a ligação afetiva do cavaleiro para o seu cavalo,
e quanto eles dependiam um do outro, e como procuravam harmonizar a
sua relação”.46
A sela húngara é do tipo oriental e foi introduzida por Magiares Ar-
padianos, um povo cavaleiro nômade que, nos anos 900 d.C., conquis-
tou as planícies húngaras. Esse tipo de sela é baixo, com boa aderência
ao cavalo, sendo o cepilho e o patilho ligados aos travessões laterais por
amarras feitas de couro cru. O cepilho se projeta para frente e é mais alto,
enquanto o patilho é lobular e se projeta para trás, com o assento formado
por uma tira de couro de dez centímetros de largura que fica suspensa
entre o cepilho e o patilho também ligado aos travessões laterais por tiras
de couro. “Isto forma um assento móvel, confortável e ventilado”, dizia o
catálogo do museu etnográfico de Budapeste. Mas, o que será que os cura-
dores húngaros querem dizer com a expressão “assento móvel”? Depois de
passar quase um dia inteiro a estudar a mostra de selas húngaras, cheguei
a uma conclusão interessante: a tira de couro suspensa entre o cepilho e o
patilho provavelmente magnificava os movimentos do cavaleiro para que
o cavalo pudesse melhor sentir as suas posições corporais e comandos
para mudanças de velocidade e direção. Isso faria sentido para os antigos
arqueiros nômades que precisavam atirar as suas flechas a galope, guiando
o cavalo por meio de comunicação corporal (veja o capítulo A Linguagem
Natural dos Movimentos na terceira parte deste livro). A teoria do “assento
móvel” é uma conjectura de minha parte, mas decidi revelá-la neste livro
porque ela se ajusta perfeitamente com a tese da fusão neurofisiológica
dos cavaleiros nômades, onde um assento ligeiramente móvel seria de
grande utilidade para o controle do cavalo. Para mim, esse tipo de sela
parece representar a perfeita ligação do Centauro, permitindo ao cavalo e
ao cavaleiro monitorarem os ciclos musculares um do outro e se fundirem
em um só ser galopante, com movimentos e intenções unificados.
Depois da embocadura, o estribo foi provavelmente o invento mais
importante a surgir no mundo do cavalo e da cavalaria. Como já vimos,
o estribo dá ao sistema nervoso humano uma referência de chão, que
permitia ao guerreiro realizar movimentos mais vigorosos sem perder o
equilíbrio para a utilização de armas – arcos, lanças, azagaias, espadas e
sabres. Atualmente serve para harmonizar as técnicas esportivas. O uso
do estribo apareceu entre os citas da Ásia Central há 2.600 anos, na forma

Informação oferecida pelo catálogo da mostra histórica de selas húngaras promovida pelo Mu-
46

seu Etnográfico de Budapeste.

239
Bjarke Rink

de uma argola de couro amarrada à sela, e chegou à Prússia e à Lituânia


há cerca de 1.200 anos. Mas o estribo levou vários séculos para se tornar
popular no Ocidente, porque os antigos europeus usavam o cavalo prin-
cipalmente para tração e sempre tiveram dificuldades de entender idéias
puramente equestres. Genghis Khan e seus sucessores formaram o maior
império da terra utilizando, como nunca antes, a velocidade do cavalo e
estratégias militares onde o estribo dava grande precisão à equitação da
cavalaria mongol.
Todos os atuais tipos de sela foram construídos segundo o antigo mo-
delo Oriental porque é fácil perceber que todas as armações são compos-
tas por quatro peças – patilho, cepilho e duas barras laterais, formando
um espaço livre para o assento não tocar na coluna dorsal do cavalo – um
grande avanço na construção da sela ideal.
O principal difusor deste tipo de sela na Europa foi a Hungria, um
país que situado no último bolsão das estepes que se estendem da Rússia à
China, e onde citas, avaros, hunos e magiares tiveram o seu quartel gene-
ral antes, durante e depois do Império Romano. A planície húngara foi um
dos principais caldeirões onde a cultura equestre dos pastores nômades
se fundiu com as civilizações agrícolas da Europa, e lá se encontra uma
grande parte da história da equitação. Frederico, o Grande, Rei da Prús-
sia, e um dos principais players da política de força européia do século 18,
contratou oficiais da cavalaria húngara para ajudar a treinar seus homens
e cavalos. Para fabricar a sela húngara para o exército prussiano, ele tam-
bém trouxe para a Alemanha um grande número de seleiros de Tiszafurer,
o principal centro produtor de selas da Hungria.
Na Hungria, o tipo de sela utilizada por civis e militares era basica-
mente o mesmo até o início do século 19. Naquele período, a sela militar
foi alterada e a cabeça do cepilho foi eliminada porque “causava acidentes
quando os cavaleiros caiam do cavalo”. Pelo menos é isso que o catálogo
do Museu Etnográfico de Budapeste nos informa. Mas deve haver um en-
gano aqui. A cabeça do cepilho não poderia ferir um homem que cai do
cavalo, mas poderia, sim, machucá-lo se o cavalo baleado rolasse por cima
do cavaleiro. E este tipo de acidente se tornou tão frequente nas guerras
nacionalistas européias do século 19 que uma mudança radical de estra-
tégia militar foi introduzida em razão do poder de artilharia ter aumen-
tado, exponencialmente, as baixas entre homens e cavalos. Nestas guerras
travadas entre os reinos tradicionais e as nações emergentes da Europa, a
equitação oriental e as selas húngaras tiveram grande influência.

240
Parte II Em Busca do Centauro

Agora, talvez, tenha chegado a hora de analisarmos a origem da


sela inglesa porque, na minha opinião, a sua excelência contemporânea
está intimamente ligada à antiga sela húngara de origem oriental. (E não
adianta os ingleses chiarem, porque no século 21 não conviveremos mais
com as meias-verdades do passado.) Vamos fazer uma viagem na história
e ver de onde realmente veio a sela inglesa e como ela chegou à Europa e,
sobretudo, como veio parar na Inglaterra. Vamos voltar no tempo e assis-
tir ao drama Húngaro que acabou beneficiando a equitação da Europa.
A Hungria, no século 19, era uma parceira relutante do Império Aus-
tro-Húngaro. Em 1848, nacionalistas húngaros se revoltaram e travaram
uma guerra contra uma federação dos exércitos russos e austríacos. De-
pois de um ano de batalhas sangrentas, a Hungria foi decisivamente der-
rotada e uma diáspora de hussardos húngaros espalhou homens e cavalos
por nada menos de 34 reinos europeus, inclusive a Inglaterra. A moder-
na sela inglesa, por sua forma, estrutura e função neurológica, deve uma
grande parte da sua excelência à sela da Ásia Central: ela é leve, com o
cepilho baixo, é formada por quatro peças, e o assento é capaz de ajustar
os centros de gravidade do cavaleiro e do cavalo. Na minha opinião, não
há dúvida de que ela foi uma adaptação da tradicional sela húngara, in-
troduzida na Inglaterra por mercenários húngaros refugiados depois da
frustrada guerra da independência. E, depois, coube ao Império Britâni-
co introduzir no mundo a cavalaria ligeira inspirada na cavalaria húnga-
ra, disseminar a utilização da sela inglesa (de origem húngara) os loros
curtos, e a equitação ‘a la gineta’, que hoje em dia permanecem uma boa
receita para a equitação avançada. Mas, justiça seja feita: com tecnologia
computadorizada, os ingleses também estão ajudando a aperfeiçoar a sela
húngara original.
As maiores inovações na história da sela moderna estão ocorrendo
neste exato momento. No ciclo esportivo do cavalo, que agora está entran-
do numa fase altamente desenvolvida, começam a surgir novas gerações
de selas para os esportes, que não são mais concebidas como “cadeiras”. A
maior contribuição à equitação nos últimos 20 anos é, sem dúvida, a mo-
derna sela “inglesa” do tipo close contact. Essas selas estão sendo aprimo-
radas com novos desenhos, novos materiais e novas técnicas de fabrica-
ção. Elas são construídas para favorecer a fusão ciclomotora do conjunto
e favorecer o intenso tráfego dos sentidos entre o cavalo e o cavaleiro, que
ocorre durante a equitação. Neste momento, a sela inglesa desempenha
a dupla função de estabilizar o cavaleiro e facilitar o livre fluxo dos sen-

241
Bjarke Rink

tidos, que trafegam em mão dupla, permitindo que o homem e o cavalo


sintam as vibrações musculares e as alterações de equilíbrio um do outro.
É um tipo de sela que permite ao conjunto atuar com grande sinergia de
movimentos e interpretar, em décimos de segundo, a movimentação do
parceiro. A sela inglesa moderna, além de prover grande equilíbrio ao ca-
valeiro, oferece uma melhor aderência das áreas de contatos entre o dorso
do cavalo e a parte interna de joelhos, coxas e assento do cavaleiro, dando
melhor apoio às pernas e contato com o corpo do cavalo. Ela também
posiciona o estribo no ponto ideal para o cavaleiro se ajustar aos recuos e
avanços do centro de gravidade do animal que ocorrem com o aumento
e a redução da velocidade. O estribo é, na verdade, um dos pontos mais
importantes da sela moderna. Enquanto a embocadura é dedilhada com
as mãos, os estribos, administrados com os pés, são o ponto de Arquime-
des – o centro de equilíbrio da massa homem-cavalo, que dá ao cavaleiro
o apoio necessário para exercer a pressão adequada entre reunião e impul-
são, contenção e a libertação dos ciclos musculares do cavalo.
Todos os principais cavaleiros da atualidade concordam com, pelo
menos, uma coisa: a base da boa equitação é a posição do cavaleiro em
dinâmica – posição milimetricamente correta para a manutenção precisa
do equilíbrio durante a ação equestre – e é, justamente isto, o que a sela
inglesa moderna está preparadas para oferecer. E, na medida em que elas
estão sendo produzidas com uma nova concepção ergométrica, elas se
aproximam cada vez mais da excelência das antigas selas dos nômades da
Ásia Central. Não há nada de novo sob o Sol, diria o poeta.

As antigas selas dos nômades da Ásia Central parecem ter sido construídas
para facilitar o fluxo de vibrações musculares entre o cavaleiro e o cavalo,
que seria extremamente favorável aos arqueiros montados. No Ocidente,
as selas medievais foram concebidas como ‘cadeiras’ nas quais o cavaleiro,
em posição sentada, viajava, guerreava ou participava de algum esporte.
Hoje, as selas são fabricadas como uma importante via de comunicação
que conecta o sistema sensitivo-motor do conjunto e facilita o contínuo
deslocamento do cavaleiro em busca do centro de gravidade do cavalo. E,
assim como a sela moderna está ganhando uma nova concepção de uso, a
espora e o chicote estão sendo inteiramente repensados.

242
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 51

Repensando o Chicote e a Espora

A espora, desde tempos imemoriais, serviu para fazer um cavalo linfá-


tico se mexer. A mais antiga espora tinha apenas uma ponta, como o esporão
de um galo, e foi usada desde a cultura clássica grega, pré-Xenofonte, até o
século 13, quando foram gradualmente substituídas por esporas com rosetas
giratórias um pouco menos sujeitas a serem mal usadas.47 A espora sempre
foi, e ainda é, o grande símbolo do cavaleiro, mas geralmente é usada como
se fosse um “acelerador” do cavalo. Mas hoje, com uma melhor compreensão
da união sensitivo-motora do cavalo e do cavaleiro, estes antigos instrumen-
tos de repressão se tornaram importantes instrumentos de comunicação.
É claro que as esporas foram inventadas em uma época brutal de bai-
xa tecnologia equestre, quando a equitação e o adestramento do cavalo
buscava formas de provocar a dor e recompensar a “obediência” do ani-
mal com o cessar dos castigos (um método conhecido em didática como
prêmio e castigo). Depois das espetaculares descobertas da neurociência,
iniciadas por Ivan Pavlov e, mais recentemente, com os estudos de James
Rooney e outros, descobrimos que provocar a dor é contraproducente –
porque, numa equitação em busca da alta performance, o cavaleiro estará
exercendo os seus comandos com tamanha sutileza e precisão que o ca-
valo não tem consciência de que as decisões da ação equestre não partem
Como disse Gabby Hayes, em certa ocasião: “para o mau cavaleiro até o cavalo atrapalha”.
47

243
Bjarke Rink

do seu próprio sistema sensitivo-motor. Mas cada vez que o cavaleiro re-
corre a um comando ostensivo, utilizando inadequadamente as esporas e
o chicote, o cavalo toma consciência de que há um corpo estranho no seu
dorso – e isto atrapalha muito mais do que ajuda.
Numa equitação de natureza simbiótica, as esporas continuam a ser
importantes, mas utilizadas com uma nova filosofia – o que tem modifi-
cado bastante o seu desenho.
A espora moderna é usada como um reforço dos comandos das per-
nas, recurso utilizado somente quando precisamos enfatizar uma pressão
do nosso código de comandos, e não simplesmente como um “acelerador”
do cavalo. O atác d’epuron – o ataque de esporas –recomendado por Bau-
cher está out, porque não é desejável que o cavalo associe a ação da espora
com a ação do cavaleiro. Usar a espora como um castigo não tem justifica-
tiva num trabalho de alta sensibilidade, onde o conjunto atingiu um alto
grau de fusão sensitivo-motora, e o cavaleiro se comunica com comandos
extremamente sutis que deflagram automaticamente a ação do cavalo.
Através da neurologia podemos descrever assim a função da espora:
o cavalo tem na sua pele um órgão muito útil. A farta distribuição de sen-
sores nervosos distribuídos por toda a superfície e conectados ao cérebro
cria uma hipersensibilidade que permite ao animal detectar o pousar de
uma mosca e espantá-la apenas com uma vibração da pele. É sobre este
órgão supersensível que atuamos com esporas e chicotes. (A partir de ago-
ra, palavra chicote, por ter uma conotação de castigo, será substituída por
pingalim.) O cavalo responde ao uso da espora com respostas automati-
zadas: quando as esporas entram em contato com a pele do animal, este
automaticamente executa um reflexo de afastamento e se movimenta para
frente. Como explicou Dr. Rooney, não é recomendável fazer a espora
provocar dor – o reflexo automatizado de afastamento entra instantane-
amente em ação com o simples encostar da espora – ação imediatamente
remetida para a medula e que, no cavalo bem adestrado, provoca uma
resposta reflexa instantânea. O general L’Hotte dizia com sabedoria que “o
bom cavalo obedece ao frio do metal”.
A espora moderna não precisa de rosetas pontiagudas. O cão – a peça
que sustenta a roseta –agora serve para fazer o contato com a superfície da
pele do cavalo e, sem provocar dor, indica a execução das figuras treina-
das pelo conjunto e organizadas em sequências de reflexos automatizados.
A função moderna da espora é “vigiar” o flanco do cavalo e, quando há
uma diminuição de velocidade, ou quando uma mudança de direção é

244
Parte II Em Busca do Centauro

executada com menos intensidade do que a necessária, ela entra em sutil


ação (com um leve toque) para reforçar a ação da perna do cavaleiro. A
espora moderna é um sofisticado instrumento de comunicação e não uma
ferramenta de tortura para castigar o cavalo, pois se ele ficar com medo e
reagir violentamente a elas, ficará difícil executar uma equitação da gran-
de precisão.
Do chicote não há muitas histórias para contar – desde sempre basta
se cortar uma vara no mato para bater no cavalo e, vapt vupt, está inventa-
do o chicote, que foi confeccionado com todo tipo de material – pau, cipó,
bambu, couro e até pênis de boi – no Brasil chamado eufemisticamente de
‘umbigo’. O chicote, como símbolo de autoridade, é altamente valorizado
pelo cavaleiro xucro e, como tudo o que é popular, possui inúmeras deno-
minações: mango, arreador, guacha, relho, rebenque, rabo de tatu e outros
que já esqueci. O uso dado ao chicote por Grisone, e sua longa linha de
sucessores, está inteiramente out como instrumento para uma equitação
eficiente (como já explicou Pluvinel).
Hoje, o chicote virou pingalim, um instrumento que tem mais a ver
com a batuta de um maestro do que com um instrumento de tortura. O
maestro comanda, com movimentos da batuta, a complexa execução da
música realizada pelos integrantes da orquestra. A história registra poucos
casos como o de Herbert Von Karajan que, num ataque de fúria durante
uma récita da Filarmônica de Berlim, atacou os músicos com a sua batuta.
(Em prejuízo do espetáculo e da música).
O general romano Gaio Márius, no último século a.C., em campanha
militar na África, conta ter avistado cavaleiros númidas – nômades do
deserto – pilotando seus cavalos “sem sela e sem embocadura, usando
somente uma vara para conduzir os animais”. Acho pessoalmente que os
hábeis cavaleiros africanos deveriam ter tido alguma maneira (que o ge-
neral não viu) de parar os seus cavalos, mas concordo que, para realizar
as mudanças de direção, um toque de vara no pescoço é mais eficiente do
que o uso da embocadura. Os cavaleiros medievais e os marechais fran-
ceses também usavam um bastão, símbolo de sua autoridade, cuja origem
vem do adestramento clássico onde era usado para executar uma série de
toques durante a execução das figuras. O pingalim pode ser usado com
grande efeito para treinar giros e piruetas. Neste caso, o pingalim estará
atuando dentro do campo visual do cavalo, sem sequer entrar em contato
com a sua pele. Em vez de mobilizar o sentido tátil do cavalo, o pingalim
provoca o mesmo reflexo, estimulando o sentido visual do animal. Neste

245
Bjarke Rink

caso, o pingalim só é eficiente se o cavaleiro nunca o utilizar como chicote


pois, nessa situação, o instrumento provocará medo e movimentos irre-
gulares. Nas provas internacionais de Adestramento, até o pingalim está
proibido.
Como já vimos, o cavalo medroso executa movimentos precipitados
e feios, que nada acrescentam à beleza das disciplinas equestres. O pin-
galim volta a ter ação sobre o sentido tátil do animal quando aplicado à
garupa com um toque para indicar o aumento da velocidade. Entretanto,
alguns jóqueis chicoteiam os cavalos durante uma corrida, mas sempre
no momento exato em que os posteriores do cavalo vão o impulsionar.
Isto reforça os ciclos motores do galope além de transmitir a tensão do
cavaleiro para o cavalo.

Na equitação simbiótica, a espora e o pingalim deixaram de ser


instrumentos de tortura para se tornarem importantes instrumentos de
comunicação. Duas ferramentas altamente eficientes quando utilizadas,
com critério e habilidade, para auxiliar na transmissão do código de
comandos do cavaleiro nos sofisticados jogos equestres. Agora, em nossa
busca para desvendar o ‘Enigma do Centauro’ através de seus aspectos
psicológicos e neurofisiológicos, chegamos finalmente a esta fronteira
perdida habitada pelo Centauro Chiron. Mas vamos penetrar com cuidado
nesta terra sagrada – porque agora estamos na região onde Homero há
quase 3 mil anos viu os Centauros passar em sua missão para conquistar a
Terra. Não perca por nenhuma razão do mundo o próximo capítulo onde
termina a segunda etapa da nossa viagem.

246
Parte II Em Busca do Centauro

CAPÍTULO 52

Desvendando o
Enigma do Centauro

Em nossa busca pelos fatos científicos da neurofisiologia do fenômeno


equitação começamos com a pesquisa do Dr. Rooney intitulada “A Cadeia
de Reflexos da Equitação”. Isto nos levou a descobrir um dos elos perdidos
do processo – a cadeia de comandos reflexos do cavaleiro desenvolvida para
estimular a cadeia de respostas reflexas do cavalo. Nós também procuramos,
e achamos, um elo importante da interação do Homem com o cavalo, que
é a sua inteligência emocional que integra o programa motor do conjunto.
E, remexendo nesta área, descobrimos outro elo comportamental que afina
o entendimento dos parceiros: o amor pelos jogos. Mas, pelo menos teori-
camente, na fusão dos sistemas sensitivos-motores de homem e do cavalo
deveria também existir um outro fator que – como a lei de Newton – deveria
unificar todos os reflexos da equitação dos parceiros em um só movimento.
Mas, se este sentido existe, como se chama e como funciona? Agora vamos
procurar desvendar o milenar enigma do Centauro.
Montar a cavalo desperta no cavaleiro um mágico sentimento de po-
der e velocidade – como se a força e a velocidade do cavalo pertencessem
ao cavaleiro. Através dos séculos, alguns mestres equitadores têm lutado
com as palavras para colocar este sentimento no papel. E, como todo bom

247
Bjarke Rink

cavaleiro sabe, existe um grande sentimento de ‘unidade’ em jogo quando


o homem consegue conduzir o cavalo com o mesmo controle e precisão
que ele tem sobre o seu próprio corpo. Entretanto, egocêntrico como o
homem é, ele sempre teve uma perspectiva unilateral ao analisar o fenô-
meno equitação – especialmente quando se trata do delicado sentimento
de ‘si próprio’. Além disso, no passado, as pessoas nunca viram com bons
olhos a mistura dos sentidos equinos com os humanos. Agora chegou a
hora de fazermos a pergunta óbvia, que parece ter escapado a tantos bons
cavaleiros no passado: será que o poderoso sentimento de ‘unidade’ que se
evidencia na equitação de alta sensibilidade pode ser unilateral? Será pos-
sível ao cavaleiro amarrar este poderoso sentimento de ‘unidade’ apenas
com o tráfego unilateral das emoções humanas? Existirá alguma evidência
científica de que o Centauro seja formado por uma via dupla de sentidos
e emoções que trafegam entre o homem e o cavalo, como parece indicar
a imagem grega do Centauro? “Leia-me”, desafia o lendário Centauro Chi-
ron48 aos cavaleiros da posteridade.
Ao assistirmos a uma apresentação de salto clássico, é fascinante per-
cebermos os movimentos unificados que o conjunto realiza durante a sua
atuação. Na aproximação de cada obstáculo, os parceiros calculam com
precisão os galões necessários para atingir o ‘timing’ perfeito do salto. Na
distância exata, o cavalo alça a frente, sai do chão com um poderoso em-
puxo do trem posterior, dobra os membros anteriores debaixo do corpo
e voa por cima do obstáculo com movimentos absolutamente precisos.
Vamos rodar o vídeo novamente para observar os movimentos do cava-
leiro nesta ação. Repare que, no início do vôo, o cavaleiro se inclina para
frente e realiza movimentos corporais semelhantes aos do cavalo. Ao pas-
sar por cima do obstáculo, o cavaleiro estará flexivelmente agachado nos
estribos, a sua coluna vertebral na horizontal, numa posição aerodinâmica
semelhante a do cavalo. Os seus braços encenam o impulso para frente
idêntico aos anteriores do animal, do qual ele obviamente faz parte. Na
recepção, o cavalo toca o solo primeiramente com os anteriores, e neste
momento o corpo do cavaleiro volta para a posição vertical; no instante
em que o animal chega com os posteriores, o cavaleiro também aterrissa
com os pés – nos estribos. O que nós estamos assistindo é a uma cadeia
de movimentos atléticos perfeitamente coordenados, produzida por dois
superatletas-em-um – um fenômeno interespécies desconhecido fora do

O Centauro Chiron é um personagem da mitologia grega, e foi o tutor de Aquiles a quem ensi-
48

nou a arte da equitação.

248
Parte II Em Busca do Centauro

mundo do cavalo. Não é para menos. A equitação de alta performance é


a consequência da integração neurofisiológica de dois atletas – Homo e
Caballus – que através do treinamento aprenderam a se fundir em um
único ser galopante.
Mas como conseguem essas duas criaturas tão diferentes entre si unir
as suas qualidades atléticas e realizar movimentos tão rápidos e tão per-
feitamente coordenados? Como conseguem comparar, numa fração de
segundos, os sentidos sensoriais um do outro e produzir os movimentos
corretos que cada situação requer? Como conseguem canalizar os seus
recursos neurofisiológicos, que fluem de dois sistemas nervosos distintos,
para formar uma cadeia de movimentos que resulta numa ação conjunta
e num ‘timing’ perfeito – quesito absolutamente necessário para uma atu-
ação vencedora? Existirá uma ‘lei dos movimentos’ que controla a retro-
alimentação das sensações e percepções dos parceiros, de modo que eles
possam coordenar os seus movimentos amplos e finos para formar mo-
vimentos atléticos perfeitamente sincronizados? Como pode um parceiro
confiar na percepção do outro e por que, na maioria das vezes, parece que
o cavalo está comandando a atuação? A lei da neurofisiologia que, sem
dúvida, existe e coordena este complexo fenômeno cinemático tem nome?

249
Bjarke Rink

Na realidade, como em todo esporte, a organização dos movimentos


equestres dos atletas – a combinação Homo e Caballus – tem de ser trei-
nada sistematicamente para atingir a perfeição. E, a exemplo dos outros
atletas, as informações sensoriais que chegam da visão, audição, tato e ol-
fato são coordenadas com o sentido chamado de ‘propriocepção’ e, com
isso, o atleta sente a posição do seu corpo e membros durante a ação sem
ter de olhar. A propriocepção é formada por sensores anatômicos situados
em todas as articulações do corpo. Mas o sentido de ‘propriocepção’ não
é tão evidente como o sentido da visão, o tato, o olfato e a audição, por
causa da complexa rede de receptores nervosos invisíveis que mandam
mensagens simultâneas de todas as partes do corpo. Portanto, ninguém
está consciente do seu sentido de ‘propriocepção’ antes de ser informado a
respeito! Vamos ver como esse sentido funciona no atleta humano.
Grandes atletas são capazes de receber e processar muitas informa-
ções em pouco tempo e transformá-las em movimentos precisos. Por
exemplo, um jogador de futebol tem de acompanhar a trajetória da bola
que varia constantemente durante o jogo. O jogador receberá um fluxo de
informações vindo da visão, audição e tato sobre o andamento do jogo.
Através desses sentidos, ele se manterá informado sobre a localização da
bola, sobre a constante movimentação dos seus companheiros, os ataques
do time adversário e a posição do gol. Enquanto isso, o seu sentido de
‘propriocepção’ também lhe mandará um fluxo de informações sobre a
posição do seu corpo e de seus membros, para que ele possa se colocar
numa posição favorável para executar os movimentos certos no momento
preciso do jogo. Isto porque movimentos muito precisos serão necessá-
rios quando o jogador tiver a chance de jogar com a bola, para ajudar no
ataque ou na defesa. Durante esses segundos vitais, o seu sentido de ‘pro-
priocepção’ lhe indicará quando um movimento está certo, errado, terá de
ser parado ou, ainda, radicalmente alterado. Como o cérebro humano tem
de dispor de um tempo mínimo para o processamento de todos os dados
vindos dos sentidos, alguns movimentos muito rápidos têm de ser pro-
gramados com antecedência – isto é, eles têm de ser automatizados para
se ajustar no programa motor do atleta para, no momento exato, estarem
disponíveis. Portanto, durante os treinos, o técnico de futebol divide o
jogo em lances táticos para que os jogadores possam praticar as jogadas
em separado, e assim automatizá-los no seu programa motor-futebolís-
tico. Este programa-motor é desenvolvido no cérebro para controlar os
movimentos do jogador, corrigindo e modificando as jogadas, com o ob-

250
Parte II Em Busca do Centauro

jetivo de coordenar o movimento do seu corpo automaticamente durante


a partida. No calor de uma disputa pela bola não há tempo para raciocinar
– durante a ação, o sentido de ‘propriocepção’ estará informando conti-
nuamente ao jogador como os seus membros estão se desempenhando.
Um jogador de tênis enfrenta um problema diferente – este jogo,
como você sabe, é disputado com um instrumento chamado raquete. No-
vas questões cinemáticas terão de ser resolvidas pela mente do atleta para
manejar uma raquete ou qualquer outro instrumento que, dependendo do
seu peso, flexibilidade, comprimento do cabo e a firmeza do seu trançado
terá de ser manejada de forma específica. Uma raquete mais rígida oferece
mais controle, e uma mais flexível oferece mais conforto no uso, mas o
jogador pode perder o controle se a sua levíssima raquete de titânio colidir
com uma bola em altíssima velocidade. Mas atenção: os grandes jogadores
de tênis desenvolverão um forte sentido ‘proprioceptivo’ com relação à sua
raquete. Com a prática, este instrumento começará a mandar uma retroa-
limentação de seu desempenho para o cérebro do tenista, como se fosse a
extensão do seu braço – e ele será capaz de acertar uma bola com a raquete
como se fosse a palma da sua mão! Através do sentido de ‘propriocepção’,
o ser humano é capaz de desenvolver grande habilidade com o manejo
de objetos, além de uma série de respostas reflexas numa infinidade de
jogos. Mas toda a sua habilidade no manejo de objetos e veículos é banal
se comparada à complexidade sensitivo-motora do fenômeno equitação.
O fato mais extraordinário da equitação é que o bom cavaleiro de-
senvolve um forte sentido de ‘propriocepção’ com os movimentos do ca-
valo, e aprende a ‘sentir’ os seus ciclos musculares como se fossem seus!
Os grandes cavaleiros conseguem saber em que posição está os membros
do cavalo em qualquer momento, porque o seu sentido proprioceptivo é
capaz de se prolongar e sentir os andamentos do animal como se fossem
seus! E, agora, prenda a respiração: alguns cavalos vocacionados são capa-
zes de estender o seu senso proprioceptivo para ‘sentir’ os movimentos do
cavaleiro no seu dorso, inclusive as ajudas, como se fossem informações
vindas de seu próprio sistema nervoso!

Na via dupla dos sentidos de ‘propriocepção’, o cava-


lo não saberá que os sutis comandos do cavaleiro
não vêm do seu próprio SISTEMA LOCOMOTOR!

E, então, meu caro companheiro de viagem: estamos finalmente fren-

251
Bjarke Rink

te a frente com a mitológica criatura decantada desde o tempo de Homero


– o Centauro!
O sentido de ‘propriocepção’ é, sem dúvida, a ‘lei’ unificadora que co-
necta todos os sentidos do conjunto na equitação de alta performance. Se
investigarmos cuidadosamente este fenômeno, veremos que muitas teo-
rias equestres existentes podem ser confirmadas e outras descartadas. Mas
vamos pisar com cuidado neste solo inexplorado para não nos perdermos
na imensidão deste admirável mundo novo, que é a fusão dos sentidos de
‘propriocepção’ do homem e o cavalo! Como um exemplo desta interação
dos sentidos humanos e equinos, vamos rever a ação de um dos mais di-
fíceis esportes equestres: o Pólo. É um jogo muito veloz, onde o sistema
nervoso humano equino interage em milésimos de segundo, portanto, fi-
que atento.
Um jogador de pólo direciona o seu cavalo para interceptar uma bola,
uma fração de segundos antes da chegada do cavaleiro adversário. O ca-
valo explode a galope e o jogador sente a pressão da velocidade através do
vento no corpo e no rosto. Momentos antes da tacada, o cavalo, altamente
treinado, muda ligeiramente o seu curso e faz a aproximação ao largo da
bola. O cérebro do cavalo está direcionado para o trajeto da bola e o do ca-
valeiro cuida da manobra para obter uma vantagem de aproximação sobre
o adversário, enquanto o seu cérebro está controlando, ao mesmo tempo,
o seu equilíbrio, a velocidade furiosa do cavalo, a movimentação dos com-
panheiros, o deslocamento dos adversários, a posição do gol e a bola em
movimento. Todos os sentidos humanos estão em alerta total e o fluxo da
sua inteligência emocional e racional está direcionado para interagir com
o sistema neuromotor do cavalo. As pernas do cavaleiro são as forças pro-
pulsoras que estão por trás do galope do cavalo porque o programa motor
do cavaleiro está fortemente conectado ao sistema locomotor do animal.
Os sentidos proprioceptivos do homem e do cavalo estão unificados em
um só ser galopante capaz de movimentos amplos e finos em busca do gol
e da vitória final.
Cada galão de galope e cada manobra no campo está sendo produzi-
do em sintonia fina com o cavalo e, no exato momento em que o cavaleiro
está em posição de ‘tiro’, ele se levanta ligeiramente nos estribos, estabiliza
o corpo por um centésimo de segundo, como faziam os arqueiros nôma-
des da Ásia Central, e, com uma tacada certeira, remete a bola ao gol. Nes-
se momento, os neurônios do conjunto, cavalo-cavaleiro, trabalham em
altíssima frequência para coordenar neurofisiologicamente as mudanças

252
Parte II Em Busca do Centauro

das situações que ocorrem, às dezenas, a cada décimo de segundo. Duran-


te o jogo, o corpo e a mente do cavaleiro estão sendo postos ao mais rigo-
roso teste de coordenação sensitivo-motora já concebido pelo homem. E
o duplo senso ‘proprioceptivo’ do Centauro orquestra o fluxo intenso de
informações do meio ambiente que viaja na velocidade das sinapses entre
os parceiros. A maior parte dos campos cerebrais humanos estarão conec-
tados e a sua mente interage furiosamente com a do cavalo para manter o
controle dos fatores de velocidade, equilíbrio e a ação física da dinâmica
equina somados aos acontecimentos externos do jogo – a movimentação
de cavaleiros amigos e adversários – tudo numa velocidade muito supe-
rior à capacidade biológica humana original.
No jogo de Pólo que acabamos de acompanhar, quando o Centau-
ro se aproxima da bola e a parte humana solicita uma velocidade extra
para alcançá-la, a coordenação dos sentidos, inclusive o ‘proprioceptivo’,
aumenta dramaticamente até o momento em que o cavaleiro se levanta
nos estribos para obter estabilidade absoluta e executa a tacada. Depois
de fazer o ‘gol’, a união neurofisiológica vai relaxando e alguns sentidos
se desconectam até ocorrer o próximo momento de interação intensi-
va, quando o Centauro terá nova oportunidade de interagir com a bola.
Esta forte conexão dos sentidos, como todo trabalho cerebral é, para os
parceiros, extremamente exigente, do ponto de vista psicofísico e a fusão
neurofisiológica homem-cavalo não pode ser mantida com intensidade
total por muito tempo. Os três jogos equestres que mais exigem a união
neurofisiológica do conjunto são o Adestramento, a Arquearia Montada
e o Pólo – e a duração de uma reprise de Adestramento, assim como cada
tempo de um jogo de Pólo, está fixado em cerca de sete minutos.
A primeira coisa a nos chamar a atenção nesta paisagem neurofisio-
lógica é que as mais recentes teorias do uso do comando de pernas na
equitação estão provavelmente corretas. No fluxo dos dois sentidos de
propriocepção, é natural que o principal meio para comandar os anda-
mentos do cavalo deva vir da coordenação locomotora do cavaleiro. As
afirmativas de que ‘a embocadura, em conjunção com a força propulsora
das pernas, é usada para regular os andamentos e coordenar as transições’
e ‘para regular os andamentos, as pernas propulsionam o cavalo em dire-
ção às mãos’49 também parecem estar corretas porque, na neurofisiologia
do fenomeno equitação, o cavaleiro precisa conectar a ação de suas pernas
com a ação das pernas do cavalo, enquanto as suas mãos, livres do pro-
Do livro ‘Embocaduras na Teoria e na Prática’ de Elwyn Hartley Edward.
49

253
Bjarke Rink

cesso, controlam o elemento tempo, presente em todas as competições


equestres – isto é, as mãos controlam a progressão do cavalo para atingir
o ‘timing’ perfeito imposto pelas regras do jogo. Mas porque as pernas do
cavaleiro devem se conectar com a ação das pernas do cavalo? Porque,
no programa motor existente no cérebro equestre do cavaleiro, os nervos
sensores de suas pernas provavelmente terão uma conexão propriocepti-
va mais forte com a ação das pernas do cavalo. E porque as mãos devem
regular o elemento ‘timing’? Como vimos no capítulo sobre embocaduras,
as mãos do homem e a boca do cavalo foram concebidas para a fina tarefa
da seleção alimentar que está conectada a um sofisticado programa motor
no cérebro. Quando as mãos do homem se unem com a boca do cavalo, a
interação destes dois órgãos supersensíveis é capaz de controlar os movi-
mentos finos da equitação – a velocidade e os limites das ações!
Mais um fator se destaca nesta interação de sentidos: a aplicação de
força bruta e o uso indiscriminado de chicotes e esporas denunciarão o
cavaleiro como ‘um corpo estranho’ neste delicado processo neurofisioló-
gico. Porque o cavalo, ao contrário do homem, jamais sonharia em infligir
dor a si mesmo. (Portanto a criatura puxando desesperadamente as rédeas
lá em cima, e calcando as esporas sem dó, deve ser um bicho do outro
mundo – então vamos nos ver livre dessa peste antes que algo horrível
aconteça!).
Quando o homem e o cavalo unem a sua fisiologia e forma uma afi-
nada máquina equestre, eles podem interligar os seus cérebros para rea-
lizar uma quantidade infinita de trabalhos, ou aprender a jogar uma série
interminável de jogos, executados numa velocidade superior à velocidade
biológica humana. E, para atingir a alta performance nos esportes eques-
tres, faz-se necessário realizar uma quantidade enorme de novas conexões
neuronais tanto no homem quanto no animal. Mas a fusão neurofisioló-
gica do homem e do cavalo pode ocorrer em vários graus de intensidade
– e o cavaleiro pode intensificá-la ou relaxá-la a depender da necessida-
de. Isso significa que o homem e o cavalo podem equitar com todos os
seus sentidos conectados, ou somente com alguns, ou ainda, sem união
alguma, como quando uma pessoa é simplesmente transportada por um
cavalo.
A nossa viagem de descoberta na neurofisiologia do fenomeno equi-
tação acabou nos revelando, mesmo que de modo ainda incompleto, um
retrato neurológico do Centauro. Vamos, agora, procurar fazer uma des-
crição das várias etapas causais do fenômeno equitação: o alinhamento

254
Parte II Em Busca do Centauro

neurofisiológico do conjunto homem-cavalo consiste primeiramente na


unificação dos seus centros de equilíbrio (conceito introduzido por Ca-
prilli e Tod Sloan). A seguir, vem a interação das cadeias de reflexos eques-
tres, com o cavaleiro produzindo os comandos e o cavalo produzindo res-
postas automatizadas da ação equestre. Em seguida, a união dos sistemas
de locomoção permitirá a maneabilidade, e a conexão da mão do homem
com a da boca do cavalo fará com que o conjunto ajuste os movimentos
finos. A seguir, então, vem o aspecto psicológico da equitação: o prazer
de trabalharem juntos e o gosto mútuo pelo jogo equestre. E, também,
o carisma do cavaleiro se colocando na liderança do sentido hierárqui-
co natural do cavalo. Todos estes fatores fisiológicos e psicológicos são
firmemente amarrados com o sentido proprioceptivo trafegando em via
dupla, com o qual um parceiro atua como se os sentidos do outro fossem
seus. Como já tive oportunidade de falar, o Centauro é um ser altamente
complexo, uma maravilha da natureza.
Tudo isso comprova uma verdade irrefutável: com a fantástica tecno-
logia da equitação, o Homo sapiens escreveu a história da humanidade e
conquistou a sua fama e fortuna. E a onda de transculturação intelectual,
provocada pela Dinâmica Equestre, está neste momento empurrando a
compreensão humana para o espaço sideral. E tudo isto foi catalisado pelo
Centauro nos últimos 6 mil anos.
Quando, no futuro, a equitação for profundamente estudada,50 as
modalidades equestres serão reconhecidas como os esportes mais extra-
ordinários jamais inventados pelo homem, e a mais complexa tecnologia
biológica já concebida pela inteligência humana. E nós, do bravo mundo
do cavalo, esperamos sinceramente que os especialistas encontrem um
tempo para debater o ‘enigma do centauro’, apesar de sabermos que eles
provavelmente estão muito ocupados com a engenharia genética de uma
azeitona sem a inconveniência de um caroço, ou de um ovo sem a interve-
niência de uma galinha, ou o desafio de recriar o mamute, pela glória da
humanidade e a grana dos patrocinadores.

Ao encerrar o Terceiro Milênio, os historiadores descobrirão que a história


da equitação moderna teve o seu início no século 21. Sem possuir o
instinto natural ou a compreensão científica do fenômeno equitação,

Quando a equitação começar a ser estudada pelos cientistas, muitos fatos começarão a entrar
50

em foco. Mas não nos iludamos – a definição científica da fusão neurofisiológica e da união
proprioceptiva do homem-cavalo talvez seja tão difícil de transformar em lei fisiológica como
foi a descoberta do oxigênio no século 18.

255
Bjarke Rink

tudo o que aconteceu nos séculos anteriores será incluído no capítulo


da equitação medieval. E certos eles estarão. Entretanto, a transição
científica da equitação de uma ‘terra de ninguém’ até se transformar num
estudo que possa prover soluções estáveis para todo tipo de problema
equestre, provavelmente levará anos. É um quebra-cabeça de proporções
gigantescas. Mas, em breve, veremos o início dos estudos da neurofisiologia
da equitação nas universidades. Depois de quebrarmos os preconceitos
e as mistificações que permeiam o ‘velho mundo do cavalo’, o melhor da
equitação virá a seguir.

256
III. Odisséia na Ciência

Além disso,
O fenômeno Equitação
É possivelmente
A mais complexa técnica biológica
Já dominada
Pela mente humana

257
Bjarke Rink

CAPÍTULO 53

A Dança das Ilusões

As ilusões dos sentidos fazem parte da nossa vida cotidiana e algumas


foram indispensáveis na nossa evolução biológica. Mas existirá no recesso
da nossa mente um poderoso jogo de ilusões que no passado nos permitiu
realizar o que está além da nossa possibilidade física, e que exerceu assom-
brosa influência em como vivemos hoje?
O vôo do besouro é aparentemente uma impossibilidade teórica que
só funciona na prática. Para o observador, é perfeitamente compreensível
que uma águia possa desafiar a lei da gravidade e voar – claro, suas gran-
des asas, corpo emplumado, e uma cauda leve e ágil lhe dão a estrutura
determinante da máquina voadora perfeita. Já o besouro não parece, ao
observador, ter o physique du role exigido para desafiar a lei da gravidade.
Mas desafia.
O que determina o vôo, da águia e do besouro, são as suas estruturas
cerebrais em perfeito alinhamento biomecânico com seus corpos. Entre-
tanto, o cérebro dos animais e, em especial o cérebro humano, é a estru-
tura mais complexa e menos compreendida do Universo, e sua função
primordial é nos manter vivos, lato senso. É o nosso cérebro que, informa-
do por nossos sentidos, determina como, quando e onde devemos correr

258
Parte III Odisséia na Ciência

para não sermos mordidos pelo cachorro. Mas a nossa mente, que faz o
trabalho do cérebro, nos prega inúmeras peças.
A ciência reconhece vários tipos de ilusões e sendo a humanidade
uma espécie altamente visual, as ilusões de ótica51 são as mais comuns,
apesar de que todos os nossos sentidos estão sujeitos a serem enganados
por ilusões e, como veremos, várias delas nos ajudaram a evoluir e chegar
até aqui.
Como exemplo de uma ilusão de ótica, observe na ilustração a água
do aqueduto que parece subir ao invés de descer. Essa é uma das inúmeras
ilustrações de M.S. Escher, o artista plástico holandês, capaz de criar ilu-
sões de ótica que desafiam o nosso senso de perspectiva, confundir o sen-
tido de figura/fundo e embaralha o senso gravitacional. Mas não são ape-
nas os nossos olhos que podem ser enganados por ilusões: todos os nossos
sentidos podem ser levados a fazer leituras errôneas – ou seja, aquilo que
eles parecem informar ao cérebro não existe no mundo real. Richard Da-
wkins sugere que o cérebro de um macaco tem de ter um software capaz
de simular o quebra-cabeça tridimensional do emaranhado de galhos e
troncos da floresta. Como veremos adiante, é evidente que nós, humanos,
de fato herdamos dos nossos ancestrais primatas um software com a ca-
pacidade de lidar com o meio ambiente instável da copa das árvores e, até
hoje, continua tendo múltiplas utilidades para muitos, especialmente nós
cavaleiros.
Assim como o vôo do besouro, o fenômeno equitação é também uma
impossibilidade teórica que só funciona na prática. Por quê? Porque um
mamífero menor não tem, teoricamente, condições de dominar um ani-
mal maior. Trocando em miúdos: Homo sapiens, pesando em média 1/6
do Equus caballus, não possui a estrutura determinante para dominar o
animal maior, mais forte e veloz. Mas consegue. Como?
Desde criança eu montava em meus cavalos esperando que surgisse
um Charles Darwin na minha vida para explicar porque os cavalos permi-
tem que um menino magrelo como eu pudesse montá-los e conduzi-los e,
por que, às vezes, eu tinha problemas em dominar um animal. Mais tarde,
com novos conhecimentos adquiridos nas aulas de ciência, surgiram mais

Uma ilusão ótica é sempre caracterizada por imagens visuais que, em termos normais, são en-
51

ganosas – ou seja, é uma leitura errada dos fenômenos que só existe na nossa imaginação. Na
ilusão de ótica a informação colhida pelos olhos é processada pelo cérebro e o resultado do
produto visual não condiz com a realidade física da fonte visual. Quando, por exemplo, esta-
mos num elevador que supomos que vai subir, e ele desce, somos enganados por uma ilusão de
queda.

259
Bjarke Rink

perguntas: por que o cavalo permite que o homem o monte? E depois de


descobrir a neurofisiologia dos animais mais outro quebra-cuca assolou:
como podem o homem e o cavalo formar uma só unidade galopante?
O mais espantoso desse questionamento é que ninguém o havia fei-
to antes, visto que a descoberta dos reflexos condicionados de Pavlov está
intimamente associada aos paradigmas do fenômeno equitação e a equita-
ção, por sua vez, teve grande impacto na história, na sociologia, na política
e na economia das nações equestres – hoje as primeiras do mundo.
Certo dia, entretanto, Darwin entrou pela minha porta na forma
de uma revista americana contendo um artigo intitulado Riding Reflex
Chains – Cadeia de Reflexos da Equitação. Um estudo neurológico que
esclarecia porque um cavalo “obedece” ao cavaleiro... e porque, às vezes,
“desobedece”. O meu Darwin foi o veterinário patologista americano, Dr.
James Rooney que, como um raio de luz,52 alargou a fronteira da minha
percepção. (Dei conta desta assombrosa pesquisa neurológica na segunda
parte desse livro).
Depois de tomar conhecimento dessa espantosa revelação, ficou claro
para mim que se alguém descobrisse de que maneira o sistema nervoso
do homem se alinha aos ciclos musculares do cavalo e como o cérebro
humano substitui o cérebro do cavalo para exercer o controle do fenômeno
equitação, o enigma do Centauro53 estaria desvendado.
Infelizmente, depois do artigo de Dr. Rooney nunca mais se escreveu
sobre o assunto e um dia resolvi eu mesmo tentar conduzir a “operação
resgate” de investigar como o homem e o cavalo podem conectar os seus
sistemas sensitivos-motores e formar uma unidade biológica capaz de pro-
duzir o fenômeno equitação.
Esta busca mudou radicalmente a minha vida e a de meus familiares.
Para viabilizar o projeto, a primeira decisão foi a de mudar definiti-
vamente para a fazenda e ter os nossos cavalos como vizinhos, se possível,
depender deles economicamente. Foi assim que os nômades da Ásia Cen-
tral desenvolveram o seu vasto conhecimento equestre, e eu e minha mu-
lher Mara decidimos seguir em suas pegadas. Foi aí que eu descobri que
“Não existe fenômeno, por mais complexo que seja, que ao ser examinado
com cuidado não se tornará ainda mais complexo,” como afirmou David

52
O artigo Riding Reflex Chains foi publicado pela Equus Magazine (EUA), sob a editoria médica
do Dr. Matthew-MacKay Smith.
53
Enigma do centauro é uma expressão que utilizo para definir as questões desconhecidas da
união sensitivo-motora do homem e do cavalo durante o fenômeno equitação.

260
Parte III Odisséia na Ciência

Krech, citado por George Page54.


Os estudos do fenômeno equitação acabaram me envolvendo em sete
domínios do conhecimento humano, a saber: as simbioses do mundo ani-
mal, psicologia, fisiologia, neurofisiologia, biomecânica, comunicação e
cibernética. Esses conhecimentos me deixaram sobrevoando a epistemo-
logia da equitação, que então decidi acometer.
Mas por que estudar a epistemologia da equitação (perguntarão os
conformados, sempre satisfeitos em repetir o que já se conhece) quando
mais de 40 mil obras já foram escritas sobre diversos aspectos do cavalo,
desde o seu manejo, reprodução, aplicações veterinárias, a sua participa-
ção na história, além dos inúmeros tratados de como treinar e montar a
cavalo?
O estudo me parece válido porque sendo o significado da palavra
epistemologia essencialmente ‘o estudo crítico dos princípios, das hipó-
teses e dos resultados das diversas ciências, destinado a obter a sua ori-
gem lógica, o seu valor, a sua importância objetiva e seus limites’, nada
jamais foi escrito sobre o fenômeno equitação que objetivasse esclarecer
essas questões. Nenhum estudo já revelou a origem biológica da equita-
ção; nenhuma hipótese formulou o efeito da equitação sobre a expansão
da mente do cavaleiro, a pressão social da equitação sobre a organização
hierárquica das sociedades equestres, a expansão territorial permitida
pela dinâmica equestre, o impacto militar do poder equestre sobre as so-
ciedades não equestres.55 E também o efeito do fenômeno equitação sobre
a economia, a tecnologia e a política dos países equestres e, sobretudo, a
questão cibernética de como o homem e o cavalo conseguem definir os
seus papéis vitais e produzir o fenômeno equitação. Do ponto de vista da
ciência, o fenômeno equitação sempre foi uma terra de ninguém povoada
por mitos e faz-de-conta.
Os manuais de treinamento de cavalos se resumem a uma descrição
mecânica dos procedimentos, como se um cavalo aprendesse equitação
como um cachorro aprende a “obedecer” ao dono. As palavras “obedi-
ência” e “submissão” são recorrentes nesse tipo de literatura e não existe
nada mais enganoso para explicar como o cavalo consegue cumprir o seu
papel no fenômeno equitação da maneira que podemos observar nos ani-
mais de nível olímpico.

54
David Krech é professor de psicologia na Universidade da Califórnia em Berkeley. George Page
é autor de Inside the Animal’s Mind, da editora Doubleday.
55
Poder equestre é uma expressão que utilizo para definir o uso político/militar do cavalo.

261
Bjarke Rink

Iniciaremos, portanto, as nossas explorações do fenômeno equitação


com uma pergunta capciosa: ‘Será o homem dotado de um poder me-
tafísico que lhe permite dominar o cavalo?’ Esta pergunta é altamente
tentadora já que o antropocentrismo56e o antropomorfismo57 dominam
o pensamento do homem, quando não a ilusão da supremacia humana
sobre as outras espécies do planeta. Essa última, uma fantasia delirante
em algumas pessoas, principalmente (mas não exclusivamente), daquelas
com pouco conhecimento científico.
Depois de 10% de investigação teórica e 90% de experimentos práti-
cos montando dezenas de cavalos e registrando suas reações aos coman-
dos clássicos, a equitação se revelou o maior jogo de ilusões que os sistemas
nervosos já pregaram em duas espécies animais. Nada, absolutamente
nada, é o que parece ao observador (e ao próprio equitador).
Para começar a explicar o fenômeno equitação é necessário primeiro
definir o sistema nervoso animal – seja homem, borboleta ou elefante –
portanto utilizarei a lúcida definição de Dr. Humberto R. Maturana:
‘O relacionamento interno do sistema nervoso de um animal é relativa-
mente simples: é o balanço entre atividade sensorial e tonicidade muscular.
Todo comportamento animal é uma visão externa da dança das relações in-
ternas do organismo. O funcionamento de um sistema nervoso é totalmente
consistente com a parte formativa da unidade autônoma em que cada esta-
do de atividade leva a um outro estado de atividade da mesma unidade (do
homem, da borboleta ou do elefante), porque a operação é circular, ou seja,
o sistema nervoso forma um circuito operacional’.
Do ponto de vista da biologia da percepção,58 o fenômeno equitação
pode ser definido como um terceiro sistema biológico autônomo produ-
zido com o sincronismo dos sistemas nervosos do homem e do cavalo
que se unem em uma única ação com movimentos e objetivos alinhados.
Os movimentos equestres partem do sistema sensitivo-motor do cavalo e
os objetivos da equitação – a guerra, o esporte ou o trabalho – partem do
neocórtex humano.
No fenômeno equitação, o sincronismo dos sistemas nervosos do ho-
mem e do cavalo é principalmente possibilitado pelas semelhanças das
suas atividades cerebrais e fisiológicas, mas também em razão das diferen-
56
Antropomorfismo define o pensamento simplista de atribuir características humanas ao não
humano.
57
Antropocentrismo define o pensamento de que o homem é o “centro” do universo animal.
58
Biologia da cognição ou percepção é um conceito científico proposto por Humberto R. Maturana
em seu livro From Being to Doing, da Carl Auer Verlag.

262
Parte III Odisséia na Ciência

ças entre suas estruturas determinantes que faz o conjunto surpreendente-


mente adaptável.
Do ponto de vista do cavalo, a equitação de alta performance, que
agora passarei a chamar de equitação simbiótica, acontece quando o ani-
mal, durante uma apresentação equestre, sente como se estivesse trans-
portando uma pessoa amiga nas costas. Há, na equitação simbiótica, uma
conspiração entre o cavalo e o cavaleiro de fazer coisas junta – de aceita-
ção mútua.
Mas como pode o cavalo supor que é ele quem comanda o fenômeno
equitação?
Em primeiro lugar, as pessoas, ao julgarem o comportamento equi-
no, sempre se esquecem que o cavalo – como indivíduo – é o centro do
seu universo e que o equocentrismo e o equomorfismo são sua forma de
perceber o mundo. Se cavalo acreditasse em Deus, a imagem da sua di-
vindade seria, sem dúvida, semelhante a um cavalo. Em segundo lugar,
a leitura errada do seu sentido de propriocepção59 faz o animal incorporar
automaticamente as “ajudas” do cavaleiro aos seus próprios movimentos.
Exemplo: através de repetição sistemática, as “ajudas” do cavaleiro para as
mudanças de velocidade e direção passam a serem percebidas pelo cavalo
apenas como o início do seu próprio movimento e não como “ordens” es-
pecíficas partindo do cavaleiro. Os estímulos provocados pelas pernas do
cavaleiro, que estarão trabalhando rigorosamente dentro dos ciclos motores
do cavalo, são captados pelas dilatações nervosas situadas na região lom-
bar do animal fazendo com que o cérebro do cavaleiro passe a substituir o
cérebro do cavalo, que responde automaticamente aos estímulos na ilusão
de que é ele quem está no comando! O cérebro humano preenche o vão
apontado por Dr. James Rooney, na sua explicação sobre o automatismo
da motricidade equina.
Atenção: os estímulos do cavaleiro só serão remetidos ao cérebro do
cavalo em caso destes não provocarem dor no animal. Chicotes e esporas
mal utilizados alertam o cavalo de que o indivíduo em suas costas é um
corpo estranho e isso pode provocar a sua rebeldia. Principalmente nos
cavalos de qualidade.
Como vimos na segunda parte, durante o desenrolar do fenômeno
equitação, as esporas e a embocadura não são (ou não deveriam ser) re-
Sentido de Propriocepção é a capacidade de perceber a si próprio, ou melhor, a capacidade
59

que o indivíduo tem de ‘sentir’ em quais posições os seus membros estão. O sentido é formado
por sensores anatômicos localizados nas articulações. No fenômeno equitação, o cavaleiro e o
cavalo desenvolverão esta percepção em relação aos movimentos do parceiro.

263
Bjarke Rink

gistradas pela consciência do cavalo como sendo manipulados pelo cava-


leiro. Por meio de treinamento em busca dos movimentos “certos”, o ca-
valo aprendeu a realizar as mudanças de velocidade e direção através das
mudanças de posição da embocadura, sem, necessariamente, relacioná-la
com a ação do cavaleiro. (No fenômeno equitação, o cavalo utiliza a orien-
tação da embocadura como um navegante usa uma bússola.) As esporas,
sutilmente usadas, atuam como estímulos para a retração e a protração dos
membros que, na velocidade da ação, são incorporadas à dança das ilusões
do cavalo. O bom cavaleiro atua como um sistema central de manejo e não
como um instrumento de dominação.
Muitos cavaleiros têm dificuldade de entender que o cavalo não “obe-
dece” as suas ordens de modo lógico e linear como imaginavam. Isso pro-
vavelmente ocorre por pertencerem a uma cultura obcecada pelo controle
e o domínio sobre o meio ambiente e ignoram a possibilidade da coorde-
nação consensual de conduta entre as espécies na natureza.
Agora, com a ajuda do biólogo Dr. António Damásio, e do veteriná-
rio Dr. Gustavo Braune, passaremos a estudar a dança das ilusões que per-
mite o cavaleiro/amazona montar e conduzir um cavalo com segurança a
partir de uma posição no seu dorso.
O fenômeno equitação é para o cavaleiro um jogo de ilusões ainda
mais complexo. Isso porque o cérebro humano, por ser estruturalmente
mais complexo, está mais sujeito a fazer leituras erradas dos sentidos. A
primeira, e talvez mais importante ilusão humana no fenômeno equita-
ção, é justamente quando o cavaleiro imagina estar “controlando” o cavalo
através do uso da embocadura. Física e psicologicamente não é possível
“controlar” um cavalo através da embocadura sem antes tê-lo controlado
emocionalmente. Ganhar a confiança do animal é, pois, condição sine qua
non para desencadear o fenômeno equitação. Como vimos, a embocadura
serve para ajudar a “guiar” o cavalo e não para “controlá-lo”. Isso acontece
porque a equitação de alta sensibilidade é a consequência de uma relação
simbiótica interespécies e não de uma relação escravista do tipo eu mando
e você obedece, como é o caso da montaria de baixa biotecnologia. Mas as
ilusões humanas acerca do fenômeno equitação não param aí.
O equilíbrio do cavaleiro sobre o dorso do cavalo é fortalecido atra-
vés dos estribos que provocam uma ilusão perceptiva denominada ilusão
de base. A ilusão de base vivenciada pelo cavaleiro tem origem em uma
adaptação cerebral que remonta à própria evolução da espécie humana –
precisamente dos primatas braquiais da nossa fase arbórea. Para encontrar

264
Parte III Odisséia na Ciência

estabilidade no topo das árvores, os nossos antepassados desenvolveram


um tipo de cérebro capaz de produzir uma sensação de estabilidade, mes-
mo que ilusória, quando se movimentavam na copa das árvores. (O fenô-
meno sugerido por Richard Dawkins). A ilusão de base permite ao indiví-
duo aumentar o seu equilíbrio assim como a luz permite aumentar a visão.
Na vida moderna, a ilusão de base permite, entre outras coisas, que
equilibristas andem na “corda bamba” e realizem acrobacias tendo como
base uma bola, roda ou outro elemento instável. George Page sugere que
“a vinculação íntima com o mundo natural pode ser a nossa primeira e
mais importante herança cultural.” Isto é uma verdade absoluta que pode
ser comprovada por meio do fenômeno equitação. A não ser o homem,
nenhum outro animal seria capaz de levar um cavalo ao nível olímpico de
excelência esportiva como no Adestramento, Salto ou Rédeas. Entretanto,
um cachorro, gato ou chimpanzé seria igualmente capaz de aprender a se
equilibrar sobre um cavalo, mas esses animais não seriam capazes de con-
duzi-lo, já que é um domínio exclusivo da evolução do cérebro humano
com a ajuda de ramificações nervosas, herdadas dos ancestrais primatas.
Mas como é possível o homem moderno ter resquícios comporta-
mentais de seus antepassados primatas que viveram há milhões de anos?
Esse fenômeno pode ser explicado por meio de uma evidência científica
que chamamos de “arquivos genéticos”.60 Com o passar dos tempos, os ani-
mais sofrem mutações aleatórias que, através da seleção natural proposta
por Darwin, os adaptam para sobreviver às mudanças ambientais. Entre-
tanto, habilidades que lhes foram úteis em estágios evolutivos passados
não desaparecem ao se tornarem supérfluas, mas submergem para níveis
inferiores da memória onde são “arquivados” e permanecem em estado
latente. Para resgatá-las, basta que as habilidades se tornem novamente
estimuladas – como é o caso dos ginastas rítmicos Daiane dos Santos e
Diego Hipólito, (que fazem exercícios que até Deus duvida).
A compreensão de como o homem e o cavalo se comunicam durante
uma reprise de Adestramento é possível através da neurofisiologia: o cava-
leiro corretamente posicionado sobre o dorso do cavalo produz, ele mes-
mo, os movimentos que deseja que o cavalo reproduza; o animal, por sua
vez, os capta e os replica através de terminais nervosos espalhados sobre
a superfície da pele.61 Mas como pode o homem executar os movimentos
Arquivo genético, uma expressão científica do Médico Veterinário Dr. Gustavo Braune.
60

As rédeas que conectam a boca do cavalo com as mãos do cavaleiro são também utilizadas para
61

ajudar o cavaleiro a “induzir” o cavalo a tomar a posição estrutural correta para facilitar o início
dos movimentos e a manutenção dos movimentos.

265
Bjarke Rink

do cavalo já que o homem é bipedal e se desloca na vertical e o cavalo é


quadrupedal e se desloca na horizontal?
Aqui entra mais um “arquivo genético” na dança das ilusões: o do
movimento quadrupedal que herdamos dos tempos em que os nossos an-
tepassados eram quadrúpedes. O vestígio deste fenômeno pode ser verifi-
cado pelo fato de, até hoje, andarmos com a alternância dos movimentos
da perna direita em sincronismo com o movimento do braço esquerdo,
e vice-versa; padrão de movimentos iguais ao do cavalo originários do
nosso estágio quadrupedal.
No fenômeno equitação, os movimentos amplos – as passadas do ca-
valo – são estimulados pelo sistema locomotor do cavaleiro (as pernas) e
automaticamente reproduzidos pelo sistema locomotor do cavalo. Os mo-
vimentos finos – o limite de velocidade e direção do cavalo – são sugeridos
por meio da manipulação da embocadura e, por sua vez, decifrados pelo
cavalo com a ajuda dos sensores nervosos em sua boca. A habilidade do
cavaleiro de manipular a embocadura através das rédeas, assim como a do
cavalo de decifrar o código de comunicação emitido para a embocadura,
tem origem biológica semelhante. Vejamos:
Para eliminar espinhos, ou partes indesejáveis dos alimentos, os hu-
manos desenvolveram uma sensibilidade manual possibilitada por senso-
res nervosos especializados situados nos dedos e na boca. O cavalo, por
sua vez, faz a seleção alimentar com a boca e desenvolveu, nas comissuras
labiais, na língua e na cavidade bucal, uma sensibilidade semelhante, que
também lhe permite eliminar partes indesejáveis da alimentação. Quando
a mão do cavaleiro e a boca do cavalo interagem através das rédeas, esses
dois órgãos supersensíveis fazem a transmissão e a leitura dos movimentos
finos do fenômeno equitação utilizando a embocadura como ferramenta.
Esse é um fenômeno de comunicação dinâmica que em nada difere de
quando dançamos com uma donzela/donzelo. (Sendo que a donzela tem
plena consciência de que é o homem que a conduz, mas o cavalo não).
Mas como explicar este desnível cognitivo entre o homem e o cavalo?
Se analisarmos a estrutura cerebral de um cavalo, observaremos que
no topo do seu cérebro existe o córtex que controla seu movimento mus-
cular e aprendizado. Já no cérebro humano existe, acima do córtex, o ne-
ocórtex, a sede das capacidades de aprendizado e abstração de que o ho-
mem é capaz. O neocórtex permite ao cavaleiro decorar percursos, isto é,
memorizar longas cadeias de reflexos da equitação permitindo-o, na dança
das ilusões, antecipar e modificar o movimento do cavalo.

266
Parte III Odisséia na Ciência

No fenômeno equitação, o universo interior do homem e do cavalo –


os estados emocionais e movimentos corporais – tornam-se estreitamente
ligados numa complexa coreografia de coordenação comportamental na
qual a dança das ilusões, mesmo sendo despercebida pelos parceiros, se
transforma em dança física. (Sim, dançamos com o cavalo). O fenômeno
equitação, em todas as suas modalidades, é uma dança interespécies – e a
coreografia só se consegue através da mudança comportamental do ho-
mem e do cavalo que envolve, inclusive, mudanças anatômicas do cérebro
dos parceiros. Um cavalo e um cavaleiro de alta performance terão desen-
volvido mudanças anatômicas do cérebro que os fazem diferentes de um
cavalo e de uma pessoa que nunca praticou equitação.62
O fenômeno equitação é uma síntese da suprema inteligência animal,
onde cooperação, coordenação de movimentos, audácia, intuição, e espí-
rito de cooperação, são possibilitados por corpos que interagem, se con-
fundem e produzem o racionalmente impossível. O cavaleiro é a moldura
e o cavalo a pintura. O único homem a capturar em sua totalidade a ima-
gem do fenômeno equitação foi o escultor grego Phidias63 que através da
imagem do Centauro – um corpo de cavalo com um uma cabeça humana
– celebrou com perfeição a simbiose neurofisiológica que mais contribuiu
para transformar o mundo como hoje o conhecemos.

62
Segundo Oliver Sacks todo aprendizado intensivo como a música, por exemplo, muda a ana-
tomia do cérebro. A equitação, que envolve todos os sentidos, inclusive o crítico sentido de
equilíbrio, deverá ter o mesmo efeito.
63
Phidias – c480 a.C-c430 a..C. escultor grego e o arquiteto da Acrópole de Atenas

267
Bjarke Rink

CAPÍTULO 54

Serão os Ecos do Passado


a Música do Futuro?

Com a ajuda dos ecos cósmicos do ‘big bang’, os cosmólogos começam


a desvendar a origem do universo. Nesta linha de raciocínio, o que nos su-
gerem os ecos da equitação do passado? Eles sugerem que a equitação foi
inventada em um só lugar – na Ásia Central – e através dos séculos de ex-
pansão se tornou a principal ferramenta para a humanidade realizar as
suas ambições. Os ecos do passado sugerem, também, que a utilização do
cavalo foi, e continuará sendo, mais importante na vida social do homem
contemporâneo do que a sua antiga função como arma de guerra. É sob essa
ótica que os estudiosos vão analisar a História da equitação e a expansão
mundial do Poder Equestre.
Charles Darwin foi portador de uma notícia horrorosa para a opinião
pública – o homem pertence ao gênero evolutivo dos ‘primatas’. Esta bomba
noticiosa pegou a elite européia de surpresa, pois ela, romanticamente,
se associava a animais nobres como leões, águias e cavalos – e fabulosos
como grifos, unicórnios e dragões – e até com árvores, folhas, flores e
frutos. A heráldica européia está intimamente associada a símbolos de
nobreza, fidalguia e cavalaria. Mas nenhum valente paladino, montado
em seu fogoso corcel, jamais associou a imagem da sua nobre ancestrali-

268
Parte III Odisséia na Ciência

dade ao macaco e, para simbolizar a sua origem, apresentou-se para dis-


putar uma justa com um chimpanzé pintado no seu escudo. Sem dúvida,
Darwin deu uma covarde estocada na dignidade européia. No século 20,
o eurocentrismo recebeu outro duro golpe – a humanidade não surgiu
com o homem branco de Paris mas, sim, com o homem negro do Quênia! A
ciência não pára de prover verdades inconvinientes para deturpar todos
os vantajosos preconceitos acumulados e a denegrir a inflada opinião que
alguns ‘macacos pelados’ e despigmentados fabricaram sobre si próprios.
E, mesmo que a ciência ainda não tenha se definido sobre essa ques-
tão, podemos, com 100% de acerto, antecipar uma outra notícia descon-
certante: a equitação não foi inventada na Europa e os europeus nunca fo-
ram os melhores cavaleiros do mundo. Ela foi inventada na Ásia Central e
a equitação natural dos povos nômades é provavelmente a que atingiu o
mais alto nível de interação neurofisiológica entre cavalo e cavaleiro.
Mas qual foi, então, a contribuição da Europa para a equitação? No
passado, muito pouco. O legado da cultura ocidental para a equitação pa-
rece estar reservado para o século 21, quando a revolução da biologia vai
beneficiar a equitação como em nenhuma outra época da História. Para
compreender o futuro, vamos escutar os ecos do passado.
A equitação foi inventada por povos nômades, há cerca de 6 mil anos
e, através dos tempos, se tornou uma maneira eficiente de levar vantagem
na disputa pelos recursos materiais das estepes. O princípio que regeu o
relacionamento do cavaleiro com o cavalo foi o de criar uma unidade bio-
lógica que resultou num eficiente predador. Com o passar de um milhar
de anos, a fusão neurofisiológica entre os parceiros se tornou tão completa
que os Centauros eram capazes de saquear cidades inteiras, e até impérios,
usando somente cavalaria. Todos os testemunhos da História afirmam que
os guerreiros nômades e seus cavalos operavam como um só e, durante os
ataques, milhares de cavaleiros eram capazes de se coordenar como uma
única unidade – a exemplo de uma revoada de pássaros – sonho, nunca
realizado, de qualquer comandante de cavalaria do ocidente. Mas por que
então os cavaleiros europeus, de equitação obviamente inferior, sempre
chamaram os nômades orientais de “rudes cavaleiros” ou, na melhor das
hipóteses, de “cavaleiros naturais”? Vamos examinar a motivação social
que está por trás do desenvolvimento da equitação da Europa.
Se o homem ocidental, sobretudo o europeu, não inventou a equi-
tação, ele, sem dúvida, introduziu modificações para que ela servisse aos
seus propósitos. Quais seriam esses propósitos? Bem, segundo a nova psi-

269
Bjarke Rink

cologia evolutiva, o Homo sapiens ocidental queria a mesma coisa que o


Homo habilis de Laetoli – reforçar hábitos que lhe ajudassem a sobrevi-
ver e a se reproduzir, como comer e copular. Aprendemos com a ciência
que o gene pressiona o homem a buscar ‘status’ social porque isto, além
de riqueza, atrai parceiras: o chamado afrodisíaco do poder. (Enquanto
Montezuma possuía cerca de 4 mil mulheres em seu harém e os nobres
da sua corte quantas eles conseguissem apanhar, o índio proletário mal
achava uma mulher para se casar.) Mas será que a equitação só serve para
isso, perguntará o leitor? Espere. Quando as sociedades agrárias do ‘Velho
Mundo’ adotaram o cavalo, elas se expandiram economicamente além da
imaginação e, para manter a coesão política e econômica, as suas estru-
turas sociais foram organizadas em hierarquias cada vez mais complexas.
Nesta crescente pirâmide social, os homens que ocupavam os escalões su-
periores trabalhavam continuamente para criar símbolos inequívocos do
seu alto lugar na sociedade. (E os membros dos escalões inferiores co-
piavam rapidamente estes símbolos para serem confundidos com os de
cima.) Mas sapatos de bico fino, fivelas enormes, capas de veludo, luvas
bordadas, calças da moda, camisas de seda, chapéus emplumados, colari-
nhos Tudor, jóias cintilantes, e muitos outros refinamentos da moda, po-
diam ser rapidamente copiados pelos “novos ricos”.
Nesta disputa por status social, o alto custo do cavalo e a dificuldade
de aprender equitação ganharam uma importante função: mostrar defini-
tivamente quem era quem na hierarquia social. Na Europa, a ênfase no uso
do cavalo passou da mobilidade militar para a mobilidade social. Isto é, a
pressão social foi o principal fator a consolidar o tipo de equitação desen-
volvido na Europa, porque o cavalo e a equitação foram os principais meio
de distinção hierárquica. Nas sociedades agrárias, urbanas e sedentárias,
a glória do cavaleiro não residia prioritariamente no campo de batalha, e
sim no desfile militar. Exemplo: Caio Júlio César solicitou ao senado Ro-
mano o direito de realizar um desfile militar em Roma que, como um des-
file carnavalesco na Marques de Sapucaí, evocava as suas façanhas mar-
ciais. No seu Triunfo Gaélico, realizado em 46 a.C, ele incluiu os inimigos
derrotados, os soldados e estandartes capturados, o butim conquistado
(a maior parte), as falanges romanas vitoriosas, e o vasto desfile foram
liderados por oficiais romanos montados em seus belos corcéis brancos,
culminando com a presença do magnífico ‘Eu, Caio Júlio César’, engala-
nado com uma resplandecente armadura dourada –, a perfeita imagem

270
Parte III Odisséia na Ciência

do herói triunfante, em seu momento de glória. Esse desfile quádruplo64


elevou César de general ao posto de Cônsul, e depois Ditador plenipo-
tenciário por Roma. Mas eram os romanos bons cavaleiros, homens em
perfeita sintonia neurofisiológica com seus cavalos? O que importa isso,
dirão os historiadores. Se não foram excelentes cavaleiros, pelo menos
pareciam naquele lindo dia de verão, desfilando pelas principais vias da
Cidade Eterna diante da plebe ignara.
Conhecendo a natureza humana, podemos assegurar que, nas civili-
zações sedentárias, a realização do desfile militar se tornou mais impor-
tante do que a própria guerra, como na política moderna a inauguração
de uma obra pública é mais importante do que a razão para a sua cons-
trução. “Morrer pela pátria é ideologia de camponês – a nobreza tinha de
sobreviver para governá-la”, comentou Gabby Heyes ao seu cavalo Partner
quando, certa vez, eles observavam a abertura do parlamento britânico
em Londres.
Qualquer historiador pedestre (quero dizer, não equestre) sabe que
as guerras da Idade Média acabaram se transformando em combates or-
ganizados para produzir cada vez menos mortes e mais dinheiro. E es-
tes confrontos militares de “mentirinha” acabaram se transformando nas
“justas”, e depois na Alta Escola de Antoine de Pluvinel e François Robi-
chon de la Guérinière. Na Renascença, a principal função da Alta Escola
foi a de preparar cavalos e cavaleiros da nobreza para as apresentações de
cavalaria. Nestes desfiles não havia a necessidade de o general vitorioso
parecer indivisível com seu cavalo – pelo contrário – seria até bom que
a população visse indícios de “quem” é que realmente estava no domínio
da situação. Só cavaleiros brilhantes, como M. de Pluvinel, tinham cons-
ciência de que a apresentação do mais alto nível é quando o cavalo parece
comandar a ação.
Depois da Idade Média, o ofício do general europeu não seria mais
o de ser um bom cavaleiro mas, sim, o de ser bom general. O Duque de
Newcastle foi um excelente cavaleiro, mas péssimo general; e Napoleão
Bonaparte foi um cavaleiro sofrível, mas excelente general. Tudo isto aju-
da a explicar as embocaduras severas e o excesso de reunião verificada na
‘equitação cerimonial’, lenta, elaborada, rebuscada e barroca, desenvolvi-
da nas cortes da Europa ocidental.
Sabendo, entretanto, que o cavaleiro não inventa os movimentos do

O Triunfo quádruplo realizado por César em 46 a.C. comemorou as suas quatro grandes vitó-
64

rias na Gália (França), Egito, Ponto (Turquia) e África do Norte.

271
Bjarke Rink

cavalo, e que a sua arte está em administrar os reflexos naturais do animal,


onde os inventores da equitação cerimonial foram buscar os movimentos
utilizados nas paradas militares e nas apresentações de Alta Escola – tão
diferentes do tipo de equitação usada para a guerra? Já na Antiguidade,
por observação, os cavaleiros aprenderam a utilizar e a repetir os movi-
mentos que os garanhões usam para cortejar uma égua ou para impressio-
nar um garanhão rival antes da luta: o cavalo arqueia o pescoço e reúne as
pernas debaixo da massa corporal para parecer mais alto, mais viril, mais
disposto e magnífico. Os seus movimentos demonstram grande nobreza
e vigor para impressionar a fêmea cortejada, além de grande força e dis-
posição de luta para intimidar o garanhão adversário. Todas essas atitudes
são também fundamentais para acelerar o fluxo de adrenalina e aquecer
a musculatura, além de ser ótimo para impressionar a platéia de equinos.
(Essa pose de virilidade também faz parte do prelúdio do amor e da luta
do ‘macaco pelado’, que encolhe a barriga, estufa o peito e tenta parecer
mais alto do que é, na presença das fêmeas e de possíveis rivais).
Mas, com o domínio desses movimentos espetaculares na equita-
ção, surgiu o eterno equívoco. Em toda a história, assistimos aos mestres
equitadores tentarem justificar os movimentos de Adestramento e altos ares
com o seu uso em combate – suposição que podemos hoje descartar total-
mente como sendo uma simples ideologia guerreira. (O próprio Xenofon-
te sonhava em produzir um bom cavalo de batalha e que fosse, ao mesmo
tempo, um bonito cavalo de parada).
Um cavalo não é como um arco que precisa ser envergado para lançar
uma flecha – um cavalo tem agilidade, também, quando não está reunido
– basta assistir ao trabalho de um cavalo de apartação. E até o bom senso
de Charles Chenevix Trench falseia quando ele tenta associar a ‘reunião’
recomendada por Xenofonte com a topografia da Grécia. Na sua opinião,
“os cavalos gregos precisam ser montados de forma ‘reunida’ para se equi-
librarem no terreno acidentado da Grécia”. Aos olhos da fisiologia da equi-
tação moderna, Caprilli estava certo, outra vez: o cavalo não precisa estar
reunido para desempenhar qualquer função equestre.
A ‘reunião’ é um reflexo natural do cavalo, utilizado pelo cavaleiro
para magnificar o espetáculo equestre, e assim deve ser considerada. A
equitação cerimonial desenvolvida na Europa servia para apresentar o no-
bre cavaleiro numa aura espetacular de glória militar. Isto era psicologi-
camente importante para o sucesso daquelas vitoriosas sociedades e, por
isso, não há necessidade de se fabricar justificativas para explicar o fato.

272
Parte III Odisséia na Ciência

A tentativa de confundir o cavalo, apresentado no desfile militar, com o


cavalo que efetivamente ganhou a guerra, foi apenas uma impostura ingê-
nua perdoável numa sociedade romântica e pré-científica.
O brilho das armaduras; o esplendor dos uniformes; o lustre dos
galões; o balanço dos penachos; o lampejo da prataria em selas, rédeas,
peitorais e rabichos. O magnífico chacoalhar de sabres; o repique de em-
bocaduras; o tilintar de esporas; a pompa; as bandeiras nacionais; os es-
tandartes marciais; a música militar; o rufar dos tambores e o trovejar
ensurdecedor de milhares de ferraduras no pavimento, ofuscam a visão,
aceleram o coração e criam a ilusão de uma equitação superior. E não há
nada de errado nisso.
Na Europa, o brilho da equitação cerimonial substituiu a perfeita
união simbiótica do cavaleiro das estepes que, como o mais perigoso dos
predadores, não precisava de nenhum artifício além da carreira objetiva,
do bote certeiro e das manobras de grande precisão para assegurar a sua
vitória em combate. Mas, no ‘ciclo esportivo’ do cavalo, consolidado no
século 20, a fusão neurofisiológica de cavalo e do cavaleiro começa nova-
mente a fazer sentido, quando o décimo de segundo e a perfeita união de
movimentos é a diferença entre uma vitória e uma derrota olímpica. Serão
os ecos do passado a música do futuro?

A equitação natural dos guerreiros da Ásia Central e a equitação


cerimonial das cavalarias da Europa Ocidental tiveram funções específicas
que trouxeram grande benefício para as culturas a que serviram. E agora,
quando voltamos a buscar uma equitação que requer grande precisão
na sua execução, as ciências da vida estão fornecendo os dados para a
fusão neurofisiológica do Centauro moderno e a formação de superatletas
equestres à imagem dos cavaleiros “naturais” da antiguidade.

273
Bjarke Rink

CAPÍTULO 55

O Fim da Visão
Mecanicista da Equitação

As leis da mecânica trouxeram grandes inovações para as pessoas –


ferrovias, máquinas agrícolas, aparelhos industriais, pontes, edificações,
navios, automóveis. Ofereceu tantas soluções práticas para o progresso da
humanidade que o cidadão urbano passou a raciocinar mecanicamente, até
quando lida com seres vivos, que são muito mais complexos do que qualquer
engenho mecânico. Esta é provavelmente a razão pela qual a visão mecani-
cista do cavalo está sendo tão difícil de ser erradicada na nossa filosofia de
equitação.
“O cavalo, como todo ser organizado, possui um peso e uma força
peculiar a si próprio”, escreve François Baucher no seu controvertido livro,
La Nouvelle Méthode. “É entendido que esta força motivacional é subdivi-
dida e distribuída ‘ad infinitum’ por toda a musculatura do cavalo. Quan-
do este último [o cavalo] determina o uso das suas forças, elas são ‘instin-
tivas’. Quando a força emana do cavaleiro, eu chamo-a de ‘transmitida’. O
cavalo, desde o momento que é montado, deve agir por força ‘transmitida’.
Sendo as forças do animal os elementos que o cavaleiro trabalhará prio-
ritariamente, é nelas que ele deve se fixar, antes de tudo. Ele estudará o
que elas são, de onde surgem, quais as partes da anatomia que elas mais

274
Parte III Odisséia na Ciência

contraem para causar resistência e as causas físicas que ocasionam estas


contrações. Infelizmente, podemos procurar em vão nas obras de autores
de equitação, antigos e modernos; não digo nem buscar princípios racio-
nais, mas buscar qualquer informação sobre as forças do cavalo. Todos
[os autores] falam elegantemente sobre resistência, oposições, leveza e
equilíbrio; mas ninguém soube nos explicar o que causa estas resistências,
como combatê-las, destruí-las e obter a leveza e o equilíbrio que eles tanto
recomendam”.
Essas foram algumas das considerações de Baucher no capítulo inti-
tulado “As Forças do Cavalo”, em seu livro La Nouvelle Méthode. A primei-
ra coisa que salta aos olhos é que Baucher considera que a força do cavalo
e o seu equilíbrio estão distribuídos por todos os músculos do cavalo. De-
pois, ele parece entender que o cavaleiro deve “anular” a força do animal,
que então receberá uma força “transmitida” pelo cavaleiro. Baucher re-
clama dos outros autores (do passado e do presente) que não souberam
identificar a “fonte” da força e da habilidade do cavalo – fonte que ele,
obviamente, também desconhece e nem poderia saber localizar. “Primei-
ramente, eu estabeleci o princípio de que toda a “resistência” de um jovem
cavalo surge de causas físicas, e que estas causas só se tornam “morais”
(veja capítulo Equitando na Zona de Conforto) através da ignorância e da
brutalidade do cavaleiro. É fato que todos os animais jovens possuem uma
certa inflexibilidade física peculiar à sua conformação mais ou menos per-
feita, que constitui o grau de harmonia que existe entre as suas forças e o
seu peso. A falta desta harmonia ocasiona os andamentos desengonçados
e a dificuldade de seus movimentos; numa só palavra, são os obstáculos
para uma boa educação.”
Baucher continua a insistir que a “causa” de toda a resistência do ca-
valo aos ensinamentos do cavaleiro, e as suas “imperfeições” comporta-
mentais, tem origem na “conformação” do cavalo – e que essas causas,
as imperfeições dos movimentos, só se transformam em “insubordinação”
através dos maus tratos do cavaleiro. “Em liberdade, seja qual for o pro-
blema estrutural, o seu instinto é o suficiente para ele fazer uso da sua
força, para manter o equilíbrio”. Com esta informação pegamos Baucher
em mais um equívoco – em vez de reconhecer que é o cavaleiro que de-
sequilibra o cavalo em qualquer circunstância, ele quer nos fazer crer que
o cavalo com ‘imperfeições’ morfológicas se movimenta normalmente
quando em liberdade, e que os seus defeitos de conformação só causam
problemas quando o animal é montado! Continua Baucher: “Para corrigir

275
Bjarke Rink

o desequilíbrio e a rebeldia do cavalo, temos de destruir as suas causas: a


má-distribuição das forças pelo organismo e a inflexibilidade causada pela
má-conformação. E como é possível remediar essas coisas?”
“Nós não estamos querendo mudar a estrutura do animal e reformar
o trabalho da natureza. Claro que não – confesso que não é possível dar
mais largura a um peito, dar mais comprimento a um pescoço curto, abai-
xar uma garupa alta, encurtar e encher um lombo comprido e estreito.
Mas, insisto que é possível prevenir os movimentos irregulares feitos pelas
partes defeituosas, se eu fornecer, dominar e usar a força ao meu modo,
tornando-se até fácil prevenir estas resistências, dar mais ação às partes
enfraquecidas, e moderar aquelas que são muito vigorosas, e assim supe-
rar as deficiências da natureza. Como os movimentos habitam partes dife-
rentes do corpo, vamos vencer combatendo-os separadamente; como um
general habilidoso que destrói em etapas as forças que, quando reunidas,
ele seria incapaz de enfrentar (...)”. “Está claro que, se o focinho do cavalo
estiver levantado no ar, isso dará ao cavalo a força de resistência de 200
libras; essa força será reduzida para 100 libras quando trazemos a cabeça
do cavalo para uma posição semiperpendicular, e para 50 libras quando
se aproxima ainda mais a esta posição, e a nada quando a cabeça estiver
perfeitamente colocada”, conclui o mestre equitador.
Para discordar destas declarações totalmente mecanicistas de Bau-
cher, que atribui a incompetência atlética do cavalo à sua má-conforma-
ção, dá para escrever um livro ou redigir um parágrafo; como ainda temos
muitos outros assuntos equestres a tratar, vou optar pelo parágrafo.
Baucher, como era comum no seu tempo, analisava a funcionalidade
do cavalo como se este fosse uma máquina e não um indivíduo dotado de
emoções e sensibilidade. Ele ressalta as suas qualidades e seus “defeitos” de
conformação, mas desconhece a sua estrutura neurológica – que é a “fonte”
da força, do equilíbrio, do temperamento e do comportamento geral de
todo ser vivo. Ele mede a força do cavalo em libras de pressão, como se
fosse uma máquina (ao contrário de James Watt que estabeleceu o padrão
Horse Power para medir a força dos motores). Baucher é a imagem viva
do malabarista verbal fazendo joguete com a zootecnia equina segundo
as leis da física do seu tempo newtoniano. Baucher não tinha como com-
preender que o adestramento do cavalo é um processo de educação que
tem de ser abordado com técnicas de comunicação. O seu método é me-
cânico e consiste em dominar e destruir as forças de oposição do cavalo.
Não há, nem poderia haver, vestígio de Pavlov, Sherrington ou Skinner no

276
Parte III Odisséia na Ciência

seu pensamento; nenhum destes cientistas havia nascido no seu tempo.


(Pavlov só nasceria em 1842, sete anos depois da publicação do La Nou-
velle Méthode.) Raramente, Baucher admite algum traço de inteligência na
cavalgadura. É ele, o cavaleiro, que transmite a força, ajusta o equilíbrio,
anula e destrói as forças opositoras, como Napoleão na batalha de Maren-
go! Comunicar-se com o cavalo? Impossível. Adestrar, na era da mecânica
significa “reduzir” o cavalo às leis da física conhecida. É Newton puro.
Mas hoje muitos cavaleiros ainda pensam nestes termos.
Hilda Nelson, em seu livro François Baucher, o Homem e o Método,
pergunta: “A questão, às vezes, colocada é: por que Baucher está cientifi-
camente correto e os seus opositores errados? A resposta para isso é ló-
gica simples. Se o cavaleiro requer obediência, eficiência em locomoção e
postura combinadas com leveza e segurança, o cavalo deve poder ajustar
o seu equilíbrio ao ponto em que possa trazer o seu centro de gravidade,
diretamente e verticalmente, o mais perto possível ao seu centro de movi-
mento.” Olha leitor, do ponto de vista das leis da mecânica, as postulações
de Baucher estão corretas. Mas a equitação de um cavalo é muito mais
do que leis mecânicas – o adestramento do cavalo envolve as leis da bio-
mecânica – um fenômeno mais complexo que exige uma filosofia mais
avançada.
Ler um livro sobre equitação de qualquer época é como olhar um qua-
dro pré-renascentista; figurativamente, está tudo lá: o castelo, as pessoas
em volta, a donzela na janela, o soldado passando no cavalo, o cachorro na
rua e o guarda na guarita. Mas não há profundidade na imagem, nem pro-
porção entre os elementos figurativos. Não se distingue nitidamente o que
é figura e fundo. O ponto de fuga é inexistente. Enfim, não há perspectiva
na imagem; e por isso, o quadro está incompleto. O raciocínio mecanicista
da equitação está igualmente incompleto ao não reconhecer a inteligência
e a individualidade do cavalo, desconhecer a sua estrutura psicomotora,
que é a “fonte” dos seus movimentos. Entender apenas o aspecto mecânico
do cavalo e ignorar o aspecto da psique do animal prejudica o aprendiza-
do da arte de equitar e a formação de novos e bons equitadores.
Não esqueçamos, entretanto, que François Baucher foi um hábil ca-
valeiro e grande conhecedor de cavalos, que fazia do animal o que queria
– e, como já vimos, introduziu no Adestramento Clássico a troca-de-pés-
-ao-tempo e o galope à ré (este último execrado por Gustav Steinbrecht).
A exemplo dos grandes equitadores do passado, ele sabia fazer, mas não
sabia explicar por que funcionava. Ele não tinha consciência de que havia

277
Bjarke Rink

organizado os reflexos naturais do cavalo em ‘reflexos automatizados da


equitação’. Instintivamente, e com grande prática, ele fazia um trabalho
quase perfeito. Mas quando tentava colocar o seu pensamento no papel,
o seu raciocínio produzia apenas uma descrição mecânica. Faltam-lhe os
conceitos e as palavras adequadas. Mas isso também não o impede de es-
crever coisas que demonstram uma certa visão psicológica da equitação:
“Preste atenção, cavaleiro: se o seu cavalo é temperamental, violento ou
maníaco, teremos o direito de dizer que você não brilha pela sua serenida-
de e propriedade de conduta”. E ainda: “O cavalo se entregará mais facil-
mente quando bem tratado; sua inteligência, tornando-se familiar com os
ensinamentos, acelera o sucesso. Ele se submeterá calmamente para qual-
quer trabalho que não lhe provoque dor, e a sua educação se desenvolverá
aos limites mais distantes, sem prejuízo à sua integridade física.”
François Baucher viveu, trabalhou e escreveu na Alta Idade Mecâni-
ca, numa época em que todo o conhecimento era formulado em termos
mecânicos. Mas isto não o impediu de ser um dos melhores cavaleiros do
seu tempo. O seu raciocínio mecanicista o impediu apenas que descreves-
se, sob a ótica psicofísica, tudo o que ele sabia sobre cavalos e equitação.
No tempo de Baucher, a cultura equestre mundial se encontrava naquele
impasse tão bem definido por Paulo Francis: “O que se tinha a dizer já foi
dito, e o que há a dizer ninguém consegue colocar em palavras”.

Para quebrarmos a visão mecanicista da equitação e iniciarmos o que


iremos chamar de uma Nova Ciência da Equitação, vamos definir quais
as disciplinas que fundamentarão os estudos avançados da equitação:
a Simbiose da Equitação, a Psicologia da Equitação, a Fisiologia da
Equitação, a Neurofisiologia da Equitação, a Comunicação da Equitação e
a Cibernética da Equitação.

278
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 56

Uma Revolução em Ebulição

Há 100 anos, Federico Caprilli iniciou uma revolução na equitação


nunca concluída. Isto porque, no seu tempo, a humanidade não possuía os
conhecimentos científicos necessários para compreender e adotar as avança-
das propostas do Capitão Italiano. Mas as idéias de Caprilli ficaram, como
sementes teimosas, aguardando o momento apropriado para germinar.
Como a compreensão da neurofisiologia da equitação é, antes de tudo, uma
revolução da mente, as novas ciências biológicas fertilizaram o solo para
as idéias de Caprilli desabrocharem. Hoje, o mundo da equitação científica
contém surpresas que poucas outras tecnologias modernas serão capazes de
superar. “Nada é tão poderoso quanto uma idéia cujo tempo chegou.”65
A agricultura e a equitação são as tecnologias biológicas mais anti-
gas desenvolvidas pelo Homem. A agricultura é praticada há cerca de 10
mil anos e, a equitação, há pelo menos seis. Para acompanhar a expansão
populacional da humanidade, as técnicas agrícolas têm se desenvolvido
através de incontáveis descobertas mecânicas, químicas e biológicas. Uma
série de revoluções verdes tem, a partir de Antoine Lavoisier,66 desmentido
todos os profetas da fome desde Robert Malthus.67
65
Victor Hugo, poeta e escritor francês (1802-1885).
66
Considerado o ‘pai’ da química moderna, Antoine Laurent Lavoisier (1743-1794) é considera-
do, por muitos, o descobridor do oxigênio.
67
Thomas Robert Malthus, economista inglês, publicou a obra que o tornaria mundialmente fa-

279
Bjarke Rink

Entretanto, na equitação aconteceu o inverso. Montar a cavalo ain-


da é exercido pela maioria, segundo os princípios mecânicos vigentes na
Idade Média. Se analisarmos a história da equitação, sem idéias precon-
cebidas, chegaremos à inevitável conclusão de que o cavalo tem se adap-
tado mais ao homem do que o homem ao cavalo. A cada reestruturação
econômica e social, a capacidade do cavalo de se adaptar às novas exigên-
cias da conjuntura humana tem dispensado a necessidade de se promover
melhorias nas técnicas de equitação. Como já vimos, no passado o Homo
faber deu grande atenção à engenharia das embocaduras, mas com uma
visão equivocada da sua função na neurofisiologia da equitação. Montar
a cavalo foi exercido com tantas dúvidas e sistemas antagônicos que cada
geração de cavaleiros acabou suspeitando de que havia “algo errado” com
estes métodos e que, em alguma época no passado, a equitação deveria
ter sido melhor. Isso naturalmente fez com que os cavaleiros, ao contrário
dos agricultores, se voltassem para o passado para encontrar as soluções
para o futuro.
O cavalo se adaptou a erros técnicos de equitação tão absurdos que
se, por analogia, fossem erros de engenharia, os prédios construídos te-
riam todos desabados. Superou erros de manejo que, se fossem aplica-
dos na agricultura, a humanidade teria, há muito, perecido de fome. O
cavalo suportou barbaridades psicológicas tão graves que, se cometidos
com seres humanos, esses teriam se tornado ‘serial killers’. (Veja capítu-
lo Sabedoria Nômade numa Civilização Urbana.) Se as aeronaves fossem
pilotadas com a imperícia com que a maioria dos cavalos é montada, a
aviação comercial seria inviável. Nenhuma profissão teria se desenvolvido
com princípios tão conflitantes e equivocados quanto a da equitação. Em
imperícia, o cavaleiro só pode ser comparado ao motorista. No Brasil, a
incompetência no trânsito mata cerca de 50 mil pessoas por ano (uma
guerra do Paraguai a cada dois anos), porque o carro faz exatamente as
idiotices que o seu motorista manda. Na Europa, morrem 200 mil pessoas
por ano devido à imperícia de dirigir automóveis.
Na equitação, o sistema sensitivo-motor do cavalo evita a maioria dos
problemas causados pela inabilidade do cavaleiro despreparado. O cavalo
dificilmente capota, quase nunca bate de frente, raramente cai em bura-
cos, jamais bate em árvores, nunca afunda num rio, normalmente conse-

moso: na Essay on Polulation – Ensaio Sobre a População. Nessa obra, Malthus defende a tese
de que a população mundial aumenta geometricamente e a produção de alimento aritmetica-
mente. Até hoje, 200 anos depois, esta previsão não se confirmou mundialmente.

280
Parte III Odisséia na Ciência

gue evitar a maioria dos desatinos do piloto incompetente – e geralmente


evita até a pisar numa pessoa caída. No máximo, um cavalo pode tentar
disparar para casa na tentativa de se livrar do intolerável “corpo estranho”
que se aboletou nas suas costas. E, apesar de a equitação envolver leis bio-
lógicas muito mais complexas do que as leis do trânsito, muita gente acha
que não é preciso aprender a montar a cavalo.
O cavalo cumpriu tão bem os seus diversos papéis na economia e na
sociedade que, com a sua ajuda, a humanidade pôde inaugurar, de tempos
em tempos, uma nova era de prosperidade. Visto como uma máquina, o
cavalo foi a máquina mais perfeita que a humanidade já teve o prazer de
conhecer – apesar de que pouquíssimas pessoas tiveram a capacidade inte-
lectual para entender o fenômeno.
Podemos afirmar que, no passado, quando o conhecimento da hu-
manidade estava limitado à engenharia mecânica, o cavalo foi visto como
uma máquina, e a equitação como uma simples operação mecânica. Ago-
ra, que o homem está ensaiando os primeiros passos na tentativa de dar
vida às máquinas, já é possível ele entender e apreciar a complexidade do
sistema sensitivo-motor do cavalo e os fenômenos quase milagrosos do
fenômeno equitação.
Veja só: a robótica, quem diria, está destinada a mudar a percepção
que o homem tem do cavalo, assim como as pesquisas sobre o cérebro
artificial estão permitindo que se entenda o funcionamento do cére-
bro real. Imagine os problemas de engenharia que a construção de um
robô equipado com um simples sistema viso-motor – o sentido da visão
acoplado a uma capacidade mecânica de ação – teria para funcionar. A
ótica, como utilizada na engenharia de televisão, o computer graphics,
e a realidade virtual, são tecnologias relativamente simples se compa-
radas ao sistema locomotor de um cavalo. Mas a ótica, como um guia
para a realização de ações motoras, dependeria de uma engenharia tão
complexa que a maioria dos cientistas sérios acredita ser impossível re-
produzir o fenômeno sensitivo-motor artificialmente. (E muito menos a
interação neurológica do homem e do cavalo para competir nos esportes
equestres.) Um físico, que queira calcular como o corpo se move quan-
do os músculos se contraem, terá de resolver centenas de problemas de
cinemática em conjunção com centenas de questões de dinâmica – o
efeito das forças sobre a matéria. Além disso, um cérebro artificial, para
calcular como contrair um músculo para fazer um corpo se movimentar,
terá de resolver problemas de cinemática e dinâmica invertida – para que

281
Bjarke Rink

seja possível calcular quanta força precisaria ser aplicada em cada ação
do robô. Acredite, companheiro de viagem, que a complexidade dos
problemas de engenharia cognitiva que o cérebro de um cavalo é capaz
de resolver num centésimo de segundos está muitos anos luz à frente da
façanha de colocar um carrinho em Marte para explorar a composição
do solo e definir o clima do planeta vermelho.
Agora, as boas notícias: depois de 6 mil anos de equitação, estamos
nos aproximando da possibilidade de realizar a primeira reengenharia da
equitação na história. Finalmente, o Homo sapiens poderá compreender
os princípios da fisiologia, da neurofisiologia, da psicologia e da cibernéti-
ca que regem a equitação. (Apesar de que, explicar como os reflexos auto-
matizados do cavaleiro se fundem com os reflexos do cavalo nos esportes
equestres – ainda vai levar algum tempo e alguns milhões de dólares para
ser completamente desvendado.) Como no caso da inteligência, é fácil
identificar uma pessoa inteligente – o diabo é explicar como funciona a
sua inteligência.
Os efeitos das grandes mudanças na tecnologia da equitação começa-
rão a ser sentidos já na primeira década deste novo século. Isso significa,
em termos práticos, que haverá, na primeira metade do século 21, mais
pessoas exercendo uma equitação avançada do que em qualquer outro
período da história da humanidade.
Serão quatro as causas principais da revolução na equitação: a prin-
cipal será a nova compreensão da individualidade do cavalo, que mudará
a atitude do equitador inteligente no seu relacionamento com o animal. A
segunda será o ensino da neurofisiologia da equitação e como o feedback
dos sentidos trafega entre o cavalo e o cavaleiro durante a ação equestre.
A terceira será a compreensão do mecanismo de aprendizagem motor do
cavalo, que modificará as técnicas de treinamento do animal. E a quarta
será as novas estratégias eletrônicas de ensino teórico da equitação para
cavaleiros iniciantes, que poderá utilizar o sistema de ‘computer graphics’
e a realidade virtual para ilustrar as vias da neurofisiologia da equitação
durante a ação equestre.
Com 100 anos de atraso, a revolução de Caprilli acabará vitoriosa. “A
roda completa a sua volta”, diria Shakespeare em meu lugar.
Mas como iniciar uma revolução na equitação, já que as suas técnicas
estão consagradas há séculos e o ‘velho mundo do cavalo’ é reconhecida-
mente uma bolha cultural atrasada e reacionária? Vamos, então, enfrentar
a primeira tempestade filosófica da equitação: será a relação homem-ca-

282
Parte III Odisséia na Ciência

valo um processo de origem simbiótica ou apenas uma técnica do primei-


ro escravizar o segundo.

A relativa facilidade com que se consegue montar num cavalo, e fazê-lo


obedecer por bem ou por mal, dispensou a necessidade de se dar maior
atenção às técnicas da equitação. A maioria dos sistemas de equitação é
fundamentada em comandos, às vezes, contraditórios, que a severidade da
embocadura acaba anulando. Com a nova percepção da individualidade
do cavalo, possibilitada pelo desenvolvimento da neurociência, da
computação e da robótica, a compreensão do fenômeno equitação dará um
salto de mil anos à frente.

283
Bjarke Rink

CAPÍTULO 57

Equitação – Esportes
em Evolução

A arte e o exercício de montar a cavalo abrange uma variedade de es-


portes só superados pelas práticas esportivas com bolas. Porém, entre todos
os esportes equestres, alguns são, na prática, ainda mais distantes entre si do
que os esportes com bolas. A principal diferença entre as práticas equestres
está na sua própria natureza: algumas podem ser enquadradas na categoria
de exercícios e outros na categoria das artes. Na categoria ‘exercício’, é preci-
so se ter alguma ‘arte’ e na categoria ‘arte’, é preciso fazer algum ‘exercício’.
Todos os esportes equestres são Universais. Existem poucas, ou nenhuma,
barreira de idade e sexo para as suas práticas. Entender estas qualidades, e
como todos os fenômenos equitação enriquece o espírito e o corpo humano, é
o primeiro passo para se valorizar os esportes equestres como eles merecem.
Qual a diferença entre um jogo de golfe, bilhar e pingue-pongue? Ou
melhor, quais são as semelhanças? A semelhança é que são três jogos na
qual a habilidade de se manejar uma bola é o centro da questão. A dife-
rença é que todas as três bolas são de tamanhos e materiais diferentes. Um
desses jogos é praticado em ambiente externo e dois em ambiente inter-
no. Os três são praticados usando-se instrumentos especialmente criados
para o jogo, com os quais se movimenta a bola. Dois são normalmente

284
Parte III Odisséia na Ciência

praticados por adultos e um é jogo para jovens. Dificilmente se vê meni-


nas e mulheres jogando os dois primeiros, que por alguma estranha razão
convencionou-se serem jogos para homens. Do ponto de vista do exercício
físico, todos os três são de baixo valor aeróbico e de pouco flexionamento
do corpo. Em dois, a arena, o espaço físico onde são praticados, é pequena
e de um é muito grande, mas percorrido ao passo entre as tacadas. São
todos de pouca utilidade cardiorrespiratória. Mas todos os três podem ser
considerados jogos ‘estratégicos’ que envolvem a habilidade humana de
colocar as bolas em situações favoráveis ao jogador, ou desfavorável ao ad-
versário, conforme as regras do jogo. Ou seja, são basicamente jogos que
acionam o sentido espacial e a coordenação motora, principalmente das
mãos – apesar de que a posição do corpo influi na habilidade das mãos.
Fora o golfe, são jogos disputados homem a homem. Os três são bastante
seguros e não envolvem risco de impactos e contusões.
Quais as diferenças e as semelhanças entre basquete, vôlei e futebol?
Vejamos: os três são praticados com bolas quase do mesmo tamanho. Dois
desses jogos são normalmente praticados em ambiente interno e um em
ambiente externo. Os três envolvem algum tipo de rede. Num deles, a rede
é uma barreira e nos outros dois a rede é a demarcação do local do tento,
ponto ou gol. Os três jogos foram historicamente praticados por homens.
Hoje os três são unissex, com apenas um deles dominado por homens.
Dois deles são praticados com as mãos, sendo as pernas usadas somen-
te para o deslocamento do jogador. Um deles é praticado exclusivamente
com as pernas, que servem para deslocar a bola e movimentar corpo, sen-
do o toque de mão penalizado. Todos são jogos disputados time a time,
onde a velocidade do deslocamento dos jogadores na quadra é constante –
o que envolve grande senso de raciocínio estratégico e senso espacial. Em
dois desses jogos, o deslocamento dos jogadores é rápido dentro de um
campo de tamanho médio. No outro, o deslocamento dos jogadores é rá-
pido, dentro de uma quadra grande, mas com os participantes ocupando
territórios específicos. São três jogos aeróbicos, com momentos anaeróbi-
cos, e flexionamento médio do corpo, sendo que todos são bons exercícios
cardiorrespiratórios e altamente sujeitos ao risco de impactos e contusões.
Temos aqui uma rápida avaliação do valor esportivo de seis jogos de
bolas e com algumas das suas principais diferenças e semelhanças fisioló-
gicas.
O uso do cavalo para o esporte e para fins recreativos tem diferen-
ças muito maiores entre si do que entre esportes com bola. Por exemplo,

285
Bjarke Rink

o Pólo está muito mais distante do Salto do que o Basquete do Vôlei. O


Pólo é um jogo de equipe contra equipe, sendo que o deslocamento dos
jogadores na arena é constante, o que exige grande raciocínio estratégico
e senso espacial. Além da habilidade de se deslocar a bola, existe um fator
suplementar – o cavaleiro tem de se comunicar constantemente com o seu
cavalo, que é o seu meio de deslocamento em campo e responsável por sua
grande velocidade e maneabilidade. É um jogo de ‘guerra’ onde o cavaleiro
tem de ter uma visão estratégica contínua de um grande campo, tem de se
manter em contato visual constante com os seus companheiros de time,
e também de lutar pela posse da bola, numa velocidade maior do que a
humana. O envolvimento físico e mental no Pólo é total. Não existe, em
nenhum outro jogo envolvendo bolas, um engajamento maior do cérebro
humano. É um jogo sujeito a impactos e contusões.
O Salto Clássico é um esporte de natureza bem diferente do Pólo. O
salto é uma simulação da caça e não de guerra. Os adversários são os obs-
táculos que não se deslocam e não se reagrupam de maneiras diferentes a
cada momento. Os obstáculos são fixos, em maior quantidade do que os
adversários no Pólo, e representam não os adversários humanos, mas as
barreiras radicais que se opõem continuamente ao avanço do conjunto.
Na arena, o cavaleiro tem de se comunicar incessantemente com o cavalo
para indicar a sequência dos obstáculos e para antecipar os ângulos de
abordagem que só o cavaleiro conhece previamente. O cavalo, à medida
que os obstáculos lhe são apontados, galopa retroalimentando continua-
mente o seu complexo sistema sensitivo-motor para ajustar velocidade de
aproximação, equilíbrio de abordagem, cálculo de altura e largura do sal-
to, impulsão para a decolagem, articulação de recolhimento dos membros
– antes, durante e depois da recepção – tudo em centésimos de segundo.
O salto exige o envolvimento físico e mental completo do cavaleiro, mas
num ritmo menos alucinante do que o Pólo. É um esporte sujeito a con-
tusões.
A natureza do Enduro equestre é completamente diferente do Pólo
e do Salto. As distâncias, sempre grandes, podem variar de 20 a 150 qui-
lômetros. O enduro exige um cavalo corajoso que não se intimida com
os obstáculos naturais do terreno; um cavaleiro experiente que sabe ‘dar
leitura’ ao estado físico do cavalo, que é um trabalho de acompanhamento
incessante, metro a metro, realizado sem nenhum tipo de aparelho (reló-
gio de batimento cardíaco), a não ser a sensibilidade natural do cavaleiro.
E a vitória é conquistada pelo conjunto que vencer a distância predeter-

286
Parte III Odisséia na Ciência

minada com o menor desgaste fisiológico possível do cavalo. O Enduro é


mais parecido com o enduro de motocicleta do que com os outros espor-
tes equestres. É um esporte pouco sujeito a contusões.
A Arquearia Montada é um jogo tático-estratégico radicalmente di-
ferente dos outros jogos equestres. Cada percurso é realizado por um ca-
valeiro em pista de cerca de 100 metros. Não é jogo de equipe, apesar de
haver pontuação por equipe. É um jogo de ‘guerra’ onde o cavaleiro tem
de ter uma visão estratégica contínua do inimigo – os alvos – tem de atirar
contra os “inimigos” nos momentos mais favoráveis e, a seguir, fazer con-
tato visual com o próximo “inimigo” numa velocidade acima da humana.
A comunicação com o cavalo é constante, mas, para guiá-lo, o cavaleiro
só dispõe do corpo e das pernas porque as mãos têm de estar livres para
o municiar o arco com as flechas. Quanto maior a velocidade do “ataque”,
maior é a pontuação. Quanto mais próximo à mosca maior a pontuação. O
envolvimento físico e mental na arquearia montada é total. Como o caso
do Pólo, não existe, em nenhum outro jogo envolvendo bolas, um enga-
jamento maior do cérebro humano. É um jogo pouco sujeito a impactos
e contusões.
A cavalgada, por sua vez, é um exercício que guarda poucas seme-
lhanças com o Pólo, o Adestramento, Salto e a Arquearia Montada, e tem
objetivos diferentes do Enduro, com o qual se parece. A cavalgada não é
um esporte – é um exercício – não tem vencedor ou perdedor. É pratica-
do com um objetivo único – o prazer da cavalgada; o prazer de estar em
comunhão com a natureza; o prazer de olhar a paisagem; o prazer de estar
em companhia do seu cavalo e dos seus companheiros de cavalgada.
Alguém já disse que existe um esporte equestre ‘ideal’ para todas as
idades da vida do cavaleiro.

Cada prática equestre cria no atleta um envolvimento fisiológico de corpo


e mente incomparável, se confrontado com outros esportes que envolvem
veículos ou bolas. Cada modalidade equestre tem uma dinâmica diferente
e exige um temperamento específico dos seus participantes humanos e
equinos. Os esportes equestres oferecem uma variedade de jogos e exercícios
que são completos em si, e entre si.

287
Bjarke Rink

CAPÍTULO 58

Equitação: Simbiose
ou Escravidão?

Mutações genéticas são as principais estratégias para que as espécies


animais sobrevivam a mudanças circunstanciais da biosfera. Mas os mi-
lhões de anos de convivência entre os diferentes tipos de animais ensinaram
muitas espécies a juntarem as suas habilidades biológicas como um corta-
-caminho para a sobrevivência. Esta forma de cooperação interespécies é
chamada de simbiose ou mutualismo, e a equitação pode ser considerada
como sendo uma das formas mais extraordinárias de simbiose a ter unido
duas espécies de animais superiores neste planeta. Mas, porque a simbio-
se original acontecida entre homens e cavalos na era paleolítica acabou se
transformando na escravização do cavalo, prática que nós aprendemos a
considerar normal?
Sem cooperação social dentro de uma espécie e sem associações sim-
bióticas interespécies, a vida na Terra seria impossível. Uma relação sim-
biótica pode tomar muitas formas como, por exemplo, ‘serviço em troca
de abrigo’, ‘serviço em troca de alimento’, ou a cooperação funcional entre
duas espécies que aprenderam a juntar suas habilidades para alcançar o
que nenhuma das duas conseguiria individualmente. De bactérias mi-

288
Parte III Odisséia na Ciência

croscópicas até mamíferos de grande porte, a cooperação entre diferentes


tipos de animais se tornou os próprios sustentáculos da vida no plane-
ta. ‘Todos os organismos maiores do que uma bactéria são reconhecidos
como sistemas simbióticos’.68 Num ambiente de alta competitividade, uma
simbiose pode ser um corta-caminho para a sobrevivência, onde espécies
diferentes frequentemente conseguem oferecer habilidades diferentes que,
juntos, oferecem um beneficio mútuo. Mas a prática da escravidão não
é desconhecida no mundo natural, portanto, vamos desbravar essa nova
fronteira científica – ‘os interesses mútuos que formam as simbioses’ –
para examinar essas questões de perto e ver porque a equitação simbiótica,
ou de alta performance, foi originalmente fruto de uma relação simbiótica
entre homens e cavalos e porque as outras maneiras de lidar e andar a
cavalo estão relacionados à prática escravista. Vamos começar por visitar
a vida microscópica do planeta e depois avançar para conhecer algumas
relação simbióticas entre peixes, crustáceos, insetos, répteis, pássaros e
mamíferos.
Humanos, cavalos e muitos outros animais abrigam em seus intes-
tinos colônias de bactérias que ajudam a quebrar as moléculas dos ali-
mentos ingeridos, o que vem a ser uma relação simbiótica que nos ajuda
a digerir as refeições. Esta simbiose é do tipo ‘abrigo em troca de comida’
e, se por algum acaso, algo acontecer com essas colônias de trabalhadoras
microscópicas, o homem ou o animal hospedeiro seria acometido por sé-
rios distúrbios digestivos.
Os oceanos do nosso planeta abrigam centenas de simbioses diferen-
tes, mas a união do peixe-piloto com o tubarão é uma simbiose clássica
da vida marinha. Esse tipo de mutualismo é do tipo ‘serviço em troca
de proteção’ porque, ao nadar debaixo do tubarão, o peixe-piloto evita os
ataques dos seus predadores e o tubarão tolera a sua presença em troca
do serviço de limpeza de parasitas que infestam o seu couro. (E o fato de
o peixe-piloto aprender a nadar em perfeita coordenação com o tubarão
tem um fundamento cibernético similar ao fenômeno equitação.) Perma-
necer juntos traz um beneficio mútuo para os dois animais.
Um líquen (musgo) parece superficialmente ser uma alga como outra
qualquer. Mas, na realidade, ele representa uma união simbiótica entre
um fungo e uma alga verde, e nenhum dos dois parceiros pode viver sem
o outro. Se a união tivesse se tornado um pouco mais íntima, nós não po-

Do livro Minds for History Directory de Lynn Margulis.


68

289
Bjarke Rink

deríamos distinguir se o líquen era um organismo duplo ou simples.69 No


fundo do mar vive um tipo de peixe e uma espécie de lagosta que forma-
ram uma parceria de habilidades compartilhadas, útil para proteção mú-
tua. A lagosta possui garras, mas a sua visão é débil, e o peixe tem olhos,
mas não possui garras. Para escapar de um predador que se avizinha, a
lagosta cava um buraco enquanto o peixe fica de olho no inimigo. Ao
manter contato com as barbatanas esvoaçantes do peixe, a lagosta pode
sentir as suas emoções, e se o predador se aproximar, o peixe fica mais
nervoso e acelera o movimento das barbatanas e então a lagosta cava mais
rápido; no caso de serem avistados pelo predador e ocorrer um ataque, os
dois entram no buraco cavado pelas garras da lagosta sob a orientação dos
olhos do peixe.70
Em terra firme, a simbiose do tipo ‘serviço em troca de comida’ é bas-
tante comum. Muitas espécies de pássaros oferecem serviços de limpeza
para animais maiores e, por isso, são permitidos contatos mais íntimos
com esses animais. Um crocodilo a descansar à margem do Nilo manterá
a sua boca aberta para ter os seus dentes “palitados” por um pássaro ami-
go. Em compensação, a proximidade com o crocodilo fará com que os
predadores do pássaro se mantenham respeitosamente à distância. Mas,
por milhares de anos, os crocodilos nunca mudaram de idéia e resolveram
engolir o pássaro como sobremesa e, por isso, a simbiose se mantém inal-
terada até os dias de hoje.
Na selva existe um tipo de borboleta que, no delicado estado de larva,
desenvolveu a capacidade de intermitentemente secretar uma substância
doce que atrai um tipo de formiga guerreira que bebe este néctar, e esse
serviço mantém os guerreiros por perto e os predadores a distancia. É
uma simbiose que foi aperfeiçoada por milhares de anos de seleção na-
tural e continua funcionando muito bem. Existe, entretanto, um tipo de
formiga que pratica a escravidão. A estratégia dessa criatura é de atacar
uma colônia de formigas de um tipo menor e sequestrar os seus ovos, que
então são carregados até o formigueiro dos agressores. Quando a larva
dos ovos sequestrados nascerem, essas criaturas serão induzidas a traba-
lhar nas plantações subterrâneas de fungos dos seus captores. Esse tipo de
relação não pode ser considerado simbiótica porque não há na relação um
equilíbrio nos benefícios mútuos.
69
Esta relação simbiótica tem uma conexão neurofisiológica semelhante à equitação: o contato
com a barbatana do peixe permite à lagosta sentir as emoções do peixe e agir de acordo com
essas dicas.
70
The Selfish Gene, por Richard Dawkins.

290
Parte III Odisséia na Ciência

A simbiose entre Homo sapiens e Equus caballus, que ocorreu há


milhares de anos, evoluiu para um tipo de mutualismo de grande com-
plexidade, onde os humanos ofereceram proteção, serviço de limpeza e
tratamento de saúde em troca de leite, carne e transporte. Nas estepes, a
vida em comum entre o homem e o cavalo transformou-se gradualmente
em equitação avançada. A capacidade do Equus caballus de dar leitura à
emoção do Homo sapiens e aprender a transformar as informações numa
operação sensitivo-motora unificada deu luz a um novo tipo de predador:
o mitológico Centauro. Entretanto, é preciso esclarecer que, apesar de os
protetores humanos terem periodicamente matado alguns indivíduos,
principalmente os mais velhos, mais fracos e os machos supérfluos para se
alimentar, a conexão Homo-caballus numa cultura nômade era de nature-
za simbiótica porque não envolvia trabalhos forçados nos campos agríco-
las. Havia um balanço bastante equilibrado de serviço prestado por servi-
ço recebido, e as duas espécies se beneficiam igualmente em se manterem
juntas num mundo altamente competitivo. Vamos avançar mais para o
interior das estepes para ver em que circunstância nasceu o Centauro.
Para que uma relação simbiótica possa ocorrer entre duas espécies
de animais, os futuros parceiros precisam ter convivido no mesmo hábitat
por milhares de anos e conhecerem intimamente o comportamento um
do outro. E, para que uma simbiose possa florir, um dos parceiros deve
tomar a iniciativa da aproximação e o outro, por motivos de interesses
pessoais, aceitar a intrusão na sua privacidade.
Agora, como poderiam os cavalos e os humanos ter sido atraídos um
para o outro nas vastas pradarias da Ásia Central e o que fez o cavalo
aceitar a aproximação do homem num mundo que não conhecia cercas,
currais e outras facilidades de contenção? E, finalmente, por que a simbio-
se Homo-Caballus mais tarde degenerou em uma relação de escravo e es-
cravista, e por que essa relação se tornou a norma nas sociedades urbanas
e agrárias que aprenderam a usar o cavalo?
Como já vimos, na era paleolítica os nômades da Ásia Central e os
cavalos das estepes compartilhavam do mesmo ‘nicho’ ecológico: as pra-
darias que cobrem a maioria das terras situadas entre os paralelos 60 e 30
do hemisfério norte da Eurásia.71 Neste hábitat natural, os humanos eram
predadores típicos e os cavalos uma das suas presas e, sem dúvida, as duas
espécies se conheciam bem porque elas haviam passado milhares de anos
cumprindo os seus papéis de caçador e caça.
A técnica de ‘join up’ é descrito por Monte Roberts no seu livro The man Who Listens to Horses.
71

291
Bjarke Rink

Mas, para compreendermos melhor em que circunstância a conexão


simbiótica Homo-Caballus se estabeleceu, acho que deveremos descar-
tar de cara a premissa de que um dia os caçadores humanos “decidiram”
capturar alguns cavalos selvagens com a intenção de domesticá-los. Na
era paleolítica, uma nova descoberta era provavelmente mais de origem
acidental do que intencional. Por isso, é muito difícil imaginar porque um
grupo de humanos de repente superou o seu instinto de caçador e esco-
lheu se aproximar e conviver com os cavalos em vez de caçá-los. Como os
psicólogos sabem, é extremamente difícil suprimir um comportamento
atávico como o instinto da caça, o que qualquer pessoa que possui um cão
haverá de concordar. De fato, tal mudança de hábito só poderá ocorrer
com uma completa mudança de mentalidade. Então, fica a pergunta: o
que estimulou uma certa tribo de nômades caçadores-coletadores da Ásia
Central a mudar a sua prática de caçar cavalos e aprender a controlar as
manadas e pastorá-los?
O primeiro indício biológico para resolver este mistério é, natural-
mente, o fato de que os cavalos e os humanos partilham de alguns hábitos
alimentares que podem ter atraído os cavalos a se aproximarem dos hu-
manos. Não é difícil de se imaginar que, depois de um grupo de caçado-
res-coletadores ter desmontado o seu acampamento, alguns animais po-
dem ter adquirido o hábito de entrar no acampamento abandonado para
se aproveitar de alguma sobra de ervas, raízes e grãos descartados pelos
humanos. Tal hábito teria acostumado os cavalos aos cheiros humanos e
esse comportamento não teria escapado de alguma pessoa mais atilada.
Mas quem, num mundo de caçadores assassinos, poderia ter efetivado
o ‘join up’, a delicada tarefa de se aproximar e se misturar aos animais
de um modo amigável e mostrar a eles que nem todos os humanos são
assassinos implacáveis. Aqui devo confessar que recebi uma dica do fil-
me Zíngaro Triptyk, dirigido por Bartabás72 que reforçou uma velha idéia.
Nessa esplendida coreografia telúrica, Bartabás sugere que, numa tribo de
caçadores-coletores, a sabedoria espiritual para se aproximar e lidar com
cavalos selvagens deveria ter sido das mulheres, é claro. O filme mostra
mulheres que se aproximam de alguns cavalos e com lindos movimentos
coreografados alimentam-nos com guloseimas numa atmosfera de total
confiança e idílio. Na cena seguinte, vemos homens desatinadamente per-
seguindo os mesmos cavalos e fazendo os animais disparar.

Zingaro Triptyk, um filme dirigido por Bartabás, é uma alegoria do impacto dos povos cavalei-
72

ros sobre os povos agrícolas.

292
Parte III Odisséia na Ciência

É tentador se imaginar que, num antigo clã de nômades, um grupo de


mulheres, fazendo uma colheita de frutos silvestres, pudesse ter abando-
nado alguns frutos no chão, e ao desenterrar raízes comestíveis descartar
o rebotalho – esses restos poderiam ter atraído os animais. Para os ca-
valos selvagens, um grupo de humanos pacificamente coletando comes-
tíveis pode ter significado uma oportunidade de comer coisas que, em
condições normais, estariam fora do seu alcance. Além disso, mulheres e
crianças pequenas, ao contrário de homens, não teriam necessariamente
o instinto natural para a caça, e poderiam ter feito as primeiras aproxima-
ções com os cavalos. Elas poderiam ter atraído os animais com alimento e
um tratamento carinhoso; mãos delicadas, acostumadas a cuidar de bebes
humanos, poderiam também curar feridas purulentas, extrair um espinho
doloroso ou alimentar um potrinho órfão. E quanto tempo levaria para as
éguas mais experientes da manada ceder aos parceiros humanos, dotados
com um par de mãos mágicas, uma parte do seu leite?73 Provavelmente, le-
vou menos tempo do que os homens da tribo entenderem que o pastoreio
é uma idéia muito mais inteligente do que a caçada.
Na antiguidade, os humanos e os cavalos se mantiveram unidos
porque a simbiose havia se tornado vital para a sobrevivência de ambos,
como a união de um fungo com uma alga nas profundezas do mar. Os
cavalos lucravam porque os humanos, com suas armas, podiam manter
os predadores à distância, e a parceria também permitiu que as mãos hu-
manas pudessem prestar vários serviços de limpeza e saúde. E, mais tarde,
depois que as tribos se tornaram cavaleiros, a idéia de viver sem um cavalo
se tornaria insuportável.74
Mas em que circunstâncias os humanos perderam a sua relação sim-
biótica ancestral com o cavalo e se tornaram incapazes de se comunicar
com eles? O que aconteceu na estrada da “cultura e do progresso” que
transformou a união biológica entre homens e cavalos num processo de
escravização ao qual nós das sociedades ditas “civilizadas” nos acostuma-
mos? Por que as comunidades sedentárias vieram a acreditar que o com-
portamento agressivo e os métodos dolorosos eram melhores para ini-
ciar um cavalo na equitação? Induzir um cavalo a se tornar um parceiro
equestre, através de uma relação de confiança mútua, exige obviamente
uma mentalidade diferente do que o tipo de doma e manejo introduzido

73
Jean M. Auel, para o vexame dos homens, estava certa: foram provavelmente as mulheres que
domesticaram os cavalos, como ela sugere em seu livro The valley of Horses.
74
Em todas as sociedades equestres, o roubo de um cavalo era punido com a pena de morte.

293
Bjarke Rink

pelo homem moderno, e que é mais bem definido com a palavra “estupro”.
Mas o estupro não foi inventado pelos humanos e ocorre ocasional-
mente no mundo natural, especialmente entre primatas. Este comporta-
mento não conduz a uma relação simbiótica, mas sim, ao medo, à sub-
missão e à escravidão. E, mesmo que a brutalidade seja satisfatória para
produzir uma equitação de baixa tecnologia, útil para a viagem e o tra-
balho, isso nada tem a ver com uma equitação simbiótica ou de alta per-
formance, necessário para a caça, a guerra e os esportes equestres. Uma
simbiose é um pacto de não agressão celebrado entre duas espécies di-
ferentes, e que serve para garantir a sobrevivência dos dois, envolvendo
um comportamento que nada tem a ver com a violência. Na verdade, o
casamento humano é também uma aliança simbiótica em que dois indiví-
duos reúnem as suas características biológicas para fazerem, juntos, o que
não conseguiriam realizar individualmente; isso é, garantir que seus genes
emigrem para a próxima geração. Mas, infelizmente, alguns casamentos
degeneram e também se tornam violentos. Porque será que os animais
conseguem fazer parcerias simbióticas funcionar por milhares de anos,
mas os humanos são conhecidos, historicamente, por quebrarem os seus
compromissos, seja com a sua própria espécie ou nas relações interespecí-
ficas. Por que os humanos são tão instáveis? Vejamos.
No meio ambiente urbano, que começou a tomar forma na era neolí-
tica, a mente humana tem de mudar constantemente para que as pessoas
possam lidar com as circunstâncias urbanas sempre em rápida transição,
provocadas por comunidades em expansão contínua, que formam novos
padrões de comportamento, que deflagram novas “modas”, além de todo
tipo de problema de saúde e segurança que se desenvolvem numa espiral
sem fim. Na era paleolítica, quando os humanos se assentaram para for-
mar comunidades de trabalhadores agrícolas e, mais tarde, inventaram
as utilidades que promoveram a era neolítica – cerâmica, têxteis, cordas,
rodas, arados, muralhas e casas sólidas – todas as ligações com o mundo
natural foram gradativamente rompidas a favor do novo ambiente arti-
ficial construído para atenuar a dureza da vida cotidiana. Com o desen-
volvimento destas comunidades agrícolas, os habitantes perderam a sua
visão biológica da vida, e uma grande quantidade de conhecimentos sobre
a fauna e a flora desapareceu para sempre no vórtice do processo “civili-
zatório”.
Quando as comunidades agrícolas da Eurásia, no estágio neolíti-
co de desenvolvimento, adotaram o cavalo para fazer a parte mais difí-

294
Parte III Odisséia na Ciência

cil do trabalho – tração e transporte – o delicado tecido simbiótico que,


por milênios havia mantido os cavalos naturalmente unidos ao homem
das estepes, foi rompido. Quando as populações sedentárias aprenderam
a construir facilidades de contenção para favorecer o manejo burocráti-
co dos animais, nenhuma técnica psicológica era necessária para pegar
um cavalo que já estava amarrado a um pau ou confinado num curral ou
baia. Como vimos no capítulo Equitação nas Civilizações Pedestres, cur-
rais, piquetes e baias deram aos cavaleiros das comunidades sedentárias e
agrícolas um poder imenso sobre o destino do cavalo, e o espírito de coo-
peração, necessário para dar manutenção à simbiose, foi definitivamente
destroçado. É interessante se observar que uma nova geração de caubóis
americanos, o tipo de profissional rude que no passado se serviu do cavalo
escravo, está recomendando uma relação de confiança e respeito, em vez
de força e da violência de outrora. Numa era que está lentamente sendo
iluminada pela informação científica, a arrogância humana, que emana
da ignorância biológica, está começando a mudar a cabeça das pessoas.

A volta para uma relação simbiótica de benefícios


mútuos entre homens e cavalos é vital para o
futuro da equitação avançada.

Hoje em dia, os treinadores de ponta sabem que faz sentido, do ponto


de vista biológico, estimular o espírito de cooperação do cavalo por meio
de uma liderança carismática, um manejo respeitoso e comunicação efi-
ciente. Por isso, o modo mais inteligente para se estabelecer uma parceria
equestre, que é, na realidade, uma simbiose construída com base na con-
fiança mútua, é através de uma relação de características simbiótica.

A degeneração da equitação, que iniciou entre o homem e o cavalo como


uma simbiose de interesses mútuos e depois se transformou numa forma de
escravidão, provavelmente começou quando a humanidade fez a transição
da era neolítica para a agrourbana, e o confinamento dos animais começou
a prejudicar a relação natural do homem e do cavalo. A delicada relação
simbiótica praticada pelas culturas nômades não sobreviveu ao uso de
métodos brutais mais tarde introduzido pelas sociedades “civilizadas”, onde
o cavalo virou apenas mais uma peça da engrenagem econômica.

295
Bjarke Rink

CAPÍTULO 59

Dançando com Cavalos?

A equitação natural ou simbiótica pode ser descrita como a capacidade


de um homem e um cavalo adaptar as suas características físicas e psico-
lógicas em uma única performance equestre. Pelo estilo de equitação e as
conquistas militares dos guerreiros das estepes, não pode haver dúvida de
que estes cavaleiros estavam muito próximos dos seus cavalos em corpo e
mente. Como a equitação é uma técnica biológica que utiliza os movimen-
tos naturais do cavalo para fins humanos, todos os pensamentos mecânicos
devem ser lançados ao vento e todo equipamento de contenção descartado,
porque a liberdade do corpo e da mente é o objetivo final tanto do cavalo
quanto do cavaleiro. Federico Caprilli, o primeiro cavaleiro a advogar esta
filosofia revolucionária, foi o primeiro “cavaleiro natural” nos anais da equi-
tação ocidental.
Através dos tempos, houve duas maneiras de aprender a montar a
cavalo: o modo “antigo” e o modo “velho”. Nas estepes, durante a anti-
guidade, e mais tarde no mundo árabe, a equitação era um livro aberto
que todo cavaleiro conhecia de cor. Se alguém tivesse dúvidas de qualquer
assunto ligado aos cavalos bastava perguntar ao pai, mãe, tio, irmão ou
irmã. Todos saberiam o que fazer, porque homens e cavalos eram duas
peças perfeitamente ajustadas à ecologia das estepes, aperfeiçoadas por
milhares de anos de coexistência. Como já vimos, comunidades huma-

296
Parte III Odisséia na Ciência

nas ecologicamente adaptadas têm uma visão mais clara da psicologia e


comportamento animal do que as sociedades urbanas. A segunda manei-
ra de aprender a montar, a maneira “velha”, é como você e eu aprendemos
equitação. O método consiste em colocar o aluno em cima de um cavalo e
ensiná-lo a agir como um cocheiro: impulsionar o cavalo para frente com
a ajuda de pernas, assentos, mãos e chicote enquanto faz uma pose para
fingir que não está fazendo essas coisas. Com este tipo de ensino, a pessoa
passará meses e anos chacoalhando em cima de um cavalo, o tempo ne-
cessário para que os seus neurônios insuspeitos possam conectar as vias
necessárias e formar novos circuitos nervosos, essenciais para lidar com
os movimentos especializados do cavalo.
Uma terceira maneira de aprender equitação, a via biológica, é jus-
tamente onde a sabedoria antiga finalmente se encontra com a ciência
moderna. Na equitação simbiótica, ou natural,75 você poderá aprender a
fundir o seu sistema nervoso com o do cavalo e acompanhar os ciclos
musculares do animal como se fossem seus. As mudanças de velocidade
e direção serão indicadas ao cavalo por meio de dicas cibernéticas corpo-
rais.76 Como vimos na segunda parte desse livro, a união neurofisiológica
do cavalo e do cavaleiro produz uma corrente de movimentos coopera-
dos, e o sentido proprioceptivo do conjunto dará um nó de amarração
nessa união biológica tão perfeita que o fenômeno já foi, displicentemen-
te, chamado de “efeito Centauro”. A fusão neurofisiológica entre cavalo
e cavaleiro ocorre quando o cavaleiro consegue produzir uma cadeia de
posições corporais (feedback corporal) que refletem, com precisão, os mo-
vimento que o cavalo deve executar, e que indicarão as mudanças de ve-
locidade, direção ou a sustentação dos andamentos desejados, enquanto
as mãos do cavaleiro, conectadas à boca do cavalo, induzem os limites
da ação. Essa técnica biológica também exige a regulagem das emoções
humanas e equinas, porque a confiança mútua deve pontuar a capacidade
dos parceiros de trabalharem juntos. Equitação simbiótica só poderá ser
executada pelo cavaleiro que conhece as motivações do cavalo e aprendeu
75
A equitação biológica, ou natural, pode ser definida como um ser humano usando o sistema
locomotor de um cavalo por meio de correntes de movimentos cooperativos, estimulados na
mesma ordem em que o animal o usa em sua vida privada. Ao utilizar a palavra ‘equitação
simbiótica’, eu não estou tentando criar uma nova palavra, ou estabelecer o domínio sobre um
sistema, mas, na verdade, estou procurando colocar a equitação clássica no seu contexto bioló-
gico natural. Ultimamente, tenho lido muito sobre ‘natural horsemanship’, que aparentemente
abraça a mesma filosofia sem o fundamento científico correspondente.
76
Cibernético é o estudo do controle e da comunicação nos animais e nas máquinas. Cibernética
biológica é a comunicação e o controle do sistema sensório animal.

297
Bjarke Rink

a acompanhar os movimentos do animal, ou por herança cultural, como


os arqueiros da Ásia Central, ou por compreensão científica do fenômeno.
Na equitação simbiótica, o cavaleiro, sem perder a sua natureza humana,
se torna meio cavalo, o que é, na verdade, uma façanha mental só possível
devido à maravilhosa plasticidade do cérebro humano.
Nos jogos equestres, o Centauro não é governado pelas regras das
velhas escolas de equitação, mas, sim, pelo feedback do sistema nervoso
do cavaleiro, que emite um fluxo de informação cibernética relacionado
à velocidade e à direção que deverá guiar todos os ciclos musculares do
cavalo. A correta posição da postura corporal do cavaleiro é importante
e deveria ser apurada enquanto ele ou ela aprende a se “fundir” aos mo-
vimentos do cavalo, porque isso ajudará a manter o perfeito equilíbrio e
outras funções fisiológicas e neurofisiológicas do corpo.77 Agora, se um
novato aprende apenas a prestar atenção ao próprio corpo, seu assento,
mãos, e pernas, e não aprender a deixar o seu sentido proprioceptivo des-
cer pelo corpo do cavalo e “sentir” o chão com suas pernas galopantes, ele
ou ela não poderá se tornar muito mais do que um cavaleiro medíocre.
Cavaleiros iniciantes deverão aprender que os seus sentido não devem pa-
rar no seu assento, mãos e pernas, porque nessas partes do corpo estão
localizados os seus nervos receptores, que deverão se conectar aos nervos
receptores do cavalo e, feita a conexão, um parceiro poderá monitorar os
movimentos do outro (equitação simbiótica, ou de alta performance, é
tecnologia de ponta). Os grandes mestres do passado sempre montaram a
cavalo dessa maneira, mesmo que a ciência do seu tempo ainda não tenha
desvendado COMO eles se conectavam com o sistema nervoso do animal.
Na equitação simbiótica, o cavalo estará apenas “vagamente” cons-
ciente do cavaleiro no seu dorso, apesar de que a presença humana passará
um sentimento de segurança para ele e, em certos momentos, a liderança
do cavaleiro é vital para fortalecer a confiança do animal na tarefa a cum-
prir. Um cavalo sozinho não arriscaria ir tão longe e enfrentar todos aque-
les obstáculos, e uma pessoa sem cavalo estaria impossibilitado a fazê-lo.
Esta é a base psicológica para uma união biológica perfeita fundamentada
numa relação simbiótica.
A equitação simbiótica é feita de movimentos mútuos perfeitamente
coordenados e, mesmo que a ação esteja baseada nos movimentos natu-

A cooperação das funções fisiológicas na equitação é, por exemplo, a correlação entre o ba-
77

timento cardíaco e a respiração do cavalo e do cavaleiro; a cooperação neurofisiológica é a


coordenação dos ciclos musculares do conjunto.

298
Parte III Odisséia na Ciência

rais do cavalo, é um procedimento cooperado que, como a dança, precisa


ser aprendido por ambos os parceiros. Portanto, você não deve se encan-
tar com os equipamentos mecânicos inventados para a tração de veículos
e que hoje estão sendo utilizados na equitação. Você poderia imaginar a
situação cômica de dois dançarinos de polka amarrados um ao outro com
uma ‘sobrecilha tcheca’, ou a invenção de uma rédea Argentina para dan-
çar tango, ou uma ‘gamarra fixa’ para impedir que um casal de dançarinos
de rock atinjam o rosto do outro nas suas evoluções acrobáticas? Não ria,
existe uma analogia aqui, já que todo o equipamento de contenção do
cavalo foi inventado para modelar os movimentos do animal e não para
induzi-lo! Gamarras, focinheiras, rédeas alemãs, etc. só deveriam ser usa-
dos temporariamente para “corrigir” um cavalo, que teve os movimentos
naturais prejudicados pela má-equitação. Um cavalo saudável e bem equi-
tado jamais precisará dessas coisas.
Hoje, quando podemos discutir livremente sobre a neurofisiologia
da equitação – a interação natural dos sistemas nervosos do cavalo e do
cavaleiro – é porque muita gente já está descobrindo que montar a cavalo
é diferente de dirigir um automóvel. A equitação pode ser definida como
o alinhamento dos movimentos do cavalo e do cavaleiro, que devem fluir
numa cadeia de ação conjunta onde a liberdade de movimentos é o objetivo
final. Por esta razão, montar a cavalo não é como “dirigir” um veículo, mas
a ação de se fundir aos ciclos motores do animal. É como dançar!

Um centauro pode ser definido como um cérebro


humano a controlar as pernas de um cavalo.

Charles Chenevix Trench, um centauro de verdade, acertou na mosca


no seu livro A History of Horsemanship: “Nós, humanos, não devemos
ser muito inteligentes tendo levado 4 mil anos para descobrir como um
cavalo gosta de ser montado, e até agora não termos chegados a uma con-
clusão”. Porém, Trench não percebeu que os nômades da Ásia Central não
poderiam ter conquistado os maiores impérios da Terra se eles tivessem
montado tão neurofisiologicamente desconectados como a maioria dos
cavaleiros ocidentais.
Como vimos na primeira parte desse livro, seria mais fácil à Joana
d’Arc conquistar Orleans, os russos derrotarem os chechenos, os ameri-
canos capturarem Osama Bin Laden, e os ingleses adotarem o Euro, do
que a maioria dos cavaleiros ocidentais compreender que um homem e

299
Bjarke Rink

um cavalo não são fisiologicamente diferentes e que eles devem aprender


a unificar os seus movimentos e se tornar uma única máquina biológica!
Como você deve lembrar, Xenofonte comparou o cavalo a um dançarino,
mas ele não enxergou o cavaleiro como o parceiro dançante do animal.
Na Grécia Antiga, o Centauro era apenas um mito e, apesar de Xenofonte
ter acertado com relação ao manejo do cavalo, o fenômeno neurológico
que une os dois corpos equestres em ‘uma única operação fisiológica’, só
seria compreendidos 2.400 anos depois que o general-filósofo escreveu o
seu famoso tratado.
Agora, vamos dar uma espiada no que Gustav Steinbrecht escreveu
sobre este assunto no século 19: “É a obrigação número um do cavaleiro
manter macio e natural aquelas partes do corpo com as quais ele sente o ca-
valo. Se o seu assento cumpre essa exigência, ele logo sentirá os movimentos
das pernas do cavalo e será capaz de distinguir cada uma individualmente;
ele terá então os meios à sua disposição com os quais controlar os membros
do cavalo como se fossem seus”. Sem possuir o conhecimento científico
que confirma esta definição, o sentido de propriocepção, o mestre alemão
sabia como unificar os sentidos humanos e equinos em uma unidade ga-
lopante. Mas com o progresso científico no último quarto do século 20,
alguns cavaleiros realmente começaram a prever a unificação da neuro-
fisiologia do homem e do cavalo como a chave para a equitação de alta
performance. Veja só esta descrição do livro The Body Language of Horses,
por Tom Ainslie e Bonnie Ledbetter, editado em 1980: “A definição muito
conhecida que descreve um cavaleiro de ponta como ‘parte cavalo’ não é
perdidamente fantasiosa. Todo bom cavaleiro funciona como parte do ca-
valo, com a audição e o tato ajudando a comunicação de uma maneira que
a visão não consegue”. E, apesar de não terem mergulhado de cabeça nas
profundezas da neurofisiologia da equitação, eles já estavam lançando um
facho de luz no segredo mais íntimo do Centauro!
Agora veja esta descrição de Peggy Cummings em seu livro Connec-
ted Riding: “Muitos cavaleiros aprendem equitação como se estivessem mon-
tados num cavalo de pau. Devolvendo os movimentos do cavalo para formar
um sistema sincronizado, recíproco e rítmico. É uma interação, uma forma
de expressão, comunicação e ação. Isto requer estar consciente e atento, ativo
e passivo”. Com esta descrição, você pode ver que o livro de Peggy Cum-
mings tem um fundamento biológico. Linda Telligton-Jones, uma ama-
zona Canadense, desenvolveu um modo inteiramente novo para treinar
cavalos através do ‘toque humano’. The Tellington Touch são toques cir-

300
Parte III Odisséia na Ciência

culares feitos com os dedos no corpo do cavalo que fortalecem a relação,


aumenta a descontração, e dispersa o stress muscular concentrado. Uma
atitude perfeitamente simbiótica. Isto poderia nos lembrar das recomen-
dações de Baucher para flexionar o cavalo antes de montar, até você ler o
seu texto: “Antes de começar o exercício de flexionamento, é essencial dar
ao cavalo a primeira aula de submissão e ensiná-lo a reconhecer o poder
do homem”. Por estas palavras já se pode perceber a arrogância humana
estragando a atitude do velho mestre. A diferença entre as velhas técnicas
‘mecanicistas’ e o novo método ‘biológico’ é basicamente que os cavaleiros
que estão descortinando a nova fronteira da equitação têm preparação
científica. Graças aos avanços das ciências da vida, a nossa incapacidade
histórica de botar a equitação na sua ordem biológica causal pode agora
ser superada. A equitação simbiótica, ou a equitação natural, chegou para
ficar.

A equitação simbiótica é o resultado de dois corpos inteligentes que


aprenderam a se comunicar através de uma sofisticada relação
intersensorial. É um comportamento único causado pelo alinhamento
simétrico de dois sistemas nervosos de espécies diferentes que aprenderam a
decifrar e a responder cooperativamente aos movimentos do companheiro.
É, sobretudo, um caso de identidades trocadas: através do seu sentido
proprioceptivo, o cavaleiro acredita que é ele o ‘grande atleta’, e o cavalo,
pela mesma razão, pensa que é ele quem está conduzindo o espetáculo. A
equitação é, sem dúvida, uma das mais perfeitas ilusões da natureza, e
tudo começa com uma profunda relação de amizade.

301
Bjarke Rink

CAPÍTULO 60

A Linguagem Natural
dos Movimentos

Por que um cavalo permite que o homem o monte e o conduza?


Como é possível conduzir um cavalo a partir de uma posição no seu dorso?
Como podem o homem e o cavalo aprender a realizar uma variedade de
tarefas como se fossem um só indivíduo. Estas perguntas podem começar a
serem explicadas pelo fato que, no mundo natural, a maioria das criaturas
compartilham de uma linguagem comum: a linguagem dos movimentos.
Através de milhões de anos este sistema de comunicação tem transmitido
mensagens claras de ‘intenções’ que podem ser decifradas por qualquer ani-
mal selvagem. Através da ‘linguagem natural dos movimentos’, os animais
interpretam as intenções do outro, tanto dentro de uma espécie quanto entre
as espécies. Os antigos nômades certamente utilizavam a ‘linguagem natural
dos movimentos’ para iniciar e treinar os seus cavalos para a caça e a guerra,
e os cavaleiros modernos também podem aprender a usar esta linguagem.
No mundo natural, a maneira com que você se movimenta revela as
suas intenções mais íntimas. Os movimentos sub-reptícios de uma leoa
indicam a intenção de matar; movimentos exuberantes, cheios de trejei-
tos, podem ser o prelúdio para a luta ou a corte de uma gazela, e os movi-
mentos relaxados de um cavalo são a indicação de indiferença, ou, talvez,

302
Parte III Odisséia na Ciência

de intenções amistosas. Todos esses movimentos traduzem ‘atitudes’ que


são reforçadas pelo contorno corporal, tônus muscular, ritmo respirató-
rio e foco visual. Para um habilidoso leitor de ‘intenções’, um corpo en-
gatilhado para uma ação hostil é completamente diferente de um corpo
relaxado para as atividades pacíficas. Pelo fato de a maioria dos animais
ter melhor visão, melhor faro e audição mais apurada do que os humanos,
eles também estão mais bem equipados para perceber, processar e agir a
partir de informações emocionais emitidas por outros animais. E, apesar
de o homem ter desenvolvido uma ‘memória futura’ – que é a capacidade
de planejamento estratégico, os animais geralmente têm uma melhor per-
cepção das circunstâncias emocionais de uma determinada situação. Se
um coelho a pastar, repentinamente se deparar com uma raposa a caçar,
os dois saberão, instantaneamente, o que fazer.
Muitos veterinários, pesquisadores, treinadores e outros especialistas
em animais estão desenvolvendo um profundo entendimento do compor-
tamento animal, que os ajuda nas suas tarefas diárias de exame, manejo
e alimentação. Atualmente, alguns caubóis americanos estão utilizando a
sua experiência de curral para ‘amansar’ os seus cavalos em vez de ‘domá-
-los’, que faz sentido biológico, apesar de eu ser levado a crer que essas
técnicas incluem apenas o estágio inicial da ‘linguagem natural dos movi-
mentos’ que ajuda o homem a estabelecer a sua liderança sobre o cavalo.
O lamber dos lábios e o abaixar da cabeça como símbolo de “submissão”
do cavalo, descrito nesse método, revela a velha arrogância humana apli-
cada aos animais, mas indubitavelmente a técnica funciona para iniciar
um cavalo para a lida na fazenda. Mas o treinamento de cavalos para alta
performance requer uma corrente contínua de atitudes posturais, a come-
çar pelo trabalho de chão, o treinamento montado, até a alta escola ou os
esportes equestres, atividades que o round pen não tem como oferecer.78
O treinamento para a equitação simbiótica também é iniciado com
uma atitude amigável e uma demonstração de ‘intenções claras’ que indu-
zirão o cavalo a andar a passo, trotar, galopar, fazer mudar de direção e pa-
rar. Porque essas são as principais manobras em quase todas as atividades
equestres. Esse tipo de treinamento começa com o homem entendendo
e aplicando a ‘linguagem natural dos movimentos’, que guiam todas as
criaturas no desempenho de seu papel biológico na cadeia alimentar dos
animais, apesar de outras ferramentas poderem também podem fazer par-

O ‘round pen’ é um curral redondo, geralmente de 14 m de diâmetro, que os caubóis utilizam


78

para iniciar os seus cavalos.

303
Bjarke Rink

te do elenco de técnicas do treinador de cavalos para os esportes.


Para iniciar um jovem cavalo na equitação, um treinador deve ter uma
estratégia clara em mente que ele deverá aplicar progressivamente desde o
primeiro contato visual com o animal até o último estágio do adestramen-
to, seja para o pólo, o salto ou o Dressage. Para todos esses treinamentos, o
instrutor estará utilizando técnicas psicológicas que deverão lidar com as
novas circunstâncias de um cavalo que, a partir daquele momento, deverá
partilhar os seus movimentos com um cavaleiro. O treinador tem de saber
que a tarefa dele ou dela é promover uma mudança rápida, profunda e
duradoura no comportamento do animal, e que qualquer erro de percurso
instalará uma resposta defeituosa na ‘cadeia de reflexos da equitação’ do
cavalo. E, infelizmente, movimentos ‘perfeitos’ não podem ser instalados
com o antigo método de permanecer sentado num cavalo xucro por oito
segundos, ou nas técnicas que envolvem persuadir o cavalo a ficar calmo
e se deixar montar em 30 minutos.79 Um sistema de treinamento biolo-
gicamente adequado é muito mais parecido com o treinamento de um
atleta humano para que esse desenvolva a sua habilidade esportiva, mude
velhos hábitos, aprenda novas sequências de movimentos, compreenda
como manejar ou utilizar o equipamento esportivo, e se tornar hábil e
confiante na prática do seu esporte. Por isso, a primeira exigência que se
faz do treinador de cavalos é ser capaz de transferir os seus ensinamentos
por meio de uma linguagem que o animal possa compreender. E isso, é
claro, tem sido um problema sério para o homem moderno que perdeu a
sua capacidade de se comunicar com os animais. Mas então que tipo de
comunicação os animais conseguem entender, perguntará o leitor.
A ‘linguagem natural dos movimentos’ que, por milênios, organiza a
vida de todos os animais superiores do planeta (e os humanos desde o bai-
xo paleolítico) é, em si, uma linguagem distinta que transmite as emoções
e as intenções dos animais que vivem no mundo natural. Quando dois
animais se aproximam, formam-se no ar várias perguntas: você está dis-
posto à agressão, relações amigáveis, ou é preferível que a gente continue a
cuidar da vida e ignoramos um ao outro? Ou então, a sua atitude agressiva
é com a intenção de me matar ou somente para estabelecer a sua lideran-

A obsessão de reduzir o tempo para montar um cavalo pela primeira vez deverá ser superada
79

pelos cavaleiros mais inteligentes porque, apesar de a equitação simbiótica, de fato, acelerar o
aprendizado dos cavalos, não se pode diminuir certos ciclos biológico necessários para automa-
tizar cadeias de reflexos da equitação mais complexas. Qualquer pessoa que atropela o processo
natural, deixará lacunas no aprendizado tão evidentes como um buraco no fundilho das suas
calças de montaria.

304
Parte III Odisséia na Ciência

ça entre nós dois? Terá você algum hábito alimentar ou outra habilidade
que possa me interessar? A ‘linguagem natural dos movimentos’ tem sido
aperfeiçoada por milhares de anos de interação animal e a maioria das
espécies a entende à perfeição, talvez com a exceção das pessoas nascidas
em cidades. Essa linguagem é baseada em movimentos corporais, alguns
extremamente sutis, e é usada por fêmeas para ensinar os fatos da vida
para a prole e, mais tarde, para os animais adultos estabelecer o direito de
comer, beber e procriar. Entre animais estranhos que se encontram pela
primeira vez a linguagem é dicotômica, o que significa que ela transmite
geralmente um de dois ‘bits’ de informação: a intenção de agressão ou
fuga. Mas dentro da ‘linguagem natural dos movimentos’ existe também o
comportamento cooperativo necessário para os lobos aprenderem a caçar
em conjunto, as brincadeiras entre filhotes de raposas ou o coçar de cer-
nelha entre dois cavalos amigos. Sons vocais transmitem mensagens su-
plementares que deverão ser entendidos com o tempo, mas a ‘linguagem
natural dos movimentos’ é a primeira linguagem na vida da maioria dos
animais, por que ajuda os indivíduos mais jovens a sobreviver a primeira
infância. (Veja capítulo seguinte).
Como vimos, uma simbiose é iniciada com uma aproximação ami-
gável, mas aparentemente desinteressada, que poderá levar a um tipo de
comportamento cooperativo, que eventualmente poderá conduzir a um
vínculo de amizade duradoura. E esta é precisamente a parte do compor-
tamento animal que mais interessa ao cavaleiro. Como já vimos, quando o
comportamento cooperativo consegue atravessar a fronteira das espécies
e dois tipos de animais, apesar de diferentes, conseguem aprender a reali-
zar uma tarefa vital que nenhum deles seria capaz individualmente, isto é
chamado ‘simbiose’. Para formar uma simbiose, os animais precisam for-
mar uma ‘parceria’ para que as suas habilidades específicas de sobrevivên-
cia possam beneficiar um ao outro, e a fase de aprendizado da formação
da simbiose é realizada através da ‘linguagem natural dos movimentos’.

A equitação simbiótica, ou ‘natural horsemanship’,


pode ser definida como a capacidade humana de
estimular o comportamento cooperativo
em cavalos.

Aqui, devemos novamente lembrar que a equitação – o uso dos anda-


mentos do cavalo para objetivos humanos – é formada por três ações fun-

305
Bjarke Rink

damentais: mudanças de velocidade, mudanças de direção e a sustentação


dos andamentos naturais do cavalo: o passo, o trote ou a marcha, o galope
e a parada total. Quando se está treinando um cavalo, é isso que a ‘lingua-
gem natural dos movimentos’ deve expressar, de um modo sistemático e
progressivo (dos movimentos mais simples para os mais complexos). Mas
o primeiro ato do treinamento é o parceiro humano transmitir um com-
portamento firme, mas amigável, e, sobretudo, evitar as demonstrações
estúpidas de machismo – do tipo estalar chicotes e gritar com o cavalo –
procedimento muito usado por pessoas desqualificadas.
Um competente treinador de cavalos evitará demonstrar os sinais
mais comuns do comportamento humano como pular, acenar, gritar, as-
sobiar e, especialmente, olhar fixamente nos olhos do cavalo. Toda essa
algazarra faz parte do comportamento dos primatas e só serve para con-
fundir o animal sobre a sua identidade e intenções. Os cavalos não são vi-
sualmente orientados no mesmo grau dos humanos e, por essa razão, eles
também utilizam o olfato, o som e o sentido tátil para ajudar a identificar
outros animais. Apesar de sua estranha conformação e andar oscilante,
talvez, se você souber se comportar com sutileza, o cavalo ache você igual
a ele. Uma parte do comportamento animal é instintiva, já vem na sua
programação genética e foi aperfeiçoado pela seleção natural por vastas
eras de evolução. A outra parte do comportamento animal é adquirido
através da experiência e a imitação de outros animais na sua vida cotidia-
na. A tarefa do treinador de cavalos é, portanto, dar o exemplo de uma
maneira que o cavalo possa compreender.

Através da ‘linguagem natural dos movimentos’, o treinador poderá


transmitir as suas aulas por meio de um código de comunicação
biológica, que simula o passo, o trote, a parada, a virada, a aceleração
e a desaceleração através de posturas corporais que simbolizam esses
movimentos. É uma linguagem sutil de intenções que todos os animais
compreendem desde antes de Adão. Não perca o próximo capítulo, no qual
entraremos num território de Centauros ainda pouco conhecido.

306
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 61

Comunicando-se com os Cavalos

Existirá alguma semelhança entre a comunicação humana e animal,


ou estarão os homens modernos condenados ao desentendimento perpétuo
com seus cavalos causado pela lacuna intransponível do comportamento so-
cial de ambas as espécies? Podem os cavalos emitir informações claras sobre
o seu estado de espírito e intenções ou serão eles simples autômatos guia-
dos pelo instinto? Será que o homem consegue se comunicar com o cavalo
ou terá a civilização cortado, definitivamente, as suas raízes ecológicas e a
compreensão do mundo animal? As respostas para essas perguntas depen-
dem mais da capacidade humana de compreender os aspectos biológicos
das motivações dos cavalos, e como certas circunstâncias ambientais pode
efetivamente mudar o comportamento do animal.
Os animais sociais80 possuem um modo ativo, inteligente e flexível
de se comunicar que a maioria das pessoas desconhece completamente,
um fato agravado pela tendência do cavalo domesticado frequentemente
‘reprimir’ o seu comportamento natural na presença de humanos. Quan-
do um cavalo confinado numa baia ou preso a uma argola é abordado
por uma pessoa, ele frequentemente se ‘fingirá de morto’, parando todos
os seus movimentos, até o abanar de orelhas e cauda, na esperança de
que o intruso vá embora. Esse comportamento de natureza defensiva tem
Animais sociais são todos aqueles que convivem em grupo.
80

307
Bjarke Rink

levado muitas pessoas a pensar que os cavalos são criaturas estúpidas e


insensíveis.
O desconhecimento humano acerca da inteligência animal tem uma
longa e ilustre história. No passado, muitas tentativas foram feitas para
“medir” a capacidade “racional” dos animais, investigar se eles são capazes
de inventar novos movimentos, ou aprender a usar ferramentas para ‘re-
solver’ os seus problemas ou, ainda, ‘identificar’ a sua imagem no espelho.
Esse tipo de pesquisa apenas demonstra que a maioria das pessoas não
tem a mínima noção do que realmente seja ‘inteligência’, e exatamente
qual função o cérebro animal foi criado para realizar ao longo da vida de
cada espécie. Lá pelo meado dos anos de 1970, muitos estudiosos pen-
savam que ‘linguagem’ deveria ser definida como uma parte da comu-
nicação humana que os animais eram incapazes de alcançar.81 E existe,
naturalmente, um mar de diferenças entre a linguagem humana e a co-
municação equina, mas convém lembrarmos que todos os mares estão
ligados em algum ponto e assim também ocorre na comunicação animal
e humana. Descobrir os pontos em comum da comunicação humana e
equina é um passo em frente na comunicação com os cavalos.
A grande diferença entre a linguagem humana e a comunicação equi-
na é que o homem pode discutir todos os assuntos sob o sol, enquanto a
comunicação entre os cavalos está orientada a demonstrar humores cir-
cunstanciais, os estados da mente e intenções imediatas. Mas, mesmo que
isso possa parecer um tanto restritivo, os cavalos parecem, de um modo
geral, se dar melhor nas relações equinas do que nós nas relações huma-
nas. (Basta assistir ao noticiário diário para entender do que estou falan-
do.) Mas o que realmente devemos buscar nessa viagem para os confins da
terra dos Centauros é ‘onde’ o homem e o cavalo podem encontrar chão
comum para entender as motivações um do outro, para então organizar
a sua relação para a satisfação mútua. Ao compreender as semelhanças
e as diferenças que existem entre a comunicação humana e equina, nós
poderemos readquirir a nossa capacidade ancestral de se comunicar com
o mundo animal e estabelecer a base para o comportamento cooperativo
que fundamenta toda a boa equitação.
Para entender a comunicação equina, vamos, primeiramente, exami-
nar o significado geral da sua vocalização. Na comunicação entre cava-
los, as vocalizações mistas em combinação com certas posturas corporais
podem transmitir informações sobre a identidade do indivíduo, idade e
Do livro Sociobiologia do entomologista E.O.Wilson.
81

308
Parte III Odisséia na Ciência

sexo e de suas intenções como agressão, defesa ou o alarme para denun-


ciar predadores. Bufadas, resfôlegos, relinchos, roncos, guinchos e gritos
tomam os seus significados plenos em combinação com uma variedade
de posturas corporais. Durante um encontro amistoso, dois cavalos po-
dem emitir roncos em baixa frequência, enquanto os pêlos em volta do
focinho se tocam para avaliar os cheiros e as atitudes um do outro. Mas os
humanos são diferentes: num encontro eles têm o costume de acenar com
os braços, sacudir as mãos, dar pulos, dar abraços, fazer poses e tagarelar
incessantemente, que é o comportamento típico dos primatas. Por isso, ao
se aproximar de um cavalo, a pessoa deve se comportar com a discrição de
um cavalo e não provocar a balburdia de um chimpanzé: estique o pesco-
ço respeitosamente para frente, aproxime rosto a rosto, mantenha os bra-
ços para baixo e o tom grave. Um bafo na venta do cavalo é de bom tom
e mostra ao animal que você conhece etiqueta equina. E nunca se aproxi-
me a um cavalo olhando-o diretamente nos olhos. Dois globos oculares
humanos fixados nos olhos do cavalo podem dar ao animal a impressão
desconfortável de haver um grande interesse por motivos desconhecidos.
Trate um cavalo estranho confinado a uma baia ou amarrado a uma argola
com a mesma cordialidade que você daria a um estranho num elevador: se
você olhar demais pode provocar o desconforto e causar uma reação ne-
gativa. Cavalos, como todas as presas, são ótimos leitores de intenções e,
por isso, o nosso primeiro cuidado na comunicação com eles deve ser o de
transmitir sinais claros de ‘amizade’, mas através de uma atitude relaxada,
isenta de qualquer ‘interesse especial’.
Um cavalo, quando decide lutar, profere urros violentos em combi-
nação com uma posição alta da cabeça e movimentos vigorosos. Por isso,
o homem deve evitar qualquer tipo de comportamento arrogante, domi-
nante, usando voz alta e braços gesticulando ao se aproximar de um cava-
lo, porque esse comportamento vai ser interpretado como uma ‘agressão’,
mesmo que a intenção não seja essa. E um cavalo inteligente saberá que,
apesar da barulhada, você não tem o tamanho e a força para lhe desafiar e
isso poderá levar a uma escalada de violência. “A falta de uma boa relação
homem-cavalo é a causa principal do início, da persistência e da agra-
vação do comportamento problemático do cavalo.”82 Seja mais esperto:
aproxime-se de um cavalo com uma cara amiga e NUNCA revele a ele
que, na verdade, você pertence a uma espécie de animais predadores. Isso
pode iniciar a relação no pé errado. Se você aprender a se comportar como
Do livro The Body Language of the Horse, por Tom Aislie e Bonnie Ledbetter.
82

309
Bjarke Rink

um pangaré amigável, o cavalo acreditará nisso. Lembre se sempre disso.


Na comunicação equina, um relinchar alto e sonoro é sinal de que o
animal está a chamar por um membro da família ou um amigo. À distân-
cia, você também pode chamar o seu cavalo no pasto, mas mantendo o seu
tom numa frequência baixa, que viaja bem e carrega uma nota de inten-
ções sociáveis. Nunca grite alto como um humano; isso incita o sistema
nervoso do cavalo e pode deflagrar a sua fuga. À semelhança das relações
humanas, não há como um cavalo confundir uma relação amigável com
um comportamento antagônico. O comportamento errado da pessoa que
se aproxima certamente será interpretado de acordo e, antes de se dar con-
ta, você colocou o cavalo na defensiva. E este descuido é um erro muito
difícil de apagar da memória equina.
Roman Jacobson demonstrou, numa série de estudos, que todas as
milhares de línguas faladas por grupos humanos têm uma raiz comum,
construída a partir de unidades linguísticas bem simples. A comunicação
equina, ao contrário, não dispõe desta estrutura e os cavalos se comuni-
cam com uma variedade de posturas corporais que revelam contentamen-
to, interesse, ansiedade, acuidade, susto, tédio, angústia, raiva, dor, fra-
queza, fome, sede, cansaço e submissão. Note que todos esses estados de
espírito tem um correspondente com os sentimentos e o comportamento
humano. Por exemplo, no comportamento equino, o balanço horizontal
da cabeça também tem um significado negativo e, se um balanço vertical
da cabeça do animal, não significa especificamente a concordância com
algo, pelo menos é um sinal positivo que indica algum interesse. O posi-
cionamento alto da cabeça é sinal de grande interesse, e um olhar opaco
significa cansaço, doença ou submissão. E, mesmo que a comunicação
equina possa parecer bastante rígida e estereotipada em comparação à
linguagem humana, você deve procurar compreender o quadro total da
interação equina. Por exemplo, as trocas de comunicação entre dois ca-
valos são um jogo de sinais fixos que o animal receptor interpreta com
a mesma rigidez do transmissor. De fato, os cavalos geralmente isolam
apenas um aspecto de uma situação, que então funciona como um sinal
direto que deverá provocar uma resposta direta que, frequentemente, se
torna uma reação exagerada. Se um garanhão notar a presença de um po-
tro macho de dois anos no seu harém, ele lançará toda a sua fúria sobre o
infeliz adolescente. O garanhão só enxergará o “rival” e estará cego para
os detalhes físicos que revelam que o potro é incapaz de ameaçar a sua
posição na hierarquia do bando. E, para neutralizar o ataque do garanhão

310
Parte III Odisséia na Ciência

furioso, o adolescente abaixa a cabeça, estica o pescoço e masca os dentes


para convencer o garanhão que ele é realmente um bebê incapaz de fazer
mal a alguém. Com essa postura, o garanhão geralmente se convence e
deixa-o escapar. Não é pela sua imagem, mas como você se comporta que
vai determinar a reação do cavalo.
Já J. Bronowski afirma que a estrutura da linguagem humana nos per-
mite compor e reconhecer um número de frases sem limite, organizado
com um número limitado de palavras. Isto é o que os linguistas chamam
de ‘produtividade da língua humana’. Isso reflete a plasticidade da comu-
nicação verbal humana, a começar com um estímulo neurológico limi-
tado. (Mas esta produtividade também permite ao homem interpretar a
Bíblia sagrada, o venerável Talmude, e o reverenciado Corão, do jeito que
ele quiser, com as consequências mais calamitosas, como Salmon Rushdie
pode atestar.) Por isso, pode-se dizer que os sinais que o cavalo emite são
‘diretos’ e ‘totais’ e com um significado imediato. Um fato que deve ser
levado em consideração quando manejamos e montamos cavalos.
Não há nenhuma dúvida de que a linguagem humana é simbólica,
e que muitos gestos manuais e corporais já perderam o seu significado
primordial e ganharam novos significados sociais, o que não ocorre com a
comunicação equina. Os sinais corporais do cavalo significam exatamente
a mesma coisa hoje do que no tempo de Átila, ou há 3 milhões de anos
passados na savana africana de Laetoli.
Mas a linguagem humana não é composta apenas de símbolos ar-
bitrários e a comunicação equina não é completamente destituída deles.
Nós não devemos exagerar a inflexibilidade da resposta equina e consi-
derá-la absolutamente fixa. Cada resposta acontece num contexto mais
amplo do que o estímulo direto, e certas circunstâncias podem alterar
completamente a resposta do cavalo. Um cavalo confinado a um round
pen pode optar em assumir um comportamento submisso mas, uma vez
livre do constrangimento do curral, ele poderá alterar completamente o
seu comportamento porque ‘sabe’ que está livre. Se um cavalo de salto re-
fugar um obstáculo que ele considera muito alto, o contexto do obstáculo
terá modificado a resposta do cavalo ao comando do cavaleiro para saltar.
Um cavalo não é um autômato e todo cavalo, como indivíduo, tem carac-
terísticas individuais. Se um cavalo montado não é considerado nada além
de um autômato cartesiano, um grupo de cavalos terá de ser considerado
como um grande autômato.83 E isto não é o que acontece numa manada
83

311
Bjarke Rink

de cavalos, onde flutuações de humor acumulam e reforçam-se uns aos


outros, criando uma sociedade complexa de tensões, incertezas, confli-
tos, submissões e triunfos. Tudo, aliás, bastante parecido com as relações
sociais humanas. Por isso, não devemos considerar a comunicação entre
o homem e o cavalo como sendo diferentes por princípio, mas somente
diferentes em grau, sujeitas às prioridades humanas e equinas.
A pressão de seleção natural do cavalo macho ‘alfa’ condicionou a sua
ação corporal, meneios de cabeça, os roncos e guinchos, como meios de
transmitir para o bando seus humores e intenções. Para compreender esse
comportamento, precisamos entender quais sinais específicos indicam
uma ‘situação definitiva’, como, por exemplo, um garanhão que abaixa a
cabeça e, com as orelhas para trás, toca o seu bando de éguas e potros para
longe de um garanhão rival ou outro perigo qualquer. Outros sinais po-
dem significar situações ‘específicas’, como o agitar a cauda em demonstra
de irritação ou desconforto. Sinais simbólicos como escavar o chão com as
patas dianteiras pode significar inúmeras coisas, desde um sinal de impa-
ciência com a chegada da comida, ou a intenção de desenterrar algo para
comer, ou ainda uma limpeza simbólica do chão antes de deitar e rolar.
Por causa de algumas coincidências casuais, muitas pessoas com-
param o comportamento equino diretamente com o comportamento
humano, o que não é sempre o caso. Apesar de existirem muitos pontos
coincidentes no comportamento do cavalo e do homem, eles têm muitas
prioridades diferentes para atender e, por isso, as duas espécies enxergam
o mundo com olhos muito diferentes. Esse comportamento cognitivo in-
dividual também existe nas relações humanas: por exemplo, uma fotogra-
fia retratando um determinado rosto poderá não ter nenhum significado
para uma pessoa, mas, se for o retrato da mãe de uma pessoa, para esta,
um mundo de memórias será deflagrado com a imagem.
O mundo e todas as coisas que ela contém terá significados diferentes
dependendo da espécie, da idade, do sexo, experiências anteriores e outras
prioridades vividas por uma determinada criatura. Compreender esse fe-
nômeno cognitivo do cavalo faz parte da boa equitação. Tenho chamado
este fenômeno de próprioperspectiva84 – e podemos discuti-lo em alguma
ocasião futura.
É também importante saber que os sinais emitidos de um cavalo para
outro é uma ‘instrução’ definitiva e não um pedaço de informação sujeita
a ‘interpretações’. O cavalo não tem tempo para interpretações; ou ele age
84

312
Parte III Odisséia na Ciência

ou poderá morrer.
Portanto, os equinos emitem instruções ‘gerais’ e ‘específicas’ sem va-
riações intermediárias. E a razão pela qual um sinal é emitido por um
cavalo como uma unidade de informação está relacionada com a própria
evolução equina. Um sinal pode ser deflagrado por um cavalo em resposta
automática ao avistar um predador, que favorecerá a sobrevivência do in-
divíduo que responder imediatamente a ela, salvando a sua vida.
Por isso, os sinais de comunicação do cavalo são unidades de infor-
mação específica que não deverão estar sujeitas a interpretações errôneas.
É uma unidade ‘completa’ de informação que tem de deflagrar uma res-
posta total, porque um ‘segundo’ no mundo natural pode ser uma questão
de vida ou morte. Por essa mesma razão, a dica do cavaleiro para uma
troca de pés ao galope tem também de ser absolutamente fixa para que
produza uma resposta total. Os animais predados (o antônimo de preda-
dor), ao contrário dos humanos, têm de deflagrar respostas imediatas para
os estímulos externos e isso é exatamente um dos fatores responsáveis pela
conexão neurofisiológica do Centauro.
As respostas automatizadas do cavalo bem adestrado aos comandos
humanos são praticamente infalíveis, e esses reflexos foram instalados no
sistema locomotor do animal por milhões de anos de seleção natural, para
que o animal aja imediatamente ao ser ‘estimulado’. E é a diferença e a
semelhança das respostas aos estímulos externos que permitem a união
neurofisiológica Homo-caballus na equitação. Por exemplo, no Adestra-
mento clássico, a parte emocional da mente do cavaleiro pode induzir um
cavalo ao piaffer, enquanto a sua mente racional consegue lembrar das
sequências de figuras e das mudanças de andamentos, uma façanha im-
possível ao cavalo. O homem consegue lembrar a sequência das figuras de
Adestramento porque ele desenvolveu ‘memória futura’, a capacidade de
compreender o conceito do tempo, que é um exercício cerebral inútil para
as prioridades biológicas do cavalo. A memória humana pode ser definida
como o acúmulo de sinais na forma simbólica para que eles possam ser
armazenados para uso futuro, o que só é possível se a resposta inicial não
for ‘total’ e pode ser suficientemente retardada, e então anexada a um sím-
bolo abstrato que pode ser fixado no cérebro. O intervalo entre o estímulo
e a formação da mensagem na mente humana possibilita o estímulo ser
processado em mais de um centro nervoso. É o processo da ‘incorporação
da linguagem’ que estabelece a diferença principal entre a linguagem hu-
mana e a comunicação equina. Quando treinamos um cavalo, se o animal

313
Bjarke Rink

responder incorretamente para um comando correto, o treinador terá me-


nos de três segundos para corrigir a falha. Se o cavalo for corrigido depois
desse intervalo, ele poderá não mais ligar a correção com a falha.

A linguagem ‘interna’ da equitação, que combina a resposta instantânea


do cavalo com a capacidade do cavaleiro produzir pensamento estratégico,
também estava na raiz das façanhas equestres dos guerreiros da Ásia
Central. Os arqueiros nômades consideravam os seus cavalos altamente
racionais e os tratava com a deferência de um melhor amigo. Apesar de a
maioria das pessoas nascidas em cidades achar isto ridículo, os guerreiros
das estepes aprenderam a organizar uma cadeia de posições corporais
que refletia os andamentos do cavalo – o passo, o trote ou a marcha, ou o
galope, mudanças de direção e a parada total – posições que o cavalo podia
sentir e imitar e, dessa maneira, os cavaleiros obtinham grande controle
sobre seus cavalos. Por isso, a equitação simbiótica não deve ter outro
objetivo senão o de compreender as motivações do cavalo, o seu sistema
de comunicação e, a partir daí, organizar a equitação em uma cadeia de
movimentos, indicado pelo cavaleiro e imitado pelo cavalo.

314
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 62

Estratégias e Ciclos de Vida


no Treinamento dos Cavalos

Apesar de um cavalo bem treinado parecer semelhante a um cavalo


sem treinamento, os dois são essencialmente diferentes. À semelhança de
um atleta humano, um cavalo bem adestrado é um animal cuja relação
com a sua performance física foi totalmente alterada. Para se tornar atleta,
o cavalo terá de aprender novas maneiras de lidar com o esforço psicológico
e físico de se movimentar em cooperação com um cavaleiro que estará no
comando de algumas partes muito importantes da ação; especificamente, as
decisões referentes à velocidade e à direção dos seus andamentos. Por isso,
o treinamento de cavalos exige uma compreensão crítica dos ciclos que go-
vernam a vida do animal, e uma estratégia biológica correta para o cavalo
desenvolver um comportamento favorável para a equitação em geral e os
esportes equestres em particular.
Como já vimos, para um cavalo e um cavaleiro se fundirem em uma
única unidade biológica, os parceiros precisam formar uma corrente co-
operativa psiconeurológica e serem capazes de alinhar os seus movimen-
tos e intenções em uma única ação. Para compreender como isso pode
ser realizado, os neurocientistas estão acrescentando muitos dados novos
para quem tem paciência de garimpá-los. No século 21, os cavaleiros mo-

315
Bjarke Rink

dernos poderão formar uma idéia muito mais nítida do funcionamento


neurológico do fenômeno equitação, e talvez o ‘mundo do cavalo’ poderá
finalmente chegar a um consenso universal sobre as técnicas equestres
ideais a serem empregadas, em vez das brigalhadas e desentendimentos
que infernizam as velhas escolas de equitação. E, já que estamos atraves-
sando esse território inóspito do Centauro, vamos analisar as técnicas
simbióticas progressivas necessárias para se conectar corretamente o cé-
rebro de um cavalo para induzí-lo a um comportamento cooperativo e,
dessa maneira, favorecer o seu desempenho equestre.
A minha intenção com esse capítulo e o próximo não é lhe ensi-
nar COMO treinar o seu cavalo, do ponto de vista tático, porque você en-
contrará livros especificamente escritos e ilustrados para este fim. O meu
objetivo, aqui, é ajudar o equitador moderno a formar uma idéia estraté-
gica da fisiologia do cavalo e ajudá-lo a ajustar o programa de treinamento
do seu cavalo aos seus ciclos de vida; sobretudo, a sua capacidade car-
diorrespiratória. Uma abordagem biológica dos treinamentos ajudará o
treinador a conectar as sequências corretas ‘da cadeia de reflexos da equi-
tação’ e assegurar a boa vontade do cavalo durante os exercícios, evitando,
assim, os erros humanos que frequentemente terminam com o desespero
e a hostilidade do cavalo contra o treinamento, e a violência do treinador
para obrigá-lo a continuar.

Não se trata de um manual de ‘COMO FAZER’


e sim ‘PORQUE FAZER’

Para que o cavalo possa participar dos jogos equestres com o alto
grau de eficiência verificada nos melhores desempenhos, grandes mu-
danças têm de ser feitas no comportamento e na atitude do animal. Fre-
quentemente, o cavaleiro despreparado culpa o cavalo maltreinado por
seus fracassos e afirma que ele – o cavaleiro – aplicou as ‘ajudas’ confor-
me manda o manual e o maldito animal não ‘obedeceu’ às suas ‘ordens’.
A diferença entre a boa e a má-equitação é que o bom cavaleiro sempre
reconhece as falhas como sendo suas; e que, ou o erro ocorreu por uma
falha sua de comunicação, ou foi o resultado da má-preparação do cavalo.
Vejamos como assegurar cooperação máxima de um cavalo de esportes.
Quando iniciamos um cavalo na equitação, a primeira coisa a ser
lembrada é que, mesmo sendo a equitação o uso humano do sistema lo-
comotor do cavalo, numa troca simbiótica de bom trato, boa comida e

316
Parte III Odisséia na Ciência

boa amizade, o cavalo não foi criado por Deus para ser montado. Sem
dúvida, a máquina de correr favorita de Deus foi criada para atender às
suas próprias necessidades e não para servir ao homem. Mas o milagre da
equitação, como tantas outras coisas boas da vida, pode ser muito mais
gratificante do que qualquer um desses produtos modernos que jorram da
indústria de entretenimento para o consumo humano.
A segunda coisa a lembrar é que o treinador estará trabalhando com
um cérebro de cavalo pré-testado por milhões de anos de experiência em
lidar com o meio ambiente, e transformar a informação coletada nas atitu-
des certas e no complexo trabalho de pernas que permitiu ao Equus sobre-
viver com sucesso num meio ambiente hostil. Os andamentos do cavalo
são a matéria-prima que o treinador de cavalo tem de controlar e desen-
volver de um modo natural e sistemático. Mas pelo fato de a inteligência
biológica do Equus caballus ter evoluído para enxergar o mundo numa
luz completamente diferente da dos primatas em geral, e do Homo sapiens
em particular, o cavalo tem uma maneira equina de aprender e o homem
tem uma maneira humana de aprender. E isso exige um conhecimento do
cavalo bastante heterodoxo, do tipo que você não aprende numa escola de
equitação convencional.
Quando um treinador profissional de cavalos, que desenvolveu uma
capacidade especializada para lidar com equinos, inicia um cavalo para
a equitação, ele ou ela precisa saber que esta complexa técnica biológi-
ca envolve a tarefa de tecer a mente do jovem animal em uma rede de
reflexos automatizados para responder às ajudas do cavaleiro, onde cada
movimento tem um significado próprio. Em nível psicológico, o treinador
estará trabalhando para modificar o comportamento do cavalo e induzi-lo
a cooperar com o cavaleiro no rápido fluxo de informações sinápticas que
ocorrem durante a equitação.
Aqui estão alguns pontos de verificação básicos que um treinador de-
verá guardar em mente sobre os ciclos biológicos que governam a saúde,
o bem-estar e a inclinação natural do cavalo em cooperar com o cavaleiro.
1) O corpo e a mente do cavalo fazem parte do mesmo sistema nervo-
so e, para desenvolver um bom desempenho equestre, os aspectos psico-
lógicos do treinamento deverão progredir na mesma velocidade da ação
física. O que a mente do cavalo não pode compreender, o seu corpo não
pode executar.
2) O cavalo nasceu com todos os recursos necessários para sua nova
vida equestre e a tarefa do treinador não é lhe ensinar nada “novo”, mas

317
Bjarke Rink

fazer o animal executar os seus movimentos naturais nas múltiplas sequ-


ências exigidas na equitação de esporte e lazer.
3) O aprendizado do cavalo deverá obedecer ao seu ciclo de desen-
volvimento (ontogênese) análogo a sua evolução desde o nascimento, in-
fância, adolescência e idade adulta (veja mais sobre esse tema no próximo
capítulo).
4) Um ciclo completo de treinamento, que é o tempo passado desde
a escovação, o encilhamento, o treinamento, e até que o cavalo seja desen-
cilhado e escovado novamente depois do trabalho, deve obedecer todo o
ciclo ontogenético do cavalo: a sessão deve começar com a ‘aproximação’
do cavaleiro e, depois de montar o cavalo, deve ser exercitado ao passo
por dez minutos, incluindo as flexões, depois o trote, o galope e, só então,
deverá o cavalo enfrentar os novos exercícios do seu programa de treina-
mento. Foi assim que o comportamento do cavalo evoluiu e é assim que
ele deve ser treinado diariamente.
5) O ‘ciclo completo de um treinamento’ deve ser composto por ‘ci-
clos menores’ que deverão englobar um pequeno grupo de exercícios que
começarão e terminarão com um ‘alto’ na pista. Os ciclos menores podem
durar dois, três ou mais minutos, a depender do tipo de trabalho, a idade
do cavalo e o seu condicionamento físico. Quando o cavalo completou um
‘ciclo menor’ de exercícios, ele deverá fazer um alto, e somente iniciar o
próximo ciclo depois de suspirar, que é uma indicação infalível de que o
seu sistema cardiorrespiratório se restabeleceu e ele está em condições de
iniciar mais um ‘ciclo’ de exercícios.85
6) Depois da sessão de treinamento do dia, o ‘relógio biológico’ do
cavalo terá completado um ciclo completo de trabalho e o cavalo deve ser
gratificado.86 Ao trabalhar tendo os seus ciclos biológicos naturais respei-
tados (respiração, batimento cardíaco, condicionamento físico e psicoló-
gico), o cavalo desenvolverá boa vontade com relação aos exercícios, um
requisito absoluto para a equitação avançada.
85
O cavalo, como todos os animais ‘caçados’, evoluiu para fugir dos seus predadores. Por sua vez,
os predadores evoluíram para, numa caçada bem-sucedida, alcançar a sua presa. O sucesso e o
fracasso de ambos depende de uma explosão de velocidade que pode durar um minuto ou um
pouco mais. Uma estratégia biológica de treinamento deve dividir esta explosão de velocidade
em ciclos de trabalho mais curtos, que permite o treinamento durar períodos maiores. Depois
de uma parada, o suspiro do cavalo indicará, com segurança, quando ele estará preparado para
mais um ciclo de trabalho. Essa técnica mantém o sistema respiratório do cavalo funcionando
bem e evita o stress que, mais tarde, vai se transformar em má-vontade.
86
A gratificação envolve o final do exercício, a retirada do animal da pista, a retirada dos arreios,
massagem no dorso e uma guloseima.

318
Parte III Odisséia na Ciência

7) Durante um trabalho bem conduzido, o cavalo é levado a acreditar


que ele está executando as transições e mudanças de direção por livre e
espontânea vontade, e é a obrigação do cavaleiro reforçar essa crença e
estimulá-lo a se dedicar ao máximo, sem o uso de força. A atitude domi-
nadora “você tem de fazer o que eu estou mandando” é burra e deverá ser
mudada para “estou aqui para lhe ajudar a fazer o movimento certo”. Essa
é a diferença entre uma relação simbiótica a escravização do cavalo.
Com o desenrolar dos treinamentos, o cavaleiro estará lidando com
os dois níveis principais da poderosa mente do cavalo: o consciente e o
inconsciente.87
Para que o cavalo possa facilmente resgatar as experiências eques-
tres aprendidas nas sessões passadas, o aprendizado ‘consciente’ e ‘in-
consciente’ deverá ser armazenado de uma maneira progressiva na mente
do cavalo.88 Isto facilitará que ele possa dar respostas rápidas para as ‘aju-
das’ do cavaleiro. O treinamento do cavalo deverá ser feito pelo treinador
com o propósito de ligar milhões de neurônios em seu cérebro em novos
circuitos, que permitirão ao animal executar qualquer movimento de uma
disciplina equestre, desde a correta avaliação do terreno – os picadeiros
de salto e adestramento, campos de pólo, arenas de touradas – até a sutil
tarefa de executar todos os movimentos de uma disciplina equestre, ofere-
cendo um perfeito feedback neurológico do seu parceiro humano.
Um fato relevante para ser lembrado aqui é que um cavalo jovem
terá de aprender, literalmente, todas as etapas do seu manejo e equitação.
Ele deverá aprender a ‘andar’ do lado cavalariço, ficar ‘amarrado’ a uma
argola, deixar que suas ranilhas sejam ‘limpas’, ser escovado, penteado,
encilhado e enfrenado. Aprender a pisar em poças d’água ou atravessar
um rio; reaprender a andar, trotar ou marchar e cantear numa linha reta
com um cavaleiro montado em seu dorso. Ele terá de aprender a confiar
nas ‘ajudas’ e monitorar os movimentos do cavaleiro; produzir uma ca-
deia de transições em resposta a uma cadeia de ajudas; saltar cercas,
lidar com bolas de pólo, laços, obstáculos de salto e ignorar alto-falantes
e outras inconveniências humanas; ficar calmo diante de uma multidão de
gente e seus veículos. Ele terá de aprender a ter paciência e aguardar as
‘ajudas’ mais importantes para iniciar uma corrida, finalizar uma reprise
de adestramento, e assim por diante. Essas experiências devem ser apren-
Este é, claro, uma simplificação de como a mente do cavalo funciona.
87

Por ‘ordem natural’, estou me referindo que as ajudas das pernas, que devem deflagrar os movi-
88

mentos amplos, devem trabalhar junto com o uso da embocadura que deve indicar o limite dos
movimentos.

319
Bjarke Rink

didas, uma a uma, para formar uma nova teia de circuitos neuronais capaz
de lidar com o mais simples manejo de baia até o desempenho nos espor-
tes equestres mais árduos. Como o cérebro do cavalo é bipolar, ele não
tem os dois hemisférios conectados como ocorre com a mente humana,89
e por isso deverá aprender tudo, desde a limpeza de ranilha, até ser mon-
tado, pelos dois lados do seu corpo.
A confiança do cavalo no cavaleiro e a sua boa vontade em coope-
rar deverão começar no manejo nas baias e, a partir daí, envolver todas
as suas atividades diárias, até que suas conexões neuronais formem uma
rede completa de experiências que o deixe apto a lidar com as situações
de uma ou mais disciplinas equestres. À semelhança da formação de qual-
quer outra cadeia de informações, nenhum ‘elo’ ou ‘bit’ de informação
deverá ser esquecido ou ensinado fora da sua ordem ontogenética natural,
porque a rede de neurônios tem de estar completa para garantir os circui-
tos corretos das respostas sinápticas em qualquer circunstância equestre.
Qualquer erro durante a formação da ‘cadeia de reflexos da equitação’
poderá mais tarde provocar um lapso na resposta do animal, erros que
podemos chamar de ‘hiatos’ de compreensão. Por isso, simples cadeias
de movimentos têm de ser aprendidas antes das sequências mais difíceis.
Por exemplo, a transição do passo para o trote deve ser aprendida antes
da transição do passo para o cânter, e o cânter aprendido antes do recuo,
etc. As transições devem ser aprendidas antes do trabalho lateral, e assim
por diante.90 A mesma combinação de ajudas não deverá ser utilizada
para ações diferentes. Experiência por experiência, a estratégia do trei-
nador deverá construir a confiança, o desempenho e o condicionamento
físico do cavalo, para que esse possa lidar com qualquer exigência na
pista ou no campo. O treinador também sabe que o cérebro do cavalo foi
construído à semelhança dos seus próprios miolos, e que um cavalo agirá
positivamente para um princípio simples: qualquer coisa que se pareça
com uma proposta prazerosa terá a sua total aprovação! Não ria – nós,
primatas, fazemos exatamente o mesmo.

Um sistema de treinamento deverá ser adaptado aos ciclos biológicos


do cavalo. Este fato deverá permear a equitação de alta performance,

89
A divisão bipolar, e não conectada, do cérebro do cavalo lhe permite uma ‘visão bipolar’, em
que ele é capaz de monitorar os dois lados do corpo de modo independente, o que traz uma
vantagem expressiva para os animais caçados.
90
Na verdade, eu gosto de pensar no salto como sendo uma ‘figura do Adestramento’, que deverá
ser treinado com a mesma visão progressiva e atenção aos detalhes.

320
Parte III Odisséia na Ciência

porque a equitação de baixa tecnologia é corretamente interpretada pelo


cavalo como sendo uma provocação e até uma ameaça para a sua própria
existência. O cavalo adotará uma atitude ‘positiva’ a favor de qualquer
coisa que lhe pareça uma proposta ‘justa’, que respeite a sua integridade
física e que, também, tenha ‘algo’ para ele. Quando trabalhamos com
animais capazes, inteligentes e bem criados, e aplicamos técnicas biológicas
coerentes, nenhum tipo de força ou equipamento de contenção é necessário
para se atingir a alta performance do cavalo.

321
Bjarke Rink

CAPÍTULO 63

Construindo um Centauro
a Partir de um Cavalo

Aproximar-se de um cavalo com a intenção de um dia montá-


-lo envolve um sutil código comportamental: movimentos suaves combi-
nados com firmeza de atitude indicarão ao cavalo intenções amigáveis
para um determinado propósito. O ‘treinamento do chão’ tem a função
de ensinar um cavalo a interagir com um líder humano e para compre-
ender o objetivo da relação, que é de andar, trotar, galopar, mudar de
direção e parar por comando humano. O processo do aprendizado deve
se desdobrar como uma cadeia ininterrupta de comportamento coope-
rativo que o cavalo deve aprender ao ver, imitar e responder as ‘dicas
cibernéticas’ do treinador. Nos estágios iniciais do ‘treinamento do chão’,
o cavalo tem de aprender a aprender por meio de persuasão firme, mas
respeitosa.Para que um jovem cavalo possa ser iniciado no processo de
adestramento, o método mais prático é o de rodar o animal numa guia e
ensiná-lo a responder as intenções e movimentos do instrutor para andar
a passo, trotar, parar e andar novamente. Na guia, o animal deverá pas-
sar por todas as fases da sua ontogênese – a fase evolucionária da vida
do cavalo desde o nascimento, a primeira infância, a segunda infância,
puberdade e idade adulta. A primeira sessão na guia representa o estado

322
Parte III Odisséia na Ciência

neonatal, onde o potro ‘recém-nascido’ dá os seus primeiros passos inse-


guros no caminho que leva à idade adulta. Na segunda fase, ‘a primeira
infância’, o cavalo deverá aprender a andar a passo e trotar, estimulado
por estímulos humanos.91 Na terceira fase do trabalho, que representa a
‘segunda infância’, o cavalo terá se tornando mais seguro e capaz de res-
ponder automaticamente aos comandos para andar, trotar e a sustentar
estes andamentos por períodos de alguns minutos. Na quarta fase, a ‘pu-
berdade equestre’, o cavalo se encontrará montado e capaz de executar
todos os seus andamentos com um cavaleiro dando ‘dicas’ por vibração
muscular para andar, trotar, galopar e parar. Depois dessa fase do trei-
namento, o animal estará preparado para trabalhar na fazenda ou servir
como cavalo de passeio. É no quinto estágio, quando o cavalo terá com-
pletado totalmente a sua conexão neurofisiológica com o cavaleiro e as
suas posturas corporais e ‘ajudas’, é capaz de deflagrar automaticamente
a ‘cadeia de reflexos da equitação’, que o animal terá se tornado a parte
equina do Centauro, em perfeito comando de todos os seus movimentos
equestres.
Pessoalmente, eu começo a trabalhar um cavalo na guia dentro de
um rodador aberto com 12 m de diâmetro, mas esse trabalho poderá tam-
bém ser realizado numa área plana de areia com um pilar de madeira ao
centro. A rédea da guia é então amarrada a uma ferramenta de rotação
afixada ao pilar para que, na primeira sessão, um cavalo mais exaltado não
possa arrancar a guia da mão do treinador. Esta é a primeira regra que um
jovem cavalo tem de aprender para todo o sempre: é impossível arrancar a
guia da mão do treinador. A exemplo de Arquimedes, que declarou: dê-me
um ponto fixo que eu moverei o mundo (se já usei esse exemplo em ou-
tro capítulo, favor desconsiderá-lo), o pilar de madeira no centro da pista
representa ‘a força humana’ em torno da qual o aprendizado do cavalo
gravitará. Pelo fato de que o animal não pode fugir, não pela presença de
um curral de madeira, mas pela força ‘aparente’ das mãos do treinador, o
cavalo se acomodará e se concentrará no treinador, que se tornará o cen-
tro da sua atenção. E agora uma surpresa para Grisone e demais apóstolos
da violência: durante o trabalho de ‘chão’, deve se estabelecer um clima
amigável para que o cavalo possa adquirir confiança no seu trabalho. O

Eu, particularmente, não gosto de estimular o cavalo a trotar com o uso direto do chicote.
91

Prefiro rodar o chicote no ar e simular com as pernas o movimento do trote. Eu quero que
o cavalo obedeça às minhas pernas. Seja na etapa do etapa do ‘chão’ ou seja montado – as
pernas do cavaleiro devem estimular as pernas do cavalo por imitação.

323
Bjarke Rink

manejo calmo e uma solução inteligente para qualquer situação que possa
provocar uma ‘resposta negativa’ do cavalo superará todas as dificuldades
que possam ocorrer no curso do trabalho. Durante todas as sessões, o ca-
valo deverá ser parado algumas vezes para que o treinador possa agradá-
-lo em várias partes do corpo; debaixo da barriga, no pescoço e ao longo
das orelhas.92 Isto faz parte da ‘linguagem natural da amizade’ e mostra
que o treinador aprovou o seu trabalho e conhece os seus pontos de pra-
zer. Na mente do cavalo, o treinador deve ser visto como o líder carismá-
tico que tudo sabe, e de onde vêm todas as ‘dicas’ que ajudarão o animal
a acertar a execução dos exercícios. Por essa razão, o comportamento do
treinador deve saltar a linha que separa o comportamento das espécies,
o que, às vezes, é difícil para as pessoas inexperientes compreenderem,
apesar de as técnicas serem tão simples como respirar, e qualquer pessoa
interessada pode aprender a lidar com um cavalo de modo natural.
Durante cada sessão de trabalho, o treinador tem de transmitir para
o cavalo o seu desejo de executar qualquer transição (de parado ao passo,
ao trote e ao galope), não com um chicote, mas com sinais físicos evi-
dentes desses movimentos associados à expressão emocional de ‘urgência’
quando é para aumentar a velocidade. Um tipo de chicote (êta palavra
horrível) pode ser utilizado como o prolongamento do seu braço, com o
propósito para apontar ou tocar a parte do cavalo que deve aumentar a
sua ação: patas dianteiras, patas traseiras, barriga ou garupa. Para reduzir
a velocidade, o treinador deve transmitir sinais claros de seu próprio rela-
xamento muscular e um toque na guia para indicar a diminuição da ação.
O cavalo deve perceber, nos movimentos do treinador, os indícios da ação
que deve ser seguida: passo, trote, alto, por exemplo. O reflexo executado
para o alto deve ser reforçado com o som shhhhhhhhhhh... emitido pelo
treinador enquanto ele também pára. Durante a sessão de treinamento,
as posturas corporais e atitudes do treinador devem denotar claramente
a sua intenção de acelerar, sustentar ou reduzir a velocidade. Se o cavalo
reduz a velocidade por vontade própria, o treinador deve se aproximar
dele correndo a mão ao longo da guia e, assim que o animal voltar à ve-
locidade desejada, ele volta para o centro do rodador. Quando o cavalo
tiver entendido as ‘dicas’ para as mudanças dos andamentos – passo, trote
e alto – executado nas duas direções (a favor e contra o relógio), os quatro
estágios seguintes serão para adição do equipamento: no primeiro estágio,
o cavalo receberá a sela no dorso, sem loros e estribos. Duas ou três ses-
Aqui, recomendo os livros da Linda Tellington-Jones sobre o Touch e Team Training.
92

324
Parte III Odisséia na Ciência

sões depois, quando o cavalo se mostrar confortável com a sela, ele deverá
começar a ser rodado com os estribos, e um ou dois dias depois, quando
o cavalo estiver confortável com os estribos chacoalhando no seu costa-
do, acrescente o bridão, que deverá ter sido colocado uma hora antes do
treinamento e usado durante um trato de ração. Dessa maneira, enquanto
o cavalo mastiga a comida, ele terá se acostumado com o metal duro na
boca e estará um pouco mais confortável durante a sessão de trabalho.
Dois ou três dias depois, conecte as argolas do bridão com as argolas do
cepilho com dois cordames elásticos, que funcionarão como uma rédea
‘virtual’93 para o cavalo se acostumar com um contato de rédea flexível na
boca. Mais dois ou três dias serão o suficiente para cada adição do equipa-
mento se tornar confortável para o cavalo, e de 14 a 21 dias o cavalo deverá
estar confiante no seu trabalho e pronto para o momento glorioso: o de
receber um cavaleiro em seu dorso. Passo a passo, o animal terá os seus
movimentos naturais organizados numa ‘cadeia de reflexos da equitação’,
estimulados com dicas visuais e auditivas que traduzem claramente o ato
de andar, trotar, parar e sustentar os seus andamentos naturais em curtos
períodos, nas duas direções.
Não há a necessidade de ‘inventar’ novos movimentos ou exagerar
no desempenho do cavalo. Uma vez que o animal entender o que é para
fazer, tudo o que deve ser feito é ‘sugerir’ o passo e o trote nas diferentes
sequências. Quando o trabalho de chão estiver completo e o cavalo souber
andar, trotar e parar por comando, o trabalho montado poderá começar
e a guia ganhará uma nova missão no sistema de comunicação: shazam,
presto!... o cabo da guia se transformará na rédea ligada a embocadura
que, por sua vez, estará ligada às mãos humanas, das quais o cavalo terá
aprendido que nunca poderá escapar! Quando o cavalo for montado pela
primeira vez, a ‘rédea virtual’ de elástico poderá ser removida, mas deverá
ser reconectada quando o cavalo estiver trabalhando de modo confortável
com o cavaleiro no dorso.94
O momento crítico em que o cavalo será montado (por um ajudan-
te) deverá começar com este colocando o pé no estribo, e calmamente
erguer o corpo sobre a sela. Se uma reação negativa do cavalo ocorrer, o
ato deverá ser abortado e experimentado na sessão do dia seguinte. Não
Do tipo que se usa para amarrar embrulhos em motocicletas.
93

Alguns treinadores gostam de ser o primeiro homem a montar, o que eu não faço, pes-
94

soalmente. Neste momento crítico, eu acho que o líder será mais útil perto da cabeça do
cavalo, segurando o cabresto e acalmando-o com tons graves de elogio e usando as suas
‘mãos mágicas’.

325
Bjarke Rink

tente forçar a situação. Uma reação negativa significa apenas que o cavalo
ainda não adquiriu uma atitude de confiança suficientemente grande para
aceitar a nova situação, portanto, mais tempo deve ser aplicado no traba-
lho de guia, para que ele ganhe a confiança necessária para receber o ca-
valeiro no seu dorso. E, já que o cavalo nunca foi maltratado de nenhuma
maneira durante as sessões de treinamento, receber o cavaleiro no dorso
será apenas a consequência natural de todo o processo de treinamento.
Depois que o cavaleiro assumir a sua posição no dorso do cavalo,
uma mudança fundamental deverá ocorrer no treinamento: em vez de o
cavalo imitar as dicas para andar, trotar, sustentar os seus andamentos e
parar por contato visual com o treinador, as ajudas para deflagrar o siste-
ma sensitivo-motor do cavalo deverão agora ser mudado, passo a passo,
para o contato com o corpo do cavaleiro. Depois de montado, o cavalo
deverá aprender a monitorar as vibrações musculares do cavaleiro: as di-
cas para andar, trotar, parar e para sustentar os seus andamentos, e fazer
as mudanças de direção. Na primeira sessão montada, tanto o treinador
quanto o seu auxiliar montado executarão, em combinação, os comandos
básicos. Desta maneira, desde o trabalho de chão até o trabalho montado,
nada terá realmente mudado além da origem das ajudas, que iniciaram
de forma visual e agora serão executadas através do contato com o corpo
do cavalo. A transição do visual para o tátil nunca leva mais de uma ou
duas sessões de trabalho e não deverá haver pressa, porque todo cavalo
tem o seu próprio tempo de aprendizado. Alguns aprendem rapidamente e
outros custam um pouco mais a compreender o que se espera deles. Mas
o que é 15 ou 20 dias de trabalho de chão para um cavalo que poderá lhe
dar 20 anos de serviço?
Começando com o trabalho de chão, e progredindo para o treina-
mento montado, cada fase deverá ter um prolongamento natural que ter-
minará com a fase seguinte do programa de treinamento. Ao abaixar os
estribos e deixá-los balançar nos costados do cavalo, depois dele se sentir
confortável com a sela, isso irá acostumá-lo com a posição das pernas do
cavaleiro; ao ligar as argolas do bridão com as argolas no cepilho da sela,
com um cordame elástico, o cavalo aprenderá a flexionar a nuca e colocar
a cabeça; ao transformar a guia nas rédeas, o animal aprenderá o princí-
pio do trabalho de rédeas, sem a inconveniência de ter um cavaleiro em
suas costas. E, uma vez que o ajudante se ergue sobre seu dorso, o cavalo
saberá como começar a andar, mudar de direção e parar, que é a base de
todas as disciplinas equestres. E, além disso, o treinador terá se tornado

326
Parte III Odisséia na Ciência

o centro de atenção do cavalo e, ao mostrar cuidado que nada de mal lhe


ocorra, ele terá conquistado a sua amizade para sempre. Guloseimas são
permitidas no início e no final de cada ciclo completo de trabalho. Nunca
dê algo para o cavalo comer durante as sessões de trabalho, porque isso
pode criar uma expectativa indesejada nos momentos em que ele deveria
estar se concentrando no treinamento. (Esta regra só deveria ser quebrada
na primeira vez em que um cavalo hiperativo for montado.) Especialmen-
te, cavalos jovens estão sujeitos a perder a sua concentração, portanto,
não é recomendável agravar esse comportamento com indulgências fora
de hora.95
Como vimos no capítulo Equus Ludens, ‘o jogo deve ser visto como
uma ocupação voluntária, de acordo com regras aceitadas livremente,
mas absolutamente obrigatórias’. Quem conseguir passar esta idéia para
o cavalo poderá se tornar quase imbatível nos jogos equestres. Durante o
trabalho de ‘chão’, o cavalo estará aprendendo a imitar os movimentos do
seu líder através da ‘linguagem natural dos movimentos’. Cada sessão na
guia deveria ter a duração de 15 minutos e acrescentar um minuto extra,
todas as semanas.
Como já vimos, qualquer demonstração de impaciência, movimen-
tos ameaçadores e atitudes arrogantes destruirá a relação homem-cavalo,
destruirá o delicado sentimento de confiança do cavalo que é o objetivo do
trabalho de iniciação. Por isso, estas reações autodestrutivas, tão comuns
no comportamento humano, deverão ser evitadas a todo custo. Paciên-
cia, determinação e comandos claros, mas sutis, para demonstrar as suas
intenções, é a receita para formar uma simbiose funcional com o cavalo.
E nunca seja persuadido com métodos que prometem prepara o ca-
valo para ser montado em trinta minutos, uma hora ou um dia. Isto pode
ser feito, é claro, mas os problemas de um cavalo subtreinado, que não teve
os seus movimentos naturais organizados em uma ‘cadeia de reflexos da
equitação’, estarão a lhe aguardar na próxima esquina.96 O tempo biológi-
co – o momento de nascer e o tempo de ficar adulto e amadurecer – não

95
Não utilize a guloseima como um suborno, porque os cavalos, felizmente, não sabem o
que é isso, mas apenas como um agrado por um trabalho bem feito.
96
O sistema do ‘round pen’ é, creio eu, o primeiro capítulo da ‘linguagem universal dos
movimentos’ que corretamente estabelecerá o treinador como o líder da combinação
homo-caballus. O método me parece eficiente para iniciar um cavalo para as lidas numa
fazenda, mas é pouco para iniciar um cavalo para os esportes de alta performance, onde
os movimentos naturais do cavalo terão de ser organizados em cadeias de reflexos auto-
matizados por uma técnica altamente ritualizada de mensagens visuais, táteis e sonoras.

327
Bjarke Rink

pode ser acelerado, como todo biólogo ou cavaleiro responsável poderá


lhe informar. Leva duas ou três semanas para um cavalo aprender o seu
papel básico na equitação, e qualquer tentativa para encurtá-lo poderá
causar falhas na ‘cadeia de reflexos da equitação’. Iniciar um cavalo para
a equitação não deveria ser transformado em um concurso de velocidade
como corrida de barris, ‘laço de bezerro’, ou “bulldogging”. Qualquer erro
cometido no processo de iniciação prejudicará o desempenho futuro do
cavalo. Um mau início é a causa principal de tantos cavalos sem educação
e tantos cavaleiros infelizes.

O trabalho de ‘chão’ tem a importância vital de estabelecer a


liderança humana e ensinar o cavalo a executar os seus andamentos
naturais por comando. É o primeiro passo para estabelecer a conexão
neurofisiológica da equitação, que é a habilidade do homem e do cavalo
monitorar os movimentos um do outro através de sofisticados circuitos
cerebrais, conectados para que possam responder ao padrão-motor um do
outro.

328
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 64

Um Homem Chamado Cavalo

Muitos cavaleiros possuem uma mentalidade conservadora e olham


com suspeita para a ciência como ferramenta para solucionar suas dificul-
dades com seus cavalos. Outras pessoas acham que “novas técnicas” são é
tudo o que precisam para resolver os seus velhos problemas equestres. Mais
cedo ou mais tarde, muitos descobrirão que as ciências da vida são a ferra-
menta lógica para cavaleiros entenderem o significado de ecologia, entende-
rem os códigos biológicos da vida, o seu próprio lugar no mundo natural, a
sua ligação biológica com o cavalo, e que esses animais são geneticamente
mais próximos ao homem do que se pensava. Essa nova compreensão da
natureza poderá deflagrar o ‘salto espiritual’ da velha visão mecanicista do
cavalo para uma nova visão do mundo sensorial da equitação.
Em nossa viagem para entender a origem biológica da equitação, não
deveremos acreditar em nada exceto fatos científicos, e os dados coletados
ao longo do caminho só deverão partir do corpo e da mente do cavalo, que
não poderão nos enganar. Com isso quero dizer que cada nova descoberta
equestre deve ser submetida às respostas físicas do cavalo, e que devere-
mos expurgar da nossa mente todos os vícios, preconceitos e erros de jul-
gamento do ‘velho mundo do cavalo’. Essa deve ser a lei número um para
que a relação intersensorial entre humanos e equinos possa levar à com-
preensão, à comunicação e à equitação simbiótica de alta sensibilidade.

329
Bjarke Rink

A primeira coisa a ser notada, neste novo mundo sensorial, é que,


geralmente, leva mais tempo para conectar os neurônios humanos para
a equitação do que os neurônios do cavalo. Ele levará um ano ou dois
para atingir o estágio adolescente da sua transformação comportamen-
tal, onde poderá desempenhar os movimentos básicos da equitação com
segurança. Mas para se tornar um líder, capaz de guiar o animal para as
grandes aventuras esportivas, o parceiro humano terá de aprender a ver,
ouvir e sentir o cheiro do meio ambiente como um cavalo. O cavaleiro
tem, primeiramente, de se tornar consciente das formas “estranhas”, obje-
tos “esquisitos”, sombras ameaçadoras, sons agressivos e outros indícios de
“perigo” que possam assustar o seu cavalo. O cavaleiro deve ser treinado
para usar todos os seus sentidos naturais e, às vezes, se deixar ser guiado
pelo som em vez da visão, pelo toque ou odor em vez do som, exatamente
como faz o cavalo. Isto é uma empreitada difícil para o homem que evo-
luiu como uma espécie altamente visual e aprendeu, sobretudo, a confiar
mais no que vê em detrimento dos seus outros sentidos. Quando o sistema
nervoso humano está conectado com o do cavalo, e de repente o animal
toma um susto, o choque atravessa o corpo do cavaleiro como se os dois
fossem um só animal. (Na Idade Média, eu seria denunciado à Santa In-
quisição e, provavelmente, queimado vivo em praça pública por propor tal
heresia). Mas, aprendendo a ver o mundo como um cavalo, você poderá
antecipar o que possa parecer assustador e, por meio de uma ação confor-
tante e racional, acalmar o animal.
Em termos do consciente, esta não é uma façanha qualquer e, em
termos do inconsciente, levará um tempo bastante grande para conectar
o sistema nervoso humano com o do cavalo e formar uma única operação
de sentidos conectados. Deverá ter levado alguns milênios para que os
nômades da Ásia Central desenvolvessem técnicas equestres capazes de
controlar os seus cavalos em todas as velocidades, uma façanha só possível
através da sua capacidade atávica de se comunicar com os seus cavalos.
E o que poderemos aprender com tudo isso? Para se transformar
num Centauro, o cavaleiro terá que ter o seu cérebro ‘upgraded’ para de-
sempenhar as façanhas atléticas com forças e velocidades superiores à
força e à velocidade humana. Ou, em outras palavras: a mente humana
tem de aprender a confiar na velocidade e na força das pernas do cavalo,
como se essas qualidades físicas emanassem do seu próprio corpo. A fase
inicial para conectar o cérebro humano com o sistema sensitivo-motor do
cavalo pode lembrar o ‘rito de passagem’ nas comunidades paleolíticas ou

330
Parte III Odisséia na Ciência

Ameríndias: a pessoa deve criar uma ligação espiritual com o cavalo atra-
vés da alteração da consciência humana. Mas como a mente do homem
urbano está sobrecarregada com tradições obsoletas e as tensões da vida
moderna, a pessoa deve ardentemente desejar a mudança, “porque conhe-
cimento é mais bem adquirido se o espírito está em harmonia com o espí-
rito do conhecimento a ser recebido e transferido. Um cavaleiro não deve
pertencer à classe de pessoas que escolheram dominar a natureza como
seu princípio de vida”.97 O cavaleiro que receber o seu cavalo escovado
e encilhado das mãos de um cavalariço não deve esperar chegar ao nível
de desempenho de um cavaleiro que cuida pessoalmente do seu cavalo. O
conhecimento mútuo vem da intimidade de se conhecer. (Se este aviso já
apareceu em outro capítulo, favor ignorá-lo).
Equitação simbiótica é a construção de uma atitude nova com a na-
tureza em geral e com o cavalo em particular. Para desenvolver o ‘espírito
do Centauro’, o cavaleiro jovem deve, primeiramente, aprender a conec-
tar o seu trabalho de pernas com o trabalho de pernas do cavalo, afinar
as suas mãos para limitar a ação através da embocadura e conectar os
seus sentidos equestres,98 para adquirir a mesma visão do mundo que tem
o cavalo. Para desenvolver maior sensibilidade para os movimentos do
cavalo, o cavaleiro deverá formar novos circuitos neuronais capazes de
identificar o ritmo quaternal do passo, o ritmo binário do trote e o ritmo
ternário do cânter – cadências que o cavalo ‘toca’ quando sustenta e altera
as suas velocidades. Quando esse sentido estiver conectado e o cavaleiro
conseguir identificar esses movimentos automaticamente, o seu sentido
proprioceptivo terá alcançado o chão por meio das pernas do cavalo! O
cérebro humano também terá criado uma cadeia de ‘reflexos da equitação’,
para deflagrar ‘as respostas reflexivas’ do cavalo, e quando esse feedback
nervoso esta fluindo livremente, os parceiros serão capazes de uma atua-
ção equestre altamente afinada.
A exemplo do cavalo, o cavaleiro deveria também começar a sua
vida equestre montado na guia e se submeter a todos os estágios da sua
ontogênese, o desdobramento evolucionário da sua própria vida; ou seja,
os estágios da primeira e segunda infância, puberdade e maturidade. Os
primeiros dias na guia representam o momento em que o ‘Centauro re-
cém-nascido’ dá os seus primeiros passos inseguros no seu caminho para
a idade adulta. Nesta fase, o corpo humano deve começar a sentir o traba-

Do livro Horseback Archery de Kassai Lajos.


97

Os sentidos equestres são: visão, audição, tato, olfato e propriocepção.


98

331
Bjarke Rink

lho dos músculos do cavalo em todas as suas dimensões. Na segunda fase,


a ‘primeira infância’, o cavaleiro aprenderá como andar a passo e ao trote.
O iniciante deve aprender a se relacionar com os movimentos do cavalo
como se esses fossem seus. Na terceira fase, a ‘segunda infância’, o cava-
leiro estará mais equilibrado e apto a executar os comandos para andar,
trotar, galopar, parar e sustentar esses andamentos pelo tempo necessário.
Na quarta fase, a ‘puberdade’ equestre, o cavaleiro terá se tornado capaz de
deflagrar os movimentos do cavalo com as vibrações musculares de suas
pernas. Nessa fase, o cavaleiro estará apto a trabalhar na fazenda ou andar
a cavalo por prazer. É a quinta fase, quando o cavaleiro terá completado
a união sensitivo-motora com o cavalo, consegue acompanhar automati-
camente os movimentos do animal e sabe como modificá-los, que ele ou
ela terá desabrochado na parte humana de um Centauro, em perfeito co-
mando com os movimentos da equitação. Ao conectar o seu corpo e a sua
mente com os do cavalo, a equitação terá se transformado numa ‘segunda
natureza’ para o cavaleiro.
O aluno, também, terá aprendido a absorver o atrito vertical dos an-
damentos do cavalo com suas próprias juntas e, ao mesmo tempo, manter
as suas mãos completamente desconectadas deste atrito vertical e perfeita-
mente alinhado com a expansão e retração horizontal do corpo do animal
durante a execução dos seus andamentos. Gabby Hayes costumava dizer
que “um bom cavaleiro deve ter o corpo flexível de um dançarino e as
mãos hábeis de um pianista”. O iniciante também deve aprender a arte da
liderança carismática e aprender a amarrar um nó emocional entre ele e
o seu cavalo através da vontade dos dois estarem juntos, treinarem juntos
e de uma relação amistosa depois do trabalho. E, lentamente, o cavaleiro
desenvolverá um sentimento poderoso de que ele ou ela é uma ‘extensão’
do seu cavalo, e o animal sentirá que o cavaleiro é uma continuidade dele
mesmo. Uma via dupla de ‘reflexos da equitação’ terá sido estabelecida
com o feedback tátil e emocional, que alimentam o sistema neuromotor
do conjunto com informações cibernéticas precisas,99 e que as suas mentes
equestres aprenderam a processar e a utilizar!
O sistema locomotor bipedal humano terá sido reconectado para ad-
ministrar os andamentos em dois, três e quatro tempos do cavalo, e as
pernas do cavaleiro estarão agora comandando a impulsão e as mudanças
de direção que era, basicamente, para isso que elas foram criadas. As mãos

Informações cibernéticas são os indícios das mudanças de velocidade e mudanças de di-


99

reção, e não os movimentos biológicos naturais que indicam essas mudanças.

332
Parte III Odisséia na Ciência

humanas, conectadas com a boca do cavalo, lidam com os movimentos fi-


nos, porque esses dois órgãos foram criados para lidar com o trabalho fino
da seleção alimentar e, por isso, se entendem muito bem. A sensibilização
de um homem para os movimentos e a velocidade do cavalo é um vôo de
forças físicas e espirituais maiores, e nenhum homem ou mulher pode as-
pirar a controlar completamente o corpo e a mente de um cavalo se ele ou
ela não estiver em pleno poder do controle do seu próprio corpo e mente.
O aprendizado da equitação é um ‘rito de passagem’, onde o cavaleiro terá
de lançar mão de recursos ancestrais da evolução humana e resgatar o po-
der de lidar com a natureza biológica do mundo animal, uma experiência
profunda e maravilhosa.

A equitação não se assemelha com nenhum outro tipo de aprendizado, mas


podemos achar vestígios do raciocínio biológico empregado em algumas
outras práticas humanas, como a música, alguns esportes e a ioga, por
exemplo. Para atingir as conquistas mais altas destas práticas, também
dependemos de grandes transformações do corpo e da mente e um estado
alterado da consciência. É como um ‘rito de passagem’, através do qual
as civilizações antigas alcançavam uma nova compreensão da vida e as
pessoas de si próprias.

333
Bjarke Rink

CAPÍTULO 65

Equitação Simbiótica –
Transformando Desejo
em Realidade

Um cavalo não é ‘guiado’ no sentido convencional da palavra, e esse


fato confunde muito as pessoas que foram criadas numa sociedade indus-
trial onde todos os veículos são ‘conduzidos’ com as mãos e guiados pelos
olhos. O salto mental necessário para compreender a equitação simbióti-
ca pode, provavelmente, ser mais fácil para as novas gerações criadas num
mundo pós-industrial, onde a ciência e a tecnologia ensinam as pessoas a
transcender além dos seus limites sociais e físicos. Um corpo e uma mente
flexível é a primeira condição para se iniciar o processo da Centaurização.
Para se transformar num cavaleiro simbiótico (ou de alta performan-
ce) a pessoa terá de ter o seu cérebro “upgraded” para realizar façanhas
atléticas com forças e velocidades superiores à capacidade genética huma-
na.100 Na primeira parte desse livro, nós analisamos a consequência his-
tórica deste “upgrading” neurológico, quando a ‘máquina de aprender’ de
Deus fechou um acordo com a ‘máquina de correr’ do cavalo e, juntos, a
combinação Homem-cavalo devastou a Eurásia e conquistou uma grande
Os atletas, de uma maneira geral, enfrentam o desafio de atingir o ápice da excelência huma-
100

na, mas ao cavaleiro é exigida a tarefa de ultrapassar os limites genéticos humanos.

334
Parte III Odisséia na Ciência

parte da sua riqueza.


Aqui, na terceira parte do livro, eu espero estar colocando o processo
de aprendizado do fenômeno equitação numa perspectiva mais clara e,
nos capítulos seguintes, vamos procurar penetrar ainda mais fundo no
território dos Centauros e imaginar como os cérebros humano e equino
devem se ajustar para se adaptar com o sistema neuromotor do parceiro.
Mas, primeiramente, vamos dar uma olhada para ver como, nas Savanas
da África, os humanos desenvolveram o seu sistema viso-motor e porque
esta impressionante habilidade, mais tarde, possibilitou a revolução in-
dustrial da Europa e porque esse mesmo sistema viso-motor é impróprio
para conduzir um cavalo na equitação de alta performance.
Um cavalo não deve ser ‘guiado’ no sentido convencional desta pa-
lavra, e essa afirmação pode parecer estranha aos olhos da pessoa urbana
acostumada a ‘guiar’ uma multidão de veículos e equipamentos eletrôni-
cos utilizando guidões, volantes, lemes, mouses de computador e joysticks
de videogames. (Veja também “A Zona Cibernética da Equitação.”)
E se nós considerarmos a chegada de Attila na Europa como sendo
o início da história da cavalaria na Europa, levaria mais de 1.500 anos até
o mundo ocidental começar a dominar algumas das técnicas equestres
simbióticas que os “Cavaleiros do Diabo” conheciam. Mas por que levou
mais tempo para os Europeus compreenderem as vantagens da equitação
simbiótica se comparado com os antigos nômades da Ásia Central?
Bem, nós podemos começar por analisar o seu sobrenome ou o meu.
Como eu tenho os dados do meu sobrenome à mão, vamos começar por
estes. O sobrenome ‘Rink’ é de origem ocupacional, pertencente àquela
categoria de nomes baseados no tipo de trabalho que os ancestrais reali-
zavam. No meu caso, o sobrenome ‘Rink’ é originário do termo medieval
‘rinke’ que denota um fabricante de fivelas. (E daí? A família de Shakes-
pere era fabricantes de luvas!)101 Como sabemos, desde os tempos pri-
mórdios, os humanos desenvolveram a sua habilidade ‘viso-motora’ para
a seleção alimentar e, desde a Idade Neolítica Homo faber, começou a
manufaturar ferramentas, roupas, sapatos, chapéus, fivelas, luvas, jóias e

O brasão que William Shakespeare adotou como ator e escritor de peças teatrais con-
101

tém, além de livros, flores e máscaras teatrais, um falcão com a perna destra levantada
e segurando uma pena, subscrita com o axioma “Non sans Droict”. Bem, o brasão de
armas do velho aventureiro Rink contém um falcão com as asas levantadas, seguran-
do uma argola em seu bico, encimado por um mote “Um espírito nobre em busca de
empreendimentos de honra”. (O brasão deve ter custado uma nota preta ao velho Rink
de Jena Einwohner.)

335
Bjarke Rink

todo tipo de artefatos domésticos, profissionais e militares, além das belas


artes em si. Todo esse trabalho dependia, sobretudo, da capacidade de os
artesãos trabalharem com as mãos guiadas pelos olhos. Essa tecnologia
manual, orientada pelos olhos, levou a humanidade do Paleolítico para o
Neolítico, e o desenvolvimento de todo este trabalho manual lentamente
se transformou na sociedade industrial da Europa ocidental.
Agora, o primeiro uso do cavalo na história da Europa foi para puxar
carroças e arados. Uma longa lista de geringonças foi inventada para me-
lhorar a técnica de tração animal. Alguns estudiosos afirmam que a ‘co-
leira de tração’ foi uma das invenções mais importantes da humanidade.
Para as sociedades sedentárias, provavelmente foi.
É bastante provável que, quando os nossos antepassados artesãos,
vindos de um meio ambiente agrícola, começaram a trabalhar com ca-
valos para sela, a sua mente estava conectada para o raciocínio mecânico
e, por isso, estavam sujeitos a inventar uma solução mecânica para todos
os seus problemas com cavalos. Então, quando o meu tatatataravô, vindo
da tradicional família de fabricantes de argolas em Jenas Einwohner na
Alemanha, decidiu entrar no negócio de cavalo, ele começou a fabricar
embocaduras com a idéia de que ela produziria sutis ‘operações cinéticas’
na boca do cavalo, favoráveis para o controle do animal (por favor não ria,
Dr. Ferreira, o seu tatatatataravô, especialista em trabalhar com ferro, fazia
o mesmo). Dezenas de artefatos mecânicos foram idealizados para “me-
lhorar” a tecnologia de tração e, mais tarde, com o advento das cavalarias,
centenas de objetos mecânicos também foram inventados para melhorar a
equitação. Lembre-se de que na velha Europa a embocadura era “a chave”
para o cavalo.
Desta maneira, a equitação ocidental se tornou uma extensão da sua
cultura de tração animal e um grande número de geringonças foi inventa-
da para ‘ajudar’ a controlar os movimentos do cavalo. Como já vimos, téc-
nicas mecânicas no treinamento de cavalos eram ensinadas por Federico
Grisone em Nápoles (contemporâneo dos Rink, fabricantes de argolas na
Alemanha), e essas técnicas medievais ainda são largamente utilizadas em
todo o mundo, apesar dos ensinamentos inovadores de Caprilli (que sabia
das coisas, mas não tinha a ciência para lhe ajudar a explicar).
O fato relevante dessa história é que as sociedades ocidentais, que
adquiriram todos os seus extraordinários avanços tecnológicos através do
pensamento mecanicista, estavam acostumadas a inventar um ‘utensílio
mecânico’ cada vez que surgia um problema com seus cavalos. Da Idade

336
Parte III Odisséia na Ciência

Média em diante, os nobres e os burgueses ricos, que formavam a elite


das escolas de cavalaria da Europa, possuíam uma mente ‘viso-motora’
bem desenvolvida, que era o padrão mental para todas as pessoas bem-
-sucedidas. Por essa razão, ferramentas são fabricadas com um cabo para
a pessoa segurar e todo veículo possui um guidom, volante ou leme para
ser manipulado pelas mãos, guiados pelos olhos. Esta visão mecanicista
formou a base da filosofia equestre da Europa e as ‘teorias das embocadu-
ras’ se tornaram o foco das técnicas equestres ocidentais.
E, na medida em que os nossos antepassados estavam a construir o
seu meio ambiente urbano e artificial, eles se distanciavam cada vez mais
da compreensão biológica do mundo natural, que é, essencialmente, a ca-
pacidade de se sentir como uma parte interativa da natureza. À medida que
as populações urbanas da Eurásia desenvolviam uma capacidade cada vez
maior para o raciocínio mecânico, eles perdiam gradativamente a sua fa-
culdade de interagir com a natureza, e isto inclui o manejo e a equitação de
cavalos. Até o Paleolítico, os humanos haviam compreendido as leis da na-
tureza porque eles faziam parte do seu mecanismo, mas só os cavaleiros da
Ásia Central, ainda num estágio Neolítico de tecnologia, retiveram os seus
laços ancestrais com a ecologia e a equitação, e fundiram-se naturalmente
com seus cavalos. Enquanto o homem moderno construía o seu meio ur-
bano perfeito, ele gradativamente perdeu a capacidade de compreender o
mundo natural.
Da Idade Média até a chamada ‘era atômica’, ninguém podia compre-
ender porque você podia guiar trenós, carruagens, bicicletas, automóveis
e aviões com as mãos, mas não podia (ou deveria) equitar um ‘simples’
cavalo em todas as velocidades e direções com o mesmo método. Pelo
fato de esse mistério nunca ter sido desvendado, a maioria dos cavaleiros
europeus reduziu a velocidade de seus cavalos para funcionarem na velo-
cidade de sua capacidade mental e tudo que envolvia cavalo era constru-
ído para funcionar lentamente – desde as armaduras, aos tipos de cavalo,
a estratégia militar (como vimos no capítulo “Os Mestres do Tempo e os
Mestres do Espaço”). Equipados com uma ‘mente mecanicista’ altamente
desenvolvida, as pessoas eram incapazes de compreender que, para ad-
quirir controle absoluto sobre o cavalo, você teria de se adaptar à natureza
do animal. Isto soa razoável para você? Bem, até o século 21, a maioria
dos cavaleiros absolutamente não alcançava essa filosofia. No ocidente, o
mistério e as mistificações sobre a equitação iriam crescer na proporção
exata do sucesso mecânico que decolou verticalmente no século 18 e lan-

337
Bjarke Rink

çaria Homo sapiens simultaneamente na Lua e na Era Cartesiana.102 Mas,


depois de todas as tragédias mecânicas-militares do século 20, esperemos
que tudo isso possa mudar.103
Hoje em dia, os neurocientistas afirmam que a mente humana possui,
no mínimo, oito habilidades distintas: linguística, corporal, lógico-mate-
mático, musical, interpessoal, intrapessoal, espacial e naturalístico. Final-
mente está sendo reconhecido que a ‘habilidade naturalística’ é necessária
para compreender os sistemas e ciclos naturais, e que algumas pessoas,
como Charles Darwin, Gregor Mendel e Francis Crick, por exemplo, nas-
ceram com essa aptidão. Nas primeiras décadas do século 21, os estudio-
sos provavelmente ligarão a equitação de alta performance a, pelo me-
nos, cinco das oito habilidades humanas: corporal, musical, interpessoal,
espacial e naturalística. Acredito que poucas outras atividades humanas
exijam tantas habilidades. Vejamos o porquê.
A habilidade corporal é usada na equitação para formar a ‘cadeia de
reflexos da equitação’. O senso musical é usado quando o homem funde-
-se com os ritmos e as cadências do cavalo. A capacidade interpessoal é
necessária para lidar com a complexa personalidade do cavalo. A habili-
dade intrapessoal é essencial para o cavaleiro compreender as suas pró-
prias emoções e atitudes diante da complexidade da equitação. O senso
espacial é utilizado para o cavaleiro aprender a reagir em um décimo de
segundo durante as manobras equestres no campo ou no picadeiro. (Veja
também capítulo Na Zona Cibernética do Centauro).
Como já vimos, para aprender a interagir com o sistema nervoso
do cavalo, o cérebro do cavaleiro precisa formar muito mais sequências
de circuitos nervosos especializados do que para dirigir veículos moto-
rizados – barcos, carros, motocicletas ou aviões – veículos que foram
construídos para serem dirigidos com um sistema ‘viso-motor simples’.
Portanto, na equitação as rédeas NÃO representam o volante do cavalo.
(Não perca o próximo capítulo.)
102
Por era cartesiana, me refiro à divisão entre corpo e mente, como operar um computa-
dor sentado numa cadeira e deixar a mente navegar enquanto o corpo fica em casa.
103
Gerald Edelman, um neurocientista americano, afirmou nos últimos anos do século 20
que, de um certo modo, as crianças não eram mais filhos de seus pais, mas o produto de
uma nova info-tecnologia, porque o novo corpo de conhecimentos mudou a manei-
ra com que as crianças aprendem a pensar, e isto os ajudaria a construir um mundo
melhor no futuro. Do mesmo modo, o aprendizado da equitação simbiótica também
depende de as pessoas formarem uma nova atitude para lidar com os cavalos e a equi-
tação que são, na verdade, uma extensão dos seus sentidos naturais. E isto depende de
uma mudança radical de mentalidade.

338
Parte III Odisséia na Ciência

O sentimento prioritário da equitação simbiótica não é o de ‘controle’. Este


é um sentimento que o cavaleiro necessita no início das suas aulas. Na
medida em que o cavaleiro aprende a se fundir com o sistema nervoso do
cavalo e o sistema sensitivo-motor do animal se conecta com o do cavaleiro
– quando uma união proprioceptiva é formada entre os dois parceiros,
um novo sentimento aflora – o estimulante sentimento de liberdade. E é
provavelmente isso que Caprilli quis passar para os seus alunos na Itália.

339
Bjarke Rink

Capítulo 66

Caprilli e Além

Todo estudo da equitação deve começar com uma simples questão:


como melhor controlar um cavalo a partir de uma posição em seu dorso.
Desde o trabalho de chão à hora de montar, as ‘ajudas’ do cavaleiro mu-
dam do visual ao tátil e a mente humana tem de se transformar no ‘centro
de decisões’ da relação intersensorial entre o homem e o cavalo. Adquirir
um controle biológico perfeito sobre um cavalo é uma tarefa muita além
das complexidades de se manejar uma raquete de tênis, controlar uma bola
de futebol ou administrar os desafios cibernéticos de um carro de corrida.
Vamos entrar no universo do aprendizado motor da equitação simbiótica e
dar uma olhada nessas estranhas criaturas, meio homem meio cavalo, que
habitam essas longínquas plagas.
Bruce Mac Fadden, em seu livro Fossil Horses, nos informa exis-
tir mais de 40 mil livros escritos sobre os vários aspectos do cavalo e da
equitação. Mas dessa quantidade assombrosa de literatura, não mais de
20 autores são responsáveis pela maneira que nós cavaleiros ocidentais
pensamos sobre a equitação.104 Como nós vimos na primeira parte desse

A minha escolha pessoal para os autores clássicos mais lidos no mundo é Xenofonte,
104

Grisone, Pignatelli, Pluvinel, Newcastle, Sollissel, La Guérinière, Carlos de Andrade,


Eisenberg, Brogelat, La Brove, De Previl, Baucher, Steinbrecht, L’Hotte, Fillis, Caprilli,
Decarpentry, Podhajsky, Nuno Oliveira.

340
Parte III Odisséia na Ciência

livro, Xenofonte, Grisone, Pluvinel, Newcastle, La Guérinière, Baucher,


D’Aure, L’Hotte e, especialmente, Caprilli, podem ser considerados os
responsáveis pelos fundamentos da equitação clássica contemporânea. E,
como também sabemos, somente Pluvinel e Baucher se referiam à equi-
tação como sendo um assunto científico, apesar de não terem uma base
científica para substanciar como cavalos e cavaleiros conseguiam realizar
os seus objetivos na guerra e, hoje em dia, vencer nos esportes. Como já
vimos, a equitação, especialmente o do estilo militar, era, até o surgimento
de Caprilli, baseada na reunião extrema do cavalo “com a linha frontal da
cabeça perpendicular ao horizonte”, uma prática estabelecida pela Escola
Napolitana de Equitação, lá pelos idos do século 16, enquanto ‘o alonga-
mento desimpedido do animal, com uma colocação natural da cabeça e
do pescoço’, é de responsabilidade exclusiva de Caprilli. E a atual posição
‘adiantada’ na sela do cavaleiro moderno, especialmente sobre os saltos,
não é nada mais do que a sua complementação lógica.
O revolucionário capitão italiano afirmava que “o cavaleiro deveria
deixar o seu cavalo como a natureza lhe formou, com o seu equilíbrio e
atitude de cabeça inalteradas porque, quando é necessário modificar esse
mesmo equilíbrio, o cavalo, no curso do seu adestramento, será perfeita-
mente capaz de fazê-lo se permitida a liberdade necessária. [Por isso] a
primeira regra da boa equitação deveria ser o de reduzir, simplificar e até,
quando possível, eliminar a ação por parte do cavaleiro. Sem alterar a sua
tranquilidade, nós deveríamos sempre utilizar o seu [do cavalo] instinto
natural e encorajar os seus movimentos e andamentos naturais. Quando
o cavaleiro é capaz, durante todo o percurso de salto, conformar-se sua-
vemente aos movimentos do cavalo, ele terá desenvolvido mais do que a
destreza necessária para não perturbá-lo com qualquer coisa que precise
fazer”, insistia o mestre italiano. Caprilli era contrário a tudo que, mesmo
de longe, pudesse ‘cheirar’ a artificialidade. Na presença desta simplicidade
admirável, nós poderemos bem imaginar o que Caprilli teria dito se visse as
bugigangas, oriundas das pistas de espetáculos equestres, que ora invadem
as pistas e até a caça à raposa e as corridas de cavalo.105
Essas são as sábias palavras de Caprilli, segundo o seu melhor aluno
Piero Santini. Mas como poderá a ciência moderna ajudar a resgatar a fi-
losofia não intervencionista de Caprilli? Como poderá o cavaleiro manter
o ‘controle’ da ação sem a ajuda de meios mecânicos como embocaduras
pesadas, gamarras, rédeas alemãs e outros métodos para conter o cavalo?
Do livro The Caprilli Papers, traduzido e editado por Piero Santini.
105

341
Bjarke Rink

Como podem o corpo do cavalo e do cavaleiro se conectar com seus ossos,


tendões e músculos, trabalhando em cooperação biológica, em busca do
mesmo objetivo? Na segunda parte desse livro, espero que nós tenhamos
chegado a uma conclusão satisfatória sobre as cadeias de respostas auto-
matizadas e a inversão do sentido de propriocepção que liga a combina-
ção homem-cavalo em uma única unidade galopante. Vamos imaginar,
agora, como os sistemas nervosos humanos e equinos interagem e como
os parceiros definem os seus papéis funcionais durante a ação equestre. A
má-equitação ocorre, invariavelmente, quando o cavaleiro interfere com
os movimentos naturais do cavalo ou quando o cavalo decide o que fazer
– disparar, por exemplo. Para descobrir como os sistemas nervosos huma-
nos e equinos interagem, precisamos, primeiramente, formular a pergun-
ta pertinente e tentar encontrar uma solução por meio das informações
neurofisiológicas existentes.

COMO PODEM, O HOMEM E O CAVALO, FORMAR UMA


UNIDADE BIOLÓGICA ONDE O CAVALEIRO CONTRIBUI COM AS
DECISÕES E O CAVALO COM O SISTEMA LOCOMOTOR?

E como é possível o cavaleiro deixar tudo por conta do cavalo, in-


terferir o mínimo possível, e manter o controle absoluto da ação, como
postulava Caprilli? “A primeira regra da boa equitação deve ser de reduzir,
simplificar e, quando possível, eliminar a ação por parte do cavaleiro”, in-
sistia o capitão italiano. Caprilli, evidentemente, sabia como fazê-lo, mas
não possuía as informações científicas necessárias para explicar como
funcionava o seu sistema. Vamos dar uma olhada nesta floresta de ativida-
des intersensoriais e ver como o Centauro funciona por dentro.
Primeiramente, precisamos compreender como funciona um sistema
nervoso e para usar uma simplificação prática vou lançar mão da defini-
ção de Humberto Maturana e Francisco Varela:106 “A relação interna de
um sistema nervoso é relativamente simples: é o balanço entre atividade
sensorial e tônus muscular. Como regra, todo comportamento é uma vi-
são externa da dança das relações internas do organismo. O sistema ner-
voso é totalmente consistente com a sua formação de unidade autônoma,
em que cada estado de atividade leva a um outro estado de atividade na
mesma unidade, porque a sua operação é circular, ou seja, é um ‘circuito

Humberto R. Maturana, Ph.D & Francisco J. Varela, Ph.D são autores do livro The Tree
106

of Knowledge.

342
Parte III Odisséia na Ciência

operacional’. Por isso, o sistema nervoso, pela sua própria arquitetura,


não viola, mas enriquece o ‘circuito operacional’ que define a natureza
autônoma do ser vivo”.
Para exemplificar esta regrinha neurofisiológica, vamos imaginar um
gato dormindo num saco e o aparecimento indesejável de um cão que
interrompe a tranquilidade do bichano. A atividade sensorial do gato de-
tecta a aproximação do inimigo, automaticamente, aciona os seus mús-
culos que respondem ao estímulo do intruso com um salto espetacular.
Os músculos do gato saltam instantaneamente de repouso à ação e im-
pulsionam o animal para fora do alcance do cão. Como você pode ver, o
sistema nervoso define o estado autônomo dos seres vivos e cada estado
de atividade leva a um outro estado de atividade. Depois do susto, quan-
do o gato encontra outro lugar para repousar, o ciclo de atividade terá se
completado (de repouso a repouso).
Mas como é que a dança interna da relação entre cavalo e cavaleiro
procede, quando o sistema nervoso humano entra numa cadeia de coo-
peração com o sistema nervoso do cavalo durante a equitação? O mais
provável é que a combinação homem-cavalo que forma o Centauro imita
a vida e forma um ‘terceiro’ sistema nervoso, com o qual os parceiros de-
sempenham os seus papéis distintos. Esse ‘novo sistema nervoso’ é basica-
mente composto pelo sistema locomotor do cavalo, cuja ação é deflagrada
pela mente humana. Isso significa que a mente humana, para evitar entrar
em choque com o cérebro do cavalo, tem que se desviar do ‘centro de
decisões do cavalo’. E isso só pode acontecer se, primeiramente, o animal
aprendeu a confiar totalmente na liderança humana e se as ‘ajudas’ hu-
manas, que deflagram a sua ‘cadeia de reflexos da equitação’, forem tão
sutis que puderem ser captadas pela dilatação cervical e lombar situadas
na espinha dorsal do animal, sem a interferência do seu cérebro. Através
do treinamento progressivo, o cavalo responderá automaticamente aos
comandos humanos e o sentido proprioceptivo do animal aceitará essas
ajudas cibernéticas como se viessem do seu próprio cérebro.
Isto pode explicar o processo das tomadas de decisões; mas como é
que os ciclos musculares humanos interagem com os ciclos musculares
equinos durante a ação equestre e porque deveria o cavaleiro “reduzir,
simplificar e até, quando possível, eliminar a ação por parte do cavaleiro”,
como sugere Caprilli?
Do ponto de vista da neurofisiologia do fenômeno equitação, isto é
relativamente fácil de explicar: um cavaleiro que tenha atingido a ‘idade

343
Bjarke Rink

adulta da equitação’,107 onde seus neurônios são capazes de fazer a ‘leitura’


dos movimentos do cavalo como se eles fossem o produto do seu próprio
sistema nervoso, terá, sem abrir mão da sua natureza humana, se tornado
‘meio cavalo’. Com isso quero dizer que o cavaleiro terá mergulhado na
sua ancestralidade animal e resgatado os arquivos genéticos do seu movi-
mento quadrupedal, adormecidos durante a evolução para o estágio ho-
minídio.108 O sistema nervoso das suas pernas pode então ser ‘plugado’
ao sistema nervoso das pernas do cavalo e essa combinação é responsável
pela velocidade e mudanças de direção do conjunto. Sim, na equitação
de alta sensibilidade as pernas do cavaleiro se tornaram responsáveis por
deflagrarem todos os movimentos amplos das pernas do cavalo, e também
pela sustentação dos andamentos e mudanças de direção.
Agora, companheiro de viagens, nós estamos nos aproximando ao ponto
zero da ‘fronteira neurofisiológica da equitação’, no qual os sentidos humanos
e equinos se fundem e o lendário Centauro emerge em todo o seu esplendor.
A zona cibernética109 da nova criatura – a área que ‘controla’ a direção e a
velocidade do Centauro – é de fato a pélvis humana e não as suas mãos. Em
muitos manuais de equitação, os autores se referem ao ‘assento’ como o centro
da ação humana. Uma infinidade de posições do ‘assento’ está associada aos
movimentos da equitação. Mas isto é apenas uma visão externa da realida-
de que não conta a história vista por dentro. A história completa postulada
por Caprilli, mas que ele não tinha como provar, é que o homem e o cavalo
mudam de direção ao deslocarem a sua pélvis, um movimento do cavaleiro
que o cavalo pode ser treinado a monitorar e imitar, porque essa é também
a maneira com que os mamíferos superiores mudam de direção. E as mãos
humanas, conectadas à boca do cavalo, têm a função de definir os ‘limites’
dos movimentos. Como vimos, isto pode ser efetuado porque as mãos huma-
nas e a boca do cavalo estão equipadas com sensores nervosos, desenhados
pela natureza para a delicada tarefa de seleção alimentar. Quando, por meio
das rédeas, as mãos do cavaleiro estão em contato com a boca do cavalo, os
parceiros estarão conectados como um casal de dançarinos de mãos dadas;
mãos que sabem interpretar as inúmeras combinações dos movimentos do
107
Aqui não estamos falando da idade cronológica do cavaleiro, mas sim do estágio em
que se encontra a sua ligação sensitivo-motora com o cavalo.
108
Ao resgatar os arquivos genéticos do seu estágio arbóreo, os ginastas olímpicos execu-
tam as suas figuras nas argolas, paralelas, barras e exercícios de solo com tão grande
maestria que nenhuma pessoa ‘normal’ poderia sonhar de fazer.
109
A Cibernética, segundo Norbert Wiener, é o estudo do controle e da comunicação no
animal e nas máquinas.

344
Parte III Odisséia na Ciência

parceiro e podem, inclusive, moldar a ação desejada: qual o comprimento das


passadas? Qual a velocidade da ação? Quando mudar de direção? Quanto
flexionar as pernas? Onde termina um movimento e onde inicia o outro? E,
como já vimos, a embocadura tem também a função de ajudar o cavaleiro a
posicionar a escápula do cavalo na posição correta para executar o trabalho
lateral e trocas-de-pés-ao-tempo, e as rédeas formam um corredor por onde
o cavalo aprende a passar. Em todas as passadas, os músculos do cavaleiro
realizam os mesmos movimentos de protração e retração dos músculos do
cavalo e a sincronia perfeita de todos os músculos do conjunto, os braços e os
dedos acompanhando o avanço e a retração da cabeça, as pernas indicando o
aumento da velocidade e a pélvis indicando as mudanças de direção, definem
a equitação simbiótica de alta performance.
A dança interna do sistema nervoso equino, atuando em cooperação
com o sistema nervoso humano, funciona como uma máquina bem afina-
da. Para fazer as transições ou mudar de direção, o cavaleiro irá, em vez de
imitar os movimentos do cavalo, executar com o seu corpo a mudança de-
sejada, e o animal o imitará, quando então o cavaleiro mais uma vez alinha-
rá os seus movimentos com os ciclos musculares do cavalo até a próxima
transição ou mudança de direção. L’Hotte define a questão dessa maneira:
“Quanto mais experiente o cavaleiro cavalgando um cavalo também expe-
riente, poderá utilizar o que Baucher originalmente formulou em sua Nou-
velle Méthode, a idéia dos ‘effects d’ensemble’ (efeitos coordenados), que
significa o uso simultâneo de ajuda de perna e mãos. Em outras palavras:
quanto mais experiente o cavaleiro, mais reunidas as suas ajudas serão exe-
cutadas”. Na época, o velho mestre não possuía informação neurofisiológica
que pudesse lhe ajudar a compreender que o cavalo e o cavaleiro execu-
tam exatamente os mesmos circuitos musculares através da fusão dos seus
sistemas nervosos, produzindo uma única operação funcional. Os mestres
sabiam como fazê-lo, mas não sabiam porque funcionava.

O controle absoluto do cavalo requer a união total dos


sentidos humanos com os sentidos equinos. Por esta razão, a equitação
é, provavelmente, o mais exigente dos esportes, isso porque o perfeito
alinhamento da ‘cadeia de reflexos da equitação’ do cavalo e do cavaleiro
pode levar muito tempo para se coordenar. Mas uma vez que a união
sensitivo-motora tenha se concluída, ela será um sistema muito mais
confiável para controlar o cavalo do que as velhas técnicas mecanicistas
idealizadas para ‘controlar’ os movimentos do animal.

345
Bjarke Rink

CAPÍTULO 67

A Zona Cibernética do Centauro

Os problemas de controle e comunicação na equitação não podem ser,


de maneira nenhuma, comparados com a direção de veículos mecânicos.
Na equitação simbiótica, o sistema sensitivo-motor do cavalo deve receber
‘ajudas’ simultâneas sobre a velocidade e a direção desejadas vindas dire-
tamente do sistema sensitivo-motor humano. Para que o cavaleiro possa
orquestrar esta interação exige-se grande conhecimento do comportamento
do cavalo e o controle automático do feedback de informações cibernéticas
que a equitação produz. A simbiose Homo-caballus é provavelmente o mais
espetacular processo de aprendizado a ter adaptado duas espécies neste pla-
neta, e a imagem do Centauro define, com perfeição surpreendente, esta
transformação biológica.
A Cibernética é o estudo do controle e comunicação no animal e na
máquina. Cibernética é também o nome de um livro escrito por Norbert
Wiener, julgado por muitos historiadores, economistas, educadores e filó-
sofos como sendo um dos trabalhos que mais significativamente alterou a
direção tecnológica do século 20. Nos primeiros capítulos do livro, Nor-
bert Wiener nos informa que o “equipamento de pilotagem de um navio
é certamente a mais antiga e mais bem desenvolvida forma de mecanismo
de feedback”. Mas, apesar de ter apreciado bastante o seu livro, temo sin-
ceramente que essa afirmativa é historicamente incorreta. As primeiras

346
Parte III Odisséia na Ciência

embarcações inventadas pelo homem foram jangadas, que entraram em


uso cerca de 6 mil anos a.C, e elas eram provavelmente conduzidas com
varas; e suponho que o uso de varas não seja o mecanismo que Norbert
Wiener tinha em mente.
A equitação, que evoluiu há cerca de 6 mil anos, é certamente a mais
antiga, a mais complexa e o mais perfeito mecanismo de feedback ciberné-
tico na história do desenvolvimento tecnológico humano. Para mim, é um
mistério total que nenhum cientista jamais tenha concluído que a relação
intersensorial entre humanos e equinos foi provavelmente a primeira e
continua sendo a mais complexa forma de feedback já desenvolvida pela
mente humana. Os problemas do tráfego que ocorrem na união dos sis-
temas sensitivos-motores da simbiose Homo-caballus colocam questões
cibernéticas de proporções simplesmente gigantescas, que estão muitos
anos luz além das simplificações que Marshal McLuhan usou quando ele
propôs a roda da bicicleta como exemplo da extensão das pernas huma-
nas!
Para descobrirmos novas evidências de como o homem e o cavalo
interligam os seus sistemas nervosos e coordenam os seus movimentos
durante a equitação, eu sugiro que nós realizemos outra cavalgada explo-
ratória para a ‘terra do Centauro’, onde homens e cavalos se tornam unos.
A cibernética biológica, o controle e a comunicação interna no animal po-
derão nos ajudar a colocar as técnicas equestres na ordem de causa e efeito
correta e revelar o método de feedback que ocorre no fenomeno equitação.
Ao analisar a equitação através da luz da cibernética, a disciplina tecno-
lógica mais influente do século 20, e projetar algumas imagens psicoló-
gicas e neurofisiológicas neste quadro, talvez sejamos presenteados com
um esquema prático de como funciona a equitação, além dos sonhos mais
ambiciosos de Xenofonte, Baucher e Caprilli. Sim, nós conseguiremos!
O papel do feedback, tanto na engenharia quanto na biologia, já se
tornou bem estabelecido pela ciência. “O papel da informação e das téc-
nicas de medir a informação constitui uma disciplina completa para o
engenheiro, para o fisiólogo, o psicólogo e o sociólogo”, diz Norbert Wie-
ner. “Se uma nova disciplina possuir vitalidade real, o centro do interesse
deve e precisa mudar no decorrer dos anos”, continua Wiener. Portanto,
vamos iniciar a nossa cavalgada em busca do controle e da comunicação
na equitação seguindo a explicação de Wiener sobre um exemplo clássico
de cibernética mecânica: “Nas máquinas um exemplo do fenômeno ciber-
nético é a artilharia antiaérea, onde um soldado e um canhão fazem parte

347
Bjarke Rink

de um sistema de controle de tiro. Um avião tem, na sua velocidade, uma


parte apreciável da velocidade do míssil que deverá derrubá-lo. Por esta
razão, é muito importante atirar o míssil, não no alvo, mas de tal maneira
que o míssil e o alvo venham a se encontrar em algum tempo futuro. Nós
deveremos, então, procurar algum método de prever a posição futura do
avião. Primeiramente, é necessário o soldado conhecer o alcance e a ve-
locidade do míssil para que ele possa explodir o avião. Mas nós também
sabemos que dentro deles há um piloto que saberá como fazer manobras
evasivas para evitar ser atingido. A sequência de feedback para calcular o
tiro é uma questão clássica de cibernética”.
Na equitação, devemos iniciar o nosso raciocínio com uma visão
oposta da tática de acerto e erro do tiro de canhão; neste fenômeno bio-
lógico haverá também dois cérebros interagindo, mas, nesse caso, os dois
membros do conjunto devem ser treinados para lidar com os aspectos
fisiológicos e psicológicos de se movimentarem em colaboração com seu
parceiro que estará responsável por uma parte muito importante da atu-
ação. O cavaleiro tem a responsabilidade de lidar com os problemas da
condução: que é o papel específico de tomar decisões relacionadas com a
velocidade e a direção da ação, e o cavalo tem a responsabilidade de lidar
com os obstáculos do terreno, de manter o equilibro a despeito de todo
tipo de desafio enquanto se mantém neurologicamente conectado com
o centro de comandos, o cérebro humano. Ao imaginarmos que os dois
parceiros se unem formando um ‘terceiro sistema nervoso’ através do fee-
dback dos seus ciclos musculares, nós talvez tenhamos resolvido a questão
de como a ‘cadeia de reflexos da equitação’ de ambos interage e como o
sentido de propriocepção é obviamente o senso que mantém os parceiros
unidos em seus papéis. Pelo fato de a equitação poder ser definida como
um cérebro humano a controlar um sistema locomotor equino, a ciberné-
tica parece ser a ferramenta ideal para se investigar as sequências de feed-
back biológico, onde um dos segredos é, obviamente, a intercomunicação
de informações táticas emitidas pelo homem e recebidas pelo cavalo, e que
decidem sobre velocidade e direção de uma máquina de fibras musculares
protraindo e retraindo com o movimento cooperado dos dois corpos em
movimento. Achou complicado? Vale a pena ler de novo.
Neste ponto da nossa investigação será útil lembrar que a maioria dos
animais do planeta possui um tempo de reação a estímulos semelhante.
Através dos milhões de anos de seleção natural, a maioria das espécies es-
tabeleceu o mesmo tempo de reação para lutar ou fugir. Como um exem-

348
Parte III Odisséia na Ciência

plo disso, Norman Wiener nos lembra a história ‘Rikki-Tikki-Tavi’, onde


Rudyard Kipling narra a dramática luta até a morte entre um mangusto e
uma cobra naja. Vamos parar os nossos cavalos e assistir a esse confronto
dramático.
Kipling nos conta que a luta é uma dança com a morte, uma luta de
maestria muscular e agilidade. O mangusto não é imune ao veneno da
cobra apesar de, até um certo ponto, ele ser protegido por seu pêlo duro,
dificultando a mordedura da cobra. Mas não há razão para supor que os
ataques e recuos do mangusto sejam mais velozes do que os da cobra. En-
tretanto, o mangusto invariavelmente mata a cobra e sai do combate ileso.
Como ele é capaz de fazer isso? Observe só os dois a lutar. O mangusto
começa simulando um ataque, que provoca a cobra a dar um bote. Ele
se esquiva e simula outro ataque, então temos uma ação rítmica de ata-
que e recuo por parte dos dois animais. Entretanto, essa dança da morte
não é estática, mas se desenvolve progressivamente. Os ataques ‘simula-
dos’ do mangusto vêm em tempos cada vez mais curtos, acompanhando
os ataques da cobra até que o mangusto realmente ataca num momento
em que a cobra está completamente estendida e perdeu a capacidade de
se movimentar de forma rápida. Desta vez, o ataque do mangusto não
é uma ‘simulação’ e ele desfecha uma mordida precisa através do crânio
da cobra. Em outras palavras, o padrão de ação da cobra está confinado
a botes individuais, cada um por si, enquanto que o ataque do mangusto
envolve uma apreciável, senão duradoura, estratégia de luta. Na verdade,
o mangusto age como uma ‘máquina de aprender’, e o objetivo real das
suas investidas depende de um sistema nervoso muito mais desenvolvido.
Por seu resultado extraordinário, fica claro que o mangusto e a cobra estão
equipados com o mesmo tempo de reação aos ataques um do outro, mas
a mente do mangusto é capaz de desenvolver uma ‘estratégia’ de luta além
da capacidade da cobra.
O paralelo da história de Kipling com a equitação é que os povos
equestres das estepes, para se comunicar e controlar os seus cavalos, de-
senvolveram uma estratégia para interagir com os ciclos musculares dos
animais, ao conectar o sistema nervoso humano e equino em uma cadeia
de transmissão e retorno da informação que, em cibernética, é chamada
de ‘cadeia de feedback’. Por estar em total contato com os movimentos do
cavalo, o cavaleiro é capaz de transmitir as suas intenções de velocidade e
direção para o animal por meio de ‘dicas’ cibernéticas e ‘feedback postural’.
Este método de controle, que poderemos chamar de ‘feedback informati-

349
Bjarke Rink

vo’, não é difícil de esquematizar em forma mecânica.


Geralmente não sabemos quais os músculos que vamos utilizar ao
realizar uma determinada tarefa, e nem o cavalo sabe. Por isso, durante
a equitação, os cavalos e os humanos têm de ser treinados a responder a
um sistema de feedback de controle. O cavalo bem adestrado reagirá quase
instantaneamente às ajudas táteis do cavaleiro por meio de uma ‘resposta
reflexiva de retração’. Quando um comando é captado pelo cavalo, a ativi-
dade muscular que ele estimula não ocorre imediatamente, mas na veloci-
dade de cerca de 1/10 de segundo. Isso porque o centro nervoso central do
cavalo só consegue captar os impulsos que chegam em 1/10 de segundo, e
os impulsos emitidos para mobilizar os seus músculos só conseguem che-
gar ao centro nervoso central a cada 1/10 de segundo. Portanto, a mente,
humana e equina, não consegue lidar e reagir a informações mais rápidas
do que isto; e por isso a ‘cadeia de reflexos da equitação’ deve ser automa-
tizada através do treinamento.
O cavaleiro deve aprender a acompanhar os ciclos musculares do cava-
lo, e os sistemas nervosos centrais do conjunto devem se adaptar ao feedback
de informações do companheiro, apesar da grande diferença no padrão de
comportamento. O cavaleiro experiente aprendeu a ‘sentir’ os movimentos
do cavalo, e esta motricidade se tornou familiar para ele – quase tão familiar
como os seus próprios movimentos. O cavalo experiente aprendeu a sentir
como o cavaleiro se movimenta sobre o seu dorso (através do feedback cor-
poral), e captará as ‘ajudas’ para as mudanças de velocidade e direção como
se esses originassem do seu próprio sistema nervoso. Lembre-se de que o
cavalo é uma ‘máquina cursora’ criada para um único propósito: se movi-
mentar com grande velocidade e precisão. E as ‘ajudas’ do cavaleiro, aplica-
das com sutileza e precisão, regulam a sequência de seus ciclos musculares.
Embocaduras e esporas devem apenas produzir desconforto, que o cavalo
experiente, ao produzir os movimentos desejados, transforma em conforto.
O cavalo que aprendeu a ‘ler’ o ‘feedback postural’ do cavaleiro, e o cavaleiro
que aprendeu a acompanhar os movimentos especializados do cavalo, estão
neurofisiologicamente conectados. Portanto, para obter sucesso, o cavaleiro,
a exemplo do mangusto, precisa ter a compreensão total do comportamento
do cavalo além de uma estratégia de ação que deverá progredir em direção a
uma conclusão satisfatória. Uma pista de Saltos, de Adestramento, Pólo, ou
Arquearia Montada, por exemplo.
O feedback intersensorial entre o homem e o cavalo na equitação
produz um tráfego intenso de mensagens que tratam exclusivamente das

350
Parte III Odisséia na Ciência

questões espaço/tempo. As mensagens que fluem de um sistema nervoso


para o outro, estão relacionadas, exclusivamente, com velocidade e dire-
ção – a questão cibernética clássica – e os sistemas nervosos do cavalo e
do cavaleiro terão de estar organizados para responder e se conformar aos
movimentos um do outro. Esse refinamento comportamental é sempre
obtido através do aumento da sensibilidade dos parceiros. “Mas se ele [o
cavaleiro] lidar cientifica e voluntariamente, deve-se decrescer o uso das
ajudas para que os espectadores possam dizer sinceramente que o cava-
lo é fino e tão bem adestrado que ele se move sozinho”, escreveu M. de
Pluvinel há quase 400 anos passados. A quantidade de informações que
trafegam entre os dois sistemas é, portanto, limitado à velocidade de 1/10
de segundo, a velocidade mínima em que os dois cérebros podem receber
e produzir movimentos cooperados. O homem, que possui o sistema ner-
voso mais bem desenvolvido e cujo comportamento se fundamenta na ca-
pacidade de produzir a mais longa cadeia de efeitos neuronais do planeta,
tem de acompanhar, precisamente, os ciclos dos movimentos musculares
do cavalo. O aumento, a diminuição, a sustentação da velocidade ou a
alteração da direção devem ser passados para o cavalo através de ‘ajudas’
cibernéticas que estão relacionadas com a ‘linguagem natural dos movi-
mentos’. Podemos concluir, então, que a plasticidade da mente humana é
capaz de se ajustar e replicar os movimentos do equino, o que permite que
o cavaleiro assuma o controle cibernético da poderosa ‘máquina cursora’
do cavalo. Deve ser entendido que o grau de organização neuronal exigido
para cumprir esta tarefa é muito alto, e talvez nem todas as pessoas são
capazes de lidar com a sobrecarga de informações gerada pela equitação.
Apesar de que compreender as regras cibernéticas da equitação pode aju-
dar qualquer cavaleiro a melhorar o seu desempenho equestre.

A equitação simbiótica também pode ser explicada como sendo a


habilidade do homem e do cavalo monitorar corretamente os movimentos
um do outro através de sofisticados circuitos cerebrais interligados, por
meio de treinamento sistemático, para se ajustar ao programa motor do
companheiro. Essa técnica biológica não tem nenhuma semelhança com
a condução de veículos automotores, já que o controle dos movimentos do
cavalo pelo cavaleiro é contrabalançado pela monitoração dos movimentos
do cavaleiro pelo cavalo, que requer uma troca de feedback sensitivo-motor
inexistente na lida com veículos. A equitação simbiótica forma uma via
dupla dos sentidos que leva à liberdade de movimentos do cavalo.

351
Bjarke Rink

CAPÍTULO 68

Equitando na ‘Zona do Conforto’

A depender do avanço cultural do seu tempo, os mestres equitadores


clássicos descreviam o uso das ‘ajudas’ como meios de produzir ‘submissão’,
‘obediência’ ou ‘leveza’. A palavra ‘submissão’ foi usada no tempo da escra-
vidão, ‘obediência’ na idade do racionalismo e ‘leveza’ na alta idade indus-
trial. Mas, agora, a ciência pode lançar uma nova luz sobre porque o cavalo
realmente responde positivamente a embocaduras e esporas, e o que os cava-
leiros do terceiro milênio devem saber sobre essas ferramentas, quando elas
são usadas exclusivamente para a comunicação, e também as consequências
negativas do seu uso incorreto. Mas vamos, também, formular a pergunta
mais óbvia de todas: serão essas ‘ferramentas medievais’ realmente necessá-
rias no mundo de cibernética e de tecnologias de equitação em transição?
Há cerca de 40 anos os neurocientistas descobriram uma regra da
psicologia que governa o comportamento de todas as criaturas vivas, e
que tem sido responsável pela sobrevivência da maioria das espécies de
animais no planeta, especialmente os mamíferos que desenvolveram um
cérebro mais complexo. Este traço comportamental foi adquirido pela se-
leção natural de animais capazes de ‘economizar a energia’ num mundo
de acontecimentos imprevisíveis e frequentes faltas de recursos alimen-
tares. Os cientistas chamam essa predisposição psicológica de ‘zona do
conforto’ e a expressão significa que um animal, dada a opção, escolherá

352
Parte III Odisséia na Ciência

automaticamente o caminho do menor esforço, de menor gasto de ener-


gia, e com a menor chance de desconforto, dor, e de se ferir. Esse tipo de
comportamento faz muito sentido no mundo natural, onde o desperdício
de energia e os ferimentos físicos podem levar ao sofrimento, à mutilação
e até à morte.
Apesar de, antigamente, os cavaleiros não terem o conhecimento
disso, esta característica psicológica sempre teve um papel preponderante
na maneira que os cavalos reagem à domesticação, ao adestramento e ao
treinamento. Depois de ler os manuais clássicos desde Xenofonte a Har-
ry Boldt,110 tem se tornado bem claro para mim que a humanidade tem
oscilado entre o uso da ‘força’ e da ‘sabedoria’ para superar a resistência
natural do cavalo para o trabalho e a dor.
Neste capítulo, eu transcrevi a opinião de alguns dos mais famo-
sos mestres clássicos da equitação sobre o uso de embocaduras e esporas
como meios de produzir ‘submissão’, ‘obediência’ e ‘leveza’, exatamente
para ver como a psicologia e a neurologia moderna concordam ou discor-
dam com eles. Vamos começar com Pluvinel, ‘o melhor de todos aqueles
que já usaram esporas’.
“Pluvinel sempre senta na mesma posição, reto, seja quando ele está
colocando o cavalo nos ‘altos ares’ ou a passo; e eu, frequentemente, te-
nho ouvido ele dizer que, para um cavaleiro ser elegante, ele não deve
nunca, quando estiver fazendo o cavalo desempenhar, se mover, exce-
to para elevar, muito calmamente, o braço para cima e para baixo, para
frente e para trás, para fazer o chicote assobiar, como discutiremos mais
tarde. Nem o cavaleiro deve parecer estar aplicando as ‘ajudas’, para que
aqueles que o assistem imaginem que o cavalo esteja tão cooperativo e
tão bem adestrado que dá a impressão que está desempenhando por von-
tade própria e em harmonia.”
No tempo de Pluvinel, a necessidade de o cavaleiro parecer ‘elegan-
te’ e ‘despreocupado’ para o público nas galerias era quase tão importante
quanto as técnicas da equitação aplicada. As regras do comportamento
das cortes eram tão rigorosas quanto as regras da equitação no picadeiro.
Portanto, sentar-se reto e nunca se mexer durante as passadas do cavalo
eram tão importantes para a etiqueta da corte quanto para a boa equita-

Apesar de que o comportamento preguiçoso é geralmente malvisto por uma cultura


110

utilitária, animais e pessoas que demonstram possuir essa característica da evolução


animal serão chamados de indolentes, letárgicos ou apáticos. Mas, ainda assim, a indo-
lência é uma característica da evolução animal.

353
Bjarke Rink

ção. Mas esse comportamento impassivo tinha o seu lado bom, porque
permitia ao cavalo identificar as mínimas indicações cibernéticas para as
mudanças de andamento e direção que partiam do equitador. E Pluvinel
está absolutamente certo ao dizer que o cavalo deve dar a impressão de
estar desempenhando por conta própria, porque é isso o que realmente
acontece quando o cavaleiro está equitando na ‘zona de conforto’.
Dizia Baucher: “Infelizmente, nós procuramos em vão, nos autores
antigos e modernos na equitação, eu não diria por princípios racionais,
mas até por qualquer informação sobre as forças do cavalo. Todos falam
muito bem sobre resistência, oposição, leveza e equilíbrio; mas nenhum
deles sabe como nos explicar o que causa a resistência, como podemos
combatê-la, destruí-la, e obter a leveza e o equilíbrio tão propalados. É
esta a lacuna que eu penso ser capaz de preencher. E, primeiro, eu esta-
beleço o princípio que toda a resistência dos cavalos jovens originam, em
primeiro lugar, de uma causa física, e que essa causa só se torna ‘moral’
por inabilidade, ignorância e brutalidade do cavaleiro, o qual deverá lem-
brar que a sua mão deve ser uma barreira intransponível no momento em
que ele (o cavalo) quiser deixar a posição de “ramener”.
Quando Baucher afirma que a ‘resistência’ dos cavalos jovens pode
se tornar uma atitude ‘moral’ por inabilidade, ignorância e brutalidade
de cavaleiro, ele toca num aspecto muito importante na equitação de alta
performance. O cavalo nunca deve ligar o uso da embocadura e da espo-
ra diretamente com a ação do cavaleiro. O animal desempenha melhor
quando descobre que é capaz de evitar o desconforto quando executa os
movimentos corretos. Mas fazer o cavalo se tornar consciente que é o
cavaleiro que lhe causa dor pode provocar uma luta entre a vontade dele
e a do cavaleiro; uma situação que Baucher chama de ‘moral’. Um outro
ponto importante é quando Baucher sugere que a mão deve ser uma ‘bar-
reira intransponível’ sempre que o cavalo quiser abandonar a posição de
‘ramener’. Como veremos a seguir, isto também pode ser explicado pelo
conceito ‘equitando na zona do conforto’.
Dizia Steinbrecht: “O correto treinamento para o Adestramento clás-
sico é, por isso, um exercício para o cavalo, que endurece a sua força e
flexiona os seus membros. Exercícios desse tipo fazem as partes fortes do
corpo a trabalharem mais duro a favor das partes mais fracas. Essas últi-
mas são fortalecidas pelo exercício gradual e as forças escondidas, refrea-
das por causa da tendência natural do cavalo à preguiça, são despertadas”.
Steinbrecht tem uma maneira holística maravilhosa de explicar os

354
Parte III Odisséia na Ciência

fenômenos da equitação. Aqui, ele dá um bom conselho sobre ‘obediência’,


e menciona um aspecto muito importante sobre a natureza do cavalo – a
tendência à preguiça – que pode agora ser explicada pela atitude psicoló-
gica da ‘zona de conforto’.
General Alexis François L’Hotte dizia: “Um cavaleiro experiente mon-
tado num cavalo bem treinado, que poderá usar o que Baucher original-
mente formulou no seu ‘nouvelle méthode’: a idéia dos ‘effects d‘ensemble’
(ajudas coordenadas) que previa o uso simultâneo de ajudas de mãos e
pernas. Em outras palavras, quanto mais experiente o cavaleiro, mais as
ajudas são executadas ao mesmo tempo. Independentemente da discipli-
na equestre, o cavalo deve aprender a ‘obedecer’. Não é da sua natureza
obedecer porque ele deseja nos agradar ou pelo seu amor ao trabalho. Ele
obedece por auto-preservação e para evitar a dor que faz que ele responda
àqueles que sabem provocá-lo, e se necessário fazê-lo. Esta é a linguagem
das ajudas que o cavalo deve obedecer”.
L’Hotte, um discípulo de Baucher, é um melhor intérprete do com-
portamento equino do que o seu antigo mestre. Em poucas palavras ele
explica corretamente os ‘efeitos coordenados’, que nós aqui chamamos de
‘cadeia de reflexos da equitação humana’, e aponta para a inclinação natu-
ral do cavalo para obedecer exclusivamente como um impulso de autopre-
servação e para evitar a dor, que pode também ser explicado por ‘equitan-
do na zona do conforto’. Como já vimos, é uma verdade cientificamente
comprovada que o cavalo não ‘obedece’ ao cavaleiro porque ele deseja ser
agradável, um fato que Dr. James Rooney confirmaria no século seguinte.
Estas quatro passagens, escritas num período de 250 anos, mostram
que os grandes mestres clássicos estavam bem conscientes das regras na-
turais da equitação simbiótica, apesar de não terem conhecimento dos
fatos psiconeurofisiológicos que substanciavam o comportamento do ca-
valo e da sua disposição para trabalhar.
Vamos agora procurar enxergar a equitação do ponto de vista do ca-
valo e imaginar como ele utiliza a embocadura e as esporas a seu favor
numa reprise de Adestramento clássico. Vamos tomar um lugar no estádio
de CHIO Aachen na Alemanha e assistir ao desempenho da incrível equi-
tadora alemã, Nicole Capellmannn Luthemaier, como eu a vi em 2002.
O cavalo está entrando no picadeiro executando um cânter reunido
para iniciar a reprise de Adestramento. O conjunto pára para saudar o júri
e, a seguir, prossegue num trote reunido, calmo, flexível, impulsionado e
reto... no final do picadeiro, o animal sente o bridão deslizando delicada-

355
Bjarke Rink

mente para a direita e o corpo humano virando sutilmente naquela mes-


ma direção, que é um sinal inequívoco de que uma virada para a direita é
a manobra correta a fazer e, sem deslocar o quarto traseiro, o cavalo gira
e, então, sentindo a aceleração dos ciclos musculares da equitadora, ele
acelera automaticamente para um trote alongado, que é acompanhado por
um trote reunido... o cavalo está sentido a totalidade dos movimentos hu-
manos, e a delicada pressão da embocadura e um toque das esporas é uma
indicação segura para uma troca de velocidade ou direção... o bridão está
agora pressionando levemente os cantos da sua boca e o corpo humano
está desacelerando os seus ciclos musculares e entrando num cânter reu-
nido e, ao se adaptar a esses movimentos, o cavalo imediatamente entra
em cânter reunido e então reduz as passadas para o passo e, seguindo o
deslizamento do bridão para a direita, precedido por um microdesvio da
pélvis humana, uma virada para a direita é executada e uma descida pelo
centro da arena; na qual o cavalo executa uma pirueta, com a rédea de
dentro indicando o giro e a perna de dentro na cilha evitando que a perna
de dentro do cavalo não entre, e o suporte da perna de fora para que o ca-
valo não dê um passo para trás... O cavalo, ao ceder à pressão da perna do
cavaleiro, e acompanhando o leve deslocar da pélvis humana, a mudança
de contato da perna, e seguindo a direção indicada pela embocadura...
acredita que, na realidade, é ele que está executando os movimentos por
sua livre e espontânea vontade porque, ao cooperar, evitando assim o des-
conforto, todas as figuras acabam dando certo. Agora uma meia pirueta
para a esquerda, seguida por um passo reunido, e a seguir um trote reuni-
do, um ‘half pass’ para a direita, um trote reunido em frente, mudança de
rédea no trote alongado, e, subitamente, o corpo humano induz o cavalo
a um ‘passage’, um trote curto, bem medido e cadenciado, muito fácil para
o cavalo imitar, e uma sequência de movimentos muito estimulantes para
executar. Agora, a pressão das pernas humanas indica um cânter reunido
e uma mudança de rédea em cânter médio é uma indicação segura para
uma série de trocas-de-pés-ao-tempo ... De fato, o corpo humano, que
estava seguindo fielmente os ciclos musculares do cavalo no cânter mé-
dio, de repente, faz uma mudança postural seguida de comandos de per-
nas como ‘ajuda’ para a troca-de-pés-ao-tempo... que o cavalo imita em
um décimo de segundo e então entra numa mudança de rédea no passo
alongado, passo reunido e, estimulado por toques de esporas cadenciados,
procede novamente em ‘passage’... uma transição para o passo reunido e
outra para o ‘passage’... para o piaffer, de 12 a 15 passadas... segue em pas-

356
Parte III Odisséia na Ciência

sage... transição de passage para ‘piaffer’ e de piaffer para passage, mais


uma sequência de piaffer, 12 a 15 passos, procede de ‘passage’ para piaffer,
e de piaffer para ‘passage’... E, agora, o cavalo avança em cânter, reunido
pela linha central, cinco contra-mudanças de mão em ‘half pass’ para cada
lado... isto é muito divertido pensa o cavalo... O primeiro ‘half pass’ para
a esquerda e o último para a direita com três passadas e quatro outros
com seis passadas... indicados pelos ciclos musculares humanos, é fácil
para o cavalo esquecer da presença do cavaleiro... cânter reunido, cessão a
perna para a direita, mudança de rédea em cânter alongado sem deslocar
o quarto posterior... Isto é realmente muito divertido... cânter reunido e
troca-de-pés ao tempo... seguindo a linha de centro...
Quando o corpo humano se desloca com grande sutileza em uma
direção acompanhado pelo deslizamento do bridão, seguido talvez por
um toque de espora, essa é uma indicação segura de qual o caminho a
seguir, e por se conformar com a indicação dada pelo bridão e pelas es-
poras, essas ferramentas param de incomodar... Pirueta para a esquerda,
troca-de-pés...pirueta à direita, troca de pés ao tempo...cessão à perna
para a esquerda... na diagonal, nove trocas-de-pés a cada segundo passo,
terminando no pé esquerdo, incrível como o cavaleiro consegue seguir o
cavalo... Na diagonal, 15 troca-de-pés a cada passada... Mudança de rédea
em cânter alongado, cânter reunido e troca-de-pés ao tempo... descendo a
linha do centro... alto, recuo de seis passadas... prosseguimento em ‘pass-
sage’... transição de cânter reunido para o ‘alto’ e do recuo para ‘passage’...
piaffer, 12 para 15 passadas, transição de ‘passsage’ para piaffer para ‘pas-
sage’... alto... imobilidade... saudação ao júri. O conjunto deixa o picadeiro
respirando forte, mas ao passo, perfeitamente composto, e o cavalo sabe
que ele fez um trabalho espetacular. E se você perguntasse o que ele, o ca-
valo, achou da atuação da equitadora, ele provavelmente diria: “A minha
adorada Nicole conseguiu, apesar de tudo, me acompanhar em tudo!”
Da mesma maneira que os Reis Magos da antiguidade aprenderam
a seguir as estrelas, cavalos inteligentes aprendem a usar a embocadura
para guiá-los através dos seus andamentos. A embocadura e as esporas
em ambos os lados do cavalo deverão ser tão infalíveis como as estrelas da
Via Láctea para os Reis Magos, ou o cavalo perderá a confiança na sua ca-
pacidade de lhe indicar o caminho. Entretanto, a embocadura nunca deve
ser compreendida pelo cavalo como estando diretamente ligada à vonta-
de do cavaleiro, ou uma luta pode ocorrer e talvez se transformar numa
‘causa moral’, como definiu Baucher. O cavalo deve sentir a embocadura

357
Bjarke Rink

e a espora como uma linha divisória entre o conforto e o desconforto que


ele pode ‘controlar’ perfeitamente ao executar, de maneira correta, os mo-
vimentos indicados pelo cavaleiro. A espora fez contato...? Opa, devo ter
pisado fora da linha, pensará o cavalo. Por isso, o cavaleiro pode deflagrar
a ‘cadeia de reflexos da equitação’ do cavalo e monitorar o curso dos seus
movimentos ou mudá-los completamente, se desejar. Cada movimento
da ‘cadeia de reflexos da equitação’ terá os dois atletas trabalhando nela
– o cavaleiro deflagra o movimento, o cavalo produz a ação, e o cavaleiro
trabalha os ciclos musculares do animal na velocidade e na direção certa.
Quando o cavalo está executando os seus andamentos, mantendo a dire-
ção e a velocidade determinada pelo cavaleiro, ele estará trabalhando na
‘Zona de Conforto’ e com sentimento de que ele está em liberdade total e
desempenhando de acordo com a sua própria vontade, como descrito por
Monsenhor Pluvinel.

Na equitação simbiótica, o sentimento do cavalo e do cavaleiro é de


absoluta liberdade de ação e, nesse momento, o gênio do fenômeno
equitação terá saído da garrafa para levar o conjunto à aventura e os
espectadores aos aplausos! Vamos agora responder a pergunta que fizemos
no início do capítulo: serão as esporas e as embocaduras realmente
necessárias num mundo de técnicas equestres em transição? Você pode
apostar que sim. As embocaduras atingiram a sua ‘perfeição biológica’ há
milhares de anos e, sabendo usá-las, serão como os bons livros – estarão
presentes para sempre em nossas vidas.

358
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 69

Por que Montar a Cavalo?

Muitos bons manuais já foram escritos sobre como treinar o cavalo e


o cavaleiro, e também como melhorar o bem-estar do animal. Especialmen-
te na última década, novas técnicas focando ‘consciência corporal’, ‘olhar
macio’, respiração correta, ‘equitação zen’, ‘equitação centrada’, ‘equilibra-
da’, ‘natural’ e ‘conectada’, todos com o objetivo de possibilitar às pessoas e
aos cavalos aprender a trabalhar juntos sem dor, e para adquirir harmonia,
compreensão e comunicação na equitação. Talvez tenha também chegada a
hora para introduzir mais uma questão fundamental do fenômeno equita-
ção: por que montar a cavalo? O que ainda existe nessa antiga simbiose para
beneficiar os humanos?
Psicólogos e neurologistas nos explicam que o cérebro é um sistema
de órgãos de computação designado, por seleção natural, para resolver
os problemas enfrentados por nossos ancestrais na sua busca constante
por alimentos. Os problemas de engenharia que as pessoas solucionam
ao andar e planejar cada dia são muito mais desafiantes do que pousar em
Marte ou sequenciar o genoma humano, dizem os cientistas. Portanto,
ao andar por aí resolvendo os seus problemas diários, você pode deixar o
seu cérebro coletar experiências que a sua mente vai transformando em
conhecimento. Mas, como é que isto se relaciona com os benefícios que a
equitação proporciona às pessoas?

359
Bjarke Rink

Coloque a sela no seu cavalo e vamos sair para ver se encontramos


essa resposta no meio ambiente biológico, antropológico e histórico da
equitação. Vamos, primeiramente, abordar uma questão pertinente à an-
tropologia da equitação.
Nem toda a superfície terrestre é acessível à roda (como querem os
comerciais de automóveis), mas quase toda a superfície da terra é acessível
aos pés, e alguns pés são melhores do que outros e, quanto melhor esses
pés forem, mais complexo será o software que o animal possui no cére-
bro para controlá-los. Quando Homo sapiens decidiu adotar os melhores
pés do mundo – o sistema locomotor do cavalo – ele teve de conectar o
seu cérebro a milhares de novos circuitos para poder controlar o cavalo
e aprender a lidar com as grandes mudanças cognitivas provocadas pela
união psiconeurológica com o cavalo. Esse é, provavelmente, o aprendiza-
do mais complexo ao qual o cérebro humano já foi submetido, e que nós
chamamos de equitação.
Vejamos então. Os humanos têm entre as orelhas uma constelação
de neurônios maior do que a quantidade de estrelas existentes na Via
Láctea ou até mesmo em Hollywood. Se alguma pessoa curiosa decidisse
contar os seus próprios neurônios, dois neurônios por segundo, ela te-
ria de acordar muito cedo porque levaria cerca de 16 milhões de anos
para completar a tarefa. E a coisa mais surpreendente sobre neurônios é
que é, teoricamente, possível conectá-los todos numa rede integrada de
informações, o que iria expandir o poder da mente humana numa rede
infinita de conhecimento e sabedoria. A única “pegadinha” dessa teoria é
que ninguém jamais descobriu como fazê-lo. Mas uma coisa parece certa
para os cientistas contemporâneos que discordam sobre quase tudo: para
se tornar bem-sucedido na vida, conectar neurônios e aumentar os seus
conhecimentos é o nome do jogo.
Antigamente, na velha Mesopotâmia, antes de o homem ter desen-
volvido a equitação, muitos jovens pedestres provavelmente sonhavam
em galopar sobre o deserto da Síria montado num veloz cavalo branco.
Como você sabe, sonhar acordado é uma característica da mente humana.
Porém, imaginar o que havia depois do horizonte, além do rio Tigre e
Eufrates, certamente não ocorria a muitas pessoas. O homem tem o seu
interesse reduzido na proporção exata de distância em que o objeto do seu
desejo se encontra. “Longe dos olhos, longe do coração”, diria a velhinha
de Taubaté.111 Mas, mesmo que o devaneio faça parte do ‘make-up’ gené-
Obrigado, Luiz Fernando Veríssimo, a sua simpática personagem veio a calhar.
111

360
Parte III Odisséia na Ciência

tico humano, o trabalho intelectual é a tarefa mais árdua de uma pessoa.


(Talvez por isso tanta gente prefira falar a pensar.) E, apesar de o cérebro
do homem pesar um pouco mais do que um quilo e representar apenas
2% do seu peso corporal, ele é responsável por 20% do nosso consumo de
energia. A inspiração consome mais energia do que a transpiração! Por
isso, é perfeitamente compreensível que sonhar em montar a cavalo, como
um meio de se livrar a humanidade da terrível condição pedestre, deve
ter feito parte dos desejos mais íntimos de muita gente nos últimos 30
mil anos – desde que o poder da mente humana ultrapassou a sua capa-
cidade de locomoção. E, uma vez que as questões cibernéticas da equita-
ção haviam sido resolvidas pelos nômades da Ásia Central, um fenômeno
extraordinário ocorreu na vida dos povos equestres: montados a cavalo,
eles descobriram que o horizonte estava se aproximando! Como vimos na
primeira parte do livro, quando a velocidade do cavalo rompeu a barreira
da velocidade humana, o mundo material veio galopando em sua direção!
O fato é que os cavaleiros das estepes, ao quebrar a barreira da ve-
locidade humana, haviam descoberto que eles tinham o mundo aos seus
pés. Com essa extraordinária descoberta, a cultura, o aprendizado e a or-
ganização social dos povos que adotaram a equitação passaram a focar na
diminuição do tempo e espaço por meio da equitação; ou seja, desejava-se
gastar menos tempo para cobrir cada vez mais espaço. Então, teoricamen-
te, quanto maior a velocidade com que a pessoa se movimenta – a pé, a
cavalo, de automóvel, de avião ou a bordo de uma espaçonave – maior nú-
mero de experiências ela coletará para conectar o seu cérebro, tornando-
-se cada vez mais inteligente, numa espiral de conexões neuronais sem
fim. Mas, do ponto de vista da física, esse pensamento está errado como
provou um sábio alemão, que até ganhou um Prêmio Nobel pela desco-
berta da Teoria da Relatividade do Tempo. Vamos voltar o tempo e visitar
a estepe Mongólica para ver se descobrimos a verdade dos fatos sobre o
impacto da velocidade no aprendizado humano.
Quando os mongóis, em 1237, com as suas ‘mentes equestres’ alta-
mente desenvolvidas, para reduzir tempo-espaço, lançaram aquela extra-
ordinária cavalgada sobre a Europa, como vimos no capítulo Os Mestres
do Tempo e os Mestres do Espaço, os Khans puseram em movimento uma
das maiores forças mentais da história da humanidade112. Agora, é preciso
você compreender que cinco anos de cavalgada significa uma odisséia de

A maior ação de cavalaria na história da humanidade foi, provavelmente, a conquista da


112

China setentrional por Genghis Khan iniciada em 1211.

361
Bjarke Rink

15 anos de caminhada para uma pessoa a pé – isto é, se joanetes, esporões


calcanhos e calos permitirem que o infeliz pedestre atravesse a linha de
chegada. Sem cavalos, marchar da Mongólia até a Áustria seria um pesa-
delo de 8 mil quilômetros atravessando algumas das áreas mais inóspitas
do mundo!113
Mas, os exércitos dos Khans, apesar do seu rápido avanço de 60 qui-
lômetros por dia, estavam estritamente dentro de um parâmetro biológico
de tempo. Isto é, mesmo sendo a velocidade do cavalo maior do que a do
homem, os cientistas sabem que ela está dentro da capacidade cognitiva
do cavaleiro, cuja mente foi interligada para lidar com a velocidade do
cavalo. Com prática, o cavaleiro pode se fundir ao ritmo binário, ternário
e quaternário dos andamentos do cavalo e administrar todas as suas velo-
cidades. E, ao sentir a pressão do ar e ouvir o tropel do animal, ele pode
aprender a se movimentar a galope, até 60 quilômetros por hora, e ainda
estar plenamente consciente de tudo o que ocorrer em sua volta: pedras
surgindo no caminho, um cavaleiro inimigo se aproximando, a rápida mu-
dança de equilíbrio em curvas fechadas, saltos sobre córregos, travessia
de rios a nado, um galope suave morro acima e um tropel desenfreado
morro abaixo. Com um bom treinamento para obter a perfeita união sen-
sitivo-motora com o cavalo, o cavaleiro terá consciência de cada batida
do coração, de cada andamento do cavalo e de cada manobra tática da
equitação. Montado a cavalo, o desempenho fisiológico do homem me-
lhora espetacularmente, como uma bateria de dezesseis volts conectada
a um dínamo de 50 megawatts. Conectados ao cavalo, todos os sentidos
humanos são magnificados e o cérebro é adaptado para lidar com o poder
físico do animal e a sua enorme capacidade de locomoção.114 O avanço
da cavalaria mongol em direção à Europa durou cinco anos de intensa
interação com todos os aspectos do meio ambiente, com os sentidos dos
cavaleiros sendo constantemente desafiados pela visão, audição, olfato e
tato. Cada metro da viagem era intensamente vivenciado pelo cavaleiro,
e as experiências e dificuldades do percurso acrescentadas ao seu poder
mental e físico. A estratégia de pensar de maneira global e atuar localmen-
te é um conceito de cavalaria, e foi primeiramente posto em prática pelos
113
O australiano, Tim Cope, membro do Long Riders’ Guild, está empreendendo uma
viagem semelhante da Mongólia à Hungria, um percurso de, aproximadamente, 12.900
km.
114
A hipoterapia aplicada a crianças ‘especiais’ tem exatamente o objetivo de fortalecer o
sistema sensitivo-motor do paciente, colocando-o em contato com o poderoso sistema
sensitivo-motor do cavalo.

362
Parte III Odisséia na Ciência

guerreiros nômades da Ásia Central.


Entretanto, um avião tem uma capacidade muito maior de reduzir o
tempo do que um cavalo, mas o aparelho não é capaz de realizar manobras
no mesmo limite de espaço do cavaleiro. Manobrar um avião é como es-
tacionar um automóvel numa vaga de 15 metros (o que é fácil), mas com
a aproximação sendo feita a 200 quilômetros por hora, a tarefa se torna
impossível! O piloto de um avião de caça estará lidando com um aparelho
veloz que não muda o seu centro de gravidade com muita frequência; as
manobras são feitas em grandes curvas com quilômetros de raio; dentro
da cabine a velocidade de 700 a 900 quilômetros por hora está além da
compreensão do piloto. Os neurônios humanos não podem ser conecta-
dos para lidar com velocidades não biológicas. Aviões amigos e inimigos
estarão voando em, mais ou menos, a mesma velocidade e, mesmo que
uma aeronave hostil se aproximar pelo lado, o piloto tem uma área de visi-
bilidade muito limitada, mesmo que tenha muitos segundos para planejar
o que fazer. Portanto, por incrível que pareça, pilotar um avião supersô-
nico é menos estimulante para a mente humana e exige menos conexões
neuronais do que montar um bom cavalo!
Agora, vamos fazer um flashback no tempo e imaginar uma aeronave
comercial moderna voando a 950 quilômetros por hora, na rota de Ulan
Batur, na Mongólia, até Viena, na Áustria, no ano de 1.240, sobrevoando
assim as colunas de avanço da cavalaria de Ogodai Khan, que também
estão a caminho da Europa. No solo, a mente dos cavaleiros está sendo
continuamente desafiada pelas mudanças da topografia, das intempéries
do tempo, e pela velocidade dos cavalos que avançam cerca de 10 quilô-
metros por hora – cada cavaleiro lidando com as dificuldades naturais de
cada quilômetro do terreno além das forças inimigas que são, frequente-
mente, lançadas para conter o avanço dos mongois. Corta!
Agora, lá em cima na moderna aeronave de carreira, as aeromoças
já serviram o almoço, coletaram as bandejas, e os passageiros estão se
acomodando para fazer a digestão assistindo a um filme com as últimas
trapalhadas de Mr. Bean. Na cabine do piloto, nada está acontecendo ex-
cetuando-se um eventual aperto de algum botão no painel de controle –
que tem centenas de botões do chão ao teto, perfazendo um ambiente ab-
solutamente previsível. O comandante sabe que está voando em velocidade
subsonar, mas o seu cérebro não consegue lidar com a realidade física
desse fato. Na decolagem, lá no aeroporto de Ulan Batur, o piloto recebeu

363
Bjarke Rink

o seu número de rota e o Jeppesen Chart,115 que deverá conduzir o avião


para o aeroporto Wien-Schwechat em Viena, sem maiores dificuldades.
Para verificar a sua posição durante o vôo e alguma eventual turbulência
à frente, o co-piloto checa os computadores de bordo que foram progra-
mados para fornecer exatamente essas informações. O piloto está senta-
do, inativo na sua cadeira, e a sua galáxia de neurônios está virtualmen-
te gravitando num tempo infinito e num meio ambiente previsível, sem
acontecimentos. O piloto, o co-piloto e os passageiros sentados em suas
poltronas estão fisiologicamente parados! Mas, seis quilômetros abaixo da
aeronave prateada, num dos maiores desafios da inteligência estratégica
da humanidade, a cavalaria do general Batu Khan marcha em direção a
uma Europa que treme de pavor!
Quase 750 anos depois desse mega evento, o sábio de Ulm observou
que, se o bonde em que ele viajava até o seu emprego atingisse a veloci-
dade da luz, o tempo teria de parar! Isso quer dizer que a interação dos
seus neurônios com o meio ambiente também teria de parar – porque
o seu corpo e a sua mente não estariam viajando numa velocidade bio-
logicamente compreensível. Agora, vamos ao paradigma desse conceito:
quando atravessamos o limite da nossa velocidade biológica – a veloci-
dade programada para as nossas pernas humanas – e se acelerássemos
até atingir a velocidade da luz, o nosso tempo também pararia! Ao ultra-
passarmos a velocidade da nossa programação biológica, que está situada
numa velocidade máxima de 30 quilômetros por hora, o nosso cérebro
bipedal perde a sua capacidade de entender e a atuar na velocidade em que
estamos viajando, e acaba perdendo a noção de tempo e espaço. E quando
o homem passa da velocidade do automóvel para o avião, e do avião para
espaçonave, a sua capacidade de lidar com o tempo vai da panela para o
fogo. Como será isso?
Porque pele, carne, ossos e todos os sentidos humanos precisam ser
protegidos para não se desintegrarem durante uma aceleração muito além
da sua constituição biológica. Pele, carne e ossos não viajam bem quando
expostos a grandes velocidades. Por isso, a lataria de carros, aeronaves e
foguetes são projetadas para proteger a integridade física dos seus passa-
geiros. E, como já vimos em capítulo passado, quanto mais o corpo hu-
mano precisa ser protegido, menos a pessoa será capaz de compreender a
dimensão do espaço e tempo em que está viajando. Enquanto o poderoso
foguete acelera em direção ao espaço sideral, a galáxia de neurônios do
Carta de rota para navegação aérea adotada por todas as empresas de aviação do mundo.
115

364
Parte III Odisséia na Ciência

passageiro permanece desligada por falta de estímulos. Portanto, é fácil


concluir que, para conectar neurônios e aumentar a experiência humana,
até bicicletas são superiores a aviões – isso porque maior velocidade não
estimula a atividade neuronal do piloto. Por isso, um cérebro conectado
para a equitação é melhor do que um cérebro conectado para dirigir qual-
quer veículo. Acredite se quiser.
O desenvolvimento cerebral humano causado pelo fenômeno equitação não será
difícil para os Neurocientistas explicarem. Os comandos reflexos vindos do cérebro
cavaleiro e as respostas reflexas retornando do sistema nervoso do cavalo formam
uma via dupla de feedback sensitivo-motor que trafega em milésimos de segundos
entre os parceiros. Em termos neurofisiológicos, nada semelhante acontece na
prática de esportes com veículos ou bolas.

365
Bjarke Rink

CAPÍTULO 70

Sabedoria Nômade Numa


Cultura Urbana

A grande diferença filosófica entre o manejo dos cavalos dos nômades


da Ásia Central e das civilizações urbanas é que os cavaleiros asiáticos adap-
taram a sua vida aos cavalos e os cavaleiros urbanos adaptaram o cavalo a
sua vida. Em outras palavras: os cavalos ocidentais se tornaram sedentários
e herdaram todas as mazelas psicológicas e fisiológicas causadas pelo confi-
namento. O novo mundo do cavalo que está despontando no século 21 será
inteiramente construído por critérios científicos, já que o know-how equestre
do ocidente ultrapassou, pela primeira vez, o conhecimento dos guerreiros
nômades. Nenhuma sociedade jamais foi tão bem informada sobre cavalos
do que a ‘nova geração equestre’ que está surgindo com a nova sociedade da
informação.
Até o século 20, a maioria dos criatórios de cavalos, centros de trei-
namento, clubes de cavalos e outros complexos equestres, foi construída
com a visão que o homem tinha do cavalo, e que, infelizmente, nunca
teve muito a ver com as reais necessidades do animal. Como sabemos,
Homo faber tem um longo currículo de antropocentrismo que inclui um
“doutorado” em ciências naturais provando que o mundo foi feito só para
ele. Qualquer filósofo que postule o contrário tem a ‘marca do capeta’ e de-

366
Parte III Odisséia na Ciência

veria ser castigado pela Inquisição Espanhola de acordo com a gravidade


das suas convicções.
Contudo, nesse novo século, os cientistas estão descobrindo que a
criação e o manejo de cavalos deveria seguir as leis da biologia equina
porque, surpreendentemente, o cavalo é guiado por seu próprio código
genético! Essa revolucionária descoberta será o ponto de partida para a
formação de novos conceitos na criação e no manejo de cavalos no novo
milênio.

367
Bjarke Rink

Hoje, qualquer internauta que ama cavalos pode lhe explicar que a
fisiologia do Equus caballus evoluiu em torno da sua capacidade de correr.
Seus hábitos alimentares, sexuais, sistema digestivo e estratégia de defesa
foram desenvolvidos para sustentar o movimento (quase) perpétuo. Quan-
do as grandes culturas nômades aperfeiçoaram as suas técnicas de mane-
jo, o seu sucesso na equitação veio do simples fato de eles terem adapta-
do o seu modo de vida ao do cavalo. Os antigos povos equestres estavam
conscientes de que o seu caminho para a fama e a fortuna dependia deles
seguirem o circuito alimentar do cavalo, nas quatro estações do ano, além
de entender de A a Z sobre todos os aspectos da natureza, do metabolis-
mo e do comportamento do cavalo. Quando os nômades da Ásia Central
adaptaram a sua vida à natureza do cavalo, a sua extraordinária equitação
colocou o mundo aos seus pés. Historicamente, as sociedades urbanas fi-
zeram exatamente o contrário – eles transformaram o cavalo num animal
confinado sujeito a todos os males provenientes do sedentarismo! Essa
grande diferença filosófica só seria entendida pelas civilizações urbanas
na era digital, quando todas as informações sobre cavalos entraram em
rede e ficaram à disposição para todos os cavaleiros em todos os lugares
do mundo.
Quando finalmente, no século 21, a antiga sabedoria equestre se en-
controu com a ciência moderna, nasceu o manejo biologicamente correto
de cavalos, que marcará a atuação dos Centauros do terceiro milênio.
Ao entender as questões biológicas que envolvem doenças, nutrição,
desempenho atlético, fisiologia, psicologia e o manejo natural de cavalos,
os cavaleiros do ocidente saltarão da Idade das Trevas para o mundo cien-
tífico do cavalo. Nunca, em tempo algum, a humanidade reuniu e circulou
tantas informações sobre cavalos e equitação quanto na era digital.
É um fato comprovado que, já na última década do século 20, o pla-
nejamento de complexos equestres começaram a mudar em vista do dese-
jo dos criadores e proprietários de estarem mais perto de seus cavalos e da
disposição deles se mudarem para onde essas condições fossem favoráveis.
Numa velha revista Equus, amarelada com o tempo e datada de novembro
de 1988 que eu recentemente achei no meu sótão, li um artigo interessante
sobre uma comunidade equestre na Califórnia e o plano de seus morado-
res de ‘mesclar’ o cavalo no tecido da vida municipal moderna.
Imagine você que, naqueles tempos bestiais, quando as pessoas
eram submetidas à lavagem cerebral dos programas de televisão e onde
os explosivos eram a soluções para todos os males; quando Theodore

368
Parte III Odisséia na Ciência

‘Una-Bomber’ Kaczynski mandou cartas-bomba que mataram diversas


pessoas nos Estados Unidos. Quando Osama Bin Laden, sem mais nem
menos, bombardeou a embaixada americana em Nairobi e Dar-es Salaam.
Quando a marinha americana mandou o acampamento dos guerrilheiros
Jumiat-ul-Mujahedin do Afeganistão para o espaço. Quando os israelitas
estavam a bombardear os palestinos de volta ao Velho Testamento. Quan-
do George Bush e Tony Blair se juntaram para detonar Saddam Hussein
e Milosevic de volta a Suméria e Bizâncio, respectivamente. Quando os
bascos tentavam bombardear o governo espanhol de volta à Santa Inqui-
sição. Quando os irlandeses – católicos e protestantes – tentavam detonar
uns aos outros de volta aos bons tempos dos druidas. Quando os russos
tiveram a má-idéia de começar a bombardear os separatistas chechenos,
e Richard Reid tentou derrubar um avião comercial com uma bomba no
seu sapato – naquele tempo insano, cruel e grotesco, um grupo de america-
nos estava planejando uma comunidade onde o cavalo não era uma novi-
dade, mas um meio de vida!
“Isto não é uma utopia equestre, mas uma realidade”, revelou o artigo,
“e esta cidade equestre chama-se Norco, fica a 75 quilômetros de Los Ange-
les, e o ‘Jack in the Box’, (o nome do supermercado local) tem bebedouros
e estacionamento sombreado para os cavalos ficarem confortavelmente
instalados! “Nós queremos construir uma comunidade em torno do cava-
lo’”, havia declarado o gerente do projeto ao repórter da Equus.
Na América, estes ‘novos’ complexos equestres, além de unir as pes-
soas ligadas a cavalos, também atraiam profissionais do ramo e unificava
a sociedade mais ampla – o governo municipal, o mundo dos negócios e
até a atitude social das pessoas perante o cavalo. Esse tipo de comunida-
de tinha como meta criar um meio ambiente ideal para os entusiastas do
cavalo (como eram chamados os cavaleiros naquela época), porque caval-
gar na praia e nos parques já não era mais suficiente para eles – agora os
cavaleiros queriam trilhas especialmente feitas para cavalos para que eles
pudessem se dedicar à sua vida equestre em paz!
Para agradar a ‘alma equestre’, as novas comunidades se concentra-
vam em regiões com bastante espaço rural e onde montanhas, rios e lagos
faziam parte do cenário – um pouquinho de solidão também era desejado,
disse um dos entrevistados.
Naqueles últimos anos do ‘Século Negro’, o desejo de estar no ‘burbu-
rinho’ das atividades equestres já era suficientemente forte para fazer mui-
tas pessoas mudarem para Norco. Alguns ‘entusiastas do cavalo’ pegavam

369
Bjarke Rink

as suas coisas, deixava a família e abandonava o emprego para satisfazer o


seu desejo equestre, dizia o velho artigo.
O impulso da população equestre para se ver livre dos urbanóides (os
cidadãos dependente de veículos motorizados) que não conhecem nada
de animais, que não gostam do cheiro, que não gostam de ficar sujos ou
suados, era uma grande motivação para abandonar a cidade. E mudar-se
para esse tipo de comunidade equestre era também uma maneira de se
ver livre da má-equitação e da mentalidade do cavalo como se fosse ‘gado’,
muito comum entre as pessoas que não gostam de animais e da natureza.
A revista Equus, já naquele tempo, tinha apontado o dedo na dire-
ção certa. Nas civilizações pós-industriais, nos últimos anos do século 20,
o mundo do cavalo já estava preocupado em construir o seu ‘lugar ao
sol’. Mas aquele tipo de complexo equestre ainda continha uma deficiên-
cia grave: os empreendimentos estavam sendo construídos para atender a
paixão das pessoas por cavalos, mas não necessariamente para adaptar as
instalações para a verdadeira natureza dos animais.
Depois de superada a incapacidade crônica das pessoas de colocar o
fenômeno da equitação na sua ordem biológica de causa e efeito, o pas-
so seguinte seria o de começar a construir empreendimentos equestres
planejados para atender a natureza equina. A idéia era de que, por meio
de um manejo biologicamente correto, os recordes atléticos, que haviam
parado no século 20, aumentariam novamente.
Com este novo raciocínio, as instalações equestres teriam de obe-
decer a duas necessidades básicas do cavalo: permitir ao animal o movi-
mento perpétuo e dar manutenção ao seu instinto de manada. O primeiro
problema que a ‘nova geração equestre’ teve de superar foi a idéia equivo-
cada de que os cavalos, como as pessoas, gostam de morar numa ‘casa’ e,
por isso, cada equino deveria ter casa própria! No século 21, descobriu-
-se que a prática de confinar cavalos em baias fora o grande responsável
pela infelicidade, da pouca saúde, e do baixo desempenho dos animais,
só superado pelas teorias equivocadas de embocaduras. Mas, como esse
livro não pretende ser um manual sobre o manejo biológico do cavalo,
não vamos discutir nada em especial, mas apenas continuar a conversar
genericamente sobre o assunto.
Existem três graves síndromes que prejudicam a vida do cavalo do-
méstico e que terão de ser eliminadas para manter os amimais saudáveis e
felizes. A síndrome do ‘Prisioneiro de Zenda’, na qual o cavalo é mantido
incomunicável numa masmorra por grande parte da sua vida, que pro-

370
Parte III Odisséia na Ciência

voca a angústia da solidão, que é deprimente para uma criatura superior


e leva a sérios distúrbios de comportamento, como morder, escoicear e
corcovear quando montado. A síndrome de ‘Spartacus’, a situação de ‘lutar
até morrer’, onde o cavalo escravo, quando abusivamente montado, tem a
sensação de ter perdido o controle sobre a sua vida, sem chance de clarear
a mente, recuperar o fôlego e reorganizar as suas emoções; essa síndro-
me é a causa do cavalo ‘negar estribo’ e, quando montado, não querer se
afastar das baias (como vimos no capítulo Estratégias e Ciclos de Vida no
Treinamento de Cavalos.) A síndrome da ‘Fome Eterna’, onde a privação
de não poder mastigar quando os intestinos necessitam, é agravada pela
estrutura fisiológica do cavalo que se desenvolveu por meio de um proces-
so alimentar virtualmente contínuo. Essa síndrome leva a vícios horríveis
como ingerir os próprios excrementos, roer qualquer coisa à vista, e en-
golir ar, que são as estratégias de emergência que o cavalo desenvolve para
que o seu sistema digestivo não entre em colapso. Essa síndrome ou vício
pode levar à cólica e à morte. O confinamento do cavalo, assim como o
sedentarismo humano, pode levar a sérios problemas metabólicos e com-
portamentais – a bulimia e a obesidade humana são a ‘ponta do iceberg’
dessas patologias.
Os elementos básicos do instinto de manada do cavalo é naturalmen-
te do animal viver entre outros cavalos, comer como um cavalo numa
sociedade equina orientada para o cavalo, sempre em movimento.

Os cavalos são animais nômades por natureza e


esse fato não deve ser esquecido numa sociedade
sedentária.

Mas o sistema de criação extensiva de cavalos, onde os animais vivem


juntos em manadas, seria, senão impossível, pelo menos improdutivo.
Mas na produção de cavalos de alta performance, o hábito do animal se
alimentar, se locomover e se reproduzir terão de ser melhorados, mesmo
que os cavalos não possam voltar a viver em bandos. Os cavalos podem se
manter bastante felizes vendo, ouvido e sentindo o cheiro de outros cava-
los. O instinto de manada – aquela sensação gostosa do cavalo estar entre
seus semelhantes – pode ser mantido quando os cavalos podem avistar
diariamente seus companheiros espalhados pelos piquetes num complexo
equestre bem planejado.
Um reprodutor confinado em baia terá sua expectativa de vida redu-

371
Bjarke Rink

zida na proporção ao tempo em que é confinado. Eu já vi cavalos sendo


soltos por apenas três horas por dia e o tratador achar isso um “bom”
manejo. Essa pessoa só esqueceu de fazer as contas, e verificar que três
horas de soltura por dia representa 21 horas de confinamento! Este tipo
de manejo, obviamente, prejudica o desempenho equino, seja como atleta
ou reprodutor.
Apesar de reprodutores valiosos não poderem ser soltos com a ma-
nada, eles serão mais felizes se puderem enxergar os outros animais do
seu ‘piquete privado’. O contato diário entre garanhões e outros atletas
equinos pode, para melhorar o seu equilíbrio emocional, ser substituído
com o relacionamento com bons tratadores.116
No século 21, os novos complexos equestres serão totalmente rein-
ventados pela ‘nova geração de cavaleiros’. As baias e os piquetes não se-
rão projetados para diminuir a trabalho das pessoas. Agora, os padoques
serão maiores para que os animais possam galopar à vontade. Os piquetes
são separados uns dos outros por corredores para que os cavalos não pos-
sam se tocar e brigar, mas perto o suficiente para que possam estimular-se
uns aos outras para brincar e galopar. As baias são utilizadas somente para
manter as éguas com potro recém-nascido fora do mau tempo. O comple-
xo equestre moderno devolve ao cavalo a sensação de manada – o animal
verá, cheirará e interagirá com outros cavalos durante o dia e a noite.
O meio ambiente biologicamente equilibrado para cavalos desperta
o prazer de viver, a autoconfiança e o condicionamento físico dos animais
de alta sensibilidade e produção esportiva.

Ainda nas primeiras décadas do novo século, a união do Homem e do


cavalo atingirá a um alto nível de desempenho. Este novo padrão de
excelência em equitação trará aos eventos equestres internacionais o
reconhecimento de serem os mais extraordinários esportes já criados
pelo homem. Como nunca antes, a ciência ajudará a elevar a excelência
equestre. Não perca o próximo capítulo.

Pessoas habilitadas a lidarem com cavalos. Isto existe.


116

372
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 71

A Formação Cultural
do Equitador Moderno

Desde a Antiguidade até a Renascença, o cavalo e a equitação faziam


parte da vida diária das pessoas. Do trabalho à guerra à ascensão social, a
cultura e a equitação eram assuntos inter-relacionados. A renascença eques-
tre do século 21 será marcada por um crescimento da compreensão científica
do fenômeno equitação, que mudará totalmente a visão do cavalo e do seu
papel numa civilização moderna. Quando os estudos equestres decolarem
nas universidades e os esportes equestres atingirem a maturidade, ‘o novo
mundo do cavalo’ se tornará novamente um palco para o desenvolvimento
cultural, para a oportunidade de emprego, para o prazer de viver de muitos
e, para os mais afortunados, uma via para a fama e a fortuna.
Talvez você se surpreenda que, durante as nossas conversações, eu
frequentemente faço referência aos nossos antepassados da Grécia e da
Ásia Central. Eu tenho uma razão para isso, é claro. Os cientistas nos in-
formam que Homo sapiens foi agraciado com uma mente que tende a
compartamentalização. Isto significa que as pessoas geralmente só têm
consciência plena de um ângulo de uma questão – o ângulo social, econô-
mico, político, ético ou filosófico – e elas raramente conseguem analisar
uma disciplina sobre novos ângulos, como os da biologia, antropologia,

373
Bjarke Rink

sociologia, psicologia e outras ciências da vida. Por exemplo, analisar uma


questão política sob o ângulo econômico, ou uma questão psicológica
pelo ângulo social, costuma ser difícil para a maioria que precisará da aju-
da de um especialista. Pelo fato de, na antiguidade, o manejo de cavalos
e a equitação terem atingido um grau tecnológico relativamente alto, eu
tenho me referido a estes períodos históricos para nos ajudar a construir
uma visão sistêmica das disciplinas equestres, e tenho procurado escapar
da visão eurocentrada da equitação que prevalece entre nós. É preciso que
compreendamos que, nessas primeiras décadas do novo século, estare-
mos vivendo um tempo de mudanças de paradigmas entre o velho con-
sagrado e o novo desconhecido. No século 20, a ciência acumulou uma
grande massa de conhecimento que permitirá a cultura equestre do sé-
culo 21 passar por uma revolução e adaptar as velhas práticas medievais
a procedimentos biologicamente comprovados, algumas semelhantes aos
cavaleiros da Ásia Central, que atingiram um alto grau de equitação por
partilharem da vida do cavalo.

374
Parte III Odisséia na Ciência

Algum dia, os historiadores modernos também reconhecerão que a


equitação foi o ‘motor’ de todas as sociedades modernas e que, nos últi-
mos 400 anos, o cavalo e a equitação foram a alavanca que elevou o Oci-
dente a sua atual liderança mundial. E a cultura equestre ocidental, como
os nossos outros domínios do conhecimento, começou na Grécia Antiga
que adotou a sua cultura equestre da Ásia Central, o berço do Centauro.
Vamos voltar para a Grécia antiga e assistir ao julgamento de Sócrates em
Atenas, e observar como o “mestre das contradições” se refere a cavalos e a
treinadores quando faz a defesa da sua filosofia de vida (mas os promoto-
res o pegaram no final). Vamos dar uma gorjeta para um desses moleques
segurar os nossos cavalos enquanto entramos no fórum de Atenas para
assistir ao famoso julgamento.
As galerias estão cheias de espectadores e os magistrados gregos,
vestidos com ricas túnicas bordadas, estão, neste momento, acusando
Sócrates de corromper a juventude de Atenas. O velho filósofo está de
pé encarando os inquisidores de frente, seu rosto impassivo. Ao final das
acusações, Sócrates, em sua própria defesa, se refere aos treinadores de
cavalos da Grécia como um exemplo de bons ensinamentos. Diz o filó-
sofo, com voz vigorosa apesar da idade: “Veja o exemplo dos cavalos; os
senhores acham que aqueles que lhes treinam perfazem a totalidade da
humanidade, e existe uma pessoa que lhes prejudicam? Ou será a verdade
o oposto, que a capacidade de melhorar os cavalos pertence a uma pessoa,
ou a uitas poucas pessoas, que são os treinadores, enquanto que as outras
pessoas, que lidam com eles, são as que lhes fazem mal?” Este argumento
tem uma lógica implacável, mas, mesmo assim, o júri acaba proferindo
o veredicto de ‘culpado’ ao acusado e quando Sócrates tem uma chance
de desafiar a sentença, ele diz, ironicamente: “O que eu mereço para me
comportar dessa maneira? Uma recompensa, senhores (...) nada poderia
ser mais apropriado para uma pessoa como eu do que a manutenção grá-
tis pelo Estado. Ele o merece muito mais do que qualquer vencedor das
olimpíadas, mesmo que ganhe com um cavalo, uma parelha ou uma qua-
driga.” Perceba, viajante amigo, que, quando Sócrates lutava pela sua vida,
e escolhia exemplos da vida real para se defender dos seus acusadores, ele
escolheu mencionar os cavalos e seus treinadores. O tempo de Sócrates
– o século quinto a.C. – foi um período de realizações extraordinárias
no ‘mundo do cavalo’. A equitação fazia parte dos hábitos dos nobres e a
‘classe equestre’ estava no topo da hierarquia de Atenas. Mas, mesmo as-
sim, os povos sedentários da Europa nunca conseguiram montar a cavalo

375
Bjarke Rink

com a maestria dos arqueiros da Ásia Central, de quem eles receberam o


legado equestre. Na Grécia, os treinadores de cavalos estavam em grande
demanda e a boa equitação estava reservada para poucos. Por isso vimos
Sócrates afirmar, categoricamente, que “muita gente causa dano ao cavalo
ao usá-lo”.
Depois da morte de Sócrates e da queda da civilização greco-romana,
o cavaleiro da Europa não aumentou muito as suas qualificações eques-
tres. Mas isso poderá mudar no século presente quando as nações do oci-
dente finalmente irão ultrapassar o conhecimento das antigas culturas do
cavalo da Ásia Central, no que se refere à compreensão da psicologia, da
fisiologia e da neurofisiologia do fenômeno equitação. Mas, será que esse
fato revela algum significado cultural? Claro que sim.
Uma cultura equestre amadurecida alcança membros de todos os se-
xos e faixas etárias da sociedade: homens, mulheres, jovens e velhos. E,
para compreendermos o significado de cultura relacionado às questões
equestres, vamos analisar essa palavra como os gregos a compreendiam,
e ligá-la à cultura clássica e não a lida com gado e práticas rurais, que se
tornou a norma durante o declínio da equitação no século 20.117 Vamos
investigar mais a fundo a ligação histórica entre equitação e cultura.
Os gregos foram os criadores da idéia da cultura e Xenofonte, o pa-
trono da equitação clássica, foi estadista, general, filósofo e escritor. Quan-
do, na Renascença, as grandes obras da cultura grega foram redescobertas,
o movimento intelectual que seguiu foi acompanhado pelo ressurgimento
da esquecida arte equestre, e a equitação passou a fazer parte da bagagem
cultural das pessoas intelectualmente bem preparadas. Monsieur de Plu-
vinel foi conselheiro, diplomata, vice-governador, equitador-chefe e dire-
tor de uma academia que ensinava esgrima, dança, filosofia, matemática
e astronomia, mas com ênfase na mais bela das artes – a equitação. As
academias de equitação contribuíam também para a formação ética e mo-
ral dos jovens estudantes da Renascença. A cultura equestre se perpetuou
através de academias como Nápoles, Ferrara, Viena, Versalhes, Saumur,
Pinerolo, Sandhurst, West Point e, no Brasil, com a Escola de Equitação
do Exército, em Realengo, no Rio de Janeiro. A equitação clássica, além
de esporte, sempre foi, e sempre será, sinônimo de cultura. As escolas de
equitação do passado foram, primeiramente, centros culturais e seus dire-

Aqui não estou a atacar as práticas da equitação rural ou de trabalho, mas apenas
117

chamo a atenção de que elas não têm maiores compromissos com a cultura formal da
sociedade.

376
Parte III Odisséia na Ciência

tores homens de destaque na política ou nas ciências de seu tempo e seus


alunos futuros líderes de seu país.
Hoje, compreende-se por ‘esporte’ toda a atividade destinada ao aper-
feiçoamento físico e mental do homem, seja pela prática livre dos exercí-
cios, seja através de competições. A importância do esporte nas socieda-
des modernas reflete a preocupação dos governos do primeiro mundo em
incluí-lo no currículo escolar, até o nível universitário. Nos últimos 30
anos, a descoberta de graves problemas relacionados com a vida sedentá-
ria certamente mudará muitos hábitos alimentares e comportamento se-
dentário nocivos à saúde. (Como Felipe Fernandez-Armesto escreveu, “O
objetivo da próxima revolução será o de desfazer os excessos da última – a
revolução biológica)”. E a história tem nos mostrado que a equitação tem
a capacidade para interromper hábitos sedentários, e desenvolver todos os
sistemas ligados à cognição. Com a rápida difusão de uma nova filosofia
equestre, a equitação irá, inevitavelmente, ser associada ao desenvolvi-
mento cultural, porque será compreendido que, para atingir a equitação
simbiótica, o cavaleiro terá de adquirir uma boa educação formal com
uma formação sólida de medicina, neurologia, fisiologia, psicologia e eco-
logia, as matérias correlatas para as disciplinas equestres avançadas.
Estimulados pela crescente importância da equitação, assuntos liga-
dos ao cavalo estão sendo opcionais em muitas escolas secundárias ameri-
canas, canadenses, australianas e européias. Academias equestres privadas
exigem um grau cultural avançado dos estudantes como base preparatória
à equitação, e os esportes equestres estão sendo patrocinados pelo Estado
como muitos esportes o foram nas universidades americanas e soviéticas
no século passado. Como a equitação pode ser considerada a forma mais
completa de estimular o corpo e a mente humana, os estudos equestres
abrirão novos campos de pesquisa em nível universitário.
Com o avanço da fisiologia do fenõmeno equitação, a equitação clás-
sica estará novamente ligada à cultura e à informação, como na Renascen-
ça. E, em breve, ficará também claro que poucos atingirão um alto grau de
equitação senão compreenderem questões como neurologia, fisiologia e
psicologia, correlacionadas com a arte equestre.
Impulsionadas pela valorização dos esportes equestres, teremos no-
vamente escolas de equitação que se preocuparão não somente com a
habilidade equestre dos seus alunos, mas também com o seu nível de co-
nhecimentos gerais. Essas instituições, como as academias da primeira re-

377
Bjarke Rink

nascença equestre,118 exigirão uma boa escolaridade dos discípulos, como


base preparatória para uma equitação avançada. Pela sua importância cul-
tural, é provável que as universidades dos países desenvolvidos venham a
acolher a equitação do mesmo modo que as universidades americanas e a
antiga União Soviética promoveram os esportes no século 20. A equitação
é cultura e cultura tem as suas raízes no magistério. A equitação esportiva,
reconhecidamente a forma mais completa de se desenvolver o potencial
do corpo e da mente humana, será uma importante disciplina da Educa-
ção Física.
A equitação clássica está às portas de uma revolução cultural e toda
revolução é traumática – pergunte só a Luiz XVI e Maria Antonieta que,
literalmente, perderam a cabeça na Revolução Francesa. Muitas crenças
arraigadas e hábitos ultrapassados ruirão com o desvendar da ordem bio-
lógica causal que rege a equitação simbiótica. E os reacionários, como
sempre, vão resistir às mudanças.
A revolução da informação, ocorrida no último quarto do século 20,
já mostrou que, como o Muro de Jericó, não ficará pedra sobre pedra da
organização econômica que inventamos no século 19. A chegada da tec-
nologia eletrônica já é a principal responsável pelo desemprego nos pa-
íses adiantados. Um enorme contingente de operários preparados para
participar da “Apoteose da Revolução Industrial” pregada por Marx, que
deveria ter acontecido no século 20, estão despreparados para o que real-
mente aconteceu no final daquele século: a revolução da informática e o
surgimento da ‘nova economia’ baseada na informação. Com a equitação
simbiótica, também abrir-se-á um oceano cultural entre a equitação dos
países pós-industriais e a dos países em desenvolvimento. Mas, nos paí-
ses desenvolvidos, essa revolução cultural, ao contrário da desinformação
equestre do século 20, vai criar empregos em todos os níveis – colarinho
branco, colarinho azul e camiseta sem mangas, sem causar desemprego a
ninguém.
Nos Estados Unidos, que aparentemente continuam a indicar o cami-
nho do progresso mundial, 75 faculdades e universidades oferecem cur-
sos relacionados com cavalos. Existem 30 carreiras profissionais ligadas a
cavalos, e cada profissão exige um determinado grau de escolaridade do
candidato – de ‘Avaliador de Cavalos’, que exige apenas o segundo grau,
até a ‘Extensão de Especialidade Equestre’, onde o candidato deve apresen-

O primeiro renascimento equestre, os séculos 15 e 16, coincide com o Renascimento


118

cultural da Europa.

378
Parte III Odisséia na Ciência

tar Mestrado ou pH.D. O cidadão americano com vocação equestre pode


escolher as carreiras de treinador de cavalos, personal trainer de cavalei-
ros, instrutor de equitação, administrador de empresas, advogado, conta-
dor e avaliador, profissões ligadas às questões equestres. No século 21, a
equitação e as disciplinas equestres dependerão de informação e cultura
como em nenhuma outra época da história.
Na educação, a equitação vai estabelecer uma ponte entre as cadei-
ras das faculdades de biologia, fisiologia, veterinária, zoologia, zootecnia
e educação física, permitindo aos estudantes completarem a sua formação
por meio de extensão universitária e pós-graduação em equitação. No Bra-
sil, as principais universidades federais, além dos cursos de extensão uni-
versitária para iniciação em vários esportes equestre, vão também poder
oferecer pós-graduação ao nível de especialização –formação de professor
de equitação-mestrado e doutorado em equitação, produzindo pesquisas
de primeira linha. O mestrado e o doutorado, em áreas profissionais como
a educação física, desenvolverão estudos avançados sobre a biomecânica
e fisiologia do salto, por exemplo. Em arquitetura, serão criados projetos
avançados de instalações esportivas e montagem de pistas. Na Neurologia,
haverá uma série de pesquisas ligadas à neurofisiologia, com o mapea-
mento da atividade cerebral de cavalo e de cavaleiro durante os exercí-
cios. Na informática, existem outras dezenas de oportunidades para criar
softwares para a zootecnia equina, programas de treinamento e para as
competições esportivas.

Com a crescente importância da equitação como ferramenta educacional


e da indústria equestre nas sociedades avançadas, as instituições de ensino
particular e públicas vão, como nos Estados Unidos, incluir as disciplinas
equestres e profissões correlatas nos currículos escolares. O cavalo,
felizmente, nunca mais voltará a ser o eixo principal da indústria e do
comércio internacional. Mas a indústria equestre, nos países do primeiro
mundo, já se tornou um dos principais setores da economia, com uma
expressiva participação no PIB e com o faturamento na casa dos bilhões de
dólares.119

A indústria equestre dos Estados Unidos fechou o segundo milênio faturando 16,5
119

bilhões de dólares, a maior contribuição ao PIB rural Americano.

379
Bjarke Rink

CAPÍTULO 72

Uma Estrutura Moderna para os


Esportes Equestres

Um esporte pode ser considerado moderno quando ele encanta o pú-


blico e a mídia. Mas os esportes hípicos são muito, muito, conservadores! Os
cavalos têm, sem dúvida, uma capacidade própria de encantar as pessoas,
mas os seus cavaleiros nem sempre têm o dom de atrair a opinião pública.
Talvez a aversão dos cavaleiros clássicos à massificação da informação, alia-
da à concepção equivocada da opinião pública sobre ‘esportes de elite’, seja
responsável pela baixa popularidade dos jogos equestres aos olhos do público
e da mídia. Para se ajustar à era da informação, os esportes equestres terão
de se tornar mais rápidos e com regras claramente compreendidas, o que é
importante para a cobertura televisiva e a participação no You Tube.
Quando mais evoluído um país, mais bem organizados são os seus
espetáculos esportivos. Os sociólogos afirmam, corretamente, que os es-
portes têm uma capacidade ímpar de mobilização popular só comparável
à fé e à fome. O primeiro mandamento para o desporto moderno é ofe-
recer uma apresentação de arte, qualidade e garra. O esporte tem de ser
bonito, com ‘gestos’ desportivos de boa técnica, estilo e coragem, atributos
que o conjunto equestre oferece em dobro.
Para o público, o esporte como espetáculo ajuda a escapar da realida-

380
Parte III Odisséia na Ciência

de da vida. O espetáculo esportivo cria o universo perfeito ao apresentar


um jogo onde a luta é recompensada com a justa vitória do mais apto, um
espetáculo que ajuda o indivíduo a escapar da realidade de uma existência
sedentária, monótona, estressante e, frequentemente, injusta. Quando o
torcedor, por razões próprias, escolhe um time e um ídolo, a sua vida aca-
ba se confundindo de tal maneira com esses que a vitória ou a derrota se
transforma numa questão pessoal. O torcedor tem de se identificar com o
seu herói. O sucesso mundial do futebol reflete bem essa realidade.
Flashback: o futebol moderno surgiu nos pés de estudantes, operários
e comerciários ingleses durante a Revolução Industrial. (“A massa explo-
rada do sistema capitalista”, diria Marx, em meu lugar). O futebol é um
esporte democrático. Os únicos recursos necessários para se jogar futebol
são os recursos individuais e o corpo-a-corpo dos jogadores. Para se iniciar

381
Bjarke Rink

um jogo, basta uma bola, um terreno baldio e 22 pessoas desocupadas.


Essa facilidade material fez do futebol o primeiro jogo popular globali-
zado. A partir dos primeiros cinco países fundadores da Fifa, em 1904, a
entidade congrega hoje 150 países membros. O futebol é um agente do en-
tusiasmo popular sem paralelo. Uma Copa do Mundo é transmitida para
200 países, e durante 90 minutos dois terços da população pobre da Terra
se esquece da sua fome, injustiça e miséria. O outro terço mais abastado se
esquece da poluição, do trânsito, e da chatice que é a sua vida. Em termos
de mobilização popular, ninguém ainda descobriu nada melhor. O futebol
conseguiu saltar a barreira tecnológica que separa a era mecânica da era
eletrônica. O atual sucesso do futebol é fácil de se entender. Nascido da
massa de operários da Revolução Industrial européia, ele encontra novo
fôlego na massa de desempregados da sociedade Pós-Industrial. Por per-
mitir o sucesso dos recursos genéticos individuais, ele é o esporte preferido
por nove entre cada dez estudantes, operários, comerciários e desempre-
gados de todos os mundos, emergentes e pós-industriais. Mas, mesmo com
todo esse sucesso, os ‘cartolas’ do futebol levaram 40 anos para adotar re-
gras que se ajustassem à dinâmica da transmissão televisiva.
A equitação é, por sua natureza, um esporte singular. É elitizada,
dizem. (Uma qualidade que não é necessariamente um defeito, como já
nos ensinou Joãozinho Trinta.) Vinte e dois participantes necessitam de
22 cavalos (menos no pólo, onde as equipes precisam de 66 cavalos). Na
equitação, os recursos intelectuais, físicos e financeiros são de outra or-
dem. Se, no futebol, você precisa ter o domínio da bola, a habilidade do
passe perfeito, o raciocínio instantâneo e a facilidade de movimentos para
o chute, a cabeciada e o drible, na equitação você terá de ter a habilidade
de lidar com uma outra inteligência de alta sensibilidade e velocidade, ter
um raciocínio ainda mais rápido para ajustar a sua movimentação com o
parceiro muito maior do que você. Se, no futebol, o torcedor se identifica
com o atleta, seu igual, nos esportes equestres o torcedor admira todo o
contexto da equitação – a sua complexidade técnica, intelectual, física e
social. No plano puramente psicológico, podemos comparar o futebol ao
corpo-a-corpo necessário para o indivíduo vencer na vida sem recursos
externos. A equitação, por outro lado, pode representar a luta de um líder
com grandes recursos à sua disposição.
Um dos complicadores da equitação, como esporte com apelo
popular, é o seu caráter imutável quanto às regras dos jogos. Em cada mo-
dalidade, têm alguns chefes tribais defensores das ‘verdadeiras’ regras do

382
Parte III Odisséia na Ciência

jogo. Normalmente, é gente com nostalgia da sua mocidade que querem


ver a equitação praticada exatamente como se fazia ‘no seu tempo’. Para
criar um espírito de equilíbrio, a Federação Equestre Internacional – FEI
– que regula os esportes equestres, criou regras com as quais tenta evitar
a eliminação brutal do competidor como no esqui, ou a perda de pontos
em massa como na ginástica Rítmica. “Acreditamos que este se tornou um
sistema inadequado em tempos de comunicação de massa e para a dispu-
ta da atenção do público e da mídia” – diz um artigo de L’anée Hipique.
“Nós estamos num tempo de comunicação rápida, e os esportes equestres
devem lutar por espaço nos jornais e na televisão sem o qual não recebe-
rão patrocínios. Os outros esportes estão, em sua maioria, baseados em
situações rápidas de perder ou ganhar. O futebol acabou de introduzir a
‘morte súbita’ – uma forma rápida, mesmo que injusta, de decidir uma
partida por pênaltis, porque o elemento ‘sorte’ tem grande influência no
resultado”, finaliza o artigo.
Modernizar as regras esportivas, para ajustá-las ao interesse do
público telespectador, poderá dinamizar extraordinariamente os esportes
equestres. O treinamento de jornalistas e locutores especializados para
fornecer aos torcedores detalhes técnicos e pessoais, do esporte e dos atle-
tas, também. Analisar a escala de dificuldades intrínsecas de cada moda-
lidade – de como cada conjunto aborda as dificuldades de acordo com o
seu perfil atlético, também. A criação de situações antagonísticas na mídia
antes de uma disputa – que o boxe domina tão bem. Quando estas técnicas
de comunicação são compreendidas, até um jogo profundamente chato
como o xadrez, que não tem nenhum dos elementos de beleza, drama ou
emoção dos espetáculos atléticos, um jogo que não tem cesta, gol, pênalti,
nocaute, em que todo o ‘drama’ se desenrola dentro da cabeça dos jogado-
res e torcedores – até um jogo assim pode se tornar atraente.
Os jogos equestres têm velocidade, beleza plástica e glamour em
doses cavalares e envolvem cavalos e atletas de ambos os sexos e todas as
idades e nacionalidades que, por sua vez, oferecem informações jorna-
lísticas que podem criar situações de mídia admiráveis, com um grande
sentido lúdico natural. O problema é que ainda não existe muita gente
capacitada para orquestrar todos esses fenômenos e oferecer ao público o
grande espetáculo equestre.120

O brasileiro Felipe de Azevedo fez um bom trabalho durante as olimpíadas de Atenas.


120

Foi um prazer ouvir os seus comentários técnicos durante as comeptições.

383
Bjarke Rink

Os esportes equestres ainda não decolaram completamente porque nós,


equitadores, somos conservadores e destituídos de imaginação. Levamos
milhares de anos sentando no lugar errado do cavalo, lembra? Agora,
estamos sentados diante da televisão e pensando “será que a Idade da
Informática realmente vai mudar alguma coisa nas nossas vidas?”
(Futuramente, se você contar isso para os seus netos, eles vão pensar
que é mentira). Mas, na Europa, os esportes equestres estão atingindo a
maioridade. A massa de novas informações científicas aplicadas à criação
de cavalos, o seu treinamento e a formação de novos cavaleiros vai elevar
os esportes aos níveis de excelência nunca antes vistos. Sorry, Baucher.

384
Parte III Odisséia na Ciência

CAPÍTULO 73

Odisséia na Ciência

Compreender que a equitação é um ‘sistema vivo’ produzido pelos re-


cursos fisiológicos de um homem e de um cavalo, transformará ‘o novo mun-
do do cavalo’ em uma força econômica expressiva. E os cientistas, que no
século 20 pareciam mais interessados em ressuscitar o mamute do que com-
preender o papel antropológico, sociológico e histórico do fenômeno equita-
ção na história universal, irão neste século comprovar porque a equitação
continua sendo uma ferramenta importante para o desenvolvimento físico
e psicológico da humanidade. Com o boom equestre, novas pesquisas na
fisiologia da equitação trarão respostas interessantes de como o homem e o
cavalo reagem à pressão intersensorial da plena atividade equestre. Vejamos
o tipo de pesquisa científica que deverá ser realizada nos esportes equestres,
talvez já nas primeiras décadas do novo século.
No século 20, a ciência cosmológica deu passos de gigante na ex-
ploração do Universo. Observações telescópicas e cálculos matemáticos
trouxeram novidades fantásticas sobre o gás e a poeira do sistema solar, a
estrutura das estrelas, a formação das galáxias, as explosões de superno-
vas, a força da gravidade dos buracos negros, as ondas de rádio de estrelas
de nêutrons, a descoberta dos primeiros planetas fora do sistema solar, a
descoberta de que o universo é composto por três bilhões de galáxias, e
outras informações da física colhidas nos distantes recessos do cosmos.

385
Bjarke Rink

No século 21, a ciência da computação e a cosmologia provavelmente


não serão o foco do progresso cientifico. No novo século, a ciência está
penetrando em um outro ‘cosmo’ igualmente desconhecido e certamente
mais importante para a humanidade: as profundezas da mente, com seus
trilhões de conexões nervosas e muitas áreas ainda inexploradas. Vamos
dar um galope e ingressar nos anos vindouros, e ver o que estará aconte-
cendo na ciência mundial.
No ano 2020, os neurofisiologistas serão os heróis dos novos tempos.
O seu trabalho procura responder a perguntas ainda mais pertinentes à
humanidade do que as questões cosmológicas, tão em voga nos últimos
anos do século 20. Agora, os cientistas estão procurando respostas para
os seguintes tipos de perguntas: como uma única célula fecundada pode
dar origem a um indivíduo completo? Se o cérebro é dezenas de vezes
mais complexo do que o DNA, a molécula que transmite as caracterís-
ticas hereditárias, como pode este produzir o cérebro? Onde termina o
cérebro e onde começa a mente? Ou, exatamente como os pensamentos
imateriais, podem ser estocados fisicamente no cérebro por meio de in-
terações químicas num processo que chamamos de memória? Ou ainda,
como funcionam essas interações bioquímicas quando o corpo e a mente
estão no mais alto estado de atividade física possível? Pesquisar os limites
da mente humana é, sem dúvida, uma das mais espetaculares empreitadas
científicas desse novo século.

386
Parte III Odisséia na Ciência

As pesquisas sobre o funcionamento do cérebro humano, que come-


çaram timidamente com a monitoração da mente em repouso, estão agora
direcionadas ao estudo da mente humana durante o seu funcionamento
máximo. Por meio de novas técnicas de rastreamento computadorizado
desenvolvido pela microeletrônica, é possível, com uma nova geração de
eletrodos sem fio, mapear o funcionamento da mente durante as competi-
ções esportivas. Como, agora, os cientistas afirmam que o cérebro humano
pode atingir o seu funcionamento máximo quando está diretamente sin-
tonizado a um outro cérebro desenvolvido, o objeto dos pesquisadores
está centrado na sinergia da simbiose Homo-caballus. Os cientistas estão
de acordo que a mente humana poderá atingir a sua carga máxima de
atividade quando conectada diretamente com o cérebro do cavalo, porque
a interação eletrofisiologica de cavalo e cavaleiro é provavelmente o maior
teste funcional para o cérebro humano – pela necessidade de transpor o
mundo humano e penetrar no mundo animal. Nessas pesquisas, as se-
quências de estímulos ativarão as sinapses dos neurônios humanos, com
cerca de 100 trilhões de conexões, e mapearão o seu funcionamento em
vários tipos de situações esportivas altamente carregadas de emoções.
Os neurocientistas estão estudando a complexidade da comunicação
interespécies, realizada entre o cavalo e o cavaleiro, com grande interesse.
O processo de interação sensitivo-motora e cooperação neurofisiológica,
que ocorre durante a equitação, está sendo considerado o momento máxi-
mo de eficiência do sistema psicofísico do homem. Nesse momento, todos
os sentidos humanos estarão em alerta máxima, reconhecendo o inespe-
rado, tomando decisões rápidas, e solucionando todos os problemas de
velocidade e equilíbrio do percurso esportivo. (Os antropólogos também
descobriram que o poder da mente equestre está correlacionado com a
dominação militar dos cavaleiros da Ásia Central, de grandes partes da
Ásia e da dominação das cavalarias européias sobre as populações das
Américas desprovidas de cavalos.) Vamos visitar um laboratório de inves-
tigações neurológicas e assistir a uma gravação em videoteipe da última
experiência eletrofisiologica da simbiose Homo-caballus em atividade.
No centro de neurofisiologia dos esportes, somos convidados a vestir
um guarda-pó branco e depois encaminhados para entrar na sala de pro-
cessamento de dados, onde três monitores de computador nos aguardam.
Uma das telas do computador mostra o funcionamento do cérebro hu-
mano, que se parece com uma vista aérea noturna de uma grande cidade.
Bilhões de sinapses fulguram em manchas coloridas, representando os

387
Bjarke Rink

campos mentais do cavaleiro – a área somato-sensória (estimulado pelo


tato), o córtex auditivo primário, o córtex visual primário e o córtex ol-
fatório. A outra tela mostra o funcionamento do cérebro do cavalo, uma
imagem igualmente fervilhante de luzes e cores, e a terceira é uma visão
externa que mostra o cavalo e o cavaleiro a galopar na pista. Durante a
evolução do conjunto, os campos mentais humanos intensificam as suas
luzes na medida em que são engajados no processo cognitivo. Na passa-
gem crucial de um obstáculo de salto, a região do ‘córtex primário visual’,
localizado na nuca, parece se transformar numa festa ‘psicodélica’ de lu-
zes, cores e estímulos neurotransmissores. Cada campo mental é ligado na
sequência em que o cavaleiro fixa a sua atenção na ação e deflagra a cadeia
de comandos de equitação para o cavalo, e é desligado quando a atenção
do animal assume a execução física da ação indicada e a atenção do ca-
valeiro passa a se fixar no próximo obstáculo. É um exercício do corpo e
da mente, realizado em centésimo de segundo, envolvendo todas as áreas
do cérebro numa combinação infinita de ações racionais e emocionais,
e a fusão dos seus reflexos condicionados e automatizados interagindo
na velocidade da luz com as respostas automatizadas do cavalo. Na reali-
zação de uma figura de adestramento complexa – um Piaffer – o campo
mental mais solicitado do cavaleiro é a área somato-sensória que fica no
topo da cabeça, no hemisfério esquerdo. O adestramento é menos visual
e mais sensitivo do que o salto, por isso a área somato-sensória é a mais
iluminada durante uma reprise de Dressage. A equitação está sendo con-
siderada pelos cientistas como a atividade esportiva que provoca a maior
intensidade, do funcionamento do cérebro humano, em absoluta sintonia
com a sua motricidade. Não há dúvidas de que o resultado desse trabalho
está trazendo informações ainda mais fantásticas para a ciência do que a
notícia do primeiro desembarque do homem em Marte, quando um as-
tronauta russo de Sverslovsk, com um nome e sobrenome impossível de
se escrever, resmungou, inadvertidamente, ao pisar em solo marciano, a
frase que se tornaria a mais afamada do século: “Nyet, eu sabia que não ia
ter ninguém em casa”.
Agora, com as novas técnicas de rastreamento computadorizado,
os esportistas profissionais e amadores também podem conhecer a sua
verdadeira vocação esportiva e saber quais os seus pontos geneticamente
fortes e fracos nos jogos que praticam ou gostariam de praticar. Os supe-
ratletas podem praticar vários esportes fisiologicamente complementares

388
Parte III Odisséia na Ciência

que, no sistema de cross-training,121 beneficiam a atuação do seu esporte


principal. Todos os esportes com bolas – onde o cérebro humano tem de
antecipar o provável percurso de recepção e emissão de bolas – foram
catalogados numa escala que indica a sua capacidade geral de estimu-
lar o cérebro, o seu índice de coordenação sensitivo-motora, e demais
vantagens e desvantagens na fisiologia esportiva comparada. Os jogos
envolvendo veículos, com rodas ou não, são igualmente pesquisados e
colocados em escala pela sua capacidade de desenvolver a agilidade men-
tal e física do atleta. Alguns esportes muito populares no final do século
20 provaram, com as novas pesquisas, serem praticamente inúteis para a
saúde humana – meros placebos do esporte – nos quais o infeliz “atleta”
sedentário pensava estar se exercitando adequadamente.
E, como os principais esportes equestres mobilizam a maioria dos
campos cerebrais pesquisados, estas modalidades estão sendo reconhe-
cidas pelos cientistas como sendo, de todos os esportes concebidos pela
humanidade, as mais eficientes para o atleta exercer o poder máximo da
sua mente em coordenação perfeita com o seu corpo. A condição primei-
ra do líder. O esporte dos reis é agora o rei dos esportes.

A equitação simbiótica fará parte de uma nova onda tecnológica orientada


para reparar as graves distorções ocorridas com o comportamento
sedentário da humanidade, provocadas por invenções destinadas a poupar
o usuário do menor esforço físico. Com o resultado desse trabalho científico,
cada indivíduo poderá atingir o seu equilíbrio psicofísico máximo, com um
desgaste emocional mínimo, preservando assim a sua saúde e equilíbrio
psicológico. Mas apesar do otimismo desse capítulo – o radar ainda indica
turbulência social à frente.

Cross-training é a prática de dois ou mais esportes que se complementam fisiologica-


121

mente.

389
Bjarke Rink

CAPÍTULO 74

Brasil, Mostre a Sua História


(Capítulo exclusivo para a edição brasileira)

A história do Brasil é um maravilhoso e intrincado quebra-cabeça,


composto por milhares de peças representando as culturas indígenas, africa-
nas e latinas. Apesar de os historiadores e escritores brasileiros já começarem
a mostrar uma nova e saudável visão da trajetória histórica do Brasil, talvez
ainda leve algum tempo para se compreender como cada etnia realmente
influenciou a evolução social e econômica do país. Mas até que a brava gen-
te da historiografia brasileira reescreva totalmente a história do Brasil por
meio dos olhos das ciências sociais modernas, seremos obrigados a conviver
com o ‘vírus’ de um mito que contamina a extraordinária saga do povo bra-
sileiro.
“O Brasil não tem tradição equestre”, diz o mito popular. E muita
gente acredita nisso. Como este improvável vírus foi parar no programa
cultural brasileiro só Deus sabe. Acredito, entretanto, que o mito iniciou
com a história oficial do Brasil, posta em circulação no início do século
passado. Uma história que procura encenar a epopéia brasileira utili-
zando a iluminação, os cenários, os costumes, os valores e a idealização
cultural da velha Europa. Aproveitando que um dos objetivos desse livro
é ajudar a abrir uma nova percepção do cavalo e do fenômeno equitação,
segundo as postulações da ciência contemporânea, podemos, também,

390
Parte III Odisséia na Ciência

aproveitar para analisar alguns dados históricos que possam ajudar-nos


a clarificar a teimosa lenda de que o Brasil não tem tradição com ca-
valos. Câmera no horizonte: vamos gravar a chegada das 13 caravelas
portuguesas perdidas nos ‘mares desconhecidos’ e a cara de surpresa de
Pedro Álvares Cabral com a sua “inesperada descoberta” da banda sul
do Novo Mundo.
Os invasores portugueses que desembarcam no Brasil em 1500 en-
contram um vasto continente habitado por milhões de índios pedestres.
(O ancestral do cavalo havia sido extinto nas Américas milhares de anos
antes da chegada dos portugueses.) Nos primeiros dois séculos, as expe-
dições exploradoras, financiadas por empreendedores portugueses, pe-
netraram no desconhecido interior do Brasil pelas únicas vias existentes
– os rios, quando havia, e, principalmente, pelas trilhas que entrecru-
zavam o continente, abertas nas matas por índios e animais selvagens.
A maioria dessas picadas era provisória; logo seria apagada pela exube-
rante vegetação, e todas eram impróprias para o avanço de cavalaria.122
O continente americano ainda não estava pronto para receber a cultura
equestre da Europa. Mas o mesmo aconteceu nos Estados Unidos. As
expedições espanholas, iniciadas por Juan Ponce de Léon, que, no sé-
culo 16, penetraram no sudoeste e sudeste da América do Norte, eram
essencialmente pedestres com raros oficiais montados a cavalo. As tri-
lhas que eles enfrentaram eram tão precárias, a topografia tão irregular
e o avanço tão difícil que os cavalos se perdiam com frequência dos
seus cavaleiros (e, no século 18 e 19, formaram manadas de mustangues
selvagens). Ainda no século 18, batedores, como Daniel Boone, explo-
raram o território na costa leste americana e só conseguiram atravessar a
mata atlântica e as montanhas Appalachian – a pé. No mesmo século, o
imenso território francês da Luisiania foi explorado por barqueiros fran-
ceses que subiram pelo rio Mississipi – de barco. A expedição de Lewis
e Clark, realizada nos anos 1804-6, atravessou o continente americano,
do Atlântico ao Pacífico, com barcos rebocados por estivadores que os
puxavam pelas margens do rio Missouri. Essa expedição científica foi
uma das mais importantes da história dos EUA, como foi a de Langs-
dorff123 no Brasil.
122
O deslocamento de cavalos e cavaleiros necessita de estradas mais largas, com passagens
mais altas do que as picadas de índios e animais. As estradas para a passagem de cavalos
começaram a surgir no século 18, quando podemos dizer que iniciou a história equestre
do Brasil e dos Estados Unidos.
123
Georg Heinrich von Langsdorff realizou duas entradas no Brasil, sendo a mais im-

391
Bjarke Rink

Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o cavalo teve pouco im-
pacto na fase das expedições exploradoras. O cavalo só entrou em cena
para valer, nos séculos 18 e 19, na etapa da colonização onde, aos poucos,
foram abertas estradas para o tráfego permanente de animais e veículos
de carga. No Rio Grande do Sul, no século 18, a cultura do gado e a
produção de carne de charque foram os motores da expansão dos assen-
tamentos portugueses que se irradiaram, a cavalo, pelos rincões gaúchos.
No Sudeste começou a ser formado um importante corredor econômico
onde milhares de tropeiros e burros de carga trafegavam nas trilhas da
encosta da serra da Mantiqueira, indo e vindo entre a província das Minas
Gerais e a capital do Império – o Rio de Janeiro. No Nordeste, a expansão
dos currais de gado construído sertão adentro pelos vaqueiros ampliaram
a ocupação da região pelo cerrado, através da caatinga e além do Velho
Chico. No século 19, o Rio Grande do Sul, que já era uma potência pecu-
ária, exportou por terra grandes manadas de gado até São Paulo e o Sul de
Minas. No Centro-Oeste, a exploração de minérios e a cultura do cavalo
se espalharam em direção ao planalto goiano e à Chapada Diamantina,
onde se encontram com a cultura do couro do vaqueiro baiano.
Durante o período colonial Portugal havia exportado muitos cavalos
para expandir as fronteiras do Brasil. Mas o início do século 19 foi es-
plendoroso para a equitação no Brasil. Com a vinda do príncipe regente
D. João e a sua ampla ‘entourage’ em 1808, o país se tornou o único das
Américas a sediar uma corte européia completa com cavalaria, desfiles
militares e jogos equestres. Na administração de D. João VI são fundadas
três coudelarias reais para promover a melhoria das raças cavalares brasi-
leiras. Uma em São Paulo, outra em Cachoeira do Campo, perto de Ouro
Preto, e uma terceira em Campo Grande, no Rio de Janeiro. A fundação
desses complexos equestres por D. João, talvez as primeiras na história da
América do Sul, tem para o Brasil o mesmo significado da inauguração da
primeira fábrica de automóveis, em 1959, por Juscelino Kubitschek – era
o Brasil a assumir a liderança no setor de transportes e comunicações no
continente sul-americano.
Durante o século 19, todas as principais províncias do Brasil já es-
tavam ligadas por estradas e pontes, que permitiram o acesso de cavalos
e cavalaria em suas funções militares e administrativas. A Dinâmica e o
Poder Equestre estava plenamente operante no Brasil.

portante a expedição científica quando subiu o Tietê, rumo a Cuiabá, penetrando na


Amazônia até Santarém (1828-29).

392
Parte III Odisséia na Ciência

Por essa nova rede de estradas e caminhos fluiam e refluíam, a ca-


valo, o comércio e as revoluções, que irão soldar a unidade política do
país. Pelas trilhas do Vale do Paraíba afluíam paulistas e emboabas124 na
corrida ao ouro do sertão de Minas Gerais. Pelas veredas ondulantes de
Minas viajou a ordem para a devassa da Inconfidência e a captura do alfe-
res agitador – o tal do “Tiradentes” – e, pelas mesmas vias, voltaram o seu
corpo esquartejado, a cabeça pregada num poste em Vila Rica, e as quatro
partes restantes do tronco pendurados nos sítios de Varginhas e Cebolas.
Pelas estradas barrentas do interior, o excelente cavaleiro D. Pedro I re-
forçava as suas alianças políticas com seus súditos paulistas e mineiros
em longas e incessantes cavalgadas. Entre Santos e São Paulo, às margem
de um riacho, Pedro recebe, de um mensageiro a cavalo, a carta que o faz
exclamar decidido: “É tempo! Laços fora!”
Pelas estradas do agreste pernambucano, um frade carmelita liderava
os arraiais patrióticos contra os privilégios, os desmandos e a prepotência
dos governantes. “Desconfiai de todo aquele que pretende fazer os homens
mais felizes do que eles não querem ser”, proclamava Frei Caneca. Pelos
intermináveis caminhos de Mato Grosso viajavam as notícias da guerra do
Paraguai, seguidas pelos dragões de Caxias, que iriam enfrentar a agressão
da República Guarani. Pelas vias causticantes da caatinga marcharam os
cinco exércitos da República Velha para massacrar os crentes de Antonio
Conselheiro. Pelas estradas do Rio de Janeiro, circularam a conspiração
de Deodoro para derrubar a Monarquia. Pelos distantes caminhos do Sul
do Brasil, marchava a revolução de Estado Novo que, insolente, amarrava
o seu cavalo no obelisco da Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro. Sem dúvi-
da, a administração política do Império e da República brasileira voa na
velocidade do cavalo.
O Brasil, o mais extenso país da América do Sul, simplesmente não
poderia ter ocupado e administrado o seu vasto território, no espaço de
250 anos, sem cavalos. O país certamente utilizou tantos cavalos para for-
jar a sua economia e política colonial, imperial e republicana quanto os
Estados Unidos para cimentar a união dos seus Estados. Entretanto, a cul-
tura equestre do Brasil e dos Estados Unidos não foi sofisticada – envolveu
principalmente técnicas de trabalho e transporte. Enquanto os países do
Velho Mundo, já ricos, e querendo mais, davam glamour ao seu protocolo

A guerra das Emboabas, uma rusga entre paulistas e portugueses pelo domínio das mi-
124

nas e ouro em Minas, terminou com a vitória dos portugueses, apoiados pelo governo
colonial.

393
Bjarke Rink

oficial com desfiles militares e reprises de Alta Escola em Lisboa, Versa-


lhes, Viena, Londres e Berlim, os cavaleiros do Novo Mundo – principal-
mente o Brasil e os Estados Unidos – abriram as suas fronteiras com o
suor dos seus rostos e a espuma de seus cavalos. Para sintetizar a contri-
buição das diversas etnias que construíram a nação brasileira, podemos
dizer que os índios contribuíram com a terra, os negros com o trabalho
e os portugueses com as comunicações. Com a sua avançada tecnologia
equestre, os portugueses deram os traços da fisionomia e o tamanho do
corpo da República Federativa do Brasil.
Como prova material da sua tradição equestre, existe no Brasil uma
população equina de 6 milhões de cavalos. Num país onde a maioria dos
habitantes já é urbana e as pessoas não consomem carne de cavalo (se
souber da procedência), 6 milhões são muitos cavalos. Nos séculos 20,
formaram-se no Brasil nove tipos (raças) de cavalos. Durante o boom da
equinocultura nacional, nos anos 80, os animais de raça chegaram a 800
mil indivíduos. A Escola de Equitação do Exército, fundada no Rio de
Janeiro, é conhecida como sendo uma das cinco maiores do mundo. O
Brasil, obviamente, tem tradição equestre.
Existe, entretanto, muita diferença entre a imagem equestre brasileira
e a americana. A opinião pública nos Estados Unidos nutre, claramente,
uma gratidão maior aos seus cavalos do que a brasileira. Talvez porque os
brasileiros ainda viajavam a cavalo quando a maioria americana já andava
de trem, e ainda estavam andando de trem quando a maioria americana
já viajava de automóvel. Por essa razão, talvez, a opinião pública brasileira
não guarde tão boa lembrança do cavalo e do trem. Mas tenho a coragem
de afirmar que a maior diferença entre a história equestre do Brasil e a dos
Estados Unidos, por incrível que possa lhe parecer, não está na tradição
equestre e sim na tradição cinematográfica. Os John Houstons e Sam Pe-

394
ckinpahs de lá trataram melhor a aventura equestre americana do que os
Gláuber Rochas e Carlos Coimbras daqui. John Ford colocou em palavras
precisas a filosofia do mito equestre americano – “Quando a lenda vira
fato, publique a lenda”. Na busca por uma identidade moderna, o incons-
ciente coletivo brasileiro “esquece”, com frequência, o seu arrojado pas-
sado equestre. É natural, faz parte do processo de crescer. Mas a saga da
formação equestre do Brasil é tão, ou mais, aventurosa quanto as histórias
romanceadas da conquista do oeste Americano. O que falta na História
do Brasil não são cavalos – é memória (eu sei, alguém já disse isso antes).
Mas muitos escritores brasileiros já estão mostrando a verdadeira cara do
Brasil – e ela é muitíssimo interessante. “O Brasil carrega uma promessa de
um país grande e original”, definiu Caetano Veloso, com a visão do futuro
que só o poeta possui.

Do ponto de vista político-econômico, seria impossível se consolidar


administrativamente um país das dimensões do Brasil sem a velocidade da
‘Dinâmica Equestre’.

395
Bjarke Rink

Agradecimentos

Ao atravessar a galope estas últimas páginas, nós faríamos bem em


saudar alguns dos Centauros que lutaram bravamente para manter acesa a
chama equestre na ‘Idade das Trevas’ do mundo do cavalo, que foi a maior
parte do século 20, e também alguns Centauros que me ajudaram a cum-
prir a missão de escrever esse livro. Nem todos são cavaleiros profissionais
e alguns eu admiro, mas não conheço pessoalmente. Alguns são chefes de
Estado, outros são jornalistas, editores, doutores/veterinários e soldados,
com uma dedicação especial por cavalos e equitação, e ainda outros de-
sencantaram desse vale de lágrimas e estão montados em seus cavalos em
algum outro paraíso.
Mesmo que eu ainda não tenha sido convidado para tomar chá nos
jardins do castelo de Windsor, eu penso que, na Inglaterra, devemos cum-
primentar a Sua Majestade, a Rainha Elisabeth, que bravamente enfren-
tou o tornado antiequestre do século passado, sabiamente preservando os
valores das tradições do cavalo e da equitação. Ainda na Inglaterra, tenho
uma dívida enorme com Jeremy James, filósofo, equitador e escritor de
assuntos equestres, que muito tem me incentivado com suas palavras e
que, gentilmente, concordou em escreveu o prefácio da edição inglesa,
The Centaur Legacy – e depois em audiência com a S.A.R o príncipe Char-
les lhe presenteou um exemplar.
Na Itália, devemos homenagear Federico Caprilli e Federico Tesio,
grandes cavaleiros. Na França, ah, na França, já houve tantos cavaleiros
heróicos, mas nunca deveremos esquecer o saudoso General Decarpentry
de Saumur, e Bartabás de Paris, que hoje tem o seu teatro no Louvre e
está colocando a antiga arte da equitação numa perspectiva moderna. Na
Alemanha, saudaremos Harry Boldt, o técnico que ajudou a equipe de
Adestramento Alemã a ganhar nada menos do que três Olimpíadas, e ao
qual tive o prazer de entrevistar para esse livro.
Na Espanha, vamos cumprimentar o toureiro Don Álvaro Domecq,
que, juntamente, com o Príncipe Dom Juan Carlos, fundou a Escola Real
de Arte Equestre da Andalusia em 1973, uma década em que a equitação
estava francamente em baixa. Foi na sua arena de touradas, em Jerez de
la Frontera, que eu, em 1998, assistindo Don Domecq, montado no seu
cavalo Sagitário, lutando contra um touro, escutei uma brisa quente vindo

396
do Marrocos sussurrando “é propriocepção”, e de repente o velho ‘enig-
ma do Centauro’ me foi revelado! Na Áustria, a nossa admiração deve se
estender a Alois Podhajsky e a Escola Espanhola de Viena, que durante a
Segunda Guerra Mundial enfrentou mais um exército a ameaçar os Cava-
los Imperiais (e foi salvo por um fio por general Patton e a sua cavalaria
blindada).125
Em Portugal, vamos saudar o inesquecível Nuno de Oliveira, o mes-
tre dos mestres da arte equestre, e Felipe Figueiredo Graciosa, o atual
diretor da escola de equitação de Queluz em Lisboa, que me ofereceu
uma visão magnífica das glórias passadas dos picadores portugueses. Na
Hungria, saúdo o meu amigo Kassai Lajos, que reviveu a antiga arte do
arqueiro equestre no estilo huno, foi mencionado no livro de recordes
do Guiness, e agora ensina arco e flecha num vale por onde os hunos já
vagaram.
E os Estados Unidos, que é talvez o país onde mais pessoas dedi-
caram a vida para manter a chama equestre acesa, eu gostaria de saudar
a memória de Peter Vischer, o jornalista cavaleiro que fundou a revista
Horse & Horseman e ajudou a manter vivo a espírito da equitação na
primeira metade do século 20. E, pessoalmente, devo agradecer a Mat-
thew Mackay-Smith, o editor cavaleiro da revista Equus, que publicou
um longo artigo sobre meu trabalho, sugeriu a revisão da minha primeira
tentativa de publicar esse livro e a quem sou grato. E, naturalmente, o Dr.
James Rooney que, em seu memorável artigo, me ensinou sobre ‘a cor-
rente de reflexos da equitação’ que iniciou a minha busca para desvendar
o lendário enigma do centauro. E, particularmente, ao casal Basha e Bill
O’Reilly fundadores do The Long Riders Guild, meus editores america-
nos responsáveis pela edição inglesa The Centaur Legacy.
No Brasil, saúdo Nelson Pessoa, um dos melhores cavaleiros do sé-
culo 20, e Jorge Ferreira da Rocha, cavaleiro de Adestramento Olímpico
e um apaixonado por tudo equestre, e que me fez a pergunta crucial que
deflagrou a primeira parte desse livro: “O que teria sido do mundo sem ca-
valos?” André Luz, editor da revista HORSE, que tem me apoiado incon-
dicionalmente desde o início dessa longa cavalgada. Um alô também a mi-
nha amiga Claudia Leschonski, que quando editora técnica dessa revista,
costumava perdoar as minhas falhas na língua portuguesa. Gostaria tam-

Entre as grandes façanhas militares do General Patton foi liderar a 7a cavalaria de Cus-
125

ter no assalto bem-sucedido a Sicília em 1943. Infelizmente, esse bravo cavaleiro faleceu
num acidente de automóvel. Isso nenhum cavaleiro merece.

397
Bjarke Rink

bém de saudar o General Lannes Caminha, agora cavalgando com Deus


no paraíso, que muito me incentivou e doou ao Instituto Homo-Caballus,
que tenho a honra de presidir, a maior coleção de selos equestres do País.
E finalmente ao meu editor Brasileiro, o Centauro Paulo Junqueira que
leu o livro em inglês, acreditou e o publicou no Brasil – um desejo que eu
acalentava há muito tempo.

Bjarke Rink
Rio de Janeiro, Brasil

398
Outras publicações:

INSTITUTO EQUUS BRASIL


www.equusbrasil.com.br

399
Envie seus comentários
sobre este livro para
centauro@equusbrasil.com.br

Os mais interessantes
seão publicados
no site da EQUUS BRASIL

Conheça os projetos da
EQUUS BRASIL
e de seus parceiros
Acesse: www.equusbrasil.com.br

400

Você também pode gostar