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Lincoln Ricardo Baptista - lincolnbaptista@hotmail.com - CPF: 018.157.

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A divina
paródia de primeira parte seja superior por nela haver mais da
brasa daquela filosofia essencial que arde no peito deste

Dom Quixote grande romance. A fim de o compreendermos de fato


temos que trazer à mente a energia espiritual de que,
como em todos os livros, a história é apenas o produto
É O DESTINO PECULIAR que cabe às coisas com e o símbolo.
centenas de anos de idade que nós tenhamos de
tratá-las com a mais prodigiosa austeridade mesmo A grandiosa verdade que está no coração mesmo de
quando são, em si mesmas, perfeitamente hilárias e Dom Quixote é a verdade que o conflito do mundo é,
simples. Veneráveis doutores da Igreja passam as vidas principalmente, um conflito entre bens. A batalha que
a estudar antigos potes e panelas romanos, cujas répli- travam o idealismo de Dom Quixote e o realismo do
cas lhes vão penduradas nas próprias cozinhas, e a dono da taberna é peleja tão calorosa e incessante que
editar e anotar antigas pantomimas gregas que haveri- dali saímos certos de que ambos têm de estar com a
am de peticionar, em nome da decência pública, ao razão. Uma filosofia vulgar se põe a lamuriar a perversi-
Conselho do Condado, para que fossem banidas e proi- dade do mundo. Quando, porém, entramos a refletir
bidas. um pouco, logo notamos que a confusão da vida -- que
a sua dúvida e turbilhão e responsabilidade vertiginosa
À mente apenas literária soa-lhe coisa tão ociosa tratar -- resulta sobretudo da enorme quantidade de bem que
Dom Quixote como assunto para eruditos quanto há no mundo.
tratar tal qual The Bab Ballads ou The Innocents Abroad. Há muito a se dizer a favor de todos; há pontos de vista
A literatura celebra a juventude eterna da humanidade; demais; verdades demais a se contradizerem umas às
na literatura, todos os homens são iguais, em século outras, amores demais que se odeiam uns aos outros. A
tanto quanto em posição. Os sentimentos com que lida nossa terra não é, como disse Hamlet, um "jardim
estão sempre frescos; em seu extravagante império um inculto", mas sim jardim sufocado pela desordem de
inglês pode apaixonar-se por uma antiga princesa egíp- flores negligenciadas. A eterna glória de Dom Quixote
cia, e de acordo com suas leis um homem pode tomar no mundo literário é ele lograr balancear perfeitamente
por esposa a sua avó. Pode-se ler Dom Quixote a uma mesmo estas duas escalas: o misticismo do Cavaleiro e
criança sem prefácios ou explicações; a história conta a o racionalismo do Taberneiro. Por debaixo de toda a
sua própria história; e se lhe há mais do que a maior perspicácia superficial e o júbilo paupável da história há
parte de nós jamais ali encontrou, há que se buscar o uma outra sorte de ironia, tanto mais profunda -- e
segredo obscuro na história e não nas notas de rodapé. tanto mais velha. Mais velha do que o mundo. É a ironia
que nos diz estarmos a viver num mundo enlouquece-
A segunda parte de Dom Quixote, que é no geral
dor e desnorteador, no qual vamos bem; e que a batalha
relegada a posição inferior à primeira, é-lhe na verdade
da existência desde sempre tem sido qual a batalha do
superior em muitos aspectos de construção e veros-
Rei Arthur em meio à neblina, em que "amigo tombava
similhança, ainda que lhe esteja abaixo quanto a
amigo, sem saber a quem tombava."
episódios ridículos, à força burlesca e aos efeitos mais
óbvios do humor. Eu me abalanço, porém, a questionar Eis aí idéia excelente para se criar juízo, e de modo
se a superioridade que Goethe e Lamb lhe encontraram algum lúgubre. Dificilmente poderá haver livro mais
na primeira parte baseava-se apenas naquele pitoresco humano e inabalável do que Dom Quixote, mais imbuí-
absurdo que dá ao torneio dos moinhos de ventos e ao do duma suposição larga e elemental de que a natureza
castelo-boteco aquele viço eterno. Provável é que a humana é boa. Os fios de nossa vida se vão cruzando e

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emaranhando, mas não somos nós que lhes seguramos ritualismo, o cavalheirismo e a idolatria, um orgulho
as pontas. A filosofia de Cervantes alardeia ao mundo a espantoso e uma humildade tão espantosa quanto estão
ciência, muito mal-entendida e a cada dia mais esquec- embrenhados no que há de mais íntimo e entranhado
ida, porém divina e salutar sempre, de se cuidar da em nossa imaginação. Cervantes, a brandir um realis-
própria vida. Defende o grandioso e mui pragmático mo intrépido, fez o seu herói bailar uma dança de
paradoxo de que o menor dos deveres calha de ser degradação por através das armadilhas e das encruzil-
também o maior; que é muitíssimo universal assar um hadas de intenções deste mundo selvagem, fê-lo rolar
bolo ou balançar um berço, e geralmente muitíssimo em fossos e lhe espancou o lombo com porretes. Mas o
vulgar e provincial tomar para si o controle do univer- fato é ainda o mesmo: nós lemos Dom Quixote pois
so. Esta enorme hospitalidade do cérebro de Cervantes, somos, todos, cavaleiros andantes; lemo-lo pelo sonho
esta prontidão a admitir que a ilegalidade mesma não de Dom Quixote, e sem este sonho a história inteira
era outra coisa senão uma guerra de uma centena de haveria de ser tão enfadonha e ordinária quanto as
justiças, é o que lhe dá o seu enorme lugar na literatura. crônicas de Camden Town.
O que lho dá não é, em qualquer nível preeminente, seu Dom Quixote, pois, é parte de todos nós, e parte aliás
estilo. O lugar que lhe cabe Cervantes o deve ao fato de que nunca se irá embora e haverá de dar um bom
esta sua imparcialidade ser a alma da grande literatura, bocado de trabalho a quem nos queira amarrar para
pois o papel da literatura é conhecer todos os homens e sempre em qualquer constituição política ou filosofia
julgar homem algum. Julgam-se os mortos, e as criatu- sintética. O cavaleiro lhe perpassa o romance como o
ras da literatura jamais deveriam morrer. inimigo daquela civilização que julga ser o melhor
Pode-se encontrar exemplo de coisa que está na mesma remédio para todas as coisas entregá-las a uma institu-
posição inescrutável e portanto eterna de Dom Quixote ição. Na história ele é o último indivíduo; lhe corre
nas Bacantes de Eurípides. Ali também estamos às pelas veias o individualismo dos irlandeses. Se injustiça
voltas com uma guerra travada por um senso comum está a ser feita não lhe parece nem um pouco menos
robusto e justo contra um feroz, fugidio e inclassificável razoável cortar o malfeitor ao meio do que escrever
arroubo religioso. Ali, também, no final ficamos sem uma carta à Sociedade para a Prevenção de Crueldade
saber quem estava certo, e sem saber se o autor daquela com Crianças. Confiar a base inteira de nossa civili-
peça obscura a escrevera como um entusiasta beato ou zação a esta justiça algo boçal já seria absurdo; porém
um cético escarnecedor. Em Dom Quixote, contudo, a ainda mais absurdo, a longo prazo, será ignorá-la ou
questão se faz mais clara. O cavaleiro andante pertence arrancá-la pela raiz. Pois o todo deste nosso mastodon-
à nossa civilização, e entre esta civilização e a civili- te colossal de leis e restrições pende, no final, deste
zação antiga há um largo abismo. A loucura de Dom único fio de valentia visionária. O nosso ideal social é
Quixote se nos afigura menos maluca do que a sani- tão ousado e fabuloso quanto os desvarios de Dom
dade da antiguidade. As fanfarradas e disparates que o Quixote, e não há muito a se escolher entre a sua inves-
fizeram arremeter contra moinhos de vento e aniquilar tida contra os moinhos e a nossa investida contra a
ovelhas nos são menos m onstruosas e imbecis do que enorme roda do Mundo.
muito amor e tradição seguidos, em plena luz do dia,
por filósofos os mais sublimes nas ruas de cidades as
mais sublimes. Pois o cerne da questão é que as loucu-
ras de Dom Quixote nos correm nas veias; somos, e isto
irrevogavelmente, filhos da Idade Média. A aventura e o
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