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VOL 3 PÁGINA 1
A divina
paródia de primeira parte seja superior por nela haver mais da
brasa daquela filosofia essencial que arde no peito deste
emaranhando, mas não somos nós que lhes seguramos ritualismo, o cavalheirismo e a idolatria, um orgulho
as pontas. A filosofia de Cervantes alardeia ao mundo a espantoso e uma humildade tão espantosa quanto estão
ciência, muito mal-entendida e a cada dia mais esquec- embrenhados no que há de mais íntimo e entranhado
ida, porém divina e salutar sempre, de se cuidar da em nossa imaginação. Cervantes, a brandir um realis-
própria vida. Defende o grandioso e mui pragmático mo intrépido, fez o seu herói bailar uma dança de
paradoxo de que o menor dos deveres calha de ser degradação por através das armadilhas e das encruzil-
também o maior; que é muitíssimo universal assar um hadas de intenções deste mundo selvagem, fê-lo rolar
bolo ou balançar um berço, e geralmente muitíssimo em fossos e lhe espancou o lombo com porretes. Mas o
vulgar e provincial tomar para si o controle do univer- fato é ainda o mesmo: nós lemos Dom Quixote pois
so. Esta enorme hospitalidade do cérebro de Cervantes, somos, todos, cavaleiros andantes; lemo-lo pelo sonho
esta prontidão a admitir que a ilegalidade mesma não de Dom Quixote, e sem este sonho a história inteira
era outra coisa senão uma guerra de uma centena de haveria de ser tão enfadonha e ordinária quanto as
justiças, é o que lhe dá o seu enorme lugar na literatura. crônicas de Camden Town.
O que lho dá não é, em qualquer nível preeminente, seu Dom Quixote, pois, é parte de todos nós, e parte aliás
estilo. O lugar que lhe cabe Cervantes o deve ao fato de que nunca se irá embora e haverá de dar um bom
esta sua imparcialidade ser a alma da grande literatura, bocado de trabalho a quem nos queira amarrar para
pois o papel da literatura é conhecer todos os homens e sempre em qualquer constituição política ou filosofia
julgar homem algum. Julgam-se os mortos, e as criatu- sintética. O cavaleiro lhe perpassa o romance como o
ras da literatura jamais deveriam morrer. inimigo daquela civilização que julga ser o melhor
Pode-se encontrar exemplo de coisa que está na mesma remédio para todas as coisas entregá-las a uma institu-
posição inescrutável e portanto eterna de Dom Quixote ição. Na história ele é o último indivíduo; lhe corre
nas Bacantes de Eurípides. Ali também estamos às pelas veias o individualismo dos irlandeses. Se injustiça
voltas com uma guerra travada por um senso comum está a ser feita não lhe parece nem um pouco menos
robusto e justo contra um feroz, fugidio e inclassificável razoável cortar o malfeitor ao meio do que escrever
arroubo religioso. Ali, também, no final ficamos sem uma carta à Sociedade para a Prevenção de Crueldade
saber quem estava certo, e sem saber se o autor daquela com Crianças. Confiar a base inteira de nossa civili-
peça obscura a escrevera como um entusiasta beato ou zação a esta justiça algo boçal já seria absurdo; porém
um cético escarnecedor. Em Dom Quixote, contudo, a ainda mais absurdo, a longo prazo, será ignorá-la ou
questão se faz mais clara. O cavaleiro andante pertence arrancá-la pela raiz. Pois o todo deste nosso mastodon-
à nossa civilização, e entre esta civilização e a civili- te colossal de leis e restrições pende, no final, deste
zação antiga há um largo abismo. A loucura de Dom único fio de valentia visionária. O nosso ideal social é
Quixote se nos afigura menos maluca do que a sani- tão ousado e fabuloso quanto os desvarios de Dom
dade da antiguidade. As fanfarradas e disparates que o Quixote, e não há muito a se escolher entre a sua inves-
fizeram arremeter contra moinhos de vento e aniquilar tida contra os moinhos e a nossa investida contra a
ovelhas nos são menos m onstruosas e imbecis do que enorme roda do Mundo.
muito amor e tradição seguidos, em plena luz do dia,
por filósofos os mais sublimes nas ruas de cidades as
mais sublimes. Pois o cerne da questão é que as loucu-
ras de Dom Quixote nos correm nas veias; somos, e isto
irrevogavelmente, filhos da Idade Média. A aventura e o
Lincoln Ricardo Baptista - lincolnbaptista@hotmail.com - CPF: 018.157.720-85