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Editor
António Freitas PARECERES – REFLECTIR O AGIR.
Coordenação Científica
Lucília Nunes Análise complexa de um caso.
Comissão Científica
Armandina Antunes Célia Vaz, Elsa Rosário, Isabel Silva
Alice Ruivo
Joaquim Lopes Rev. Lucília Nunes
Paula Leal
Colaboradores
Permanentes
Ana Paula Gato
Cândida Ferrito
Fernanda G. Costa
Lurdes Martins
Mariana Pereira
Colaboradores neste
Número
Célia Vaz
Elsa Rosário
Isabel Silva
Lucília Nunes
Regras de Publicação:
Revista N.º 5, 2007
Contactos
lucilia.nunes@ess.ips.pt
antonio.freitas@ess.ips.pt
Editorial
Neste número da Percursos, de forma inaugural, A temática emerge da prática das discentes,
apresentamos um trabalho prismático de análise enfermeiras na prestação de cuidados num Centro
de caso, considerando diversas vertentes. Hospitalar do distrito.
Mas o que fazer quando o doente crítico diz “Não”? a legislação e deontologia, como também um
consciência, quem toma a decisão? Como se para que a sua actuação seja adequada.
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os doentes, que são pessoas e cidadãos para além com três filhos maiores, encontra-se internado
da sua situação de doença, estão perante um meio num serviço de cuidados intensivos. Está internado
desconhecido, muitas vezes hostil e que não há 16 dias, ventilado, sedado, sem evolução
dominam, numa situação sentida como de favorável do quadro clínico. Tem como diagnóstico
inferioridade. Na maioria das situações estão clínico pneumonia grave, com dificuldade de
asserção da palavra, agir em seu próprio benefício, ventilador mas dependente do mesmo, não tendo
estando dependentes de terceiros. Nestes serviços, havido sucesso nas várias tentativas de desmame
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internamento, passado por vários níveis de quadro clínico, foi decidido em reunião da equipa
consciência, consoante a dose de sedação e médica, a realização de traqueostomia. O doente foi
analgesia instituída. Actualmente mantém informado pelo médico sobre o procedimento na
analgesia em doses mais baixas, apresentando presença do enfermeiro. O Sr. Manuel após a
abertura ocular ao chamamento, dirigindo o olhar explicação demonstrou um fácies apreensivo, e
e respondendo a perguntas simples por mímica movimentou lateralmente a cabeça, para dizer que
gestual, através de códigos combinados com os não. O médico reforçou a necessidade da
profissionais do serviço; no entanto só consegue intervenção, como medida terapêutica, explicando
mobilizar ligeiramente a cabeça, para responder que seria uma situação transitória para conseguir
sim ou não, e efectuar abertura ou encerramento melhorar a situação clínica, e sem esperar pela
dos olhos para o mesmo efeito. reacção do doente abandonou o local. Para a
O Sr. Manuel tem tido sempre a visita da esposa e realização da cirurgia é necessária autorização do
dos três filhos. Refere-se que no dia da admissão doente, concretizada através de um documento de
mostrou preocupação pelo facto de estar consentimento informado, onde se declara que o
internado, o que nunca tinha ocorrido, e de não doente foi informado do procedimento cirúrgico e
poder trabalhar, mencionando ser o “chefe da o consente, assinando a autorização. No caso do Sr.
família”, pois a esposa não trabalhava, e era ele Manuel, não sendo possível obter a sua assinatura,
quem habitualmente coordenava a maioria dos a equipa médica solicitou à esposa a autorização
receio e a sua principal angústia, e verbaliza desde conflito entre a sua vontade e a decisão médica,
qualquer técnica invasiva que comprometa a sua sem causa evidente relacionável com agravamento
integridade física, altere a auto imagem e lhe limite da situação clínica, e que se atribuiu a ansiedade,
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No caso do Sr. Manuel foi proposta ao doente e à Steffen et al (2009), refere que a comunicação
família a realização de traqueostomia ao fim de 16 constitui uma parte integrante da qualidade dos
dias de internamento. cuidados de enfermagem, sendo determinante para
Rana et al. (2005) citado por Marcelino et al. a satisfação dos doentes e dos enfermeiros,
independentemente associados com a ventilação Estudo qualitativo realizado por Alasar e Ahmad
mecânica prolongada e a necessidade de (2005), sobre as experiências de comunicação
traqueostomia”. O Sr. Manuel tinha diagnóstico de enfermeiro – doente crítico conclui que,
pneumonia associada à ventilação mecânica e inconscientemente, os doentes impedidos de
administração de aerossóis. comunicar verbalmente por estarem ventilados
Para muitos doentes esta situação é reversível, são alvo de menos interacções e episódios
desde que se consiga um desmame ventilatório comunicacionais por parte dos enfermeiros,
eficaz, para o que é necessário não existir comparativamente com os doentes que não estão
obstrução das vias aéreas superiores, o doente ter ventilados e podem comunicar verbalmente.
capacidade para eliminar secreções e reflexo de Sugerem que é necessário encontrar formas
tosse eficaz (Marcelino et al., 2009). alternativas para comunicar com estes doentes,
possibilitando fornecer-lhes a informação a que
O doente entubado com tubo ou cânula traqueal,
têm direito e promover a satisfação das suas
sofre uma alteração da comunicação verbal que se
necessidades.
manifesta pela não emissão de sons. Quando o tubo
ou cânula traqueal é introduzido fica posicionado Hafsteindóttir (1996) efectuou um estudo com
ao nível das cordas vocais, impedindo o ar de doentes que tinham sido sujeitos a ventilação
passar, o que não permite a formação de sons, visto mecânica que revelou que todos referiram
que o som é produzido pela vibração das cordas lembrar-se da sua experiência de comunicação
vocais. O doente fica então privado de comunicar como um dos aspectos mais negativos que tinham
oralmente, uma vez que as estruturas fisiológicas enfrentado nessa situação, o que era concordante
necessárias à comunicação verbal não podem com resultados de outros estudos de investigação
desempenhar adequadamente as suas funções. realizados com o mesmo tipo de doentes (Ashurst,
Embora todas as formas de acesso endotraqueal 1998; Hudak et al, 1997). Hafsteindóttir (1996),
produzam afasia de expressão, ou seja, impedem o salienta que a comunicação com os doentes em UCI
doente de se expressar oralmente, o acesso é limitada e as conversas tendem a ser curtas e não
endotraqueal através de uma traqueostomia tem focadas nos problemas emocionais dos doentes.
algumas vantagens neste campo, relativamente ao Segundo este autor essa é uma das razões pela
tubo endotraqueal oral pois existem cânulas de qual, e de um modo geral, os doentes em UCI,
traqueostomia com cuff que permitem a fala, caso a descrevem como negativas as experiências de
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palavras indicadoras, alfabetos ou imagens onde o nunca é importuno pensar e actuar com inteligência
…numa arte feliz e um compromisso racional.
doente pode indicar o que quer dizer. O enfermeiro
George Santayana
pode também ensinar o doente a soletrar, de forma
A prestação de cuidados de enfermagem constitui
a conseguir ler nos seus lábios o que quer dizer, ou
um processo complexo que requer a articulação de
combinar códigos de comunicação através de
várias áreas do saber e exige um vasto campo de
pequenos gestos corporais.
conhecimentos que engloba as dimensões técnica,
Neste contexto Ramos (2008:101) refere-nos, que
científica, relacional e ética.
“Uma parte dos problemas, disfuncionamentos e
Durante muitos anos, o compromisso de melhores
insatisfação ao nível relacional e organizacional no
cuidados ao doente, apenas conhecia restrições
âmbito da saúde, está relacionada com problemas
decorrentes dos conhecimentos científicos
de comunicação, nomeadamente, ao nível da
existentes e da sabedoria prática dos profissionais.
informação e dos desempenhos comunicacionais
Contudo a notável evolução dos conhecimentos
dos profissionais de saúde, e algumas das
científicos dos últimos anos, tem proporcionado
dificuldades comunicacionais em contexto de
uma prática de cuidados com profundo e rigoroso
cuidados de saúde têm a ver com a falta de
fundamento científico mas que conduziu a novas
conhecimentos e de respeito dos profissionais de
questões, perplexidades e desafios que exigem
saúde sobre as representações e crenças de saúde
decisões de contornos éticos da maior relevância.
e doença do utente/doente e sobre as relações
deste com o seu mundo social, cultural e Conforme refere Fry (1994) as grandes alterações
comunitário.” que se têm verificado nos cuidados de saúde, as
novas tecnologias e o crescente papel
A comunicação e a informação adaptadas às
desempenhado pelas enfermeiras sugerem que se
necessidades individuais, sociais e culturais dos
questione se estarão as enfermeiras, hoje em dia,
doentes internados em unidade de cuidados
preparadas para tomar decisões éticas nos novos
intensivos, nomeadamente nos doentes ventilados
contextos dos cuidados de saúde.
impossibilitados de comunicar verbalmente,
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As pessoas são sempre um fim em si próprias e não A enfermagem é disto um singular exemplo.
um meio instrumental para alcançar um fim, o que Cada enfermeiro, enquanto profissional, tem um
define o respeito pela pessoa como um princípio compromisso de cuidado e de responsabilidade
regulador do agir ético exigindo respeito pelos pelo Outro que se entrega e confia ao seu cuidado,
direitos dos outros. podendo ser uma pessoa, uma família, um grupo ou
Para o mesmo autor, a autonomia é outro comunidade. Sendo uma profissão centrada no
pressuposto teórico e prático necessário para cuidado à pessoa, onde cada acto profissional exige
qualquer sistema de funcionamento ético. Refere- escolhas e decisões tendo sempre como referência
se à capacidade e possibilidade de um indivíduo a pessoa a quem é dirigida a acção, deve, segundo
ser capaz de exercer determinado grau de auto- Surribas (1995:4), ”basear-se num discurso ético
determinação, ser livre e capaz de agir de forma a que encaminha a sua actividade para a sociedade
usar os seus direitos e a reconhecer os seus como um bem para a mesma”.
deveres para com os outros. Segundo Pedrero (1998:22) “a ética de
O conceito de pessoa e os direitos descritos daí enfermagem estuda as razões dos comportamentos
decorrentes só estabelecem um sistema de ética na prática da profissão, os princípios que regulam
coerente se tiverem uma aplicabilidade universal e essas condutas, as motivações, os valores do
sem discriminação, o que faz surgir um outro exercício profissional, as alterações e as
princípio constitutivo, o princípio ou critério de transformações através do tempo”.
universalidade. Esse princípio procura garantir A função da ética de enfermagem é conduzir a
que os direitos do indivíduo, enquanto pessoa, actividade do enfermeiro a favor do bem
sejam aplicados a toda a gente sem discriminação, presumido do Outro, sabendo que as decisões de
ou seja, procura garantir a equidade ou justiça enfermagem afectam significativa e continuamente
universal. a vida das pessoas.
Há ainda um último princípio construtivo, O Código Deontológico do Enfermeiro (DL nº
decorrente das evidentes desigualdades e 104/98 de 21 de Abril) baseia-se em princípios
profundas discrepâncias entre os homens, que se jurídicos e éticos fundamentais, como a dignidade
designa por princípio da reciprocidade, baseado humana, o respeito pela pessoa, a
no reconhecimento do dever recíproco de cuidar responsabilidade, a autonomia, a justiça, a
uns dos outros e na capacidade de fazer aos outros beneficência (não maleficência), que elencam um
o que gostaríamos que nos fizessem. conjunto de princípios e deveres de acordo com os
Estes princípios fundamentam os comportamentos quais se rege a relação do enfermeiro com o Outro,
definidos para alguns grupos profissionais, mas enquanto receptor de cuidados.
sendo a ética a ciência dos comportamentos, exige O princípio da dignidade humana, constitui o
uma atenção particular de todos os que pela sua pilar estruturante sobre o qual assentam todos os
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outros princípios e valores, bem como os direitos Decorrente dos princípios anteriores, surge a
fundamentais de todos os seres humanos, sem autonomia, que implica o reconhecimento de que
excepção. Implica o reconhecimento do ser cada pessoa é autónoma nas decisões relativas a si
humano, enquanto sujeito moral, com uma próprio e à sua vida, isto é, capacidade de agir e
dignidade absoluta. É uma exigência ética que exercer os seus direitos nas condições que a ordem
inscrita na prática diária dos cuidados garante a jurídica prevê, ou seja, possuir capacidades
centralização desses mesmos cuidados em cada intelectuais e emocionais para assumir uma
pessoa como o fim dos cuidados e impedindo a sua decisão. Para Kant (1999), só sendo autónoma a
utilização como um meio. pessoa pode agir como ser moral, escolhendo e
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duas alternativas não satisfatórias, mas nem todos consequências – e exige para a sua compreensão
os dilemas são dilemas morais. O que faz da teorias e abordagens que se interligam numa lógica
conflito entre princípios morais opostos ou valores Esta temática assente no respeito pelos direitos
aplicáveis às situações – aquilo que acreditamos humanos tem constituído um desafio para a
dever fazer, ou aquilo que acreditamos ser reflexão filosófica, no sentido do estabelecimento
fundamentalmente bom ou importante. O dilema de condições de legitimidade ética da decisão
traduz sempre uma conjuntura que implica uma tomada e como referido anteriormente, feito surgir
escolha difícil entre duas possibilidades de acção, e algumas teorias sobre o processo de tomada de
que no contexto dos cuidados de saúde se traduz decisão (Neves, Pacheco, 2004):
em situações onde as alternativas de acção
A teoria teleológica que considera as
envolvem a possibilidade de causar malefícios, consequências das diferentes alternativas
havendo dificuldade em escolher a acção certa e
possíveis na tomada de decisão para o agir.
identificar o benefício ou malefício daí decorrentes.
A teoria deontológica que privilegia os
O conceito de dilema, de acordo com Sletteboe princípios morais para a tomada de decisão,
citado por Gândara (2004), possui cinco atributos orientando a acção pelo que é reconhecido
ou características. O primeiro é o envolvimento, como uma obrigação moral.
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A ética das virtudes que destaca as virtudes na considerar as alternativas à luz dos princípios e
determinação do percurso a seguir. valores em conflito, escolher conscientemente uma
A ética do cuidado que realça a relação empática alternativa e assumir a responsabilidade dessa
estabelecida entre o doente e o profissional de decisão, ou seja, tomar decisões éticas prudentes.
saúde e o suporte de cuidados disponíveis, Segundo Thompson et al (2004:324) isto está de
como os aspectos a considerar na tomada de acordo com Aristóteles que define prudência como
decisão acerca do modo de agir. As decisões “a capacidade para aplicar os princípios gerais às
individuais, enquanto autónomas, reforçam a situações específicas, através da aquisição de
dignidade da pessoa e são o corolário da sua conhecimentos e capacidades, de forma a
autonomia. escolhermos os melhores meios disponíveis para
Contudo, a decisão ética não está padronizada, alcançarmos um bom fim”.
protocolada ou normalizada pois cada problema Ainda de acordo com o mesmo autor, todos os
deve ser olhado e analisado segundo as actos intencionais e deliberados possuem
circunstâncias que o tornam particular, único e reconhecida uma estrutura – causas /meios/fins -
singular. que deverá estar presente em todos os processos
Não existem soluções iguais pois os problemas de tomada de decisão.
serão sempre diferentes, dadas as circunstâncias As causas referem-se aos antecedentes que
de tempo, modo e lugar serem inevitavelmente determinam o contexto específico em que é
distintas. Isto não faz porém, da decisão ética um necessário actuar ou decidir.
processo oculto, mas antes um processo de
Os meios envolvem os agentes responsáveis pela
resolução de problemas que tem em consideração
implementação da decisão ou do plano de acção, e
a complexidade das situações, os papéis dos vários
também a escolha dos meios e métodos
actores, que exige uma apreciação cuidadosa de
necessários para atingir os objectivos.
todos os aspectos relevantes, permitindo
aprendizagens e aportes úteis na melhoria de Os fins reportam-se ao objectivo ou meta da acção
Com o objectivo de facilitar o encontro de uma Estamos conscientes de que os vários modelos,
encontrados na literatura, apresentam vantagens e
resposta adequada e justa para os problemas
limitações, e embora explicitem de forma
éticos, isto é, de definir um método prático para
orientar a análise e reflexão crítica essenciais à semelhante o processo de tomada de decisão,
tomada de decisão, foram desenvolvidos diversos diferem globalmente no modo como cada uma das
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inclui seis passos, apresentados no quadro e auto-imagem, a liberdade para decidir e o seu
seguinte. papel de orientador da dinâmica familiar.
D Definir os problemas (identifica os Estes dois por um período prolongado, fazendo emergir a
factos mais importantes do caso, quem primeiros
passos
necessidade de decidir sobre aspectos que o Sr.
está envolvido, quais os seus direitos e
os nossos deveres e ainda qual o analisam as Manuel assumia como inquestionáveis. Embora
causas e os
principal problema ético abordado).
princípios apresentando variações do nível de consciência, no
antecedentes
E Estudo ético (identifica os principios que são momento de decidir a intervenção, o doente
éticos relevantes e prioritários no caso). aplicáveis ao
caso. encontrava-se consciente e com capacidade para
C Considerar opções (identifica o que Estes passos comunicar, fazendo-se entender por mímica labial
pode ser feito, que opções e compreendem
procedimentos existem e ainda as uma análise e gestual. Apresenta também défice motor que se
ajudas, meios e métodos que é das opções,
meios e traduz por diminuição da força muscular que o
necessário empregar).
métodos
existentes.
impossibilita de escrever.
I Investigar os resultados (identifica os
resultados éticos, custos e benefícios, Apesar destas limitações o doente consegue
isto é, face a cada opção antevê as
consequências prováveis dos vários expressar a sua vontade, pois continua consciente,
procedimentos).
orientado no tempo, espaço e pessoa,
D Decidir sobre a acção (determina, após Estes últimos aparentemente na posse das capacidades previstas
ter optado pela melhor opção, um plano passos
especifico com definição de objectivos envolvem a para poder exercer os seus direitos,
claros e desencadeia a acção decisiva). acção
intencional e a nomeadamente para poder decidir se autoriza ou
avaliação dos
E Estimar/avaliar os resultados resultados não a realização da referida técnica. O doente, é por
(monitoriza o progresso dos relativamente
acontecimentos e avalia aos objectivos isso o decisor deste processo e há que assegurar
cuidadosamente se os objectivos foram definidos.
ou não atingidos). que tenha acesso a toda a informação conducente a
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lhe garantem todos os direitos fundamentais daí Neste caso concreto, o enfermeiro crê, baseado em
decorrentes, em particular o seu direito de conhecimentos científicos e na relação que
autonomia que pressupõe a sua capacidade de agir, estabeleceu com o doente, que a realização da
ou seja, a capacidade para o exercício dos seus traqueostomia é o melhor cuidado possível para
direitos, nas condições que a ordem jurídica prevê ele. Está aqui bem presente o princípio da
e que este doente aufere. beneficência que se traduz na obrigação de fazer o
O doente é, por outro lado, uma pessoa singular, bem e actuar para prevenir o mal, cuja finalidade é
dotada de inteligência e vontade idónea para por excelência o bem do doente. O princípio da
avaliar os seus critérios de acção e hierarquizar as beneficência constitui um farol orientador dos
suas opções, pelo que tem o direito de decidir o enfermeiros para agir cuidando da pessoa humana
que vai ser feito com o seu corpo, isto é, de recusar nas suas diferentes dimensões e de acordo com as
a intervenção proposta. Enquanto pessoa este necessidades que possam apresentar, permitindo a
com justiça, verdade e respeito, em função da sua contribuindo para o melhor cuidado àquela pessoa,
compreensão implica garantir a observância dos dilema, com base no anteriormente descrito e
direitos e deveres para com este doente, assentes pretende antever as prováveis consequências de
nos princípios éticos que servem de fio condutor à cada uma das opções, considerando alguns
resultado do encargo confiado (Nunes, 2006). Ser ventilação, prevenir complicações e agir segundo
responsável pelo outro significa, no sentido amplo os conhecimentos científicos. É aqui exaltado o
cuidar das pessoas, ao longo do ciclo vital, na saúde decisão do doente, agindo contra o seu direito de
vida daqueles a quem prestam cuidados. A segunda opção será não realizar a traqueostomia
e manter o doente ventilado por TOT, com as
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possíveis consequências orgânicas, nomeadamente Neste caso não foi assegurado o direito à
o risco aumentado de infecção respiratória, a autodeterminação, ou seja, a capacidade e
maior dificuldade no desmame ventilatório, o autonomia que este doente tem de decidir sobre si
tempo aumentado de internamento e todas as próprio.
eventuais complicações resultantes da intubação A transferência do poder decisivo para a esposa,
endotraqueal prolongada, mas sem colocar em não está de acordo com os princípios ético-legais
risco a vida do doente. Assume-se o respeito pela vigentes e implicados neste caso. Na dúvida em
decisão do doente traduzido no garante do seu relação à capacidade de decisão deste doente, os
direito de autonomia relativamente ao princípio da profissionais devem considerar o melhor interesse
beneficência. do doente e reger-se pelo princípio da
Após análise detalhada das duas opções, foi beneficência.
decidido pela equipa médica realizar A expressão formal da vontade actual de terceiros
traqueostomia ao doente, contra a sua vontade (esposa), autorizando os actos médicos, deverá ser
expressa, mas com o consentimento por escrito tida em conta e é válida se estivermos perante o
(declaração de consentimento informado) da sua representante legal do doente, o que não se verifica
esposa. neste caso. Embora esta seja uma decisão da
Conforme Neves e Pacheco (2004:407) “o processo equipa médica, o enfermeiro enquanto elemento
de decisão ética situa-nos num campo em que a da equipa de saúde, tem um papel activo no
natureza ética dos problemas suscita uma processo, pela responsabilidade que lhe é
ambivalência na escolha da hipótese alternativa acometida na adequada prestação de cuidados de
que se afigura como a de eleição, ou seja, a decisão enfermagem, em especial o cumprimento de leis e
justa e certa”. normas ético deontológico que regem a profissão.
Porém, e de acordo com toda a exposição anterior, Os enfermeiros têm as suas competências definidas
parece-nos poder concluir que a opção escolhida, (OE, 2003) e agrupadas em três domínios, onde se
que envolveu a acção intencional de realizar a destaca a prática profissional, ética e legal com
traqueostomia ao doente, não foi a decisão mais especial relevo neste contexto, e que salienta na
correcta sob o ponto de vista ético. prática segundo a ética, o exercício segundo o
terá direito a decidir de livre vontade se pretende efectiva nas tomadas de decisão ética, a actuação
ou não submeter-se à intervenção proposta na defesa dos direitos humanos e o respeito pelo
que lhe permite decidir rejeitar a referida técnica. reporta a outra esfera de actuação, o enfermeiro
deve agir traduzindo a preocupação da defesa da
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humano será sempre diminuí-lo e não ser metafísicos não estão antes da análise
verdadeiro e completo na sua interpretação. fenomenológica porque fazem parte da explicação
Assim, a enfermagem tem-se suportado em teorias dos fenómenos, e que as trajectórias de vida
médio alcance que possibilitam descrever, pelo conhecimento da ciência moderna o homem
não sendo nenhuma prescritora de prática. Estas mundo, um saber prático (1987, p.16). Partilha a
teorias permitem traçar linhas orientadoras da convicção que a reflexão epistemológica é muito
caracterizador da enfermagem (Im & Meleis, científica sendo prudente dar espaço à incerteza,
1999). Este aspecto tem condicionado o pelo que a ciência pós-moderna deverá
conhecimento, mas devido ao valor do produz tecnologia, dado que ambos se traduzem
Boaventura Sousa Santos (1987) trouxe algum Reportemo-nos agora a uma análise menos
Enfermagem com a sua proposta de agir enfermeiro, dado que a proposta de análise de
emergente em “Um Discurso sobre as Ciências”. cognitivo que conduz à tomada de decisão, ao
Defende que “a separação da dicotomia ciências “nessa situação ajo assim … “ caso seja possível
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este uma vertente interna e externa. A saúde é papéis, que têm associados efeitos que deixam
conceptualizada como uma experiência dinâmica marcas na pessoa, e que para as autoras são
da unidade pessoa-ambiente, com as essencialmente positivas, porque a pessoa ao
características particulares que cada membro passar pelo evento, alcança uma maior maturidade
desta unidade transporta (Kérouac et al., 1994), e estabilidade. Nas transições de saúde-doença
sendo a doença encarada como uma experiência de consideram-se mudança súbita da saúde para
saúde no continuum de vida da pessoa. Com o doença, as mudanças graduais de bem-estar para
surgimento da teoria dos sistemas de Bartalanffy, o doente, as mudanças de doente para ausência de
ser humano passa a ser encarado como um sistema bem-estar e a mudança súbita ou gradual de
composto por vários sistemas em interacção ausência de bem-estar para doença crónica.
permanente e sistemática, podendo estes sistemas Segundo este paradigma, e no âmbito da saúde-
ser interiores ou exteriores à pessoa (Lopes, 2001). doença, o factor tempo é de primordial porque
Os cuidados de enfermagem visam o bem-estar tal permite incorporar as alterações de
como a pessoa o perspectiva e, sendo a pessoa um comportamento e emocionais inerentes à mudança
ser no mundo, os cuidados de enfermagem abrem- de papel.
se ao mundo. O enfermeiro coloca ao dispor da Em consonância com os paradigmas surgiram
pessoa os seus conhecimentos e acompanha-a nas diferentes escolas de pensamento em enfermagem
suas experiências de saúde seguindo o percurso que diferiam no modo como conceptualizavam o
que escolheu. Intervir é “ser com” a pessoa nesse agir e pensar enfermagem, e como definiam e
percurso de vida, sendo parceiros na procura do relacionavam os conceitos pessoa, saúde (doença),
bem-estar que a pessoa definiu de acordo com as ambiente e cuidados de enfermagem. Citam-se a
suas potencialidades e prioridades (Kérouac et al., escola das necessidades, a escola da interacção, a
1994). escola dos efeitos desejados, a escola da promoção
Presentemente reconhece-se também o da saúde, a escola do ser humano unitário e a
paradigma da transição enunciado por Chick & escola do cuidar (Kérouac et al., 1994).
Meleis (1986) que assenta no conceito de Num tempo em que os cuidados de saúde se
transição, entendida como mudança, processo, centram nos utentes e na satisfação das suas
resultado, direcção dos padrões vitais necessidades, em que os conceitos de saúde e
fundamentais do ser humano - mudança de papéis. doença evoluíram sendo assumidos como
Definem transição como”uma passagem ou coexistentes em equilíbrio dinâmico, em que a
movimento de um estado, condição ou lugar para saúde é mais do que a ausência de doença
outro” o que tem implícito atributos temporais e de aproximando-se do conceito de bem-estar, e o
movimento. Diferenciam as transições de utente é encarado como um ser único, holístico,
desenvolvimento ao longo do ciclo de vida e as aberto ao mundo e parceiro na decisão do processo
transições situacionais, onde englobam as terapêutico, assume-se o paradigma da
transições de saúde-doença. Assume-se que os transformação, e também alguns pressupostos do
processos de transição cursam por mudança de paradigma da integração que têm continuidade no
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As situações de cuidados implicam ajudar a viver e facilita que tome consciência das suas decisões de
essa ajuda processa-se pela relação, que poderá ser saúde e assuma comportamentos coerentes com
encarada como a essência do cuidar, a relação de essas decisões (Benner, 1984; Collière, 1989).
ajuda, que Brammer citado por Lazure (1994) Segundo Collière a finalidade dos cuidados de
define como a relação na qual o enfermeiro fornece enfermagem “consiste em permitir aos
ao cliente as condições que este último necessita utilizadores, desenvolver a sua capacidade de viver
para satisfazer as suas necessidades, e terá sempre ou de tentar compensar o prejuízo das funções
como objectivo a promoção do bem-estar do limitadas pela doença, procurando suprir a
cliente. Segundo Rogers (1985, p.43) a relação de disfunção física, afectiva ou social que acarreta”
ajuda são as “relações nas quais pelo menos uma (1989, p. 241).
das partes procura promover na outra o
A Pessoa poderá ser encarada como um ser social
crescimento, o desenvolvimento, a maturidade, um
integrado no seu ambiente, agente intencional de
melhor funcionamento e uma maior capacidade
comportamentos baseados em valores, crenças e
para enfrentar a vida”. Esta relação será não-
desejos individuais, mas também centro de
directiva, co-construída, assente em princípios de
processos fisiológicos, não intencionais, mas que
valorização do Outro e de crença nas suas
poderão ser influenciados pela condição
potencialidades para resolver, de uma forma
psicológica e o bem-estar (Ordem dos Enfermeiros,
autónoma, os seus problemas (Simões et al, 2006).
2001), que evolui na procura da qualidade de vida
Os conceitos estruturantes da praxis de de acordo com as suas potencialidades e
enfermagem são saúde, pessoa, ambiente e prioridades, não podendo ser dissociado do seu
cuidados de enfermagem. enquadramento cultural (Leininger, 1988, citada
Os Cuidados de Enfermagem poderão ser por Kérouac et al., 1994, p.43-45).
entendidos como um processo transpessoal A Saúde é concebida como um estado subjectivo
alicerçado num ideal moral, que associado a que diz respeito ao bem-estar físico, emocional e
conhecimentos consistentes, visam a promoção da espiritual. Emerge da experiência que engloba a
harmonia entre “corpo-alma-espírito”, que hoje se unidade pessoa-ambiente, não sendo um estado
aceita como bem-estar (Watson, 2002). estável equivalente à ausência de doença, mas um
Os cuidados de enfermagem que têm como equilíbrio dinâmico entre saúde e doença, entre
objectivo o bem-estar da pessoa como esta o organização e desorganização. A saúde faz parte da
percepciona, poderão ser entendidos como “ser dinâmica da experiência humana, da vida do
com”, “caminhar com” a pessoa, estar com ela no indivíduo, das famílias e dos grupos sociais em
caminho que decidiu percorrer, facultando-lhe os interacção com o ambiente (Watson, 2002;
conhecimentos e competências próprias do Leininger, 1988; Kérouac et al., 1994).
enfermeiro (Watson, 2002; Hesbeen, 2001). O Ambiente engloba elementos humanos, físicos,
Demonstrando que se preocupa, acredita e respeita emocionais, morais, espirituais políticos,
a pessoa que tem perante si, reforça as suas económicos, culturais e organizacionais que
competências, maximiza as suas potencialidades e determinam o estilo de vida da pessoa e o próprio
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conceito de saúde (Watson, 2002; Leininger, 1988; uma epistemologia que permite não apenas o
Ordem dos Enfermeiros, 2001). empirismo, mas avanços da estética, valores
refere que visou elaborar uma teoria que se uma ontologia de tempo e de espaço;
Watson define teoria como “um agrupamento A sua teoria é congruente com uma metodologia
imaginativo de conhecimentos, ideias e fenomenológica-existencial que utilizou nos seus
experiências que são representadas estudos, mas salienta que se deverá procurar
simbolicamente e procuram clarificar um dado sempre elevados padrões de rigor e credibilidade
fenómeno”, recusando o espartilho do método garantindo a consistência entre a metodologia e o
científico assente na verificação-aceitação, e tipo de estudo a desenvolver, dado não haver
abrindo a porta ao método científico assente na consenso em relação ao valor científico dos
descoberta-procura, adequado a uma ciência como métodos.
processo contínuo, progressivo e inacabado, pelo Percebe-se que entende que o modo como o
que assume o conceito de enfermagem nos enfermeiro interioriza o cuidar determina a
continuuns concreto/abtracto e estático/dinâmico, metodologia que transporta para a praxis pelo que
pressupostos que lhe permitem suportar: deixa em aberto a reflexão sobre as questões: Que
uma filosofia de liberdade humana, escolha e condições facilitarão e sustentarão a pessoa como
responsabilidade; um fim e não como um meio para fins científicos ou
uma biologia e psicologia holíticas com não- médicos?; Que condições sustentarão o cuidar em
redutibilidade de pessoas interligadas com ocasiões de humanidade ameaçada? (2002, p.39).
outras e com a Natureza;
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O principiante age de acordo com regras, não cumprindo a sequência de níveis referida já que é a
elementos em confronto numa dada situação, por que os suporta (Schon, 1998, cit por Pires, 2005).
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o saber tácito, Barbara Carper (1978) identifica conhecimento possibilita competência, entendida
e o segundo relaciona-se com o contexto e o poder evidenciando este capacidade cognitiva para
(Nunes, 2010, p. 7). Poderá estabelecer-se uma decidir sobre o problema em análise após
ligação entre o conhecimento pessoal definido por informação e esclarecimento sobre a intervenção
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acto terapêutico proposto, o poder decisório não Pensámos muito como conciliar o que desejávamos
deveria ser transferido para a família. com o que teríamos de abordar neste processo
Epistemologicamente o enfermeiro deverá ter criativo não esquecendo que ele cursa numa
auto-consciência que a vontade do Outro deverá avaliação académica. Mas, decidimos não fugir ao
ser respeitada e, como elemento da equipa de texto de Savater porque nos pareceu que a
saúde, expressar ao médico a convicção de que o dificuldade que sentíamos tinha significado e, por
Outro deve poder decidir. Em situação de grande não nos fazer sentido a vinculação determinista,
conflito poderá solicitar parecer (assessoria aceitámos que o expresso na obra dava corpo ao
clínica) junto de peritos ou de comissões ou nosso estar no mundo, mais do que como
organizações, mantendo o sigilo profissional. Mas a enfermeiras como pessoas, e que melhorou a nossa
fundamentação para a decisão perspectiva-se de auto-consciência, pelo que não recusámos a
modo mais estruturado nas análises ética, aprendizagem que a obra possibilitou. Decidimos
deontológica e jurídica, sendo a estas duas últimas abordar os princípios do ser e agir aí referidos e o
vertentes que cabe a emissão de parecer. seu encadeamento e, analisando também os
conteúdos focados no contexto académico,
incorporá-los na sequência expositiva
PERSPECTIVA CULTURAL E HUMANISTA
estabelecendo pontes de significado entre o
O problema da
escolha, o problema da vida inteira. reflectido. Gehlen (cit por Savater, 2003) refere
Georges Perec, Je suis né que o Homem é um ser práxico, um ser que actua,
que quer fazer coisas e faz coisas que quer. Mas
Na procura de um caminho para o desafio lançado entende que actuar não é só pôr-se em movimento
no contexto académico em que este trabalho se para satisfazer o instinto no suprimento de
insere, cruzámo-nos com a obra de Fernando necessidades, como havia referido Aristóteles na
Savater, A Coragem de Escolher (2003), e não mais Ética a Nicómaco.
conseguimos afastar-nos da estrutura reflexiva que
O agir está vinculado a situações virtuais que não
o autor assume nessa obra. Nela postula que o
ocorrem no presente, a um registo simbólico de
homem é um ser práxico e que a arte de viver
possibilidades que se suporta nos paradigmas
consiste em discernir entre as diferentes formas de
estabelecidos, mas que igualmente se abre ao
actuar, avaliá-las, escolher (decidir) e agir.
futuro. Agir é tentar prever jogando com o
Pensamos que a situação problemática em análise imprevisível e contando com a sua incerteza.
no caso a que se reporta este trabalho passa por aí, Como humanos devemos propor-nos estilos e
para todos os seres humanos envolvidos e para planos de vida para viver, decidir o nosso agir, a
todas as profissionalidades presentes. Isto vem nossa praxis.
concretizar o que Savater assume, com a sua
Reflectir sobre a natureza humana, implica tentar
reflexão assente num pensamento mais abstracto,
saber quem somos, de onde viemos, porque somos
que o viver humano é decidir o agir.
de uma certa maneira e não de outras, que significa
ser-se humano, se possuímos capacidade de mudar
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a nossa maneira de ser e a sociedade sendo têm de humano, e Sagan advogue que devemos
capazes de nos adaptar às mudanças. Sagan (1992) aprender a usar melhor a inteligência e a entender
refere que o grande mistério da existência é o da as suas limitações e deficiências (1992). Mas
natureza humana. Sempre se tentou definir a reconhece-se que o Homem tem a capacidade de se
natureza humana identificando o que nos distingue distanciar de si próprio para analisar o que num
dos não humanos, explicitando se porventura momento anterior se passou dentro de si, tanto ao
existe alguma coisa que seja exclusivamente nível da razão como dos sentimentos, para poder
humana. Ao longo dos tempos a diferença do formular uma crítica que lhe possibilita criar
humano foi sendo atribuída a variados aspectos ou conhecimento de si, do mundo e de si no mundo.
atributos: ser bípede e sem penas, tendência para Esta vivência de si alicerçada no questionamento
realizar trocas e negociar, possuir noção de permanente do ser humano face a si próprio, face
propriedade privada, ser social, ter coragem, ser aos outros e face ao mundo é sem dúvida um traço
racional, ter capacidade de escolher, ter práticas de humanidade.
sexuais definidoras, ter capacidade de brincar, ter O pensar decorre de o Homem possuir um órgão
noção de higiene pessoal, capacidade de rir, sentir extremamente desenvolvido, o cérebro, com
dor, proibição ao incesto, ter consciência, possuir capacidades múltiplas e sofisticadas. O cérebro
linguagem/fala, ter capacidade de criar uma cuja camada externa, o córtex, que em latim
cultura…; mas todos estes aspectos foram sendo significa “casca”, abriga mais de quarenta áreas
refutados, uns de modo mais fundamentado do que funcionalmente distintas, a maioria situadas no
outros, por existirem espécies ou seres não neocortex, e assume o controlo de funções como o
humanos que também evidenciavam essas pensamento, o movimento voluntário, a linguagem,
capacidades (Sagan, 1992). o julgamento e a percepção. Se do córtex parietal
Talvez a capacidade de pensar o pensado, a depende a percepção corporal e espacial, o córtex
capacidade de experimentar prazer a um nível occipital controla a visão e o córtex temporal aloja
meramente psicológico, a necessidade de tornar o os centros de controlo da memória e audição. Mas
mundo exterior inteligível segundo esquemas ao córtex frontal cabe a responsabilidade pelo
internos e a capacidade para desenvolver uma planeamento consciente, a tomada de decisão, e o
cultura sejam os atributos ou características que controlo motor. No entanto salienta-se que as
mais diferenciam a natureza humana. Mas a paixão neurociências, e nomeadamente o estudo dos
pela verdade, a necessidade de entender os centros de controlo das funções humanas,
fenómenos (o real) e o gosto pelo conhecimento e encontram-se em franca evolução e longe de
pela comunicação também marcam de modo oferecer um conhecimento que traduza a
especial o humano. complexidade das actividades e capacidades
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que traduz o produto de experiências individuais e grandes para ter eus conscientes, para coordenar
colectivas que são incorporadas, que objectivada os seus conteúdos intencionais, de modo que
por recordação, constitui a matriz do agir (Linke, produzam melhores acções do que as que se
2001 cit por Sobral, 2006). produziriam pela conduta guiada pelo puro acaso”
Numa sociedade multicultural a sensibilidade para (Savater, 2003, p. 44). Salienta que o pensamento
respeito pelas especificidades numa postura de somos e da realidade em que vivemos, e que a
cidadania inclusiva, exercendo protecção externa escolha vai imbuída desses atributos. O homem
da comunidade minoritária mas também restrição está programado no que respeita à sua estrutura
interna no que possa pôr em risco as liberdades orgânica mas não na sua capacidade simbólica, ou
fundamentais (Nunes, 2009, p.49). seja, está programado no “ser” mas não no
“humano” (Savater, 2003). Porque impreciso,
Percebe-se que a acção humana contempla uma
comete erros, mas tem a capacidade de aprender
dimensão objectiva que traduz a sua intenção, o
com o vivido corrigindo os rumos vitais, porque o
“para quê?”, que poderá ser testemunhada por
cérebro armazena a informação adquirida a partir
outrem e processada pela linguagem, e uma
da experiência, codifica-a em símbolos abstractos e
dimensão subjectiva, só conhecida pelo sujeito e
comunica-a pela linguagem, processo que nos
que corresponde ao motivo, o “por quê?”. Defende
confere a capacidade de mudar a nossa maneira de
Savater que o porquê, a causa de um agir será
ser e a sociedade (Sagan, 1992).
sempre a vontade, embora refira que existe um gap
entre as intenções possíveis e a escolha por que se O julgamento racional deverá partir de factos
opta, designando essa brecha por traço de correctos e recorrer a um raciocínio correcto
intencionalidade consciente, as razões para actuar evitando erros, sofismas, falácias e paradoxos que
(p.43). As razões para agir suportam-se no eu- poderão conduzir a um agir não adequado, e em
sujeito e na racionalidade que transporta, casos extremos, a um agir com pouco do que vimos
de avaliação do real, busca de alternativas e O agir pode traduzir um fazer as coisas bem,
tomada de decisões que configura a proairesis, o medianamente ou mal; pode ponderar-se se devem
livre-arbítrio, do eu-sujeito” (p.44). O processo ser feitas, o que também é passível de um juízo de
racional procura no simbólico, vividos e agidos, as valor. Movemo-nos nos campos da ética, campo da
razões/motivos para agir confrontando-os e vida que versa sobre “exigências e compromissos
hierarquizando-os. As razões para agir poderão que implica reconhecimento da humanidade dos
estar vinculadas à razão e ao desejo, em doses nossos semelhantes para que eles, na devida
variáveis, dando resposta a “para quê?” que reciprocidade simbólica, confirmem por sua vez a
poderão ser necessidades, deleites, compromissos, nossa” e da deontologia, que reconhece valores e
projectos e experimentações. Refere que “a configura normas (Savater, 2003, p. 53). Mas, se
racionalidade na acção é o traço que capacita os tanto na ética como na deontologia se poderão
organismos, com cérebros suficientemente conceber esquemáticas de orientação que ajudem a
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decidir, o livre arbítrio deverá prevalecer, porque Pensamos que se o conhecimento, valores, crenças,
haverá sempre um toque pessoal com que cada um costumes, desejos e medos direccionam o agir, a
vive de forma irrepetível uma singularidade da sua reflexão continuada sobre o agir também clarifica e
existência. O decidir é sempre um decidir adequa o conhecimento, os valores, as crenças, os
situacional, pelo que nos deveremos focar não no costumes, os desejos e os medos de que partimos.
que é bom ou mau em abstracto, mas no que é Estar no mundo por acaso não nos seduz.
“bom para” ou “mau para”. Quando perante o Sr. Manuel, o enfermeiro deverá
Viver é um devir de símbolos que se entrecruzam ter auto-conhecimento dos traços de ser humano
em forma de memória, de comunidade, de códigos, que transporta para o acto de decidir o agir, não
de visões do futuro, de procura para encontrar o esquecendo que ele, Sr. Manuel, também terá os
sentido de cada gesto e de cada tropeção. Viver seus, diferentes ou semelhantes, e que do jogo
entre e mediante os símbolos é tentar entre ambos os seres emergirá a tomada de
permanentemente estabelecer uma singularidade decisão, mas que na circunstância em análise,
partilhada (Savater, 2003). Ser racionalmente deverão prevalecer os do Outro.
activo é procurar tornar-se independente dos vai-
vem da natureza, reforçando a nossa dependência
PERSPECTIVA JURÍDICA E DEONTOLÓGICA
dos vínculos sociais, porque na sociedade o homem
Age de tal forma que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com
importa (p.76). Gehlen (cit por Savater, 2003) a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra.
O CDE tem função normativa e vinculativa e diz situação clínica, pode o Sr. Manuel, recusar a
A traqueostomia não passa por ser simplesmente pela pessoa em causa o seu consentimento livre e
um procedimento médico, uma vez que provoca esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente
legislação portuguesa ofender a integridade física natureza da intervenção, bem como às suas
de uma pessoa constitui crime, nos termos do consequências e riscos, podendo em qualquer
capítulo III do Código Penal (CP), com o título momento, revogar livremente o seu
“Dos crimes contra a integridade física”, aprovado consentimento. Em relação aos menores e adultos
pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, com as incapazes diz-nos a Convenção, no seu Artigo 6º,
alterações introduzidas pela Lei nº 90/97 de 30 de que o menor ou o adulto incapaz deve ser chamado
Julho e pela Lei nº 65/98 de 2 de Setembro. Por a intervir na medida das suas capacidades, e para
outro lado, o Código Penal refere também, no seu além do seu representante legal. Este artigo realça
Artigo 149º, que “a integridade física considera-se o principio da autonomia da pessoa humana e deve
livremente disponível”, para casos em que a pessoa ser considerado em situações em que o
consinta a ofensa, não sendo então considerado autogoverno da pessoa possa estar limitado.
crime. O CP também nos diz no Artigo 150º que, Na perspectiva do direito civil, uma intervenção
uma intervenção cirúrgica, para “diagnosticar, cirúrgica sem consentimento, pode ser
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considerada violação do direito da pessoa à pessoa quanto às suas crenças e valores. A situação
integridade física, enunciado no Artigo 25º da de internamento em que o Sr. Manuel se encontra,
Constituição da República Portuguesa, e como não deve por si só diminuir ou extinguir os seus
tal originar responsabilidade civil por parte de direitos como pessoa e como cidadão, pelo que
quem operou e auxiliou na intervenção cirúrgica importa suportar e promover a sua capacidade
sem consentimento (Código Civil - Artigos 483º e para decidir e agir.
490º, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344 de 25 A intervenção do enfermeiro, deve seguir
de Novembro de 1966). princípios orientadores, inscritos no CDE,
Considerando ainda a legislação portuguesa, a Lei nomeadamente no Artigo 78º, no seu nº3, alínea
de Bases da Saúde, Lei n. 48/90 de 24 de Agosto, b), que refere “o respeito pelos direitos humanos
estabelece, na base XIV, n.º1 alínea b), que o utente na relação com os clientes” e na alínea c), “a
tem direito a, decidir receber ou recusar a excelência do exercício na profissão em geral e na
prestação de cuidados que lhe é proposta, salvo relação com os outros profissionais”.
disposição especial da lei. No âmbito do seu exercício profissional o
Assim, numa perspectiva legal e reportando-nos ao enfermeiro estabelece com o cliente uma relação
Sr. Manuel, podemos afirmar que, considerando terapêutica, inscrita no Quadro Conceptual da
que o mesmo estava consciente, embora Ordem dos Enfermeiros, como uma relação que
impossibilitado de comunicar verbalmente, se deve caracterizar “pela parceria estabelecida
podendo no entanto fazê-lo por mímica gestual, no com o cliente, no respeito pelas suas capacidades e
momento em que foi informado da intenção do na valorização do seu papel. Esta relação
médico de realizar a traqueostomia, seria apenas desenvolve-se e fortalece-se ao longo de um
ele que poderia decidir se queria ou não realizar a processo dinâmico, que tem por objectivo ajudar o
intervenção cirúrgica. Como já referimos o Sr. cliente a ser proactivo na consecução do seu
Manuel respondeu que não, embora utilizando em projecto de saúde”.
vez da comunicação verbal ou escrita, a mímica O Regulamento do Exercício Profissional dos
gestual, que não foi considerada como válida pelo Enfermeiros (REPE), explicita no Artigo 8º, no nº
médico, que posteriormente pede a autorização da 1, que no “exercício das suas funções, os
família para a realização da traqueostomia. enfermeiros deverão adoptar uma conduta
O enfermeiro assiste a este episódio. Questionemo- responsável e ética, e actuar no respeito pelos
nos então sobre qual deve ser a sua intervenção. direitos e interesses legalmente protegidos dos
com o CDE, Artigo 78º, no seu nº1, devemos Será que no caso do Sr. Manuel, a sua vontade
garantir, como já referimos, que “as intervenções livremente expressa, embora de forma diferente
de enfermagem são realizadas com a preocupação dos contextos habituais, se pode considerar válida?
da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa Poderá nalguma circunstância ser contrariada?
humana e do enfermeiro”. Isto quer dizer que
devemos respeitar e reconhecer as opções de cada
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O consentimento é um dos aspectos fundamentais gestual, não a valorizou, e deu por encerrada a
da relação entre os profissionais de saúde e os conversa, referindo que era necessário realizar a
clientes, uma vez que salvaguarda o respeito pela traqueostomia, “para seu bem”.
Assim parece óbvio que qualquer intervenção que o doente se encontrava (ventilado,
através do seu consentimento livre e esclarecido. da sua decisão, não tendo a mesma sido valorizada.
A segunda condição relativa à informação foi
Segundo Nunes et al. (2005:212), o consentimento
cumprida tendo o doente sido informado, mas ao
do cliente surge, “submetido a várias condições: 1)
estar impossibilitado de colocar questões e
deve ser voluntário, livre de qualquer manipulação
esclarecer as suas dúvidas poderá ter
ou coacção externa; 2) deve ser baseado em
comprometida a compreensão da informação,
informação correcta que o doente compreenda; 3)
contribuindo para a sua decisão. Assim, ao Sr.
deve ser o acto de uma pessoa competente para
Manuel, dotado de autonomia individual, não lhe
tomar decisões e com capacidade para comunicar o
foi permitido exercer a sua autodeterminação, ou
seu desejo.”
seja, a liberdade de escolha relativamente às
No caso do Sr. Manuel, este foi informado pelo opções que lhe eram colocadas.
médico da necessidade de realização da
O direito e o dever de consentir ou não consentir,
traqueostomia, como forma de diminuir a sua
protegidos eticamente, deontologicamente e
dependência da prótese ventilatória e promover
juridicamente, foram neste caso prejudicados pela
um desmame mais rápido. O doente foi também
existência de barreiras à comunicação, uma vez
informado de que esta situação seria transitória,
que é através da comunicação que se pode dar e
embora se desconhecesse por quanto tempo, mas
receber informação. Entramos assim na área do
não foi informado sobre outras vantagens da
direito a receber informação e dever de dar
traqueostomia, como a possibilidade de poder
informação, uma vez que é através da informação
eventualmente alimentar-se e falar. O Sr. Manuel
que o doente deve ficar capacitado para poder
ouviu e parece ter percebido a informação,
decidir consentir a intervenção proposta, ou
demonstrando estar atento durante a explicação. O
recusá-la.
médico após transmitir a informação não
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Os doentes divergem muito entre si quanto à Enfermagem”. Aqui são realçados o dever de
atitude que têm face à acessibilidade à informação. informar e de garantir o direito da pessoa ao
Uns preferem saber toda a informação de forma a consentimento informado, sendo claro, o teor da
ponderarem e a tomarem as suas decisões. Assim a informação – os cuidados de Enfermagem.
informação de que dispõem permite-lhes um maior Relativamente a quem informar Cerdeira
controlo e uma maior capacidade para gerirem a (2008:14) refere: “informar o indivíduo ou não
situação. Outros preferem receber a informação informar por opção do próprio cliente. Informar a
gradualmente para não entrarem em desequilíbrio. família se ela for o alvo dos cuidados, ou, não sendo
Desta forma desenvolvem as suas capacidades alvo de cuidados, deve o enfermeiro assegurar-se
gradualmente de acordo com a informação que vão de que a informação à família é facultada ou não,
recebendo. Existem ainda doentes que recusam de acordo com a vontade expressa do indivíduo,
qualquer informação não ultrapassando a fase da salvaguardando-se as situações em que o princípio
negação. da beneficência se põe”.
Cerdeira (2008:14) refere que “relativamente à A informação é tudo o que diminui ou elimina a
informação, segundo a legislação, esta deve incidir incerteza e só é possível obter informação das
sobre o diagnóstico e a índole, o alcance, a coisas sobre as quais temos algum nível de
envergadura e as possíveis consequências da desconhecimento.
intervenção ou do tratamento”.
Assim concluímos que em relação à informação a
A Lei de Bases da Saúde, na sua base XIV, nº 1, dar ao Sr. Manuel, o enfermeiro só o poderia fazer,
alínea c), salienta que os doentes têm direito a “ser em matéria de cuidados de Enfermagem, e aqui
informados sobre a sua situação, as alternativas poderia acrescentar à informação do médico
possíveis de tratamento e a evolução provável do aspectos relacionados com as vantagens da
seu estado”. traqueostomia no que concerne à possibilidade de
No caso do Sr. Manuel não nos é possível saber se se alimentar e de comunicar verbalmente, caso,
este obteve a informação que necessitava, ou se, como vimos, o doente o solicitasse. Para isso o
simplesmente, não queria informação, não estando enfermeiro deveria utilizar estratégias que lhe
a sua decisão dependente desta. permitissem ultrapassar os obstáculos à
consagra no seu Artigo 84º, o “respeito pelo esclarecimento de dúvidas, no âmbito de uma
direito à autodeterminação”, devendo o enfermeiro relação terapêutica caracterizada por uma parceria
assumir o dever de “a) informar o indivíduo e a estabelecida com o cliente, no respeito pelas suas
A salientar ainda algumas excepções à informação como “a aptidão cognitiva, volitiva e emocional de
a prestar, como as situações de emergência, uma pessoa para entender a informação sobre
quando o doente está em perigo ou incapaz de se cuidados de saúde que lhe é transmitida, de forma
exprimir ou de avaliar a situação, também as a que possa eleger, autónoma e racionalmente, o
situações em que a pessoa recusa de forma que mais convém aos seus interesses – aceitar ou
voluntária receber informação e ainda situações recusar a prestação destes cuidados, com base na
em que possa ser exercido o chamado “privilégio informação que lhe foi transmitida” (Lampreia,
terapêutico” previsto no Artigo 157º do Código 2008:18).
Penal, que refere existir o dever de esclarecer Segundo Pereira (2004), a competência deve ser
“salvo se isso implicar a comunicação de aferida caso a caso e a incompetência para decidir
circunstâncias que a, serem conhecidas pelo poderá ser meramente pontual, pelo que se impõe
paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam que o profissional de saúde afira sempre da
susceptíveis de lhe causar dano à saúde, física ou competência para decidir a quem é proposta a
psíquica” (Cerdeira, 2008:14). O caso do Sr. Manuel prestação de cuidados de saúde (Lampreia, 2008).
não se enquadra em nenhuma destas excepções.
Para Lampreia (2008:19), sendo a competência
Portanto em relação à segunda condição para decidir autónoma, a pessoa a quem são
pressuposta pelo consentimento informado, propostos cuidados de saúde deve ter capacidades
referida anteriormente, podemos considerar que intelectuais e emocionais para assumir uma
ao Sr. Manuel foi fornecida a informação relativa à decisão, referindo que “o facto de uma pessoa não
traqueostomia e este, após ser esclarecido, reunir as condições cognitivas, volitivas e
expressou a sua vontade, de não querer realizar a emocionais necessárias para se autodeterminar em
intervenção. relação aos cuidados de saúde que lhe são
A última condição que promove um consentimento propostos, impõe a obrigação ao profissional de
ou dissentimento livre e esclarecido diz-nos, como saúde de declarar a incompetência dessa pessoa
referimos, que o consentimento deve ser o acto de para consentir ou dissentir sobre os cuidados
uma pessoa competente para tomar decisões e com propostos”.
capacidade para comunicar o seu desejo. No caso de se verificar situação de incompetência
Relativamente à capacidade, a lei em vigor ou incapacidade para consentir, deverá ser
considera a pessoa capaz para prestar designado judicialmente um representante legal.
consentimento, quando é maior de dezasseis anos Lampreia (2008) refere ainda três situações em
e possui o discernimento necessário para avaliar o que o regime legal, diminui ou restringe a
seu sentido no momento em que o presta capacidade da pessoa para consentir, e que são os
(Cerdeira, 2008), ou seja, para que as decisões casos dos interditos (todos os que sofram de
sejam uma expressão fiel da sua autodeterminação, anomalia psíquica grave, surdez-mudez e cegueira
importa que sejam tomadas com consciência. e que se mostrem incapazes de governar as suas
Galan Cortés (2001), define competência ou pessoas e os respectivos bens, nos termos do nº 1
capacidade para consentir nos cuidados de saúde do Artigo 138º do Código Civil), dos inabilitados
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(indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez meio que traduza uma vontade séria, livre e
ou cegueira, não seja de tal modo grave que esclarecida do titular do interesse juridicamente
justifique a interdição e indivíduos em que exista protegido e pode ser livremente revogado até à
abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, execução do facto”.
que se mostrem incapazes de reger o seu Para qualquer acto deve então obter-se o
património, nos termos do disposto no Artigo consentimento do doente, que pode ser oral ou
152º do Código Civil – nestes casos a capacidade escrito não existindo distinção do ponto de vista
para consentir na prestação de cuidados de saúde ético, pelo que o formulário de consentimento é
só poderá ser posta em causa quando na sentença apenas uma formalidade com utilidade jurídica,
que decretou a inabilitação esteja mencionada essa que pode ser usado como prova documental
incapacidade) e dos menores de dezasseis anos (Nunes et al, 2005).
(conforme nº 3 do Artigo 38º do Código Penal).
Como vimos, no nosso caso o médico pede
Também aqui, verificamos que o Sr. Manuel não se
consentimento escrito à família, através de um
enquadra em nenhum destes grupos.
documento de consentimento informado o que é
Podemos concluir que o julgamento sobre a incorrecto do ponto de vista ético e jurídico, uma
competência de uma pessoa permitirá determinar vez que o doente é o único que pode ou não
entre aquelas cuja decisão será respeitada e as que consentir a realização da traqueostomia.
terão que ser substituídas na decisão por um
Se o Sr. Manuel estivesse inconsciente, e não se
representante legal.
tivesse manifestado, poder-se-ia presumir o seu
Reportando-nos novamente ao nosso caso, parece- consentimento. O consentimento pode ser
nos que o Sr. Manuel estava na posse de todas as presumido, equiparando-se na lei ao
suas capacidades para tomar a decisão, com consentimento efectivo, nos termos do Artigo 39º,
excepção da capacidade de a comunicar nº 2 do Código Penal, “quando a situação em que o
verbalmente. De qualquer forma o julgamento agente actua permitir razoavelmente supor que o
sobre a sua capacidade para decidir por parte do titular do interesse juridicamente protegido teria
médico não lhe foi favorável. Poderia o médico eficazmente consentido no acto se conhecesse as
nalguma circunstância decidir pelo doente ou circunstâncias em que este é praticado”( Nunes et
substitui-lo pela esposa na sua decisão? al, 2005). Neste caso quando a situação do doente
Como já referimos anteriormente, as intervenções se agravasse, exigindo a realização da
cirúrgicas não constituem ofensa à integridade traqueostomia, procedimento sobre o qual o
física, desde que sigam a leges artis e tenham o doente não se tinha manifestado, poder-se-ia
consentimento do doente, nos termos do Artigo presumir legitimamente o consentimento. Mas na
150º do Código Penal. verdade e apesar de no momento em que a esposa
Acresce ainda que o consentimento é referido na assinou a autorização, o Sr. Manuel se encontrar
legislação portuguesa, no nº 2, do Artigo 38º do num estado de coma induzido, inconsciente, não
Código Penal, nos seguintes termos: “ 2- O invalida a recusa do doente presenciada pelo
consentimento pode ser expresso por qualquer médico e enfermeiro, numa altura em que
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eventualmente mantinha as suas capacidades para outros técnicos, para atingir um objectivo comum,
decidir. decorrentes de planos de acção previamente
Quando não é possível obter consentimento do definidos pelas equipas multidisciplinares em que
melhor interesse do doente, se possível atendendo No nosso caso como já vimos, em relação à
às preferências, crenças e valores que tiver realização da traqueostomia, situamo-nos no
manifestado. Por melhor interesse do doente, âmbito das intervenções interdependentes. Como
entende-se a restauração ou preservação das devemos actuar?
funções vitais, o alívio do sofrimento e a Cerdeira (2008:16) em relação a esta questão
manutenção da qualidade de vida” (Nunes et al, refere que “o enfermeiro que, na sua intervenção
2005: 215). interdependente, se apercebe que o doente não
De acordo com o princípio da autonomia, o doente prestou o consentimento escrito, quando a lei exija
terá direito a decidir de livre vontade submeter-se a forma escrita ou mesmo verbal, quando a lei não
ou não a um tratamento ou intervenção, devendo exija a forma escrita, deve abster-se de intervir,
respeitar-se a sua vontade, mesmo que essa recusa providenciando o cumprimento do processo de
seja prejudicial à sua saúde. obtenção do consentimento informado (ou
conforme o Artigo 81º, alíneas e) e f), “abster-se representantes legais. Ou seja, o enfermeiro deve
pessoa assistida e não lhe impor os seus próprios compreendem a informação na qual baseiam o
filosofia de vida”, “respeitar e fazer respeitar as Uma intervenção sem consentimento pode ter
opções políticas, culturais, morais e religiosas da consequências jurídicas.
pessoa e criar condições para que ela possa No nosso caso concreto, não podemos avaliar se
exercer, nestas áreas, os seus direitos” e conforme médico e enfermeiro colocaram em dúvida a
o Artigo 84º do CDE, alínea b), assumir o dever de competência e liberdade do Sr. Manuel, quando
“respeitar, defender e promover o direito da este expressou a sua decisão de recusar a
pessoa ao consentimento informado”. traqueostomia. Não está também totalmente
De acordo com o REPE, os cuidados de esclarecido se o Sr. Manuel percebeu na totalidade
Enfermagem podem ser intervenções autónomas a informação que lhe foi transmitida,
ou interdependentes (nº 4, Artigo 4º, REPE). O nomeadamente sobre as consequências da não
Artigo 9º do REPE, define intervenções realização da traqueostomia, e vantagens de que
interdependentes, como as “realizadas pelos poderia beneficiar com a realização da mesma.
enfermeiros de acordo com as respectivas Mesmo que tivesse tido dúvidas não poderia
qualificações profissionais, em conjunto com
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Percursos, nº 21 Julho-Setembro2011
esclarecê-las facilmente, uma vez que estava respeitada. O enfermeiro estabelece com o doente
impossibilitado de comunicar verbalmente. uma relação terapêutica caracterizada pela
Nunes et al (2005:216) refere que “não havendo parceria que estabelece com o cliente, no âmbito
doente na situação actual, a decisão dos respeito pelas suas capacidades e pela sua vontade,
profissionais deve considerar o melhor interesse que embora expressa por mímica gestual, deve ser
Assim, tanto o médico como o enfermeiro estão para decidir pelo doente, se considerarmos que o
salvaguardados na sua tomada de decisão. doente estava consciente. Nesse caso, se a vontade
do doente foi manifestada, embora através de
No entanto o médico pediu o consentimento para a
comunicação gestual, em perfeito estado de
realização da traqueostomia à esposa. A expressão
consciência, e se correspondia à recusa da
formal da vontade de terceiros, autorizando actos
realização da traqueostomia, nenhuma outra
médicos, só é válida se estivermos perante o
pessoa poderia posteriormente decidir por ele. Se
representante legal do doente, que não era o caso.
era essa a vontade actual do doente, se
No âmbito jurídico, a autorização de um familiar
considerarmos que é competente e esclarecida,
não iliba o profissional de ter agido, contra a
deveria ser respeitada. Não sendo este caso
vontade expressa do doente (Nunes et al., 2005).
vivenciado por nós, não sabemos se foi colocada
Nestas situações complicadas e perante a em dúvida a competência e liberdade do Sr. Manuel
necessidade de tomar uma decisão, “o enfermeiro para decidir a recusa à intervenção. Poderá ainda
deve agir de acordo com a preocupação da defesa questionar-se se o doente estaria na posse de toda
da liberdade e da dignidade da pessoa humana, no a informação necessária, nomeadamente em
respeito pelo Código Deontológico e na relação aos riscos inerentes à recusa, uma vez que
concretização dos princípios que consagram os estando ventilado não podia questionar
direitos dos doentes” (Nunes et al., 2005:216). verbalmente e esclarecer as suas dúvidas.
Como vimos não foi isso que aconteceu…o médico interdependentes. A tomada de decisão do
solicitou a autorização da esposa. Juridicamente, enfermeiro, adequada a cada situação concreta,
como vimos, a expressão formal da vontade de deve ser feita no sentido da excelência do seu
terceiros, autorizando actos médicos, só é válida e exercício profissional e para que tal aconteça o
tida em conta, se estivermos perante o enfermeiro tem que considerar os valores da
representante legal do doente, e no caso estávamos profissão e os princípios éticos, assim como os
perante um familiar directo, que ética e legalmente deveres inscritos no Código Deontológico e as
não deve decidir pelo doente. normas legais existentes. Cada caso deve ser
necessidade de tomar uma decisão, deverá fazê-lo experiência do enfermeiro, englobando também
de acordo com a preocupação da defesa da uma perspectiva científica, mas não só, uma vez
concretização dos direitos do doente, onde deve deontológica e jurídica, pois só assim estará
respeitar os princípios éticos que suportam esses garantida a excelência dos cuidados.
da sensibilidade ética e moral para que a sua Porto: Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade e
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