Você está na página 1de 338

1

2

• ! " • #

$ % % & ' • ( ) • ( * # *

( &+ # *' •( % , •& -


) - *. •) •/ 0

) ' * . • 1 " • 1

% $ • % • - % ,

Editora Práxis
1ª Edição

3
+$ + #
+$ +$ % % & '
+$ +( )
+$ +& % *
+$ +) # #
+$ + , &
+$ + % * )
+$ +
+$ + "
+$ + 1
+$ +
2+ $ 2+ % #

$ 3 * 4 - 4 5*3 6

5, - 7776

4
• !" #!$ % !
$ 8/ 9 :*; + $ 9 & ( 4
8 ;) 4 ( 4 : # ( " + %< ) 9 ( 0
< - ) ( 4 % * - 5 )( %*6+ " -
( 1 - ' 5 (16+ 9< # # +% ' 0 = <
) ( 4 +

• $ &' ()
$ *. >" < 9 : ( ? - " ) 4
*. + * * 4 ( 1 - ' 5 (16?
" - ) 9 9 0 ) - ( 4 5) ()6 ) 9 0 < -
9 3 4 5) 3>: 6+ 1 - # # 9 0 9 - # 8
( * 4 5 , * ">:& 6+

• *
$ *. 9 : # 35 ' ; - 6?
*. < 9 : 3* " 4 *. 9 : ( + : #
( % +@ - ( 1 - ' 5 (16 ?
9 9 = - ' ? ? - 4 ? 9 - ' +

• ! + ! ,
$ ( 4 9 :& *? 8 ;$ 9 & * : #
+ $ 9 . ( : # 1 8 &
5:1& 6? 8 ;) 4 1 5 )1(6 ) 9
( 0 1 - ' ?( 4 1 5)(1(16+ " - )1
( ( 1 - ' 5 (16+ 0 - < 9 4 9 ?
8 + ; # # 9 8 ? ;
= ?
9 - ( + ? ! ?9 -
9 ( +A B < +

• "- .
$ *. 9 : 3* " ? 8 ;$ 9 : ( > 0 +
$ 9 *. : # & :- C +% ) 9 0
D1 - ' ? < DE - ( 1 - ' 5 (16E " -
' # * < " F ?" ( 0 / 8 B% * +
? . 1 8 ? *. < ? . 1 <
" * 9 C + # ! " # $ ?9 ( +
(F9 9 ? % &'( ) * + " * "
,-.. ? 9 - 9 ($:&:? # 9< # 9 8 +

• " ,/ ! % *
$ ( 4 9 : 3* " ? " ( 4 4 / ? - 9
: # ( " + $ 9 ( 4 : # (
G* 9 # <>& &3 + ( 4 ? . < ( ?
9 0 - =' 8 4 - E9 < 9 - E 4 #
+

• * ( (
$ ( 4 9 : ( >" < ? ( 4 9 : # (
" 4 9 : # ( % + $ 9
( 4 : # ( % + ( 4 ? . < )
( 4 ?9 0 - 4 E 4 - ' 9 8 E 4
- ' E9 < 4 9 +

5
• !
% *. 9 :*>* 9 " ( 4 9 : 3* " ?
$ ( 4 +" - ) 9 ( 0 /3 1($, 5/ ?
( 4 , 6 : 3* " ? ) 9 ( 0 " F ?/ 8 ?1 9 %#
( 4 ( 1 - ' 5 (16+

• ,/0 # (' .
$ 9 : ( 9 $ 9 9
: ( >* 9 " < +

• - + 0 1 2
$ ( 4
8 ?9 < =' 9 :*; + * ( 4 :& %E
8 ;) 4 ( 4 , 5 )(>:& %6 8 ;
) 4 ( 4 5 )(>: 6+ " - ) 9 ( 0 - 1 - ' ?( ?
( 4 5) ;1( (6 )1 H1 - ' ( 4 I ( + #
9 8 9< # ? - C
9 - 9 ($: 3 ( 1(+

• - '+'
$ ?- ' *. < ?9 : 3* " +
* ( 4 % : # ( 5*(%>: 3 ( 1(6? 9 &
3 4 ? 4 8 ;) 4 '
' ?* & + %< H) 9 0 ( ? ?1 - '
( 4 I 5*(%>: 3 ( 1(6? 9 0 H) 9 0 ( - " 1 - '
" I 53&*/>: 3* " 6 - ( 1 - ' 5 (16+ # /
# 0 12 3 3 ?9 - 9 ( + (F9
9 +

• 3' ! !
$ *. 9 : 3* " ? 8 ;$ 9 : 3* " 9
(/( > + : 3&( >* 9 ) ' +" - '
# & 4 5 6 ? 5 7 + # = 8 5 6
9 ?9 - 9 ( + - ' : / 4
4 ?9 - 9 ($:* ? # 9<
# 9 8 < + 9 1 8
1 - ' +

• 4 -' ! '( 2
" ( 4 9 :& * * 9 :&:+ *.
3 & (
4 ?*. 1 1 C " 53&1"6? 9
:- - +3 ) 9 0 1 - ' ? < 5) 1 >:&:6+
? 1 - ' 1 - ' ( 4 ? - & 4 - '
& 4 +

• " '(
$ : 3* " + $ 9 9 ( 4 3
" 9 :& ? 9 9 4 0 8 ;) 4 ( 4 ?
* F * 9 C $ 9 5 )( 6 8 ;) 4 ( 4
< 5 )( 6+ %< ) 9 0 - 1 - ' ? < 5)1 >:& 6? -
( 1 - ' 5 (16 )1 H1 - ' ( 4 ( + ;
# # 9 8 ? # '
; -2 ? 9 - 9 ( + ? # '
< 9 - 9 ( F +

• % ! )' 5'
" ( & 9 ( ( : > - ? -
$ ( & + : # (
5: 3 ( 1(6 ( 1 - ' 5 :( 1>: ; - 6?
# - - ' +

6
• ' " + '!
$ ( 9 4
:*; ? 8 ;$ 9 : # J , +
* *. ( 4 8 ;) 4 ( 4 :& *+ " -
# KL " ; ( 5 ( 4 9 6E )1 (
( 1 - ' 5 (16+ # # ? - # =9 $
&% =? 9 - 9 ( +( 9?
; # = " = =
=? - 9 - 9 ( + F +

• ' 6 7. ' ! (
" ( 4 9 : # & :- C ? *. +

• 89
$ 9 : ( >* 9 0 + $ 9 / 8
: # ( G* 9 # < 5& &3 6+ 9 0
- # 8 4 1 - ' 5 16 - ( 1 - ' 5 (16+
?/ 8 *. < ? . 9 = # ?
4 9 # ? - ? 4 ? - ' F<# ' +

• .
$ #4 9 : ( >* 9 & + :& *? 4
8 ;) 4 #4 +1 F9 . #4 ? .
? 9 9 = #4 ? - '
- ?9 +

• 0 !
" *. 9 : ( >* 9 " < ? - $ *.
+ 1 / 8 / 8 * 9 C : # ( G
* 9 # <>& &3 - ( 4 +" -
( 1 - ' 5 (16 ) 9 0 D( ) - 4 D+

7
8
SUMÁRIO

! " # $ %

& ' ( ) $
!

* ( + , $
) -
! " #

. / 0 !
$ % &
' ( )

% " #
% &

1 " # ' 2 .
* +

3
1*
,

9
! " # $
% #
- " # , 44 445$
' -%
& "
$ -

/ 6 %
) .

7 # $8 ) 8 (
' **
$ & ! - .
/0

! 3 9:"
; ( 1+ --1 %*
% 1 .

" # < $ (
, !- - !-*
$ ,

* 5 = ) !
-

10
PREFÁCIO:
educação mutilada e vulnerabilidade laboral na
sociabilidade contemporânea

E
ducação, sociabilidade e trabalho são comumente tratados
como termos antinômicos na Sociologia do mainstream.
Desde a compartimentação disciplinar entre, por exemplo, a
Sociologia da Educação e a Sociologia do Trabalho, até ao
estudo das sociabilidades num nível estritamente fenomênico e
superficial (vejam-se os importantes mas claramente insuficientes estudos
do interacionismo simbólico de Goffman e de Becker), torna-se evidente
a importância deste livro em romper com essa compartimentação
disciplinar – que acarreta compartimentações conceptuais e analíticas – e
com a tendência vigente em abarcar os fenômenos sociais precisamente a
partir do seu lado mais visível, sem nunca procurar integrá-lo numa
perspectiva de totalidade. Nesse sentido, este livro contribui fortemente
para ajudar a superar esse estado de coisas. Em suma, o livro procura
retomar e resgatar teses de totalidade e de complexidade enunciadas por
autores clássicos como Marx ou Lukacs, mas as projetando num plano,
digamos, mais concreto onde se entrecruzam categorias analíticas densas
e a construção de objetos empíricos de estudo relevantes. No fundo,
realizando uma combinação entre um patrimônio teórico riquíssimo e a
necessidade de adequar essas ferramentas conceptuais à compreensão do
novo dentro do (capitalismo) já existente.
A esse título, a primeira parte deste livro evoca, entre outros
aspectos, uma categoria central na sociologia marxista clássica: a crise
estrutural do capital. Sendo esse um conceito que ganhou forte ampliação
a partir da obra “Para além do capital” de Istvan Mészáros, a verdade é
que o capitalismo (e, por inerência, a humanidade) se encontra num
contexto de encruzilhada. De um lado, o capital evidencia fortes
dificuldades para manter uma taxa média de lucro capaz de evitar a sua
tendência para a sua diminuição. Por outro lado, a destrutibilidade e a
irreversibilidade do sistema de produção de mercadorias sob a égide do
capital, demonstram que o capital não passará a um modo de produção

11
qualitativamente novo de forma automática. Portanto, a passagem de uma
sociedade capitalista para uma sociedade socialista não só implicará a
construção de novas relações de trabalho – os produtores livres e
associados – como igualmente implicará, previamente, o
desenvolvimento de novas formas de sociabilidade humana que sempre
surgem (e sempre surgiram) no decurso das lutas populares e operárias
contra o capital: a solidariedade e a construção progressiva de uma
igualdade substantiva.
Por conseguinte, a crise do capital desaguará em duas possíveis
alternativas. Ou o capital continua a determinar a ofensiva política,
ideológica e econômica no plano da luta de classes. Isso implicará o
aprofundamento dos mecanismos de exploração do trabalho,
nomeadamente, a partir da aposta na fragmentação da classe trabalhadora
mundial decorrente de processos técnico-econômicos – a reestruturação
produtiva – e de processos ideológicos – o empreendedorismo e a
transformação do trabalhador num agente personificado de constante
interiorização dos mecanismos de sua vendabilidade no mercado. Ou
então a classe trabalhadora suplanta o atual contexto de forte retração
social e se alavanca a uma condição de sujeito histórico coletivo e
mobilizado pelos seus interesses em torno do emprego, da saúde pública,
da previdência e, claro está, por uma educação que lhe dê ferramentas
para os indivíduos se realizarem de um modo integral, pleno e sem os
constrangimentos imputados pelo capital.
Na segunda parte, o livro foca um aspecto paralelo do triângulo
trabalho, educação e sociabilidade: a produção de conhecimento e de
saberes como uma mercadoria. Ou seja, não só se trata de analisar os
mecanismos de captura da subjetividade pelo capital, mas também de
descortinar os processos pelos quais o capitalismo incorpora o saber
como um produto do trabalho assalariado, logo, como uma mercadoria
portadora de valor, de mais-valia. Nesse campo, o capital necessita que o
trabalhador que lida com este domínio da atividade econômica e social
seja capaz de articular polivalência – decorrente de uma formação
escolar/académica prévia definida para tal – e capacidade de tomar
decisões, em nome individual, no intuito de incrementar ainda mais o
engajamento do trabalhador no processo de produção de novas
mercadorias e de novos produtos. No fundo, no paradigma da
acumulação flexível, não só o trabalhador é colocado em crescentes

12
situações de contratos individuais de trabalho, como a própria
operacionalização no local de trabalho coloca a tônica no indivíduo. Não
no sentido de o autonomizar do poder do capital, mas precisamente
porque ele incorpora, por via da escola e da formação profissional, todo
um comprometimento com a produção de mercadorias, o indivíduo
trabalhador vai ter de responder isoladamente aos constrangimentos
evocados pela dinâmica da acumulação de capital inscrita em cada
unidade produtiva. Com efeito, a atomização da classe trabalhadora não
só decorre de uma necessidade de ampliar a polivalência inerente ao
modelo toyotista, como é também uma ferramenta simbólico-ideológica
de grande alcance. De fato, os níveis de conformação (e de conformismo)
que o capital conseguiu definir nos trabalhadores são de tal ordem que
organizações sindicais outrora combativas e organizadoras dos interesses
dos trabalhadores como a Central Única dos Trabalhadores, hoje se vêem
completamente enleadas e amarradas a um sindicalismo de negociação e
capitulação coletiva.
Ora, quando o capital prevalece na determinação das políticas
educativas – objeto de estudo da terceira parte – denota-se o uso da escola
como possibilidade (ilusória) para resolver as suas contradições
econômicas e sociais de base. De fato, e principalmente em momentos de
crise, as políticas educativas surgem como argumento ideológico para
tentar, de um lado, formatar massas de jovens trabalhadores num espírito
menos reivindicativo e consciente dos seus direitos e, de outro lado,
colocar a tônica na mudança das mentalidades e na necessidade do
aumento da qualificação acadêmica e da formação profissional como
supostos remédios para as dificuldades de lucratividade do capital. Em
suma, não só o capital busca formar força de trabalho disponível de
acordo com a divisão internacional do trabalho que imprime a nível
internacional como, em simultâneo, as políticas educativas se afiguram
como essenciais para o condicionamento ideológico e cultural de grandes
massas – que se querem ver individualizadas e em plena e constante
competição – de jovens trabalhadores. A esse título, o papel de
instituições nacionais e internacionais (como o Banco Mundial, por
exemplo) é de sobremaneira nuclear para os desígnios de implementação
e aprofundamento das lógicas mercantis na educação.
Termino esta pequena introdução e apresentação do livro chamando
a atenção para o principal mérito de todos os textos: a contribuição para

13
desnaturalizar e desmontar as falácias de uma falsa universalização e
essencialização do capital, como se tratasse de algo inerente à condição
humana. Como se a educação tivesse de ser sempre uma formação
unilateral e virada unicamente para o mercado (da força) de trabalho.
Como se a sociabilidade tivesse de se constituir continuamente em
patamares de estranhamento. Como se o trabalho fosse uma categoria
meramente técnica e desprovida de outra significação que não fosse a
exploração capitalista.
Assim, este livro tem o mérito de ajudar estudantes, pesquisadores e
ativistas em desconstruir o domínio da naturalização do status quo, na
medida em que esta dimensão se encontra frequentemente presente nas
ideologias dominantes, pois, cabe a estas justificar a sua existência não
apenas para as classes dominantes, mas também para toda a restante
população. Não podemos deixar de considerar que, como argumenta
Wallerstein,

Não se trata de conferir um estatuto de pureza moral e ontológica às


classes dominadas como se de agentes redentores ou messiânicos se
tratassem. Na realidade, queremos apenas chamar a atenção para a maior
probabilidade de as classes sociais subalternas procurarem rejeitar os
princípios opacos da universalização e da naturalização no decurso da sua
produção ideológica própria. Esta maior probabilidade refere-se, por um
lado, em relação às classes dominantes e, o que é mais relevante, quando
são capazes de se constituírem historicamente como agentes coletivos. A
constituição das classes populares como sujeitos coletivos política e/ou
socialmente mobilizados passou quase sempre pela contestação e
questionamento das ideologias dominantes, isto é, pelas pretensões destas
à eternização e à inevitabilidade históricas. Daí que tenhamos colocado
esta questão em termos probabilísticos e não como uma essência classista
inata, ela própria universalizante e naturalizante. E esse é, entre outros, o
propósito e o mérito deste livro. O de questionar a ordem do capital. O de
desnaturalizar os seus eixos simbólico-ideológicos de legitimação. O de
ressaltar os veios complexos por onde se move a “condição de

14
proletariedade” (Giovanni Alves). E o que pode parecer pouco é, nestes
tempos de barbárie social protagonizada pelo capital, muitíssimo.

! ,> 12,2

! " # $ % &!"#$% '


( # ) * + , -
" . * /" &".*"' * * 0
1 122 3

15
16
PARTE I
Trabalho, Precarização e Sociabilidade no
Capitalismo Global

17
18
DA ATIVIDADE HUMANA SENSÍVEL À
CIÊNCIA REAL UNIFICADA
*

!" #
$%&'() *+,+ *--.

O TRABALHO COMO CATEGORIA FUNDANTE DE ANÁLISE DA SOCIEDADE


HUMANA.
Na contemporaneidade a irracionalidade burguesa avança a passos
vastos, as concepções científicas de todas as áreas do saber mostram-se
capacitadas para responder as necessidades de um modo de vida que
sobrevive entre a plena realização da coisa (fetiche do capital) e a
barbárie social. As possíveis respostas para os fenômenos sociais e
naturais que afligem a humanidade estão presentes em todas as ciências,
mas os abismos entre a realidade social e suas percepções científicas
geram concepções caóticas. Os “paradigmas” científicos explicam o
homem tentando buscar sua essência, mas não compreendem que a
essência humana deve ser encontrada no conjunto das relações sociais,
pois “a essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo
isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais” (MARX;
ENGELS, 2007, p. 534).
Diante de todas as propostas ilusionistas do pensamento social
contemporâneo, ousamos afirmar que o trabalho como categoria
fundante de análise da sociedade humana é a base sobre a qual podemos
nos aproximar da essência humana, no caso, do conjunto das relações
sociais. Marx (1999, p. 11), nas Teses sobre Feuerbach, faz uma

. - ) ) " ) " % #
" * 4 %#"*
5 6 $ 7, &589: ;8' ) < 1
=> ) <
? . @ . A

19
afirmação teórico-filosófica de seminal importância, que inaugura a
concepção materialista-dialética da história:
6 ? 4
# 0 4 B/ C
0 01 B 01 2 C
34 D 5
- E 0 )
4

0 # -
0 B 01 2 C -
D
- B 6 76 2 C B C &F.GHD
>I $" J;;: KL:'
Ao reconhecer a atividade sensível do homem e sua dependência
inseparável entre sujeito e objeto, o mundo torna-se palco da ação
humana pelo trabalho, a explicação sobre a realidade social passa a ser
compreendido como a relação específica entre ambos. Para Chasin (1995,
p. 395), o mérito marxiano “foi a precisa identificação ontológica da
objetividade social – posta e integrada pelo complexo categorial que
reúne sujeito e objeto tendo por denominação comum a atividade
sensível”. O homem, ao confirmar seu ser, sanciona, simultaneamente, o
seu pensamento, pois “o ser do homem é o ser de sua atividade, assim
como o seu saber é o saber de seu ser ativo”.
O homem, por meio de sua atividade sensível, o trabalho, desperta as
forças da natureza e aprimora os seus conhecimentos. Na medida em que
o homem se apropria da natureza pelo trabalho, faz com que a própria
natureza seja transformada segundo os seus interesses e necessidades
sociais. Nesse sentido, o mundo natural é o palco e o momento da práxis
humana e se torna, por conseguinte, no mundo social. Parafrasendo
Lukács (1981, p. 54):
8 9 : : 8 9)
;;
0

" < :

20
Para compreender o homem nas suas intrincadas relações com o
mundo, partimos da discussão sobre o trabalho e entendemos a atividade
sensível do ser como uma das dimensões da vida humana que revela a
humanidade, pois é pelo trabalho que o homem transforma o meio natural
e satisfaz as suas necessidades sociais. O trabalho é a relação constante e
eterna de o homem afirmar o seu ser e o seu saber e assegurar o seu ser
vivente no mundo. De acordo com Marx (1983, p. 39): “Atividade
sistemática visando a apropriação dos produtos da natureza sob uma ou
outra forma, o trabalho é a condição natural do gênero humano, a
condição – independente de qualquer forma social – da troca de
subsistência entre o homem e a natureza”. Tal afirmação enfatiza o
trabalho – atividade sistemática – como a mediação indispensável do
homem com a natureza e o meio de apropriar-se dos recursos necessários
à produção e reprodução de sua vida.
As indicações marxianas situam o trabalho como o processo
recíproco de interação entre o homem e a natureza. Processo em que é
afirmada a ação humana sobre o mundo. O homem, ao relacionar com a
natureza, objetiva-se por meio das forças do seu corpo, com o intuito de
apropriar-se dos recursos naturais disponíveis. Esta interação possibilita
ao homem, ao mesmo tempo, transformar a natureza e a si mesmo. A
relação entre homem e natureza proporciona o desenvolvimento das
potencialidades humanas e, consequentemente, submete a natureza ao seu
domínio. Nesse processo ocorrem transformações recíprocas e
aprimoramento da atividade sistemática. Por esta questão: “L’essenza del
lavoro umano, invece, sta nel fatto che, in primo luogo, esso nasce nel
mezzo della lotta per l’esistenza e, in secondo luogo, tutti i suoi satdi
sono prodotti dell’autoattività dell’uomo” (LUKÁCS, 1981, p. 13).
No entanto, o trabalho é a mediação ineliminável do homem com a
natureza, que objetiva suprir as carências humanas, sejam elas materiais
ou espirituais. No processo de apropriação da natureza, o ser começa a
produzir os seus meios de vida e a si mesmo, pois ao objetivar-se pelo
trabalho ele não só supri suas carências imediatas como também cria
novas carências, que vão se complexificando ao longo da história da
humanidade. O ato de externação da vida pelo trabalho nunca é algo
acabado em si mesmo, mas um processo de constantes superações, pois o
próprio processo de trabalho cobra novos avanços. O homem que o
executa ao dar respostas para determinada situação cria necessariamente

21
novas perguntas, que nunca serão respondidas definitivamente. Se
acreditarmos que as respostas dadas pelo homem, por meio do processo
de trabalho, fossem acabadas em si mesmas, estaríamos negando a
capacidade teleológica do homem de negar a condição dada, e pré-
idealizar uma nova forma de produção e reprodução social.
A constituição do homem como ser que dá respostas às suas
perguntas, tendo como finalidade suprir suas carências, é condicionado
por suas características corporais e a principal é a capacidade teleológica.
O pôr teleológico é o momento exclusivo do trabalho, em que o homem,
na sua relação objetiva com a natureza, já tem construído idealmente o
que ele pretende tornar concreto. Esse momento de pré-ideação, com um
fim direcionado, resulta num produto final, que o homem já tinha
idealizado antes de tornar concreto. Claro que o processo do pôr
teleológico sofre as influências das condições reais de existência. Ou
melhor, toda maneira possível de dar vida à idealização humana depende,
em primeira instância, das condições materiais estabelecida por
determinada época histórica.
De acordo com Lukács (1981, p.20):
F M N M

M
1 N

ND P N
P
Na concepção marxiana e lukacsiana, o trabalho tem sua forma de
existir na intrínseca relação entre consciência e ato, que se configura em
um momento unitário, o de pensar e transformar. O trabalho é um
complexo unitário formado por dois momentos – ideal e real –, ou seja,
consciência e ato, dois momentos diferentes de uma mesma coisa. Lukács
(1978, p. 04) oferece pistas precisas da relação intrínseca entre idéia e
realidade, que configura o complexo unitário do trabalho. Para ele, a
essência do trabalho consiste precisamente em ir além da fixação dos
seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O

22
momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de
produtos, “mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui,
deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz
Marx, é um resultado que no início do processo existia ‘já na
representação do trabalhador’, isto é, de modo ideal”.
O trabalho, nessa concepção de mundo, apresenta-se como uma
categoria exclusivamente social, em que a posição teleológica se realiza
no âmbito do ser social, como nascimento de uma nova objetividade.
Marx ao conceber o trabalho desta forma, supera a concepção de outros
pensadores como Aristóteles e Hegel que, por exemplo, concebia a
teleologia como uma categoria universal. Para Marx e Lukács, a
teleologia só existe no ser social e, no interior deste, apenas como
momento do processo de trabalho. Marx recusa in limine toda teleologia
no desenvolvimento ontológico global, como também toda teleologia na
história, a teleologia se faz operante somente no interior do processo de
trabalho (LESSA, 2002).
Segundo Lukács (1981, p. 19):
B C . Q
B C ! O M *
4 .
Q 4 &
'

O trabalho ganha vida por meio do pôr teleológico, constituído por


posições primárias e secundárias. Nesse momento, é bom ressaltar que o
homem é um ser concreto e histórico, que realiza uma série de relações
ativas e conscientes com a natureza e com os outros homens. O trabalho,
nessas dimensões – capacidade teleológica primária e secundária –,
constitui o processo pelo qual o homem, por sua própria ação, media,
regula e controla seu metabolismo social.
O trabalho é resultante do processo de transformação social do ser
genérico. Segundo Lukács (1978, p. 13), “[...] o homem deixa a condição
de ser natural para tornar-se pessoa humana, transforma-se de espécie
animal que alcançou um certo grau de desenvolvimento relativamente
elevado em gênero humano, em humanidade [...]”. A posição teleológica
secundária é um processo elevado, em que os homens desenvolvem

23
“capacidades de trabalho” que têm por finalidade “a consciência de
outros indivíduos”, ou seja, trabalhar sobre as “condutas e relações
humanas”. O desenvolvimento da posição teleológica secundária
comprova a seguinte afirmação de Lukács (1978, p. 13) “[...] o processo
em si não tem uma finalidade. Seu desenvolvimento se dá no sentido de
níveis superiores, por isso, contém a ativação de contradições de tipo
cada vez mais elevado”.
A posição teleológica secundária está próxima dos estágios mais
evoluídos da práxis social, como exemplo, faz emergir “[...] a práxis
social alternativa, cujo objetivo é convencer outros seres sociais a realizar
determinado ato teleológico. Isso se dá porque o fundamento das posições
teleológicas intersubjetivas tem como finalidades a ação entre seres
sociais”. (ANTUNES, 2001, p. 139).
As posições teleológicas secundárias constituem momentos de
interação entre os seres sociais que visam ao convencimento e à inter-
relação entre os homens e expressam-se de forma mais complexa. Nesse
sentido, percebemos sua dimensão qualitativa, que se distingue pela
habilidade própria e inerente a toda forma de reprodução social mais
elaborada e complexa. Na medida em que o homem vai aperfeiçoando
suas próprias projeções mentais, sua práxis social vai sendo cada vez
mais intricada. As formas mais complexificadas da práxis social, que
Antunes (2001) nomeia de ações interativas, acabam assumindo uma
supremacia frente aos níveis inferiores, mas estes ainda continuam
permanentemente sendo a base da existência daqueles mais complexos.
Por mais complexificada que seja a práxis social na
potencialização das capacidades teleológicas secundárias, sua
manifestação tem por origem o trabalho como protoforma originária de
toda atividade humana. A autonomia das posições teleológicas é relativa
quanto a sua estrutura original. As relações entre a ciência, a teoria e o
trabalho são exemplos. A ciência e a teoria, mesmo quando atingem um
grau máximo de desenvolvimento, de auto-atividade e de autonomia em
relação ao trabalho, não podem desvincular-se completamente do seu
ponto de origem, não podem romper inteiramente a relação de última
instância com sua base originária. Mesmo sendo complexificadas e
avançadas, a ciência e a teoria preservam vínculos com a busca das
necessidades do gênero humano que são determinadas pelo sistema de
metabolismo societal dominante. (LUKÁCS apud ANTUNES, 2001).
24
INDICAÇÕES SOBRE OS NEXOS CAUSAIS ENTRE TRABALHO, CIÊNCIA E
FILOSOFIA2
As considerações seguintes propõem levantar discussões que têm
como alvo central estabelecer e demonstrar o caráter do trabalho como
elemento fundante de toda práxis social.
A relação do homem com a natureza por meio do trabalho – criador
de valores de uso – é uma condição ineliminável da existência humana. O
homem é um ser natural, ele é um ser que faz parte da natureza e não
podemos conceber o conjunto da natureza sem nela inserir a espécie
humana. Ao mesmo tempo em que se constitui como ser em constante
relação com a natureza, o homem é ativo e produz os seus meios de vida.
Primeiramente o processo de trabalho é objetivado para a produção das
necessidades elementares, ou seja, a sobrevivência. No desenvolvimento
histórico da sociedade humana emergem sistemas de mediações mais
complexas, que se apresentam como resultantes de outros tipos de
necessidades humanas, como é o caso do surgimento de formas ideais de
explicação da realidade social. As idéias – capacidade teleológica – são
as expressões das relações e atividades reais do homem estabelecidas no
processo de produção de sua existência social.
O homem tem necessidades físicas elementares, historicamente
determinadas e precisa produzir os seus meios de vida. No entanto, suas
ações não ficam estagnadas na mera reprodução biológica, muito pelo
contrário, suas carências, suas necessidades de respostas às condições
objetivas da vida material projetam avanços que potencializam o
desenvolvimento da atividade prática sensível do homem em graus cada
vez mais elaborados. Exemplo disso é a ciência que confirma a existência
das posições teleológicas secundárias na sua ativação com a causalidade.
Conforme Lukács (1981, p. 59 - 60):
B C 4
4
R
01 R

J . )S E - 0
1 =. ) * " ) " 1 A . )
, %> " 2"

25
M
O

A ciência é uma atividade humana originária do trabalho, mais


precisamente uma ação interativa que ganha vida a partir das posições
teleológicas secundárias. Por mais que a ciência se autonomiza, ela tem
sua origem no trabalho e carrega consigo essa relação de ultima instância.
Uma das características essências para o desenvolvimento social e o
surgimento de práxis elaboradas e complexas, é que o homem não se
limita à produção e reprodução imediata das situações com que se depara.
A ação humana não é apenas biologicamente determinada, mas se
estabelece principalmente pela incorporação das experiências e
conhecimentos produzidos e transmitidos entre as gerações. O processo
histórico da humanidade mostra que, em cada uma de suas fases,
encontra-se um resultado material, uma soma de forças de produção, uma
relação historicamente criada com a natureza e entre os indivíduos, que
cada geração transmite à geração seguinte; uma massa de forças
produtivas, de capitais e de condições que, embora sendo em parte
modificada pela nova geração, prescreve a esta suas próprias condições
de vida e lhe imprime um determinado desenvolvimento, um caráter
especial. “Mostra que, portanto, as circunstâncias fazem os homens assim
como os homens fazem as circunstâncias.” (MARX; ENGELS, 1999, p.
56).
Segundo Marx (1982, p. 206 - 207):
B C )
4 4 )
)
) ,

)S )
-,
) 6
) )
)S
)S

26
?
)
)S
* T , 1

.
)S )S
)S ,

A transmissão das experiências e conhecimentos – através da


produção material e, por conseguinte, da educação, da cultura e da
linguagem – permite que, no homem, as gerações posteriores sejam, de
certa forma, favorecidas ou prejudicadas pelas relações sociais
produzidas pelas anteriores. Esse processo constante de humanização da
natureza vai adquirindo a marca da ação humana. Tal relação é recíproca
e causa modificações nas formas de existência do próprio homem. De
acordo com Marx e Engels (1999, p. 67), o mundo não é algo dado
imediatamente por toda a eternidade, uma coisa sempre igual a si mesma,
mas o produto do estágio social, ou seja, a sociedade é “um produto
histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, cada
uma das quais se alcança aos ombros da precedente, desenvolvendo sua
indústria e seu comércio, modificando a ordem social de acordo com as
necessidades alteradas.” A interação homem-natureza-socialidade é um
processo permanente de mútua transformação, o que torna o processo de
produção da existência humana em constante mudança e nunca
finalizado, mas na permanente busca dos meios para satisfazer a
necessidade humano-social.
Para Lukács (1981, p. 28 – 29):
B C M 0
> M
* N

N N
& ' $ N
D M
, M
D
M N
0

27
! $
!
R
R R M

Para entendermos esse processo de inter-relações entre o homem-


natureza-socialidade, recorremos à interpretação de Mészáros (2006, 79–
80) que diz que o ponto de partida ontológico é o “fato auto-evidente de
que o homem, parte específica da natureza (isto é, um ser com
necessidades físicas historicamente anteriores a todas as outras) precisa
produzir a fim de se manter, a fim de satisfazer essas necessidades”. O
homem só pode satisfazer essas necessidades primárias criando
necessariamente, no curso de sua satisfação por meio da sua atividade
produtiva, uma complexa hierarquia de necessidades não-físicas, que se
tornam assim condições igualmente necessárias à satisfação de suas
necessidades físicas originais. As atividades e necessidades humanas de
tipo “espiritual” têm, assim, sua base ontológica última na esfera da
produção material como expressões específicas de intercâmbio entre o
homem e a natureza, mediado de formas e maneiras complexas. Como
diz Marx: “toda a assim denominada história mundial nada mais é do que
o engendramento do homem mediante o trabalho humano, enquanto o vir
a ser [Werden] da natureza para o homem”. A atividade produtiva é,
portanto, o mediador na “relação sujeito-objeto” entre homem e natureza.
Um mediador que permite ao homem conduzir um modo humano de
existência, assegurando que ele não recaia de volta na natureza, que não
se dissolva no “objeto”. “O homem vive da natureza”, escreve Marx,
“significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num
processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem
está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a
natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte
da natureza.” (MÉSZÁROS, 2006, p. 80).
A apropriação e a superação das condições materiais não se limitam
as transformações das velhas necessidades, mas a incorporação das novas
necessidades que passam a ser tão fundamentais quanto as primeiras
necessidades humanas. Em alguns casos, passam até mesmo a equivaler
às básicas para sua sobrevivência. Marx e Engels (1999, p. 70) nos
esclarecem sobre o processo histórico da seguinte forma: “A história nada
mais é do que a sucessão de diferentes gerações, cada uma das quais
28
explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas
pelas gerações anteriores”; ou seja, de um lado, prossegue em condições
completamente diferentes a atividade produtiva precedente, enquanto, de
outro lado, “modificando as circunstâncias anteriores através de uma
atividade totalmente diversa”. Essa concepção de história3 compreende o
homem, tendo como ponto de partida a práxis social, que se origina do
trabalho e que sempre é manifesto mediando uma resposta às suas
carências. Para Lukács (1978, p. 05):
B C , )
+ @

) . , ,
4
) 4

)S T

No processo de dar respostas às suas carências, o homem não produz


apenas meios de trabalho, como também desenvolve conhecimento,
crença, valor, ciência. O conhecimento alcançado em determinado
momento histórico é apropriado pela humanidade e, por este motivo, é
um valor universal passado de gerações para gerações.
O processo de produção da existência humana é um processo social;
o homem não vive isolado, ao contrário, depende de outros, da
comunidade. “Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é
nenhum ser objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um
terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto é, não se comporta
objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo. Um ser não-objetivo
é um não-ser”. (MARX, 2004, p. 127). Os seres sociais são
interdependentes em todas as formas da atividade humana, sejam quais
forem as suas necessidades – produção de bens à sobrevivência,

L = 3
B C
& " 0 = 2' .
A &F.GH J;;U 5JV'

29
elaboração de conhecimento. A relação de carência e reciprocidade entre
os homens é criada, atendida e transformada de acordo com a
organização social de determinada particularidade histórica.
No processo de produção e reprodução da existência humana, o
trabalho é o nexo causal de todas as relações humanas. Ele determina e
condiciona a vida, organizando a produção dos meios e bens necessários.
Essa organização implica maneiras específicas de dividir o trabalho em
determinada sociedade, o que dá origem às relações inerentes aos meios
de trabalho e à apropriação do produto do trabalho. A forma de organizar
a divisão do trabalho, que é composta, principalmente, pelos meios de
trabalho e a força de trabalho, constitui as relações de produção que
compõem a estrutura econômica de uma dada sociedade.
A produção material, apreendendo o trabalho como mediador do
metabolismo da sociedade com a natureza (LUKÁCS, 2003), determina
as formas políticas, jurídicas e, conseqüentemente, o conjunto de idéias
que existem em cada sociedade. A transformação dessa base econômica
ocasiona necessariamente as mudanças em toda a sociedade, o que
implica um novo modo de produção tanto material como espiritual.
A estrutura econômica da sociedade, não compreendida de forma
isolada e rígida, mas dialética, é o determinante fundamental da produção
e reprodução da vida social. Tais relações sociais baseadas no trabalho
estranhado e na propriedade privada, as quais sustentam a sociedade
burguesa, resultam em classes sociais que têm interesses conflitantes. Nas
sociedades em que existem relações envolvendo interesses antagônicos,
as idéias refletem essas diferenças. Embora predominem aquelas que
representam os interesses do grupo dominante, a possibilidade de
produzir idéias que representam a realidade social do ponto de vista de
outro grupo reflete a possibilidade de transformação presente na própria
sociedade. Portanto, espera-se que, num dado momento, os pensamentos
diferentes que protagonizam a negação encontrem o campo de
possibilidades para sua concreção.
Os conflitos travados na materialidade social da sociedade têm suas
expressões na produção espiritual, pois as idéias revolucionárias surgem
do antagonismo entre as classes sociais. Segundo Marx e Engels (1999, p.
73): “A existência de idéias revolucionárias numa determinada época já
pressupõe a existência de uma classe revolucionária [...]”. A oposição não

30
se faz somente na estrutura econômica da sociedade, na qual a minoria
detém a riqueza socialmente produzida e a maioria tem acesso somente à
miséria crescente, mas nas formas de organização e tomada de
consciência da classe revolucionária que começa a produzir
conhecimento que objetiva superar o estado de coisas vigente. A emersão
de outras formas de interpretação da realidade cobra uma ação prática e
transformadora das condições da existência social. Isso é possível quando
as condições objetivas são favoráveis.
As idéias produzidas pelo homem representam grande parte do seu
conhecimento, em relação ao mundo. O conhecimento se expressa nas
suas diferentes formas, podendo ser senso comum, científico, teológico,
filosófico, estético, conservador, reacionário, revolucionário. Mesmo
sendo incorreto ou parcial, ou expressando posições conflitantes, exprime
as condições de existência social de um determinado período histórico.
A ciência, portanto, é uma das formas do conhecimento produzido
pelo homem no decorrer de sua história. A ciência é determinada pelas
necessidades materiais do homem. A ciência caracteriza-se por ser a
tentativa de o homem entender e explicar racionalmente a natureza
humanizada e o homem naturalizado, buscando formular leis que, em
última instância, permitem a atuação plenamente humana.
A ciência do homem é um produto da auto-atividade
(selbstbetätigung) prática do homem (MARX, 2004, p. 157), e está
submetida a determinadas condições históricas. Em toda a sua existência,
ela é criação do homem e, por conseguinte, deveria estar comprometida
em suprir as carências da humanidade. Entendemos que, em princípio, a
principal função da ciência seria desenvolver conhecimentos que
facilitem e humanizem o desenvolvimento social, mas tal objetivo está
muito distante da ciência burguesa que tem sua reprodução submetida aos
interesses do capital.
Após o surgimento da grande indústria e o apogeu da ordem do
capital, a ciência se desenvolveu com objetivos voltados para a
acumulação capitalista. A ciência foi aprimorada para dar respostas
eficientes à produção de mercadorias. As denominadas ciências naturais
é parceira insubstituível da indústria, enquanto que as ciências sociais
desenvolveram sofisticadas tradições apologéticas, com fortes traços
contra-revolucionários.

31
As ciências naturais tiveram avanços memoráveis, mas, quanto
mais desenvolve suas capacidades técnicas voltadas para a produção
capitalista, mais distante fica do conhecimento em prol do homem. Isso
teve resultados imediatos com a separação e a fragmentação do
conhecimento, ou seja, a ciência foi dividida em ciências. Temos as
ciências sociais e as ciências naturais. No caso específico das ciências
naturais, que é mais propícia para dar respostas às condições materiais da
existência humana, a técnica apoderou de sua reprodução e, infelizmente,
ocorreu o distanciamento das ciências sociais. Isso desencadeou a fratura
entre a ciência e a filosofia. A separação entre filosofia e ciência é
essencial, pois a técnica oferecida pela ciência do capital é suficiente para
a ampliação da riqueza insana de uma sociedade alienada, enquanto a
filosofia, desde que não seja a especulativa e contemplativa que se tornou
disciplina isolada, ao cumprir a sua função social, vai desenvolver-se ad
hominem e voltar os seus questionamentos em defesa de uma genuína
condição humana.
A filosofia tem uma tarefa histórica com a prática humana, ou seja, o
seu papel “[...] é estabelecer a verdade deste mundo. A tarefa imediata da
filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação
humana [...].” (MARX, 2005, p. 146). Na contemporaneidade a filosofia
e a ciência estão em campos estranhos, elas não estabelecem relações
entre si para o entendimento do mundo social. A filosofia, pela “cabeça”
dos ideólogos da sociedade burguesa, restringiu-se à especulação e não
tem como objetivo questionar as condições da existência humana.
Enquanto que a ciência está submetida e compromissada com a
acumulação capitalista.
A filosofia e a ciência deveriam estar voltadas para os interesses da
humanidade. Grande parte do “saber filosófico” contemporâneo nada tem
de aproximação com o esclarecimento prático da realidade social e está
distante de ser a cabeça da emancipação humana. O mesmo acontece
com a ciência, pois suas preocupações são privadas e representam os
interesses da atividade produtiva alienada. Segundo Mészáros (2006, p.
97): “O problema imediato de Marx é: por que existe um abismo tão
grande entre a filosofia e a ciências naturais? Por que a filosofia continua
tão alheia e hostil a elas, assim como elas em relação à filosofia?”

32
Observe os comentários de Marx (2004, p. 111-112) sobre as
ciências naturais, sua relação estranhada com a filosofia e seu
desenvolvimento harmônico com a indústria.
.

-
.
< , Q
.
)
&. 7 W '
F
,
)
) . @ )

D ) ?
)

-,
D

Para Mészáros (2006, p. 98), Marx não é guiado por um ideal mal
concebido de remodelar a filosofia com a ciência natural. De fato, ele
crítica agudamente tanto a filosofia como as ciências naturais. A primeira
por ser “especulativa”, e a segunda por ser “abstratamente material” e
“idealista”. Na concepção marxiana, tanto a filosofia como as ciências
naturais são manifestações do mesmo estranhamento. As expressões
“abstratamente material” e “idealista” indicam que a ciência natural é,
“numa forma alienada”, a base da vida humana real, devido ao fato de
estar necessariamente interligado com uma forma alienada de indústria,
correspondente a um modo alienado de produção, a uma forma
alienada/estranhada de atividade produtiva.
A reivindicação de Marx por uma ciência humana nada mais é do
que solicitar uma ciência de síntese concreta integrada com a vida real.
Segundo Mészáros (2006, p. 98), o ponto de vista da ciência humana
proposta por Marx é o ideal do homem não-alienado, “cujas necessidades

33
reais humanas – em oposição tanto às necessidades inventadas
especulativamente como às necessidades abstratamente material,
praticamente desumanizadas – determinam a linha de pesquisa em cada
campo particular”. As realizações dos campos particulares – guiadas
desde o início pela estrutura referencial comum de uma ciência humana
não-fragmentada – são, então, reunidas numa síntese superior que, por
sua vez, determina as linhas subseqüentes de investigações nos vários
campos do saber.
Chasin (1988, p. 45) escreve o seguinte sobre o abismo entre
filosofia e ciência:
.
) ?
1 ,
N ) *
0 , "
,
0 #

) 22 # S )
,
%
) 4 " ;>
D ; ,
) " > 34
A fragmentação e abismo entre ciência e filosofia é o resultado direto
de uma sociedade que se sustenta numa vida social alienada e, por
conseguinte, determina uma série de necessidades alienadas, que são
guiadas pela acumulação privada de capital e, simultaneamente, da
substituição das carências humanas em carências mercadológicas. No
processo produtivo, o homem torna-se objeto de suas próprias criações,
os instrumentos de trabalho submetem o trabalhador às condições ditadas
pela produção e, não ao contrário, o homem submete os instrumentos de
trabalho às suas carências.
Em relação à filosofia especulativa como resultado da socialidade
auto-alienada, temos uma dupla alienação na esfera do pensamento: “[...]
(1) em relação a toda prática – inclusive a prática, por mais que alienada,
da ciência natural – e (2) em relação a outros campos teóricos, como a
economia política, por exemplo.” (MÉSZÁROS, 2006, p. 99). Em sua
34
“universalidade” especulativa, a filosofia se torna um “fim em si mesmo”
e “para si mesmo”, um saber pelo saber, não tendo nada a ver com o
saber para fazer, mudar, transformar. A filosofia torna-se “um reflexo
abstrato da alienação institucionalizada” dos meios em relação aos fins.
Como separação radical de todos os outros modos de atividade, a
filosofia parece ser, aos seus representantes, no caso específico os
apologistas do capital, a única forma de atividade intelectual, sendo
totalmente descompromissada com as mudanças das condições
existentes, ficando satisfeita com a contemplação. Assim, em vez de ser
uma dimensão universal de toda atividade, integrada na prática e em seus
vários reflexos, ela funciona como uma “universalidade alienada”
independente (verselbsändigt), mostrando o absurdo de todo esse sistema
misterioso de todas as especialidades esotéricas, rigorosamente
reservadas aos “sumos sacerdotes” alienados (os Eingeweihten) desse
comércio, que se tornou o saber. Aqui incluem-se a filosofia e a ciência
natural. (MÉSZÁROS, 2006, p. 97-99).
" , = A
,
, =
A ?
,
1 )
)
F ? = ) A
&FX"YZG6" J;;9 88'
A filosofia e a ciência, pela cabeça dos “intelectuais” da burguesa,
não conseguem vislumbrar o seu compromisso histórico com a
humanidade. Quando cobramos o compromisso da ciência e da filosofia
perante a humanidade, queremos reivindicar uma questão crucial que é a
transformação da sociedade, pois teoria e prática são campos das mesmas
condições de existência do homem. Se a produção e reprodução das
relações sociais são alienadas, ou seja, os valores que deveriam ser
atribuídos ao homem são atribuídos às coisas, é porque os homens, que
são criadores e criaturas de tais relações sociais, não atingiram a
maturidade e o momento histórico em que a filosofia e a ciência terão
como principal objetivo a superação da auto-alienação humana. A
questão não é remodelar a ciência ou a filosofia, mas, de acordo com
Marx, é instaurar uma ciência humana, ou seja, o que está em pauta é

35
uma situação prática. Observe as argumentações de Marx (2004, p. 112)
em defesa de uma ciência humana:
. & # '
.
0 0 4
4
. = A - 0
= A
&( T ' ) 2
.

+ ,
,
1 , [[H[6 -
D 0
&
? '
? D
?
F -
6 - 4
4 )
0 D -
) - B ) C

6
? )
0 .
? S
Em qualquer modelo que temos em mente de filosofia e ciência, sua
“aplicabilidade” dependerá da totalidade da prática social, pois é ela que
produz, em toda situação sócio-histórica, as necessidades materiais e
intelectuais. Mészáros (2006, p. 108) nos esclarece que a realização do
ideal de Marx de uma ciência humana pressupõe a existência auto-
sustentada (“positiva”) de tais necessidades no corpo social. A própria
formulação do ideal de Marx, em contraste, corresponde à necessidade de
negar – em seus aspectos teóricos – a totalidade das relações sociais de
produção existentes. A reivindicada ciência humana torna-se uma
realidade na medida em que a alienação é suprimida praticamente e assim
a totalidade da prática social perde seu caráter fragmentado. “Nesta

36
fragmentação, a teoria é contraposta à prática e os campos particulares
‘da atividade essencial estranhada’ – tanto teórica quanto prática –
opõem-se mutuamente”. Para a realização da ciência humana, todas as
ciências fragmentadas, ou seja, a filosofia, a economia política, as
ciências naturais etc. devem ser integradas reciprocamente. O mesmo
deve ocorrer em relação à totalidade de uma prática social, a qual não
mais será caracterizada pela alienação e reificação das relações sociais de
produção. Pois a ciência humana é precisamente essa integração dual -
“como transcendência da alienação dual vista anteriormente – dos
campos teóricos particulares: 1) entre si mesmos; 2) com a totalidade de
uma prática não alienada.” (MÉSZÁROS, 2006, p. 108).
Os obstáculos postos no caminho para a realização da ciência
humana não são mais do que a supressão da alienação na prática social. A
ciência “abstratamente material” e a filosofia “especulativo-
contemplativa” são produto da prática social alienada, portanto a
superação da alienação na prática social é inconcebível sem superar, ao
mesmo tempo, as alienações nos campos teóricos. O processo efetivo de
superação (Aufhebung) ocorrerá no movimento dialético entre o teórico e
o prático na busca pela reintegração recíproca.
Em relação às manipulações/obstáculos sofridas pelo saber em busca
de uma ciência genuinamente humana, Lukács (1981, p. 123 - 124)
afirma o seguinte:
B C R

R M
R R
0 R

N B C
@ \

De acordo com a elaboração marxiana, a superação da ciência e


filosofia, que pouco respondem às carências do gênero humano, só
ocorrerá quando o terreno da vida social prática e, conseqüentemente, do
37
pensamento aceitar e estiver pronto para as transformações sociais. Os
“problemas” em relação à filosofia e a ciência alienada não serão
superados no pensamento, mas somente na prática social, pois as
insuficiências ou “problemas” do saber sistematizado do homem são
reflexos e expressões da realidade social. O conhecimento fragmentado
do mundo apresentado pelos campos do “saber moderno” é um reflexo
necessariamente alienado da alienação prática. Marx tem um ideal de
uma ciência humana que seria a síntese não-alienada de todos os aspectos
da vida social. A exigida ciência humana de Marx – que é a síntese
superada da filosofia especulativa e da ciência da indústria – seria
orientada por um conhecimento não-artificial e abrangente, mas para o
próprio homem.
Segundo Mészáros (2006, p. 21):
F ? ) ? 0
= A , 4
N
N ) N =
A 4
1 = ) A
? )S
Os críticos de Marx fazem referência às suas preocupações
“filosóficas” e “econômicas”, mas isso não é verdade. As inquietações de
Max em relação à filosofia nunca foram “filosóficas”, mas sempre
humanas e práticas, como também, o seu interesse pela economia política
nunca foi meramente “científico-econômico”, mas humano e prático.
(MÉSZÁROS, 2006, p. 214). Para Marx, tanto a filosofia como a
economia política foram, desde o início, imersas em uma aflição humana
prática. De acordo com Mészáros (2006, p. 213), nos Manuscritos
Econômico-Filosófico de 1844, Marx não estava menos interessado em
“economia política” do que em seu Robentwurt ou em O Capital. Nas
últimas obras, mesmo se preocupando com a crítica à economia política,
o autor continuava fazendo “filosofia”– o seu tipo de filosofia, é claro, tal
como nas obras de juventude e nos Manuscritos de Paris. Os estudiosos
que negam isso tendem a identificar grosseiramente o humano com o
“econômico”, ou aqueles que, em nome de abstrações psicológicas
mistificadas, tratam com extremo ceticismo a relevância das medidas
socioeconômicas para a solução dos “problemas” da humanidade.

38
Os “problemas” da humanidade são práticos e reivindicam um saber
para transformar. A perspectiva de ciência apontada por Marx e seus
principais estudiosos, desvenda um horizonte no qual o conhecimento
sobre o mundo dos homens propõe a superação do saber fragmentado, do
saber especulativo, da ciência voltada inteiramente para a técnica em que
ela é sinônimo de tecnologia e que potencializa, sobremaneira, a
acumulação capitalista.
A proposta de realizar uma síntese não-alienada de todos os campos
do conhecimento é uma tarefa inacabada que tem como principal objetivo
a integração recíproca da teoria e da prática. De acordo com Marx e
Engels (1999, p. 38): “Aonde termina a especulação, na vida real, começa
também a ciência real, positiva, a exploração da atividade prática, do
processo prático de desenvolvimento dos homens. As frases ocas sobre a
consciência cessam, e um saber real deve tomar o seu lugar”. Todas as
conquistas do conhecimento humano da ciência real unificada estarão
voltadas para o aperfeiçoamento do homem e não das coisas, pois a
verdadeira ciência humana nunca chegará a um estágio acabada, mas a
cada nova conquista tem por finalidade o aperfeiçoamento do gênero
humano para o próprio gênero humano.
A tarefa da ciência humana é despertar no homem a sensibilidade
para os “problemas” da humanidade e resolvê-los de modo prático. A
importância da construção de uma genuína ciência humana está em voltar
o olhar para a humanidade por meio da lógica do trabalho. A visão
proporcionada pela lógica do trabalho possibilitará, portanto, a negação e
posterior superação do trabalho estranhado e da vida alienada exercida
pelo homem na ordem burguesa. Portanto, a emancipação do trabalho só
será possível com a revolução socialista e, conseqüentemente, pela plena
extinção da propriedade privada dos meios de produção, o que
possibilitará, no processo histórico de rupturas, os caminhos viáveis e
necessários da construção da sociedade comunista enquanto associação
social de livres produtores associados.

REFERÊNCIAS:
1. ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e
a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001.

39
2. CHASIN, J. Da razão do mundo ao mundo sem razão. Marx
Hoje: cadernos ensaio. São Paulo: Ensaio, 1988.
3. _______. Marx – estatuto ontológico e resolução metodológica. In:
TEIXEIRA, F. Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio, 1995.
4. LESSA, S. Mundo dos homens: trabalho e ser social. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2002.
5. LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social: os princípios ontológicos
fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
6. ______. As bases ontológicas do pensamento e da atividade
humana. Temas de Ciências Humanas. São Paulo: Ciências
Humanas, 1978. v. 4.
7. ______. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Senzala, 1967.
8. ______. Per una ontologie dell´essere sociale. Roma: Riuniti,
1981.
9. ______. Pósfácio (1967). História e Consciência de Classe. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
10. MARX, K. Miséria da filosofia: resposta à Filosofia da Miséria do
Sr. Prodhon. São Paulo: Ciência Humanas, 1982.
11. ______. Contribuição à crítica da economia política. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1983.
12. ______. Manuscritos econômico-filosóficos. Lisboa: Edições 70,
1993.
13. ______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004.
14. ______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2005.
15. ______.; ENGELS, F. A ideologia alemã. 11. ed. São Paulo:
Hucitec, 1999.
16. ______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2009.
17. MESZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2006.

40
PROCESSO DE TRABALHO EM FRIGORÍFICOS
E AS POSSIBILIDADES DE CONSTITUIÇÃO DE
NOVAS SOCIABILIDADES*

INTRODUÇÃO
Ao tratar das novas formas de organização industrial, Antunes
destaca que
* ) @
)

&.>+%> " J;;; K;'


Um produto/mercadoria especial do processo de trabalho capitalista
não escapa desse desígnio: também os ciclos de vida útil da força de
trabalho vêm sendo reduzidos.
Inúmeros estudos inseridos nos campos da sociologia do trabalho e
da saúde do trabalhador denunciam o crescimento alarmante de episódios
envolvendo acidentes e doenças do trabalho em diferentes ramos
empresariais: no setor automobilístico, (MARCELINO, 2004, p. 151-155;
OLIVEIRA, 2004, p. 181-201; FRANCA, 2007, p. 108-110), no
telemarketing (NOGUEIRA, 2004, p. 54-86; COSTA, 2007), na indústria
farmacêutica (RODRIGUES, ALVES, SILVA, 2008), no setor
ferroviário (SELIGMANN-SILVA, 1997), no setor bancário
(MUROFUSE, 2000; GRISCI, BESSI, 2004), na indústria avícola (NELI,
2006; DELWING, 2007; FINKLER, 2007), no setor da saúde

? ?S - !?
0 " 5" 4 ? < 0 34 @ # *> &
F*+2*> ;L2J;;V 4 * Q " " . '
E ) 1Q 0 " & %* " ' - %
# . &%#.$' 1 ]
E # &%" G ' -
% 6 , &% ' 1 ]

41
(MUROFUSE, 2004), na área da educação (GASPARINI, BARRETO,
ASSUNÇÃO, 2005; SGUISSARDI, SILVA JÚNIOR, 2009), no setor
calçadista (NAVARRO, 2006). Nem as empresas públicas escapam deste
processo (BRANT, MINAYO-GOMES, 2009).
A situação não é distinta no setor frigorífico. Delwing (2007, p. 37)
afirma que “[...] a incidência de lesão nos trabalhadores dos frigoríficos é
quase quatro vezes superior em relação aos trabalhadores manuais das
demais manufaturas”.
Para se ter uma ideia da gravidade da situação, os frigoríficos,
juntamente com os supermercados, a indústria de calçados e o
telemarketing foram recentemente apontados pelo Ministério da Saúde
como os setores mais críticos na ocorrência de doenças osteomoleculares,
que respondem por 70% das doenças relacionadas ao trabalho (O
GLOBO5, apud. UNB CLIPPING, 2007).
No caso específico dos frigoríficos, o exponencial aumento dos casos
de acidentes e doenças do trabalho é proporcional ao crescimento
econômico do setor, que ocupa posição de destaque no agronegócio
brasileiro, especialmente pela sua capacidade de internacionalização
(exportações e abertura de filiais no exterior), alavancada nas últimas
décadas. Apesar da crise financeira mundial, as grandes empresas do
setor “[...] se encontram em situação menos preocupante, especialmente
porque receberam aportes do BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social)” (SAMORA, 2009, p. 1). Tais
aportes, além de contribuírem com a estratégia de internacionalização,
também se voltaram para a modernização do setor, conforme atesta
Ramos (2007, p. 162):
. B C
@
B 588;C (>E "
?
- ? -
) )
0 & 0
'

5^ / 0 ) ;: J;;K

42
Um dos mais expressivos ramos do setor frigorífico no Brasil é a
avicultura, voltada especialmente para o abate e beneficiamento de aves.
Neli (2006, p. 36) assevera que “[...] o aumento da intensidade de
trabalho nas indústrias avícolas e as consequências para a saúde do
trabalhador, de modo geral, mostram-se bastante trágicas”. Tal situação
reflete os custos humanos do crescimento econômico de um dos setores
mais lucrativos do agronegócio.
Com base em dados da União Brasileira de Avicultura, Zen (2009, p.
26) argumenta que
. &5; J S
J;;: 59 S
% ' ( 2 ? )S
&L JV9 S ? J;;:
J 95V S ? % '
. J;;: ( 5K;
) U;_
^ ( %
:K_
J;;:
Se pudessem, as aves, enquanto vivas, possivelmente comemorariam
com o empresariado da avicultura a pujança quantitativa e qualitativa do
setor:
> ) " / 0 7 A B "
B J5 - J;;8C ( ? (
( 0
? ) E 0
) , ) N S
,
) @ )
%(. B% ( . C .( # B. )
( ? # C
F .
, E . ,
* F BF . ,
. C F,
)S $,
) S
(
E ) ) %(. .( #

43
- ) `" . B"
F ) . C )
, 0 B C &(G."!$ J;;8'
Os “métodos humanitários” empregados nas empresas frigoríficas
que buscam garantir o “bem estar animal no Brasil” parecem apartar os
homens do rol de cuidados que devem cercar os “seres vivos” envolvidos
na produção. O aniquilamento da saúde por força de uma dada forma de
organização do trabalho destrói não apenas o ser trabalhador, mas
também o ser humano que se manifesta em outras esferas, além daquela
constituída pelo trabalho alienado.
Segundo Neli (2006, p. 81),
6 0 B C
@ )
?
@
) B C ?

&
' , & ,
, '
Apesar de todos os riscos humanos e das consequências para a saúde
dos trabalhadores envolvidos na produção de frigoríficos, Vasconcellos,
Pignatti e Pignati (2009, p. 670) informam que
B C , )
< 2 ) ?
, @ )
a
N )
a ) N S =
A-
)
O breve quadro esboçado nos parágrafos anteriores pretende
apresentar o caráter mais geral que o processo de trabalho em frigoríficos
assume: é um espaço de produção de pessoas adoecidas e até mesmo
inválidas, física e psicologicamente, antes de ser um espaço de produção
de alimentos de origem avícola.

44
A partir deste contexto, trataremos aqui do processo de trabalho em
frigoríficos, com o objetivo de apresentar elementos que indicam a
instauração de formas de sociabilidade que são produzidas no confronto
entre os trabalhadores vitimados por condições de trabalho que aviltam
sua saúde. Para tanto, organizou-se o texto da seguinte forma:
apresentação dos referenciais de análise do estudo; caracterização do
processo de trabalho em frigoríficos, destacando a incidência de casos de
agravo à saúde dos trabalhadores e discutindo suas origens; reflexão
sobre os desafios para a organização dos trabalhadores no contexto atual
e, por fim, apresentação de formas coletivas de enfrentamento dos
trabalhadores de frigoríficos do oeste do Paraná, na luta pela preservação
da saúde.

APRESENTANDO OS REFERENCIAIS DE ANÁLISE


As análises deste estudo constroem-se a partir das relações entre
trabalho, educação e saúde, tomando como referência o processo de
trabalho em frigoríficos.
O trabalho, compreendido como forma de produção da existência
humana (do próprio homem e dos bens materiais e simbólicos), é a
categoria a partir da qual podem ser compreendidas formas de
sociabilidade, forjadas na interconexão das dimensões objetivas e
subjetivas da realidade.
Mészáros (2002), ao tratar da lógica sociometabólica do capital,
explicita que nela prevalecem mediações de segunda ordem, de caráter
predominantemente econômico, que aprisionam e subordinam as
necessidades humanas aos imperativos da acumulação do capital, por
meio da preponderância material do valor de troca sobre o valor de uso,
expressão da subordinação radical deste àquele. A lógica do valor
subsume as mediações de primeira ordem, fundadas nas necessidades
humanas e na prevalência e independência do valor de uso em relação à
troca. Essa lógica é a que caracteriza, em última instância, as diferentes
formas de sociabilidade no capitalismo. Compreendê-la significa rechaçar
quaisquer “[...] concepções da sociabilidade fundadas na
intersubjetividade ou em complexos sociais como a política e o mercado”
(LESSA, 2002, p. 47), para as quais a inserção produtiva do homem na
sociedade deve resultar de relações particularistas e atomizadas.

45
Considerando a essência contraditória da sociedade capitalista – onde
a produção de riqueza (capital) se assenta na exploração material dos que
a produzem (trabalho) –, supõe-se um “[...] desenvolvimento
contraditório da sociabilidade” (SILVA JR; GONZÁLEZ, 2001, p. 109),
sendo esta forjada no embate entre as classes sociais antagônicas. Há,
portanto, formas de sociabilidade capitalista que se tornam hegemônicas,
frente às quais a classe trabalhadora se coloca, seja no sentido de reforçá-
las, seja no sentido de lutar contra elas.
Nessa dinâmica, a educação – compreendida no seu sentido lato de
complexo de atividades que visam socializar o saber (dimensão
gnosiológica) e (con)formar as consciências (dimensão ontológica)
(LUKÁCS, 1981) – se torna processo integrante das aprendizagens,
sistemáticas ou não, do/no trabalho e das formas de agir/reagir frente às
condições de trabalho.
Nas formas de sociabilidade capitalista, produzidas a partir do fato
da alienação humana frente aos meios, aos processos e aos resultados do
trabalho, não cabe ao trabalhador reger e/ou definir as condições de uso
da força de trabalho, vendida como mercadoria e mobilizada em função
dos interesses e necessidades econômicas dos compradores. O panorama
apresentado na introdução deste texto demonstra o quanto este nível de
alienação pode implicar no próprio desgaste físico da mercadoria força de
trabalho, a ponto de torná-la descartável, como vem sendo observado no
processo de trabalho em frigoríficos. Assim, ao se tratar da ocorrência de
agravos à saúde dos trabalhadores, é necessário compreender que
." @
a

)S
0 a
&$.*.Y 5889 U55'
A partir destes referenciais, abordaremos os temas propostos neste
texto.
Para além do imediatismo entre o processo de trabalho e o
adoecimento de trabalhadores: o coletivo interditado pelo capital

46
A importância da avicultura paranaense no país pode ser atestada
pelo fato do estado ser o maior produtor de frangos do país. Em 2007,
B C + . .
! ( I 0 &!(I '
J S
JJ V8_ ) &.F6G!F J;;V
5L'
O oeste do Paraná tem expressiva participação na colocação do
estado na economia nacional. Dos 50 municípios da região oeste do
Paraná, tomada aqui como referência geográfica, em 12 deles há
cooperativas, frigoríficos e abatedouros de suínos, bovinos e aves,
totalizando 35 empresas. Entre estas, o destaque é para a indústria
processadora de carne de aves, com 8 unidades de processamento que
representaram, em 2003, 34,3% do faturamento em todo o Paraná, sendo
a região com maior participação nos resultados econômicos do setor
(IPARDES, 2005, p. 134). Segundo o IPARDES (2003, p. 63-64), “[...] o
segmento de abate de aves é o maior empregador da região, com 13,84%
da mão-de-obra industrial”. Essa importância no desenvolvimento
regional demonstra o grande potencial das indústrias frigoríficas para a
geração de emprego e renda2 (DONDA JR., 2002, p. 54).
Segundo Espíndola (2002), a partir dos anos de 1990, os frigoríficos
do sul do país, e neles os situados no oeste do Paraná3, aprofundaram a
utilização de medidas de modernização que contribuíram para a redução
de custos da produção. Entre essas medidas pode-se citar: reorganização

J 6 0 ,
) & , ) ' .
) )
& , ' . 0 )
.
, )
0 a ) &! )S
, N
'
L . ? 0
? , # )S 0 D
& , '
&E6>E. ^ J;;JD > $! J;;9D E $`!>I J;;:D " b>E6$. J;;:D 6YY6(6> J;;V'
- , 0

47
da produção (especialmente por meio do just in time4), aquisições de
novos equipamentos, inovações dos produtos, mudanças nas estratégias
de relacionamento fornecedor/cliente, melhoramento qualitativo da
matéria-prima, flexibilização das relações de trabalho, implementação de
técnicas de controle de qualidade, etc. Sintetizando os resultados dessas
iniciativas, o autor indica
B C )
?
)S )
,
& " b>E6$. J;;J L'
Esse conjunto de medidas articulou-se com uma estratégia
econômica pautada no processo de internacionalização (exportações e
implantação de filiais em diversos países), num alto grau de integração
vertical (parcerias com aviários, rede nacional de vendas e distribuição de
produtos) e na ampliação das possibilidades de
especialização/diversificação da produção (multiplicidade de linhas de
produtos) (POZZOBON, 2008).
Apesar de existirem diferenças quantitativas e qualitativas entre as
oito empresas frigoríficas situadas no oeste do Paraná, é possível afirmar,
com base nos estudos já realizados e na pesquisa em andamento, que
todas se enquadram num contexto de reestruturação produtiva, na direção
da modernização industrial pautada na organização flexível do trabalho.
Além disso, é uma prática corrente na região o estabelecimento de
contratos de produção entre as empresas5. Isso implica no fato de que,

U 61 ) 0
) -
)S >
0 , 0
) ) , )
N )S
= A N
) & " b>E6$. J;;J L'
K > , , 7
) 0 ? )S X ,
)
= A 0 " )S ,
& ' 0 =.
. ) 5;;_ ? .
? . ,? B

48
independente do tamanho e da posição ocupada pelo frigorífico na
economia do setor, as empresas nivelam os procedimentos e níveis de
exigência da produção, a partir dos requisitos e imposições da empresa
contratante. Dessa forma, a fixação de índices de produtividade e a
padronização de medidas de controle de qualidade atingem os setores
externos (granjas, lavanderia e manutenção – que podem ser atividades
realizadas em regime de “parceria”) e setores internos (administração,
apoio e produção) dos frigoríficos.
Pelas características intrínsecas ao setor frigorífico, considerando-se
especialmente as empresas localizadas na região geográfica analisada,
essa modernização combina um acentuado desenvolvimento tecnológico
e organizacional com a permanência de procedimentos e técnicas de
marca taylorista-fordista, de forma que a presença do trabalho simples (de
pouco ou nenhum conteúdo científico), fragmentado e repetitivo ainda é
uma constante. Este tipo de trabalho – combinado com as diferentes
estratégias de aceleração da produção e de aumento da produtividade –
contribui decisivamente para a ocorrência de incontáveis casos de
acidentes e adoecimento nos espaços laborais, de forma que qualquer
trabalhador, independentemente do setor de atuação (das granjas às linhas
de produção), tem sua condição de saúde ameaçada.
O caso do chão da fábrica, onde ocorre o abate e processamento das
aves, é paradigmático nesse sentido. Ali se encontra mais visivelmente a
fragmentação do trabalho em dezenas de atividades6, num ambiente
extremamente hostil aos trabalhadores.
Em linhas gerais, o trabalho realizado no chão da fábrica das
empresas frigoríficas investigadas apresenta as seguintes características:

C Q - - D
0
A
9 ? ?
0 E ^ &J;;J' >
&J;;9' E 3 &J;;:' G
1 ) & ) '
& 'D ) & 0 @
) 'D & ) 'D &
4 ? ? 'D & @
2 'D D ? ) & ' ,
& 0 ) ) ' &E $`!>I J;;:
KU'

49
repetitividade de movimentos; ritmo de trabalho imposto pela máquina;
invariabilidade do trabalho; posturas inadequadas; uso de força física;
trabalho muscular estático; pressão mecânica; exposição a temperaturas
altas e baixas (dependendo do setor7); convivência com odores fortes;
barulho excessivo; contato com ambientes úmidos por longos períodos de
tempo (mesa de trabalho; chão); manuseio de instrumentos pérfuro-
cortantes. Além disso, a pressão por produtividade exercida pelos
funcionários responsáveis pela fiscalização da produção sobre os demais
trabalhadores interfere na motivação, na atitude e no comportamento
destes, podendo afetar até mesmo sua saúde mental8 (NELI, 2006;
DELWING, 2007).
A necessidade de sobrevivência e o receio da perda do emprego
acabam por obrigar
B C N ?
@
,
) )S &*c.
F%G6#%" J;;V UL;'
Os custos sociais desse momento de sociabilidade do capital – capaz
de combinar flexibilidade e rigidez em prol de margens cada vez amplas
de produtividade, como se observa no processo de trabalho em
frigoríficos – são imensos. Antunes (2000, p. 33) que “[...] em meio a
tanta destruição de forças produtivas, da natureza e do meio ambiente, há
também, em escala mundial, uma ação destrutiva contra a força humana
de trabalho [...]”.

: =. @ 0 )
J;d * S A &> $! J;;9 9L' >
=B C
, KV 9Jd * ) 0
0 KV -
A &E $`!>I J;;: KV'
V6 N @ ? 0
< )S ="
6 ) F " @ &6F"'
)
@ ) e R )S
0 %
) 6 ) 0
A &#G !G J;;V L98'

50
Segundo Cavalcanti e Galvão (2007, p. 274, apud. RODRIGUES,
ALVES, SILVA, 2008, p. 7-8), diversas são as consequências das
relações de trabalho contemporâneas, marcadas pela acentuação
desmedida da precarização do trabalho. Entre elas estão
B C )
- D )
) )
) D )
= A
)
= A
Componentes das formas de sociabilidade do capital que se tornam
hegemônicas neste atual momento de configuração do processo de
trabalho capitalista, tais características defrontam-se, entretanto, com uma
contradição inerente a esse mesmo processo, conforme atesta Yves Clot
(ENTREVISTA..., 2006, p. 103):
* S

S D
- >
, ,
B C 6

0 B C
) )

. 0 )S
@
De fato, o trabalhador coletivo combinado, identificado por Marx
(1985, p. 269) como “[...] o mecanismo vivo da manufatura, compõe-se
porém apenas de tais trabalhadores parciais unilaterais”. Nesse sentido,
como reivindica Yves Clot (ENTREVISTA..., 2006, p. 103), “[...] a
questão do coletivo merece ser aprofundada como uma tendência do lado
do real do trabalho. [...] Isso quer dizer que o coletivo não é qualquer
coisa que deve ser defendido, mas algo que deve ser reencontrado”.
Inferimos que esse “reencontro” passa pela capacidade dos
trabalhadores, coletivamente, interferirem no processo de trabalho,
buscando uma organização e um direcionamento das formas de produção
51
no sentido das capacidades e necessidades humanas, em contraposição às
exigências e imposições resultantes do “fetichismo da mercadoria”
(MARX, 1985). Nas formas de sociabilidade capitalista, entretanto,
qualquer ação coletiva dos trabalhadores nesse sentido se torna objeto de
interdição. Nessa direção segue também a análise de Antunes (2000, p.
48), ao referir-se às formas contemporâneas de sociabilidade do capital:
6
)
)

- )
# ?
01 ,
?
) B C
Para Yves Clot, esse aspecto da sociabilidade capitalista, tecida e
produzida no confronto entre objetividade e subjetividade do trabalho, é o
campo capaz de elucidar a origem e/ou causas da ocorrência de
sofrimento no trabalho.
. @
) 0 ?
. @ ?
) )

S E @

\ )
? 0
*
N , )
? = A &*$6+ J;;J K'
Os aportes teóricos elaborados por Yves Clot obrigam-nos a avançar
no trato das interfaces entre trabalho e saúde para além da conexão
imediata entre tarefas desempenhadas na produção e ocorrência de
acidentes e doenças do trabalho. Decerto que tal conexão é aquela que se
apresenta de forma mais visível e todo estudo que colabore para o
aprofundamento da questão tem validade. Entretanto, reconhecer a
contradição básica entre capital e trabalho como origem das ocorrências

52
de agravos à saúde do trabalhador permite focar a análise em movimentos
do real, protagonizados pelos trabalhadores, que se encaminham na
direção do enfrentamento da raiz da problemática.
O real diz respeito à situação tomada como referência. Yves Clot cita
o estado de precariedade social que se coloca de forma adversa para os
trabalhadores, que lhes “escapa” e lhes “agride” como uma expressão do
real, que não é a única. Também compõe o real “[...] o fracasso de uma
organização do trabalho que os coloca em dificuldade e sobre a qual eles
não podem agir [...], assim como “[...] o fracasso na exploração dos meios
de afrontar a situação e a decepção por sua impossibilidade de se engajar
em uma obra de tessitura comum e individual” [...]. E, dialeticamente, o
real também pode ser representado por potencialidades e/ou
circunstâncias em que “[...] a equipe pode provar coletivamente seu poder
de agir no ambiente e sobre si mesma”. Esse caráter contraditório do
trabalho, apreendido por Clot, é que o leva a afirmar que “[...] No
trabalho, o real se apresenta frequentemente na figura de Janus9. Mas em
todos os casos, o inatingido é essencial” (CLOT, 2002, p. 5).
Seguiremos a análise, orientados por essa compreensão, refletindo
sobre os desafios postos para a organização dos trabalhadores no contexto
atual, considerando, em especial, o tema da defesa da saúde nos
processos de trabalho.

A URGÊNCIA HISTÓRICA DE NOVAS FORMAS DE SOCIABILIDADE


Refletindo sobre as condições adversas vivenciadas pelos
trabalhadores a partir da investida do capital em seu mais recente
momento de crise, Chauí (1997 apud. SILVEIRA, 2005, p. 9) questiona:
6
)

8> ^ S )S
=* ^ * ^
B C^ " ! 0
> . T )S
) ^ ,
? ^ "
0 A &#!GF!>6
J;;: 5'

53
& - '
) f B C \ -

, f* , -
0 ?
F (

) 0 0

, , ? f
A reflexão nos exorta a considerar a complexidade e a gravidade de
um momento histórico bastante adverso para a classe trabalhadora, no
qual a investida do capital contra os interesses e necessidades do trabalho
se ancora, entre outros, na suspeição e na desqualificação de alternativas
societais emancipadoras; tais posturas são assumidas, inclusive, por
parcelas da própria classe trabalhadora e de seus intelectuais orgânicos.
Entendemos ser pertinente compreender tanto as posturas de adesão e
consentimento ao ideário hegemônico quanto as posturas de
envolvimento e resistência dos trabalhadores – conforme adverte Oliveira
(2004, p. 204) – a partir da “[...] confluência histórica entre o
desenvolvimento do capitalismo e a constituição de uma particular
relação de classes [...]”.
Nesse sentido, as alterações operadas pelo capital nos processos
produtivos não esgotam a compreensão dos efeitos que as mesmas
provocam na composição, organização e atuação dos trabalhadores. É
necessário compreender que
B C )S
= / A ,

= / A &6$!g !G. J;;U 98'


Dentre as contrapartidas sociais que vêm merecendo especial
dedicação da classe capitalista é a desestruturação do papel histórico
desempenhado pelos sindicatos de trabalhadores. No caso específico da
luta em defesa da saúde dos trabalhadores, a situação parece ganhar

54
contornos ainda mais complexos, visto que, tradicionalmente, as questões
econômicas, cuja luta salarial é a mais expressiva, são aquelas que
direcionam a ação sindical. Nesse sentido, Lacaz (1996, p. 411) destaca
que, além do abalo do sentido histórico do movimento sindical “[...] nesse
contexto sócio-econômico de flexibilização e informalização das relações
capital-trabalho [...], deve-se considerar
B C -

+ )
S
- )S

* 6
0 .

) a

Diante desse impasse histórico, Antunes (2005, p. 121) sugere a


compreensão de que
6
@
) a
)
) a &
' ) 0 &
'
0

A partir dessas reflexões é que julgamos pertinente destacar alguns


processos coletivos envolvendo os trabalhadores de frigoríficos da região
oeste do Paraná, na luta pelo direito à recuperação e preservação de sua
saúde, luta essa que tem como horizonte o que por ora se mostra como
inatingível, mas que de fato constitui o essencial dos confrontos e
enfrentamentos protagonizados por essa parcela de trabalhadores.

55
DESAFIOS DA AÇÃO COLETIVA: EM BUSCA DE NOVAS FORMAS DE
SOCIABILIDADE
Com a intensificação do ritmo e intensidade de trabalho, combinada
com formas de organização da produção orientadas para o máximo de
produtividade, a incidência de acidentes e doenças do trabalho se agrava
no Brasil ao longo da segunda metade do século XX. Nesse contexto, as
lesões por esforços repetitivos (LER) passam a figurar entre os principais
agravos à saúde dos trabalhadores10:
B C 9; :;
@ D :;
0
D V;
,
B C &F%G6#%" J;;5 JU'
Desde então, no Brasil, o tema da saúde do trabalhador passou a
compor o rol de reivindicações de inúmeros sindicatos, mormente aqueles
cujas categorias são acometidas, de forma mais incisiva, por agravos à
saúde em função das condições de trabalho. Entretanto, esse tema
permanece como “[...] uma verdadeira agenda política a ser assumida
pelo movimento sindical [...]” (STOTZ, 2003, p. 32).
No oeste do Paraná, a ocorrência de agravos e a frágil atuação do
sindicalismo frente à questão também se tornaram realidade. Em
Cascavel, uma das principais cidades do oeste do estado, as dificuldades
encontradas pelos lesionados junto aos sindicatos que lhes representavam
obrigaram os trabalhadores a buscar outras formas de organização, como
aconteceu em diversas localidades do país11. Foi assim que um grupo de
trabalhadores vitimados pelo processo de trabalho criou a Associação de
Portadores de Lesões por Esforços Repetitivos de Cascavel (AP-LER),

5; . $ G ( =B C :;_
) A 6I % &%>( *$! !>I
J;;:'
55 , 0 ? )
@ )S S )
G I , + (
. . % * * . . )
E " @ + &.Eg+2. $ G' , F E g
" @ " ) * + * &F6g!E.' " *

56
em 1997, tendo como principais finalidades a organização da luta coletiva
pelos direitos dos trabalhadores lesionados e a intervenção na realidade
para diminuir os casos de adoecimento em função da organização do
trabalho (ESTATUTO..., 1997, p. 1)12.
Os anos de 1990 registraram grande incidência de casos junto a
bancários e telefonistas, mas em pouco tempo a entidade passou a atender
demandas de trabalhadores dos mais diversos setores13, incluindo
categorias acometidas por outras doenças do trabalho, além das LER14.
Desde sua fundação, a AP-LER vem desenvolvendo uma série de
ações e protagonizando disputas e enfrentamentos em diferentes âmbitos,
podendo ser destacados os seguintes fatos e episódios, entre outros:
• Ações judiciais voltadas para revisão de laudos, perícias e
seguros concedidos pelo INSS; para reintegração de
trabalhadores demitidos indevidamente em função de
adoecimento no trabalho; para concessão de aposentadorias e
indenizações a trabalhadores tornados inválidos por doenças
ocasionadas pelo processo de trabalho;
• Denúncias na Procuradoria Regional do Trabalho sobre
condições indevidas de trabalho em diferentes empresas;
• Representação política em diferentes fóruns, como o Conselho
Municipal de Saúde de Cascavel (CMS)15 e a Comissão
Intersetorial de Saúde do Trabalhador (CIST/CMS);

5J . )S ,
N J;;V
. $ G " * &J;;V'
5L . -,
? ? & '
2 , ? )
,
5U * * + +, &**++'
, @ .
)
) ) ? )
)
5K . ) . $ G * F " @ * 0
*F"
,
& , '

57
• Ações junto à política estadual de saúde, com decisiva
influência na estruturação e consolidação do Centro de Referência
em Saúde do Trabalhador (CEREST) de Cascavel16, na criação do
Conselho Gestor do Centro de Referência Regional em Saúde
do Trabalhador – CEREST/Cascavel, na criação da CIST do
Conselho Municipal de Saúde de Toledo, na criação do Comitê
Macrorregional de Investigação de Óbitos e Amputações
Relacionados ao Trabalho (oficializado pelo CEREST);
• Integração com a Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste), em diversas atividades envolvendo a entidade e
pesquisadores das áreas de saúde e educação, como por
exemplo: realização de seminários, palestras, projetos de
pesquisa e extensão.17
A partir de 2003 a AP-LER passou a ser procurada por um número
significativo de trabalhadores de frigoríficos da região, o que foi avaliado
pelos membros da entidade como resultado de um processo de trabalho
que, apesar de produzir trabalhadores doentes há muitos anos, passou a
ocasionar um expressivo aumento no número de casos de acidentes e
adoecimento em função da agressiva investida do setor no aumento da
produtividade.
A demanda de trabalhadores de frigoríficos mostrava, segundo os
membros da entidade, uma radicalidade ainda maior, se comparada à
situação de outras categorias profissionais mais organizadas, como a dos
bancários, por exemplo. Pelas características das relações de trabalho nos
frigoríficos – marcadas, entre outros, pela contratação de mão-de-obra
pouco qualificada, de baixa escolarização, pelos baixos salários e pela

59 6 * G "+ S * + # ! ) KJ
0 LG "@ ,
5: 6 - ? ) . $ G
% @ )S -
) 0 )S 0
6 . &588V'D F &J;;;D J;;5'D 6
&J;;5'D * F &J;;9'D # 7 &J;;:'D * F &J;;V'D * Y &J;;V'D F
&J;;V'D " * &J;;V'D # 7 * &J;;8'D * F . &J;;8'D Y &J;;8' E
) . $ G
) )S

58
frágil rede de proteção social –, era alarmante o nível de desinformação
dos trabalhadores acerca de seus direitos e dos procedimentos básicos a
serem tomados no caso da ocorrência de acidentes e doenças do trabalho.
Em síntese, o contato da AP-LER com a realidade os trabalhadores de
frigoríficos revelou a situação de abandono experimentada por eles no
encaminhamento de questões relacionadas à saúde/doença: negativa dos
postos do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) em reconhecer os
nexos entre o acidente/doença e o processo de trabalho; inexistência de
cobertura de planos de saúde; dificuldades de dar continuidade aos
tratamentos necessários em função da morosidade das agências públicas
de saúde ligadas ao SUS (Sistema Único de Saúde); demissões por justa
causa a trabalhadores que apresentavam atestados médicos18, etc.
Junto aos trabalhadores de frigoríficos, além das ações anteriormente
citadas desenvolvidas pela entidade, a AP-LER vem protagonizando uma
situação que têm como foco a intervenção direta no processo de trabalho
e que, por este motivo, vem custando à entidade os maiores
enfrentamentos com as empresas e com um sindicato de trabalhadores da
área de alimentação, identificado como “pelego”19 pela atuação conivente
que assume perante as empresas.
A AP-LER realizou inúmeras reuniões com trabalhadores de
frigoríficos e em todas elas a necessidade de intervenção no processo de
trabalho aparecia como a medida mais incisiva para que se buscasse
evitar a continuidade da incidência de agravos à saúde dos trabalhadores.
O percurso definido foi o encaminhamento de denúncias das condições

5V > ,
2 S N .
1 =\ ) )
.
- + )
F
, - - A E
, N 0

58 >
N . ( &5889
VJ' 1 =#
- , "
) ,
)
N ) A

59
de trabalho em frigoríficos à Procuradoria Regional do Trabalho (em
2005 e 2006), que abriu processos investigatórios. Como decorrência, o
Ministério Público do Trabalho firmou um Termo de Ajustamento de
Conduta (TAC)20, obrigando a empresa a implementar inúmeras medidas
nas plantas industriais de 5 de suas filiais localizadas na região, visando
eliminar os riscos à saúde dos trabalhadores. Entre as medidas que mais
afetam a organização e a gestão do trabalho e que constam das cláusulas
do TAC, podem ser destacadas: realização de melhorias para as situações
de riscos ergonômicos; pleno funcionamento do comitê de ergonomia na
empresa, com garantia de participação permanente dos trabalhadores no
processo; instituição de pausas regulares e rodízios nas atividades onde
houver exigência postural, repetitividade, sobrecarga muscular estática
e/ou dinâmica, objetivando a recuperação física e mental dos
trabalhadores; garantia de iluminação adequada, apropriada à natureza da
tarefa; implementação de assentos adequados nos postos de trabalho que
proporcionem aos trabalhadores condições de boa postura, visualização e
operação; garantia aos empregados, a qualquer momento da jornada de
trabalho, da saída do posto de trabalho para que satisfaçam suas
necessidades fisiológicas (ir ao banheiro); promoção do diagnóstico, de
forma precoce, das doenças e dos agravos à saúde relacionados ao
trabalho, afastando o empregado do trabalho sobre o qual haja suspeita de
estar acometido de doenças ocupacionais, custeando integralmente o
respectivo tratamento (MPT, 2008).
Os prazos para cumprimento das determinações do TAC variam de
90 dias a 12 meses, dependendo das medidas a serem tomadas. O
descumprimento ou atraso das ações e prazos fixados nas cláusulas pode
incidir em multa fixada entre 5 mil reais e 50 mil reais, multa essa que
pode ser diária ou multiplicada pela quantidade de casos de
descumprimento notificados.

J; =6 + .- * - 0 ) N
) N )S D ?
, , N ) * " F
@ N ) ) B C6
+ .- * - )
@ - )S
) N ? )S ,
6 -
A &"!$g. J;;; 5U'

60
Após um ano de vigência do TAC, frente à negligência da empresa
as determinações ali contidas, a AP-LER protocolou nova denúncia na
Procuradoria Regional do Trabalho, que solicitou ao Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE) uma rigorosa fiscalização, ocorrida em
setembro de 2009.
Pelo conteúdo das medidas postas no TAC, é possível identificar
alguns dos crônicos problemas ainda vivenciados pelos trabalhadores de
frigoríficos, que abrangem desde a proibição de idas ao banheiro para a
satisfação de necessidades fisiológicas, até o cumprimento de extenuantes
jornadas de trabalho, passando pelas condições ergonômicas e ambientais
dos postos de trabalho21. A reversão dessas situações pressupõe a
alteração da dinâmica operacional e de gestão do processo de trabalho e é
isso que a empresa vem se recusando a fazer.
Segundo a AP-LER, após a força-tarefa do MTE para fiscalizar o
cumprimento do TAC por parte da empresa, a mesma
. ,
?
> - )

# ) ) )
@ &. $ G
J;5; 5'
Ao longo dos últimos anos, entre o encaminhamento das denúncias e
a celebração do TAC, os trabalhadores organizados em torna da AP-LER
passaram a ter que enfrentar outra instituição, além da empresa: o
sindicato que formalmente representa os trabalhadores das empresas de
alimentação da região. Segundo relato de membros da AP-LER em
entrevista às pesquisadoras, a situação tem se tornado cada vez mais
tensa, envolvendo ameaças, difamações e provocações de diferentes
ordens: “Eles consideram a gente [da AP-LER] inimigo, eles difamam a
gente, eles falam mal da gente, eles desmentem os nossos achados, as
nossas pesquisas, os dados que a gente divulga, eles nos consideram
inimigos mesmo”.

J5 G )S +.*
F +

61
A situação ora experimentada pela AP-LER com a entidade sindical
que representa (ou deveria representar) os interesses dos trabalhadores
das empresas frigoríficas difere da relação que vem sendo estabelecida ao
longo do tempo com sindicatos de outras categorias cujos trabalhadores
se filiam, participam e encaminham demandas à AP-LER. Com alguns
sindicatos, a “[...] relação [é] mais ou menos pacífica, é de reciprocidade,
quer dizer, os associados dessas entidades são atendidos pela AP-LER
indicados por essas entidades [...] quando eles entendem que precisam de
ajuda pra essas pessoas [...] muitas vezes eles [os sindicatos] até fazem
contribuição financeira pra gente, dão uma ajuda eventualmente pra gente
[...] [São] sindicatos que a gente não tem uma atuação forte, que a gente
não está atuando assim diretamente na categoria profissional deles, que
em tese não é essa intromissão que [a AP-LER quer], eles nos ignoram,
nos ‘engolem’, na verdade, mas esse aí [dos trabalhadores de frigoríficos]
nos trata como inimigos”.
As ações da AP-LER, ao longo de sua existência, contabilizam
muitos êxitos políticos e sociais. Mas alguns impasses permanecem: para
aqueles trabalhadores que alcançam sucesso nas medidas jurídicas
encaminhadas coletivamente, é necessário, na maioria dos casos, a
aprendizagem da convivência com a irreversibilidade dos agravos
sofridos no trabalho; para os trabalhadores que participam organicamente
da AP-LER, as inúmeras conquistas revelam, ao mesmo tempo, a
potencialidade da ação coletiva numa perspectiva classista e a força da
interdição do capital sobre essa coletividade.
Mas o capital que interdita não se resume às empresas localizadas na
região; trata-se do setor da economia que é líder mundial em exportações
de frangos, que disputa ombro a ombro com os Estados Unidos a ponta
do mercado mundial da avicultura, que conta com o fundo público –
gerenciado pelo Estado – para o financiamento de seus incrementos
logísticos e tecnológicos e que tem todo apoio governamental para
aprimorar cada vez mais os padrões de bem estar animal no país e os
métodos humanitários no tratos das aves em plantas frigoríficas. A luta
dos trabalhadores dos frigoríficos da região oeste do Paraná que resistem
à “desumana sociabilidade” que lhes é imposta poderia ter uma epígrafe
bem ao gosto do gênio Chaplin: “Não sois aves; homens é o que sois”.

62
POR UMA APOSTA NA POSSIBILIDADE DE CONSTITUIÇÃO DE NOVAS
SOCIABILIDADES
Na discussão sobre uma concepção materialista de história, Marx e
Engels (1984, p. 39-40) argumentam que:
B C ) )
?
)S
= A F
)
6 )
) )
)
- ,

B C.
)
) ?
- )
A atualização das formas de sociabilidade do capital na direção de
relações sociais cada vez mais competitivas torna os clássicos do
marxismo ainda mais compreensíveis: a manutenção do ou a ruptura com
o estabelecido historicamente não tem como prescindir do fato de que,
em ambos os casos, os homens precisam estar vivos. Isso ganha ainda
mais significado num contexto em que a saúde da força de trabalho é um
dos insumos mais consumidos pelo processo de trabalho.
O percurso da análise empreendida neste texto buscou refletir sobre
os impasses e possibilidades da atuação coletiva dos trabalhadores na luta
por formas de sociabilidade que lhes permitam “estar em condições de
viver para poder fazer história”. E buscou-se fazer isso destacando
elementos que denotam o caráter contraditório das relações sociais
capitalistas, mostrando como a exacerbação e o aprimoramento das
condições de exploração e extenuação da força de trabalho podem abrir
espaços para a construção de formas de sociabilidade marcadas pelo
enfrentamento ao caráter atomizado e individualizado da sociabilidade
capitalista.
Ao apresentar e destacar ações e episódios protagonizados
coletivamente por trabalhadores de frigoríficos da região oeste do Paraná

63
frente às condições adversas de trabalho, este texto não teve nem a
pretensão nem a ingenuidade de compreender tais situações como
modelos ou paradigmas de ação que rompem com a realidade posta; teve,
sim, a intencionalidade de ressaltar que as formas de sociabilidade do
capital, embora hegemônicas, não se impõem de forma absoluta, como se
os homens fossem aves dependuradas nas nórias22, seguindo inertes para
o abate.

REFERÊNCIAS:
1. AMORIM, G. Perspectivas da avicultura brasileira e paranaense.
Análise Conjuntural – IPARDES. Paraná, v. 30, n. 11-12, p. 12-14,
nov./dez. 2008.
2. ANTUNES, R. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova
morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.
3. ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e
negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2000.
4. AP-LER. Informativo AP-LER, v. 12, n. 12, fev. 2010, p. 1-2,
mimeo.
5. BOITO JR. A. Hegemonia neoliberal e sindicalismo no Brasil.
Crítica marxista – CEMARX. Campinas, n. 3, p. 80-105, 1996.
6. BRANT, L. C.; MINAYO-GOMEZ, C. Manifestação do sofrimento
e resistência ao adoecimento na gestão do trabalho. Saúde e
Sociedade. São Paulo, v.18, n.2, p. 237-247, 2009.
7. BRASIL em vantagem. Informe UBA, v. 1, n. 6, 22 jan. 2009.
Disponível em: <http://www.uba.org.br/site3/informe/informe_uba_
ano_i_n_6_22_01_2009.pdf>. Acesso em: 24 nov. 2009.
8. CÊA, G. S. S.; MATIAS, L. V. Quando trabalhar é uma fria: um
estudo sobre as relações de trabalho em empresas frigoríficas da
região oeste do Paraná. SEMINÁRIO DO TRABALHO, 5, 2006,
Marília. Anais-Resumos. Marília: UNESP, 2006, p. 10-11.
9. CÊA, G. S. S.; MUROFUSE, N. T. Associação dos Portadores de
LER (AP-LER) na luta pelos direitos dos trabalhadores de

JJ =* A &> $! J;;9 LK'

64
frigoríficos do oeste do Paraná. In: TUMOLO, P. S.; BATISTA, R.
L. Trabalho, economia e educação: perspectivas do capitalismo
global. Maringá: Práxis, 2008, p. 421-436.
10. CÊA, G. S. S.; MUROFUSE, N. T.; ANDRADE, L. A. S. Processo
de recrutamento, seleção e admissão dos trabalhadores em
frigoríficos da região oeste do Paraná. In: SEMINÁRIO
NACIONAL ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS, 4, 2009, Cascavel.
Anais. Cascavel: Unioeste, 2009, p. 1-16.
11. CÊA, G. S. S.; ZEN, R. T. A parceria nas relações de trabalho:
problemas e contradições. In: SEMINÁRIO DO TRABALHO, 6,
Marília. Anais. Marília, mai. 2008, p. 1-14.
12. CLOT, Y. Clínica da Atividade e Repetição [Publicado em
Cliniques Méditerranéennes, n. 66, 2002]. PQV-UNIFESP, p. 1-5.
Disponível em: <http://www.pqv.unifesp.br/ClinicadaAtividadee
RepeticaoYvesClot.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2009.
13. CLOT, Y. Clínica do trabalho, clínica do real [Publicado no Le
journal dês psychologues, n. 185, mar. 2001]. Trad. Kátia Santorum
e Suyanna Linhales Barker. PQV-UNIFESP, p. 1-9. Disponível em:
<http://www.pqv.unifesp.br/clotClindotrab-tradkslb.pdf>. Acesso
em: 22 nov. 2009.
14. COSTA, I. S. A. Teletrabalho: subjugação e construção de
subjetividades. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro,
v. 41, n. 1, p.105-24, jan./fev. 2007.
15. DELWING, E. B. Análise das condições de trabalho de uma
empresa do setor frigorífico a partir de um enfoque
macroergonômico. 2007. 131f. Dissertação (Mestrado em
Engenharia de Produção). Programa de Pós-Graduação em
Engenharia de Produção, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2007.
16. DONDA JÚNIOR, A. Fatores influentes no processo de escolha
da localização agroindustrial no Paraná: estudo de caso de uma
agroindústria de aves. 2002. 141 f. Dissertação (Mestrado em
Engenharia de Produção). Programa de Pós-Graduação em
Engenharia de Produção, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, 2002.
65
17. ENTREVISTA: Yves Clot. Cadernos de Psicologia Social do
Trabalho. São Paulo, v. 9, n. 2, p. 99-107, 2006.
18. ESPÍNDOLA, C. J. Tecnologia e novas relações de trabalho nas
agroindústrias de carne do Sul do Brasil. In: Scripta Nova.
Barcelona, v. 6, n. 119, p. 1-7, ago. 2002. Disponível em:
<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-85.htm>. Acessado em: 25 abr.
2007.
19. ESTATUTO da Associação de Portadores de Lesões por Esforços
Repetitivos de Cascavel. AP-LER, Cascavel, 1997. mimeo.
20. FINKLER, A. L. A relação entre os problemas de saúde dos
trabalhadores e processo de trabalho em frigoríficos. 2007.
Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Enfermagem) –
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Orientadora: Neide
Tiemi Murofuse.
21. FINKLER, A. L.; CÊA, G. S. S. Atuação dos trabalhadores nos
frigoríficos da região oeste do Paraná: as qualificações requeridas.
Revista da RET, v. 3, n. 5, 2009, p. 1-13. Disponível em:
<http://www.estudosdotrabalho.org/10revistaRET5.pdf>. Acesso
em: 5 jan. 2010.
22. FIRMINO, S. O senhor dos inícios. Portal de literatura e cultura.
Coluna Mito em contexto, n. 17, 2007. Disponível em:
<http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/sfirmin
o/sf0017.php>. Acesso em: 12 dez. 2009.
23. FRANCA, G. C. O trabalho no espaço da fábrica: um estudo da
General Motors em São José dos Campos – SP. São Paulo:
Expressão Popular, 2007.
24. FREIRE, P. A. Assédio moral e saúde mental do trabalhador.
Trabalho, educação e saúde. Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 367-380,
jul. out. 2008.
25. GASPARINI, S. M.; BARRETO, S. M.; ASSUNÇÃO A. A. O
professor, as condições de trabalho e os efeitos sobre sua saúde.
Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31, n. 2, p. 189-199, mai./ago.
2005.

66
26. GRISCI, C. L.; BESSI, V. G. Modos de trabalhar e de ser na
reestruturação bancária. Sociologias. Porto Alegre, v. 6, n. 12, p.
160-200, jul./dez. 2004.
27. IPARDES. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e
Social. Os vários Paranás: estudos socioeconômico-institucionais
como subsídios aos planos de desenvolvimento regional. Curitiba:
IPARDES, 2005.
28. IPARDES. Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e
Social. Arranjos produtivos locais e o novo padrão de especialização
regional da indústria paranaense na década de 90. Curitiba:
IPARDES, 2003.
29. LACAZ, F. A. C. Saúde do trabalhador: um estudo sobre as
formações discursivas da academia, dos serviços e do movimento
sindical. 1996. 432 f. Tese (Doutorado em Ciências Médicas).
Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
30. LESSA, S. Mundo dos homens: trabalho e ser social. São Paulo:
Boitempo, 2002.
31. LUKÁCS, G. O trabalho. Ontologia do ser social. 1981. Tradução:
Ivo Tonet, mimeo.
32. MARCELINO, P. R. P. A logística da precarização: terceirização
do trabalho na Honda do Brasil. São Paulo: Expressão Popular,
2004.
33. MARX, K. O capital: crítica da economia política. 2. ed. São Paulo:
Nova Cultural, 1985.
34. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Hucitec,
1984.
35. MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
36. MPT. Ministério Público do Trabalho. Procuradoria Regional do
Trabalho da 9ª Região. Termo de Compromisso de Ajustamento
de Conduta Aditivo nº 6/2008. Toledo, fev. 2008, p. 1-5.
37. MUROFUSE, N. T. Mudanças no trabalho e na vida de bancários
ocasionadas por Lesões por Esforço Repetitivo-L.E.R. Ribeirão
67
Preto, 2000. 204f. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem
de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
38. MUROFUSE, N. T. Mudanças no trabalho e na vida de bancários
portadores de lesões por esforços repetitivos: LER. Revista Latino-
Americana de Enfermagem, v. 9, n. 4, jul. 2001, p. 19-25.
39. MUROFUSE, N. T [et al.] (org.) Cartilha sobre saúde do
trabalhador: fique de olho para não entrar numa fria. Cascavel:
EDUNIOESTE, 2008.
40. MUROFUSE, N. T. O adoecimento dos trabalhadores de
enfermagem da Fundação Hospitalar do Estado de Minas
Gerais: reflexo das mudanças no mundo do trabalho. Ribeirão Preto,
2004. 298f. Tese (Doutorado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo.
41. NAVARRO, V. L. Trabalho e trabalhadores do calçado. São
Paulo: Expressão Popular, 2006.
42. NELI, M. A. Reestruturação produtiva e saúde do trabalhador:
um estudo com os trabalhadores de uma indústria avícola. Ribeirão
Preto, 2006. 100f. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Medicina
de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
43. NOGUEIRA, C. M. O trabalho duplicado: a divisão sexual no
trabalho e na reprodução – Um estudo dos trabalhadores do
telemarketing. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
44. OLIVEIRA, E. Toyotismo no Brasil: desencantamento da fábrica,
envolvimento e resistência. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
45. ORSO, P. J. et. al. Reflexões acerca das lesões por esforços
repetitivos e a organização do trabalho. Rev. online Bibl. Prof. Joel
Martins, Campinas, São Paulo, v. 2, n. 2, p. 47-58, fev. 2001.
Disponível em: <www.fae.unicamp.br/etd/include/getdoc.php?id=
984...340...>. Acesso em: 2 fev. 2005.
46. ORSO, P. J.; ANTUNES, J. (org.). Seminário sobre L.E.R. 1998.
Cascavel. Anais. Cascavel: Edunioeste, 1998.

68
47. POZZOBON, D. M. Explorando soluções internacionais: o caso dos
frigoríficos brasileiros. In: ENCONTRO DA ANPAD, 32, Rio de
Janeiro. Anais. Rio de Janeiro, 2008, p. 1-16.
48. RAMOS, P. (org.). Dimensões do agronegócio brasileiro:
políticas, instituições e perspectivas. Brasília: MDA, 2007.
49. RODRIGUES P.; ALVES G.; SILVA; N. R. Trabalho e
subjetividade: um estudo de caso sobre a saúde de trabalhadores da
linha de produção da indústria farmacêutica. In: SEMINÁRIO DO
TRABALHO, 6, 2008, Marília. Anais. Marília: UNESP, 2008, p. 1-
14.
50. SAMORA, R. Expansão de frigoríficos no Brasil é abatida na
crise. G1 – Portal de Notícias da Globo, 21 jan. 2009. Disponível
em: <http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/
0,,MUL966374-9356,00.html>. Acesso em: 15 nov. 2009.
51. SCALCO, D. C.; CÊA, G. S. S. A luta pela saúde do trabalhador:
um histórico da Associação de Portadores de Lesões por Esforços
Repetitivos (AP-LER). Relatório final de pesquisa de iniciação
científica apresentado ao comitê PIBIC/CNPq/UNIOESTE, 2008.
Orientadora: Georgia Sobreira dos Santos Cêa.
52. SELIGMANN-SILVA, E. Saúde mental e automação: a propósito de
um estudo de caso no setor ferroviário. Cadernos de Saúde
Pública, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 95-109, 1997.
53. SGUISSARDI, V.; SILVA JÚNIOR, J. R. O trabalho intensificado
nas federais: Pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo:
Xamã, 2009.
54. SILVA JR, J. R.; GONZÁLEZ, J. L. C. Formação e trabalho: uma
abordagem ontológica da sociabilidade. São Paulo: Xamã, 2001.
55. SILVA, E. B. Inquérito civil trabalhista. Termo de ajuste de conduta.
Execução do termo de ajuste de conduta na Justiça do Trabalho.
Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília, v. 10, n. 20,
p. 10-20, set. 2000. Disponível em: <http://www.anpt.org.br/
site/download/revista-mpt-20.pdf >. Acesso em: 5 jan. 2010.
56. SILVEIRA, M. L. S. Algumas notas sobre a temática da
subjetividade no âmbito do marxismo. Assistentesocial.com.br – O
69
portal do Serviço Social. Caderno especial, n. 24, p. 1-14, out. 2005.
Disponível em: <http://www.assistentesocial.com.br/novosite/
cadernos/cadespecial24.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2008.
57. STOTZ, E. N. Trabalhadores, direito à saúde e ordem social no
Brasil. In: São Paulo em Perspectiva, v. 17, n. 1, p. 25-33, 2003.
58. UNB CLIPPING. Mal silencioso. Disponível em:
<http://www.unb.br/acs/unbcliping2/2007/ind070223.htm>. Acesso
em: 23 fev. 2007.
59. VASCONCELLOS, M. C.; PIGNATTI, M. G.; PIGNATI, W. A.
Emprego e acidentes de trabalho na indústria frigorífica em áreas de
expansão do agronegócio, Mato Grosso, Brasil. Saúde e Sociedade.
São Paulo, v.18, n. 4, p. 662-672, 2009.
60. ZEN, R. T. O processo de trabalho dos avicultores parceiros da
Sadia S.A.: controles, mediações e autonomia. 2009. 124f.
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do
Oeste do Paraná, Cascavel.

70
TRABALHO, INFORMAÇÃO E VALOR:
o processo de infoespoliação

*
! " #

INTRODUÇÃO: O QUE É INFOESPOLIAÇÃO?


O modo de produção capitalista é essencialmente espoliativo.
Historicamente, sua esfera de exploração não se limita ao consumo
produtivo da força de trabalho. Há um fazer social geral que de múltiplas
formas é apropriado pela lógica de acumulação. Marx já havia apontado a
centralidade da acumulação primitiva (ou original) na constituição
histórica do capitalismo e no seu desenvolvimento ulterior. No
capitalismo contemporâneo, a capacidade de mercantilizar informações
resultantes da interatividade da internet tem se tornado um elemento
central na determinação de seu desenvolvimento tecnológico e de sua
dinâmica peculiar de acumulação. A infoespoliação pode ser pensada
como o processo de apropriação, manipulação, armazenamento e
mercantilização do substrato informacional/interativo utilizado nos
processos produtivos das empresas de comunicação, sobretudo para
aquelas que atuam no âmbito da internet comercial.
Diferente do ocorrido com o advento do rádio ou da televisão, nos
quais tínhamos um único emissor ativo para diversos receptores passivos,
na rede, o usuário final é obrigado a interagir ativamente com os
mecanismos de comunicação. A interatividade da rede não é apenas uma
conseqüência contingente de seu desenvolvimento tecnológico, mas um
de seus fundamentos técnico-materiais. Subordinada à lógica de
acumulação capitalista, foi precisamente o desenvolvimento desta
potencialidade de comunicação descentralizada em rede, um dos vetores
que historicamente direcionaram os processos de produção e inovação
tecnológica das empresas de internet, estabelecendo novos usos para a
tecnologia disponível, além de novas modalidades de acumulação de
capital.

E I ) * " &%> " 2F 0 ' 1


7 ]/

71
A comercialização de mercadorias na rede (sejam elas tangíveis ou
intangíveis) exigiria dos usuários-consumidores-comunicadores uma
ação pró-ativa no processo produtivo, ao buscar mercadorias, conteúdos e
serviços por meio de subjetivações interativas. Esta ativação
individualizada do consumo, apropriada pela lógica de acumulação de
capital (em sua fase de crise estrutural), forneceu uma ferramenta de
grande potencial para o marketing, pois as empresas passaram a obter
uma vantagem nunca antes experimentada de capturar e reter informações
sobre seus clientes, seus comportamentos, desejos e necessidades. E de
forma relativamente simples: cada manipulação na rede deixa uma marca
pelo usuário que acaba por desenhar um auto-retrato em termos de
centros de interesses (culturais, ideológicos, simbólicos, de consumo,
etc.), cujas informações são utilizadas para vender (ou simplesmente
atrair) novos consumidores, sabendo, entretanto, o que eles gostariam de
ler, assistir, ouvir, consumir, etc.
Com a migração das grandes corporações de comércio, mídia e
entretenimento para a internet, ela acabou transformando-se em mais um
veículo da indústria cultural e da mercantilização da sociabilidade, na
medida em que pode beneficiar-se do mapeamento do perfil e hábitos dos
usuários, exprimindo o lugar assumido pela concorrência oligopolista e
pela diferenciação de produtos, notadamente no mercado de bens de
consumo final.
Após a queda da Nasdaq em março de 2000 - no bojo de uma
profunda reestruturação produtiva - tornou-se necessário repensar os
modelos de financiamento dos empreendimentos23. Foi neste contexto, de
crise e reestruturação, que a internet comercial parece ter encontrado no
“capital publicitário” a alternativa adequada para dar escoadouros

JL " ) ! 5888
) N
?
.C )S
?
? ) DE D " " F 6
G "G
0 >
?
> ?

( Z

72
lucrativos aos excedentes de capital investidos no setor (BOLAÑO, 2007;
BRENNER, 2003). A partir daí, os processos de controle e manipulação
do fluxo da rede ganhariam enorme empuxo, sobretudo com o
desenvolvimento dos mecanismos de buscas (Google, Yahoo, Cadê,
MSN, Alta Vista, etc). A infoespoliação surge, portanto, como a forma
contraditória de dominação e controle sobre a reprodução social, ao
transformar a própria interatividade da rede em um ativo capaz de dar-lhe
sustentação e lucratividade, ou seja, transformando-a em mais uma força
produtiva do capital.
Como instrumento de controle a serviço da reprodução econômica, a
internet comercial vem gradativamente assumindo a função de informar
(em tempo real) sobre as mudanças dos hábitos de consumo, assumindo,
em grande medida, aquele papel que era anteriormente cumprido por
institutos de pesquisa, representantes comerciais ou os próprios sistemas
de informação das empresas situadas no âmbito da circulação. Mais que
isto, observamos em sentido inverso a colonização do ciberespaço por
estes atores, em busca de vantagens competitivas proporcionadas pelo
caráter interativo das TIC.
Este caráter eminentemente interativo e descentralizado da rede24,
por sua vez, colocaria novas determinações que iriam incidir diretamente
nos processos produtivos (processo de trabalho e valorização), no
consumo e, conseqüentemente, em seu modo de acumulação. Para
compreender a complexidade destas transformações cumpre observar três
aspectos: a) o primeiro diz respeito às contradições imanentes à forma
mercadoria-informação; b) o segundo está ligado à re-configuração do
fator subjetivo na subsunção do trabalho ao capital, em decorrência do
desenvolvimento e aplicação da informática e da telemática nos processos
produtivos; e por fim; c) o terceiro aspecto a ser observado está
diretamente ligado aos processos de infoespoliação na imbricação entre
produção e consumo, constituindo formas peculiares de acumulação que
se estabelecem fora de uma relação direta entre capital e trabalho.

JU F ? )
)S E
= ) A )S
, ) 0
6 - = A = ,
A

73
Apontar caminhos preliminares para discutir estas questões e suas
articulações é, precisamente, o objetivo deste ensaio.

NOTAS SOBRE A MERCADORIA-INFORMAÇÃO


. - ?
" ;
.
a .
4 " ;
0 H -
34 &F.GH
58VV UK 4 '
A partir das últimas três décadas do século XX, a produção de
informações ganha enorme relevância. A emergência de um novo
paradigma tecnológico organizado em torno das novas tecnologias da
informação (TIC), mais flexíveis e poderosas, possibilitaria que a
informação se tornasse um insumo necessário aos processos produtivos.
O próprio desenvolvimento da informática e da telemática poderia
ser entendido como parte dos investimentos necessários ao processo
histórico de mundialização do capital, na medida em que a integração
internacional dos mercados financeiros, como resultado da liberalização e
desregulamentação, levou à abertura dos mercados nacionais e permitiu
sua interligação em tempo real. A teleinformática proporcionou às
grandes empresas e aos bancos o acesso a instrumentos qualitativa e
quantitativamente mais eficientes e poderosos para controlarem e
expandirem seus ativos em escala internacional, reforçando o âmbito
mundial de suas operações.
É no âmbito da mercantilização da informação que os processos de
infoespoliação se intensificam. A mercadoria-informação, enquanto
resultado de um processo produtivo específico, configura a esfera mais
imediata e fenomênica deste movimento. Ela é, antes de tudo, um objeto
externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz um conjunto
de necessidades, seja diretamente como um bem de consumo, ou
indiretamente como um meio de produção. Como qualquer outra
mercadoria, ela traz um duplo caráter: possui valor de uso (meio) e valor
de troca (finalidade). Como o valor de troca não abole o valor de uso da
forma mercadoria – mas o subsume de forma contraditória - a

74
mercadoria-informação traz particularidades que determinam aspectos
concretos nos diversificados processos produtivos em que é produzida e
utilizada.
Um dos seus aspectos mais importantes diz respeito a sua
constituição material. Digo material porque apesar de se tratar de algo
intangível, a informação encontra-se em última instância determinada e
constrangida pelo aparato tecnológico informacional que lhe dá suporte.
É preciso evitar a falsa dicotomia entre material e imaterial dos quais
resultam diversos equívocos, fetiches e distorções teóricas, a exemplo
daqueles orquestrados pela escola cognitivista25. Esta falsa dicotomia
tende remeter tudo aquilo que é intangível para o âmbito do “imaterial”,
reduzindo o conceito de materialidade a atributos de volume e densidade.
Como toda práxis social, a informação só pode ser compreendida em
profundidade se considerado seu caráter material elementar, como
produto e resultado da dialética do trabalho.
Esta flexibilidade do material informacional, por sua vez, traz uma
outra característica fundamental: a de que o seu valor de uso não se
esgota no ato de seu consumo, tendendo, pelo contrário, a alargar sua
utilidade na medida em que, apesar de exigir um determinado quantum de
trabalho para sua produção, sua reprodução torna-se simples e
potencialmente ilimitada, colocando um novo paradoxo para a lógica de
valorização no âmbito da produção capitalista de informações.
Estas determinações materiais subvertem uma “economia da
escassez” tal como historicamente ela tem se efetivado na dinâmica de
acumulação. Sua valorização viria a depender de barreiras artificiais:
instrumentos técnicos, jurídicos e burocráticos que determinariam, neste
caso, a estrutura concreta do mercado, em meio a um complexo processo
de construção simultânea da hegemonia nas esferas política e econômica.
Esses direitos são as formas jurídicas encontradas para manter a
acumualção por meio do monopólio sobre o conhecimento e o controle
dos fluxos de informação (BOLAÑO, 2000).
As informações necessárias para o funcionamento desse sistema
complexo de produção, bem como as informações necessárias para a
produção de mercadorias-informação, dependem diretamente da

JK g 1 $.YY.G.+6D > IG! J;;5

75
combinação de diversas forças de trabalho de diferentes formações. As
informações (independente se utilizadas como insumos ou produtos),
sendo elas próprias cada vez mais conjuntos complexos de diferentes
saberes, exigem a cooperação de diferentes trabalhadores intelectuais
“parciais”. Aflora aqui o sentido da divisão capitalista do trabalho
enquanto condição de dominação, ou seja, é somente porque a divisão
capitalista do trabalho atingiu um grau extremamente desenvolvido,
fazendo com que o trabalhador intelectual coletivo só exista
materialmente enquanto trabalhadores intelectuais parciais, que a
informação pode ser transformada em capital e mercadoria (MELO
NETO, 2004).
Sob o discurso contemporâneo em torno da liberdade e igualdade do
acesso à informação e ao conhecimento, escamoteia-se a desigualdade
estrutural contida nos processos produtivos, tanto no que se refere à
organização burocrática do trabalho, quanto à fragmentação das cadeias
produtivas ampliadas com o desenvolvimento das TIC. Não podemos
desconsiderar que, no âmbito do processo de trabalho, a informação deixa
de ser uma comunicação entre iguais e adquire inequivocamente a forma
de “informação de classe”, em que o trabalhador assume a condição de
receptor no interior de um processo comunicativo que tem como
pressuposto a relação capital/trabalho e que cumpre a função de fazer
com que as determinações da burocracia da empresa capitalista passem
para o interior do processo produtivo (reforçando esta relação de
dominação) (BOLAÑO; HERSCOVICI, 2005).
Aqui entra em cena um elemento central para a compreensão do
processo de infoespoliação: é preciso salientar que a comunicação no
processo de trabalho exige não apenas aquela informação hierarquizada
que faz com que as decisões sejam cumpridas pelos trabalhadores, mas
também uma comunicação horizontal, cooperativa, entre esses
trabalhadores individuais que formam o trabalhador coletivo subsumido
ao capital. Historicamente há uma apropriação (espoliação) dos
conhecimentos dos trabalhadores e seu re-processamento, uma espécie de
“acumulação primitiva do conhecimento” (BOLAÑO, 2000). Esta base
de apropriação do conhecimento (da qual, por exemplo, emerge o
taylorismo), aliada ao desenvolvimento das ciências físicas e naturais,
constituíram as condições objetivas para a revolução permanente das
forças produtivas.

76
No contexto da globalização capitalista, esta informação expropriada
no processo produtivo adquire um novo valor de uso: servir à
concorrência capitalista transformando-se em uma mercadoria que pode
ser negociada em um mercado específico (sob sigilo), determinando
posições de vantagem competitiva para as empresas. Neste processo de
apropriação do conhecimento e mercantilização da informação, ocorre
uma bifurcação que constitui dois tipos básicos de informação: (1) uma
ligada diretamente ao processo de trabalho, cujo valor de uso
(comunicação direta, hierarquizada, cooperativa, objetiva e não
mediatizada) constitui-se num insumo indispensável, e outra (2) que
agregada e controlada pelo corpo técnico e burocrático da empresa
capitalista, é sempre, efetiva ou potencialmente, mercadoria-informação.
Os dois tipos de informação articulam-se de forma a ampliar e assegurar
os modos de reprodutibilidade do capital em processo.
A falsa dicotomia entre material e imaterial somada à fetichização
desta segunda forma de informação (ligada essencialmente ao processo
competitivo) contribuiu para a formulação das teses tão em voga sobre a
“perda da centralidade do trabalho”. Esta visão dourada e pós-moderna da
informação e gestão do conhecimento no âmbito da concorrência, presa à
esfera fenomênica da mercadoria-informação, ignora a sua essência
contraditória sob o modo de produção capitalista, encobrindo, em seus
mais variados aspectos, a desigualdade fundamental que se expressa no
caráter classista da informação.

TRABALHO, VALOR E SUBJETIVIDADE


Contraditoriamente, neste momento em que ganham ênfase os
discursos em torno da "perda da centralidade do trabalho" ou da
emergência de uma “sociedade da informação”, evidenciamos, pelo
contrário, a promessa frustrada (e reprimida) do “pós-máquina” (ALVES,
2007) e da mediação plena de uma sociabilidade auto-determinada. Como
se a natureza viesse espontaneamente atender às necessidades sócio-
reprodutivas, o “devaneio coletivo” advindo com desenvolvimento e
expansão das TIC (ao compasso “delirante” da ofensiva neoliberal)
passou a confundir a “forma de trabalhar” com o próprio “ato de
trabalhar”.

77
Em termos ontológicos o trabalho é dispêndio genérico de energia
humana. Trata-se do processo de efetivação humana no mundo material
concreto, em orgânica inter-relação entre homem e natureza. Ele pode ser
entendido como a relação entre o fazer e o pensar, ou ainda, como o
próprio “fazer pensado” no processo sócio-histórico. Ele não dispensa, de
modo algum, uma dimensão intelectual e outra objetiva, que é
exteriorizada. É a sua efetivação que lhe dá um sentido e aí reside o seu
caráter ontológico. O indivíduo objetiva os resultados de sua ação
respondendo às necessidades com a quais se depara em sua práxis. Esta
objetivação torna-se a esfera por excelência da afirmação de sua
individualidade. A “essência” sócio-genérica do ser social é, portanto,
uma conseqüência de atos teleologicamente postos pelos indivíduos.
Objetivação esta que, em última instância, funda a humanidade e o
mundo que permeia por meio desta efetivação. (LUKACS, 1981, p.6-7).
Em decorrência de seu caráter ontológico, o trabalho concreto é uma
categoria ineliminável da existência humana. Quando falamos em
produção capitalista, entretanto, não estamos nos referindo a um
“trabalho social genérico”, mas de um trabalho socialmente necessário
(trabalho abstrato) que se efetiva no interior de um sistema sócio
reprodutivo historicamente específico. Ao tratar do trabalho subsumido
no capital, Marx não restringe sua análise ao gênero de muitos trabalhos
concretos, mas de muitos trabalhos concretos reduzidos à trabalho
abstrato (PRADO, 2005), ou seja, o que lhe interessa é a forma pela qual
o trabalho concreto é subordinado (subsumido) ao processo de
valorização. Esta distinção entre trabalho concreto e trabalho abstrato é
de fundamental importância para que este último não seja remetido a um
nível fisiológico (o trabalho abstrato como gasto fisiológico de músculos,
nervos, etc.), ou reduzido a uma subjetivação (o trabalho abstrato como
representação abstrata do trabalho em geral). O gasto de força humana
para Marx é apenas a base material do trabalho abstrato e não o seu
conteúdo, que é social.
É necessário, portanto, pensar o trabalho abstrato em termos de uma
coisa-social-substância – porque o valor não é um quantum que os
agentes estabelecem subjetivamente, mas algo que se impõe socialmente,
e que é ao mesmo tempo qualidade e quantidade para chegar a uma
definição do capital em termos de movimento-sujeito. Para que o valor
(tempo de trabalho, trabalho como generalidade abstrata) seja valor, é

78
essencial que, além dessas determinações, haja posição, ou que essas
determinações sejam determinações postas, socialmente existentes
(FAUSTO, 1987, p.100; 184).
Na reciprocidade determinante destas posições, a força de trabalho é
uma mercadoria peculiaríssima porque nenhuma outra tem essa qualidade
extraordinária: a de que seu valor de uso é precisamente a substância
valorizadora, capaz de um trabalho maior do que o trabalho nela contido.
O processo de trabalho não é mais do que um meio do processo de
valorização específico, no qual a troca entre capital e força de trabalho
assume um agudo caráter contraditório (e antagônico) na medida em que
acontece uma troca de equivalentes de naturezas distintas: um é o valor
de uso da força de trabalho e o outro é o seu valor de troca. Embora o que
o capitalista receba imediatamente, em troca do salário que paga, seja a
força de trabalho, cedendo um valor para possuir um valor idêntico, o que
recebe na realidade não é simplesmente força de trabalho, mas o valor de
uso desta força de trabalho. O que o capitalista recebe imediatamente é
trabalho vivo e não simplesmente o trabalho objetivado nessa mercadoria
que compra (NAPOLEONI, 1981, p.65- 66).
Sob o modo de produção capitalista, o trabalho é formalmente
subsumido ao capital. Esta subsunção formal do trabalho ao capital pode
ser entendida em dois sentidos distintos: em sentido “genérico” e em
sentido “específico”. Em sentido (1) “genérico” a subsunção formal do
trabalho está inserida em um processo produtivo cujo sentido é a
produção de mais-valia, ou seja, cujo significado reside exclusivamente
no aumento de valor do capital inicial. Mas ela também pode ser
entendida em sentido (2) “específico”, para indicar a situação na qual,
embora o trabalho esteja inserido em processo capitalista de produção, o
processo de trabalho – do ponto de vista técnico – mantém ainda as
formas em que se processava antes que a relação capitalista interviesse.
Em outras palavras, estamos naquela situação, não apenas lógica, mas
também cronológica inicial, na qual o capital apropriou-se apenas
formalmente do processo produtivo, no sentido de que o conteúdo
particular do processo de trabalho continuou a ser o antigo; o processo
produtivo, do ponto de vista do processo de trabalho, desenvolveu-se sob
as formas técnicas que o capital ainda não conseguia influenciar e tornar
homogêneas a si mesmo.

79
A plenitude da produção capitalista, entretanto, só tem lugar quando
o capital determina a tecnologia, ou seja, quando se observa a passagem
da subsunção “especificamente” formal, para a subsunção
“especificamente” real. Para Marx, a subsunção do trabalho ao capital
sendo formal e material, é também real. Dada a impossibilidade do
capital eliminar o trabalho vivo do processo de mercadorias (em
decorrência da própria posição estrutural que o mesmo ocupa em sua
dinâmica) ele deve, além de incrementar o trabalho morto corporificado
no maquinário, aumentar a produtividade, intensificando as formas de
extração de mais-valia em tempo cada vez mais reduzido. Assim, a
subsunção real do trabalho ao capital é a situação na qual não se trata tão
somente do fato de que o trabalho se encontre inserido em um processo
produtivo cujo sentido reside na produção de mais-valia. Mais que isto,
trata-se também do fato de que o próprio processo de trabalho – enquanto
processo técnico da relação entre o trabalho e os meios de produção – foi
transformado pelo capital a ponto de torná-lo homogêneo à relação
formal já existente entre trabalho e capital.
Sabemos que a subsunção formal e a subsunção real (em sentido
específico) estão direta e respectivamente ligadas à mais-valia absoluta e
à mais-valia relativa. Se a subsunção real é também e sempre subsunção
formal (em sentido genérico), o contrário não é, via de regra, verdadeiro,
uma vez que a subsunção formal pode não necessariamente implicar na
subsunção real. Independente disso,
B C 4
H &
'
)
)
0 ;
0 34 34 &F.GH
58VK 8L 4 '
Assim, o sentido genérico da subsunção formal continua sendo a
direta subordinação do processo de trabalho à valorização de capital,
independente da forma técnica (ou tecnológica) em que ele seja efetivado.
Isto significa, que o fator subjetivo do trabalho - para além da tendência à
reestruturação dos processos produtivos com vistas a ampliar a
produtividade do trabalho por meio da incorporação do trabalho morto -

80
re-configura qualitativamente a dimensão de subordinação intelectual do
trabalho, respondendo, a cada momento, a uma relação dialética entre os
processos de valorização e as possibilidades técnicas-materiais.
Diante destas considerações, como pensar a re-configuração do fator
subjetivo do trabalho e sua subsunção no capital, diante das
transformações ocorridas em decorrência da adoção generalizada das TIC
nos mais variados processos produtivos?
Para além da internet, o desenvolvimento da informática e da
telemática contribuiu para uma significativa expansão de um trabalho
dotado de maior dimensão intelectual, quer nas atividades industriais
mais informatizadas, quer nas esferas compreendidas pelo setor de
serviços ou comunicações. Na indústria, as transformações foram
profundas tanto pela racionalização da produção, como pela mecanização
desta, contribuindo para o crescimento de uma força de trabalho
excedente de enorme proporção. Estas transformações, entretanto, não se
restringiram somente à indústria, sendo também (e principalmente),
estendidas às atividades de caráter gerencial (prestação de serviços)
devido ao crescimento de “atividades eletrônicas” em ambientes que são
cada vez mais informatizados.
Se, por um lado, como observa Lojkine (1995), o sistema automático
para processamento de dados assemelha-se aos sistemas automáticos da
maquinaria de produção - naquilo em que reunificam o processo de
trabalho eliminando os muitos passos que eram, anteriormente, atribuição
de trabalhadores parcelados - por outro lado, houve uma mudança na
relação homem/instrumento-de-trabalho em que, diferentemente da
relação ocorrida com a máquina da grande indústria, o homem tende a
não ser meramente meio, mas pólo ativo de um processo de subjetivação.
Com a conversão do trabalho vivo em trabalho morto a partir do
desenvolvimento dos softwares, a máquina informacional passa a
desempenhar atividades próprias da inteligência humana. Partindo destas
constatações em torno do processo de objetivação das atividades
cerebrais junto à maquinaria, então capazes de transferir o saber
intelectual e cognitivo da classe trabalhadora para a maquinaria
informatizada, Lojkine enxergou uma tendência (otimista) ao apagamento
das fronteiras entre trabalho manual e intelectual.

81
Em oposição aos excessos advindos na literatura corrente com
relação a este aspecto particular do processo de trabalho, devemos
salientar que esta intelectualização crescente do trabalho mediante a
introdução da informática e da telemática nos processos produtivos, nada
tem a ver com uma superação da alienação do trabalho, mas com a
mudança do sentido da alienação e com o aprofundamento do
enquadramento do trabalhador, “com o avanço da exploração das suas
energias e capacidades mentais, para além das suas energias físicas e
capacidades criativas manuais”. Em síntese, de uma subsunção intelectual
do trabalho. É por meio dos softwares que o sistema enquadra o trabalho
mental, padroniza-o e explorar as suas potencialidades. É a forma em que
se materializa num elemento do capital constante, o conhecimento que
antes era propriedade do trabalhador intelectual isolado, de forma
semelhante ao que ocorreu com o trabalho manual a partir do surgimento
da máquina-ferramenta. Há, portanto, uma convergência das tendências
de desenvolvimento da subsunção do trabalho nos processos de produção
cultural e intelectual em geral, que se estende de forma considerável para
amplas camadas da classe trabalhadora (BOLAÑO, 2000). Em muitos
aspectos, padronização do trabalho intelectual configura uma passagem
(em sentido específico) da subsunção formal à subsunção real do trabalho
intelectual no capital, aquilo que Braga (2009), de certo modo, denomina
infotaylorismo.
Com o implemento tecnológico-informacional, as “máquinas
inteligentes” passaram a utilizar-se do trabalho intelectual do operário
que, por sua vez, transfere parte de seus atributos intelectuais à nova
máquina que resulta deste processo. Estabelece-se um complexo processo
interativo entre trabalho e ciência, cuja retroalimentação exige uma força
de trabalho ainda mais complexa e multifuncional, a qual será explorada
de maneira mais intensa e sofisticada, ao menos nos ramos produtivos
dotados de maior incremento tecnológico. Não se pode desconsiderar,
afinal, que a dimensão de subjetividade presente neste processo de
trabalho está tolhida e voltada para a valorização e auto-reprodução do
capital, para a “qualidade”, para o “atendimento ao consumidor”, entre
outras formas de representação ideológica, valorativa e simbólica que o
capital introduz no interior do processo produtivo. Mesmo diante de um
trabalho dotado de maior significação intelectual, o exercício da atividade
subjetiva está constrangido em última instância pela lógica da forma
mercadoria e sua realização (ANTUNES, 2000; 2001) e, nesse sentido, a
82
direção da transformação de determinados dados brutos em mercadoria-
informação, também portador de uma utilidade, não é dada pelo próprio
trabalhador, essa direção é atributo exclusivo do capital ali aplicado para
este determinado fim.
Restaria aqui fazer uma ressalva: se, como observa Braga (2009,
p.59-60), a tendência em torno do apagamento das fronteiras entre
trabalho manual e intelectual, tal como defendido por Lojikine,
demonstrou-se historicamente otimista26, isso não abole, em última
instância, as potencialidades contraditórias advindas com as TIC. Pelo
contrário, torna explícita as contradições colocadas, de um lado, pelo
pleno desenvolvimento das forças produtivas, e por outro, os seus
entraves determinados pela miserável base de acumulação subordinada à
relação capital-trabalho e à forma mercadoria.

A INFOESPOLIAÇÃO NA INTERNET COMERCIAL


Das reflexões que fizemos até aqui, podemos chegar a duas
considerações preliminares: (1) a primeira é a de que a informação ganha
maior relevância nos processos produtivos contemporâneos, assumindo a
forma mercadoria com aspectos materiais específicos, os quais, por sua
vez, terão reflexos na produção e no consumo; (2) no âmbito da
reestruturação produtiva do capital, a segunda consideração diz respeito à
re-configuração do fator subjetivo do trabalho em decorrência do
incremento tecnológico-informacional nos processos produtivos,
ampliando, por um lado, as potencialidades de comunicação e criação
humanas, mas por outro, reproduzindo um processo histórico de
reificação do trabalho (por meio do desenvolvimento dos softwares e sua
aplicação). Contudo, não se pode desconsiderar que, independente se uma
tendência ou apenas uma potencialidade frustrada, a aplicação das TIC na
transformação contínua dos processos produtivos (sobretudo para as
empresas de comunicação) colocam obstáculos/limites à subsunção do
trabalho e às diversas modalidades de acumulação, em decorrência de um
conhecimento tácito irredutível portado pelo trabalhador. Paralelo às
formas de infotaylorização, esta ampliação da dimensão intelectual do
trabalho (indissociável do trabalho vivo) deve agora ser incorporado

J9 g 1 .>+%> " GD (G.I. G D " < 34 0 " 1(


J;;8

83
como mais um insumo na busca de diferenciais competitivos que
permitam as empresas galgar vantagens competitivas.
Para além destas questões, no âmbito das empresas de comunicação,
é preciso pensar na ativação operacionalizada pelos consumidores-
usuários, a qual muitas vezes constitui-se enquanto troca não diretamente
mercantil: o usuário oferece sua privacidade, ações, desejos,
necessidades, preferências e todo um conjunto de informações relativas
ao seu comportamento na rede, que irão compor bases dinâmicas de
comportamentos e intenções. Em troca destas informações, as empresas
de internet oferecem serviços online das mais variadas espécies.
A infoespoliação deve ser pensada, portanto, na articulação entre as
esferas de produção e reprodução do capital. Ela não diz respeito à
“subtração” de algo, tendo em vista que a informação, como já
observamos, não se esgota no ato de seu consumo. Os sistemas
produtivos da internet comercial apropriam-se do valor de uso desta
informação em troca de um serviço oferecido ao usuário final, como um
bem aparentemente “gratuito”. Daí a emergência das teses sobre a
“gratuidade na rede” que, impregnadas de fetichismo tecnológico, não
conseguem ultrapassar a forma fenomênica do processo.
A lucratividade na internet comercial está ligada à forma pela qual as
empresas dirigem seus investimentos em tecnologia, voltadas à
estabelecer e administrar uma grande variedade de relacionamentos
interiores e exteriores aos limites das organizações. Diante da extrema
competitividade e da crescente capacidade de transmissão de
informações, isto significa construir processos extremamente flexíveis,
capazes de atuar e transformarem-se em tempo real. O fim último deste
processo é construir estruturas capazes de abrigar diversas demandas e
responder a elas agregando serviço, de modo que seu resultado retorne e
realimente o processo de trabalho, desenvolvendo e multiplicando as
cadeias cooperativas. O desenvolvimento tecnológico volta-se para a
construção de sistemas altamente coesos e integrados, cujos serviços são
implementados visando funcionar o mais automaticamente possível, de
modo a permitir que a própria dinâmica de seus usuários crie uma
sinergia favorável à sua expansão e sedimentação.
Por este motivo, nas atuais condições competitivas do mercado de
internet, possuir milhões de usuários sem um perfil definido constitui um

84
problema central para o modelo de acumulação em que se encontram
estas empresas, restringindo-lhes diversas possibilidades de receita,
tornando-lhes imprescindível, pois, manter o controle das preferências
individuais e gerais para fornecer, aos mais diversos empreendimentos
capitalistas (sejam eles virtuais ou não), um conjunto de informações
extremamente relevantes sobre os respectivos mercados que se deseje
atingir (sobretudo, para aquelas atividades diretamente ligadas ao
marketing e ao mercado publicitário).
A nova aproximação das corporações sobre as redes sociais ( “web
2.0” ou “web colaborativa”, para utilizar o jargões contemporâneos)
representam, em última instância, a necessidade de expansão de seus
canais comunicativos com vistas a absorver (em tempo real e a baixos
custos), as informações que possam: (1) compor ou ampliar suas bases de
dados para elaboração perfis de consumo; (2) fidelizar clientes e ampliar
“fatias” de mercado; (3) servir como plataforma para o lançamento de
novos produtos, além do conhecimento de sua recepção pelo mercado.
As redes socias, a exemplo do Orkut, Facebook, Twitter, Delícious,
dentre outras, constituem comunidades virtuais que se organizam no
ciberespaço por meio dos softwares disponibilizados on-line. Sua
característica essencial está ligada à capacidade de produzir
relacionamentos a partir de interesses comuns. Esta finalidade básica, por
sua vez, possibilita que estes mecanismos tornem-se poderosos
instrumentos para a coleta e re-processamento de informações.
Salientamos que as comunidades colaborativas virtuais estão na
própria base de popularização do ciberespaço (BOLAÑO, 2007), mas foi
o desenvolvimento dos mecanismos dotados com novas funções
(imagem, som, vídeo), além do crescimento da largura de banda e
ampliação do acesso, que fizeram das redes sociais um instrumento de
comunicação em massa, com ampla e diversificada participação social.
Sob o aspecto de seu valor de uso estes dispositivos permitem aos
usuários relacionarem-se por meio da retro-alimentação de informações
em um banco de dados amplo e dinâmico, passível de ser visitado,
alterado, etc, criando uma situação em que o campo de comportamentos,
ações e comunicações dos usuários, muitas vezes, coincida com os
próprios sistemas de coleta, registro e distribuição de informações. Os
dados coletados no preenchimento destes perfis formam um conjunto

85
amplo de informações pessoais que vão desde dados objetivos (como
nome, idade, endereço, telefone, aniversário, sexo, descrições físicas,
etc.) até dados subjetivos (como opção sexual, posicionamento político,
gosto musical, literário, cinematográfico, culinário, etc). As próprias
comunidades de interesses nas quais os usuários podem afiliar-se (ou
mesmo criá-las) já demonstram, por si mesmas, um conjunto bastante
diversificado e bem definido de informações segmentadas, classificadas e
modificadas conforme as afinidades e interesses diretos dos usuários.
Mais do que um mecanismo de comunicação elas constituem dispositivos
de visibilidade e vigilância, onde o voyeurismo e exibicionismo se
confundem.
Do ponto de vista econômico, entretanto, seu principal objetivo não é
produzir um saber sobre um indivíduo especifico, mas usar um conjunto
de informações pessoais para agir (possivelmente) sobre outros
indivíduos, que permanecerão desconhecidos até se transformarem em
perfis que despertem interesses de qualquer natureza (BRUNO, 2006). O
cruzamento de dados organizados em categorias amplas irá projetar,
simular e antecipar perfis que correspondam a indivíduos e corpos “reais”
a serem pessoalmente explorados, monitorados, cuidados, tratados,
informados e assediados por diversos canais. São, portanto, consumidores
potenciais
O que presenciamos nesta crescente imbricação entre produção e
consumo, no âmbito da exploração capitalista da internet, constitui uma
espécie de acumulação que explora as energias e capacidades cognitivas
despendidas sob condições que ultrapassam uma relação direta entre
capital e trabalho. O capital cria as estruturas e “absorve” da sociedade
um conhecimento gratuito, não compulsório e, em certo grau, aleatório.
Trata-se, portanto, de algo qualitativamente distinto do que ocorria no
pré-capitalismo.
Como observado anteriormente, o caráter espoliativo do capital não é
algo propriamente novo. Suas origens remontam à acumulação primitiva
(ou originária), tal como formulada por Marx. Harvey (2004), por sua
vez, fala sobre as modalidades predatórias do capitalismo contemporâneo
no âmbito da mundialização do capital, da acumulação flexível e do
neoliberalismo, como formas de repor, a seu modo, a acumulação
primitiva. Elas não são mais relegadas à uma etapa originária, tida como
não mais relevante, ou “exterior” ao capitalismo como sistema fechado
86
(LUXEMBURG, 1983), mas uma característica fundamental de sua atual
dinâmica de acumulação, o que significa que estas formas predatórias não
apenas já ocorreram, como continuam ocorrendo, explicitando sua
dimensão sistêmica enquanto “sócio-metabolismo da barbárie” (ALVES,
2007).
Em síntese, a “acumulação via espoliação” está ligada à liberação de
um conjunto de ativos (incluindo força-de-trabalho) a custos muito baixos
(e, em alguns casos, zero). O capital sobre-acumulado pode apossar-se
desses ativos e dar-lhes imediatamente um uso lucrativo (HARVEY,
2004, p.124). A acumulação por espoliação diz respeito às diversas
formas pelas quais o capital pode ser acumulado fora de uma relação
propriamente capitalista (troca e exploração de mais-valia), havendo em
seu modus operandi muitos aspectos fortuitos e casuais. Sob o foco deste
estudo específico, a espoliação está ligada à transformação em
mercadorias de formas culturais, históricas e da criatividade intelectual,
que podem ser espoliados de populações inteiras cujas práticas tiveram
um papel vital no desenvolvimento desses materiais27.
Ruy Braga (2009, p.72) dá pistas deste processo ao falar da
degradação da relação de serviço informacional tanto por meio de
terceirizações, como pelo processo de transferência lenta e gradual (mas
segura) de parte da carga de trabalho ao cliente, criando procedimentos
que eliminam o conteúdo comunicativo colocado nesta relação. Quando
nos referimos à infoespoliação, entretanto, não estamos restringindo
nossa análise apenas a esta externalização parcial do processo de trabalho
para o consumo. É mais que isto: o usuário-consumidor não apenas será o
ponto de partida do processo de trabalho ampliado, mas, em decorrência
do caráter interativo da rede, sua ativação será algo sem o que, o próprio
processo produtivo específico não existira. Não se trata, portanto, de uma
conseqüência secundária, como simples alternativa à redução de custos e
aumento da lucratividade, mas algo constituído sobre estes pressupostos
técnicos-materiais.
Esta “produção intelectual em geral”, espoliada no processo
interativo da internet comercial e transformada em um substrato (que é

J: )S
6F* & 7 ? '
)

87
materializado em um elemento de capital constante) não configura um
“consumo produtivo da força-de-trabalho”, ou seja, aqui não há mais-
valia. Quando falamos, portanto, em conhecimento codificado nos
referimos à dados organizados passíveis de transformarem-se em
informação que, por intermédio do trabalho vivo, passam a servir como
matéria-prima para novos processos produtivos. É preciso, pois, evitar o
risco de pensar que trabalho e conhecimento são coisas separadas e
considerar este último como um “novo fator de produção”, pois o mesmo
só pode ser entendido como atributo do próprio trabalho vivo (BOLAÑO;
HERSCOVICI, 2005).
Este aspecto contraditório de seu processo produtivo, portanto, não
deve ser entendido como fusão, dissociação ou substituição do trabalho
diretamente produtivo. Exploração de mais valia articulada à
infoespoliação, antes de constituírem rupturas ou obstáculos recíprocos à
acumulação de capital, se complementam ampliando notavelmente a
sinergia destes processos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O caráter crescentemente híbrido e metamórfico da internet coloca
consideráveis dificuldades não apenas para o desenvolvimento de
pesquisas que a tomam como objeto de estudo, como também para sua
própria regulamentação jurídica e utilização capitalista, as quais, por sua
vez, colocam novas e amplas incongruências entre reprodução social e
forma social do capital nas sociedades capitalistas contemporâneas.
O que buscamos salientar neste ensaio é que existe um vínculo
orgânico entre a “acumulação via espoliação” e as novas práticas
empresariais de “captura” da subjetividade do trabalho vivo, dos quais a
infoespoliação, se caracterizaria como o processo de apropriação,
manipulação, armazenamento e mercantilização do substrato
informacional/interativo utilizado nos processos produtivos das empresas
de comunicação.
Talvez, a infoespoliação seja apenas o início de um processo
mais amplo de mercantilização do intelecto geral. Disto resulta que o
fazer humano, sua práxis, independente da forma que assuma e/ou se
metamorfoseie na dinâmica de acumulação contemporânea, tende (lógica

88
e estruturalmente) a limitar o pleno desenvolvimento das potencialidades
humanas.

REFERÊNCIAS:
1. ABBATE, J. Inventing the internet. Cambridge: MIT Press, 1999.
2. ALVES, G. Ciberespaço e Fetichismo. in ALVES; MARTINEZ
(Org.) Dialética do Ciberespaço – Trabalho, Cultura e Tecnologia
no Capitalismo Global.. Bauru: Editora Práxis, 2003.
3. ______. Crise estrutural do capital, trabalho imaterial e modelo de
competência: notas dialéticas. In ALVES; BATISTA (Org.)
Trabalho e Educação: contradições do capitalismo global.
Maringá: Ed. Práxis, 2006.
4. ______. Trabalho e Subjetividade. Ensaio sobre o metabolismo
social da reestruturação produtiva do capital. Tese de Livre
Docência. UNESP. Marília: 2007.
5. ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a afirmação
e a negação do trabalho. São Paulo, Boitempo Editorial,1999.
6. ______. Adeus ao trabalho? Ensaio Sobre as Metamorfoses e a
Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo, 2002.
7. ______. Material e imaterial. Folha de São Paulo, caderno Mais!
São Paulo: 13/08/2000.
8. ANTUNES, R; BRAGA, R (org). Infoproletários: degradação real
do trabalho virtual. São Paulo, Boitempo, 2009.
9. BOLAÑO, C (org.). Privatização das telecomunicações na
Europa e na América Latina. Aracaju: EDUFS, 1997.
10. ______. Indústria cultural, informação e capitalismo. São Paulo:
Hucitec, 2000.
11. ______. Trabalho intelectual, comunicação e capitalismo. A re-
configuração do fator subjetivo na atual reestruturação produtiva.
Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, Rio de
Janeiro, n. 11, p. 53-78, dez. 2002.

89
12. ______. Economía política y conocimiento en la actual
reestructuración productiva. In: ______. Da derivação à regulação:
para uma abordagem da Indústria Cultural. Revista de Economia
Política de lãs Tecnologias de la Información y Comunicación.
vol.V, n.3, sep-dic, 2003. Disponível em: <www.eptic.com.br>.
13. ______. Economia política da internet. Aracaju: Ed. UFS, 2007.
14. BOLAÑO; MASTRINI; SIERRA (Eds.) Economía política,
comunicación y conocimiento: una perspectiva crítica
latinoamericana. Buenos Aires: La Crujía, 2005.
15. BRAGA, R. Infotaylorismo: o trabalho do teleoperador e a
degradação da relação de serviço. Revista de Economia Política de
lãs Tecnologias de la Información y Comunicación. vol.VIII, n.1,
ene-abr, 2006. Acesso em: 01/03/2008. Disponível em:
<www.eptic.com.br>.
16. BRAVERMAM, H. Trabalho e Capital Monopolista: A
degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1977.
17. BRUNO, F. Dispositivos de vigilância no ciberespaço: duplos
digitais e identidades simuladas. Revista Fronteiras – estudos
midiáticos. VIII (2): 152-159. Unisinos, maio/agosto, 2006.
18. CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital. São Paulo: Xamã,
1996.
19. CRUZ, L.R. Internet e direito autoral: o ciberespaço e as
mudanças na distribuição cultural. Dissertação de Mestrado.
UNESP. Marília: 2008.
20. FAUSTO, R. Marx – lógica & política. Investigações para uma
reconstituição do sentido da dialética. Tomo I e II. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 1983; 1987.
21. ______. Marx – lógica & política. Investigações para uma
reconstituição do sentido da dialética. Tomo III. São Paulo: Ed. 34,
2002.
22. FLEURY, A.L. Dinâmicas organizacionais em mercados
eletrônicos. São Paulo: Ed. Atlas, 2001.

90
23. FRAGOSO, S. Quem procura, acha? O impacto dos buscadores
sobre o modelo distributivo da World Wide Web. in. Revista de
Economia Política de lãs Tecnologias de la Información y
Comunicación. vol.IX, n.3, sep-dec, 2007. Acesso em: 01/03/2008.
Disponível em: <www.eptic.com.br>.
24. GORZ, A. O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo:
Annablume, 2005.
25. HARDT, M; NEGRI, A. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
26. HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Edições Loyola,
2004.
27. LAZZARATO, M; NEGRI, A. Trabalho imaterial. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.
28. LOJKINE, J. A Revolução Informacional. São Paulo, Ed. Cortez,
1999.
29. LOPES, R.S. Informação, conhecimento e valor. São Paulo:
Radical Livros, 2008.
30. LUKÁCS, G. Il Lavoro, Ontologia Dell’Essere Sociale. Trad.
Alberto Scarponi. Roma: Riuniti, 1981.
31. LUXENBURG, R. A acumulação do capital. 3ª edição. Rio de
janeiro: Zahar, 1983.
32. MARX, K. Capítulo VI Inédito de O Capital. Resultado do
processo de produção imediata. São Paulo: Ed. Moraes, 1985.
33. ______. O Capital: crítica da economia política. (Os Economistas).
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
34. MELO NETO, A.P. Tele-trabalho: novas formas de subsunção do
trabalho ao capital? (2004). Acesso: março/2005
<http://twiki.im.ufba.br/bin/view/PSL/TeleTrabalho>.
35. MONTEIRO, A. Trabalho, ciberespaço e acumulação de capital:
estudo sobre produção e consumo na interatividade da internet
comercial. Dissertação de mestrado. Marília, 2008a.
36. _______. Google, subjetividade e valor: notas sobre produção e
consumo na interatividade da internet comercial. In: TUMOLO,
91
Paulo e BATISTA, Roberto (Org.). Trabalho, Economia e
Educação: perspectivas do capitalismo global. Maringá: Práxis;
Massoni, 2008b.
37. NAPOLEONI, C. Lições Sobre o Capítulo VI (Inédito) de Marx.
Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Ed. Ciências Humanas,
1981.
38. OLIVEIRA, F. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo:
Boitempo, 2008.
39. PRADO, E. Desmedida do valor. Crítica da pós-grande indústria.
São Paulo: Xamã, 2005.
40. RECUERO, R. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina,
2009.
41. WOLFF, S. Informatização do trabalho e reificação: uma análise
à luz dos programas de qualidade total. Campinas: Ed. Unicamp;
Londrina: Eduel, 2005.

92
MAQUINARIA E MANUFATURA NA FÁBRICA
FLEXÍVEL:
autonomia e heteronomia no trabalho*

∗∗
$

A década de 70 inaugurou um período de fortes desequilíbrios


econômicos globais, causados tanto pelo súbito aumento de preço do
petróleo no mercado internacional em 1973 e em 1979, quanto pelas
sucessivas valorizações e desvalorizações do dólar, praticamente
impostas pelos EUA desde então, como em 1978 e em 1985. Como
decorrência, iniciou-se as primeiras grandes variações nas taxas de
câmbio dos países, acentuando a internacionalização e o já crescente
volume de investimentos em capitais financeiros, que, por meio da
tecnologia microeletrônica aplicada à informação, passaram a especular
sobre estas flutuações cambiais. A tal conjuntura, somaram-se as quedas
das taxas de lucro, sobretudo, nos setores industriais, pondo em xeque o
“período áureo do capitalismo” e sua combinação do taylorismo/fordismo
junto às políticas estatais keynesianas (Cf.: DEDECCA, 1998; HARVEY,
1992; MATTOSO, 1994; QUADROS, 1991; TAVARES, 1992).
Expandiram-se, então, as designadas experiências “flexíveis” de
gestão do trabalho e da produção, entre as quais, destacaram-se, no que
tange as relações entre as empresas no mercado, a chamada
“especialização flexível”, na Terceira Itália (Vêneto, Emilia-Romana,
Marcas e Toscana), ou então, no plano interno das plantas, a gestão do
trabalho em Grupos Semi-Autônomos em Kalmar, na Suécia (Cf.:
CATTANI, 1999; FLEURY & VARGAS, 1983).
Porém, o mais polêmico e ousado sistema de gestão foi o
desenvolvido na Toyota Motor Company, no Japão, desde os anos 50:
além da profunda reorganização do trabalho internamente às plantas, tal

+ ? !!! " > +


" % + # , * G J;;8
∗∗
E " &% ' %>!6 "+ # ! ) 1
]

93
sistema sustenta-se numa rede de subcontratação entre grandes firmas
cujas relações são muito mais fortes e estruturadas que no caso italiano, e
sua difusão entre as firmas ocidentais na década de 80 foi significativa
(Cf.: AMIN & MALMBERG, 1996; CURRY, 1993; HIRAOKA, 1989;
GARRAHAN & STEWART, 1994).
Tais sistemas, sobretudo, o toyotista, passaram a questionar a
“rigidez” inerente à estrutura verticalizada e estandardizada fordista como
a melhor forma de manter-se a combinação entre produtividade, baixos
custos e o alto controle administrativo1. Uma capacidade para atender
rapidamente pedidos pequenos e variados foi sendo obtida pela
introdução de mecanismos de parada automática nas máquinas,
permitindo-as serem operadas em grande número pelo mesmo
trabalhador, concomitante à adaptação de técnicas de gestão de estoques,
desde o âmbito da produção até o nível das relações entre as empresas
enquanto clientes e fornecedoras nas cadeias produtivas – just in time/kan
ban (Cf.: ANTUNES, 1995; CORIAT, 1994; GOUNET, 1999; OHNO,
1997; SAYER, 1986; SILVA, 1991).
O resultado é uma horizontalização da estrutura produtiva e da
hierarquia de cargos nas empresas, por meio da qual alteram-se das
funções ao conteúdo das atividades desempenhadas pelos trabalhadores,
gerando-se a chamada “polivalência”, a organização em células ou em
equipes de trabalho, entre outras inovações cujas implicações sobre os
trabalhadores compõem um quadro ainda bastante heterogêneo e em
construção.
Enfocando especificamente a questão da qualificação, há uma
controvérsia acerca dos reais efeitos destas estratégias de gestão. Há
estudos que trazem evidências de que, em certos casos, promoveu-se uma
relativa ampliação do raio de ação dos trabalhadores sobre o conjunto de
tarefas que desempenham nas empresas, apontando para uma inversão da
especialização taylorista/fordista. Apontam-se, inclusive, elevações nos
níveis de escolaridade nas empresas, dado que atividades de controle de
qualidade e a operação e a programação de equipamentos de base micro-
eletrônica exigem uma formação educacional mais extensa (Cf.:

1
. ) /
* &588K'D * &588L 588U'D &J;;:
J;;: 'D &588U'D " &5885'

94
FREYSSENET, 1993; POSTHUMA, 1995; RACHID, 1994 E 2000;
RABELO, 1989 E 1994; SILVA, 1991).
Outros estudos, porém, mostram que tais situações têm se
concentrado nas grandes empresas líderes, sobretudo, em suas matrizes e
que, mesmo nestes casos, o alto nível de formação técnica e escolar, a
flexibilidade nos postos de trabalho e na organização das equipes são
nada mais que a contraface de um “envolvimento” dos trabalhadores
construído pelas gerências mediante programas onde se mesclam a
persuasão e a coerção (Cf.: BRUNO, 1996; CASTILLO, 1996 e 2000;
GOUNET, 1999; LEITE, 1995; LIMA, 2004; MARCELINO, 2004;
SHIROMA, 1993; RIQUELME, 1994; OLIVEIRA, 1996). Além disso,
há evidências de que esta elevação dos níveis de escolaridade seja o
resultado de substituições de quadros pelas empresas2 e, aliás, de que até
mesmo os novos e supostamente mais qualificados trabalhadores não
lograram maior estabilidade ou reconhecimento profissional (Cf.:
ANTUNES, 1995; DEDECCA, 1998; JÁCOME RODRIGUES, 1998;
MATTOSO, 1994; SALM, 1998; SENNETT, 2002; SMITH, 1994).
A reestruturação produtiva iniciou seu avanço no Brasil na década de
80, mas expandiu-se de forma mais abrangente e sistemática após o
contexto de abertura comercial e ajustes recessivos internos dos anos 90,
sob a égide dos governos neoliberais. A indústria automotiva, tal como
nos países centrais, foi por excelência o palco desse processo, sendo o
setor de autopeças o protagonista das mais severas transformações, em
um primeiro momento pelas urgentes reestruturações que suas maiores
empresas empreenderam em face do impacto da sua exposição à
competitividade internacional, e, em um segundo momento, pelas
estratégias postas em curso pelos próprios oligopólios transnacionais que
as adquiriram3.
Uma pesquisa no setor de autopeças do Brasil, realizadas entre 1996-
1997 em três estados da federação, apontou que a difusão de elementos
do sistema toyotista como o just in time/kan ban, a reorganização da
produção em células e dos postos de trabalho com vistas à polivalência,

2
E S ? 0
)S - ) )S
&G6".>E!"h! 5889'
3
" ) ) &J;;9'

95
bem como a utilização da automação microeletrônica junto à presença de
uma força de trabalho com elevados níveis de escolaridade, são atributos
visivelmente superiores da região de Campinas, no interior do Estado de
São Paulo, frente às demais do país (ABREU et al., 2000)4. E, de fato,
pudemos comprovar estes aspectos em um estudo de caso que realizamos
nesta região entre 2005-2006, em uma planta subsidiária de uma
sistemista transnacional de autopeças, à qual nos referiremos aqui pelo
nome fictício de American Company do Brasil (Cf.: PINTO, 2007c).
Um dos diretores do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas que
entrevistamos teceu-nos as seguintes considerações no tocante às novas
exigências em termos de formação educacional e profissional dos
trabalhadores na reestruturação produtiva:
+ ) ) \ B C
@ - " >.!
@ Q - 1
? > B C
B C
" >.! Q - Q -
,
&#G.>*!"*6 J;;9 4 34 34 '
Este aprimoramento não implica, no entanto, necessariamente uma
ampliação das qualificações operárias. Um candidato a operador-
ajustador de prensa ou de enroladeira, por exemplo, para ser contratado já
necessitaria ter, no mínimo, a formação completa em nível médio e um
curso técnico de ajustagem ou de mecânica, sendo desejável uma
experiência profissional de pelo menos dois anos. A gerência já contava à
época, inclusive, com um plano estratégico entre cujas metas está a
formação em nível médio de todos os trabalhadores da produção direta. A
organização em células, por sua vez, acumulou entre estes trabalhadores
atividades de manufatura, troca de ferramental, controle de qualidade,
manutenção dos equipamentos e apontamentos da própria produção em

4
KL ) 0 4"
& * ' G ^ G I " 5889 588:
> *
& ' > @
0 &"!>E! i."D
.(! i." J;;8'

96
terminais eletrônicos, além do deslocamento a qualquer ponto da fábrica,
conforme as demandas de cada célula.
No entanto, se de um lado tais trabalhadores passaram a receber
treinamentos sobre sistemas de qualidade, metrologia industrial,
estatística, interpretação de desenhos e gráficos, programação e em
alguns casos até mesmo a manutenção de equipamentos
computadorizados, de outro lado assumiram também a limpeza dos
gabinetes, bancadas, máquinas e até mesmo do chão onde trabalham,
embora não tivessem percebido quaisquer mudanças salariais compatíveis
com estas funções.
Um dos operadores-ajustadores que entrevistamos, por exemplo,
indagado se o seu pagamento foi ampliado pelo acúmulo de novas
funções, ou se houve algum reconhecimento formal por parte da gerência,
quanto ao cargo, que se tornou mais complexo, nos disse:
> >
, *
>
1
-
B C >
-
. ) >
< ) )
B ) , C &*X".G
J;;9 4 34 34 '
Segundo o gerente de recursos humanos da American Company do
Brasil, isso ocorre...
B C > B C -,
, (
0 B -
, )S C F
-,
, &G!( !G6 J;;K 4 34
34 '
Foi-nos relatado, pelo próprio presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de Campinas, que muitas empresas da região insistiram, ao
implantar a polivalência, em alterar as descrições de cargos de suas

97
hierarquias, mediante a reunião de atividades as mais distintas num só
cargo, designado “operador multifuncional”, exatamente para
descaracterizar as qualificações precedentes dos trabalhadores nelas
anteriormente ocupados para, num segundo momento, promover um
“rateio por baixo” de todos os salários:
.
,
,
)S
,
0 < )
)S
X
)
= A #
.
? ,
*>*
) = A ?
, )S &".>+6" J;;: 4 34
34 '
A questão vai além dos salários. O intuito das gerências é que as
células formem entre si um grande e coeso “time de trabalho” e que se
reproduza, em todos os níveis hierárquicos da fábrica, o
comprometimento com os resultados finais do negócio. Em outros
termos, a intenção é reproduzir, o mais fielmente possível, nas relações
entre os funcionários gerenciais e operacionais, o ideário das relações de
troca mantidas entre as empresas clientes e fornecedoras no nível da
cadeia produtiva em que se insere a planta. Nas palavras do mesmo
gerente anteriormente citado: “[...] é a figura do ‘cliente interno’, e de que
tudo se interliga. E o que manda é o resultado final da empresa, quando a
peça for faturada ‘exclusiva’ para um cliente” (RIBEIRO, 2005 –
transcrição de gravação).
As gerências contam, para isso, com a instituição de “líderes” de
setores e células, aos quais atribuem, dependendo dos seus
conhecimentos sobre os processos, a coordenação do trabalho dos
colegas. No caso da empresa que pesquisamos em Campinas, a escolha

98
destes líderes passa pela sua pró-atividade e comprometimento com a
fábrica, além da possibilidade de assumir funções diversas.
Disse-nos o gerente de recursos humanos:
" ,
= ,A
, D

) &G!( !G6 J;;K 4 34 34 '


É perceptível que neste “perfil de liderança” deve haver algo mais
que o conhecimento técnico: deve haver, sobretudo, o comprometimento
com os ideais da empresa e o bom relacionamento no ambiente de
trabalho. Ou seja, se a escolaridade, a formação e a experiência
profissional5, aspectos bastante tangíveis e, portanto, “rígidos”, compõem
os três itens mais importantes nas contratações (conforme pudemos
identificar como requisitos mínimos nas descrições de cargos elaboradas
pela American Company do Brasil), eles não são os únicos itens
requisitados nas promoções do mercado interno de trabalho na empresa,
pois contam, neste ponto, elementos comportamentais que são definidos
no dia a dia, muitas vezes em situações adversas e quase sempre
intangíveis ou imensuráveis pelos próprios trabalhadores. São estes
elementos que concebemos como “fluidos”.
Trata-se de uma relação entre gerência e produção que,
contrariamente à “rigidez” presente nas prescrições tayloristas e fordistas,
assenta-se em uma espécie de “fluidez” que reforça a idéia de “clientes” e
“fornecedores” entre os agentes de um trabalho dividido em vários níveis
de uma empresa.
Em outras palavras, espera-se que um operário ultrapasse em boa
medida os deveres que lhe cabem segundo o estatuto que rege o seu
cargo. Espera-se que busque, autonomamente, ampliar cada vez mais os

5
? = , A
, 0 ? 0

? )
,
) 0
) )

99
seus conhecimentos acerca da função que desempenha para, a partir daí,
analisar, criticamente, tanto o seu próprio desempenho, quanto o papel
exercido pela sua função na divisão do trabalho da empresa, análise que
lhe permitirá intervir em outras funções acima e abaixo da sua na
hierarquia de cargos, seja na prevenção de falhas, seja na sugestão de
melhorias. Espera-se, em última instância, deste novo perfil de
trabalhador, um controle não apenas do próprio desempenho, mas dos
demais colegas com os quais suas atividades estejam envolvidas
diretamente na empresa.
É impressionante como a introdução deste sistema, ao tempo em que
reforça o espírito de equipe pela divisão das tarefas, amplia a
individualização entre os pares no interior das equipes e entre estas,
sobretudo, considerando-se o seu desenvolvimento conjuntamente aos
chamados “mercados internos de trabalho” nas empresas, elemento que,
paralelamente ao uso intensivo da força de trabalho, promove o seu uso
extensivo e em larga escala como engrenagem da acumulação de capital.
No comprometimento da empresa em aproveitar os seus próprios
quadros estão presentes não apenas suas ações no sentido de intensificar o
trabalho por meio da polivalência, mas, na mesma direção, sua postura de
servilizar o corpo de trabalhadores dentro das suas relações de
dominação. E em nenhuma das duas situações isto está, como bem diz o
gerente de recursos humanos que entrevistamos na American Company
do Brasil, “determinado no papel”. Nas suas palavras:
B C. , 1
= -

A
, , +
+ 0
T
, ,
&G!( !G6 J;;K 4 34
34 '
O que os trabalhadores têm “consciência”, segundo o gerente, é de
que nada que parta diretamente deles mesmos, lhes garante uma
promoção de cargo. Tudo o que lhes é possível angariar, em termos de
suas qualificações educacionais, profissionais e comportamentais, são

100
apenas pré-requisitos para uma eventual promoção, pré-requisitos que
podem, inclusive, mudar de feição ao longo do tempo de permanência
dos trabalhadores na empresa. Permanência esta, aliás, que, embora lhes
provenha de experiências profissionais e de um convívio mútuo, também
nada lhes garante de concreto.
É o mundo da efemeridade nas relações sociais, sobre as quais,
contraditoriamente, se constroem lealdades comuns, profundamente
enraizadas e constantemente realimentadas por compromissos bastante
objetivos, todos, no entanto, passíveis de serem rescindidos, de forma
abrupta, sob qualquer circunstância que interesse a apenas uma das
partes. Um mundo da moral descartável sobre o qual Sennett insiste
dolorosamente em seu ensaio, pois todos já nos cansamos de vivenciar
tais situações dentro e fora das nossas relações de trabalho:
> ? G F
h - = A , =
) A )
)S )S
) )S
, &" >> + J;;J 5;5' 9

Em síntese, em consonância com apontamentos presentes em grande


parte da literatura sobre o assunto, o estudo de caso que realizamos no
setor de autopeças de Campinas demonstra que a automação de base
microeletrônica, a celularização e a polivalência resultaram em visível
redução de custos à empresa, seja pelo maior controle que as gerências
adquiriram sobre os processos de trabalho e sua flexibilidade, seja pela
concentração de atividades sob a responsabilidade de um quadro cada vez
mais enxuto. Os trabalhadores, sobretudo, nas esferas operacionais, além
de estarem desempenhando de forma mais intensa e vigiada suas tarefas,
não perceberam quaisquer mudanças nos seus salários, cuja variação
permanece atrelada apenas às variáveis exógenas à economia da empresa,
como a inflação e o custo de vida, numa clara explicitação do salário
como preço da mercadoria força de trabalho, destinado a provê-la na
reprodução das suas condições mínimas de subsistência.

6
. ) " ? 0 B
> ! " j" 58V8

101
A forte integração interfirmas num plano de cadeias globais de
fornecimento, as reduções de níveis hierárquicos nas plantas e as
necessidades cada vez maiores de focalização, são processos que têm
colocado a formação educacional e profissional, assim como o
conhecimento de mais de um idioma, como requisitos “básicos”, além
dos quais valorizam-se saberes como “trabalhar em equipe”, “manter
conhecimentos gerais atualizados” e autonomia para “qualificar-se por
conta própria”. E mais: a aceitação, pelo trabalhador, em não esperar que
a empresa “cuide de sua carreira”, mas de “trabalhar por ela” e “sob
pressão”, conforme nos informou o gerente de Recursos Humanos
entrevistado da American Company do Brasil.
Trata-se, portanto, de formas de precarização dos contratos e das
condições de trabalho que têm sido impostas aos assalariados,
paralelamente ao aumento da produção material, da acumulação de
capital e da riqueza concentradas sob o controle de grupos oligopólicos
transnacionais.

REFERÊNCIAS:
1. ABREU, Alice Rangel de Paiva et al. Produção flexível e relações
interfirmas: a indústria de autopeças em três regiões do Brasil. In:
ABREU, Alice Rangel de Paiva (Org.). Produção flexível e novas
institucionalidades na América Latina. Rio de Janeiro: Ed. da
UFRJ, 2000. p. 27-73.
2. AMIN, A.; MALMBERG, A. Competing structural and instituional
influences on the geography of production in Europe. In: AMIN, A.
(Edit.) Post-fordism: a reader. Oxford: Blackwell, 1996.
3. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as
metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. Campinas, SP:
Cortez; Ed. da UNICAMP, 1995.
4. BRUNO, Lúcia. Educação, qualificação e desenvolvimento
econômico. In: BRUNO, Lúcia (Org.). Educação e trabalho no
capitalismo contemporâneo: leituras selecionadas. São Paulo:
Atlas, 1996. p. 91-123.
5. CASTILLO, Noela Invernizzi. Automação e qualificação do
trabalho: elementos para um enfoque dialético. 1996. Dissertação

102
(Mestrado) – Instituto de Geociências/UNICAMP, Campinas, SP,
1996.
6. ______. Novos rumos do trabalho: mudanças nas formas de
controle e qualificação da força de trabalho brasileira. 2000. Tese
(Doutorado) – DPCT/IG/UNICAMP, Campinas, SP, 2000.
7. CASTRO, Nadya Araújo de. Modernização e trabalho no complexo
automotivo brasileiro: reestruturação industrial ou japanização de
ocasião? In: CASTRO, Nadya Araújo de (Org.). A Máquina e o
equilibrista: inovações na indústria automobilística brasileira. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
8. CATTANI, Antonio David. Trabalho e tecnologia: dicionário
crítico. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Ed. da UFRGS, 1999.
9. CÉSAR, Paulo. Depoimento [entrevista realizada com trabalhador
da esfera da Produção da American Company do Brasil em 2006].
Entrevistador: Geraldo Augusto Pinto. Campinas, SP: [s. n.], 2006. 2
cassetes sonoros (120 min.) [Arquivo pessoal do pesquisador].
10. CORIAT, Benjamin. Ohno e a escola japonesa de gestão da
produção: um ponto de vista de conjunto. In: HIRATA, Helena
Sumiko (Org.) Sobre o “modelo” japonês: automatização, novas
formas de organização e de relações de trabalho. São Paulo: EDUSP,
1993. p. 79-91.
11. ______. Pensar pelo avesso: o modelo japonês de trabalho e
organização. Rio de Janeiro: Revan; Ed. da UFRJ, 1994.
12. CURRY, James. The flexibility fetish: a review essay on flexible
specialisation. Capital & Class, n. 50, summer 1993.
13. DEDECCA, Cláudio Salvadori. Reestruturação produtiva e
tendências de emprego. In: OLIVEIRA, Marco Antônio (Org.).
Economia & Trabalho: textos básicos. Campinas, SP, CESIT/IE;
Ed. da UNICAMP, 1998. p. 163-186.
14. FLEURY, Afonso Carlos Corrêa. Rotinização do trabalho: o caso
das indústrias mecânicas. In: FLEURY, Afonso; VARGAS, Nilton
(Coord.) Organização do trabalho: uma abordagem interdisciplinar
– sete estudos sobre a realidade brasileira. São Paulo: Atlas, 1983. p.
84-106.
103
15. FRANCISCO, José. Depoimento [entrevista realizada com um dos
diretores do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas em 2006. O
nome usado aqui é fictício. Entrevistador: Geraldo Augusto Pinto
Campinas, SP: [s. n.], 2006. 2 cassetes sonoros (120 min.) [Arquivo
pessoal do pesquisador].
16. FREYSSENET, Michel. Formas sociais de automatização e
experiências japonesas. In: HIRATA, Helena Sumiko (Org.) Sobre o
“modelo” japonês: automatização, novas formas de organização e
de relações de trabalho. São Paulo: EDUSP, 1993. p. 153-162.
17. GARRAHAN, P.; STEWART, P. Progress to decline? In:
GARRAHAN, P.; STEWART, P (Edits.) Urban change and
renewal: the paradox of place. Aldershot: Avebury, 1994.
18. GOUNET, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização do
automóvel. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
19. HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola,
1992.
20. HIRAOKA, L. Japanese automobile manufacturing in an American
setting. Technological Forecasting and Social Change. Vol. 35, n.
1. March. 1989. p. 29-49.
21. JÁCOME RODRIGUES, Iram. Sindicalismo, emprego e relações de
trabalho na indústria automobilística. In: ANTUNES, Ricardo
(Org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos. 2. ed. São Paulo:
Boitempo, 1998. p. 115-129.
22. LEITE, Elenice. Renovação tecnológica e qualificação do trabalho.
In: CASTRO, Nadya Araújo de (Org.). A máquina e o equilibrista:
inovações na indústria automobilística brasileira. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1995. p.159-177.
23. LIMA, Eurenice de Oliveira. O encantamento da fábrica:
toyotismo e os caminhos do envolvimento no Brasil. São Paulo:
Expressão Popular, 2004.
24. MARCELINO, Paula Regina Pereira. A logística da precarização:
terceirização do trabalho na Honda do Brasil. São Paulo: Expressão
Popular, 2004.

104
25. MATTOSO, Jorge E. L. O novo e inseguro mundo do trabalho nos
países avançados. In: OLIVEIRA, Carlos Alonso de et al. (Org.). O
mundo do trabalho: crise e mudança no final do século. São Paulo:
Ed. Página Aberta; Scritta, nov. 1994. p. 521-562. (Projeto Mercado
de Trabalho, Sindicatos e Contrato Coletivo, MTb/PNUD,
CESIT/IE/UNICAMP, FECAMP).
26. OHNO, Taiichi. O sistema toyota de produção: além da produção
em larga escala. Porto Alegre, RS: Bookman, 1997.
27. OLIVEIRA, Dalila Andrade. A qualidade total na educação: os
critérios da economia privada na gestão da escola pública. In:
BRUNO, Lúcia (Org.). Educação e trabalho no capitalismo
contemporâneo. São Paulo: Atlas, 1996. p. 57-90.
28. PINTO, Geraldo Augusto. Uma introdução à indústria automotiva
no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (Org.) Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 77-92.
29. ______. A máquina automotiva em suas partes: um estudo das
estratégias do capital nas autopeças em Campinas. Tese (Doutorado
em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2007c.
30. ______. A organização do trabalho no século XX: taylorismo,
fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2007a.
31. ______. Uma abordagem metodológica do tema reestruturação
produtiva. Idéias, Campinas, SP, v. 14, p. 149-159, 2007b.
32. POSTHUMA, Anne Caroline. Japanese production techniques in
Brazilian automobile components firms: a best practice model or
basis for adaptation? In: SMITH, Chris; ELGER, Tony (Edits.).
Global japanization? The transnational transformation of the labour
process. London, New York: Routlegde, 1994. p. 348-377.
33. ______. Técnicas japonesas de organização nas empresas de
autopeças no Brasil. In: CASTRO, Nadya Araújo de (Org.). A
máquina e o equilibrista: inovações na indústria automobilística
brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 301-332.
34. QUADROS, Waldir José de. Crise do padrão de desenvolvimento
no capitalismo brasileiro: breve histórico e principais
105
características. Campinas, SP: CESIT/IE/UNICAMP, 1991.
(Cadernos do CESIT, textos para discussão n. 6).
35. RABELO, Flávio Marcílio. Automação, estrutura industrial e
gestão da mão-de-obra: o caso da introdução de máquinas
ferramenta com comando numérico na indústria metal mecânica.
1989. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Economia da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1989.
36. ______. Qualidade e recursos humanos na indústria brasileira de
autopeças. 1994. Tese (Doutorado) – Instituto de Economia da –
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, 1994.
37. RACHID, Alessandra. O Brasil imita o Japão? A qualidade em
empresas de autopeças. 1994. Dissertação (Mestrado) –
Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de
Geociências da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
1994.
38. ______. Relações entre grandes e pequenas empresas de
autopeças: um estudo sobre a difusão de práticas de organização da
produção. 2000. Tese (Doutorado) – Faculdade de Engenharia
Mecânica da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
2000.
39. RIBEIRO, Jorge. Depoimento [entrevista realizada como o gerente
de Recursos Humanos da American Company do Brasil em 2005].
Entrevistador: Geraldo Augusto Pinto Campinas, SP: [s. n.], 2005. 9
cassetes sonoros (540 min.) [Arquivo pessoal do pesquisador].
40. RIQUELME, Graciela C. La Gestión de Calificaciones en un
Contexto de Reestructuración Productiva Internacional. In:
GITAHY, Leda (Org.). Reestructuración productiva, trabajo y
educación en America Latina. Campinas, SP: IG/UNICAMP; RED
CIID-CENEP: Buenos Aires, 1994. p. 153-170.
41. ROSANDISKI, Eliane Navarro. Reestruturação organizacional:
uma avaliação a partir da estrutura do emprego do setor automotivo
paulista – 1989-1994. 1996. Dissertação (Mestrado) – Instituto de
Geociências da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP,
1996.
106
42. SALM, Cláudio. Novos requisitos educacionais do mercado de
trabalho. In: OLIVEIRA, Marco Antônio (Org.) Economia &
Trabalho: textos básicos. Campinas, SP, CESIT/IE; Ed. da
UNICAMP, 1998. p. 235-252.
43. SANTOS, Jair dos. Depoimento [entrevista realizada com o
presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas em 2007].
Entrevistador: Geraldo Augusto Pinto. Campinas, SP: [s. n.], 2007. 2
cassetes sonoros (120 min.) [Arquivo pessoal do pesquisador].
44. SAYER, Andrew. New developments in manufacturing: the just-in-
time system. Capital & Class, n. 30, winter 1986.
45. SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: conseqüências
pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro, RJ:
Record, 2002.
46. SHIROMA, Eneida Oto. Mudança tecnológica, qualificação e
políticas de gestão: a educação da força de trabalho no modelo
japonês. 1993. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 1993.
47. SILVA, Elizabeth Bortolaia. Refazendo a fábrica fordista:
contrastes da indústria automobilística no Brasil e na Grã-Bretanha.
São Paulo: Hucitec; FAPESP, 1991.
48. SINDIPEÇAS – Sindicato Nacional da Indústria de Componentes
para Veículos Automotores; ABIPEÇAS – Associação Brasileira da
Indústria de Autopeças. Desempenho do Setor de Autopeças:
2009. São Paulo: [s. n.], 2009.
49. SMITH, Tony. Flexible production and the capital/wage labour
relation in manufacturing. Capital & Class, n. 53, summer 1994.
50. TAVARES, Maria da Conceição. Ajuste e reestruturação nos países
centrais: a modernização conservadora. Economia e Sociedade,
Campinas, SP: IE/UNICAMP, Scritta, n. 1, p. 21-57, ago. 1992.

107
108
DO TRABALHADOR DESCARTÁVEL À RE-
EFETIVAÇÃO DO SER GENÉRICO:
um debate acerca do tempo disponível a partir da
experiência dekassegui*

*
%& ' # (

INTRODUÇÃO
A repercussão da crise mundial do capitalismo entre aqueles que
partiram rumo aos postos de trabalho das fábricas japonesas se apresenta
como uma espécie de atualização dramática do ciclo de incerteza
instaurado pela reestruturação produtiva, com o descarte de uma parcela
crescente destes trabalhadores e a intensificação ainda maior do trabalho
sobre aqueles que vêm permanecendo empregados.
Em meio a esta realidade, assiste-se à chegada de um considerável
contingente de trabalhadores desempregados, iniciando um tortuoso
processo de readaptação forçada ao contexto brasileiro. Do dia para a
noite suas vidas foram novamente viradas de cabeça para baixo em razão
das oscilações do mercado de trabalho e da queda da demanda por força
de trabalho.
Uma angústia renovada emerge deste contexto, uma expectativa
permanente em relação a esta condição provisória instaurada pela ordem
social do capital em sua atual fase de desenvolvimento histórico
neoliberal. Em grande medida, o silêncio que perpassa o movimento de
chegada destes trabalhadores os assemelha àqueles combatentes da
Primeira Guerra Mundial mencionados por Walter Benjamin – em
Experiência e pobreza (1933) –, que retornavam silenciosos das

- )
! " < 3 5 34 2 I 4
3 #D # ) . N " &#. " '
) k Ek F . F " -
I ) " #*$ % * . - J;;9 )
0
E " %> "2* . E "
. # # * %> " 2* F 0

109
trincheiras dos campos de batalha, “mais pobres em experiências
comunicáveis, e não mais ricos.” (BENJAMIN, 1994, p.115).
Por trás da crise econômica objetivada em dados estatísticos
referentes às diminuições das taxas de lucro e dos níveis de emprego,
existe a experiência econômica vivenciada por estes sujeitos, vivência
intraduzível, senão pelo silêncio de perplexidade diante da instabilidade
da própria condição de existência, da subordinação radical às
determinações do mercado de trabalho. Deste modo, o presente artigo
propõe desenvolver uma breve reflexão acerca da imprescindibilidade da
categoria trabalho e do tempo disponível, para a construção efetiva de
uma vida dotada de sentido, não no ócio gerado pelo desemprego, mas a
partir do próprio trabalho concebido não de forma abstrata, enquanto
mercadoria, mas concretamente como atividade genérica produtora de
valores de uso, com vistas à satisfação de necessidades humanas, sejam
elas provenientes do estômago ou da fantasia.

O FETICHE DA TECNOLOGIA E A DESEFETIVAÇÃO DO SER GENÉRICO


Entre os jovens trabalhadores retornados do Japão, as conversas
informais, ao mesmo tempo em que constroem imagens positivas da vida
deixada para trás, trazem à tona uma realidade de trabalho estranhado, de
intensa mobilidade e acentuado desgaste. Nesta forma historicamente
determinada de trabalho, no qual o indivíduo não se apropria do resultado
de sua atividade, a energia vital despendida torna-se própria do objeto.
Esta fetichização do produto do trabalho estranhado é condicionada,
portanto, pelo fato de que a energia vital despendida na atividade não foi
apropriada pelo sujeito, mas pelo objeto, que, fetichizado, adquire uma
posição de predominância sobre os próprios trabalhadores.
Por esta razão, os relatos dos momentos de descontração de muitos
destes trabalhadores migrantes confundem-se com o consumo fetichizado
de mercadorias, de objetos tão supérfluos e descartáveis quanto a própria
força de trabalho empregada para produzi-los, quanto as próprias vidas
tornadas mercadorias produtoras de valor, pela lógica da acumulação
capitalista. Dentro deste universo, o entorpecimento por meio de
entretenimentos e jogos eletrônicos é lícito e amplamente difundido entre
crianças, trabalhadores jovens e adultos. Quando fora do local de

110
trabalho, dedicam grande parte do tempo livre e das economias a
atividades inócuas e paralisantes relacionadas ao consumo.
Pelos cantos dos alojamentos e apartamentos de aluguel, avolumam-
se os produtos, as mercadorias compradas durante as horas de folga.
Freqüentemente, por ocasião do retorno ao país de origem, os inúmeros
produtos adquiridos são encaixotados e despachados por via marítima ao
Brasil. O grande volume de produtos supérfluos adquiridos contradiz
flagrantemente, tanto com a instabilidade da condição de emprego,
quanto com os escassos recursos financeiros trazidos por muitos destes
trabalhadores após anos de trabalho.
Simultaneamente a este processo de subjetivação do produto do
trabalho estranhado, o vínculo social entre os indivíduos assume a forma
de “coisa”. A pobreza do trabalhador, enquanto mercadoria – força de
trabalho –, não se resume numa pobreza estritamente material, mas
também se traduz por um empobrecimento de seu mundo interior, uma
limitação de todos os sentidos1 ao sentido de ter, ou seja, de possuir
objetos.
Em relação a este fenômeno, desde o período de ascensão do
nazismo ao poder, Benjamin (1994) já atentava para o surgimento desta
nova forma de miséria surgida a partir deste monstruoso desenvolvimento
da técnica sobrepondo-se aos seres humanos, segundo ele:
B C B C
) *
"
,
&( >^.F!> 588U 55K'
Na relação do trabalho estranhado/alienado – mostra Silveira (1989)
fundamentado na reflexão marxiana – cada indivíduo considera o outro
segundo o critério e a relação na qual ele mesmo se encontra. O
estranhamento interno ao próprio sujeito está implicado em sua relação
estranhada com outros sujeitos. É a subjetivação do valor de troca
operando como núcleo das relações intersubjetivas. No valor de troca, o
vínculo social entre as pessoas transforma-se em relação social entre

1
“A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até
aqui.” (Marx, 2004, p.110).
111
coisas. Esse nexo social – o valor de troca – produz efeitos de um
profundo desenraizamento sobre os indivíduos. Transforma a
dependência pessoal em uma independência pessoal fundada na
dependência com relação às coisas; numa dependência material em
oposição à dependência pessoal. Esta independência é apenas uma ilusão
que, segundo Silveira (1989), melhor seria designada como indiferença,
mútua e generalizada. Esta dependência mútua e generalizada dos
indivíduos reciprocamente indiferentes constitui o nexo social da
sociabilidade capitalista, expressa no valor de troca.
Objetivados por este universo tecnológico da produção industrial e
do consumo de mercadorias, muitos jovens trabalhadores no contexto da
sociedade de consumo japonesa buscam evadir-se quando fora do
trabalho, da única forma que lhes é assegurada, qual seja, no consumo de
mercadorias dotadas de superioridade frente aos próprios trabalhadores,
que, diante das prateleiras das lojas de departamento se detêm
enfeitiçados pelo brilho luminoso dos monitores digitais portáteis, dos
computadores, televisores, telefones celulares, jogos e demais aparelhos
eletrônicos. Ofuscados pelas tecnologias informacionais em avançado
estágio de desenvolvimento, tendem a perder de vista a necessidade
urgente da mobilização política e da luta revolucionária. Atomizados, a
possibilidade de superação da ordem social – mediante a efetivação da
práxis orientada pelo entendimento conseqüente acerca da natureza
histórica e contraditória da própria condição de classe – apresenta-se
como algo impensável, impraticável.
A desefetivação do ser genérico do homem, mencionada por Marx
(2004) em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos (1844) – traduz-se
entre estes trabalhadores por uma naturalização da própria condição
adversa, como um destino “inevitável”, intransponível. A relação
estranhada com o mundo, com as pessoas e consigo mesmo, aparece ao
trabalhador, como algo inerente à própria “natureza humana”, uma
percepção distorcida, desvinculada do entendimento do processo
histórico efetivo, confinando-o a uma existência individualizada,
esvaziada de sentido, presa ao trabalho estranhado, à ideologia do
consumo e à ilusão de um tempo presente eternizado, como se o viver
sempre, desde o início dos tempos, tivesse sido dessa maneira.
A despeito desta percepção distorcida de um presente contínuo, um
quarto de século se passou efetivamente desde que teve início esta
112
emigração de trabalhadores dekassegui ao Japão. Com o acirramento da
crise, do dia para a noite, muitas destas famílias depararam-se
repentinamente com suas reais condições de existência, lançadas à
própria sorte e forçadas a retornar ao Brasil em razão da diminuição das
vagas de emprego neste mercado de trabalho completamente precarizado.
Em meio a esta conjuntura de crise estrutural do capital, como
mostra Mészáros (2006), o desemprego vem se tornando uma
característica dominante em todos os países, levando a uma crescente
precarização das condições de trabalho e das formas de contratação pelo
mundo todo; e gerando um imenso volume de insegurança, tanto entre os
desempregados, quanto entre aqueles que, para assegurar a subsistência,
continuam a encontrar quem compre sua força de trabalho. Como
decorrência desta tendência mundial, o problema do desemprego já não
se restringe apenas aos trabalhadores sem qualificação, mas atinge
também um contingente crescente de trabalhadores qualificados. Ao
mesmo tempo em que os principais setores da indústria expulsam um
número cada vez maior de pessoas de seus processos produtivos tendem a
prolongar as jornadas de trabalho entre aqueles que se mantém
empregados.

AS DESCOMPENSAÇÕES PSÍQUICAS À LUZ DO CONCEITO DE


ESTRANHAMENTO
O trabalho transformado em mercadoria, na medida em que sua
finalidade torna-se a ampliação da riqueza alheia, torna-se uma atividade
danosa ao trabalhador, destruidora de suas faculdades genéricas
espirituais livres. Em conformidade com esta afirmativa, o estudo de
Dejours (1992) mostra que os processos de descompensação
psicopatológica assumem duas formas principais: a primeira
caracterizada por sintomas como, prostração, abatimento, desespero,
depressão, alcoolismo e suicídio; a segunda marcada pelo impulso
reacional de revolta desesperada, que resulta em atos de violência,
depredação, vingança e sabotagem.
Tais descompensações, de acordo com o estudo, são mal conhecidas
porque são ocultadas pelas direções das empresas. Os casos que se
tornam públicos são raros. Toda vez que surge um caso nos veículos de
informação, este se passa por “excepcional”. Embora as conseqüências

113
funestas deste trabalho estejam presentes por toda sociedade, somente
esporadicamente ganham as páginas sensacionalistas dos jornais, onde
são reduzidas à condição banalizada de informação desvinculada do
contexto social das relações de trabalho; e desprovidas de análise teórica
capaz de rearticulá-las criticamente a um nível de entendimento
aprofundado das relações sociais.
O drama vivenciado pela família S., no município de Sertãozinho
(SP), é ilustrativo desta questão. Conforme noticiado pelo jornal Folha de
São Paulo, do dia 18 de agosto de 2000, o ex-bancário M. Y. S., então
com 33 anos de idade, foi preso após assassinar a própria mãe, a
balconista N. S. (66 anos de idade), e tentar o mesmo com o pai,
servindo-lhe um copo de leite envenenado. Segundo o depoimento
prestado à polícia por um vizinho da família, conforme a reportagem, M.
Y. S. vinha sofrendo de transtornos mentais, desde que retornara do
Japão, há pouco mais de dois anos. Três meses antes do assassinato, havia
sido internado num hospital psiquiátrico, em Ribeirão Preto, após uma
tentativa frustrada de suicídio. No momento em que fora encontrado pela
polícia, o ex-bancário e ex-trabalhador dekassegui, dopado, empreendia
uma nova tentativa de suicídio, amarrado a uma corrente, no interior de
uma piscina da casa da família.
O que a reportagem do jornal não menciona, porém, é que este
episódio não constitui um caso isolado, excepcional, mas parte integrante
da vida cotidiana numa sociedade subordinada à sociabilidade moldada
pelo capital, no contexto da reestruturação produtiva. Fenômenos da
mesma natureza também foram constatados por Yoshioka (1995), durante
o período em que esteve no Japão, antes mesmo do auge da crise
econômica. O trabalho realizado pelos médicos psiquiatras Itiro
Shirakawa, da Escola Paulista de Medicina, e Décio Issamu Nakagawa,
da Beneficência Nipo-Brasileira – “Migração e saúde mental no Brasil”
(apud YOSHIOKA, 1995) –, dá uma idéia apenas aproximada da
realidade cotidiana vivenciada por estes trabalhadores.
O estudo inicial realizado por eles, com 62 pacientes atendidos no
ambulatório da Beneficência Nipo-Brasileira de São Paulo e em
consultório particular, no período de janeiro a maio de 1993 apresentou
os seguintes quadros clínicos:

114
B C K8 &8K 5_' 0 a
@ D
&L J_' B C @ D
&5 9_' B C .
0 UU &:U K_' ? D JL
&LV 8_' D &5L K_' -,
0 * 1
=.
0 7
, )
N ) B C
&l6"Q!6h. 588K 5U5 J' J
Embora as considerações tecidas pelos médicos psiquiatras
desconsiderem a relevância do conceito de estranhamento (Entfremdung),
todas estes dados acerca das descompensações psíquicas de
trabalhadores retornados do Japão, apontam que as condições em que se
encontram após o retorno, estão diretamente relacionadas à determinação
de que o trabalhador se relaciona com o produto de seu trabalho, como
com um objeto estranho. Portanto, a afirmação marxiana acerca das
conseqüências desta “objetivação como perda do objeto” revela-se
bastante atual.
Retomando assim a reflexão de Marx (2004), o trabalho estranhado
faz do ser genérico do homem, tanto da natureza, quanto da faculdade
genérica espiritual dele, um ser estranho a ele próprio. Estranha do
homem o próprio gênero humano, seu próprio corpo, assim como a
natureza fora dele, estranha sua essência espiritual, a sua essência
humana. Uma conseqüência imediata de o homem estar estranhado do
produto do seu trabalho, de sua atividade vital e de seu ser genérico é o
estranhamento do homem pelo próprio homem. E se a reação
generalizada entre os próprios trabalhadores diante destes acontecimentos
é de indiferença e apatia, é porque na relação do trabalho estranhado,
cada homem considera o outro, segundo o critério e a relação na qual ele
mesmo se encontra como trabalhador.

J 5m " ( ^ * !
G ^ " 6 77 "
0 9 : 588L l6"Q!6h. 588K 5U5 J

115
O DESCAMINHO DA NORMALIDADE SOFRENTE
Em meados da década de 1990, o estudo de Rifkin (1995), embora
circunscrito à tese do “fim dos empregos”, indicava paradoxalmente que
sob as práticas da produção toyotizada, o estresse dos trabalhadores vinha
atingindo proporções alarmantes. O governo japonês, atento ao fenômeno
recorrente, sobretudo, entre os trabalhadores da indústria automobilística,
designou o termo karoshi para referir-se a uma nova doença relacionada à
produção. O Instituto Nacional de Saúde Pública do Japão reconheceu
oficialmente o karoshi como uma condição na qual as adversidades do
trabalho industrial, são toleradas pelos trabalhadores, levando-os ao
acúmulo de fadiga do corpo e a uma condição crônica de exaustão por
excesso de trabalho, resultando em um esgotamento fatal.
Tendo em vista o mesmo fenômeno, o artigo de Sargentini (1996),
publicado por volta deste mesmo período, também atentava para a
situação dos trabalhadores no Japão. Anualmente, segundo seu artigo,
cerca de dez mil pessoas tornam-se vítimas de “overdose de trabalho”. O
diretor de uma Associação de Advogados, responsável pela defesa das
famílias dos mortos por “overdose de trabalho”, declara que muitos
trabalhadores, principalmente da indústria automobilística japonesa, vão a
óbito em razão do karoshi, ou se suicidam vencidos pela depressão. Os
casos de indenizações são raros e os sindicatos participativos não
dispõem de meios eficazes para intervir na situação. Com a intensificação
da crise econômica, a situação tende a piorar, pois as indústrias reduzem
o número de trabalhadores, intensificando ainda mais o ritmo de trabalho.
Pesquisas na indústria automobilística mostram que o sofrimento
daqueles que trabalham assumem formas novas e inquietantes. As
inúmeras tentativas de suicídio, ou suicídios consumados, atestam o
impasse psíquico criado pela falta de interlocutor que dê atenção àqueles
que sofrem. A elevada taxa de suicídio é indicativa do acentuado nível de
sofrimento presente na sociedade como um todo. No ano de 2003, no
Japão, o número de suicídios já havia batido o recorde, superando, pelo
sexto ano consecutivo, a casa dos 30 mil. De acordo com a Agência
Nacional de Polícia, o número subiu 7,1%, em relação ao ano anterior e
chegou a 34.427 casos de suicídio. Foram, em média, 34 casos de
suicídio por dia, os principais motivos apontados são “problemas de
saúde” (44,8%) ou dívidas (14,6%).

116
Segundo o depoimento de um advogado especializado em casos de
saúde mental, Hiroshi Kawahito, um número cada vez maior de
assalariados tem cometido suicídio, devido ao cansaço excessivo e ao
estresse causado por reestruturações em suas empresas. A reportagem não
especifica a porcentagem de imigrantes estrangeiros, mas chama a
atenção para um significativo aumento de suicídios entre jovens. No ano
de 2003, foram registrados, no Japão, 613 suicídios de pessoas com
menos de 20 anos de idade, o que representa um aumento de 22,1%, em
relação ao ano anterior. A elevada taxa de suicídio coloca o arquipélago
entre os primeiros da lista de países com maior índice de suicídios.3
A organização do trabalho, comprovadamente, coloca em perigo a
integridade física e psíquica dos trabalhadores. Conforme mostra o estudo
da psicodinâmica do trabalho realizado por Dejours (2000), se, diante
destas condições, o sofrimento não se faz acompanhar de
descompensações psicopatológicas generalizadas, é porque em resposta a
ele, os trabalhadores empregam “defesas” que lhes permitem relativo
auto-controle. O conceito de ideologia defensiva refere-se a estas
estratégias coletivas de defesa, colocadas em prática pelos trabalhadores,
frente às condições reais de risco e perigo, inerentes ao trabalho. Nestas
condições, portanto, se a maioria dos trabalhadores permanece na
“normalidade”, é porque recorrem a estas estratégias coletivas de defesa.
Deste modo, ocorre uma inversão do problema, onde o próprio
estado de “normalidade” torna-se enigmático. A “normalidade”, nesta
problematização invertida por Dejours (1992), é interpretada como o
resultado de uma composição entre o sofrimento e a luta (individual e
coletiva) contra o sofrimento decorrente do trabalho. Normalidade,
afirma o autor, não implica na ausência de sofrimento. Pelo contrário. A
condição psíquica destes trabalhadores define-se por um estado de
“normalidade sofrente”, resultante da dura luta contra a desestabilização
psíquica provocada pelas pressões do trabalho. Estas estratégias
defensivas cumprem um papel contraditório, pois ao mesmo tempo em
que são necessárias à proteção da saúde mental, contra os efeitos
destrutivos do sofrimento relacionado ao trabalho, podem também

L =" 0 1 LU A &^6G>.$ >! 6 (G."!$ V 5U


J;;U'

117
funcionar como uma armadilha que insensibiliza contra aquilo que faz
sofrer, contribuindo para o acirramento da adversidade psicopatológica.
Paradoxalmente, os próprios trabalhadores tornam-se cúmplices da
negação do real no trabalho, na medida em que esta negação torna-se
condição necessária para suportar as condições objetivas impostas pela
organização do trabalho. Se o indivíduo for capaz de construir defesas
contra esse sofrimento, poderá manter seu quadro de normalidade e sua
performance produtiva no contexto de suas atividades, o que não elimina,
conforme Dejours (1992), o perigo inerente às condições reais de
trabalho.
Entre os trabalhadores acometidos por distúrbios mentais, o
diagnóstico mais freqüente, segundo o jargão da psiquiatria, foi a
“Psicose Situacional Persecutória”. Segundo a descrição de Nakagawa
(2002):
B C
, )
B C B C
B C &>.h.I.`. J;;J JJU'
De acordo com o médico psiquiatra, o trabalho clínico com estes
migrantes retornados tem revelado também um “quadro confusional
transitório”, desencadeado a partir da chegada ao Brasil. Este quadro
transitório denominado “Síndrome do Regresso”, costuma se manifestar
mais claramente entre pacientes que estiveram por mais de seis meses no
Japão e apresenta os seguintes sintomas: “Dispersão do pensamento;
Distanciamento afetivo; Grande sensibilidade às diferenças; Tendências
autodestrutivas; e Tendência a reencetar viagem ao Japão”
(NAKAGAWA, 2002, p.224).

O TEMPO DISPONÍVEL E A ATIVIDADE DO SER GENÉRICO


Dentro deste contexto de degradação das condições de existência
posta pelo capital, segundo Mészáros (2006), as lutas trabalhistas pela
redução das jornadas e da semana de trabalho assumem uma importância
estratégica, pois, o resultado esperado do enfrentamento desse desafio é o
imperativo de fazer do trabalho algo significativo, por meio de uma
reapropriação do tempo livre. Numa escala crescente, segundo o autor, o
sistema produtivo do capital cria o “tempo supérfluo” na sociedade como

118
um todo, ao mesmo tempo em que não pode reconhecer a existência
desse tempo excedente, socialmente produzido, como algo
potencialmente criativo, como “tempo disponível” do qual todos dispõem
e que poderia ser utilizado para a realização de muitas das necessidades
humanas.
As incompatibilidades radicais que ocorrem entre a ordem social
existente e aquela na qual seres humanos estão no controle da sua
atividade essencial, incluem a questão do “tempo livre”. O conceito de
“tempo disponível”, tomado no seu sentido positivo e libertador, é
inseparável da consciência e da necessidade fundamental de viabilizar e
adotar um modo de controlar a própria reprodução sociometabólica, com
base no tempo disponível e não no “tempo necessário” (MÉSZÁROS,
2006).
Para Mészáros (2006), esse é o objetivo ao qual é preciso dedicar-se,
para efetivamente lidar com o problema do desemprego: uma alternativa
estratégica que regulamente a reprodução social metabólica, com base no
tempo disponível. Qualquer tentativa de introduzir o tempo disponível
como o regulador dos intercâmbios sociais e econômicos atuaria, segundo
o autor, como dinamite social, fazendo explodir a ordem reprodutiva
estabelecida, pois o capital é incompatível com o tempo livre utilizado
autonomamente e de forma significativa por indivíduos sociais
livremente associados. .
Com vistas à elaboração de uma resposta a este cenário de
“precarização da vida”, conforme Vasapollo (2006), é necessário
considerar a riqueza e a miséria do trabalho para além de sua dimensão
estritamente econômica. Neste sentido, o objetivo desta reflexão consiste,
assim, em problematizar o debate em torno da redução da jornada de
trabalho e do trabalho baseado no tempo disponível, trazendo à tona a
preocupação com a dimensão qualitativa do trabalho, tendo por fim
avançar no conhecimento desta dimensão estruturante do trabalho
concreto, produtor de valores de uso – a “essência positiva da
propriedade privada e [...] a natureza humana da carência [...]” (MARX,
2004, p.105) –, voltado tanto à satisfação das necessidades materiais e
espirituais do indivíduo e do grupo, quanto à constituição de uma vida
dotada de sentido.

119
Para este fim, a importância central da categoria trabalho, conforme
defendido por Antunes (2000), reside no fato de que ela se constitui como
fonte originária, primária, de realização do ser social, uma “protoforma
da atividade humana” e “fundamento ontológico básico da
omnilateralidade humana”. Esta definição da categoria trabalho,
conforme adverte o autor, não se refere ao trabalho caracterizado pelo
estranhamento – que se generalizou juntamente com a expansão das
relações capitalistas de produção e que vem levando os trabalhadores ao
esgotamento psíquico e ao karoshi –, mas ao trabalho como criador de
valores de uso, ou seja, o trabalho em sua dimensão concreta, como
atividade vital, “necessidade natural e eterna de efetivar o intercâmbio
entre o homem e a natureza” (ANTUNES, 2000, p.167).
Quando se toma como ponto de partida essa formulação, segundo
Antunes (2000), torna-se problemático advogar em defesa da tese do “fim
da centralidade do trabalho”. A “crise da sociedade do trabalho abstrato”,
segundo o autor,

B C
B C
B C # B C B C )
? B CA
&.>+%> " J;;; 59V'
Para o entendimento desta dimensão concreta do trabalho, Marx
(2004) já atentava, desde antes do término da primeira metade do século
XIX, para a universalidade do trabalho como atividade genérica
mediadora da relação dos seres humanos com a natureza. A atividade
vital consciente, segundo ele, distingue imediatamente o homem da
atividade vital animal, razão pela qual é possível defini-lo como ser
genérico. Precisamente por ser um ser genérico, sua própria vida lhe é
objeto.
Assim, explica Marx (2004), o homem desenvolve-se enquanto um
ser genérico na medida em que faz do próprio gênero e do restante das
coisas, o seu objeto; e também quando se relaciona consigo mesmo como
gênero vivo, como um ser universal, por isso livre. Deste modo, a própria
concepção de liberdade presente no pensamento marxiano, está associada
à qualidade genérica do ser humano, “sua própria vida lhe é objeto”, eis
porque a sua atividade torna-se atividade livre. A universalidade do
120
homem enquanto ser genérico aparece precisamente na universalidade
que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico. A natureza, afirma o
autor, “é o corpo inorgânico do homem [...] com o qual ele deve ficar
num processo contínuo para não morrer [...]” (MARX, 2004, p.84). É ela
quem oferece os meios de subsistência física ao trabalhador,
constituindo-se na própria matéria sobre a qual o seu trabalho se efetiva,
de modo que nada pode ser criado sem ela.
Em razão desta estreita vinculação, a vida física e mental dos seres
humanos, mostra o autor, está interconectada com a natureza e, neste
sentido, a natureza está interconectada consigo mesma, pois “o homem é
uma parte da natureza”; de modo que a própria história constitui parte
efetiva da história natural. No devir deste processo, a indústria constitui a
relação histórica efetiva da natureza com o homem;4 e quando, no interior
dela, as relações capitalistas de produção se apropriam sistematicamente
dos produtos de sua atividade genérica retiram-lhe sua efetiva
objetividade genérica, revertendo sua vantagem com relação às demais
formas de vida, na desvantagem de lhe ser retirado o seu corpo
inorgânico, ou seja, a natureza.
Enfim, a relevância destas considerações para o entendimento da
adversidade social vivenciada atualmente pelos trabalhadores dekassegui
em particular e por todos os trabalhadores em geral, reside na objetivação
de um importante ponto de reflexão para a superação consciente do
estranhamento-de-si humano – expresso pelos inúmeros casos de
transtornos psíquicos, suicídios e mortes por excesso de trabalho –, qual
seja, a proposição efetiva de uma mobilização, não em torno de
reivindicações salariais, ou em defesa da simples regulamentação do
emprego, mas de uma atividade genérica baseada no tempo disponível –
gerado como “tempo supérfluo” pelo próprio sistema produtivo do capital
–, um trabalho com vistas à reapropriação de uma vida dotada de sentido
humano e portanto social, enquanto ser para si, universal e livre.

REFERÊNCIAS:
1. ANTUNES. R. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação
e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2000.

U ! @ 34 " ; H # &F ? J;;U


55J'

121
2. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
3. DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do
trabalho. São Paulo: Cortez, 1992. 168p.
4. DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro:
FGV, 2000. 158p.
5. JORNAL NIPPO-BRASIL, 8 a 14 de setembro de 2004, p. 3B.
6. MARX, K. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. (Tradução e
notas Jesus Ranieri) São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
7. MÉSZÁROS, I. Desemprego e precarização: um grande desafio para
a esquerda. In: ANTUNES, R. (org.) Riqueza e Miséria do
Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006, p.27-44.
8. NAKAGAWA, D. I. Migração e saúde mental. In: CARIGNATO, T.
T.; ROSA, M. D.; FILHO, R. A. P.(orgs.). Psicanálise, Cultura e
Migração. São Paulo: YM Editora e Gráfica, 2002, p.221-5.
9. SILVEIRA, P. Da alienação ao fetichismo – formas de subjetivação
e de objetivação. In: SILVEIRA, P. & DORAY, B. (orgs).
Elementos para uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo:
Vértice, 1989, Enciclopédia Aberta da Psique, p.41-76.
10. VASAPOLLO, L. O trabalho atípico e a precariedade: elemento
estratégico determinante do capital no paradigma pós-fordista. In:
ANTUNES, R. (org.) Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil.
São Paulo: Boitempo, 2006, p.45-58.
11. YOSHIOKA, R. Por que migramos do e para o Japão. São Paulo:
Massao Ohno, 1995. 180p.

122
RESPONSABILIDADE SOCIAL EMPRESARIAL
E ESTADO NEOLIBERAL
) *
$ + #

Este texto tem por objetivo analisar a relação existente entre a


chamada “Responsabilidade Social Empresarial” (RSE) – uma nova
forma de intervenção sócio-politica, em que empresas, através de
institutos e fundações, passam a se ocupar do trato da “questão social”1 –
e a sociedade política (Estado no sentido estrito) de configuração
neoliberal, marcada por um constante afastamento e
descomprometimento orçamentário quanto à questão social. A ênfase
dada à sociedade política não é aleatória e constitui-se justamente uma
das dimensões centrais da pesquisa empírica que deu origem ao que aqui
é apresentado.2
No momento de racionalização e aprofundamento do padrão de
desenvolvimento neoliberal no Brasil, que implicou uma nova maneira de

E * " %>!*.F E * "


% # % < 1 ]
F ) % # % < I )
* " 1 ]/
5 . = A ? )
) ) 0 X
0
? ? ) ?
" 4
= 0 @ A& 0
a ' N ) @ ) "
& ' 2
- & )
) ' - ?
)S - - )
J G N # ) . N F I
E 5:92;U % # % < 0
= 5 0
F 0 G $ G E +
!7 # ) G
= 5L15;; 559 J;;8 ! 0
G % # J52JJ1 599 5:V - J;;8

123
comportamento do Estado com relação à questão social, empresas
passaam a ter, através de institutos e fundações, forte e articulada
atuação, sendo claramente funcionais a este movimento. Nesse processo a
questão do controle social evidencia-se. Tanto Estado quanto empresas,
cada um a sua maneira, preocupam-se com a questão social. Isto porque o
aparente (ou relativo) consenso de que o Estado deve ser o principal
agente de trato à questão social, ainda que ecoe no discurso de alguns
ideólogos do Estado e de parcela da sociedade civil, vem se dando de
outra forma. Parece haver agora outro consenso: um acordo com vistas à
legitimação do poder social (do capital) e do projeto de sociabilidade das
empresas quanto ao tratamento dos fenômenos englobados pela chamada
questão social.
Não negamos as interações dialéticas e mútuas influências entre
sociedade civil e sociedade política, mas destacamos a relação que dá
título a esta reflexão. Para isto foi necessário analisar o período que
alguns autores consideram como sendo de racionalização neoliberal no
país: o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), de 1995 a 2002. Por
meio dos Cadernos 1 e 2 da Reforma do Estado desenvolvido pelo
Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado – a MARE
(BRASIL, 1998), dirigido por Luiz Carlos Bresser Pereira nos dois
mandatos do governo FHC, podem ser entendidos os fundamentos do
discurso e das práticas que passaram a ser implementadas pela sociedade
política, com vistas à consolidação de uma nova cultura política em
oposição à gestada na década de 80. O neoliberalismo implantava uma
nova postura tanto do Estado quanto das empresas com relação à
intervenção social, processo que se evidencia através das propostas de
ação e política estatais formuladas no período.
Iniciamos pela tentativa de compreender o contexto em que emerge a
RSE, forma contemporânea de as empresas, por meio de seus institutos e
fundações, intervirem na questão social. Ela é ao mesmo tempo prática e
discurso. Surgiu no Brasil em meados da década de 1990.
A possibilidade real de entendimento do Estado e suas políticas
(especificamente as relacionadas à questão social) devem ser encadeadas
através da explicitação das determinações mais gerais do capitalismo
contemporâneo. Levando em consideração, sempre, que a produção e
reprodução material da existência são os fatores ontologicamente
primários na explicação da história, implicando a produção e reprodução
124
das relações sociais globais, logra-se a compreensão das formas de ser do
Estado em cada conjuntura e particularidade capitalista.
De acordo com alguns autores, o capitalismo, principalmente pós
década de 1970, vem tentando dar respostas a sua crise, a de se enfrentar
a tendência de queda da taxa de lucro.
O capital, visando escapar dessa tendência, dá respostas por meio de
reestruturações produtivas, que são a política do capital na esfera
produtiva, jamais podendo ser vistas como start mecânico e suficiente
para tantas e significativas modificações em outros planos. Todo o
processo de reestruturação do capital implica uma ofensiva com vistas a
aumentar a produtividade do trabalho para atingir novos (ou retomar
antigos) patamares de lucratividade. As formas dos capitalistas se
adaptarem a essa lei individualmente variam de caso para caso, empresa
para empresa e não implicam mecanismos meramente econômicos (de
reestruturação produtiva), como uma nova plataforma ou parque
industrial. Obviamente, o capital e sua reestruturação supõem, para além
dos aspectos “técnicos” e de gestão da força de trabalho, toda uma
complexa indumentária político-ideológica - uma nova maneira interna e
externamente aos espaços de trabalho -, imprescindível às transformações
capitalistas em curso. A reestruturação do capital em escala global é um
dos pontos que nos possibilita entender a RSE.
De acordo com Antunes (1999), a crise capitalista do pós 1970 teve
seis principais razões: a) uma queda da taxa de lucro decorrente do
aumento do preço da força de trabalho conquistado, principalmente, pela
intensificação das lutas sociais dos anos 1960; b) o esgotamento do
padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; c) a hipertrofia da
esfera financeira que ganhava relativa autonomia frente aos capitais
produtivos; d) a maior concentração de capitais graças às fusões entre as
empresas monopolistas; e) a crise do welfare state e de seus mecanismos
de funcionamento, acarretando a crise fiscal do Estado capitalista e a
necessidade de retração dos gastos públicos e sua transferência para o
capital privado; e f) incremento acentuado das privatizações, tendência
generalizada às desregulamentações e à flexibilização dos processos
produtivos, dos mercados e da força de trabalho.
Isso consolidou o projeto de sociabilidade capitalista neoliberal,
resultado e resultante do processo de reestruturação, e, portanto, de

125
resposta à crise do capital como relação social global. De acordo com
Petras (1997 p. 36), “Neoliberalismo é uma forma histórica de
capitalismo”. A caracterização do capitalismo contemporâneo como
neoliberal leva-nos a investigar a forma de ser do Estado que lhe é
correspondente.
Como maneira de conceber as relações políticas institucionais
(aquilo que cabe ou não ao Estado), o neoliberalismo move-se
principalmente pela tese do Estado mínimo, que visa à redução do
tamanho, papel e funções do Estado e faz apologia do mercado, mostrado
como o melhor e mais eficiente mecanismo de organização e alocação de
recursos na sociedade.
O diagnóstico dos ideólogos neoliberais acerca da necessidade de
tornar o Estado mínimo para a questão social, antes não levado a sério
(década de 1940), começou a ser aceito no movimento de crise estrutural
do capital. As teses neoliberais passaram a balizar a prática real de
governos e tornaram-se o receituário político a ser seguido em escala
planetária (Cf.: ANDERSON, 1996 e MORAES, 2001). O processo não se
deu de forma homogênea, sem contradições ou seguindo à risca as
recomendações dos teóricos neoliberais, mas a partir da realidade
singular de cada país. Como afirma Saes (2001 p. 83) “os Estados
capitalistas atuais praticam o neoliberalismo possível nas condições
socioeconômicas e políticas vigentes”.
Porém, apesar das políticas neoliberais assumirem particularidades
concretas em cada Estado-nação, podemos caracterizar, de forma geral,
as políticas neoliberais:
B C )S 0
a 1 '
& ,
= ) A
'D ' )
0 % , 0
) )S ,
= A N 0
0 a
# Q / 7 F # " ,
)
0 N a
) &G " ' )
126
&7 / ' )
a &". " J;;5 VJ'
O desmonte caracteriza-se por três políticas estatais específicas:
privatização, desregulamentação dos direitos sociais e abertura
econômica ao capital internacional. Essas políticas têm como
conseqüência uma mudança no padrão de intervenção do Estado. Para
Saes,
B C + )
0 . ) 0
a
) a
)

0 ) &". " J;;5


VJ'
Há, portanto, uma necessidade de se formar uma infraestrutura
específica de apoio ao desmonte, ou seja, desmonta-se algo montando-se
correlatamente um novo arranjo inclusive quanto ao tratamento da
“questão social”. A nova forma de trato à questão social que emerge no
neoliberalismo brasileiro via “terceiro setor”3 (em que a RSE se insere),
nada mais é do que uma infraestrutura de apoio que visa minimizar os
impactos da barbárie capitalista num momento em que se desmontam as
políticas sociais estatais.
De maneira geral, na literatura sobre o assunto é consensual que os
anos de 1990 correspondem ao período de aprofundamento e
consolidação do padrão de desenvolvimento neoliberal em território
nacional. Neste marco temporal o Estado brasileiro teve sua configuração
revista, modificada e racionalizada para um novo padrão de
desenvolvimento capitalista e, portanto, de intervenção no social. A
década de 1990 no país alavancou e fomentou uma nova lógica de
tratamento da “questão social” - lógica que corresponde a um desmonte, à
ruptura de um processo, ainda que tímido, de expansão dos direitos
sociais que vinha da Constituição de 1988.

L ? N
@ >
0 N ) =+ " A F n &J;;J' $ &J;;8' + &J;;8'

127
Para entendermos a constituição de uma nova lógica de trato da
questão social faz-se necessário compreender a lógica anterior. De acordo
com Montaño (2002, p. 29) o neoliberalismo “procura reverter as
reformas desenvolvidas historicamente por pressão e lutas sociais dos
trabalhadores, tendo seu ponto máximo expresso na Carta de 1988.” A
Constituição de 1988 foi a cristalização de um movimento amplo por
redemocratização da sociedade e de luta de classe ascendente no país em
que universalizaram-se direitos básicos, fundamentando um tipo de
cidadania mais elevada que de outros períodos da história brasileira.
Nesse sentido, ela representou uma vitória relativa das classes
trabalhadoras, firmando objetivamente uma nova postura e conduta por
parte do Estado com relação aos direitos sociais. As lutas da década de
1980 no Brasil engendraram uma cultura política combativa e
reivindicadora de direitos sociais. Por esta razão, tal década no Brasil –
que alguns teóricos e parte da mídia chamam de perdida - é vista por
Moraes (2001, p. 65) como uma década de espaços conquistados em que
o processo de “redemocratização controlada” não conseguiu evitar
intrusos (organização sindical, movimentos populares, manifestações de
massa etc) possibilitando e colocando na agenda política, ainda que de
maneira não tão sólida - tendo como parâmetro de direitos e seguridades
sociais no capitalismo o welfare state europeu -, uma prevalência e
reforço da “lógica do público”4 (do Estado em sentido estrito) acerca da
questão social.
O neoliberalismo e sua racionalização no país impulsionaram cada
vez mais a ruptura do processo mencionado, favorecendo um refluxo do
Estado junto às áreas sociais, fundando uma nova cultura política no país,
isto é, uma ressignificação da política. Inversamente ao ocorrido na
década de 1980, ocorreu um processo de desresponsabilização do Estado
em termos de educação, saúde etc. Segundo Moraes (2001), as políticas
sociais então passaram a ser influenciadas por outros lemas: focalização,
ao substituir a política de acesso universal pelo acesso seletivo;
descentralização e privatização, processos que andam na maioria das
vezes juntos, ao transferir suas competências para as coletividades locais
(sociedade civil).

U >
) & ) '
) & '

128
A racionalização neoliberal no país imprimiu um movimento na
sociedade política de subsidiar os caminhos para a privatização do
público (bens e serviços públicos) e publicização do privado (do mercado
e das empresas), ou seja, transformar o que resta de público em privado.
De acordo com Antunes (2004, p. 1) “O neoliberalismo iniciado com
Collor5, de modo aventureiro, encontrava com FHC uma nova
racionalidade visando pavimentar os caminhos do neoliberalismo no
país”. A racionalização do projeto neoliberal encampada por esse
governo forneceu o entendimento concreto da lógica de privatização do
público e publicização do privado (que podemos chamar de ampliação
das empresas) em que se reconfigurou o tratamento dispensado à questão
social, ajudando a selar uma nova cultura política no país.
Optamos por fazer a discussão da racionalização do projeto
neoliberal através da concepção de reforma do Estado presente no
governo FHC. Tal concepção encontra-se em A Reforma do Estado dos
anos 90: Lógica e Mecanismos de Controle de Luiz Carlos Bresser
Pereira6, texto fundamental desse período. Nele encontramos o substrato
da redefinição das relações entre sociedade política e sociedade civil, e,
ainda que não a totalidade, boa parcela da sociedade política (e também
da sociedade civil) convergiu à aplicabilidade e ideologia nele presentes.
Tal discurso, como veremos, realiza uma operação, ainda que indireta,
com vistas à ampliação da lógica empresarial no que tange ao objeto de
análise deste texto.
Para Bresser, “a grande tarefa política dos anos 1990 é a reforma ou
a reconstrução do Estado” (PEREIRA, 1997, p. 7) e sua explicação para
tal fato decorre da constatação de que “A Grande Crise Econômica dos
Anos 80 teve como causa fundamental a crise do Estado – uma crise
fiscal do Estado, uma crise de intervenção do Estado no econômico e no
social, e uma crise da forma burocrática de administrar o Estado”
(PEREIRA, 1997, p. 9). Objetivando superar esses problemas, Bresser
redige seu plano de Reforma do Estado. Segundo suas convicções, ele

K# * F 58V8 N G @ * G> &


G ) > ' 588; 588J
0 ! # - 588U
9 $ * ( 58V: . ) #
G &F.G ' 588K 588V 5888 J;;J

129
comporia uma frente intitulada “social-liberal” apta a desenvolver este
novo tipo de Estado que não é o “Neoliberal sonhado pelos
conservadores” (PEREIRA, 1997, p.18) e nem o Social-Burocrático que
entrou em crise. Seria prudente indagarmos sobre essas considerações
pois, ao lermos com mais cuidado todo texto, percebemos que seu
“social-liberalismo” é uma forma de Estado neoliberal. O próprio autor
responde:
6 0 , 0
,
-,
0

- ? ,
0
, & G !G.
588: L:'
Por erigir o mercado como a melhor instância de regulação social
para a sociedade, e colocá-lo como superior a outras formas e
mecanismos de controle social, Bresser não rompe em nada com o que
ele chama de direita neoliberal ou neoliberalismo conservador. Mas
afinal, o que então diferencia o neoliberalismo conservador (radical) do
social-liberalismo? Somente a adjetivação “conservador”. Se os
neoliberais radicais acreditam no pleno controle da economia pelo
mercado; na necessidade de privatizar, liberalizar, desregular, flexibilizar
os mercados de trabalho, de forma radical, em que o Estado limitar-se-ia
a garantir a propriedade e os contratos desvencilhando-se de todas as suas
funções de intervenção no plano econômico e social nacional, o
neoliberalismo dos social-liberais seria menos “radical” (na verdade,
menos fundamentalista), pois, segundo postulam, preocupam-se com a
questão social (proteção dos direitos sociais) e com a promoção do
desenvolvimento econômico nacional. Será?
Em seu próprio escrito, Bresser entra em uma situação paradoxal (e
podemos mesmo mencionar, contraditória). Na nota 09 de A Reforma do
Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de controle, o autor afirma que
há uma clara relação entre o conceito de Estado Social-Liberal e o
workfare state de Shumpeter, já que este último promove inovação em
economias abertas e subordina a política social às necessidades da
flexibilização dos mercados e às exigências de competição internacional.
130
Ora, como conciliar então direitos sociais com a necessidade de
flexibilização dos mercados e competição internacional? Como sustentar
que a sociedade política ainda está preocupada com um tratamento de
qualidade - público, gratuito e universal, capaz de se constituir em direito
- à questão social? Não está. A rigor, o social-liberalismo é um
neoliberalismo mais cínico, dotado de algumas mediações importantes,
que constituirão todo seu aspecto nebuloso na tentativa de explicar o
refluxo do Estado a esse respeito.
Um dos principais pontos para alcançar os objetivos da Reforma é
delimitar a nova maneira e áreas de atuação do Estado. Para Bresser,
reformar o Estado “significa, antes de mais nada, definir seu papel,
deixando para o setor privado e para o setor público não-estatal as
atividades que não lhe são específicas.” (PEREIRA, 1997, p. 22). As
atividades exclusivas são aquelas em que o “poder de Estado” é exercido,
tais como legislar, regular, julgar, policiar, fiscalizar, definir políticas,
fomentar. Entre as atividades não-exclusivas de Estado estão aquelas que
não envolvem “poder de Estado”,
B C ? )
) -
, 0
? !

a
,
B C& G !G. 588: JK'
Com a noção de “atividades não-exclusivas” retira-se da órbita da
sociedade política a “exclusividade” (que a leitura crítica deve ler como
obrigação do Estado - obrigação resultante sempre de um intenso
processo de luta de classes) - no trato da questão social, supostamente por
serem atividades “competitivas”, isto é, “não envolvem poder de Estado”.
Claramente o que se arquiteta é o condensamento da sociedade política
no seu núcleo estratégico, naquilo que têm de caráter mais repressivo,
policial e servil aos interesses capitalistas (principalmente os financeiros),
reais funções do Estado (sentido estrito) numa sociedade de classes.
Ainda Bresser:

131
> ,
) - F
- - -
-, T

)S , & G !G. 588: JK'


O aparente paradoxo a respeito do tratamento da questão social
revelado na passagem acima, qual seja, o de que o Estado não pode se
ocupar dela, pois fora relegada à atividade “não exclusiva”, e de que tão
menos seja privada (voltada para o lucro e consumo privado), é resolvido,
ao menos teoricamente, com sua noção de publicização. Esta fórmula
mágica de Bresser Pereira se enraíza num conceito extremamente
problemático advindo da compreensão do autor de que no capitalismo
contemporâneo há uma terceira forma de propriedade além da
propriedade privada e da propriedade estatal: a propriedade “pública não-
estatal”. Se,
@ ,

0 0 ,
@ )S
)S

& G !G. 588: JK


J9'
Essa representação afirma haver uma forma de propriedade definida
pelo critério da utilidade. O efeito político dessa tese é a eliminação do
debate de que fundações e associações “voltadas para o interesse geral”,
“sem fins lucrativos”, são também formas de propriedade privada e ou
estatal. Ao dizer que se o uso da propriedade for voltado para o interesse
geral (que não é senão outra abstração) estaremos frente a uma
propriedade pública não-estatal, anula-se a discussão e se oculta que se
trata de um processo de privatização da questão social. Por isso, para
Bresser, o projeto de Estado para a questão social “não implica em
privatização, mas em publicização - ou seja, em transferência para o setor
público não-estatal.” (1997, p. 25). Defende-se, então, a: transferência
dos serviços para as propriedades que não sejam estatais e que se voltem

132
para o interesse geral (suposta garantia de não haver finalidades
lucrativas).
Para além das aparências, a noção de publicização constitui-se numa
teorização política e ideológica que pavimenta e fomenta pelo Estado
(sociedade política) uma nova cultura política na sociedade: a da
desresponsabilização, restrição e minimização do Estado para as questões
sociais; ou, de outra maneira, do tratamento focalizado, privado,
setorializado e não constitutivo de direito pela sociedade civil. Expressão
disto é o chamado “Terceiro Setor”.
O “terceiro setor”, para os signatários da tese de sua existência, se
diferencia da lógica estrita de Estado (público com fins públicos) e da
lógica estrita de mercado (privado com fins privados, leia-se lucrativos).
De acordo com Costa & Visconti (2001, p. 04),
6 ) @
,
> )
0 -
)S )S
)S )S
,
, )S
Toda teorização realizada por Bresser consolida pela sociedade
política o “Terceiro Setor” como espaço legítimo e bem quisto para o
tratamento da questão social. O movimento de promoção, estímulo e ida
ao “Terceiro Setor” e não ao Estado para o tratamento da questão social é
o que fica confirmado inclusive em um dos tópicos do caderno MARE nº.
02, intitulado “A crise do Estado e o Movimento em Direção ao Terceiro
Setor”, em que se critica a capacidade de ação do Estado e se enaltece o
“terceiro setor”. Aqui podemos reparar claramente a funcionalidade do
“terceiro setor” (espaço em que a RSE se insere) na configuração
neoliberal do Estado. Por claramente haver uma regressão da presença
estatal nas áreas sociais, desenvolveu-se, usando as palavras de Saes, uma
infra-estrutura correlata de apoio que tenta amortecer os impactos da
questão social no capitalismo contemporâneo. Como mostrará o trecho a
seguir, tal fato serve ao mesmo tempo de alívio, pois agora há uma
parcela da sociedade civil (principalmente as empresas) fazendo o que o
Estado deveria fazer, ao lado de uma exaltação para que essas atividades

133
se fortaleçam ainda mais. O projeto de reforma do Estado de Bresser
Pereira, ao colocar o Estado em posição secundária, de apoiador do
tratamento da “questão social”, já que esta não envolve “poder de
Estado”, contribui para o fortalecimento da capacidade de ação e
institucionalização/legitimização do “Terceiro Setor”.
B C + T ,
)
-,

, D -, S

) @ .
1 ,

? &(G."!$ 588V V'


O discurso da publicização, do “público não-estatal” e do “Terceiro
Setor” na sociedade política petrifica a privatização da questão social no
Brasil, sela o movimento de busca de parcerias entre público e privado,
consolida o entranhamento do capital na sociedade política. Segundo
Montaño (2002, p. 235),
B C6
)

= A ) = A X
X
=. A
. ! g
) ? )S
B C
Neste contexto de repolitização (que é a ressignificação aludida por
nós) do trato à questão social, Ruth Cardoso7 afirmou que “O

: E %" ( #
* " , &588K 4 J;;J' =+ " A
#Q* . * " ,
#Q* ) 0 ,
& o 122333 2 p;J2" ? 26 q' .

134
empresariado brasileiro já entendeu a responsabilidade de participar de
ações sociais” (in MONTAÑO, 2002, p. 213). Realmente o empresariado
havia captado bem a nova cultura política em curso, passando a agir com
“responsabilidade social” por meio de seus institutos e fundações. A RSE
é fruto da nova cultura política fundada pelo neoliberalismo no país.
Gramsci, no século XX, aproximou-se da discussão acerca da
intervenção da burguesia na questão social quando refletiu sobre o Rotary
Clube8. Sua análise é fecunda à intelecção da RSE como nova ideologia
(nova filosofia da burguesia):
B C
0 @
3 J

=
) A . G / -
= A
0 )
a &IG.F"*! 58VV U5K2U59'
Esse novo espírito, comenta Gramsci, buscou unir todos os
associados, independente de credo religioso, em torno de um objetivo
comum: a prestação de serviços9. A filosofia “rotariana” representaria
uma superação orgânica da maçonaria já que se definiriam interesses
mais concretos e possibilitar-se-ia a filiação de pessoas de outros credos
desde que alinhadas em torno da idéia da indústria como um serviço.

6>I =* A G * 6>I
) G"
V . N 0
% 58;K & Q ' G /*
)
) ) - ) 6
" $ 0
= ?
- T ?
) 1 0 1 A
8 X I 1 =

-
A &IG.F"*! 58VV U5:'
? =G" A

135
Em geral, o desenvolvimento do capitalismo no globo foi marcado
por práticas de intervenção burguesa na questão social, algumas de
maneira mais orgânica, no sentido que Gramsci aponta ao falar do Rotary
Clube, outras nem tanto, se limitando mais à ajuda tópica, sem um corpo
de idéias tão coeso de pano de fundo capaz de orientar a ação. Em solo
brasileiro também não foi diferente. Nossa historiografia registra
inúmeras ações filantrópicas da primitiva burguesia nacional (Cf. PAOLI,
2005).
Em um contexto diverso – o do neoliberalismo - assistimos no Brasil
não só à continuidade de um movimento antigo, mas à sua ampliação e
uma revitalização, a RSE, que lhe confere novo caratê, o de firmar o
projeto de sociabilidade neoliberal.
A RSE deu resposta à questão social em um momento em que o
Estado tornou-se mínimo, ajudando a amortecer a possibilidade de
conflitos e favorecer para que a sociedade política passasse a se
concentrar cada vez mais em seu núcleo estratégico (no que tem de
caráter repressivo - às lutas e aos conflitos sociais classistas - e
servil/estratégico aos interesses capitalistas), real objetivo do projeto de
(contra) reforma do Estado. A RSE é uma instituição de classe que
intensifica as dificuldades para que a maioria social tenha acesso a
direitos sociais.
A educação é prioritária à RSE que atua, em larga medida, nas
escolas públicas através de parcerias com as prefeituras municipais,
abrindo caminhos para que o projeto pedagógico empresarial tenha
presença cada vez mais profunda e abrangente nas localidades em que se
faz presente. As empresas passam a absorver cada vez mais funções antes
específicas do Estado, ao mesmo tempo em que formatam as
comunidades atendidas ao seu projeto de sociabilidade.

REFERÊNCIAS:
1. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.;
GENTILI, P. (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado
democrático. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 9-38
2. ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC
e Lula). Campinas: Autores Associados, 2004.

136
3. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho. Ensaio sobre a
afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999
4. BRASIL. Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado. Organizações sociais: Cadernos do Mare, nº 2. Brasília:
Mare, 1998.
5. COSTA, C. S. & VISCONTI, G. R. Terceiro Setor e
desenvolvimento social. Rio de Janeiro: Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Área de
Desenvolvimento Social, julho de 2001 (Relato Setorial, 3).
6. GRACIOLLI, Edilson José & LUCAS, Marcílio Rodrigues.
“Terceiro setor” e ressignificação da sociedade civil. Margem
Esquerda, nº 13, p.100-116, maio de 2009.
7. GRACIOLLI, Edilson José & TOITIO, Rafael Dias. A
responsabilidade social empresarial como aparelho de hegemonia.
Revista Lutas Sociais, nº 21/22, p. 166-178, junho de 2009.
8. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.
9. MONTAÑO, Carlos. Terceiro setor e questão social. Crítica ao
padrão emergente de intervenção social. São Paulo: Cortez, 2002.
10. MORAES, Reginaldo C. C. de. Neoliberalismo – de onde vem, para onde
vai? São Paulo: Editora Senac, 2001.
11. PAOLI, Maria Célia. “Empresas e responsabilidade social: os
enredamentos da cidadania no Brasil”. In: SANTOS, Boaventura de Souza
(org.). Democratizar a democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p. 373-418.
12. PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In:
RAMPINELLI, Waldir J. & OURIQUES, Nildo D. (orgs.). No fio
da navalha: crítica das reformas neoliberais de FHC. São Paulo:
Xamã, 1997. p. 15-38.
13. SAES, Décio. A política neoliberal e o campo político conservador
no Brasil atual. In: ______. República do capital – capitalismo e
processo político no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2001. p. 81-92.

137
138
PARTE II

A Relação Trabalho e Educação e as


Contradições da Sociabilidade do Capital

139
140
TRABALHO, EDUCAÇÃO E LUTA DE CLASSES
NA SOCIABILIDADE DO CAPITAL*
* #

O conjunto de transformações vivenciadas desde os anos 1970


significa a materialização da crise de um modelo de desenvolvimento do
capital fundado no regime de acumulação rígida, que possuía no
taylorismo/fordismo seu modelo de organização produtiva, e no Estado
de Bem-Estar Social, seu modelo de regulação social. O esgotamento
desse modelo de desenvolvimento fundado no pós II Guerra Mundial,
somado ao acúmulo de inovações tecnológicas no campo da
microeletrônica e da informática e ao avanço das conquistas políticas da
própria classe trabalhadora, constituíram as condições objetivas que
condicionaram a empreitada do capital e obrigaram-no a recompor suas
bases de acumulação e implantar novas modalidades de produção e de
mediação do conflito capital/trabalho no nível mundial.1
No campo estrutural, o trabalho tem demandado maior capacidade de
abstração, exigindo do trabalhador competências técnico-operacionais
que extrapolam a manipulação da maquinaria, atingindo inclusive a
subjetividade operária (Cf.: ALVES, 2000). Exige-se do trabalhador,
também, a capacidade para manipular signos, símbolos e códigos, de
modo que as comunicações orais e escritas tornam-se imprescindíveis à
atividade produtiva. Mas não pára por aí. Busca-se formar, ainda, a
competência para compreender o contexto no qual o trabalho se processa.

? ?S !7 0
= 34 E > *++K# &"6%Y. J;;J' ! E
L " 34 7 0 # &"6%Y. J;;8'
1
,
E " %>!*.F 0 )
E ) " ! F %#GG^ I
" + 0 " &I+ "' 1- ] -
5 X ) )
, 0 a 0 1
) ) ? ) ) +
) < )

141
Esta competência é imprescindível para desenvolver as condições
propícias para o exercício da criatividade, de modo a recuperar e
incorporar ao processo de valorização do capital o saber constituído no
“chão-de-fábrica” (Cf.: MACHADO, 1996). Além disto, a nova cultura
empresarial tem buscado construir na classe trabalhadora talvez a mais
importante de todas as competências no atual estágio de desenvolvimento
do capital: a capacidade para assimilar e aceitar de forma positiva as
mudanças que se impõem ao trabalhador no contexto do processo de
trabalho e de produção. De modo geral, essas são as competências
necessárias à conformação psicofísica do trabalhador aos novos métodos
e processos de trabalho e de produção que se consubstanciam na captura
da subjetividade operária em nome de uma nova dinâmica de subsunção
real do trabalho ao capital.
Como forma de expressão política dessas mudanças estruturais, no
campo superestrutural, as relações de poder têm se tornado cada vez mais
complexas, na medida em que a burguesia tem sido obrigada a ampliar os
espaços de participação da classe trabalhadora organizada como
mecanismo de mediação do conflito de classe.2 Para manter sua
hegemonia a partir de condições renovadas de construção do consenso, a
burguesia tem necessitado formar determinadas competências sociais no
conjunto da classe trabalhadora que consistem na disseminação de uma
pedagogia política capaz de conformar ética e moralmente a sociedade
civil nos limites das leis do mercado, sob condições renovadas, mais de
acordo com o estágio atual do desenvolvimento do capital.3
Para a renovação de sua pedagogia política, com o intuito de torná-la
mais eficaz na construção do consenso em torno da sociabilidade
burguesa, a classe dominante vem promovendo a redefinição do papel do
Estado e o fomento de uma “nova” cultura cidadã fundada no
individualismo e na competitividade, regulada pela lógica mercadológica,
compondo a formação de um novo bloco histórico, um novo
industrialismo, um novo tipo de metabolismo social para, assim,
conservar em condições renovadas a sociabilidade do capital.

J 6 = ) A ,
0 )
) )
L " < )
> j" R. &J;;K' F &J;;K'

142
Neste contexto, o Estado brasileiro vem adquirindo características
que expressam uma redução do uso de seus mecanismos de coerção para
a mediação do conflito de classe, passando a utilizar-se cada vez mais de
estratégias de persuasão em busca do consentimento das massas
(COUTINHO, 2000). Este fenômeno decorre da contradição existente
entre o avanço das forças produtivas e as conquistas da classe
trabalhadora, o que traz à tona novas demandas de mediação do conflito
de classe. Em função desta reconfiguração das relações de poder, a partir
do final dos anos 1980, a burguesia tem sido obrigada a reorganizar-se
para o enfrentamento das pressões da emergente reorganização da classe
trabalhadora e dos movimentos populares de um modo geral (NEVES,
1994, p. 35).
A presença dos movimentos sociais urbanos na arena política, como
instrumento de democracia direta de massas, significa a mais importante
contribuição para a ampliação dos mecanismos de controle social sobre
as decisões estatais,4 o que beneficiou a conquista e consolidação de
direitos sociais e enriqueceu a organização da sociedade civil na década
de 1980. Os partidos políticos, por sua vez, embora com suas limitações,
foram responsáveis pela importante atuação na transição política desta
década, enquanto buscavam sintetizar as demandas sociais das classes em
conflito, bem como buscavam atuar como articuladores entre a sociedade
civil e o Estado (NEVES, 1994, p. 37).
No bojo da nova pedagogia política do capital, constam conteúdos
que buscam resgatar o consenso em torno da legitimidade da livre
concorrência, revitalizando-a, na tentativa de estabelecer na sociedade
civil um ambiente propício à livre competição entre os indivíduos. Esta
pedagogia política se desenvolve por intermédio de um apelo à
individualidade, ao imediato, aos interesses locais. Constrói-se uma
supervalorização à organização corporativa, muitas vezes em forma de
“falsas cooperativas” ou de outros tipos de organizações. Às vezes até na
forma de organizações não-governamentais, como meio de valorização

U > ) S
, ) )S
+ )
) )
) S
)

143
do comportamento econômico-corporativo em detrimento da organização
da sociedade em torno de interesses políticos de caráter coletivo.
Faz parte desta pedagogia, também, a disseminação de formas
pseudocientíficas de apreensão da realidade social que valorizam o
particular, o local, o efêmero, em detrimento de uma compreensão mais
objetiva dos elementos que articulam e dão sentido ao Bloco Histórico
que comporta as diversas particularidades da vida social. A naturalização
da ideologia da “mão invisível do mercado” como reguladora eficiente do
cotidiano social também faz parte do conteúdo desta pedagogia política.
De modo geral, esta constitui o mecanismo pelo qual a burguesia busca
formar as competências necessárias à conformação ética e moral do
trabalhador em uma dinâmica renovada de construção do consenso em
torno da concepção de mundo burguesa, consolidando, assim, no meio
social, por meio da naturalização da lógica de mercado, a subsunção real
do trabalho ao capital. Trata-se, enfim, da nova pedagogia da hegemonia
a que Neves (2005) se refere, que apesar de ser inerente à sociabilidade
do capital, na atualidade ganha contornos específicos de acordo com o
desenvolvimento das forças produtivas e do acúmulo de conquistas da
classe trabalhadora.
Neste contexto, as políticas públicas de caráter social assumem um
papel simultâneo. Ao mesmo tempo em que dão resposta às necessidades
objetivas e subjetivas da valorização do capital, também funcionam como
estratégia de mediação política dos interesses antagônicos que perpassam
a sociedade urbano-industrial. Por esta razão, a educação, como política
social do Estado capitalista, conserva em si esta contradição, pois ao
mesmo tempo em que responde às necessidades da valorização do capital,
por meio da formação do capital humano necessário à ampliação das
taxas de mais-valia, também se constitui em espaço de disputa de
hegemonia, permeado de contradições, onde a burguesia procura
construir o consenso em torno de sua concepção de mundo. É esta
dinâmica que procuraremos detalhar a seguir.

A DIALÉTICA DA POLÍTICA PÚBLICA PARA A FORMAÇÃO DO TRABALHADOR


A necessidade estrutural do estágio atual de desenvolvimento do
capital de ampliar – mesmo que de forma ainda limitada – as
oportunidades de acesso ao conhecimento para uma parcela restrita da

144
classe trabalhadora, necessariamente, é justificada por meio de um
discurso integrador de defesa da universalização da educação básica,
ampliação das oportunidades de educação profissional e combate ao
trabalho infantil. Mas este discurso é, de fato, uma ilusão necessária à
manutenção do monopólio do conhecimento. Por meio desta ilusão, a
burguesia controla o acesso ao conhecimento científico e tecnológico
aplicado na produção, promovendo diferentes tipos de
formação/qualificação profissional. É inerente a este fenômeno a
ocorrência da dualidade entre formação para o trabalho intelectual –
destinado a uma elite da classe trabalhadora – e formação para o trabalho
manual – destinado à grande maioria dos trabalhadores.
No caso brasileiro, esta ilusão necessária também funciona como
mecanismo de conformação ético-moral de um imenso contingente de
trabalhadores desempregados que, ao submeterem-se a cursos de
formação/qualificação profissional de curta duração,5 em caráter de
treinamento, alimentam a esperança de se inserirem no mercado de
trabalho. Mas, o que de fato ocorre é que uma parcela significativa desses
trabalhadores jamais adquire emprego formal como pretende, quando
busca qualificação. Muitas vezes, o único efeito pedagógico desses cursos
é gerar no trabalhador o sentimento de resignação diante das dificuldades
de conseguir emprego e de voluntarismo para enfrentar de forma criativa
a nova dinâmica da precariedade a ele imposta e buscar, por conta
própria, formas alternativas de geração de renda para além do emprego
formal. Seria o que poderíamos chamar de uma conformação ética e
moral à nova dinâmica da precariedade.
Assim, no campo educacional, a ofensiva do capital tem se
materializado em ações e formulações no sentido da reconfigurar o
sistema educacional para atender de modo mais eficiente as novas
demandas produtivas, seja preparando o trabalhador para ocupar postos
de trabalho em condições mais flexíveis, seja formando o contingente
excedente da força de trabalho para aceitar passivamente as condições

K + 2 ) )
, J; ) E
)S . )
- @ N
@ @
- ? 0 0

145
laborais de precariedade, informalidade ou desemprego. Para isto, têm-se
empreendido esforços para formar competências sociais e profissionais
no conjunto da classe trabalhadora em busca da formação de um
trabalhador de novo tipo, mais adaptado à volatilidade do mercado e à
velocidade das mudanças no trabalho e na produção, propiciadas pelo
avanço da ciência e da tecnologia, especialmente da informática e da
microeletrônica. Mas ao mesmo tempo, há a necessidade de se conformar
o número imenso de trabalhadores excluídos. Para isto, o
recrudescimento da Teoria do Capital Humano tem servido de cimento
ideológico das iniciativas públicas e privadas de formação do trabalhador
de novo tipo (Cf.: SOUZA, 2003).
Enfim, a política pública para a educação, ao mesmo tempo em que
serve para atender as demandas de produtividade e competitividade das
empresas, também funciona como aparelho privado de hegemonia capaz
de mediar conflitos de classes que emergem da desigualdade de
oportunidades geradas pelo desemprego estrutural. A forma mais comum
desta pedagogia da hegemonia tem sido a propagação da idéia de que a
razão do desemprego é a carência de qualificação profissional. Graças à
forte base social que esta idéia encontra, o sistema educacional tem sido
amplamente redimensionado para atender a esta dupla função da política
pública de formação do trabalhador.
Desde meados dos anos 1990, o empresariado e o Governo Brasileiro
vêm empreendendo esforços no sentido de reconfigurar a
institucionalidade da política de formação/qualificação profissional. Seu
objetivo é adequar o sistema educacional brasileiro às atuais demandas
das empresas instaladas no país. Trata-se de uma ação do Estado para
ajustar as iniciativas individuais de acúmulo de capital humano às
demandas do mercado de trabalho, desonerando o Estado por meio do
apelo à participação individual do trabalhador no financiamento de sua
própria qualificação, bem como por medidas de racionalização dos gastos
públicos com este tipo de serviço.
Esta política consubstanciou-se no Plano Nacional de Qualificação
do Trabalhador (PLANFOR), do Governo Fenando Henrique Cardoso, e no
Plano Nacional de Qualificação (PNQ), do Governo Lula. Trata-se de
programas que, de certo modo, contemplaram algumas das reivindicações
acumuladas em diferentes segmentos do movimento sindical brasileiro, a
saber: a) desenvolver esforços para universalizar a educação básica,
146
garantindo a gratuidade para o ensino fundamental e ampliar a oferta de
educação profissional; b) articulação entre educação básica e educação
profissional; c) participação dos trabalhadores organizados na gestão dos
fundos públicos para a educação profissional; d) inserir a política de
formação/qualificação profissional no conjunto das políticas públicas de
trabalho e renda.
Apesar de estarem submetidos ao controle social por intermédio de
conselhos tripartites e paritários, os programas governamentais de
formação e qualificação profissional constituem um espaço importante de
construção do consenso em torno da concepção burguesa de formação
humana. Contraditoriamente, como todo e qualquer aparelho privado de
hegemonia, esses programas governamentais também podem funcionar
como uma possibilidade concreta de tomada de consciência dos limites
do discurso oficial de universalização da educação básica e de ampliação
das oportunidades de formação profissional por parte de seus usuários. É
neste sentido que a política pública de formação e qualificação
profissional, articulada com a política de universalização da educação
básica, constitui-se como campo de disputa de hegemonia, uma vez que
expressa em seu desenvolvimento o conflito de classe inerente à
sociabilidade do capital. Tratemos então deste aspecto com mais detalhe.
O atual patamar de desenvolvimento da ordem capitalista nos oferece
elementos suficientes para afirmar que o ritmo e a direção do
desenvolvimento dos sistemas educacionais no mundo contemporâneo
são determinados pelo nível de desenvolvimento das forças produtivas e
das relações de produção, assim como do nível de alargamento dos
mecanismos de controle social sobre as decisões estatais. Estes fatores
têm se consubstanciado, na atualidade, no impacto econômico e político-
social da aplicação da ciência e da tecnologia nos processos produtivos.
A partir dessa premissa, entendemos que a formação/qualificação
profissional da classe trabalhadora deve ser concebida como uma ação
humana de caráter técnico-político inerente ao processo de ampliação da
maquinaria e do controle social sobre as decisões estatais. Ou, como
afirma Neves (1994), a formação da classe trabalhadora, como política
social do capitalismo no mundo contemporâneo, é uma prática social
determinada pelo binômio industrialismo/democracia. Trata-se da
unidade emanada da relação entre o avanço científico e tecnológico do
trabalho e da produção, de um lado, e o processo de socialização da
147
política, de outro, verificados na história do capitalismo como uma
tendência a ele inerente.
Ao concebermos a educação da classe trabalhadora como
conseqüência da incorporação da ciência e da tecnologia ao processo
produtivo e das mudanças no padrão de sociabilidade humana, torna-se
evidente o crescente estreitamento entre ciência e trabalho, entre ciência e
vida, entre teoria e prática, entre trabalho e educação no processo de
industrialização, embora ainda nos limites da valorização do capital. Tal
fato vem evidenciando-se através do notório crescimento da demanda
social por formação e qualificação da força de trabalho por parte de
diferentes segmentos da sociedade civil. Mas está claro que esta demanda
crescente por educação funda-se no ideal burguês de formação de um
novo tipo de homem, coerente com uma nova dinâmica de sociabilidade e
um novo tipo de escola. A propagação deste ideal é um mecanismo de
construção do consenso em torno do modelo flexível de organização das
forças produtivas e das relações de produção e da nova dinâmica de
relação entre Estado e a sociedade civil.
Entretanto, o estágio atual de desenvolvimento científico e
tecnológico das forças produtivas no Brasil nos remete à consideração de
que a educação da classe trabalhadora no mundo contemporâneo deve ser
concebida a partir de dois aspectos fundamentais: a preparação para o
trabalho, em seu sentido lato, e a preparação para o trabalho, em seu
sentido stricto. No primeiro aspecto, a formação para o trabalho refere-se
às ações educativas da sociedade capitalista contemporânea que têm em
vista a conformação técnica, política e cultural da força de trabalho às
necessidades da sociabilidade urbano-industrial presididas pela lógica
científica da organização do trabalho e das relações de produção. Nesta
perspectiva, a formação para o trabalho identifica-se com escolarização
(NEVES, 1997 p. 23).
Assim, entendemos que o termo “educação básica” faz referência ao
sentido lato da formação para o trabalho, ou seja, faz referência à
socialização da capacidade de produção do conhecimento científico e
tecnológico minimamente necessário ao indivíduo para que ele possa
assimilar o nível de racionalidade do trabalho nas empresas e a
complexidade da vida contemporânea por intermédio da escola.

148
Já no sentido stricto, a formação para o trabalho no mundo
contemporâneo refere-se a um ramo do sistema educacional destinado à
permanente qualificação e atualização técnico-produtiva e cultural da
força de trabalho escolarizada, após o seu engajamento potencial ou
efetivo no mundo da produção. Seu principal objetivo é criar aptidões
para o trabalho na sociedade urbano-industrial, por meio da permanente
atualização técnico-produtiva da força de trabalho escolarizada. Nesta
perspectiva, formação para o trabalho identifica-se com ensino técnico-
profissionalizante ou, conforme o discurso oficial, educação profissional.
Assim, o termo educação profissional faz referência ao sentido
específico da formação para o trabalho, ou seja, faz referência à
qualificação e atualização permanente da força de trabalho escolarizada
para o domínio de aptidões técnico-produtivas adequadas ao nível de
racionalização do trabalho nas empresas contemporâneas.
Observe-se que, embora aparentemente, quando se concebe a
educação da classe trabalhadora como “formação para o trabalho”,6 o
senso comum que paira nos movimentos sociais normalmente entende
como restrição de sua potencialidade, na realidade, não é isto o que
ocorre. Poderíamos até afirmar que ocorre exatamente o contrário, uma
vez que se amplia o sentido do ato pedagógico para além do paradigma
humanista. A concepção da educação da classe trabalhadora como
“formação para o trabalho” afina-se com o ideal de formação humana
para o domínio do conhecimento técnico-científico e filosófico
socialmente acumulado para sua aplicação diretamente produtiva, através
do processo de trabalho. Como se percebe, ao ampliar-se a concepção de
formação para o trabalho, ao contrário do senso comum, considera-se a
formação para o trabalho uma prática corrente do mundo contemporâneo
que engloba desde a escolarização básica até ações educativas voltadas
para o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva. A formação
para o trabalho, portanto, é concebida como uma prática educativa que se
dá tanto no âmbito da escola regular quanto no âmbito das instituições de
ensino profissionalizante. Esta perspectiva rompe de uma vez por todas
com a visão dicotômica entre formação para o trabalho e escolarização,
entre trabalho e educação, que tem predominado em nossa sociedade.

96 ?
F ? &588L' ? $ 7, &J;;U' "
) )

149
Porém, é sempre oportuno assinalar que no processo de
desenvolvimento do capital o conflito de classe também se evidencia na
concepção e na política de educação básica e de educação profissional, de
modo que somos obrigados a considerar sempre pelo menos dois projetos
distintos para a formação do trabalhador: um mais identificado com os
interesses empresariais de ampliação das taxas de mais-valia, que
consideramos aqui como aquele da ótica do capital; e outro que é fruto da
organização e luta dos trabalhadores pela superação da sociedade de
classes, que consideramos aqui como aquele da ótica do trabalho. Não
obstante, ambos têm como pressuposto a aplicação da ciência e da
tecnologia no processo de produção.
Na ótica do trabalho, portanto, a formação para o trabalho, em
sentido stricto, seria um ramo da educação escolar, de natureza técnico-
científica; espaço privilegiado para o aumento da capacidade produtora
de ciência e de tecnologia, uma vez que o conhecimento científico e suas
aplicações diretamente produtivas no mundo contemporâneo têm se
tornado a principal força produtiva no estágio atual de desenvolvimento
do capital, além de se constituírem em uma reserva estratégica na
conquista de espaços privilegiados nas relações de poder.
Assim, espera-se que um projeto construído de acordo com a ótica
do trabalho, na atualidade, deve impor como objetivos da formação para
o trabalho no mundo contemporâneo, seja no âmbito da escola básica ou
da educação profissional, o seguinte: a) identificar os princípios que
presidem a relação ativa entre homem e natureza e a relação orgânica
entre o indivíduo e os outros indivíduos ao longo da história da
humanidade; b) apreender os fundamentos e os conteúdos do trabalho em
determinado padrão de desenvolvimento científico e tecnológico da
produção em nível internacional, de modo a intervir autonomamente
nesse processo; c) solidificar uma consciência moral que atenda aos
objetivos da luta pela superação da ordem social burguesa de produção e
reprodução social da vida material – em lugar da luta pela “cidadania
plena”.
De acordo com essa concepção, está implícito um modelo de
desenvolvimento em que as reivindicações para a universalização da
educação básica e das oportunidades de educação profissional visam, não
apenas ao aumento da produtividade industrial para a garantia de maior
qualidade de vida da população em geral, mas sim o rompimento com o
150
monopólio do conhecimento exercido pela burguesia. A propósito, a luta
da classe trabalhadora pela apropriação da ciência e da tecnologia
aplicada no trabalho, na produção e no cotidiano social é parte da luta
histórica dos trabalhadores pela superação da ordem social burguesa de
produção e reprodução social da vida material. Na perspectiva da ótica do
capital, o aumento do nível educacional de base científica e tecnológica
de uma reduzida parcela da classe trabalhadora, em detrimento da
qualificação de outra parcela cada vez maior, tem como propósito o
aumento de produtividade do trabalho em um contexto em que o trabalho
vivo é cada vez mais reduzido. Mas, para a perspectiva da ótica do
trabalho, o aumento da produtividade decorrente da ciência e tecnologia
aplicada na produção só faz sentido como fator de diminuição da jornada
de trabalho e conseqüente aumento do tempo livre do trabalhador como
fator de construção da consciência de classe. Por esta razão, a luta
estratégica de aumento do tempo livre do trabalhador deve estar
articulada à luta pela garantia de acesso a bens materiais e imateriais
indispensáveis à dignidade da vida humana.
Já para o projeto hegemônico vigente, construído segundo a ótica do
capital, a formação para o trabalho não assume caráter unitário, conforme
estabelece a ótica do trabalho. Embora seja impossível para as relações
sociais de produção capitalista a radicalização da dicotomia entre teoria e
prática no processo produtivo e de ciência e vida nas relações de
produção, devido ao atual patamar de desenvolvimento das forças
produtivas e do alargamento da participação social nas decisões estatais,
as ações políticas da ótica do capital procuram impor limites à classe
trabalhadora por meio da socialização desigual do conhecimento
científico e tecnológico – o que configura o monopólio do conhecimento.
Para isso, impõe objetivos diferenciados à formação para o trabalho, seja
no âmbito da educação básica ou da educação profissional. Para uma
ampla parcela da força de trabalho prevê a conformação técnica e ético-
moral apenas suficiente para torná-la capaz de adaptar ou operar
produtivamente as tecnologias produzidas; para outra parcela mínima da
força de trabalho, prevalecem os objetivos voltados para o domínio dos
fundamentos e dos conteúdos do trabalho em determinado padrão de
desenvolvimento científico e tecnológico da produção.
Desse modo, de acordo com a ótica do capital, a formação para o
trabalho baseia-se na distinção entre formação para o trabalho manual

151
para a grande massa de trabalhadores e formação para o trabalho
intelectual para uma elite privilegiada. No entanto, para ambas as
parcelas da força de trabalho, a educação tem como objetivo a
constituição de um novo tipo de trabalhador voltado para o mercado, quer
como sujeito empreendedor, quer simplesmente como sujeito de
consumo. Nessa perspectiva, a formação para o trabalho vem atender aos
mecanismos sociais e políticos de reprodução das relações sociais
fundadas na estrutura de dominação de classe.
Nessa última concepção está implícito um modelo de
desenvolvimento em que as reivindicações para a universalização da
educação básica e para o desenvolvimento da educação profissional
visam ao aumento da produtividade industrial para maior valorização do
capital – por meio do aumento da mais-valia relativa.
Não obstante, na disputa capital/trabalho em torno da concepção e da
política de educação básica e educação profissional, tanto os sujeitos
coletivos que partilham da ótica do capital, como aqueles que partilham
da ótica do trabalho partem do interesse de aplicar de forma produtiva a
ciência e a tecnologia no mundo do trabalho, ou seja, na sociabilidade do
mundo contemporâneo. No entanto,
? ) -
S
) ? ) @
0
) ,
.

) &> g "
588K 55U'
É exatamente a partir do confronto entre estas duas concepções de
aplicação diretamente produtiva da ciência e da tecnologia que surge a
proposição de um tipo de escola anticapitalista, absolutamente
comprometida com o rompimento da dicotomia existente entre educação
e trabalho, entre ciência e vida. Procuraremos, então, sistematizar os
fundamentos filosóficos desta proposição político-pedagógica nascida na
dinâmica da militância socialista.

152
A ATUALIDADE DA PROPOSTA REVOLUCIONÁRIA DE FORMAÇÃO DO
TRABALHADOR
Engels (1988) já havia percebido este conflito entre projetos distintos
de formação do trabalhador em meados do século XIX, quando analisava
a situação da classe operária na Inglaterra, e denunciou que a educação da
classe trabalhadora se dá a partir da relação de subordinação de classe. O
ensino transmitido nas escolas se dá na direção da classe dominante para
a classe subalterna. Isto ocorre de forma tal que, ao realizar-se, faz com
que a classe trabalhadora perca toda a sua “disponibilidade” original,
conduzindo-a a uma autêntica e verdadeira atrofia moral e desolação
intelectual. Trata-se de um tipo de educação interessada, utilitarista, que
prepara o trabalhador apenas para atender a demandas da empresa
capitalista, em oposição à educação desinteressada, típica das camadas
burguesas.7
Por outro lado, a educação desinteressada que a burguesia reivindica
para si é inconsistente, despossuída de qualquer capacidade prática.
Assim, a denúncia de Engels contra o instrumentalismo da escola
destinada à classe subalterna associa-se à condenação da cultura
tradicional e da educação das classes dominantes. Engels já havia
percebido, naquela ocasião a dualidade entre a educação interessada,

:. = A N= A ?
I T
X ? 0 0 0
? I ,
S @
- + -
T0 = 3 32 3A
0 0
? & ? ' & ' ! ? 1 ,
? & 3 3 '
0 & 3 ' 6
D )
N ? = 3 32 3A @
- 2 )
? e 3R
+ ? 0 e R
- 0 ) 0 ,
&* 1 >6" $$. 588J1 559 55:' ? ? ! #
) ) , 0 D
? ! # ! 0 # )
,
)

153
destinada à classe trabalhadora, em contraposição à educação
desinteressada, tipicamente destinada à burguesia.
Além deste reconhecimento, dentro de uma perspectiva da ótica do
trabalho, seria ainda necessário observar que a educação que a classe
burguesa reivindica para si, mesmo que seja desinteressada, meramente
ilustrativa, constitui o positivo para ela própria, pois corresponde aos seus
interesses e à sua condição de dominação de classe. Já aquela educação
que a burguesia reserva para a classe trabalhadora constitui um fator de
negação da condição humana daquele que vive da venda de sua própria
força de trabalho.
A partir dessa concepção educacional, Manacorda afirma a
existência de uma moral dividida na sociedade burguesa, pois, “cada
esfera da vida humana pressupõe uma moral particular, um modo
particular de comportamento, uma norma diversa e antitética”
(MANACORDA, 1991, p. 74). Em síntese, há uma exigência de
reintegração de um princípio unitário do comportamento do homem:
?
)
, D
S ,?
)
N
- ,?
- 0
N
&F.>.*6GE. 5885 :U :K'
Entretanto, as contradições da ordem burguesa de produção e
reprodução social da vida material trazem à tona um aspecto positivo da
dualidade entre educação interessada e desinteressada. Este aspecto
positivo reside exatamente na contradição entre um e outro. É justamente
o fato de a educação que a burguesia reivindica para si se constituir
positiva para ela, em contraposição ao fato de a educação destinada para a
classe trabalhadora ser diferente, oposta e determinante da perda da
condição humana do trabalhador, o que constitui o elemento positivo em
favor da classe trabalhadora. Conforme explicação de Manacorda,

154
) , N )
N @

=
? )S ) A .
) , F 5VUU . !
. -

) )
0 &F.>.*6GE. 5885
:K'
O positivo específico da classe dominante apontado por Manacorda
consiste, portanto,
) )
A
=

)
&F.>.*6GE. 5885 :9'
Assim, segundo Manacorda, é justamente a condição de excluído da
realidade da apropriação do prazer, da cultura, que constitui as condições
favoráveis para que ocorra a rebeldia do trabalho, ou seja, é justamente o
positivo da classe dominante que não se concretiza na realidade da classe
subalterna o que faz emergir as contradições necessárias à mobilização da
classe subalterna com vistas à sua completa e não mais limitada
manifestação pessoal.
A concretização dessa possibilidade consiste na apropriação de uma
totalidade de forças produtivas e no desenvolvimento de uma totalidade
de faculdades, antes condicionado. Mas, como observa Manacorda, se
esta rebelião permanece no âmbito do modo de produção existente, se
não se funda sobre uma força produtiva revolucionária, conservará
apenas o “desumano” (MANACORDA, 1991, p. 78).
As referências acumuladas na luta dos trabalhadores contra a
dominação de classe apontam a formação omnilateral como alternativa
para a classe trabalhadora. Trata-se de uma formação tal que promova o
desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos das
faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da

155
sua satisfação. A expressão “omnilateral” aparece nos Manuscritos
Econômicos e Filosóficos de 1844, quando Marx (1993) observa que o
homem se apropria de uma maneira omnilateral do seu ser omnilateral.
Esta apropriação, portanto, só pode ocorrer na condição do homem total.
A esse respeito, Manacorda (1991 p. 79) ressalva que não é possível ao
indivíduo desenvolver-se de forma omnilateral se não existe uma
totalidade de forças produtivas socialmente apropriadas por uma
totalidade de indivíduos. Em outras palavras, não existem condições para
o desenvolvimento omnilateral do indivíduo no contexto da apropriação
privada da totalidade das forças produtivas. A luta pela formação
omnilateral, portanto, faz parte da luta pela superação da ordem burguesa
de produção e reprodução social da vida material. Por outro lado, as
condições objetivas e subjetivas para a reivindicação da formação
omnilateral por parte da classe trabalhadora são conseqüência da
construção da consciência de classe, ou seja, da constituição do
operariado em classe. Conforme afirmação de Manacorda,
B C
0 S
? )
)
0 )
)S A
6 ,
N
=

)
A .

? 0 T
&F.>.*6GE. 5885 V; V5'
Assim, as reivindicações de formação omnilateral por parte de
organizações da classe trabalhadora exigem a reunificação entre ciência e
vida, entre educação e trabalho, tendo como referência o uso produtivo da
ciência e da tecnologia. Isto implica a negação da universalização da
cultura tradicional no tipo de escola até agora existente para as classes

156
dominantes, assim como a negação da formação subalterna, até agora
concedida à classe trabalhadora, seja na forma da antiga aprendizagem
artesanal ou na forma atual de ensino unida à indústria moderna
(MANACORDA, 1991, p. 85).
Sobre essa questão, existe um acúmulo considerável na organização
e luta dos trabalhadores pela superação da sociedade de classes. Em
meados do século XIX, as discussões sobre educação acumuladas na
organização e luta da classe trabalhadora apontavam a necessidade de
unificar o ensino intelectual com o trabalho físico, os exercícios
ginásticos e a formação tecnológica. Mas Marx, em 1869, preocupou-se
em questionar tal proposição, afirmando que:
) - ,

0 F

T &F.GH
F.>.*6GE. 5885 8;' V

Mas, de acordo com uma perspectiva da ótica do trabalho, a


unificação entre educação e trabalho deve dar-se em outros patamares.
Marx desenvolveu esta questão quando, em conjunto com Engels,
formulava sua posição em relação à exploração do trabalho infantil, já em
1848, apresentada no “Manifesto do Partido Comunista” (MARX &
ENGELS, 1972). Marx e Engels tinham claro que, desde o início do
século XIX, as crianças oriundas da classe trabalhadora já haviam
perdido a possibilidade de participar da única forma de ensino que lhes
foi reservada por muitos séculos, isto é, um tipo de educação que se
desenvolvia, não em instituições educativas ou escolas, mas que se
desenvolvia diretamente no trabalho, junto dos adultos, na produção
artesanal ou campesina (MANACORDA, 1991, p. 92). Por esta razão,
Marx visualizava a exigência de associar a educação das crianças à vida
produtiva, buscando dar ênfase
B C ) ) ) )

V )S F F ?
* I !! !! +
0 ! = # &* 1 F.>.*6GE. 5885 VV'

157
? 4 )
4 )
)S " N
4 ?
4
) &
' )S ) &F.>.*6GE.
5885 8L'
É neste aspecto que Marx defende a unidade entre formação geral e
formação/qualificação profissional. Não como uma mera articulação
entre uma e outra, no sentido de atender às demandas de produtividade e
de competitividade das empresas capitalistas. Mas para contribuir, de
forma revolucionária, para a emancipação da classe trabalhadora. Esta
unificação entre trabalho e educação proposta por Marx é, portanto, parte
de um projeto revolucionário.
Outro aspecto que a luta histórica dos trabalhadores contra o capital
já havia acumulado conhecimento suficiente se refere à proposta
burguesa de “ensino profissional universal”, que Marx já havia criticado
duramente, por volta de 1847. Para ele, esta proposição burguesa nada
mais era do que um tipo de educação interessada que tinha como
propósito adestrar o operário no maior número possível de ramos de
trabalho. Desse modo, a burguesia esperava fazer frente à introdução de
novas máquinas ou a mudanças na divisão do trabalho.
Apropriando-se das contradições concernentes a esta proposição
burguesa, Marx9 buscara mostrar, em várias ocasiões, o efeito perverso da
materialização desta proposta. Na medida em que a divisão do trabalho
aprisiona os operários a um determinado ramo da indústria, de modo que
muitos indivíduos, em função da falta de mobilidade causada pela divisão
do trabalho, valorizam positivamente o reconhecimento da variação dos
trabalhos e, portanto, da maior versatilidade possível do operário, ocorre,
então, uma identidade com os interesses burgueses (MANACORDA,
1991, p. 94-95). Em lugar do critério burguês de polivalência do
trabalhador, Marx propõe a idéia oposta, que seria a formação
omnilateral, a formação do homem completo, que trabalha não apenas

8 )S )S )S F ?
5VU: 6 , . ( ? F
&5885 8U 8K'

158
com as mãos, mas também com o cérebro e que, consciente do processo
que desenvolve, domina-o e não é por ele dominado.
Parece que esta polêmica acerca do conteúdo do ensino técnico é
atual ainda hoje. Até mesmo no seio da organização e luta dos
trabalhadores há, por vezes, uma tendência a reduzir o conceito de
politecnia, ou melhor, o ensino tecnológico teórico e prático, a uma mera
questão de disponibilidade múltipla, de polivalência (MANACORDA,
1991, p. 95). É justamente esta polêmica que expressa o conflito de classe
na concepção e na política de educação profissional no mundo
contemporâneo. Tratemos então esta questão mais detalhadamente,
tomando como referência a realidade brasileira.
Marx (1994), no século XIX, ao refletir sobre a relação entre o
desenvolvimento da maquinaria e a indústria moderna, já afirmava que a
base técnica da indústria era revolucionária, enquanto todos os modos
anteriores de produção eram essencialmente conservadores. Com base
nisto, prenunciava que a conquista do poder político pela classe
trabalhadora traria a adoção do ensino tecnológico, teórico e prático, nas
escolas dos trabalhadores. Além de Marx, Gramsci (1989), ao refletir
sobre a natureza da escola no mundo contemporâneo, também constatou
que a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial,
mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo
tipo de intelectual. De acordo com a ótica do trabalho, as exigências de
atualização profissional e requalificação da força de trabalho previamente
escolarizada, decorrentes do avanço do patamar científico e tecnológico
da organização das forças produtivas e das relações de produção no
mundo capitalista, traduzem-se em um tipo de escolarização que engloba
desde as habilidades técnicas necessárias ao domínio dos novos
conteúdos do trabalho até os conhecimentos teóricos que favoreçam a
compreensão do processo de trabalho em seu conjunto (NEVES, 1997, p.
25).
Considerando a educação, essencialmente, como um processo de
aquisição de conhecimentos necessários ao homem no seu intercâmbio
com a natureza e com os outros indivíduos, veremos que ela se dá no
próprio contexto do processo de trabalho e dele é fruto. Se, por um lado, a
aquisição de conhecimentos é um instrumento necessário e essencial ao
processo de trabalho, por outro, o próprio conhecimento se dá no
contexto desse processo.
159
Partindo dessa premissa, Gramsci (1991) analisa, aprofunda, critica
os limites e resgata os valores das tendências do debate educacional no
contexto da disputa entre capital e trabalho para, finalmente, propor uma
nova e original alternativa para a educação da classe trabalhadora,
evitando qualquer tipo de conciliação oportunista. Gramsci se posicionara
nessa polêmica defendendo uma escola desinteressada do trabalho
essencialmente humanista10, com atividades formativo-culturais para o
conjunto do proletariado, mas com a ressalva de que essa formação não
poderia ser dentro de uma cultura abstrata, enciclopédica, burguesa, que
efetivamente confunde as mentes trabalhadoras e dispersa sua ação,
conforme Engels, em 1844, já havia denunciado em “A Situação da
Classe Trabalhadora na Inglaterra”. A compreensão de Gramsci era de
que uma escola desinteressada baseada em uma concepção de mundo
idealista não conseguiria elaborar uma cultura popular ou dar um
conteúdo moral e científico aos próprios programas escolásticos que
permaneciam como esquemas abstratos e teóricos. Esse tipo de escola
continuaria sendo promotor da cultura de uma restrita aristocracia
intelectual, enquanto que, por outro lado, uma escola desinteressada do
trabalho, baseada na filosofia da práxis, seria o coroamento de todo um
movimento de reforma intelectual e moral, dialetizado no contraste entre
cultura popular e alta cultura.
O embate político entre capital e trabalho no campo da formulação e
gestão de políticas de educação básica e de educação profissional ganha
sentido absolutamente renovado se tomarmos como referência a relação
entre trabalho e educação a partir da nitidez e originalidade da proposta
da escola desinteressada do trabalho de Gramsci. Esta se distingue da
escola desinteressada e da escola do trabalho. Tal sentido abre novas
perspectivas para a organização e luta da classe trabalhadora por
educação, na medida em que pressupõe a incorporação dos fundamentos
científicos e tecnológicos do atual patamar de desenvolvimento das forças

5; . . a I " ,
6
) 0 D
) 0 ? I
0
, N -
- ) )
,
&* 1 >6" $$. 588J J;'

160
produtivas e a sua universalização por meio de uma política de combate
ao monopólio do conhecimento, de universalização da escolarização
básica e da garantia de oportunidades de educação profissional em
instituições públicas, gratuitas e de qualidade.
O conceito de escola desinteressada do trabalho se distingue do de
escola desinteressada por não significar uma escola idealista, escolástica,
fundada na metafísica. Ao contrário, a proposta de Gramsci propõe uma
escola fundada no equilíbrio entre ordem social e natural sobre o
fundamento do trabalho, da atividade teórico-prática do homem, de
caráter científico e tecnológico, com uma concepção histórico-dialética
do mundo. Não obstante, a escola desinteressada do trabalho coincide
com a escola desinteressada apenas na sua essência humanista, mas se
distingue no conteúdo e no método.
Da mesma forma, o conceito de escola desinteressada do trabalho se
distingue do de escola do trabalho por não significar uma escola que está
preocupada em satisfazer interesses imediatos, em proporcionar a
aquisição de habilidades operacionais para a produção industrial e por
não ser uma escola do emprego. A escola desinteressada do trabalho
seria uma escola preparatória (elementar e média) que conduziria o jovem
até as mais amplas possibilidades de escolha profissional e não apenas a
um ofício, preocupando-se em formar homens e mulheres como pessoas
capazes de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige a
sociedade. A escola desinteressada do trabalho coincide com a escola do
trabalho apenas por fundamentar seu processo de ensino/aprendizagem
na aplicação direta e objetiva da ciência e da tecnologia em processos
produtivos.
A escola desinteressada do trabalho é, portanto, a síntese entre o que
há de positivo na escola desinteressada e na escola do trabalho e, por
conseguinte, a negação do idealismo inerente à primeira e do
pragmatismo inerente à segunda, constituindo-se em uma concepção
pedagógica que se distingue daquelas anteriores, uma concepção nova,
revolucionária. Nesse sentido, reafirma-se a preocupação central de
Gramsci que é integrar a corrente humanista e a profissional, que se
chocam no campo do ensino popular, lembrando que, antes do operário,
existe o homem que não deve ser subjugado à máquina, impedido de
percorrer os mais amplos horizontes do espírito.

161
A escola desinteressada do trabalho não representa nem um
saudosismo humanista tradicional nem um profissionalismo tecnicista.
Ela resgata o potencial educativo da escola humanista tradicional, em
confronto com a necessidade de um novo tipo de escola mais interessada,
para propor uma escola mais técnica – e não tecnicista. Esta proposta de
escola é menos tradicional e mais orgânica ao mundo industrial moderno,
baseada em princípios científicos e tecnológicos, capaz de se constituir
em espaço de síntese entre a prática e a teoria, entre o trabalho manual e o
intelectual11. Justamente por isso a escola desinteressada do trabalho é
uma “escola unitária” e é com este nome que muitos a defendem como
projeto pedagógico alternativo àqueles propostos pelos governos e pelos
empresários.
A proposta de escola desinteressada do trabalho de Gramsci está
centrada na idéia da liberdade concreta, universal e historicamente obtida,
isto é, na liberdade gestada pelo trabalho industrial e universalizada pela
luta política. A relação escola/trabalho dá sentido à idéia de liberdade,
onde o trabalho é o fundamento pedagógico que forja o homem na prática
produtiva, projetando, estendendo e concretizando vários outros tipos de
conhecimentos culturais e políticos, para melhor adaptar esse homem ao
novo tipo de prática produtiva necessária a um determinado momento
histórico. Por isso, para Gramsci, as diversas formas produtivas e suas
correlatas formas escolares são expressão da busca da liberdade por parte
do homem (NOSELLA, 1992, p. 127).
Partindo de uma investigação da realidade concreta, buscando
soluções racionais para a sociedade de sua época, Gramsci (1989, p. 406-
407), embora com ressalvas, considera aspectos do fordismo como
essenciais para o desenvolvimento da humanidade12. De fato, o

.
55 , ) 0
HH I )

) E 0 I ! A #
) a , ) a .
)S 0 )
) . I
?
&* 1 IG.F"*! 58V81 L:K U5L'
5J > I ? ! A # !0 #
0 ) <
. ! # N N N N 0

162
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção
capitalista é por ele considerado capaz de apontar as condições objetivas
e subjetivas para uma transformação das relações sociais e políticas, a
partir da formação de uma nova sociedade urbano-industrial, de base
técnico-científica (GRAMSCI, 1989, p. 393). Portanto, para Gramsci, o
“americanismo” tem um significado histórico representativo do
desenvolvimento de condições reais para uma nova civilização,
justamente por exigir do homem um conhecimento de novo tipo, onde a
teoria e prática se conformam em uma unidade, embora dentro dos
limites da valorização do capital, mas que faz emergir a possibilidade de
um novo humanismo, de um novo tipo de relação entre teoria e prática,
entre conhecimento e trabalho, mesmo que essas condições não tenham
sido ainda exploradas. Porém, ele não quer dizer com isso que o
“americanismo” em si representa o limiar de uma nova sociedade, com
novas relações sociais de produção, mas que se trata apenas de uma fase
superior de um processo que não é novo e se inicia com a
industrialização, abrindo novas possibilidades para a classe trabalhadora
(NOSELLA, 1992, p. 127-128).
É evidente que o empresariado tem consciência dessa possibilidade
de “liberação” do cérebro do operário e da nova disponibilidade de
energia humana, preocupando-se e interessando-se política e
economicamente com isso (GRAMSCI, 1989, p. 404). De acordo com a
ótica do capital, jamais esse espaço deve ser ocupado na produção
integral da liberdade, mas em favor da produção de “mais-valia”.
A proposta de escola desinteressada do trabalho de Gramsci surge
exatamente dessa problemática, ou seja, do fato dos industriais se
preocuparem em ocupar os cérebros dos trabalhadores livres da produção
através de “escolas” fundamentadas na máquina ou na ciência,
metafisicamente (e não historicamente) concebidas. As escolas
profissionalizantes, politécnicas, tecnológicas, os círculos de cultura e de
lazer etc., correspondem a esse interesse, enquanto que a proposta de
escola desinteressada do trabalho de Gramsci se contrapõe tanto à
educação jesuítica (desinteressada), como também à educação burguesa
do trabalhador (interessada), materializada na formação unificada do

HH !" # N )
) N ) )S ) )
HH

163
técnico e do cientista da produção, negando o idealismo e afirmando a
posição marxista da prática produtiva como ponto de partida e o
demiurgo da própria consciência (GRAMSCI, 1991, p. 118).
De acordo com as análises das “Cartas do Cárcere” feitas por
Nosella (1992), torna-se evidente que Gramsci tinha grandes
preocupações com as questões didático-pedagógicas, sempre orientado
pela sua concepção de vida, de cultura, de filosofia, de história, segundo a
qual o ser humano deve educar-se científica e culturalmente até os níveis
mais complexos, sofisticados e modernos, partindo de uma forte e vital
ligação com sua base popular e com seu senso comum. Esta concepção
educacional seria o que, no presente trabalho, consideramos aquela da
ótica do trabalho. O interesse oposto de uma educação voltada para a
formação de um técnico abstrato, um intelectual desenraizado e não
orgânico, considerada aqui como aquela da ótica do capital, significaria
uma ameaça para a aliança revolucionária (GRAMSCI, 1991, p. 117-
118).
Gramsci sempre teve absoluta clareza do sentido histórico da sua
proposta e fazia questão de distingui-la das outras propostas que
impregnavam o debate político-educacional de sua época, ressaltando o
seu caráter revolucionário. Por isso, sua proposta de escola
desinteressada do trabalho não se trata de uma proposta isolada, mas sim
uma proposta gestada no sabor da militância socialista e no compromisso
com a classe operária. Sua proposta fazia parte de um projeto muito
maior: construir uma nova ordem de relações sociais de produção.
Conforme visto até aqui, a proposição de unificação entre a formação
básica e a formação técnico-profissional é uma estratégia política muito
bem articulada com um projeto de sociedade alternativo ao do capital.
Entretanto, diversos governos têm levantado a bandeira da integração
entre formação geral e formação para o trabalho em outro patamar, com o
intuito de construir o consenso em torno de uma espécie de contra-
reforma da escola unitária, propagando outras possibilidades de
articulação entre a educação básica e a educação profissional. Nesse
sentido, “separar o joio do trigo” foi aqui nossa principal finalidade.

164
REFERÊNCIAS:
1. ALVES, Giovanni. O Novo (e Precário) Mundo do Trabalho:
reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo:
Boitempo, 2000. 365 p.
2. ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a
afirmação e a negação do trabalho. 3ª Edição. São Paulo: Boitempo,
2000. 258 p.
3. COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a Corrente: ensaios sobre
democracia e socialismo. São Paulo: Cortez, 2000.176 p.
4. _______. Democracia e Socialismo. São Paulo: Cortes, 1992.
5. _______. Marxismo e Política: a dualidade de poderes e outros
ensaios. São Paulo: Cortez, 1994. 160 p.
6. ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na
Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo Artigas & Reginaldo Forti.
São Paulo: Globo, 1988. 391 p.
7. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno.
7ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. 444 p.
8. _______. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. 8ª Edição.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 244 p.
9. LUKÁCS, György. Ontologia Del Ser Social: o trabajo. Buenos
Aires: Herramienta, 2004. 208 p.
10. MACHADO, Lucília R. S. Racionalização produtiva e formação no
trabalho. Trabalho & Educação – Revista do NETE, Belo
Horizonte, Nº 0, p. 41-61, jul./dez., 1996.
11. MANACORDA, Mário Alighiero. Marx e a Pedagogia Moderna.
Tradução de Newton Ramos de Oliveira. São Paulo: Cortez: Autores
Associados, 1991. 221 p.
12. MARTINS, André S. Estratégias burguesas de obtenção do consenso
nos anos de neoliberalismo da Terceira Via. In: NEVES, Lúcia M.
W. (Org.). A Nova Pedagogia da Hegemonia: estratégias do capital
para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005. p. 127-174.

165
13. MARX, Karl & ENGELS, Frederick. Manifesto Del Partido
Comunista / Critica Del programa de Gotha. México (D.F.):
Roca, 1972. 155 p.
14. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de
Reginaldo Sant’Ana. 14ª Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1994. Vol. I [Livro I – o processo de produção do capital].
15. _______. Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Lisboa:
Avante, 1993. 181 p.
16. MÉZÁROS, Istvan. Para Além do Capital: rumo a uma teoria da
transição. Tradução de Paulo César Castanheira & Sérgio Lessa. São
Paulo: Boitempo: Campinas: EDUNICAMP, 2002. 1103 p.
17. NEVES, Lúcia M. W. & SANT’ANA, Ronaldo. Introdução:
Gramsci, o Estado educador e a nova pedagogia da hegemonia. In:
NEVES, Lúcia M. W. (org.). A Nova Pedagogia da Hegemonia:
estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã,
2005. p. 19-39.
18. NEVES, Lúcia M. W. (Coord.). Política Educacional nos Anos 90:
determinantes e propostas. Recife: Editora Universitária da UFPE,
1995. 180 p.
19. _______. Brasil Ano 2000: uma nova divisão do trabalho na
educação. Rio de Janeiro: Papéis e Cópias, 1997. 110 p.
20. _______. Educação e Política no Brasil de Hoje. São Paulo:
Cortez, 1994. 120 p.
21. NOSELLA, Paolo. A Escola de Gramsci. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1992. 135 p.
22. SOUZA, José dos Santos. A “Nova” Cultura do Trabalho e seus
mecanismos de obtenção do consentimento operário: os
fundamentos da nova pedagogia do capital. In: BATISTA, Roberto
Leme & ARAÚJO, Renan (Org.). Desafios do Trabalho: capital e
luta de classes no século XXI. Londrina(PR):Práxis; Maringá(PR):
Massoni, 2003. p. 173-200.

166
23. _______. O Sindicalismo Brasileiro e a Qualificação do
Trabalhador. Londrina(PR): Práxis; Bauru(SP): Canal 6, 2009. 197
p.
24. _______. Trabalho, Educação e Sindicalismo no Brasil – anos 90.
Campinas (SP): Autores Associados, 2002. 223 p.

167
168
TRABALHO IMATERIAL, CLASSE SOCIAL E
QUALIFICAÇÕES PROFISSIONAIS*
, -

A expansão do capital nas últimas três décadas, por um lado, com o


operário polivalente, a subcontratação, os cortes salariais, as práticas
toyotistas e, por outro, com a flexibilização de direitos trabalhistas e o
enfraquecimento dos partidos e sindicatos ligados às classes
trabalhadoras em diferentes países, são os elementos centrais da
reestruturação produtiva iniciada nos anos 1970. Em conjunto, tais
transformações constituem o objetivo duplo de aprofundar as bases da
dominação e de valorização capitalista na produção de mercadorias,
afetando, com isso, a organização política da classe trabalhadora.
A substituição de trabalhadores por máquinas e robôs, além da
implementação de formas mais eficazes no processo de controle e gestão
do coletivo de trabalhadores foram largamente utilizadas em vários
setores da produção nesse sentido. O número relativo de trabalhadores foi
reduzido, o que fez acumular as funções dos trabalhadores que
permaneceram empregados. Verificou-se, por exemplo, a transformação
dos processos de trabalho, da estrutura de hierarquias dentro das fábricas,
da qualificação de novas funções produtivas, de novas responsabilidades
e de autocontrole produtivo no setor industrial e de serviços.
B C ? 0
) @ )
)
) 6
) ?
S
? ) ) ,
) 0 &.F6G!F J;;9 LU'

. S ? . &J;;8'
E * " %>!*.F E " %>!*.F
Q ""2 " %>!# " 2* I 1
]

169
Nesse sentido, o quadro de competências foi alargado e imposto aos
trabalhadores. A polivalência e a formação profissional apresentaram-se,
com isso, como atributos básicos para o preenchimento de antigas
ocupações que são reorganizadas e também para as novas ocupações
profissionais.1 A reestruturação produtiva caracterizou-se, assim, como
um mecanismo de desorganização das formas de resistência da classe
trabalhadora. Com este mecanismo foi possível revigorar as formas de
dominação dos grupos dirigentes impondo novos processos de trabalho,
de gestão do capital, de redefinição dos parâmetros de qualificação do
trabalhador, de reordenamento das políticas públicas, como também de
redefinição das leis trabalhistas e das prioridades sociais ditadas pelo
Estado.
Foi nesse contexto histórico-político dos anos 1970 que se abriu o
debate sobre o fim das classes sociais, sobre as novas formas de
representação política dos trabalhadores. Guardando uma continuidade
problemática que é apresentada como uma ruptura com o marxismo a
qualificação profissional é apresentada como elemento central para
determinação e composição da classe trabalhadora.
A constituição de um novo tipo de trabalhador mais adequado aos
interesses dos grupos dirigentes e também do aumento de trabalhadores
desempregados como fruto do movimento, intrínseco ao processo de
valorização do capital, de redução do tempo de trabalho necessário é
discutida dentro de um horizonte reduzido. As utopias revolucionárias e a
emancipação da classe trabalhadora frente ao capital são caracterizadas
pelo debate contemporâneo como ultrapassadas face ao caráter
incontrolável da racionalidade econômica capitalista.
A tese central que indicaria essa superação do marxismo é a de que o
fracionamento das categorias profissionais não teria mais como efeito
uma identidade de classe. No entanto, o desenvolvimento dessa mesma
racionalidade econômica capitalista, passados alguns anos de reflexão e a
5 ) ) @
) ) ? )S
, + ) ? )
) @
- @ )
) ) 1 )
) @ )S )
)

170
permanência do antagonismo de classe inscrito na produção de
mercadorias, faz, por exemplo, Gorz rever sua análise.
No processo de constituição de novas ideologias foi necessário
descartar completamente as teses que sustentavam as antigas formas de
resistência teórica, política e social. Nesse contexto, o triunfo da
sociedade capitalista foi explicitado. Tratou-se, então, de compreender
quais seriam as melhores formas de administrar a dinâmica capitalista, já
que a teoria central que edificava o socialismo estaria morta.
Na prática, uma das formas de descartar as teorias revolucionárias e,
em especial, a teoria marxista, foi relacioná-la ao industrialismo. Se o
industrialismo havia sido superado por novas e mais eficazes formas de
produção, que faziam desenvolver a subjetividade do trabalhador e ainda
mantinham a dominação social do capital, a teoria que dava sustento ao
“velho” embate entre classes sociais deveria ser considerada no mínimo
uma teoria anacrônica ou ultrapassada.
A partir desse universo de rechaço ao marxismo, as teses sobre a
não-centralidade do trabalho e depois sobre a imaterialidade do trabalho
foram desenvolvidas. Em um primeiro momento, a negação do marxismo
e do trabalho industrial, pensado em sentido generalizado, foi o objetivo
central das teses sobre a não-centralidade do trabalho. A racionalização
da produção advinda do desenvolvimento econômico, leia-se, das forças
produtivas, teria transformado o trabalho em uma atividade fadada à
alienação. A redução do trabalho industrializado nos principais países da
Europa Ocidental foi, nestes termos, apontada como um futuro próximo
para todas as sociedades capitalistas (GORZ, 1987, p. 11). Com isso, o
processo de racionalização da economia capitalista não daria margem a
qualquer possibilidade de desestruturação deste modo de produção; a
classe trabalhadora teria como única alternativa a possibilidade de
“administrar” este processo “inevitável” de substituição de homens por
máquinas, que teria como conseqüência principal o fim do trabalho. Por
sua vez, o trabalho teria deixado de ser considerado como expressão de
qualquer forma de poder, não guardando nenhum critério de
sociabilidade; a classe trabalhadora, assim, não teria mais possibilidades
materiais e tampouco vocação para revolucionar o poder
institucionalizado (GORZ, 1987, p. 86).

171
B C ) )
E @
a
? S

)
)
)
% )S

&I6GY 58V: 55'


Nas entrelinhas, a perspectiva do autor nos sugere que a teoria das
classes sociais não é mais válida para as sociedades que foram
reconstruídas com base nas novas formas de produção da última
reestruturação produtiva. No entanto, um novo segmento nasceria nos
escombros do modelo industrialista de produção: os trabalhadores do
imaterial.
Brechas na estrutura de dominação capitalista fundamentariam a
possibilidade de construção de um novo modo de vida, da constituição de
uma política anticapitalista. As novas formas de exploração do trabalho -
ao demandarem um novo tipo de trabalhador, cujos conteúdos
comunicacionais, informativos, cognitivos, em geral, suas qualificações
profissionais - deslocariam sua subordinação, em relação ao capital, a um
novo estágio político e social. O capital, ao “acionar” um tipo de
trabalhador adaptado e essencial às suas demandas produtivas, teria
acabado por criar seu próprio algoz: um tipo de trabalho imaterial.
A desvinculação com as formas tradicionais de produção criaria
nesse novo segmento profissional uma negação em relação à produção
tipicamente capitalista, uma vez que seu trabalho extravasaria a lógica da
exploração do tempo de trabalho criadora de mais-valia. Os conteúdos do
novo tipo de trabalho são interpretados como qualificações
anticapitalistas. A pergunta central para o autor seria: como mensurar
conteúdos cognitivos? A resposta é simples, diz ele: é impossível! Assim,
Gorz pôde indicar a existência e a centralidade dinâmica de um tipo de
trabalho que na sua essência é portador de uma outra forma de produção,
entendida como comunista.

172
Estabelece-se teoricamente o trabalho imaterial. Um trabalho que é
divulgado como social e que depende da qualificação individual; que se
fundamenta na capacidade de reconhecimento da informação; que não
pode ser restringido pelo capital, mas acaba por, novamente,
circunscrever-se à lógica de valorização capitalista.

A INDIVIDUALIZAÇÃO DO SUJEITO HISTÓRICO OU AQUÉM DA ANÁLISE DAS


CLASSES SOCIAIS
Dentro da discussão sobre o trabalho imaterial e da não-centralidade
do trabalho existiria uma subordinação teórica da classe social em relação
ao indivíduo (trabalhador isolado no processo de trabalho). Poder-se-ia
dizer que a classe social ou o indivíduo — como ponto de partida
analítico — são escolhas metodológicas distintas e que cada qual oferece
uma leitura específica das transformações no processo de produção. No
entanto, a referência às classes sociais, ou ainda à luta de classes, na
literatura marxista é obrigatória. Partir do ponto de vista do indivíduo
como elo e expressão das relações sociais seria trabalhar com outras
metodologias analíticas que pressuporiam um outro universo de conceitos
e questões diferentes das marxistas.
Um interessante elemento teórico que fundamenta essa perspectiva
são as teses sobre a relação entre o posto de trabalho e o trabalhador, ou
melhor, sobre a identificação deste último com o seu posto de trabalho.
Trabalho e trabalhador seriam uma única e mesma coisa. Ele é o que é o
seu trabalho. Libertar-se de seu posto de trabalho é libertar-se — ou pelo
menos controlar — de seu embrutecimento, de sua obscuridade acerca de
sua própria relação produtiva, que lhe daria as possibilidades materiais de
condensar uma vida que se reconhece na sua própria natureza.
De uma parte, a conjuntura histórica na qual as classes trabalhadoras
estavam imersas no final dos anos 1960 na Europa e nos Estados Unidos
fazia aflorar uma prática política de tipo reformista; o “pacto” fordista
entre patronato e trabalhadores repercutiu nas teses marxistas sobre a
organização partidária e sindical, e também em relação à concepção sobre
a transição e a ruptura com o modo de produção capitalista. De outra, o
período histórico que engloba o Stalinismo foi decisivo para a
consolidação das teses sobre o primado das forças produtivas. Os partidos
comunistas pelo mundo, a reboque dessas teses, difundiam largamente a

173
necessidade do avanço econômico como momento prévio e preparador
para a chegada ao comunismo.
As teses sobre as formas de apropriação/exploração do intelecto do
trabalhador, ou seja, do que poderia ser hoje denominado como uma
produção imaterial (ou como um trabalho imaterial) vem atualizar as
teses do primado das forças produtivas no processo de transformação dos
processos de trabalho capitalista e de possíveis rupturas com esse modo
de vida. Tais teses podem ser preliminarmente expostas da seguinte
forma: existiria dentro do debate sobre a imaterialidade do trabalho a
idéia geral de que a retomada do controle da produção, mesmo que não
esteja associada diretamente à fábrica, não teria relação somente com o
trabalho imediato, mas poderia ser constituída a partir do contato técnico
de um núcleo de trabalhadores com forças produtivas as mais avançadas.
Isto, por extensão, capacitaria este núcleo a se organizar politicamente.
O componente do saber presente no trabalho industrial e de serviços
teria crescido em importância hoje. Este saber não poderia ser reduzido a
saberes técnicos, outrora formalizados. Assim, “o saber da experiência, o
discernimento, a capacidade de coordenação, de auto-organização e de
comunicação. Em poucas palavras, formas de um saber vivo adquirido no
trânsito cotidiano, que pertencem à cultura do cotidiano” (GORZ, 1987,
p. 09) formariam, o que poderíamos chamar, de uma suposta resistência
dentro da lógica de valorização do capital.
As contradições em presença teriam fundamentado um tipo de
trabalho cujo componente central seria o conhecimento. Lembremos,
rapidamente, da tese de Gorz desenvolvida em Adeus ao Proletariado
(1987), segundo a qual a sociedade capitalista estaria fundada em uma
dualização: sociedade heterônoma versus sociedade autônoma. Nos
“interstícios” da sociedade capitalista ter-se-ia formado uma força
produtiva cognitiva ancorada nas experiências cotidianas dos indivíduos.
Esta produção imaterial levaria a teoria do valor à excrescência, pois
indicaria uma contradição instransponível entre a lógica de
universalização dos produtos imateriais e a mercadoria. Haveria, com
isso, um redimensionamento da forma histórica de valorização do capital
hoje. Neste contexto, o capital tentaria incessantemente conservar,
restringir o acesso, patentear o conhecimento presente nos produtos
comercializados. Mas, não poderia fazê-lo por completo, pois fugiria do
movimento intrínseco ao capital, de acumulação e de extensão ilimitada
174
da exploração do trabalho; para produtos imateriais, lembra Gorz, essa
lógica não faria mais sentido.
Nestes termos, o movimento de independência do trabalho imaterial
frente ao processo de acumulação de capital que este último — o capital
— deveria conter, estaria sendo construído. A imensurabilidade, essa
propriedade particular dos trabalhos imateriais, seria utilizada como fonte
de um novo processo de valorização na medida em que esta fosse
restringida. O monopólio do “capital conhecimento”, por exemplo,
sintetizaria a contenção dos produtos imateriais. Isto submeteria uma
realidade ilimitada (dos produtos cognitivos) ao movimento limitado de
troca de mercadorias. Até aqui nada de novo nas formas de apropriação
do trabalho pelo capital.
Com a diminuição do trabalho imediato, as formas de pagamento e o
valor de troca presente nas mercadorias seriam também reduzidos; isto
produziria uma diminuição dos valores monetários, isto é, da riqueza e
dos lucros produzidos. O capitalismo cognitivo apresentar-se-ia como
momento de “[...] crise do capitalismo em seu sentido mais estrito”
(GORZ, 2005, P. 37). Evidencia-se, com isso, a indicação de uma
transição do capitalismo para o comunismo. Esta indicação, antiga ao
corolário gorziano — lembremos da tese sobre as “reformas não-
reformistas” (GORZ, 1968) — corrobora a idéia de uma passagem, e não
de uma ruptura, com o modo de produção capitalista. Subentende-se,
portanto, o fim do antagonismo entre as classes sociais baseado na
prescrição de uma alternativa consensual dos embates sociais. Ademais,
os produtos ditos imateriais parecem estar ligados a uma lógica produtora
de valores de uso.
Em seu conjunto, o trabalho imaterial não teria mais a função
primeira de valorizar o capital. Percebe-se ainda a coexistência de, pelo
menos, dois modos de produção no interior das sociedades capitalistas:
um modo de produção baseado no valor-trabalho, e que teria como
medida unidades de tempo produtivas, fundado no trabalho simples; e,
um segundo, cognitivo, no qual o processo de valorização estaria
ancorado no trabalho imaterial, no “capital humano” e no “capital
conhecimento”.
Para que o “capital conhecimento” possa entrar na circulação, ele
deve converter-se em capital-mercadoria, deve associar-se às formas

175
tradicionais do capital, já que "ele não é capital, no sentido usual, e não
tem como destinação primária a de servir a produção de sobrevalor, nem
mesmo de valor, no sentido usual” (GORZ, 2005, p. 54). Não se
adequando à norma tradicional de valorização do capital e, ao mesmo
tempo, desenvolvendo-se como força produtiva central o “capital
conhecimento” apresentar-se-ia como momento de negação e de possível
superação do capitalismo. No entanto, tal superação estaria na
dependência de uma tomada de consciência, de um reconhecimento por
parte do indivíduo. “A criação de riqueza deve ser desatrelada da criação
de valor” (GORZ, 2005, p. 57). Com isso, o valor mercantil daria lugar a
uma riqueza que não poderia ser regulamentada pelo capital.
Portanto, esta separação formaria espontaneamente um processo de
solidariedade e coletividade como vetor central de organização social. A
presença dessa dualidade social nos confere uma visão contraditória do
capitalismo, pois ao mesmo tempo em que essas lógicas trabalham dentro
do mesmo “sistema”, isto é: obedecem às mesmas leis, o “capital
conhecimento” precisa travestir-se de capital-mercadoria para entrar no
processo de circulação. No entanto, por suas particularidades específicas,
este “capital conhecimento” garantiria um isolamento em relação ao
caráter perverso do capital; isto permitiria ao conjunto de trabalhos
imateriais construir uma resistência política e uma possível transição a
uma economia “comunista do saber” (GORZ, 2005, p. 10).
Assim, o trabalho imaterial (aquele que desvincula a produção fabril
da produção de conhecimentos/informações) questões como a do
fortalecimento político de grupos de trabalhadores estariam relacionadas
à capacidade de adquirir novas informações, novos conhecimentos
técnicos que poderiam lhes facultar o domínio estratégico de sua
atividade produtiva e, assim, de organizar-se politicamente.
B C6 4
) )S
4 a BrC

)S
e R
S
r +
) 4
0
176
3 4
&> IG! J;;U UU'
Há, nesse sentido, uma tentativa de reapropriação da teoria de Marx
como produção de um “ciclo” ampliado não apenas relacionado à
produção fabril, mas também à formação de um coletivo de trabalhadores
inter-relacionados pela produção-consumo de conhecimentos, isto é, à
reconfiguração do intelecto geral (general intellect). Nestes termos, a
indústria tradicional, como locus de organização da resistência política,
cederia seu lugar à grande empresa, uma sociedade-fábrica, isto é,
produção/consumo/distribuição tornar-se-iam uma única e mesma coisa
que se sintetiza no trabalho imaterial.
Essa abrangência produtiva e da exploração do trabalho imaterial
como força produtiva central seria, dessa forma, radicalizada ao
universalizar a exploração da subjetividade do trabalhador, fazendo
reproduzir a subsunção real de sua condição social. No entanto, tanto na
interpretação de Gorz, quanto na de Negri, vemos que apropriação do
conceito de trabalho imaterial é, mais uma vez, mediada pela figura do
indivíduo, do trabalhador isolado. Na citação acima, caracterizar-se-ia a
figura do produtor-consumidor como sujeito político central no contexto
de uma sociedade produtora de mercadorias imateriais.
Na prática, a mudança das formas de exploração do trabalho
ocasionou a recomposição do conteúdo das qualificações necessárias às
formas de produção. Contudo, hoje, esses conteúdos que geraram uma
subjetividade específica capacitariam o segmento de trabalhadores
portador desses novos conteúdos a formar uma luta anticapitalista. Ao
comprar, ao consumir uma informação, criar-se-ia um processo de
resistência. A luta política está, assim, posta no varejo.
No entanto, se pensarmos nos termos de Marx, o tempo liberado não
permitiria qualificar qualquer possibilidade material de desenvolvimento
do indivíduo social, pois esse tempo seria negativamente liberado pela
forma do desemprego, da precarização, do subemprego, do banco de
horas, etc. veiculando, assim, a impossibilidade efetiva do usufruto desse
tempo liberado. A superfluidade do trabalho estaria calcada na
pressuposição de que a produção de mercadorias ampliou-se; ou seja, que
ela não está apenas ligada à produção industrial; sua abrangência seria,

177
assim, prerrogativa de uma nova lógica produtiva ainda determinada pela
valorização do capital.
Hoje a hipótese de Marx da supressão do trabalho vivo e do aumento
do trabalho passado nunca foi tão pertinente. Esse pressuposto se soma a
outro: o emprego, em sua concepção tradicional, não poderia mais
crescer, pois hoje a incorporação da inovação tecnológica estaria cada vez
mais presente. Em última análise,
& ' )
) ) Af F
, =
)
)
0 ) f &+6" $
588U J5J'
A mercadoria força de trabalho em sua forma supérflua acaba por
redefinir um estágio do desenvolvimento das forças produtivas (trabalho
abstrato) que, em seu conjunto, aparenta uma ruptura, mas que,
contrariamente, encaminham a permanência da sociedade capitalista.
Haveria, nesse sentido, uma continuidade do processo de valorização
do capital e do trabalho como meio de realização dessa valorização. O
trabalho na sua forma imediata cede espaço às formas mediatas da
atividade produtiva, estruturando-se, e é por isso que eles conservam a
caracterização do trabalho como central, uma expressão metamorfoseada
do valor-trabalho. A forma do valor tornar-se-ia cada vez mais a forma do
valor trabalho intelectual-abstrato, ou seja, as formas de intelectualização
da força de trabalho poderiam, assim, ser entendidas como razão primeira
da valorização do capital. Flexibilidade, rapidez de deslocamento,
autotransformação permanente, caracterizam-se e se autovalorizam
através da incorporação constante do conhecimento retido como valor de
troca. A cooperação, nesse sentido, tornar-se-ia uma forma produtiva
“processual”, ou seja, a produção capitalista manifestar-se-ia sempre
como jogo de um imenso autômato social. Mas ela agora estaria dotada
de um intelecto geral nos termos de Marx?
A dinâmica capitalista, como regulamentação da produção, passa a
responder também pelo controle das capacidades cognitivas no trabalho,
no sentido em que necessita de indivíduos que estejam aptos a agir e a

178
tomar decisões – a mesmo que dentro de padrões estabelecidos. “É neste
contexto que deve ser recolocado o problema da medida do trabalho
como momento da constituição do trabalho abstrato partindo das
atividades intelectuais concretas” (VINCENT, 1993, p. 124),
especificamente, quando nos referimos à formação profissional de cada
trabalhador. A produção de um conhecimento específico deve ser
“objetivada”. Nesse sentido, as relações de troca aparecem como formas
de automatização do trabalho intelectual, já que ele mesmo deveria ser
objetivado como valor, através do dinheiro. Disso decorre que o trabalho
imaterial fundamentaria um conjunto de relações sociais que se articulam
em um coletivo como um ciclo produtivo ampliado e ativado pelo
conjunto desses trabalhadores.
Para além disso, a questão deveria ser discutida a partir da idéia de
que tais incorporações geram antagonismos que podem dar fundamento a
uma contra-ofensiva da classe trabalhadora, já que eles mesmos são
incompatíveis com as promessas de eqüidade contidas na ideologia do
progresso técnico do trabalho e da produção. Nesse sentido, uma das
questões fundamentais para compreender as novas formas de
recomposição do trabalho seria entender os limites dessa incorporação, na
medida em que deve estar articulada a uma lógica de conjunto que tende
sempre a impedir a autonomização do trabalhador frente às imposições
econômicas, políticas e sociais ativadas pelo capital.
Finalizo esse texto indicando dois esclarecimentos que me parecem
ausentes das considerações realizadas pelo escopo desse debate. O
primeiro deles configura-se na relação entre trabalho intelectual e
trabalho manual. Na maioria das vezes, tal relação esteve diretamente
relacionada ao posto de trabalho e à especialização técnica do
trabalhador. Tal imprecisão acabou por motivar, no seio dos partidos
comunistas e da teoria social a eles vinculada, classificações arbitrárias
sobre quem pertencia ou não a uma determinada classe, sobre quais
seriam os setores da classe mais aptos a realizar a revolução, quais seriam
mais adequados a ascenderem a uma suposta consciência de classe ou a
uma “missão histórica” de transformação estrutural da sociedade
capitalista.
O segundo ponto está relacionado à questão da materialidade. Creio
que a literatura marxista ortodoxa valeu-se de parâmetros físicos para
compreender o que seria material ou não material na produção e no
179
trabalho. Por conseguinte, a literatura que se ergue nos anos 1970 em
torno da idéia de superação do paradigma produtivo, acaba por responder
a um falso problema. Ela parece ter sido, portanto, constituída sob a
rubrica inversa às teses do marxismo ortodoxo até então. Nesse sentido,
reproduz-se uma oposição teoricamente ineficaz e não dialética entre
material e imaterial como eixo explicativo de todo um debate nos anos
que posteriores. Uma oposição que parece, de um lado, estar presente em
dicotomias enrijecidas como as de trabalho produtivo e improdutivo, de
trabalho intelectual e manual, de classe operária e classe trabalhadora na
literatura marxista e, de outro, que figuram nos termos de trabalho
cognitivo e trabalho manual, sociedade do conhecimento e sociedade
industrial, capital imaterial e capital material.
De início, é importante dizer que a divisão conceitual entre trabalho
intelectual e trabalho manual mais dissimula que ajuda na compreensão
das novas formas de trabalho. A relação central na teoria de Marx sobre o
processo de valorização do capital se dá entre valor de uso e valor de
troca. Os conceitos de trabalho manual e trabalho intelectual ou mesmo
de trabalho produtivo e trabalho improdutivo devem ser examinados
sempre com referência à relação entre valor de uso e valor de troca. A
constituição do valor de troca e, posteriormente, do dinheiro como
equivalente geral e mercadoria específica são os elementos que
constituem a base do raciocínio de Marx sobre o processo de exploração
do trabalho com o objetivo de ampliação da mais-valia relativa com base
na redução do tempo de trabalho necessário e aumento da produtividade.
O trabalho abstrato é caracterizado, dessa forma, como um trabalho em
geral que expressa quantidades diferentes de valores de troca das
mercadorias, tornando-as socialmente intercambiáveis, tornando-se um
regulador das trocas de mercadorias distintas, isto é, com diferentes
quantidades de tempo médio socialmente necessário para a sua
produção.2
Dessa forma, não há diferença conceitual entre a produção material
ou imaterial. Essa dicotomia, na análise que Marx realiza da produção de
mercadorias e do valor-trabalho, seria um falso problema. A produção de
mais-valia, ou mais valor, não é caracterizada pela relação de

J . ) , ) , >
) )

180
transformação física dos objetos trabalhados. A teoria de Marx evidencia
um conjunto específico de relações sociais que tem por característica
central a produção de mercadorias sob um objetivo particular. O objetivo
da produção capitalista, é bom que se frise, não é produzir valor, mas sim
produzir um número maior de mercadorias em um tempo cada vez mais
reduzido.
Não importa, desse modo, se estamos falando da produção de uma
mercadoria conhecimento ou de uma mercadoria máquina, pelo contrário,
o importante é analisar como, em que condições, sob que tipo de
empreendimento, em que encontro de relações sociais o conhecimento e a
máquina foram produzidos. Em termos gerais, ambos podem ter sido
produzidos na forma de uma mercadoria capitalista: redução do tempo
global de produção com aumento de produtividade, gerando com isso
uma diferença para cima entre o capital inicial e o final, informada pelo
pagamento de um salário que não expressa o tempo total gasto na
produção.
Nestes termos, inferir que a qualificação profissional do trabalhador,
a matéria-prima trabalhada, os recursos utilizados representam, informam
e constituem as relações sociais que estruturam o processo de trabalho
não impõe a designação de uma materialidade que determina o conjunto
de relações sociais. Qualificação, matéria-prima, ferramentas, máquinas,
informações, softwares, etc. etc. são o resultado de relações sociais
específicas. Todos eles são constituídos por relações de exploração e
dominação sociais determinadas no terreno da estrutura social, isto é, das
relações de classe.
A diferenciação entre material e imaterial não se relaciona, nestes
termos, ao valor de troca, ao trabalho abstrato, mas sim ao valor de uso,
ao trabalho concreto. Portanto, só faz sentido diferenciar a materialidade
e a imaterialidade do trabalho quanto ao conteúdo do trabalho e não
quanto à produção do valor de troca, já que ele continua determinado pelo
tempo de trabalho socialmente necessário à produção de mercadorias
distintas. Em resumo, material ou imaterial a valorização do capital tem
fundamento na relação de troca entre mercadorias, isto é, em sua forma e
não no conteúdo do trabalho empregado.

181
REFERÊNCIAS:
1. AMORIM, Henrique. Trabalho Imaterial: Marx e o Debate
Contemporâneo. São Paulo: Annablume/FAPESP, maio de 2009.
2. _______. “A relação entre novas tecnologias da informação e a
teoria do valor-trabalho”. Entrevista Concedida. São Leopoldo:
Revista do Instituto Humanitas de Ensino (Notícias do Dia),
2009. Disponível em: [http://www.ihu.unisinos.br/index.php?
option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27473], acesso
em 20/01/2010..
3. _______. “Antoine Artous: O mundo do trabalho e o marxismo”.
Entrevista realizada com Antoine Artous. São Leopoldo: IHU,
2009, Disponível em: [ttp://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?
option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1934&id_ed
icao=344], acesso em 20/01/2010.
4. _______. “Prática Política, qualificações profissionais e trabalho
imaterial hoje”. Revista de Sociologia e Política, n. 34, vol. 18,
2010.
5. _______. “Reforma, Crise e Revolução em André Gorz”. Crítica
Marxista, nº 26, 2008.
6. _______. “Trabalho imaterial, forças produtivas e transição nos
Grundrisse de Karl Marx”. Crítica Marxista, nº 25, 2007, pp. 09-
30.
7. GORZ, André. Estratégia Operária e Neocapitalismo. Rio de
Janeiro: Zahar, 1968.
8. _______. Adeus ao Proletariado - Para Além do Socialismo. Rio
de Janeiro: Forense, 1987.
9. _______. Métamorphoses du Travail. Quête du Sens: critique de
la raison economique. Paris: Galilée, 1988.
10. _______. O Imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo:
Annablume, 2005.
11. MARX, Karl. “Introdução [à Crítica da Economia Política]”. In: Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

182
12. _______. “[Prefácio] da introdução a Crítica da Economia Política”.
Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
13. _______. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1996.
14. NEGRI, Toni. “De l’Avenir de la Democracie” (Débat avec Olivier
Mongin). Alternatives Internationales, Paris, 2004, nº 18, pp. 44-
47.
15. TOSEL, André. Centralité et non-centralité du travail ou la passion
des hommes superflus. In: BIDET, Jaques & TEXIER, Jaques. La
Crise du Travail. Paris: PUF, 1994, pp. 209-218.
16. VINCENT, Jean-Marie. Les Automatismes Sociaux et le “général
intellect”. Futur Antérieur, nº 16, 1993, pp. 121-130.

183
184
A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO
CAPITAL E A EMERGÊNCIA DA NOÇÃO DE
COMPETÊNCIA NO MUNDO DO TRABALHO
.

A MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL EM PROCESSO


O contexto da mundialização do capital traz no lastro de seu
metabolismo social o processo de reestruturação produtiva, com um
histórico de extrema complexidade e desdobramentos heterogêneos. A
mundialização do capital é o processo de desenvolvimento do sistema do
capital nas últimas décadas, contexto de predominância absoluta do
capital financeiro. Chesnais (2005, p. 21), nos revela que:
. ) )

) )
0 N )
)
)
Nesse contexto impõe-se uma afirmação ideológica, segundo a qual,
haveria uma importância da educação básica para a formação profissional
dos indivíduos. Nesse sentido, ganha posição uma visão segundo a qual
haveria uma centralidade da educação, sobretudo porque a esta caberia a
formação da força de trabalho, construindo as “competências” para
atender as necessidades do mercado.
O fato é que estamos diante de um acirrado debate sobre as novas
exigências para formação da força de trabalho, no contexto da
reestruturação produtiva e das conseqüentes transformações que
atingiram o mundo do trabalho. O debate atual no âmbito da sociologia
do trabalho e da educação retoma antigas questões sobre o problema da

E * " %> " F 0 D E Q


%> " .G2 0D F G + 4 G + 1
;:]

185
qualificação, ao mesmo tempo, em que novas questões se colocam para
serem investigadas.

A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A EMERGÊNCIA DA NOÇÃO DE


COMPETÊNCIA
A noção de competência é um dos imbróglios das transformações
que o mundo do capital promoveu nas últimas décadas. Essa noção surge
no espaço da fábrica, no contexto da reestruturação produtiva, mas
dissemina-se para a totalidade social.
Essa noção aparece na esfera do trabalho nos últimos 20 anos, mas
obteve uma expansão extraordinária, juntamente com a reestruturação
produtiva. Dadoy (2004, p. 106) afirma que no mundo do trabalho essa
noção é usada tanto no singular – competência –, e também no plural –
competências –, reiterando que no mundo do trabalho atual a noção de
competência foi emprestada da “ergonomia e da sociologia, após uma
longa evolução, [...] ao longo da qual a noção se aplicou a objetos
diferentes, em contextos muito diversificados e com acepções
particularizadas”.
Evidente que a história e também a trajetória da noção de
competência varia de um país para outro, assim como acontece com o
complexo de reestruturação produtiva. Embora Dadoy refira-se à França,
é interessante notarmos que “[...] o termo competência conheceu
diferentes definições e empregos, matizados por problemas concretos
particulares, sem que os usuários se preocupassem muito com a confusão
que essas acepções específicas produziam” (DADOY, 2004, p. 106).
O uso da noção de competência na empresa difere com a acepção da
noção em outras esferas da sociabilidade. Na empresa essa noção diz
respeito a demandas de saberes específicos para o exercício da atividade
profissional no posto de trabalho, enquanto que em outras esferas a noção
de competência adquire um caráter genérico.
Na esfera do trabalho a primeira dimensão da noção de competência
diz respeito ao saber-fazer, porém toda a gestão da força de trabalho é
mobilizada, isto é,
B C " ? )
) D )

186
) D
6 - 1 & ' )
D& ' ) D& ' )
&DADOY, 2004, 5;:'
Para muitos autores a noção de competência disputa espaço com a de
qualificação, sobrepondo-se a essa última. De tal forma que estaríamos
diante de um revigoramento da noção de competência, que se afirma
como a ideologia do capital tanto no âmbito da produção quanto na
educação como instância privilegiada da reprodução social1.
Entretanto, para Zarifian (2001, p. 56), ao contrário da maioria dos
autores, a competência não pressupõe a negação da qualificação, mas o
reconhecimento do valor desta. Nesse sentido, afirma que:
. ) )
, )S )
) B C
-
)S
1 ) 0
)S D
) 0
) ? D - ) )S
-
)
Para esse autor, a lógica competência promove uma situação em que
“o trabalho reverte ao trabalhador.” Nesse sentido promove uma ruptura
com o taylorismo, pois esse prendia o trabalhador no posto de trabalho,
ou seja, a qualificação estava no posto e o trabalho constituía-se de uma
lista pré-definida de operações que o trabalhador tinha que executar.
Mais ainda, afirma Zarifian (2001, p. 56):

5 ) I/s / $ 7, 1
= ,
<
N )S 0 - )S
?
) )
A &$%hZ*" 58V5
5 '

187
B C 4 F <
/ & ) ' &
0
' )
) ? & )S
)S '
O autor segue suas análises pondo ênfase à mudança radical que traz
a “lógica competência” focada no indivíduo em relação à qualificação,
cujo modelo se fundava no posto de trabalho, ou seja, à forma como essa
se configurava no taylorismo-fordismo.
Nesse sentido, Zarifian (2001, p. 67) afirma:
B C H 0 &
) '
) ) & )
, 0 )
) , < '
B CB C )S
@ B C
, ,
)
Embora as competências sejam aquisições de habilidades que passam
a constituírem-se em atributos individuais, as mesmas constituem-se de
conhecimentos que se formam socialmente.
Por isso, afirma Zarifian (2001, p.68) que:
* &
' < ) 6
B C ? )S

Zarifian afirma que a competência não é outra coisa senão a


capacidade que tem o indivíduo para tomar iniciativa e assumir
responsabilidade diante de situações profissionais concretas, com as quais
o mesmo se depara.
O autor parte do suposto que com isso a prescrição cai por terra, e
que ocorre, assim, “a abertura de espaço para a autonomia e a
automobilização do indivíduo.” Nesse sentido, afirma que “é indiscutível
188
que a exigência de competência significa passar a um novo patamar em
matéria de envolvimento do indivíduo em seu trabalho.” Razão pela qual
o sociólogo francês salienta que “podemos enunciar esse envolvimento de
modo positivo: o indivíduo pode reencontrar plenamente o interesse por
um trabalho no qual se envolve” (ZARIFIAN, 2001, p. 68-69, grifo
nosso).
Entretanto, Zarifian não esclarece se o indivíduo é livre, se possui
alternativa, ou se está preso à imposição do capital, à lógica do exército
industrial de reserva, ou seja, do desemprego. Afinal, foge desses
problemas esclarecendo-nos que não se trata “de saber em que medida ele
[o indivíduo] é ou não livre, [pois] não trataremos de saber se o indivíduo
tem alternativa”. Enfatiza, entretanto, a importância do envolvimento
afirmando que “mesmo forçado, o envolvimento pessoal do indivíduo
(enquanto sujeito de ações) é essencial e inevitável”, afinal, sem o
envolvimento do indivíduo a mobilização por competência não pode se
efetivar.
Esse autor salienta que “a utilização da lógica competência”, as
mudanças no perfil e exigências de novas habilidades do trabalhador
“recorre intensamente a dois conceitos, muitas vezes empregados um
pelo outro: o da competência social e o do saber-ser”. Quanto ao primeiro
conceito, explicita o autor, que se constitui de “uma abordagem que
enfatiza os traços de personalidade e as aptidões do indivíduo” aptidões
que seriam inatas principalmente aos olhos da empresa, permanecem
estáveis ao longo do tempo. Nesse sentido, a competência social “é a
personalidade ‘profunda’ e estável do indivíduo que se procurará avaliar,
considerando-se o indivíduo em sua totalidade, em seu ‘ser’”
(ZARIFIAN, 2001, p. 146).
Quanto ao segundo conceito, segundo explicita Zarifian (2001, p.
147, grifos nossos), constitui-se de “uma abordagem que ‘enfatiza o
comportamento e as atitudes, ou seja, a maneira como um indivíduo
apreende seu ambiente ‘em situação’, a maneira como ‘se comporta’”.
Essa abordagem, na visão do autor em questão, busca entender o
indivíduo por meio de uma visão parcial e manifesta, já que “supõe-se
que o comportamento é adquirido e pode evoluir [...]. Não é o ‘ser’ que se
procura apreender, mas o modelo de conduta diante de dado ambiente”.

189
É curioso, que uma concepção que visa apreender não o ser, mas o
modelo de conduta irá dizer “que o indivíduo tem autonomia”, que revela
através de seu comportamento, saber conduzir-se de forma autônoma.
Nessa concepção o que dá sustentação e estabilidade ao comportamento
do indivíduo é sua atitude, a maneira como se comporta diante da
realidade em geral e não apenas diante de particularidades. Nesse sentido,
a atitude é definida como um comportamento que se manifesta
individualmente, “mas admite-se, sem embargo, que ela é social, não
apenas porque foi produzida em um meio sócio-cultural específico, mas
também porque denota certa maneira de se posicionar nas relações
sociais” (ZARIFIAN, 2001, p. 147).
Razão pela qual para esse autor é na perspectiva do comportamento e
das atitudes e não na dos traços da personalidade e das aptidões que a
lógica competência encontra sua legitimidade. Em síntese o indivíduo
precisa mesmo é saber-ser.
O deslocamento real da noção de qualificação para a noção de
competência não é meramente um efeito discursivo, pois implica em
transformações no âmbito das empresas, “por uma modificação nos
processos de definição dos postos de trabalho, nos níveis de classificação
e nos modos de recrutamento. As definições de postos são mais vagas e
as descrições das atividades, mais amplas (WITTORSKI, 2004, p. 76).
Esse fato é importante, pois revela que há um abandono dos sistemas
de descrição de tarefas específicas, típicas da fase fordista-taylorista.
Portanto, no modelo das competências ocorre uma ruptura com os
pressupostos da certeza e com a previsibilidade dos comportamentos, os
empregadores abandonam a antiga estrutura profissional dos operários
fabris, assim como as formas de qualificação tradicionais – abandona-se o
posto – e põem foco na competência, na ação do indivíduo ou do coletivo
em uma dada situação concreta.
Entretanto, podemos afirmar que na história do processo de controle
do capital sobre o trabalho, em diferentes formas da organização e gestão
do trabalho, o capital sempre demandou uma força de trabalho dócil e
adaptável “capazes de se inserir em grupos de trabalho”. Nesse sentido,
não há novidade na ideologia do aprender a ser, ou do saber-ser, pois
esta perspectiva de pensar a competência simplesmente reafirma o

190
processo de dominação do capital por meio da “captura” da subjetividade
do trabalho.
A noção de competência é um dos mecanismos que permitem aos
empregadores aprofundarem o processo de “captura” da subjetividade
dos indivíduos ou coletivos de trabalhadores, apropriando-se da
afetividade.
Dessa forma, no contexto da reestruturação produtiva, instaura-se a
lógica da competência comportamental e também relacional, os
trabalhadores passam através de seus grupos de trabalho a se
comunicarem, trocarem informações entre os grupos e também com a
chefia. Nesse sentido, ora o construtivismo de Piaget, ora a teoria
linguística são elementos fundamentais de suporte teórico da noção de
competência, pois a ênfase principal dessa noção centra-se nos saberes
comportamentais e relacionais.
Desde a instauração da crise de produção e acumulação do capital a
partir da década de 1970, os empregadores já demandavam trabalhadores
adaptáveis e com capacidades para se inserirem nos grupos de trabalho.
Nesse sentido os chamados saberes relacionais sempre fizeram parte das
qualidades esperadas pelos empregadores, que mantém o discurso focado
sobre o saber-ser no contexto da reestruturação produtiva.
Citamos Dadoy (2004, p. 124):
. ) )
@ L; )
?
)S )
) )
0 ) 0

Entretanto, o que é surpreendente no contexto da reestruturação


produtiva é o fato dos empregadores falarem mais do saber-ser do que
dos saberes técnicos. Apesar dos chamados saberes comportamentais e
relacionais serem a base do trabalho coletivo, pois são determinantes nas
atitudes dos sujeitos que trabalham – o processo de cooperação depende
desses saberes – de tal forma que as ditas qualidades comportamentais e

191
relacionais (saber-ser) constituíram em importantes requisitos no
processo de trabalho, ou seja esses saberes sempre foram complementos
do saber-fazer. Apenas no contexto recente os saberes comportamentais e
relacionais adquiriram autonomia no discurso do capital.
De tal forma que a ênfase extremada do discurso empresarial no
saber-ser, ou seja, nas competências comportamentais e relacionais em
detrimento do saber-fazer é sintoma de uma crise de sociabilidade que se
expressa na esfera do trabalho, sobretudo na dificuldade para as empresas
recrutarem os novos trabalhadores a serem contratados.
O próprio capital produziu essa crise de sociabilidade, pois conduziu
o mundo dos homens a um sócio-metabolismo que se configura uma
barbárie social.
Citamos Alves (2007, p. 177):
. , e R
,?
-
&5' )
? . &J'

,
@ ? 0
/
Historicamente a formação da força de trabalho sempre ocorreu de
forma mais intensa no processo de trabalho, no local de trabalho, com os
operários habilidosos mais antigos ensinando os mais jovens. Ou seja, o
capital, no contexto da organização do trabalho fundada no taylorismo-
fordismo, aproveitava-se da qualificação decorrente dos saberes e do
saber-fazer desenvolvidos nos postos de trabalho. A assim chamada
formação profissional ocorria na base da produção, no chão da fábrica, ou
seja, era no local de trabalho que o saber-fazer era gerado e transmitido.
Portanto, era no local de trabalho que efetivamente se construía o saber-
fazer.
No contexto da rigidez fordista-taylorista de organização do trabalho
o processo de recrutamento dos jovens a serem inseridos na profissão era
frequentemente feito por um operário qualificado ou então pelo
contramestre, que selecionava os jovens do ambiente social de sua

192
convivência. Não havia a necessidade de tornar explícitos os critérios de
seleção, pois quase sempre os recrutados pertenciam a reservas de
emprego restritas, residindo próximos da empresa. Dessa forma, “o
empregador que contratava já conhecia, mais ou menos, os jovens a
serem selecionados, antes mesmo que tivessem colocado o pé na
empresa” (DADOY, 2004, p. 127).
Naquele contexto histórico o processo de socialização para o
trabalho era mais forte e intenso do que no contexto da reestruturação
produtiva. O processo de socialização para o trabalho ocorria desde a
família.
Citamos Dadoy (2004, p. 128):
- 0 % )

0 Q - B C
Q - < -
6 -

Entretanto, a formação profissional efetivada nos postos de trabalho,


entra em crise com o processo de evolução constante dos postos,
decorrentes das profundas transformações do mundo do trabalho. Ou seja,
com a crise de acumulação do capital a partir dos anos 1970, a noção de
qualificação vai ser gradativamente questionada o que leva a um
esvaziamento do conceito, fundamentalmente em decorrência de uma
perda de referências na definição dos postos de trabalho (ROCHE, 2004,
p. 39).
No contexto da reestruturação produtiva dá se uma ênfase ao
“recurso das dimensões pessoais” que implica nas formas de organização
que exigem dos trabalhadores autonomia, iniciativa, responsabilidade e
criatividade. Por mais que isso seja uma retórica ideológica é o que faz o
toyotismo e seus nexos organizacionais (Just-in-time, kan-ban, kaizen).
A reestruturação produtiva impõe um nível maior de exigência dos
saberes relacionais e comportamentais e um padrão mais alto de
cooperação. Nesse contexto os saberes técnicos tornaram-se muito mais
abundantes e baratos, enquanto que os saberes comportamentais e
relacionais mergulham numa crise sem precedentes.

193
A reestruturação produtiva impõe também um nível maior de
responsabilização dos sujeitos, uma interiorização dos objetivos da
empresa, uma exigência de participação nos círculos de controle da
qualidade, de comunicação com a hierarquia e com os colegas. O
processo de reestruturação produtiva impõe também gradativamente os
usos dos termos “saber” e “competência” em substituição aos termos
“conhecimento” e “qualificação” que marcaram o contexto taylorista-
fordista.
A noção de competência, portanto se encaixa perfeitamente nos
pressupostos e nexos organizacionais do toyotismo, que é o momento
predominante da reestruturação produtiva. Enquanto a noção de
qualificação diz respeito à visão estática do mundo do trabalho taylorista-
fordista, a noção de competência é apresentada sempre associada a
termos como “novo”, “inovação”, “mudança”, “mutação”, “evolução”,
ideologicamente aparece sempre associada a idéia de “transformação”
(ROCHE, 2004, p. 38).
Portanto, a noção de competência diz respeito à forma que o capital
adota para responder à crise de produção e de acumulação. Essa noção é
extremamente recente, tendo surgido e evoluído na França depois de
1985. Pois, foi nesse contexto que “a educação nacional [francesa],
constatando que os empregadores preferiam falar mais de competência
que de qualificação, decide renunciar ao termo qualificação e adota o
termo competência” (DADOY, 2004, p. 118).
Apesar de todo discurso ideológico em torno das políticas
continuadas de formação profissional, da competência e da
empregabilidade nas décadas recentes, verifica-se um crescimento do
desemprego, seja nos países desenvolvidos ou nos ditos emergentes.
Dadoy (2004, p. 122) assevera que a noção de competência, mais ou
menos, sempre “esteve na base das modificações das políticas de mão-de-
obra por intermédio das novas ferramentas de gestão da mão-de-obra
revelou-se muito mais utilizada em favor dos interesses do empregador,
em detrimento dos interesses dos assalariados”.
Alves (2007, p. 185) apresenta-nos uma reflexão pertinente ao
problematizar a questão da “captura” da subjetividade do trabalho pelo
capital, ressalta que “é no interior da subjetividade humana que se
deflagram as grandes lutas pela hegemonia social”, afirmando que o

194
capitalismo global é acima de tudo, capitalismo manipulatório. Salienta
que o eixo central dos dispositivos organizacionais do toyotismo –
“momento predominante” – do complexo de reestruturação produtiva se
expressa nessa “captura”, que se torna indispensável para o
funcionamento dos dispositivos organizacionais do toyotismo (Just-in-
time/kanban, kaizen, CCQ etc) que sustentam a grande empresa
capitalista.
De tal forma que, conforme nos demonstra Alves (2007, p. 185), os
ditos saberes comportamentais, fazem-se presentes cotidianamente na
empresa, pois “mais do que nunca, o capital precisa do envolvimento do
trabalhador nas tarefas da produção em equipe ou nos jogos de palpites
para aprimorar os procedimentos de produção”. Destaca ainda que isso
acontece porque “a organização toyotista do trabalho capitalista possui
maior densidade manipulatória do que a organização fordista-taylorista”.
Realmente, no contexto da reestruturação produtiva o capital lida
com a “captura” da subjetividade do trabalhador, exigindo enfaticamente
cada vez mais saberes comportamentais e relacionais.
Citamos Alves (2007, p. 186):
> e R e R ,
)
) 6 ,
- e R )S
) B C*
0 )
,
e 0 R ,
Como os saberes comportamentais são os principais elementos que
compõem a noção de competência, afirmamos que a afetividade é um dos
motores da competência, pois o componente afetivo reagrupa três
elementos “a imagem de si, que pode ser valorizada ou desvalorizada; o
investimento afetivo na ação, ou seja, o fato de viver com prazer ou
sofrimento aquilo que se faz; e o engajamento, ou seja, a motivação”
(WITTORSKI, 2004, p. 80).
Sulzer (2004, p. 93) ao refletir sobre a forma fenomênica adquirida
pela noção de competência, sobretudo a ênfase nas questões
comportamentais e relacionais que se expressam no saber-ser, entende

195
que o uso da competência aplicada a diversos aspectos da atividade
humana, em vez de enriquecer o conceito, tende, ao contrário, a
empobrecê-lo. Ou seja, “a imprecisão das noções compreendidas na
noção de competência, e em particular a noção de saber-ser, parece
provocar uma confusão entre a acepção científica e a do senso comum,
favorecendo, assim, o uso desse conceito como instrumento de
dominação simbólica”.
Ao analisar numerosos referenciais de competências de empresas e
de programas de formação, afirma que tais referenciais solicitam, na
ausência de uma definição universal da categoria competência, sua
concepção segundo a qual a mesma constitui-se como agrupamento de
saberes em sentido muito amplo. Essa ocorrência dá-se pelo fato inegável
de que toda atividade humana requer aptidões para sua consecução.
Citamos Sulzer (2004, p. 94):
6 0
S S

) ,
e R ) )
N S 1
e R e R e R
Para esse autor a noção de saber-ser é um elemento incontornável da
descrição das competências. Ressalta-se que o exercício de uma função
comporta ou não uma dimensão relacional e que as competências úteis
como, por exemplo, as qualificações se tornariam, assim, cada vez mais
‘sociais’.
Os termos em questão, sobretudo o de criatividade, são difíceis de
incorporar em referenciais analíticos das competências, “daí, identificar
como competência uma qualidade que não pode nem se definir nem se
ensinar parece, a priori, de pouco interesse.” Pois, ensinar a alguém ser
criativo é realmente algo muito complicado, já que não há receitas ou
técnicas que indiquem com certeza um resultado positivo (SULZER, p.
95).
A noção de competência comporta uma diversidade de definições,
sendo que os tipos de saberes ocupam um lugar variável e são tripartidos
em saber/saber-fazer/saber-ser. Geralmente a competência é entendida

196
como capacidade para realizar uma ação, num dado contexto, em função
de parâmetros e objetivos definidos. Nesse caso, a competência é
contextualizada, diz respeito à realização de uma ação num dado contexto
– saber-fazer, o que torna o saber-ser numa característica genérica
descontextualizada – “ser prestativo, por exemplo” –, pois esse saber é
atribuído ao indivíduo independentemente da situação, tornando-se difícil
aceitá-lo como elemento da competência.
Dessa forma, o problema está nas descrições das competências, ou
seja, nas empresas e nos programas de formação, que, ao distinguir,
separar e tricotomizar saber/saber-fazer/saber-ser, acaba por gerar um
imbróglio que não se resolve facilmente. Essa confusão entre o saber,
saber-fazer e o saber-ser encontra-se muitas vezes em quadros de
atividades profissionais específicas. Ora, tanto o saber-fazer, como o
saber-ser requerem conhecimentos e habilidades que exigem para sua
aplicação um domínio prático, pois “saber-fazer e saber-ser remetem,
tanto um como outro, ao cumprimento pelo indivíduo de certos
comportamentos observáveis e suscetíveis de serem reiterados, pois
manifestam ‘disposições’ incorporadas” (BOURDIEU, apud SULZER,
2004, p. 97).
De modos que a distinção e separação entre o saber-fazer e o saber-
ser é totalmente descabível e injustificável, sendo próprio da ambiguidade
da noção de competência, inerente à evolução histórica desse conceito ao
decliná-lo em saberes de tipos diferentes. A diferença entre o saber-fazer
e o saber-ser situa-se apenas no nível da descrição dos atributos
considerados para o tipo de “saber”.
Citamos Sulzer (2004, p. 98):
)S

- )
- )S e R 0 -
)

O uso da noção de saber-ser, de forma genérica, aleatória e difusa,


cria um imbróglio de difícil solução, pois não tem utilidade concreta, já
que não se materializa em ações efetivas, ou seja, a maneira como se
apresenta “saber ser criativo, saber ser prestativo...”. De tal maneira, que

197
a noção de competência é um mecanismo ideológico que serve à
dominação, ao controle e “captura” da subjetividade.
Citamos Sulzer (2004, p. 101):
G - ) e R
)
) )
& '
D -
e 0 R ) 0
) N ) )S
,
De tal maneira que a noção de saber-ser, apesar da fraqueza dos
fundamentos teóricos que o norteiam, encontra a razão de seu sucesso
exatamente na vagueza do termo competência. A noção de saber-ser
permite dissimular as consequências de julgamentos subjetivos com a
aparência. Sobretudo, a noção de saber-ser vem sendo utilizada pelas
áreas de recursos humanos no processo de seleção e recrutamento da
força de trabalho, uma vez esgotada os critérios objetivos formais da
seleção, apelam para a intuição pessoal para decidir entre os candidatos
selecionados.
A dimensão do saber-ser aparece no Relatório coordenado por
Jacques Dellors para a UNESCO sobre a Educação para o século XXI
como um dos “quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer,
aprender a viver juntos, aprender a ser”. Nesse sentido, entende-se que
antes de saber-ser é preciso aprender a ser.
O referido relatório dá muita importância aos documentos do Banco
Mundial, o que é revelador da articulação entre as duas instituições. No
capítulo quatro desse relatório deparamos com os denominados quatro
pilares da Educação, que seriam as quatro grandes necessidades que a
educação deve responder no século XXI: aprender a conhecer, aprender
a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (DELORS, 1996, p. 90).
O capítulo quatro do Relatório da UNESCO possui um sub-ítem
denominado “Da noção de qualificação à noção de competência”, onde se
explicita que: “Na indústria especialmente para os operadores e os
técnicos, o domínio do cognitivo e do informativo nos sistemas de
produção, torna um pouco obsoleta a noção de qualificação profissional

198
e leva a que se dê muita importância à competência profissional...”
(DELORS, 1996, p. 93, grifo nosso).
Esse relatório não deixa dúvidas o quanto essa ideologia vincula-se
ao toyotismo, pois, tomando-se por base “as empresas japonesas: uma
espécie de taylorismo ao contrário”, verifica-se a exigência de uma
qualificação “...que se apresenta como uma espécie de coquetel
individual, combinando a qualificação, em sentido estrito, adquirida pela
formação técnica e profissional, o comportamento social, a aptidão para o
trabalho em equipe, a capacidade de iniciativa, o gosto pelo risco”
(DELORS, 1996, p. 94, grifo nosso).
Com a universalização da reestruturação produtiva, tendo o
toyotismo como momento predominante, ocorreu a propagação de
conceitos sobre os quais se funda a produção flexível, tais como:
reengenharia, controle de qualidade total, círculo de controle de
qualidade, just-in-time, kanban, kaisen etc.
De tal forma que, no contexto da reestruturação produtiva, sob a
lógica do toyotismo e da mundialização do capital, saber ser é mobilizar-
se e colocar-se por inteiro à disposição do objetivo do capital. O
trabalhador deve estar sempre apto para realizar múltiplas tarefas, ser
polivalente, multifuncional e estar a serviço da rentabilidade e
valorização do capital, por meio do engajamento e da participação
subalterna em torno das necessidades da empresa. Competente é aquele
que se comporta de forma a saber ser de acordo com os interesses da
empresa, enquadrando-se de forma subalterna na perspectiva da
valorização do capital, adaptando sempre às mudanças organizacionais,
gerenciais e tecnológicas.
A noção de competências é portadora de um rol de habilidades –
coquetel individual – que a educação do trabalhador deve levá-lo a
adquirir e desenvolver. Nesse sentido, a noção de competências articula-
se com os pressupostos pós-modernos, tendo nesse um fundamento
conceitual que explica e justifica as exigências postas pelo mundo da
produção ao trabalho e à educação.

CONCLUSÃO
Uma análise de todo esse imbróglio que atinge o mundo do trabalho,
rebatendo sobre o complexo social educação não pode deixar de
199
estabelecer seu vínculo com o complexo de reestruturação produtiva, que
tem no toyotismo seu momento predominante. Pois, a ideologia das
competências aproxima-se da qualidade total, já que ambas exigem um
novo perfil de trabalhador que deve ser polivalente e multifuncional,
possuidor de comportamentos e atitudes capazes de levá-lo a agir com
“autonomia” diante da realidade em geral.
É no contexto da globalização como mundialização do capital que se
desenvolve o regime de acumulação flexível, fundado no complexo de
reestruturação produtiva, cujo ‘momento predominante’, de caráter
organizacional, é caracterizado por um ‘novo modelo produtivo’, o
toyotismo.
Portanto, em nosso entendimento a noção de competência é uma das
formas pela qual o capital, no contexto de sua mundialização, efetiva uma
“captura” da subjetividade do trabalho. A noção de competência vincula-
se à perspectiva da reestruturação produtiva de caráter flexível. Ou seja,
essa noção encaixa-se perfeitamente com a desenvoltura do trabalhador
polivalente e multifuncional exigido pelo toyotismo.
Pois é na captura da subjetividade que ocorre o envolvimento
manipulatório do trabalhador, que têm que ser polivalente e
multifuncional, do contrário, de acordo com a ideologia do toyotismo, sua
competência estará comprometida. Coriat (1990) nos apresenta uma
síntese interessante e esclarecedora. A preocupação fundamental do
toyotismo é com o controle do elemento subjetivo no processo de
produção capitalista, isto é, com a captura da subjetividade do trabalho
pela produção do capital e com a ‘manipulação’ do consentimento do
trabalho através de um conjunto amplo de inovações organizacionais,
institucionais e relacionais no complexo de produção de mercadorias,
caracterizadas pelos princípios de ‘automação’ e de ‘auto-ativação’, ou
ainda, pelo junst-in-time/kan-ban, a polivalência do trabalhador, o
trabalho em equipe, produção enxuta, os CCQs, programas de Qualidade
Total, iniciativas de envolvimento do trabalhador, a inserção engajada
dos trabalhadores no processo produtivo
Portanto, somente em uma perspectiva crítica e de enfrentamento
teórico com os pressupostos da adaptabilidade, do abstracionismo da
autonomia do indivíduo, da ideologia do aprender a aprender, enfim da

200
famigerada sociedade do conhecimento é que efetivamente
conseguiremos nos opor à noção de competência e da empregabilidade.
Para o capital, o trabalhador deve estar sempre predisposto a
incorporar os novos atributos – coquetel individual – consoantes às
necessidades da produção flexível, abrangendo as habilidades básicas e
técnicas para enfrentar o imprevisto por meio da participação, da
comunicação em grupo, da multifuncionalidade e da polivalência. Enfim,
preparado para o exercício de múltiplas tarefas em um mundo em
permanente mutação, ao qual deve inevitavelmente adaptar-se.
De modo que somente em uma perspectiva de formação que aponte
para além do capital seria possível uma autonomia e identidade autêntica,
pois essas pressupõem a emancipação humana, como já apontou Marx na
Questão judaica. Pressupor autonomia, criatividade, identidade e
cidadania na sociedade do capital, sob os signos dos nexos
organizacionais do toyotismo é ideologia rasteira, na qual o indivíduo é
apenas um simulacro do indivíduo, pois é um mero agente assujeitado
das relações sociais, que, diga-se de passagem, são relações sociais
estranhadas.

REFERÊNCIAS
1. ALVES, Giovanni. Dimensões da reestruturação produtiva:
ensaios de sociologia do trabalho. Londrina: Praxis, 2007.
2. _______. O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação
produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000.
3. _______. Toyotismo, novas qualificações e empregabilidade:
mundialização do capital e a educação dos trabalhadores no Século
XXI. Educação, Maceió, v. 10, n. 16, 2003.
4. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? – ensaio sobre as
metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo:
Cortez, 1995.
5. ______. Os sentidos do trabalho – ensaio sobre afirmação e a
negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 1999.
6. CHESNAIS, F. (coord.) A finança mundializada. São Paulo:
Boitempo, 2005.

201
7. _______ (coord.) A mundialização financeira – gênese, custos e
riscos. São Paulo: Xamã, 1998.
8. CORIAT, B. Pensar pelo avesso. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994.
9. DADOY, Mireille. As noções de competência à luz das
transformações na gestão da mão-de-obra. In: TOMASI, Antonio
(Org.). Da qualificação à competência: pensando o século XXI.
Campinas, SP: Papirus, 2004.
10. DELORS, J. (org.) Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo:
Cortez/Brasília: MEC: UNESCO, 1998.
11. DUARTE, Newton. As pedagogias do “aprender a aprender” e
algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento.
Texto suporte para mesa redonda sobre as reformas educacionais no
Brasil, na Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação. Caxambu, mimeo, 2001.
12. GOUNET, T. Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel.
São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
13. HARVEY, D. Condição pós moderna. São Paulo: Loyola, 1994.
14. ROCHE, Janine. A dialética qualificação-competência: estado da
questão. In: TOMASI, Antonio (Org.). Da qualificação à
competência: pensando o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 2004.
15. SULZER, Emmanuel. Objetivar as competências de interação:
crítica social do saber-ser. In: TOMASI, Antonio (Org.). Da
qualificação à competência: pensando o século XXI. Campinas,
SP: Papirus, 2004.
16. TOMASI, Antonio (Org.). Da qualificação à competência:
pensando o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 2004.
17. TROJAN, R.M. Pedagogia das competências e diretrizes
curriculares: a estetização das relações entre trabalho e educação.
Texto apresentado na 28ª Reunião Anual da ANPEd, GT Trabalho
e Educação, 16 a 19 de out. 2005, CAXAMBU / MG. Disponível
em: <http://www.anped.org.br/28/textos/gt09/gt09617int.rtf>.
Acesso em: dez. 2005.

202
18. WITTORSKI, Richard. Da fabricação das competências. In:
TOMASI, Antonio (Org.). Da qualificação à competência:
pensando o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 2004.
19. ZARIFIAN, Philippe. Objetivo competência – por uma nova
lógica. São Paulo: Atlas, 2001.

203
204
PARTE III
Ações Públicas e Privadas de Formação do
Trabalhador de Novo Tipo

205
206
TRABALHO, EDUCAÇÃO E SOCIABILIDADE
NA TRANSIÇÃO DO SÉCULO XX PARA O XXI:
o enfoque das políticas educacionais

*
* ' !
**
) / # #

Nosso objetivo é abordar a relação entre trabalho, educação e


sociabilidade capitalista contemporânea sob o enfoque das políticas
educacionais, a área na qual atuamos como docentes e pesquisadoras.
Partimos do pressuposto de que a discussão proposta deve ser
historicamente situada, por tratar-se de uma prática social que não se
constitui em espaço a-histórico e vazio. A relação entre trabalho,
educação e sociabilidade não tem vida própria fora da história que os
homens fazem como resultado de suas lutas e é construída num processo
de correlação de forças. Tomando como pressuposto o critério da
diferenciação histórica, que significa assumir que nenhum dos elementos
analisados permanece cristalizado no tempo e no espaço, argumentamos
que há, aqui, uma distinção histórica a ser necessariamente estabelecida,
exatamente porque a natureza e as características dos atores e autores
atuantes no contexto que focalizamos são relativamente distintas das que
existiram em épocas anteriores.
Compartilhamos da concepção de que o trabalho é prática social
vital para a humanização do ser social. Ao atuarem e transformarem a
natureza para a satisfação de suas necessidades, os homens transformam a
natureza e também a si próprios, forjando a estrutura constitutiva do ser
social. Tudo aquilo que se produz no trabalho e por meio do trabalho é
expressamente humano e traz a marca das relações sociais em que são
construídas. Sob o domínio das relações capitalistas de produção, o
trabalho assume forma degradada e alienada.

E Q %* " E # )
% F , 1 7 ]
E ) %> " 2F 0 E )
% $ 1 ]

207
É no sistema de relações que se metabolizam na sociedade que
ocorre a sociabilização do ser social, mediada pelas interações sociais que
estão na base de processos formativo-sociais, que incluem os educativos,
sejam formais e informais. A sociabilidade, em nosso entendimento,
refere-se ao processo de formação do homem contemporâneo que
envolve as formas de pensar, de viver, de se relacionar com outras
pessoas nos marcos do sistema social vigente.
Ao referir-nos à educação, estamos a tratar de processos formativos
que se desenvolvem de maneiras diferenciadas em espaços e tempos
sociais, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e
nas organizações da sociedade civil, nas manifestações culturais, na vida
em família, na convivência social e no trabalho. A educação, entendida
como uma prática humana, não existe de forma independente das relações
de trabalho que se configuram dentre o enorme conjunto de relações
sociais que os homens travam ao produzirem a sua existência em
determinada sociedade. Por conseguinte, por ela também perpassam as
contradições sociais contidas no movimento geral da sociedade que a
produz como tal. “Este último aspecto tem sido insistentemente
negligenciado por aqueles que falam da escola e, particularmente, quando
atribuem ao ensino escolar papel fundamental no processo de
transformação social” (FIOD, 1997, p. 202).
Analisar trabalho e educação na sociabilidade do capitalismo
pressupõe o entendimento de que se referem a processos distintos, mas
que fazem parte de um mesmo movimento histórico. Vale lembrar que o
final do século XX foi marcado por transformações intensas que
decorreram da resposta do capitalismo mundial à crise esrtutural1, que se
tornou mais evidente a partir da década de 1970.
Neste caso, na perspectiva de Mészáros (2002), estamos nos
reportando a um estágio histórico do desenvolvimento transnacional do
capital, a uma nova fase, à do imperialismo2 hegemônico global.

1
. N )
?
2
$ &58:8'
) . ? )
< ? ) )
)
a

208
Chesnais (1997, p. 20), por sua vez, designa-o de novo regime de
acumulação, “regime de acumulação mundial predominantemente
financeiro” ou, também, “regime de acumulação financeirizada”. De
acordo com este autor, a mundialização do capital deve ser entendida
como mais do que uma fase da internacionalização do capital, é, antes de
tudo, um modo de funcionamento específico do capitalismo mundial.
A mundialização concernente ao capital produtivo, comercial e
financeiro implicou em uma interdependência de vários países e regiões,
acompanhada de uma polarização maior entre países pobres e ricos.
Expressa uma nova configuração do capitalismo, em que se mantém “[...]
uma economia explicitamente orientada para os objetivos de
rentabilidade e de competitividade, e nas quais somente as demandas
monetárias solventes são reconhecidas” (CHESNAIS, 2001, p. 7). Trata-
se de processo que conferiu grande mobilidade ao capital, possibilitando
“[...] soltar a maioria dos freios e anteparos que comprimiram e
canalizaram sua atividade nos países industrializados” (CHESNAIS,
2001, p. 10).
Deve ser enfatizado que tal forma de organização em nenhum
momento estabelece igualdade nas condições de rendimento ou
competitividade entre os países. Ao contrário, a mundialização liberou
“[...] todas as tendências à desigualdade que haviam sido contidas com
dificuldades, no decorrer da fase precedente” (CHESNAIS, 2001, p. 12).
Assim, “[...] deixando-o por sua conta, operando sem nenhuma rédea, o
capitalismo produz a polarização da riqueza em um pólo social, (que é
também espacial) e no outro pólo, a polarização da pobreza e da miséria
mais desumana” (CHESNAIS, 2001, p. 13).
As estratégias de combate à crise estrutural do capital são expressas,
no plano econômico, pela especulação do capital financeiro , que deve
ofertar as condições necessárias para a retomada do processo de
acumulação. O capital articula suas bases materiais para enfrentar a
referida crise, transformações ocorrem “[...] no regime de acumulação e

“. )
) @ 0 ) G
- - 1
A &*Q ">.!" 5889 JU5'

209
no modo de regulamentação social e política a ele associado” (HARVEY,
1999, p.117).
No movimento de reorganização do capital e do correspondente
sistema ideológico e político de dominação, um dos elementos mais
evidentes foi o advento do neoliberalismo e de suas políticas sociais e
econômicas. Na América Latina, o Chile foi o primeiro país do mundo a
adotar políticas de alinhamento neoliberal quando da vitória de Pinochet
em 1973. Em meados da década de 1980, houve processo similar na
Bolívia. De acordo com Anderson (2000), a virada continental em
direção ao neoliberalismo ocorreu mais próximo a 1990, com a eleição de
Salinas em 1988 no México; de Menem na Argentina em 1989; da
segunda presidência de Perez na Venezuela em 1989; de Collor de Mello
no Brasil no mesmo ano e de Fujimori no Peru em 1990.
Muitos países da região latino-americana, nos anos 1990, realizaram
amplas reformas educacionais, abrangendo distintas dimensões do
sistema de ensino, ou seja, legislação, planejamento, gestão educacional,
financiamento, currículos escolares, avaliação, entre outras. Tais reformas
fizeram parte de um movimento internacional “[...] que vem outorgando à
educação a condição de estratégia fundamental para a redução das
desigualdades econômicas e sociais nacionais e internacionais”
(ROSEMBERG, 2001, p. 153).
Também faz parte do ideário de orientação neoliberal, a apologia da
educação como estratégia fundamental para o desenvolvimento
econômico e social dos países capitalistas periféricos, entre eles os da
América Latina. A focalização de recursos estatais direcionados a
parcelas mais pobres da população é uma das ações políticas decorrentes
da doutrina neoliberal. Argumentamos que é desse ponto de vista que se
devem apreender os ajustes neoliberais, incluindo a reforma educacional
latino-americana realizada durante a década de 1990: uma estratégia para
garantir a governabilidade, trazer a essa região a estabilidade política
(LEHER, 1998, p. 92).

U 6 0 a =B C
0 a N )S
L; ` $ ^ G
F . $ ( ` 7 ` Gs 7 . GT 3 FT . 7A
&".>EG6>! 588U JU;' . ?
58:; 0

210
Nesta forma de sociabilidade, a relação entre trabalho e educação
aparece invertida, similarmente a uma imagem no espelho, e se transmuta
na relação entre educação e trabalho. Alertamos para o fato de que não se
trata da simples e inocente troca da posição dos termos. Reside aí uma
questão de perspectiva histórica e política que traduz uma visão
operacional e instrumental que atribui à educação a condição de variável
determinante. Deriva desta, a noção, bastante difundida, de que a
educação – ideia reducionista – pode fomentar a capacidade produtiva
dos indivíduos, pode ser a propiciadora do ingresso no mercado de
trabalho e, em decorrência, sua função primeira é o atendimento às
flexíveis demandas do mercado laboral. A educação escolar
contemporânea é conclamada a formar o homem cujos atributos atendam
às necessidades do mundo produtivo.
Cumpre ressaltar que é esta mesma lógica que subsidia a atribuição
de responsabilidade à educação brasileira pela baixa qualificação da
população economicamente ativa (PEA) e, em consonância, pelo pouco
crescimento econômico do país. Com fundamento nela, a educação passa
a ser considerada sob uma dupla perspectiva: de um lado, é tratada como
sendo a responsável pelo atraso e pobreza do país; por outro, é concebida
como instrumento para a promoção e a elevação dos padrões de qualidade
de vida (MACHADO, 1998).
Que explicação pode haver para o fato de que, num contexto de crise
generalizada, em que o desemprego estrutural aumenta continuamente –
produzindo efeitos sociais distintos –, tanto nos países “avançados”
quanto nos países “periféricos”, ocorra o fomento do discurso que atribui
centralidade à educação e à formação ao longo da vida? Como explicar a
consolidação de um consenso que elege o acesso à educação básica como
condição essencial para a reversão nas desigualdades socioeconômicas?
Na transição do século XX para o XXI há o incremento da defesa e a
disseminação do discurso que estabelece a vinculação entre educação,
desenvolvimento e estabilidade econômica e política. A análise crítica
permite entender que para além do que é propalado, trata-se de uma
questão de regulação social, da necessidade de realizar a gestão do
trabalho e dos pobres sob a lógica do capital e do mercado.
Compartilhamos do posicionamento de Rummert (2000, p. 66) de
que a propalada centralidade da educação “[...] encobre as reais origens

211
dos problemas socioeconômicos, transformados, estritamente, em
decorrência de fracassos, seja do sistema educacional como um todo, seja
dos indivíduos, ao ingressarem nesse sistema”. Consideramos muito
polêmica a ideia de que a formação profissional é uma resposta
estratégica aos problemas oriundos da mundialização do capital, das
transformações do mundo do trabalho e em decorrência do desemprego
estrutural. Afirmamos ser ingênua a crença na possibilidade de corrigir as
distorções do mercado pelo aumento da qualificação dos trabalhadores.
Argumentamos que o lugar que o homem ou a mulher irão ocupar na
produção não é definido pela escola, portanto, torna-se muito difícil
solucionar a crise por intermédio da escolarização.
Do nosso ponto de vista, Mészáros (2002, p. 802) traz uma
importante contribuição ao debate quando explicita que as soluções
propostas às crises pela ordem hegemônica “[...] nem sequer arranham a
superfície do problema, sublinhando, novamente, que estamos à frente de
uma contradição interna insolúvel do próprio capital”. Tal contradição
refere-se ao fato de que os “[...] seres humanos são, ao mesmo tempo,
absolutamente necessários e totalmente supérfluos para o capital”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 802).
O capital é contradição em processo, o que significa que a
acumulação de capital não é um processo ilimitado, porque o próprio
capital é o verdadeiro limite da produção capitalista. Assim, “[...] ao
mesmo tempo em que o capital deve se mover dentro dos limites
impostos pela conservação e valorização do valor-capital, ele tende ao
desenvolvimento absoluto das forças produtivas e a ultrapassar, portanto,
de modo recorrente, seus limites específicos” (MAZZUCCHELLI, 1985,
p. 21).
Em decorrência, a natureza contraditória do capital revela-se na
tendência à superprodução e na progressiva redundância do trabalho vivo.
Sendo assim, o trabalho humano, consubstanciado na força de trabalho, é
absolutamente necessário e, ao mesmo tempo, totalmente supérfluo para
o capital. Ou seja, a “[...] produção pela produção, a acumulação
desenfreada, a concentração e a centralização, ao implicarem a contínua
ampliação das escalas, a crescente automação do processo produtivo e a
recorrente elevação da composição técnica”, estabelecem a progressiva
redundância do trabalho vivo. “O capital, assim, através da realização de
seu caráter progressivo, tende a negar suas próprias determinações mais
212
simples através da própria negação do trabalho”, que é o seu próprio
fundamento (MAZZUCCHELLI, 1985, p. 32).
A progressiva substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto, por
mediação da cientificização dos processos de trabalho, tornou supérfluo o
trabalho vivo. Com esta condição material em que o tempo de trabalho é
negado como fonte de riqueza, conforme explica Marx (1986), é aberta
“[...] a possibilidade histórica da produção social não assentada no roubo
do tempo de trabalho de uma classe por outra. A forma burguesa não é
mais necessária, antes pelo contrário, para o desenvolvimento das forças
produtivas” (MORAES NETO, 1989, p. 115). O que significa afirmar
que a “[...] base material desenvolvida pelo capitalismo constitui o
pressuposto de sua negação histórica” (MORAES NETO, 1989, p. 115).
Do nosso ponto de vista, é fundamental a afirmação de que o
capitalismo é apenas uma forma histórica e, portanto, transitória de
produção social. Ao contrário do que afirmam os ideólogos e os
apologistas do capital, o modo de produção capitalista não se constitui em
regime de produção absoluto e eterno, ao contrário, trata-se de modo de
produzir a vida “[...] historicamente determinado, que cria, ao mesmo
tempo, as condições para a sua própria superação” (MAZZUCCHELLI,
1985, p. 24).
Neste contexto, como expõe Marx (1980, p. 41), o trabalho do
homem tornou-se supérfluo, a não ser “[...] que sua ação seja determinada
pela necessidade do capital”. Cumpre ressaltar que são necessidades do
capital, a manutenção da produção de mercadorias, a manutenção do
trabalho na forma assalariada e a reprodução da classe trabalhadora
enquanto produtora de valor, condição de sobrevida do capital. Na
concepção adotada por Netto e Braz (2006), a produção capitalista não é
tão-somente produção e reprodução de mercadorias e de mais-valia, é
produção e reprodução de relações sociais. A sua continuidade só pode
ocorrer se também for mantida a produção das relações que engendram
aqueles sujeitos. Em síntese, a reprodução capitalista só é viável se ela
reproduzir as relações sociais que põem frente a frente capitalistas e
proletários (NETTO, BRAZ, 2006). Como a acumulação de capital
depende da exploração da força de trabalho, quanto maior for sua
exploração, maior será a mais-valia e a acumulação. O que significa
afirmar que a continuidade deste processo depende da eficiência e da

213
eficácia da produção e da reprodução de relações sociais, incluindo os
mecanismos de intervenção extraeconômicos.
Como a necessidade de manutenção do capitalismo está vinculada
com a eficiência e a eficácia da produção e da reprodução de relações
sociais, para legitimar essa estratégia, no final do século XX, “[...] o
grande capital fomentou e patrocinou a divulgação maciça do conjunto
ideológico que se difundiu sob a designação de neoliberalismo [...]”
(NETTO; BRAZ, 2006, p. 226). Por ser integrante do movimento de
reorganização do capital e do correspondente sistema ideológico e
político de dominação, a doutrina neoliberal, de acordo com os autores,
abrange “[...] uma concepção de homem (considerado atomisticamente
como possessivo, competitivo e calculista)”. Compreende, também, uma
“[...] concepção de sociedade (tomada como agregado fortuito, meio de o
indivíduo realizar seus propósitos privados) fundada na idéia natural e
necessária desigualdade entre os homens”. E inclui “[...] uma noção
rasteira da liberdade (vista como função da liberdade de mercado)”
(NETTO; BRAZ, 2006, p. 226, grifo dos autores).
Explicita Mészáros (2002, p. 175) que “[...] o aspecto mais
problemático do sistema do capital, apesar de sua força incomensurável
como forma de controle sociometabólico, é a total incapacidade de tratar
as causas como causas, não importando a gravidade de suas implicações a
longo prazo”. Em decorrência disso, nas necessárias ações remediadoras,
são propostas “[...] soluções para todos os problemas e contradições
gerados, em sua estrutura por meio de ajustes feitos estritamente nos
efeitos e nas conseqüências” (MÉSZÁROS, 2002, p. 175, grifo do autor).
Nesta lógica, enquadra-se o fato de atribuir centralidade à educação,
qualificando-a como um dos instrumentos para o desenvolvimento e para
o combate à pobreza. Para exemplificar isto, buscamos ancoragem no
Relatório intitulado Nossa diversidade criadora – também identificado
por Relatório Cuéllar –, elaborado pela Comissão Mundial de Cultura e
Desenvolvimento para a Unesco. No Relatório, ressaltam-se os benefícios
da educação de massa, em especial nos países mais pobres, afirmando
que a mesma: a) possibilita o acesso ao acervo do conhecimento como
um direito de todo ser humano; b) esse acesso leva a uma elevação da
produtividade, uma mão de obra melhor nutrida, instruída, treinada,
saudável e motivada é muito mais eficiente e produtiva; c) o ensino
contribui para a redução dos índices de natalidade da população,
214
resultando na diminuição da fertilidade, das taxas de mortalidade infantil,
da evasão escolar, do trabalho infantil e das desigualdades, na melhoria
da educação das crianças e no incremento da mobilidade ocupacional; d)
é importante para o meio ambiente, a pouca instrução de um povo pobre
contribui para a degradação ambiental e o torna a principal vítima; e)
fomenta a estabilidade social, a formação do capital social e a
participação cívica; f) promove a estabilidade política por mediação da
“[...] oferta de empregos satisfatórios, produtivos e remunerativos para a
população instruída, livrando-a da condição de desempregados
qualificados, que tendem a ser um foco de descontentamento [...]”
(CUÉLLAR, 1997, p. 203).
Permanecendo na esfera dos efeitos e das consequências, como
afirma Mészáros (2002), no Relatório Cuéllar, a educação é considerada a
panaceia para os males advindos do capitalismo. A educação é chamada a
resolver problemas estruturalmente gerados na desigual e contraditória
relação de produção capitalista. Tal concepção fundamenta-se em
raciocínio circular “[...] que leva a considerar a pobreza quase como uma
'fatalidade', ou, na melhor das hipóteses, uma situação quase impossível
de superar" (SOARES, 2003, p. 91). O fato de naturalizar a desigualdade
social leva à aceitação do fenômeno da pobreza como algo inevitável. Em
decorrência, as consequências de um modelo injusto e desigual acabam
por ser confundidas com as causas. Observa-se a circularidade da análise
no diagnóstico da pobreza e da fome, porque, no ato de determinar a
causalidade e ao estabelecer relações entre pobreza, fome e
desenvolvimento, os efeitos são, sistematicamente, confundidos com as
causas (SOARES, 2003).
Na sua fase monopolista, o capital busca maximizar suas formas de
reprodução, acumulação e expansão em âmbito mundial, nesse processo,
quanto mais acelerada é a produção da riqueza concentrada e centralizada
nas mãos dos grupos e países detentores do capital, mais se produz o
crescimento da pobreza. Por não se remeter às determinações estruturais
da pobreza, o pensamento neoliberal a transforma em categoria multiuso
e formula um escopo teórico que defende que tal estado humano deriva,
essencialmente, das limitações da liberdade individual, vinculadas
diretamente à falta de capacidades e habilidades dos indivíduos em se
moverem em um mundo regulado pelo mercado.

215
Esta abordagem em relação à pobreza representa o reducionismo que
caracteriza a visão neoliberal e que, evidentemente, não explica o caráter
antagônico da acumulação capitalista. Reproduz, portanto, o pensamento
fetichizado5, sendo incapaz, em decorrência de limites da consciência
que traduz a perspectiva de uma determinada classe social, de explicar as
determinações sociais e históricas da pobreza, tratando-a como objeto em
si ao naturalizar fenômenos que são sociais e ao abstrair as relações
societárias em presença.
Ao explicitar que a acumulação capitalista corresponde à acumulação
da miséria, Marx (1985, p. 210) foi categórico ao expor que “[...] a
acumulação da riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo tempo, a
acumulação da miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância,
brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe
que produz seu próprio produto como capital”. Negar isto é revelar a
incapacidade em tratar a pobreza e seu crescimento descontrolado como
fenômeno precípuo da dinâmica da acumulação capitalista.
No capitalismo, salienta Netto (2001), pela primeira vez na história
registrada, a pobreza aumentava na proporção direta em que acrescia a
capacidade social de produzir riquezas. Quanto mais a sociedade se
capacitava a “[...] produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o
contingente de seus membros que, além de não terem acesso efetivo a tais
bens e serviços, viam-se despossuídos das condições materiais de vida de
que dispunham anteriormente” (NETTO, 2001, p. 153). Na sociedade
capitalista, há uma outra dinâmica no fenômeno da pauperização que se
diferencia radicalmente de “[...] outras formas de sociedade precedentes à
sociedade burguesa quando a pobreza estava ligada a um quadro geral de
escassez (quadro em larguíssima medida determinado pelo nível de
desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais) [...]”
(NETTO, 2001, p. 153).
Consta no Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI, intitulado “Educação: um tesouro a
descobrir” – conhecido como Relatório Delors – que, diante dos
múltiplos desafios do futuro, a educação se torna um recurso
indispensável à humanidade na construção dos ideais da paz, da liberdade

K G F ? &58VJ' 0
)

216
e da justiça social. É atribuída à educação a tarefa primordial de conduzir
“[...] a um desenvolvimento humano mais harmonioso, mais autêntico, de
modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões, as
opressões, as guerras [...]” (DELORS, 1999, p. 11). Cabe a ela habilitar a
humanidade para dominar o seu próprio desenvolvimento para que cada
indivíduo “[...] tome o seu destino nas mãos e contribua para o progresso
da sociedade em que vive, baseando o desenvolvimento na participação
responsável [...]” (DELORS, 1999, p. 82).
A clara exposição sobre a função atribuída à educação no Relatório
Delors – e que aplica-se também ao Relatório Cuéllar – é apresentada por
Campbell (2002), que enfatiza que a educação não tem a função de
resolver os problemas de forma direta. De acordo com o autor, nos
Relatórios, explicita-se que o papel da educação é “[...] alimentar, dentro
de cada indivíduo, as características de pensamento e de sentimento que
os tornarão capazes de contribuir de forma significativa, conjuntamente
com os demais, para a criação do melhor futuro global possível”
(CAMPBELL, 2002, p. 33-34).
Ao analisarmos o conteúdo dos Relatórios Cuéllar e Delors,
encontramos a expressão do que Netto (2001) denomina de contraface da
referida naturalização do social. Na perspectiva do autor, “[...] ao
naturalizar a sociedade, a tradição em tela é compelida a buscar uma
especificação do ser social que só pode ser encontrada na esfera moral”.
Com a naturalização da sociedade, “[...] o específico do social tende a ser
situado nas suas dimensões ético-morais – e eis que se franqueia o espaço
para a psicologização das relações sociais” (NETTO, 2001, p. 45).
No Relatório Delors, são articuladas recomendações práticas com um
forte viés moralista, analisam Shiroma, Moraes e Evangelista (2000, p.
70). Nele, orientações precisas são indicadas aos vários níveis de ensino e
revelam “[...] uma concepção bastante nítida de educação, de seu papel e
possibilidades para garantir sobrevivência dos valores consensuais na
sociedade, inculcando um novo respeito às crenças culturais do ocidente”.
A Unesco, agência que subsidiou a elaboração dos referidos
Relatórios, estabelece que “[...] uma das finalidades da educação é
garantir a eqüidade social, devendo centrar-se, portanto, no
desenvolvimento de atributos e potencialidades individuais, ficando os
currículos e métodos de ensino consoantes a este objetivo e aos objetivos

217
socializadores [...]” (CAMPOS; SHIROMA, 1999, p. 489). As autoras
desvendam o significado dos pilares da educação para o século 21 –
aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a viver
juntos –, incorporados em vários documentos que normatizam as políticas
educacionais. No entendimento das mesmas, a definição desses pilares
produz um deslocamento de enfoque na educação escolar, “[...] passa-se
de uma educação centrada nos saberes disciplinares para uma educação
centrada em atributos cognitivos, sociais e comportamentais,
considerados fundamentais para a construção das competências
requeridas pelos novos contextos de trabalho e emprego” (CAMPOS;
SHIROMA, 1999, p. 489).
O Relatório Delors sintetiza o “novo paradigma” de conhecimento,
difundido pelas agências multilaterais, cuja centralidade é a discussão em
torno da educação e da formação para o trabalho. Há a vinculação do
desenvolvimento econômico à educação, ocorrendo uma ressignificação
da teoria do capital humano, que implica na noção de que a melhor
capacitação do trabalhador é fator de aumento de produtividade
(CATTANI, 2002). Na visão da UNESCO, atuar “[...] nesta linha
significa avançar para uma sociedade educacional, onde cada pessoa
aprenda durante toda a vida e seja fonte de aprendizagem para os demais”
(UNESCO, 1998, p. 11). Isto significa conferir à educação um papel
chave neste processo, em razão do seu valor econômico e social
(UNESCO, 2004).
O discurso recorrente, nos documentos analisados, é que a educação
formal é um fator essencial para o desenvolvimento econômico dos
países pobres porque viabiliza o aumento do capital humano e a
promoção da equidade social. Em decorrência, a referência à educação é
feita por metáforas, tais como a “chave” ou um dos “pilares” para o
desenvolvimento e redução da pobreza. A desconstrução desta retórica
permite evidenciar uma relação simplista entre educação e
desenvolvimento econômico. Em oposição a esta afirmação meramente
economicista, queremos enfatizar que, no capitalismo, pode haver
crescimento econômico sem que, em contrapartida, isto signifique
desenvolvimento humano. Salientamos que a apreensão fenomênica das
manifestações da questão social, sem a devida análise das mediações que
elas incorporam, leva a atribuir à educação o status de estratégia para a
melhoria das condições econômicas e sociais da população.

218
A partir dos anos 1990, o termo empregabilidade ganhou espaço e
centralidade, tornando-se o eixo fundamental de um conjunto de políticas
destinadas a combater o desemprego. Nesse contexto, acrescenta
Noronha (2002, p. 80), a noção de equidade social que se materializaria
“[...] na medida em que o indivíduo fosse capaz de associar as
competências para operar os códigos com o mérito (reconhecimento de
sua competência pelo mercado)”. Na perspectiva de Noronha (2002, p.
70-74), há complementaridade entre os conceitos equidade e
empregabilidade, eles são expressão da ideia de que o mérito e a
recompensa definem-se pelo modo como o indivíduo se coloca no
mercado, ou seja, o êxito ou o fracasso são associados com as
características individuais. Por esse prisma, a busca pela equidade e pela
empregabilidade passa a ser uma responsabilidade de cada indivíduo. A
não inserção no mercado de trabalho é atribuída à ausência dos requisitos
exigidos do indivíduo singular em atendimento aos novos padrões de
gerenciamento e às exigências da chamada sociedade do conhecimento.
A noção de empregabilidade agrega-se à propalada necessidade de
acumulação de capital humano por meio da educação continuada e do
aprendizado ao longo da vida. O termo expressa a ideia de que a
educação agregaria um valor à força de trabalho. A empregabilidade é
utilizada com fundamento na premissa de que o contínuo retorno à escola
seria a garantia de inserção e permanência no mercado de trabalho.
Ao analisar esta questão, Oliveira (2000, p. 230) afirma que “[...]
pensar em ampliar o acesso à Educação Básica como facilitador da
empregabilidade é negar a existência de algo muito maior e mais grave: o
desemprego estrutural”. O posicionamento da autora é que “[...] o
acirramento das desigualdades sociais, paradoxalmente ao crescimento
dos níveis de escolaridade, põe em dúvida a efetividade das teorias que
apresentavam a educação como melhor instrumento para a distribuição
mais eqüitativa de recursos e rendimentos” (OLIVEIRA, 2000, p. 231).
Em consonância com a premissa neoliberal, a equidade é entendida
como similar à igualdade de oportunidade e associada ao respeito às
liberdades individuais. Nessa perspectiva, a ação pública deve visar à
ampliação do conjunto de oportunidades para aqueles que têm menos voz
e menores recursos e habilidades. O ponto crucial da equidade não é a
igualdade de renda, afirma Iamamoto (2008), mas a expansão do acesso
dos pobres à saúde, à educação e ao trabalho.
219
Kuenzer (2002, p. 93) denomina de “certificação vazia” as
estratégias de escolarização que se constituem em “[...] modalidades
aparentes de inclusão, que fornecerão a justificativa, pela incompetência,
para a exclusão do mundo do trabalho, dos direitos e das formas dignas
de existência”. À educação é atribuído o papel de qualificação para o
mercado de trabalho, num contexto de desemprego estrutural, no qual se
intensifica o confronto entre a força de trabalho e o capital. A certificação
de escolarização é apresentada como promessa de mudança situacional do
indivíduo isolado. Esta retórica da educação como solução para o
desemprego implica no não desvendamento da realidade histórico-social
do capitalismo. Os sujeitos são responsabilizados individualmente e os
que não conseguem se inserir no mercado de trabalho são considerados os
próprios culpados pelo seu infortúnio.
O padrão emergente de desemprego é um indicador do
aprofundamento da crise estrutural do capitalismo, explica Mészáros
(2002). Os trabalhadores mais qualificados acabam por somar-se ao
contingente já existente de desempregados. Os efeitos dessa situação
atingem todas as categorias de trabalhadores, sejam qualificados e ou
não, abrangendo a totalidade da força de trabalho da sociedade
(MÉSZÁROS, 2002).
Para salientar o caráter histórico da vinculação entre educação,
desenvolvimento e estabilidade econômica e política no Brasil,
apresentamos o contido no Plano Nacional de Educação, aprovado em
2001. Consoante com as orientações e diretrizes políticas que já
apontamos, o Plano define objetivos e metas para a educação do país e
contém três eixos norteadores da política: 1) a educação como direito
social da pessoa; 2) a educação como fator de desenvolvimento
econômico e social e 3) a educação como meio de combate à pobreza
(BRASIL, 2001).
A relação entre educação, trabalho e sociabilidade assume
características específicas, que estão relacionadas com as relações sociais
vigentes, com o processo de acumulação capitalista e com os conflitos de
classe que perpassam as instituições da sociedade como um todo. Neves
(1999) explicita o dualismo histórico que sempre caracterizou o sistema
educacional brasileiro, a saber, a diferenciação de escolarização para as
massas trabalhadoras e para os trabalhadores qualificados provenientes
das camadas médias e de parcelas da burguesia. O sistema educacional
220
oferta somente o básico – para acrescer o patamar mínimo de
escolarização – para os que realizam ou irão assumir o trabalho simples.
Para aqueles que assumem ou irão desempenhar funções de maior
complexidade, são destinadas atividades curriculares e estrutura
organizacional de nível superior, visando capacitar essa força de trabalho
a utilizar os conhecimentos de ciência e tecnologia incorporados pelos
grandes grupos transnacionais de forma adaptada à nossa realidade
(NEVES, 1999).
O posicionamento de Neves é corroborado por Del Pino (2000, p.
203) que identifica o fortalecimento do “[...] mérito acadêmico ao
privilegiar, para poucos/as, a qualificação científico-tecnológica e
sociocultural para o exercício das funções vinculadas à gestão, à criação,
à direção e aos serviços especializados”. Em contrapartida, para a grande
maioria, “[...] privilegia-se a escolaridade apenas suficiente para permitir
o domínio dos instrumentos necessários à existência em uma sociedade
que combina o perfil científico-tecnológico com a economia informal”.
Tal escolarização é “[...] complementada por uma formação profissional
de curta duração, que capacita para exercer ocupações precarizadas em
um mercado cada vez mais restrito, direcionado para permitir a
continuidade da acumulação capitalista”.
Ao desconstruirmos as armadilhas do ideário neoliberal,
conscientizamo-nos de que, na análise da relação entre trabalho, educação
e sociabilidade, não podemos nos restringir a processos individuais,
morais e psicológicos. Deve-se ampliar a explicação, articulando-as com
processos que estão, necessariamente, subordinados à lógica do capital e
do mercado, portanto, sujeitos à diferenciação, segmentação e exclusão
social, justamente porque são constituídas em relações sociais que
plasmam as assimetrias, a exclusão e as desigualdades que se configuram
na estrutura da sociedade capitalista.
Para a consciência reificada, é ocultada a compreensão de que os
homens, de uma dada época e lugar, são aquilo que eles se produzem pelo
trabalho. Em decorrência, não conseguem entender que o trabalho é a
categoria essencial que permite explicar a história, a produção humana, o
processo de constituição do homem concreto. Para o pensamento
fetichizado, o trabalho fica desprovido de conteúdo e de significado
históricos, deixa de ser pensado como prática social vital para a
humanização do ser social. O trabalho é apreendido como algo natural,
221
que não tem relação com a transformação histórica das relações de
produção e com o desenvolvimento das forças produtivas sociais.
Esvaziado desse conteúdo, o trabalho pode ser pensado apenas como a
execução de uma função, de uma atividade, como algo relativo a uma
ocupação ou profissão.
Similarmente, o mesmo pensamento fetichizado não é capaz de
entender que o modo como o homem produz as condições para garantir a
sua vida material condiciona a produção da consciência e, também, o seu
processo formativo e educativo. Destarte, realiza o esvaziamento do
sentido amplo de educação quando propala que se deve educar apenas
para a empregabilidade. A educação deixa de ser processo de formação
do ser social em sua totalidade no sentido do desenvolvimento humano-
genérico e se transmuta em algo apenas instrumental e operacional,
destinada a atender a demandas do mercado de trabalho. Este
reducionismo implica num estreitamento da função social da educação e
da escola. Abandona-se a formação para a emancipação humana6 e
passa-se a educar para o mercado. A função da educação é reduzida a
“gerar” quantum de valor agregado à força de trabalho com vistas à
inserção no flexível mercado laboral. Como salienta Mészáros (2005),
isto significa educar apenas para o capital. Aqui a educação deixa de ser
concebida como uma mediação para a constituição de uma sociabilidade
plenamente emancipada.

REFERÊNCIAS:
1. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir;
GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e
o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. p. 9-23.
2. BRASIL. Plano Nacional de Educação. Brasília, DF: Inep, 2001.
3. CAMPBELL, Jack. Construindo um futuro comum: educando
para a integração na diversidade. Brasília, DF: Unesco, 2002.
4. CAMPOS, Roselane Fátima; SHIROMA Eneida Oto. O resgate da
escola nova pelas reformas educacionais contemporâneas. Revista

6
. ) F ? &J;;J' )
)S ) ) ) )S

222
Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 80, n. 196, p. 483-
493, set./dez. 1999.
5. CATTANI, Antônio (Org.). Dicionário crítico sobre trabalho e
tecnologia. 4. ed. rev. ampl. Petrópolis,RJ: Vozes; Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2002.
6. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. Tradução
Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996.
7. ______. Mundialização: o capital financeiro no comando. Outubro,
São Paulo, n. 5, p. 7-28, 2001.
8. ______. O capitalismo de fim de século. In: COGGIOLA, Osvaldo
(Org.). Globalização e socialismo. São Paulo: Xamã, 1997. p. 7-33.
9. CUÉLLAR, Javier Pérez (Org.). Nossa diversidade criadora.
Campinas,SP: Papirus; Brasília, DF: Unesco, 1997.
10. DEL PINO, Mauro Augusto Burkert. Reestruturação produtiva de
educação profissional. 2000. 255 f. Tese (Doutorado em Educação)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.
11. DELORS, Jacques. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo:
Cortez; Brasília: MEC: UNESCO, 1999.
12. FIOD, Edna Garcia Maciel. A década de 90 e os rumos do ensino
público. In: RAMPINELLI, Waldir José; OURIQUES, Nildo
Domingos (Orgs.). No fio da navalha: críticas das reformas
neoliberais da FHC. São Paulo: Xamã, 1997. p. 201-223.
13. IAMAMOTO, Marilda Villela. Estado, classes trabalhadoras e
política social no Brasil. In: BOSCHETTI, Ivanete et al. (Org.).
Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São
Paulo: Cortez, 2008. p.13-44.
14. KUENZER, A. Exclusão includente e inclusão excludente: a nova
forma de dualidade estrutural que objetiva as novas relações entre
educação e trabalho. In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI,
Dermeval; SANFELICE, José Luis (Orgs.). Capitalismo, trabalho
e educação. Campinas,SP: Autores Associados; HISTEDBR, 2002.
p. 77-96.

223
15. LEHER, Roberto. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da
globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para
“alívio” da pobreza. 1998. 266 f. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
16. LÊNIN, Vladimir Ilich. O imperialismo: fase superior do
capitalismo. Tradução Olinto Beckerman. São Paulo: Global, 1979.
17. MACHADO, Lucília. Educação básica, empregabilidade e
competência. Trabalho e Educação, Belo Horizonte, n. 3, p. 15-31,
jan./jul. 1998.
18. MARX, Karl. Conseqüências sociais do avanço tecnológico. São
Paulo: Edições Populares, 1980.
19. ______. O Capital. São Paulo: Nova Cultura, 1985. v.2 (Os
Economistas).
20. ______. O Capital: crítica da economia política. 8. ed. Tradução de
Reginaldo Sant’Anna. São Paulo: DIFEL, 1982. l.1, v. I.
21. ______. Elementos fundamentales para la crítica de la economia
política: borrador 1857-1858. México: Siglo Veintiuno Editores,
1986. v.2.
22. ______. A questão judaica. São Paulo: Centauro, 2002.
23. MAZZUCCHELLI, Frederico. A contradição em processo: o
capitalismo e suas crises. São Paulo: Brasiliense, 1985.
24. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo;
Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2002.
25. ______. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo,
2005.
26. MORAES NETO, Benedito Rodrigues. Marx, Taylor, Ford: as
forças produtivas em discussão. São Paulo: Brasiliense, 1989.
27. NETTO, José Paulo. Capitalismo monopolista e serviço social. 3.
ed. ampl. São Paulo: Cortez, 2001.
28. NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma
introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.

224
29. NEVES, Lúcia. Educação: um caminhar para o mesmo lugar. In:
LESBAUPIN, Ivo (Org.). O desmonte da nação: balanço do
governo FHC. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
30. NORONHA, Olinda Maria. Políticas neoliberais, conhecimento e
educação. Campinas, SP: Alínea, 2002.
31. OLIVEIRA, Dalila Andrade. Educação básica: gestão do trabalho e
da pobreza. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
32. ROSEMBERG, Fúlvia. Educação formal, mulher e gênero no Brasil
contemporâneo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 9, n.
2, p. 515-540, 2001.
33. RUMMERT, Sônia Maria. Educação e identidade dos
trabalhadores: as concepções do capital e do trabalho. São Paulo:
Xamã, 2000.
34. SANDRONI, P. Novo dicionário de economia. 7. ed. São Paulo:
Best Seller, 1994.
35. SHIROMA, Eneida Oto; MORAES, Maria Célia M. de;
EVANGELISTA, Olinda. Política educacional. Rio de Janeiro:
DP&A, 2000.
36. SOARES, Laura Tavares. O que são as políticas de ajuste de caráter
neoliberal? In: ______. O desastre social. Rio de Janeiro: Record,
2003. p. 19-39.
37. UNESCO. A UNESCO e a educação na América Latina e Caribe
(1987-1997). Santiago-Chile: UNESCO-SANTIAGO, 1998.
38. ______. A UNESCO no Brasil: consolidando compromissos.
Brasília: UNESCO, 2004.

225
226
REFORMAS EDUCACIONAIS E REDEFINIÇÃO
DA FORMAÇÃO DO SUJEITO
*
+ % 0

A relação educação, formação profissional e inserção no mundo do


trabalho tem sido tema destacado, notadamente a partir dos anos de 1990,
em justificativas de reformas educacionais e de reformas das relações de
trabalho nas quais se inserem políticas públicas e programas
governamentais que apresentam, dentre seus argumentos principais, três
questões recorrentes: as inovações tecnológicas no processo produtivo e
as mudanças técnicas e organizacionais a elas relacionadas; os
requerimentos atuais e futuros de utilização da força de trabalho e sua
composição qualitativa e quantitativa; a adequação organizacional e
curricular das estruturas de formação da força de trabalho, de forma a
responder satisfatoriamente às novas demandas do processo de trabalho.
A análise de tais argumentos, concepções, políticas e programas e seus
impactos constitui um importante e vasto campo de investigação, em
âmbito nacional e internacional, sobre o qual grupos de pesquisa e
pesquisadores têm se debruçado, sob distintas perspectivas e recortes. É
no âmbito desta temática, a qual identificamos como um movimento de
redefinição da formação do sujeito, que está situado o presente texto, base
para uma das sessões do Minicurso “Trabalho e Educação”, ministrado
no VI Seminário do Trabalho, na UNESP-Marília, em maio de 2008.

EDUCAÇÃO, DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E GLOBALIZAÇÃO:


CONDICIONANTES DAS REFORMAS SOCIAIS DOS ANOS DE 1990
Seja como manifestação de projetos nacionais em disputa, seja como
decorrência de determinado modelo de inserção do país na ordem
econômica mundial, seja como expressão da hegemonia das relações
sociais capitalistas em determinado momento histórico, é importante
assinalar que as reformas educacionais e as relativas à formação

E ) %#"* I ) + & I+ '


% + # , &%+# G' I
+ ) + &I + +' 1 ]

227
profissional e às relações de trabalho, iniciadas nos anos de 1990,
ocorrem em um contexto mundial de reformas sociais em que se
localizam os movimentos de redefinição do papel do Estado sob o
paradigma hegemônico das políticas de caráter neoliberal.1
Esta orientação geral e generalizante tem seu vínculo nos
pressupostos de que a consolidação econômica e política do capitalismo
mundial é uma ordem irreversível e mesmo “natural” para as sociedades
contemporâneas nas quais os Estados nacionais deveriam reger-se pelos
paradigmas da flexibilização, desregulamentação e privatização, caminho
indesviável para o qual não haveria alternativa (There is No Alternative
[TINA], conforme Margareth Thatcher), nem tampouco novas
possibilidades a construir (o que poderia ser mesmo considerado como o
“Fim da História”, segundo Francis Fukuyama). Em que pese o caráter
absolutamente ideológico destas afirmações, o fato é que mundialmente e
em particular na América Latina, observamos a ocorrência quase que
simultânea de movimentos de reforma, tais como os ocorridos na
Argentina, Brasil, México e Colômbia nas reformas de seus sistemas de
ensino técnico-profissional.
No caso brasileiro, embora o presente texto não tenha por objetivo a
análise de tais políticas, podemos destacar três documentos legais
emitidos em meados dos anos de 1990 que marcaram profundamente a
reforma da educação e da formação profissional e seus desdobramentos
ainda em curso: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(BRASIL, 1996); o Decreto 2.208, que estabelece as diretrizes da
Reforma da Educação Profissional (BRASIL, 1997); o Plano Nacional de
Qualificação do Trabalhador – PLANFOR (BRASIL, 1995). Um estudo
aprofundado destes documentos mostrará com muita clareza as
evidências das conexões e vínculos entre suas diretrizes conceituais e os

5 ? 0
* 0 J . ) , 0 ) $!F. #!$Q6 E
$ + BE
) C # % # " * J;;J
J . 588;1 G #
&. ' G " > # + - &* a '
/ F # + / * &F ? ' G
) &( '

228
pressupostos e orientações contidos nos documentos dos organismos
internacionais dos anos de 1990.3
Sem buscar suprimir a dimensão das especificidades e das
particularidades estruturais e conjunturais de cada formação social
histórica, é razoável supor que as “experiências” ou “determinações” que
condicionam estas reformas no campo da formação/educação profissional
expressam as necessidades e a materialidade das relações de produção
capitalistas em determinada situação de hegemonia, em especial, a
hegemonia das políticas públicas do Estado neoliberal no contexto da
economia política da globalização.
Nesse sentido, discutiremos as condições que fazem emergir, nos
anos de 1990, as reformas educacionais e da formação profissional nos
países considerados periféricos, dirigindo especialmente nossa atenção
para os documentos setoriais produzidos pelos organismos internacionais.
Considere-se, de início, que no contexto mundial vivenciado a partir dos
anos de 1990, no qual o discurso da integração e da mobilidade social via
escolarização é negado pela realidade prática da exclusão social de
crescente parcela da população e pelo alargamento do fosso econômico,
tecnológico e social entre economias centrais e economias periféricas, as
orientações de reformas dos sistemas de educação, da formação e das
relações de trabalho emanadas a partir dos diagnósticos produzidos pelos
organismos internacionais cumprem um papel importante como parte da
estratégia de manutenção da hegemonia da economia política
internacional.
Em situações de crise de hegemonia, novas questões e necessidades
se põem para a manutenção da ordem dominante e da acumulação do
capital, e com elas a necessidade de re-significação de conceitos visando
manter e reconstruir sobre novas bases o consenso e a hegemonia
dominantes. Dessa maneira, os documentos setoriais de reformas podem
ser analisados – além de seu caráter de políticas específicas – como parte
da estratégia mais geral de manutenção da hegemonia, em que as práticas
discursivas ganham especial destaque.
Vale destacar, além disso, que a formulação de políticas
educacionais e de formação profissional com um pretenso caráter

L 1 $!F. #!$Q6 &J;;J'

229
universal na década de noventa e sua implementação nos países
periféricos do sistema de relações capitalistas mundiais se dá mediante
processos políticos diversos e negociações de consórcios de poder que
envolvem as elites dominantes nacionais e o capital internacional.
Ademais, a consecução das orientações emanadas dos relatórios
internacionais se dá por mecanismos de adequação variados, dentre os
quais as condicionalidades estabelecidas pelos organismos internacionais
para a concessão de financiamentos, pelas quais se estabelecem os eixos
conceituais e as diretrizes da política a ser seguida.
Nesse aspecto, nos diagnósticos e orientações dos organismos
internacionais para as políticas educacionais e de formação profissional, a
relação capital–trabalho é reduzida ao conceito de empregabilidade,
capacidade que deve ser administrada pelo próprio trabalhador. Por outro
lado, a universalidade dos direitos sociais, sobretudo dos direitos à saúde
e educação públicas e ao trabalho, é reduzida à igualdade de
oportunidades, sugerindo-se que o Estado deve limitar-se a promover
políticas públicas que garantam uma base mínima de eqüidade, a partir da
qual os indivíduos devem percorrer caminhos eleitos e conquistados
conforme suas preferências e competências supostamente definidas no
campo da ação e vontade do indivíduo.
Efetivamente, a análise documental nos permitirá observar que
empregabilidade e eqüidade são categorias centrais dos diagnósticos
internacionais que informam as políticas setoriais educacionais e de
formação profissional dirigidas aos países periféricos, definindo o que
pode ser pensado e feito em termos de políticas públicas. Tais diretrizes
também cumprem importante papel ao contribuir para obliterar as
discussões acerca das razões da exclusão das nações periféricas, retirando
a discussão do campo da análise da estrutura das relações sociais de
produção e da decorrente divisão internacional do trabalho. A análise é
circunscrita, então, ao campo conjuntural das interpretações factuais e
episódicas dos ciclos de desenvolvimento econômico ou, ainda, ao campo

U )S 0
) a N )S
E T ? )S
? ?) , @
? ) ,
@ )
?

230
meritocrático da competitividade entre as nações ou das competências
dos indivíduos.
Na seguinte seção centraremos nossa análise em dois documentos
setoriais produzidos pelos organismos internacionais, com destacada
importância para a orientação das reformas da educação, da formação
profissional e das relações de trabalho nos anos de 1990.

AS PROPOSTAS DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS: RE-SIGNIFICAÇÃO DOS


CONCEITOS NA FORMAÇÃO DO CONSENSO E NA DEFINIÇÃO DO PAPEL DO
ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Selecionamos para um estudo analítico os documentos Educação e
Conhecimento: Eixo da Transformação Produtiva com Eqüidade,
produzido em 1992 pela CEPAL/UNESCO, e Prioridades e Estratégias
para a Educação, elaborado em 1995 pelo Banco Mundial. O estudo ao
mesmo tempo em que se deterá sobre as orientações e conceitos contidos
nos textos, buscará relacioná-los aos contextos sócio-históricos em que se
inserem, uma vez que, concordando com Gentili (1994, p. 117), “os
discursos constituem dimensões anunciativas de um tipo específico de
ideologia somente compreensível no contexto da realidade material que a
determina”.
É importante destacar, de início, que um dos critérios que motivou a
seleção dos dois documentos, dentre tantos outros produzidos pelos
organismos internacionais nos anos de 1990, foi a importância conferida
aos mesmos pelos seus próprios autores, além da presença dos referidos
documentos em expressivo número de citações bibliográficas e
referências, tanto em textos governamentais e institucionais, quanto em
análises sobre políticas e reformas educacionais, da formação profissional
e das relações de trabalho, em especial aquelas realizadas na América
Latina desde então.
O Banco Mundial, no documento Prioridades e Estratégias para a
Educação, destaca que o referido estudo setorial representa uma síntese
das publicações e formulações educacionais realizadas pelo Banco desde
1980 e que o mesmo tem por objetivo principal definir o papel que cabe
aos governos no que diz respeito ao sistema de educação formal
(BANCO MUNDIAL, 1995, p. xii).

231
Tanto o documento do Banco Mundial quanto o da CEPAL
apresentam uma análise setorial ampla, de modo que sua importância
extrapola o campo das ações conjunturais e de programas ou níveis
educacionais determinados ou países e sub-regiões específicas, para
situar-se no campo das ações estratégicas que visam orientar o modelo
estatal e as políticas institucionais que serão conduzidas no campo
educacional para o conjunto dos países de baixa e média renda, na
concepção do Banco Mundial, ou de caráter continental, para todos os
países da América Latina e Caribe, no âmbito de intervenção das políticas
da CEPAL.
Além disso, conforme poderá ser observado nos Quadros 1 e 2, a
seguir, os documentos possuem uma abrangência complexa e extensa e
guardam grande semelhança em sua estrutura.
Ambos apresentam uma introdução abrangente, na qual
contextualizam as ações do organismo internacional no âmbito
educacional, referida pelo menos ao período da década anterior (desde os
anos 80 até o ano da publicação). Em seguida, após a manifestação
explícita dos objetivos e destinatários, apresenta-se um resumo do
documento, destacando os seus pontos principais. A partir daí, o texto é
dividido em partes (quatro, no caso do Banco Mundial, e três, no
documento da CEPAL), em que são apresentadas, em seqüência, a
abordagem histórica e conceitual do papel da educação e a análise da
experiência das políticas educacionais dos países e regiões em foco. Por
fim, apresentam um conjunto de diretrizes, estratégias, ações e medidas
de políticas educacionais que deverão ser implementadas, de modo mais
amplo, a partir da adequação do modelo e papel do Estado e, de modo
mais específico, a partir das reformas educacionais recomendadas.
O Quadro 1 apresenta uma ficha documental do documento
“Prioridades e Estratégias para a Educação” (Banco Mundial, 1995),
tendo por objetivo apresentar a estrutura deste primeiro documento e uma
visão sintética da abrangência de seus conteúdos. O mesmo objetivo é
cumprido pelo Quadro 2, ao apresentar a ficha documental do documento
“Educação e Conhecimento: eixo da transformação produtiva com
eqüidade” (CEPAL, 1995).5

K * .$ - 588J 588K

232
QUADRO 1. Ficha documental – Prioridades e Estratégias para a Educação –
Banco Mundial (1995)
5 ; ><70"5?>@ > >9:&0A">
;B
& ' # # ' '
# 'C ' DE ) F

55 ; 3 G:0& @0 0@"5A3 > >9:&0A">


;B ) , #H ,I
# )+ 0 J DE
)F

555 ; 0@"/:":/3 0 9>A"0K >@ /5A95 35@ > >9:&0A">


(
/ 2 2
; L ( < 1-M
G 2 N
L M
) ,
O ; 6 (
/ ; # !- ( #
5 ; #B
2 ( D B
D E )) F
; #
$ #
( N ( M +
( M
L E + F
; B D
@ $ ) , M P
) ( 'C E FM
2 )
E . F
; ' $ # 'C #
" $ ' M
; $ #
# P
( E, F# 'C #
#
2 E .*+ -*F
;
G $ M; +
( , #
E !+ *F
Fonte: elaboração própria

233
QUADRO 2. Ficha Documental – Educação e Conhecimento: eixo da
transformação produtiva com eqüidade – CEPAL/UNESCO
(1995)
5 ; ><70"5?>@ > >9:&0A">
;B L
& ' # #
'C DE FM B 6 (
( #
, , + D E *F

55 ; 3 G:0& @0 0@"5A3 > >9:&0A">


# ; 3 , Q 9

555 ; 0@"/:":/3 0 9>A"0K >@ /5A95 35@ > >9:&0A">


( "
( ; 2 '
3 ; , # 6 ,
/ ; # - ( #
$> ) ;9 > +
'C $ L ( O
, 90 3Q$ 6 ( E
F# L E 'C F
E L F
@ $ ;9 0 3 , Q 9 $
B L # # D
( ) B #' 'C DE *+
!FM
; 9 ! >
$ B ) D
2 L M
'C
# ' B
D$ B ) M , L
2 M! 2 ( M M
* M.
M% 'C M1
L DE -+ -F
;9 " # $ R
B DE **F
R M
2 O (
' B '
( ,
D $B 0 $ ) #
, # 'C M $
L M ! # $ #
' # L # 9S"
D E .-+ 1F

234
; 9 * > 6 # , # L $ B , D , '
" $3 ,
O B
D E 6 , FM # L
+ 'C # '
L E --+ -F
; 9 . 32 $ )
M O
M ! # +
O M M* L
M.
M % E *+
*-F
Fonte: elaboração própria

No entanto, não é apenas na estrutura e no conteúdo de seu ideário


que os documentos em análise apresentam similitudes importantes.
Conforme já observamos em texto anterior, a estrutura e a identidade
conceitual presente em diversos documentos dos organismos
internacionais, e sua similaridade, podem ser examinados a partir de uma
outra perspectiva: a estética textual.6 Nessa perspectiva, a estrutura dos
textos revela a existência de uma espécie de “norma sistemática” em sua
construção, pela qual os padrões alternados de diversos tipos de “textos”
– quadros, gráficos, exemplos exemplares, narrativas, análises –
alternam-se, deslocam-se e combinam-se, permitindo uma dinâmica
diferenciada de leituras, constituindo um movimento intra e intertextual,
que coloca o leitor/interlocutor em várias posições de sujeito.
A estrutura espacial dos documentos apresenta-se basicamente na
forma dual, pela justaposição de dois textos: um texto que se apresenta
como principal, na forma discursiva e analítica, e outros textos
secundários, em forma de quadros, gráficos ou descrições de experiências
– nacionais, regionais ou comunitárias – em geral, de êxito. No entanto,
conforme a opção do leitor ou do enfoque específico, as posições
secundárias e centrais são intercambiáveis. Assim,
. , = ? A
.

9 &*.F 6" $!F. #!$Q6 j "Q!G6F. 5888' )


? - ) ) <
= 34 <
0 &%> "*6 5889'

235
= ) A B C )
T0 , )
T0
,
-, &*.F 6" $!F. #!$Q6
"Q!G6F. 5888'
A utilização exemplar de experiências singulares de cada cultura e
formação social ou Estado nacional, na conformação de uma lógica
conceitual pré-ordenada, guarda relação com uma pretensa
intencionalidade de conferir estatuto universal e científico às
recomendações dos textos, as quais deveriam ser seguidas à risca pelas
nações que desejassem lograr êxitos semelhantes às experiências citadas
(id., ib.). Neste particular, os textos se alinhariam ao estilo da narrativa
historiográfica pós-moderna – como lógica cultural do último, isto é, do
mais recente capitalismo –,7 em que a narrativa histórico-temporal cede
lugar à dimensão estético-espacial obtida pela operação de colagem de
fragmentos da realidade ou de vários eventos de natureza distinta que
incidem sobre o ‘registro histórico’ para desrealizá-lo e desnaturalizá-lo,
dotando-o de uma aura fantástica, mágico-realista (JAMESON, 1997, p.
369). Este processo de fragmentação do contexto histórico-social e
recomposição de uma nova historiografia espacial pela
recontextualização diferenciada dos fragmentos é também descrito por
Canclini (1998, p. 302) como um movimento de descolecionamento e
desterritorialização. O descolecionamento se dá pela ruptura da cadeia de
relações sócio-culturais (coleções) que se verifica quando uma
experiência singular é isolada do conjunto de práticas e referenciais
simbólicos que lhe dão significado próprio no contexto de sua cultura
específica
Como observamos nos documentos em análise, a intrincada
arquitetura dos textos pode revelar-nos que a epistemologia que os
fundamenta se encontra assentada na “possibilidade de modificar vastas
quantidades de discursos preexistentes [...] num novo código”
(JAMESON, 1997, p.312). Nisso consiste a operação de reconversão
conceitual que, ao longo dos textos, faz equivaler conceitos e teorias
: . ) ^ ? "
)S @ ?
@ - ?

236
educacionais aos códigos da economia de mercado. Neste sentido, o
discurso hegemônico é pródigo. A força do “modelo” neoliberal, em
conseqüência das orientações de reforma que subjazem nos documentos
analisados, pode ser encontrada em sua capacidade de destituir outros
códigos de sua operacionalidade, ou seja, de sua autoridade privilegiada
de articular algo como verdade. Não seria este, propriamente o interesse e
foco da ação dos intelectuais coletivos do capital? A produção de textos
reformadores não faria parte de uma estratégia descolecionadora e
desierarquizadora (CANCLINI, 1998) que visaria encobrir a assimetria
existente entre países centrais e dependentes, e entre sujeitos de diferentes
classes dentro de uma mesma sociedade?
Retornemos, contudo, ao eixo principal de nosso trabalho, após esta
breve digressão sobre a arquitetura dos textos produzidos pelos
organismos internacionais, uma vez que forma e conteúdo não estão
dissociados. Com relação ao conteúdo dos dois documentos em análise,
vale ressaltar sua importância justamente a partir do que declaram seus
autores quanto à dimensão prioritária de suas próprias atividades e dos
mecanismos de implementação de suas orientações. Assim, a CEPAL
afirma que o objetivo de seu diagnóstico é o de
) ? B 8;C
)S 4 ) )
0 4

T B C B C -
, )
) B C B C
, &* .$ 588K K'
Na mesma direção, o Banco Mundial declara que
) ( F
- ?
) 0 T
)S ? 0
0
) ) )
) &(.>*6 F%>E!.$ 588K ?? ?'

237
Por meio destas declarações, os organismos internacionais atribuem
a si a função de “assessores privilegiados” e definidores das reformas
institucionais e das políticas públicas.
A CEPAL considera que os sistemas educacionais constituem “um
rígido aparato de reações lentas, impenetráveis às demandas e desafios
externos [...] produto da centralização, da burocratização e do
encapsulamento corporativo, males que não necessariamente precisam
acompanhá-los” (CEPAL, 1995, p. 208). De modo similar, o Banco
Mundial destaca que a reforma do financiamento e da administração do
sistema educacional visando, entre outros objetivos, dar-lhe mais
autonomia, pressupõe “redefinir a função do governo” (BANCO
MUNDIAL, 1995, p. v).
Se são concordantes no “diagnóstico” do “paciente”, não é estranho
que Banco Mundial e CEPAL coincidam também na prescrição da
“receita”. Os países de baixa e média renda8 devem considerar que “a
mudança do contexto institucional no qual se dão as ações educacionais,
de capacitação e de ciência e tecnologia é parte do processo mais global
de reforma do Estado” (CEPAL, 1995, p. 222) e, “nessas circunstâncias,
as demoras em reformar o sistema de educação para que avance ao
mesmo passo que o sistema econômico podem significar menos
crescimento e mais pobreza que em outros casos” (BANCO MUNDIAL,
1995, p. 29). A orientação que a CEPAL fornece para a reforma do
Estado é explícita e precisa: “o Estado administrador, provedor
benevolente de recursos deve ser substituído pelo Estado avaliador,
incentivador e gerador de políticas de longo prazo” (CEPAL, 1995,
p.190).
Em resumo, Banco Mundial e CEPAL não somente se colocam na
condição de formuladores das políticas públicas, como estabelecem –
como condicionalidade para auxiliar o seu financiamento – a necessidade
imediata de realização de reformas de Estado, devidamente adequadas ao
receituário neoliberal. Por esta avaliação podemos compreender o
significado, a amplitude e a exatidão da colocação de Ianni (1996) –

V > ( F 0 ? =
0 ? 0 Z -
) &(.>*6 F%>E!.$ 588K ? '

238
“santíssima trindade guardiã do capital” – ao referir-se aos organismos
internacionais.
Faremos, em seguida, uma exposição sintética dos diagnósticos da
CEPAL e do Banco Mundial com o objetivo de extrair daí os elementos
para uma análise crítica destas propostas e a posterior verificação da
influência destes diagnósticos sobre as reformas da educação e da
formação profissional no Brasil.

A PROPOSTA DA CEPAL: EDUCAÇÃO COMO DETERMINANTE DO


PROGRESSO TÉCNICO E DO PROGRESSO SOCIAL
A idéia central do documento Educação e Conhecimento: Eixo da
Transformação Produtiva com Eqüidade é que “a incorporação e difusão
– deliberada e sistemática – do progresso técnico é a força
impulsionadora da transformação produtiva e de sua compatibilização
com a eqüidade e a democracia” (CEPAL, 1995, p. 3).
A CEPAL considera que a formação de recursos humanos é um fator
essencial para a obtenção de progresso técnico, de forma que a educação
assume o caráter central para o alcance do desenvolvimento e redução da
pobreza. Essa formulação idealista9 estabelece uma relação mecânica e
linear: a educação desenvolve recursos humanos que irão contribuir para
a incorporação de progresso técnico; este ocasionará, por conseqüência, a
elevação da produtividade do trabalho e a competitividade internacional
da nação que por sua vez retornarão à população em forma de elevação
do nível de renda. Este esquematismo macroeconômico busca também
ser validado em nível microeconômico: indivíduos que investirem em sua
auto-capacitação estarão mais aptos a competir e como retribuição
obterão êxito, expresso na forma de elevação da renda individual. De
acordo com corragio,
. ? 0 0
S )
) "
S

8 * ) -, ? 0
, . , ? @ ,
) ) )
) )

239
, N )
&*6GG.I!6 5889 V;'
Segundo o ideário contido nos documentos em análise, dado que a
competição é a lógica e o capital humano o ingrediente básico para
alcançá-la, então a atitude “racional” é que países, pela adoção de
políticas “corretas”, e indivíduos, pelo uso de seus dotes e esforços
próprios, esmerem-se ao máximo para enfrentar a realidade do mercado,
suposto natural, livre e aberto à concorrência perfeita entre indivíduos e
nações.
Os pressupostos teóricos que fundamentam o diagnóstico da CEPAL
tomam por base “contribuições teóricas recentes ao estudo dos vínculos
entre educação e desenvolvimento econômico” (CEPAL, 1995, p. 5). Esta
referência explícita nos leva a depreender que a elaboração constitui uma
atualização da teoria do capital humano. Dentre as contribuições
referidas, a CEPAL destaca que “algumas análises prospectivas recentes10
mostram o tema da transformação da educação como aspecto
fundamental, ligado ao protagonismo atribuído ao conhecimento quando
considerado o fator mais importante do novo paradigma produtivo”
(CEPAL, 1995, p. 175).
A estratégia adotada pela CEPAL baseia-se no seguinte trinômio: a
competitividade, como objetivo que consolida a cidadania; o
desempenho, como diretriz política para a efetivação da eqüidade; a
reforma institucional, voltada para a descentralização como estratégia
para a implementação das políticas propostas.
Nesse sentido, visando a formação do consenso em torno da reforma
institucional, a CEPAL propõe um conjunto de ações e medidas, cuja
implementação deve estar apoiada em “consensos ou acordos entre os
principais atores sociais” e “cujo princípio central é que os esboços de
políticas definidos são válidos para todos os países [da América Latina e
Caribe], embora as formas e a seqüência de aplicação possam variar
consideravelmente” (CEPAL, 1995, p. 215).
As ações e medidas propostas são:

5;. * .$&588K' , >.!"(!++ j .(%E G> &588;'


+6##$ G &588;' I.%E!> &588;' I6GY &58VV' G !*Q &5885'

240
a) gerar um contexto institucional do conhecimento aberto às
necessidades sociais;
b) assegurar acesso universal aos códigos culturais da
modernidade;
c) conferir maior grau de criatividade ao acesso, difusão e
inovação científico-tecnológica;
d) instituir a responsabilidade da gestão institucional;
e) apoiar a profissionalização dos professores e a valorização
de seu papel;
f) desenvolver a cooperação regional e internacional (id., id.,
p. 221).

PRIORIDADES E ESTRATÉGIAS (DO BANCO MUNDIAL): EDUCAÇÃO E


FORMAÇÃO PROFISSIONAL COMO FATOR DE DESENVOLVIMENTO
ECONÔMICO E DE ALÍVIO DA POBREZA
O Banco Mundial inicia o seu documento setorial afirmando que:
. ) ? a
) . )
a ) ? ,
@
.
)
a
) - T
<
) 1 N
,

? A &(.>*6
F%>E!.$ 588K '
Portanto, de modo semelhante ao documento da CEPAL, a educação,
no diagnóstico do Banco Mundial, ganha papel de centralidade no
progresso tecnológico e a linearidade entre formação de recursos
humanos, crescimento econômico e redução da pobreza é também
estabelecida.

241
O fundamento teórico-metodológico utilizado pelo Banco Mundial é
a análise econômica neoclássica que, no nível educacional, encontra sua
formulação na teoria do capital humano. Com base nesta teoria, o Banco
transfigura a realidade produzida pelo imperialismo capitalista e afirma
que “a fonte principal das diferenças de nível de vida entre as nações são as
diferenças de capital humano, que também são, em grande medida, produto
da educação” (id., ib., p. xxxi). Em outra afirmação retumbante na qual
são relevadas, em absoluto, as determinações produzidas pelas relações
sociais capitalistas, o Banco conclui que “o motor principal do
crescimento econômico é a acumulação de capital humano, quer dizer, de
conhecimentos” (BANCO MUNDIAL, 1995, p. xxxii).
% ) ,
) " 3
3 B C
0
)
N ) )
N )S & ??? '
A crença no conhecimento como estruturador da produção social ou
das relações sociais de produção – em substituição aos “recursos
materiais” e “trabalho manual” – e como recurso estratégico para o
alcance da empregabilidade e do desenvolvimento sustentado está
presente nos dois diagnósticos. O Banco Mundial considera que
.
)
a
) - T
.
D
0
) &(.>*6 F%>E!.$ 588K ? '
Dessa maneira, na concepção do Banco Mundial, a centralidade do
conhecimento na atualidade reforçaria a formulação clássica da teoria do
capital humano, segundo a qual educação, desenvolvimento econômico e
distribuição de renda mantêm, entre si, uma relação linear de causa-
efeito.

242
. ) ) B a C

) 0
) )
) )
&(.>*6 F%>E!.$ 588K L'
Portanto, as prioridades e estratégias serão definidas mediante o
cálculo econômico capaz de identificar a melhor relação custo-benefício,
aquela que proporciona maior retorno em elevação de renda e menor
custo de investimento educacional, isto é, a relação que apresente a maior
taxa de rentabilidade social, para usar a linguagem do Banco. Desse
modo,
. ? ) , 55

0
S 0
? ) ,
) S 0
) ) 0
&(.>*6 F%>E!.$ 588K ?? '
Além disso, é também uma forma de melhor disponibilizar a força de
trabalho, pois,
. ) , ,
& ) , ' -

@ )
S ,
&(.>*6 F%>E!.$ 588K ? '
Em síntese, a estratégia defendida pelo Banco Mundial para
viabilizar a sua proposta baseia-se na inversão prioritária dos recursos
públicos na educação básica como política de eqüidade, no financiamento
privado para os outros níveis educacionais e numa reforma institucional
que garanta autonomia e flexibilidade para as instituições educacionais,
nos moldes empresariais e com foco no mercado.

55> ( F ) , )
( $E( > &5889' ) ,
) 0

243
Nessa perspectiva, procedendo à semelhança da CEPAL, as políticas
formuladas pelo Banco Mundial compreendem a recomendação de “seis
reformas essenciais [que], em conjunto, contribuirão para que os países de
baixa e média renda resolvam seus problemas de acesso, eqüidade,
qualidade e rapidez da reforma que promovem atualmente”(BANCO
MUNDIAL, 1995, p. 65). As reformas são as seguintes:
a) dar mais prioridade para a educação;
b) prestar mais atenção ao rendimento;
c) concentrar em maior medida e mais eficientemente os
investimentos públicos na educação básica, assim como
recorrer mais ao financiamento familiar para o ensino
superior;
d) prestar mais atenção à eqüidade;
e) intensificar a participação das unidades familiares no sistema
de educação;
f) dar mais autonomia às instituições a fim de permitir uma
combinação flexível dos insumos educacionais (BANCO
MUNDIAL, 1995, p. 65).
Como observamos, os diagnósticos da CEPAL e do Banco Mundial
coincidem em suas idéias centrais, pressupostos teóricos e estratégias. As
políticas propostas, como eram de se esperar, também guardam
identidade entre si. As sete “ações e medidas” recomendadas pela
CEPAL e as seis “reformas essenciais” definidas pelo Banco Mundial
podem ser resumidas no seguinte: reforma institucional que encaminhe o
sistema educacional para uma configuração empresarial – ao invés de
sistema educacional propõe-se um mercado educacional; inversão dos
recursos públicos, prioritariamente, na educação fundamental; plena
autonomia administrativa e financeira, inclusive responsabilização pelo
custeio, mediante progressiva privatização dos demais níveis de ensino;
políticas de avaliação, desempenho e financiamento, baseadas em
critérios de análise econômica neoclássica – definição de prioridades pela
relação custo x benefício.

244
CRÍTICA AOS ELEMENTOS CENTRAIS DAS PROPOSTAS DA CEPAL E DO
BANCO MUNDIAL PARA A EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL
Neste tópico faremos a crítica aos elementos constitutivos das
propostas da CEPAL e Banco Mundial. Como vimos nos tópicos
anteriores, o valor econômico da educação constitui o núcleo conceitual
central dos documentos em análise, a partir do qual se extraem as
políticas educacionais e de formação profissional recomendadas aos
países de baixa e média renda.
Os diagnósticos em análise estão apoiados nos pressupostos de que a
educação produz efeitos determinantes sobre a produtividade do trabalho
e sobre o desenvolvimento nacional. Tais pressupostos estão presentes
em diversos documentos setoriais produzidos ao longo da década de
noventa pelos organismos internacionais e, como vimos, nos dois
documentos em análise. Estes atribuem às deficiências dos sistemas
educacionais a razão para a permanência do subdesenvolvimento e das
crises econômicas nos países do hemisfério sul. Chomsky (1999),
recusando essas explicações monocausais ao subdesenvolvimento e à
assimetria do sistema centro-periferia que caracteriza o capitalismo
mundial, em particular em relação à América Latina, considera que
X
)
, ,
< 0 ? )
F )
) ?
&*Q6F"hl 5888 5J;'
Assim, concordando com a elaboração desse autor, compreendemos
que a possível razão das políticas educacionais dos organismos
internacionais para a América Latina pode ser buscada no papel
reservado aos países da região na divisão internacional do trabalho. Uma
elevada parcela dos jovens latino-americanos ao sair da escola se vê
desempregada ou assumirá emprego precário ou subemprego,
permanecendo no exército industrial de reserva ou na economia informal.
Apenas uma pequena parcela é incorporada ao mercado de trabalho
formal, sendo a maioria em atividades de serviços e trabalhos simples, de
tal maneira que o Banco Mundial não tem interesse em apoiar o
financiamento de projetos educacionais de mais anos de escolaridade,
245
senão para uma parcela reduzida dos milhões de jovens. Nesse sentido, as
políticas educacionais orientadas pelo Banco Mundial e CEPAL se
guiariam por decisões pragmáticas e utilitárias do interesse do capital, ou
seja, talvez assemelhadas à antiga proposição de Adam Smith (1983) de
uma educação para o trabalhador na justa medida da necessidade de
reprodução do capital. Ainda de acordo com CHOMSKY,
6 ( F

a e
R ,
0 -
0 &*Q6F"hl
588 5JL'
Por esse pressuposto, que expressa o paradigma do pensamento
educacional dominante, a educação e o desenvolvimento econômico se
associam em uma “feliz aliança”, redentora e salvacionista, dotada de
potencial transformador capaz de retirar os países de baixa e média renda
da condição de “atraso”, do qual seriam vítimas históricas devido à
insuficiência de seus estoques de capital humano e da ineficiência e
iniqüidade de seus sistemas educacionais. O argumento opera como uma
espécie de metáfora religiosa, cuja finalidade é a ocultação, tanto das
fontes do subdesenvolvimento, desemprego e pobreza dos países da
periferia, quanto dos verdadeiros interesses dos países centrais da
economia capitalista.
Dessa maneira, a teoria do capital humano intentaria oferecer, antes
de tudo, uma suposta justificativa “científica” para as desigualdades
sociais. Para aqueles que estão em boa situação financeira é
reconfortante, e também útil como defesa contra propostas de
redistribuição mais igualitária, o argumento que atribui sua renda mais
elevada à produtividade marginal de sua pessoa (valores inatos) e de seus
bens (a qualificação adquirida). Oferece, ainda, àqueles de menor renda,
um caminho “exemplar”. Cada um pode, individualmente, fazer o
investimento em si próprio. Tudo é uma questão de escolha.
Os pressupostos da teoria do capital humano logo se revelaram
inconsistentes e insuficientes, tanto na análise teórica mais acurada,

246
quanto nas experiências empíricas observadas em âmbito internacional.12
Segundo a teoria, “os aumentos de renda da mão-de-obra dependem
basicamente de que se amplie sua produtividade” (SCHULTZ, 1985, p.
101). Entretanto, a profunda assimetria verificada na oferta de trabalho e
no valor dos salários, tanto em âmbito nacional quanto internacional,
entre outras razões estruturais das relações de produção capitalistas, logo
evidenciou a impossibilidade de estabelecer-se a suposta correlação
positiva entre estas variáveis e a inversão em capital humano.
Um caso clássico é a análise das diferenças de condições de trabalho
e de remuneração dos trabalhadores das grandes empresas multinacionais
entre as unidades situadas nos países centrais e as filiais situadas nos
países periféricos. Entre plantas industriais semelhantes é possível admitir
diferenças de produtividade de trabalhadores de cargos homólogos, no
entanto, em hipótese alguma é razoável supor que tais diferenças atinjam
grandezas da ordem de 10 vezes superiores, como são os salários de
metalúrgicos da Volkswagem na Alemanha, comparados aos seus
homólogos nas filiais mexicanas e brasileiras.
Os dois documentos setoriais aqui analisados buscam, portanto,
operar uma atualização das teorizações neoclássicas para a educação,
mediante a proposição de uma nova roupagem da teoria do capital
humano, mantendo, entretanto suas quatro características principais, a
saber: estratégia de subjetivação, desvio interpretativo da realidade,
reducionismo conceitual e mecanicismo econômico. Presentes nos
pressupostos teóricos das propostas da CEPAL e Banco Mundial, estas
características, a rigor, não constituem novidade em relação a
formulações anteriores destes mesmos organismos internacionais. A
teoria do capital humano, formulada sob estes mesmos pressupostos,
constituíra-se, ainda no final da década de 50 e início dos anos 60, como
expressão das necessidades do capital em sua fase monopolista e do
Estado intervencionista. Além de sua atualização, a novidade presente
nos diagnósticos em análise é que neles se insere um novo elemento: a
diretriz educacional da “política de eqüidade” baseada nos conceitos de
“habilidades e competências”.
Pela análise até aqui realizada, verificamos que a atualização mantém
a centralidade da educação – em nível macro e micro-econômico –,
5J "!>IQ &588U'

247
somente que agora matizada por dois novos argumentos: a mudança do
papel do Estado e a incorporação do conhecimento à produção.
No que se refere ao papel do Estado, argumenta-se que a limitação
dos fundos públicos e a liberdade de mercado exigem uma redefinição de
seu âmbito de atuação. No campo educacional recomenda-se a prioridade
da ação estatal às séries iniciais da educação básica, mediante políticas
baseadas na eqüidade. Para além dos níveis iniciais, os indivíduos
deverão ser os próprios responsáveis pelo financiamento de sua
escolarização e desenvolvimento de seu “capital humano”.
Com relação a crescente incorporação do conhecimento à produção,
a qual muitos se referem como uma revolução científica e tecnológica
que determinaria uma nova organização social da produção, o argumento
é que as transformações radicais e ininterruptas demandariam um
processo de qualificação e desenvolvimento contínuo de habilidades e
competências, pelo qual os trabalhadores seriam os responsáveis por
conquistar e garantir cotidianamente a sua condição de empregabilidade.
Assim, a inversão na qualificação, na valorização de seu “capital
humano” tornar-se-ia um imperativo de sobrevivência para os
trabalhadores.

A POLÍTICA EDUCACIONAL REQUERIDA PELA GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL


De nossa crítica às políticas educacionais propostas pelo Banco
Mundial e pela CEPAL, analisadas nos tópicos anteriores, podemos
sintetizar afirmando que a atualização da teoria do capital humano e a
política de eqüidade são os argumentos centrais que dão suporte a
proposição de que a elevação da produtividade do trabalho, obtida pelo
incremento educacional, seria a chave para a conquista do
desenvolvimento econômico e mobilidade social individual nos países
subdesenvolvidos. Desse modo, a elevação da produtividade é
apresentada como um imperativo dos novos tempos, cujos efeitos se
repartiriam igualmente como melhoria para toda a sociedade. O
argumento oferece, por um lado, uma explicação macroeconômica para a
assimetria da ordem econômica mundial e, por outro lado, no âmbito da
análise microeconômica, uma razão para a ocorrência e persistência das
desigualdades sociais. Pela primeira, a produtividade geraria a
competitividade econômica internacional, que se traduziria em

248
crescimento econômico e progresso da nação. Pela segunda, a falta de
disposição para valorizar o seu próprio capital humano, determina que
alguém não seja competitivo e, por essa razão, se explicaria e se
justificaria que se encontrasse em condição de pobreza e nela
permanecesse.
O argumento da incorporação do progresso científico aos processos
produtivos e de seus impactos sobre a composição qualitativa e
quantitativa da força de trabalho constitui um dos paradigmas mais
destacados da economia política da globalização, presente nos
diagnósticos de políticas educacionais analisados. No discurso
hegemônico da globalização a tecnologia assume condição de
protagonista. Não tanto a tecnologia em si mesma, senão a capacidade
ativa e adaptativa à inovação tecnológica radical e veloz é apresentada
como um maxi-valor a ser seguido e cultivado por todos – indivíduos e
Estados nacionais – em um cenário de relações internacionais e
interpessoais em que a competição e a competitividade são quase que
naturalizadas como condição, estágio e qualidade intrínseca das
sociedades humanas. Alegoricamente, a inovação tecnológica seria uma
espécie de novo Prometeu mítico, dotado da capacidade de libertar o
homem do medo e da necessidade. Ao paradigma tecnológico, promotor
de produtividade e competitividade, logo se unem outros fatores
considerados como decorrentes: o desenvolvimento nacional e o sucesso
individual. A tríade conhecimento – inovação tecnológica –
competitividade seria a base sobre a qual se assentariam as mudanças
sociais e econômicas nas sociedades contemporâneas: em uma palavra, a
mudança estrutural seria determinada a partir das mudanças tecnológicas.
O problema central da tese do determinismo tecnológico é produzir
uma identificação natural entre progresso técnico e progresso social. Ao
contrário desta cosmovisão, ponderamos que a mudança tecnológica deva
ser considerada uma relação social e não um fator técnico ou econômico.
Nesse aspecto, é importante perceber que uma sociedade estruturalmente
baseada na exploração da força de trabalho – para o que se utiliza de
muitos elementos, inclusive da produção e controle de meios técnicos13 –
não teria necessariamente uma razão para produzir meios técnicos

5L F ? 0 H!H ,
) &F.GH 58:V
L95'

249
dotados de uma suposta neutralidade ou capacidade “natural” de produzir
a superação das bases estruturadoras dessa mesma sociedade (ZUBERO,
1998, p. 37). Dessa maneira, uma concepção crítica da tecnologia deve
considerar que
B C ) ,
T ,
) - 1

) &F.G*%"
Y%( G6 588V L:'
Ao contrário das perspectivas oferecidas pelos diagnósticos dos
organismos internacionais, a análise teórica e empírica revela que a
difusão mundial das inovações tecnológicas e de seus impactos sobre os
aspectos qualitativos e quantitativos da ocupação da força de trabalho
apresenta tendência profundamente assimétrica. Ao contrário de um
caminho “neutro” ou “natural”, o “progresso tecnológico” não determina
necessariamente um suposto “progresso social” correspondente, mas sim,
está condicionado pela divisão social, técnica e internacional do trabalho
e pelas relações contraditórias de poder e propriedade que caracterizam as
relações capitalistas de produção em sua dinâmica mundial centralizada e
hierarquizada centro-periferia.
De acordo com tal lógica, os organismos internacionais concluem
que seria “razoável” que as políticas educacionais recomendadas aos
países de baixa renda, estivessem em conformidade com as tendências
apontadas acima para a ocupação da força de trabalho desses países, em
particular, da América Latina e Caribe. Uma vez que tais tendências,
mantidas as relações hierárquicas centro – periferia e a distribuição
desigual da produção, apontam para a redução do percentual de postos de
trabalho qualificados e para o crescimento percentual da população
desempregada, seria “razoável”, sempre na lógica do capital, que as
políticas educacionais financiadas pelos bancos e organismos
internacionais apontem a prioridade para a educação básica restrita às
séries iniciais, em que a aquisição dos chamados códigos culturais da
modernidade constitui o instrumental educacional suficiente e necessário
aos postos de trabalho não-qualificados. Uma vez que se prevê o
crescimento de população desempregada, o alívio da pobreza, feito, entre
outros, mediante a aplicação de políticas compensatórias de

250
“capacitação” mínima da força de trabalho, parece ser uma política
“razoável” para que esses excluídos tratem de conseguir sua
sobrevivência de algum modo.
Por conseguinte, as propostas educacionais oferecidas pelos
organismos internacionais procuram operar a regulação social da força de
trabalho sob os interesses e necessidades do capital. Cabe, portanto,
considerar que do ponto de vista individual ou moral, a exclusão social é
uma questão de escassa ou nenhuma importância para o capital. No
entanto, a determinação da funcionalidade da força de trabalho dos países
subdesenvolvidos no sistema econômico mundial assume complexidade
quando enfocada no nível sistêmico ou coletivo, pois, a existência do
exército industrial de reserva cumpre, por um lado, o papel histórico de
exercer uma pressão constante para rebaixar o valor da força de trabalho,
ou seja, funciona como um mecanismo de controle da taxa de mais-valia;
por outro lado, representa uma reserva para o capital ante as oscilações
conjunturais do sistema. Assim, o tamanho e a qualidade do exército
industrial de reserva devem ser convenientemente regulados, de modo
que sejam suficientemente grandes e de baixa qualificação para não afetar
a taxa de lucro do capital, e suficientemente pequenos e de elevada
qualificação para não pôr em risco a estabilidade política e a coesão
social e necessidades técnicas do sistema.
Em conclusão, a razão instrumental que preside os diagnósticos dos
organismos internacionais e que orienta os processos de reforma da
educação, da formação profissional e das relações de trabalho em curso
na América Latina e Caribe parece não ter sua fonte em uma suposta
astúcia malévola dos intelectuais coletivos do capital internacional, ou
nas elites dominantes dos Estados nacionais, senão na articulação de tais
interesses à própria lógica de reprodução e acumulação do capital e às
necessidades que a ela se apresentam na atual fase em que as relações
sociais capitalistas buscam estender sua teia de dominação sobre amplas
atividades da vida social.

REFERÊNCIAS:
1. BANCO MUNDIAL. Prioridades y estrategias para la educación.
Estudio sectorial del Banco Mundial. Washington., 1995.

251
2. BRASIL. Leis, Decretos. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, v.
134, n. 248, p. 27833-27841, 23.dez.1996. Seção I. Estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional.
3. BRASIL. Leis, Decretos. Decreto n. 2.208, de 17 de abril de 1997.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, v.
135, n. 74, p. 7760-7761, 18 abr. 1997a. Seção I. Regulamenta o
parágrafo 2 do art. 36 e os art. 30 a 42 da Lei
n. 9.394 de 20.12.1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional.
4. BRASIL. MTb/SEFOR. Educação profissional: um projeto para o
desenvolvimento sustentado. Brasília, 1995.
5. CAMPOS, R., LIMA FILHO, D., SHIROMA, E. Reflexões sobre a
arquitetura dos documentos dos organismos multilaterais. In: 22a.
Reunião Anual da ANPEd, 1999, Caxambu. Diversidade e
Desigualdade: Desafios para a Educação na Fronteira do Século –
Anais da 22a. Reunião Anual da ANPEd, 1999.
6. CANCLINI, N. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair
da modernidade. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo,
1998.
7. CEPAL/UNESCO. Educação e Conhecimento: eixo da
transformação produtiva com eqüidade. Brasília,
IPEA/CEPAL/INEP, 1995.
8. CEPAL/UNESCO. Educación y conocimiento: eje de la
transformación productiva con equidad. Santiago de Chile, 1992.
9. CHOMSKY, N., DIETERICH, H. A sociedade global: educação,
mercado e democracia. Blumenau, Ed. da FURB, 1999.
10. CORRAGIO, J. Propostas do Banco Mundial para a educação: sentido
oculto ou problemas de concepção. In: TOMMASI, L., WARDE, M.
e HADDAD, S. (orgs). O Banco Mundial e as Políticas
Educacionais. São Paulo, Cortez, 1996, p. 75 - 123.
11. FUKUYAMA, F. El fin de la historia y el último hombre.
Barcelona, Planeta, 1992.

252
12. GAUDIN, T. (comp.), 2100: récit du prochain siécle, Paris, Edition
Payot, 1990.
13. GENTILI, P. O discurso da qualidade como a nova retórica
conservadora no campo educacional. In: SILVA, T.T. (org.)
Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação. Petrópolis, Vozes,
1994.
14. GORZ, A. Métamorphose du travail, Paris, Editions Galilée, 1988.
15. IANNI, O. Neoliberalismo e neosocialismo. Campinas, IFCH /
UNICAMP, 1996.
16. JAMESON, F. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo
tardio. São Paulo, Ática, 1997.
17. MARCUSE, H. La angustia de Prometeo: 25 tesis sobre técnica y
sociedad. Revista El viejo topo, n. 37, 1979, p. 43.
18. MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. l. 1, v. 1, São
Paulo, Difel, 1978.
19. NAISBITT, J. e ABURDENE, P. Megatendencias 2000. Bogotá,
Edit. Norma, 1990.
20. REICH, R. B. The Work of Nations. Nova Iorque, Alfred A. Knopf,
1991.
21. SCHULTZ, T. O valor econômico da educação. Rio de Janeiro,
Zahar, 1962.
22. SINGH, A. Transformación económica mundial, calificaciones
profesionales y competitividad. Revista Internacional del Trabajo, V.
113, N. 2, 1994, p. 189-208.
23. SMITH, A. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e
suas causas. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
24. TOFFLER, A. El cambio del poder. Barcelona, Plaza y Janés
Editores, 1990.
25. UNESCO. Educação: Um tesouro a descobrir. Relatório para a
UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século
XXI. São Paulo, Cortez, 1999.

253
26. ZUBERO, I. El trabajo en la sociedad. Manual para una Sociología
del trabajo. Bilbao, Universidad del País Vasco, 1998.

254
JUVENTUDE, TRABALHO E EDUCAÇÃO:
"paradoxos" do ideário da qualificação profissional

*
) * %& / 0
**
12

Neste artigo, rediscutimos algumas questões que, candentes, foram


objetos de análise das pesquisas realizadas por Chilante (2005) e Araújo
(2009). No primeiro caso, Chilante debruçou-se sobre a promessa de
reparação, equalização e qualificação para jovens e adultos pouco
escolarizados por meio de cursos de educação de jovens e adultos- EJA
ou exames supletivos. No segundo caso, Araújo (2009) procurou
compreender os novos significados sociais que emergiram do processo de
re-estruturação produtiva, a partir dos anos 1990, em uma empresa
montadora situada na região do ABC e o surgimento do chamado
jovem/adulto flexível1, subsumido no discurso da elevação da
escolaridade, da capacitação e da “empregabilidade2”.
Com isso pretendemos, numa perspectiva analítica que reponha
alguns aspectos dessa realidade social contemporânea e contraditória,

E ) %>!*.F E )
% ,4* 02#.#! .
**
E " %> " 2* . E Q
% ,4* 02#.#! .
5 + @ .(* 588; 6
, - ?0 N = A 5K LK
0 ) "
) ) )
) )
- , 2 )
= A
?0
2
6 -
) ?0 * - 2 ,
S , ? 16+
F + F &F ) + ' ^
0
) + - , & '
) 0 & '&.G.t^6 J;;8
5K9'

255
demonstrar que, apesar de tratar-se de realidades aparentemente distintas,
as causas da iniciativa que “incentiva e motiva” o ato de estudar
recolocam, de forma mais intensa, alguns dos elementos que permeiam a
imediaticidade da vida cotidiana, acentuando, com isso, as múltiplas
formas de estranhamentos que, peculiares a nossa contemporaneidade,
recolocam, ao mesmo tempo, novos elementos necessários à
compreensão da ontológica relação capital-trabalho (HELLER, 1981).
É por isso que, ao abordarmos essas duas realidades “distintas”,
teremos a possibilidade de demonstrar que as questões relacionadas ao
ensino e à qualificação profissional, ressurgem e revigoram o discurso em
torno da necessidade de elevarmos a qualificação dos trabalhadores,
oferecendo-lhes educação de qualidade, condição sine-qua-nom para
ingressarem no mercado de trabalho cada vez mais competitivo.
Dessa forma, temos que, em nossa contemporaneidade, mais
especificamente no Brasil a partir de 1990, como parte das inúmeras
mudanças impulsionadas pela emergência do processo de re-estruturação
produtiva e seu novo corolário flexível, assistimos no campo das Ciências
Humanas a difusão de teses que salientam a relevância dos temas trabalho
e educação. Contudo, mais que uma espécie de aproximação/fusão
vocabular, as questões relacionadas ao binômio trabalho-educação
parecem traduzir um novo significado “semântico-social” peculiar à
necessidade de realização da acumulação/valorização de capital em face
da mundialização.
É nesse contexto, portanto, que devemos situar as novas contradições
sociais que envolvem as questões do ensino e da qualificação
profissional, das promessas ou expectativas geradas em diferentes
segmentos do proletariado, sejam aqueles que procuram se empregar,
setores que lutam para permanecer empregados, ou ainda, extratos
minoritários com garantias trabalhistas e que sofrem novo e intenso
processo de emulação como parte das pressões subsumidas no conceito
de empregabilidade.
Ou seja, questões relacionadas ao tema trabalho-educação devem ser
analisadas à luz dessa nova realidade social que, calcada na disseminação
das estratégias flexíveis de trabalho, reduz a educação propriamente dita à
forma útil/instrumental, sem dar respostas – e não poderia ser de outra
maneira – aos “paradoxos” que, aparentemente novos, expressam o teor

256
das contradições de uma sociedade fundada em classes sociais
antagônicas e cujas Pedagogias Educacionais contemporâneas, a rigor,
procuram não só validar, mas resguardar, reproduzindo/expandindo os
pilares dessa sua essência fundante3.
Concomitante à propagação da necessidade da escolarização,
encontramos segmentos de jovens e adultos com pouca ou nenhuma
escolarização. Esse universo é composto por uma população que se
caracteriza basicamente por trabalhadores vindos das áreas rurais para as
grandes cidades em busca de uma oportunidade de emprego ou, ainda, os
filhos dos trabalhadores não-qualificados com uma passagem curta e não-
sistemática pela escola. Esses jovens e adultos, em sua maioria, trabalham
em ocupações urbanas não-qualificadas e buscam a escola tardiamente
para alfabetizar-se ou concluir o ensino fundamental e médio nas turmas
de Educação de Jovens e Adultos.
Não obstante os esforços de correção idade/série escolar e os
incentivos à permanência das crianças na escola, as estatísticas
educacionais no Brasil apontam que o grau de analfabetismo da
população brasileira (pessoas com 15 anos ou mais que não sabem ler
nem escrever um simples bilhete) ainda se encontrava em torno de 10%
em 2007. Devemos considerar que a manutenção do número de
analfabetos no país nesse patamar elevado também está relacionada ao
insucesso escolar de crianças e adolescentes no ensino fundamental. De
acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), do IBGE, realizada em 2005, 38,7% das pessoas analfabetas,
com 15 anos de idade ou mais, já frequentaram a escola. Em 2007 esta
proporção elevou-se para 44,8% (CASTRO; AQUINO; ANDRADE,
2009).
A problemática da repetência, da reprovação e da evasão corrobora
para completar o quadro sócio educacional seletivo que continua a
reproduzir excluídos do ensino fundamental e médio, mantendo
adolescentes, jovens e adultos sem escolaridade obrigatória completa.
Diga-se de passagem, escolaridade outrora propalada como exigência
mínima pelos defensores da lógica do mercado.

3
g E &5889' F &J;;L'

257
Daí decorre que, no principal documento que orienta as ações do
EJA no Brasil, o Parecer CEB 11/2000, ao estabelecer as Diretrizes
Curriculares Nacionais para essa modalidade da educação, explicita-se
que cabe à Educação de Jovens e Adultos, o antigo “Ensino Supletivo”,
fazer a reparação dessa realidade, recuperando, de forma irrestrita, o
princípio da igualdade. A ideia é que a EJA garantiria uma “reparação
corretiva, ainda que tardia, de estruturas arcaicas, possibilitando aos
indivíduos novas inserções no mundo do trabalho, na vida social, nos
espaços da estética e na abertura dos canais de participação” (BRASIL,
2000).
A alfabetização, a aquisição da leitura e escrita e a certificação das
etapas fundamental e média, portanto, constituir-se-iam em meios de
inclusão social e a reparação de uma dívida histórica para com a classe
trabalhadora. A escolarização se tornaria, então, a chave de acesso para
aqueles que procuram empregar-se.
Argumenta-se, no Parecer 11/2000, que a EJA constitui-se em uma
oportunidade de atender à atual exigência das competências requeridas
pela vida cidadã e do mercado de trabalho. Enfatiza-se que a existência
do desemprego, do subemprego, do desemprego estrutural e do trabalho
informal, decorrente de mudanças nos atuais processos de produção, pode
gerar instabilidade para os indivíduos, sobretudo, aos assalariados
desprovidos da leitura e da escrita.
O discurso da inserção no mercado de trabalho via escolarização tem
sido a motivação que leva os jovens e os adultos analfabetos ou pouco
escolarizados a buscar a conclusão dos estudos nas etapas fundamental e
média. Se a exclusão do mercado de trabalho é fruto do despreparo do
indivíduo, a solução apresenta-se via retomada dos estudos para jovens e
adultos que não concluíram o ensino fundamental e médio em idade
considerada apropriada.
Neste caso, quando voltamos nosso foco para os segmentos do
proletariado menos escolarizado/qualificado, é que ganham pertinência as
conclusões da pesquisa empírica realizada por Zago (2000, p. 24). A
autora demonstra que a volta à escola se apresenta como requisito básico
para se responder às exigências do mercado de trabalho e, sobretudo,
como “possibilidade de romper com as condições de pobreza familiar”.
Eis aqui a manifestação de uma das facetas que expressa a redução da

258
educação à natureza útil/instrumental: o ato de “educar” restrito à
perspectiva de propiciar condições para a satisfação das necessidades
mais elementares do indivíduo: comer, vestir-se, morar, etc.
A autora citada logo acima nos demonstra que as famílias das
camadas populares valorizam a instrução escolar ancoradas em dois
aspectos: o primeiro vê a escola como propiciadora dos domínios dos
saberes fundamentais e integração ao mercado de trabalho, e, no segundo,
a escola se apresenta como espaço de socialização e proteção dos filhos
do contato com a rua e as drogas.
Não obstante, eis que surge um novo “paradoxo”, pois a mesma
pesquisa revela que, embora haja o reconhecimento da família e do
jovem/adulto da “valorização pró-escola”, há clara percepção dos “limites
impostos pelas condições materiais objetivas” que obriga a uma opção
pelo trabalho em detrimento da vida escolar (ZAGO, 2000, p. 30). Assim,
B C ? -
T
-
,
>

- )
&Y.I6 J;;; J:'
Tomados pela ideia de que a retomada dos estudos é capaz de
garantir um lugar no disputado mercado de trabalho formal, muitos
jovens, ainda de acordo com a pesquisa de Zago (2000), voltam à escola
com preocupação maior em relação à obtenção do diploma do que com a
absorção do conhecimento socialmente produzido. Trata-se de
comportamentos reveladores do cotidiano que, “miseravelmente” cindido
(HELLER, 1989), direciona as iniciativas desse segmento do proletariado
às contingências reprodutoras da lógica societária do capital.
Por outro lado, como tendência, aqueles que não conseguiram um
certificado transferem para si a responsabilidade pelo fracasso escolar.
Percebem-se como sendo os principais responsáveis pela sua baixa
escolarização e, quanto à insuficiência dos resultados obtidos, os
atribuem principalmente às características individuais como
“incompetência” e “desinteresse”.

259
Ainda sobre essa população menos escolarizada-qualificada, temos
que Saes (2004), analisando a pesquisa de Zago (2000), salienta que para
os trabalhadores manuais a instrução rudimentar (ler, escrever e contar)
torna-se importante para o acesso ao mercado de trabalho. Contudo,
aponta que o cálculo da renda familiar perdida com a manutenção dos
filhos na escola faz com que muitos pais trabalhadores relativizem a
importância da conclusão do ensino fundamental, assumindo uma posição
fatalista ao verem seus filhos de 12, 13 e 14 anos ingressarem no mercado
de trabalho informal ou eventual, abandonando a escola.
Para esse autor, as classes populares sabem que somente uma parcela
muito pequena dos trabalhadores manuais com formação profissional
ampla é absorvida pelo mercado de trabalho, e explicita:
> , ,
= A = ) AD
N

= A
&". " J;;U :U :K'
Ainda que Saes (2004) corretamente indique certa “desconfiança”
quanto ao apelo para que todos obtenham uma formação polivalente, as
exigências do cotidiano contribuem para que os diferentes segmentos do
proletariado, refém do discurso hegemônico, incorporem a percepção de
que somente por meio da escola é possível a inserção profissional e a
melhoria das condições de vida. Talvez essa seja a razão, conforme temos
salientado, que contribui para o fato de que, quando esses jovens
abandonam a escola, creditam nas suas características pessoais a
responsabilidade pelo seu fracasso escolar e profissional.
Percebemos, nessa premissa, um incentivo à competição,
corroborando a intensificação da fragmentação social, na medida em que
a ideia difundida é a de que cada um deve buscar a superioridade sobre os
demais por meio da luta isolada por seus interesses e necessidades
(RUMMERT, 2000).
De forma correlata, tais concepções/comportamentos ancoram-se na
ideia-força que associa acréscimo marginal de instrução, treinamento e
educação como potencial acréscimo de capacidade de produção. Noutras
palavras, de capital humano, indicativo de determinado volume de

260
conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridos capazes de potencializar
a produção (FRIGOTTO, 1996).
Esse é o sentido do termo empregabilidade que revigora a ideia de
que investir no capital humano torna-se rentável, tanto para as nações
quanto para os indivíduos. Quem seriam então os incluídos? Os incluídos
seriam aqueles que têm acesso aos bens materiais e culturais produzidos
pela sociedade e disponíveis no mercado.
Assim, os que não têm emprego, os alijados do processo produtivo
seriam os excluídos da sociedade. Percebemos aqui um contrassenso: a
inclusão seria dada via escola, enquanto a exclusão se completaria via
mercado. Revela-se, de forma revigorada, portanto, a percepção de que a
inclusão escolar é a única possível no capitalismo, posto que a realização
da cidadania requer um tipo de indivíduo cujo perfil social combine
participação ativa no processo produtivo, condição elementar para que
possa consumir os diferentes produtos disponíveis no mercado.
Trata-se de aspecto que Ramos (2003, p. 22) aponta como paradoxal,
pois os processos da educação para a cidadania e para o trabalho se
confundem “justamente no momento em que a redução do mercado de
trabalho formal revela toda a sua incapacidade em absorver a totalidade
da força de trabalho disponível”.
Sendo assim, a ideia da chamada inclusão social via escola se baseia
em um reducionismo, não se sustenta empiricamente, pois a escolarização
na atual fase do desenvolvimento capitalista tem sido utilizada para se
justificar a seletividade no mercado do trabalho (DEL PINO, 2001), já
que não há lugar para todos.
Todavia, o drama decorrente das contradições sociais
contemporâneas relacionadas às questões do trabalho-educação não se
esgotam nesse segmento intensamente precarizado do proletariado. Basta
considerarmos a situação daqueles que se situam em condições salariais e
de trabalho com maiores garantias (“direitos”). É o caso dos operários
metalúrgicos do ABC paulista, vinculados às indústrias montadoras e
cuja inserção no trabalho revela algumas das facetas dos novos
“paradoxos” sociais.
Para efeito comparativo, na tentativa de tornar compreensível alguns
dos “paradoxos” da realidade social contemporânea aqui assinalada,

261
procurando recompor sua totalidade contraditória, é que nos reportaremos
a esse segmento do proletariado. De plano, com base nos dados empíricos
coletados na pesquisa de campo4 (de 2006 a 2008), notamos como é
reveladora do processo e do teor das mudanças a melhora no nível de
escolaridade encontrado antes e após 14 anos do início do processo de re-
estruturação em uma importante da fábrica montadora localizada no
ABC.
No ano de 1989, aproximadamente 72,63% dos trabalhadores5,
incluindo os vinculados à área administrativa, teriam até oito anos de
estudos relacionados ao ensino formal. No mesmo ano de 1989, um
reduzido contingente de 14,98% dos operários havia frequentado alguma
instituição de ensino formal por até 11 anos, o equivalente ao ensino
médio completo/incompleto de hoje. Tendo como referência o quesito
escolaridade, estaríamos, portanto, diante de uma fábrica de clássica
composição taylorista/fordista, em que a baixa escolaridade dos
funcionários produtivos diretos, em geral, era compensada pelos cursos
profissionalizantes geralmente oferecidos por instituições como o Senai
ou escolas técnicas particulares, estaduais ou federais (RODRIGUES,
1970).
Em sintonia com o processo de re-estruturação produtiva, diminuiu-
se o quantum de operários com até oito anos de estudos no ensino formal,
de 72,63% para 24,79% e aumentou-se, por outro lado, de 14,98% para
46,74% o daqueles com até 11 anos de frequência escolar. Os com
formação superior saltaram de 12,38% para 28,45%, mais que dobrando
em relação aos índices de 1989.
Da mesma forma, a pesquisa demonstra, com base nos dados
disponíveis em 2004, que a re-estruturação produtiva forçou tanto aqueles
que permaneceram quanto os que ingressaram na fábrica no decorrer do
processo de re-estruturação a frequentarem, por um período bem maior,
instituições de ensino regular com vista à obtenção de diplomas do ensino
médio ou superior, diminuindo drasticamente para 24,79%, portanto para
menos de ¼, o número daqueles com até oito anos de estudo.

U . @- &J;;8'
K6 0 ? 0 ) G "
58V8 J;;U . @- &J;;8'

262
Além da irrefutável elevação da escolarização, para melhor definição
do perfil social desse novo segmento operário, recorreremos às
informações trazidas por Iram Rodrigues (2005) quando da sua pesquisa
sobre o perfil socioeconômico dos jovens metalúrgicos com até 29 anos
de idade, empregados nas indústrias montadoras localizadas na região do
ABC paulista.
De imediato, os números são indicativos do quanto esse segmento
metalúrgico, incluindo-se os operários antigos, possui excepcional poder
de compra, possibilidade ímpar de aquisição de diferentes bens de
consumo, inclusive os bens de consumo duráveis, como o automóvel
(93%), ou ainda serviços como telefone fixo (99%), computador (66%) e
internet (55%). Os dados referentes ao setor de serviços não só
despontam, mas também, são elucidativos do poder de compra do
segmento jovem-adulto flexível.
Vemos, então, que o acesso aos bens de consumo e serviços
geralmente restritos a determinados segmentos da população revela que
esse segmento operário é portador de um modo de vida que é típico de
setores que compõem a classe média. Essa posição/possibilidade do
jovem-adulto flexível também se explica pela sua condição salarial,
deveras bem acima da média verificada no setor metalúrgico, ou mesmo,
em outras empresas montadoras de diferentes regiões do país.
O Boletim Eletrônico de 10/07/2008, da Confederação Nacional dos
Metalúrgicos da CUT – CNMCUT, por exemplo, informava:
=. -
U ) B C ,
@ UU )
S 0 LK B C
@ "
( * " Gu L 9:U :U -
U; , 2 Gu J; 8: ^,
? ) * I6
, Gu 5 ;L5 8J & JV L_
, .(*D ) :;_'
- UU , 2 Gu K L8
B C S
) )
0 &55 K_' .(* ,
Gu J :JL VV *

263
Gu J U5; U5 ,
@ .(* UU ;K_
5J8 VV
UU9 V8
JLL KV_ , A& ) E
*>F2*%+'9 B C
Oras, como explicar então as agruras desse segmento do proletariado
que, mesmo dotado de escolarização-qualificação, de garantias
trabalhistas, salário acima da média nacional, organização sindical com
reconhecido poder de mobilização, tal qual o são os metalúrgicos das
montadoras situadas no ABC paulista, tenham que persistentemente lutar
contra a eterna possibilidade de fracasso?
Neste caso, através de nossa pesquisa, foi possível observarmos que,
como estratégia do processo de re-estruturação, a empresa analisada
exigiu que todos se qualificassem, pois, de acordo com os diferentes
boletins internos, a empresa difundia a tese de que aquele que se
qualificasse não só tenderia a manter-se no emprego, mas visualizaria a
possibilidade de ascensão profissional.
Com base nas visitas de campo entre novembro de 2007 e fevereiro
de 2008 e nos contatos quase diários dentro e fora da fábrica e ainda nos
depoimentos coletados, tivemos a oportunidade de observar as
consequências pessoais/sociais desse processo. Na verdade, esse
segmento, em sua quase totalidade, elabora um “plano de vida” cujas
prioridades são determinadas pela “pressão social” de se construir uma
trajetória profissional satisfatória.
Dessa forma, premidos pelas contingências - como a necessidade de
se manter no emprego -, suas iniciativas se identificam tão-somente com
as necessidades de encontrar respostas aos dilemas apresentados pelo
contexto fabril, os quais, espraiando-se, intercruzam (re) definindo as

9 I # &J;;:' 5;;
J;;5 @ 0 -, (
- 588; 0 J;;;
? 1 "(*2" * " &5;;' " ^ * &89 V' * &:L 5' "
&KK 9' * ? " &KL V' ! &KL ;' ( &UV 9' " ^ &U: :' G 2 G &UL ;'
^ # &U5 V' " * &U5 U' I 0 &U5 5' * ) &L; U' " &JJ V' &# J;;:15;8
55;'

264
diferentes situações do seu modo de “vida just-in-time”: vida “móvel”,
vida em “trânsito”, motivada e repleta de atitudes que, ao fim, revertem-
se em prol do capital, seja no interior ou fora da fábrica.
Contudo, evitando incorrer nos equívocos das interpretações
moralistas, parece-nos oportuno salientar que esse processo social revela
os sentidos e as particularidades das ações dos indivíduos ou grupos que
agem premidos pela dimensão objetiva imposta pelo cotidiano alienado,
como nos mostra Agnes Heller:
B C - 0 @
? - F -
-

"

- 0 N &Q $$ G 5888
5U'
Do contexto fabril, espraiando-se para a vida social, as novas formas
de emulação representam, tal qual salienta Dejours (2000), as exigências
da produtividade. Refletem de modo contundente práticas de adesão
“voluntária” às inúmeras estratégias da “guerra sã”, que, fundamentada
na inquestionável necessidade de se preparar para o acirramento da
competitividade, impõe que se aceitem as inconveniências decorrentes
das circunstâncias dadas7.
Nesse caso, o modo de vida da força de trabalho é definido pelas
exigências dessa “guerra sem trégua”, que induz a certos
comportamentos, a um “estilo” de vida que, mesmo fora da fábrica, deve
coadunar-se à lógica-necessidade do capital, na medida em que “fazer a
guerra não tem por objetivo unicamente defender a própria segurança e
7
= A
+ ) ?
< > &J;;K' 1 =6
,
0 = A )
= 0 A S = 0 A
? )S D
0 ) - B C
= ) A ?
@
& !>.""! J;;K K8'

265
sobreviver à tormenta [...] consiste em polir as armas de uma
competitividade que lhes permite vencer o concorrente” (DEJOURS,
2000, p. 14).
Essa ideologia da “necessidade” exaustivamente difundida, quando
incorporada pelo conjunto do proletariado após a disseminação das
estratégias do trabalho flexível, porém, de modo mais específico no
segmento jovem-adulto flexível, mobiliza-o de tal forma que sua vida fora
do trabalho praticamente inexiste enquanto tempo “seu”, uma vez que as
determinações cotidianas conformam-se enquanto um continuum e
indissociável tempo de trabalho que lhe ocupa a cabeça, atormenta-o,
domina-o integralmente.
Se entre o segmento jovem-adulto flexível encontramos operários
qualificados com diferentes cursos realizados no SENAI, cursos de
idiomas ou curso superior, para esses trabalhadores as exigências da
empresa quanto à qualificação e escolarização implicaram que esses
trabalhadores dedicassem aproximadamente 14 anos da sua vida
adolescente-juvenil quase que exclusivamente às exigências do trabalho.
Se considerarmos que o ingresso no Senai acontece entre os 14 e 15 anos
de idade, mais a escola técnica cursada quando do término dessa primeira
fase de conhecimento profissional e que a formação superior logo em
seguida, temos que sua vida é uma espécie de moto-continuun sempre
determinado pelo trabalho.
Ou seja, se com a imposição do “modo de vida just-in-time” o
capital procura desfazer-se da figura do “gorila domesticado” fordista,
como consequência, vemos emergir o operário “autômato flexível” que,
desde a adolescência, deve reservar de 10 a 12 h do seu dia para se
dedicar, quase que exclusivamente, aos estudos. Nesse caso, a pesquisa
de Iram Rodrigues (2005), que indica uma maioria de jovens operários
solteiros, ganha maior significado quando associada ao modo de vida
desse segmento, às novas relações sociais e de exploração sob a égide do
trabalho flexível.
Do que aqui foi exposto, notamos uma clara indefinição da separação
entre tempo de vida pessoal e tempo de trabalho. Ao contrário, temos que
o cotidiano para além da fábrica praticamente se constitui como tempo
voltado à luta pela permanência no mercado de trabalho formal.

266
De forma a contribuir para a elucidação do que temos salientado até
aqui, são relevantes as informações contidas no depoimento do médico
responsável pelo depto. de Medicina do Trabalho, Segurança e
Ergonomia do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, quando nos informa:
Q - - @
" , , )
D , f X
, 1=
Av
1= * , a

A 6 1 "

U1;; K1;;
a , ) 91;; 5K1;;
5K1L; , N 5:1;; ,
5V1L; < - 0
JL1L; JU1;;
, , ,

0 B C
- .
,
0 , N
= A ?
, )

0 B C
Percebe-se, portanto, a presença do conteúdo ideológico subsumido
nas práticas que configuram o trabalho flexível que, ao expandir-se para
além da fábrica, procura construir o envolvimento/comprometimento do
proletariado com a lógica do capital. Trata-se de um processo social
capaz de abarcar a totalidade da força de trabalho na medida em que
emula/mobiliza sua quase totalidade, dos mais aos menos
escolarizados/qualificados.
Neste caso, as práticas e concepções de educação, atrelada à ideia de
qualificação profissional, correspondem, inclusive, sob alguns aspectos, à
“funcionalidade” necessária à reprodução da ordem social do capital, que,

267
procurando construir um consentimento social e extrapolando o universo
fabril, seja capaz de envolver e mobilizar os operários/colaboradores, a
comunidade, a região ou a cidade e o poder público, em prol dos seus
objetivos.
Ou seja, assimilando o conteúdo pedagógico presente na tese do
saber “aprender - a – aprender” (DUARTE, 2003), revela-se, de forma
nítida, a incorporação dos princípios do trabalho flexível, expandindo-se
para além do universo da fábrica, sendo aceita, inclusive, pelos
segmentos precarizados do proletariado. Este parece ser o significado
social do gesto, da “motivação” que os lançam na busca permanente de
elevação da escolaridade.
Como consequência, é possível inferirmos que o final do século XX
e início do século XXI possuem como característica a ruptura crescente
da proteção ao trabalho com o aumento dos “trabalhadores sobrantes”,
que se tornam dependentes dos “programas emergenciais de alívio à
pobreza, da filantropia e da caridade social”. A emergência de teses de
que estamos vivendo na “sociedade do conhecimento”, sociedade do
entretenimento, do lúdico com o fim do trabalho ou o tempo liberado
dissimula a realidade de que o tempo livre não é tempo de prazer, mas
“tempo torturado de precariedade – existência provisória sem prazo”
(FRIGOTTO, 2004, p. 13).
Frigotto (2004), ao discutir a questão da cidadania e a formação
profissional como desafios para o fim do século XX, chama a atenção
para o processo que ele denomina “exclusão sem culpa”. Explicita o
referido autor que a desigualdade existente na sociedade capitalista não se
explica pelas relações sociais de classe, de violência e de exclusão,
intrínsecas ao modo de produção capitalista, mas pela vontade e
comportamento individual. No discurso burguês, o livre-mercado
constitui-se como o lócus onde vontades livres e supostamente iguais por
natureza oferecem os seus serviços à sociedade ao mesmo tempo em que
satisfazem suas necessidades.
Nesse período de desemprego estrutural, a confrontação entre a força
de trabalho e o capital intensifica-se. Ideias surgem para amenizar esse
embate, tornando-se conceitos que procuram dar conta das diferenças
inconciliáveis entre os interesses do capital e do trabalho.

268
Como parte desse processo, a educação é chamada a cumprir o seu
papel histórico de formação do homem para a sociedade, colocando-se
como redentora, mediante a promessa de mudança situacional do
indivíduo isolado e, ao mesmo tempo, vista como incapaz de resolver
essas questões, devido aos altos índices de evasão e repetência, que
indicam, de acordo com os padrões de qualidade total, a necessidade de
revermos a forma de administração e o conteúdo escolar.
Quanto ao valor simbólico da educação escolar, Saes (2004)
explicita sua reduzida importância para boa parte dos grupos sociais
característicos da sociedade capitalista. Contudo, a ideia de que a
educação escolar é essencial para o desenvolvimento da sociedade é
utilizada para se justificar fracassos em outros domínios da política do
Estado, por exemplo: crescimento econômico, emprego, distribuição de
renda, saúde, entre outros, servindo ao individualismo típico de um
liberalismo reinventado.
Para as classes média e popular a ideia recorrente é a de que a posse
do certificado poderá garantir-lhes as condições de empregabilidade. Tal
ideia tem contribuído para o surgimento de cursos aligeirados de
formação profissional em substituição à escolarização básica ou à
certificação formal das etapas fundamental e média, por meio de cursos
supletivos que não conferem rigor e seriedade à formação de jovens e de
adultos.
O proletariado, refém das exigências da sua reprodução enquanto
força de trabalho, ao reduzir o conhecimento/educação à condição de
instrumento para a valorização do capital, não só acentua sua forma de
vida alienante, mas define novos contornos que reafirmam sua eterna
irrealização expressa num modo de “vida” carente de significados,
negadora do homem enquanto humano-genérico. Tal qual salientamos
anteriormente, um contingente expressivo do proletariado tem sua vida
reduzida à busca pela satisfação das suas necessidades mais elementares.
Temos, então, que o indivíduo da nossa cotidianidade é aquele cuja
existência se apresenta de forma cindida, na qual o sentido da vida em
toda sua plenitude se encontra negado, uma vez que se subordina à
moderna divisão do trabalho. Seu principal traço, em nossa
contemporaneidade, pode ser definido pela nova segmentação do

269
proletariado após a disseminação do trabalho flexível, da recriação
intensa das formas de precarização do trabalho (Antunes, 2005).
Nesse caso, o cotidiano se apresenta como o momento em que o
sentido da existência humana vê-se negado, posto que se encontra
subordinado à lógica da acumulação. Retomando Heller (1989), temos
que:
. B C
D -

> = A

?S 6

D
), &Q $$ G 58V8 5: 5V'
Conforme temos procurado indicar, com base na análise de Agnes
Heller (1989), vemos que a imediaticidade exerce em nosso cotidiano
papel fundamental e é a expressão de uma força social (do capital) capaz
de nos fazer mover, ainda que no sentido de encontrar “solução” para
problemas contingentes relacionados à realidade objetiva.
Com isso, à época do trabalho flexível contemporâneo, em que
pesem suas particularidades recentes, não se rompe, mas ao contrário se
reafirma em outros moldes a essência alienante historicamente calcada na
cisão entre produtores/produto, no constante aumento da produtividade,
na retenção concentrada da riqueza social sob o auspício das novas
técnicas de gestão de pessoal.
Vemos, pois, que, em nossa cotidianidade, dinâmica calcada na
imediaticidade desse turbilhão fetichizante/alienante, encontram-se
submetidos a esse processo tanto o metalúrgico jovem-adulto flexível,
bem como os segmentos precarizados, menos escolarizados/qualificados
do proletariado. Ambos, de certa forma, veem-se completamente
submersos nesta tendência à fragilização dos laços de solidariedade entre
segmentos, grupos, parcelas ou classes como um todo.

270
Suas agruras expressam, assim, e de forma acentuada, os novos
significados das manifestações da vida cotidiana alienada, reveladora de
um novo conteúdo “axiológico objetivo”, que atua como força capaz de
reduzir parte significativa da força de trabalho à condição de “rejeito
humano”, uma vez que a consolidação dos paradigmas técnico-
organizacionais do trabalho flexível implica também tornar descartáveis
contingentes expressivos do proletariado, tal qual o são os bens de
consumo.

REFERÊNCIAS:
1. ANTUNES, Ricardo. O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova
morfologia do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2005.
2. ARAÚJO. Renan. O modo de vida just - in - time do novo perfil
metalúrgico jovem-adulto flexível do ABC: antigos dilemas, novas
contradições e possibilidades. Tese Doutorado – Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras: Araraquara, 2009.
3. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação
Básica. Carlos Roberto Jamil Cury (relator). Parecer CEB11/2000 -
Diretrizes curriculares nacionais para a educação de jovens e adultos.
In: SOARES, Leôncio. Educação de jovens e adultos. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002. p. 25-133.
4. ____.Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 5.692/71).
Disponível em: [http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/l5692_71.htm].
Acesso em: 09 mar. 2010.
5. ____. Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96). Rio de
Janeiro: DP&A, 2003.
6. CASTRO, Jorge Abrahão de; AQUINO, Luseni Maria C. de;
ANDRADE, Carla Coelho de (Orgs): Juventude e políticas sociais
no Brasil. Brasília : Ipea, 2009.
7. CHILANTE, Edinéia Fátima Navarro. A educação de jovens e
adultos brasileira pós-1990: reparação, equalização e qualificação.
Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual de Maringá:
Maringá, 2005.

271
8. DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de
Janeiro: Getúlio Vargas, 2000.
9. DELORS, Jacques. Os quatro pilares da educação. Relatório para a
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura: UNESCO, Paris, 1996.
10. DEL PINO, Mauro. Política educacional, emprego e exclusão social.
In: GENTILI, Pablo; FRIGOTTO, Gaudêncio. A cidadania negada:
políticas de exclusão na educação e no trabalho. São Paulo: Cortez,
2001. p. 65-88.
11. DUARTE, Newton. A sociedade do conhecimento ou sociedade
das ilusões?: quatro ensaios críticos-dialéticos em filosofia da
educação. Campinas: Autores Associados, 2003.
12. FRANCA, Gilberto Cunha. O trabalho no espaço da fábrica. São
Paulo: Expressão Popular, 2007.
13. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 2.
ed., São Paulo: Cortez, 1996.
14. FRIGOTTO, Gaudêncio. Cidadania e formação técnico profissional.
Desafios neste fim de século. A Página da Educação. Disponível
em: < http//www.apagina.pt/arquivo/artigo>. Acesso em: 16 maio
2004.
15. HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. Trad. Carlos Nelson
Coutinho e Leandro Konder. 3oed. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1989.
16. MÉSZÁROS, Istvám. Para além do capital: rumo a uma teoria da
transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
17. MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro.
Tradução: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. 8o ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
18. PINASSI, Maria Orlanda. Metástase do irracionalismo. Revista
Novos Rumos. 2005. no 43, ano 20. p. 53-62.
19. RAMOS, Marise Nogueira. O “novo” ensino médio à luz de antigos
princípios: trabalho, ciência e cultura. Boletim Técnico do Senac.
Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 19-27, maio/agosto de 2003.

272
20. RODRIGUES, Iram J. Martins, Heloisa Helena T. Perfil
socioeconômico de jovens metalúrgicos. Revista Tempo Social.
Vol.17. no2, 2005. pp.3-25.
21. RODRIGUES, Leôncio Martins. Industrialização e atitudes
operárias. São Paulo, Brasiliense, 1970.
22. RUMMERT, Sônia Maria. Educação e identidade dos
trabalhadores: as concepções do capital e do trabalho. São Paulo:
Xamã, 2000.
23. SAES, Décio Azevedo Marques de. Educação e Socialismo. Crítica
Marxista. Campinas, n. 18, p.73-83, maio de 2004.
24. ZAGO, Nadir. Processos de escolarização nos meios populares: as
contradições da obrigatoriedade escolar. In: NOGUEIRA, Maria
Alice; ROMANELLI, Geraldo; ZAGO, Nadir. Família e escola:
trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 2000. p.
17-44.

273
274
A FORMAÇÃO DE TRABALHADORES E A
POLÍTICA NACIONAL DE FORMAÇÃO DA CUT
– uma análise do período 1998-2008

*
0 #
**
$

Como fenômeno social, a educação e a formação profissional de


trabalhadores ganharam mais relevância nos países de capitalismo central
no último triênio – e no Brasil nas últimas décadas – se convertendo em
discussões e conclusões que passaram a afirmar a importância dessa
prática para a adaptação da força de trabalho às novas demandas (técnicas
e organizacionais) requeridas pelo processo produtivo.
Diante da atual ênfase dada à questão, que vincula a educação de
trabalhadores às novas necessidades concorrenciais da classe empresarial
como obrigação frente aos desafios de um flexível mercado de trabalho e
do processo produtivo contemporâneo, faz-se necessário esclarecer que, a
existência de atividades de formação cultural e de educação profissional
realizadas entre os trabalhadores, de maneira geral, e entre o operariado
em particular, é uma prática sistematicamente recorrente entre as
instituições do movimento operário e em suas organizações ao longo da
história moderna.
Na Europa, desde o período histórico renascentista de dissolução do
sistema feudal e da conseqüente instauração do modo de produção
capitalista, pode-se perceber o valor das guildas, das corporações de
ofício, das confrarias e de demais associações de classe na organização de
uma perspectiva autônoma de manutenção do saber técnico tradicional e

F ) %#"* + ) * " %#%


* " " ! # ) *
+ + < F &!#+F' % 1- 5 ]/
E ) & %* " ' E % . a (
* * ) I ) )
%#"* 1 ]

275
artesanal do processo de trabalho que estava ameaçado pela crescente
implantação da manufatura e do maquinário no processo de produção1.
De fato, essas instituições profissionais de trabalhadores chegaram a
ser elemento de desagregação no meio fabril, operando uma separação
corporativista entre trabalhadores com e sem qualificação. No entanto, a
importância histórica e modelar da existência de associações profissionais
que zelavam pelo controle do saber produtivo reside no fato de que elas
exemplificaram aos trabalhadores assalariados modernos que a sua
unificação podia representar um fortalecimento da sua classe frente à
classe que os explorava, uma vez que os artesãos associados
conseguiram, por esse método, assegurar para si remunerações mais
elevadas que as dos trabalhadores assalariados e desqualificados, além de
mais elevados níveis educacionais e culturais.
O que se verifica no meio operário do conjunto dos países
capitalistas ao longo dos últimos 150 anos é que não somente a educação
técnica aplicada diretamente ao trabalho, mas, de longa data, vários tipos
de atividades de formação – tenham sido elas de caráter estritamente
profissionais, pedagógicos ou de natureza política/crítica mais geral –
permearam a conduta dos trabalhadores e das suas organizações, andando
de mãos dadas com as estratégias de intervenção política que cada
movimento vislumbrava para uma dada conjuntura, como forma de
estabelecer minimamente as bases de uma resistência antagonista e
contra-hegemônica aos efeitos dos imperativos da produção de capital.

FORMAÇÃO E HEGEMONIA DE CLASSE


As questões referentes às práticas organizadas pela própria classe
trabalhadora objetivando a elaboração e o desenvolvimento coletivo de
suas atividades educativas das mais diversas ordens é historicamente
basilar ao seu movimento mundial. Conforme é sabido, em todos os
momentos de sua relativamente recente trajetória e em praticamente todos
os lugares do globo onde o capitalismo estabeleceu-se como modo
produtivo dominante, a classe dos despossuídos dos meios de produção

5 X , < ) )
0

)S

276
ousou se instituir para construir e/ou pelo menos ensaiar atividades com
esse sentido a fim de afirmar sua autônoma identidade de classe à frente
dos que lhes expropriavam2. De fato, a formação operária tem
importância estratégica para o proletariado na elaboração de sua
subjetividade de classe, sendo por isso conditio sine qua non para uma
intervenção coletiva na totalidade social, que parte de uma elaboração
mantenedora do conhecimento técnico produtivo, podendo chegar à
construção de uma hegemonia antagônica ao modo de viver e pensar
dominante.
Alguns dos mais notáveis intelectuais orgânicos da classe
trabalhadora não dissociaram, na sua interpretação da sociedade, a
questão da auto-educação proletária da luta geral pelo fim da exploração
capitalista e da emancipação do trabalho. Por exemplo, é deveras
conhecida a passagem de Marx, que já em 1868, numa época em que era
excessivo o uso da força de trabalho não-adulta nas fábricas, em texto
escrito para o conselho central provisório da Associação Internacional
dos Trabalhadores (AIT), fornecendo instruções de como a classe deveria
reagir mais imediatamente a respeito da necessidade do emprego pelo
capital desse trabalho infantil, dizia que “o setor mais culto da classe
operária compreende que o futuro de sua classe e, portanto, da
humanidade, depende da formação da classe operária que há de vir”
(MARX & ENGELS, 1983, p. 60), e sugeria alternativas de médio e
longo prazos visando a transformação geral de tal maneira que, na
impossibilidade de não se atingir a completa proibição do emprego da
força de trabalho infantil e juvenil, o aconselhável seria lutar para
combinar o trabalho produtivo com a educação, desde que o sentido de
educação significasse educação intelectual, corporal e tecnológica, cuja
junção, segundo o pensador, elevaria “a classe operária acima dos níveis
das classes burguesa e aristocrática” (Ibiden, p. 60).

J * N
) ? N

) , @
= A
0

277
Apontando ainda nessa direção, não custa dizer que se é sabido que,
dentre as matrizes da teoria marxista, Gramsci talvez seja o que mais
tenha se debruçado especificamente sobre o tema da cultura e da
educação, fazendo-o na perspectiva de articular a necessidade da
revolução socialista no contexto das mudanças superestruturais
engendradas no capitalismo central do início do século XX. As
discussões levantadas por ele de forma detida sobre a educação escolar se
inserem na forma ampliada da necessidade de construção da hegemonia
dos grupos sociais subalternos. Queremos dizer com isso que as práticas
formativas geradas no seio da classe trabalhadora visando a construção de
uma auto-determinada concepção de mundo “consciente e crítica”
(GRAMSCI, 1999, p. 93-94) em relação ao ideário hegemônico, ocorrem
segundo momentos ou graus na relação de forças políticas de uma
situação (cf. GRAMSCI, 1989, p. 49-51). É importante insistir em
explicitar esse juízo para evitar cair no erro teórico de considerar toda
manifestação auto-formativa da classe trabalhadora como portadora do
elemento revolucionário socialista.
Gramsci afirma que para uma análise correta do embate de forças
políticas, devem ser considerados, em primeiro lugar, os elementos da
“estrutura objetiva” – que dão o grau de desenvolvimento das forças
materiais de produção que servem de sustentáculo para os grupos sociais
e suas posições determinadas nessa produção – e, em segundo lugar, a
relação de forças políticas, que dá o “grau de homogeneidade, de auto-
consciência e de organização, alcançado pelos vários grupos sociais”
(Ibiden, p. 50). Para o pensador italiano, esse momento se diferencia
historicamente3 em diversas formas, tais como: i) o “econômico-
corporativo”, que se dá quando há certa unidade no interior de um grupo
social (ou fração de classe), porém, ainda não existindo identidade com
um grupo social mais amplo. Esse momento da organização política é o
que poderíamos interpretar como sendo o de quando trabalhadores na sua
individualidade formam uma consciência imediata, ocasional e
desagregada a partir das contradições emergentes das mesmas condições
de vida e trabalho em conjunto com seus pares próximos, e se põem a

L . T
, =
a
& ' & ' A
&IG.F"*! 58V8 K;'

278
organizar-se visando a satisfação de seus interesses materiais mais
espontâneos (diretamente econômicos), porém sem ampliar a sua crítica e
sua atuação para questões estruturais da totalidade social. Este momento,
ainda segundo Gramsci, fornece a base para: ii) “consciência da
solidariedade de interesses do grupo social” que, apesar de se propor a
resolver questões mais amplas, como em relação ao Estado ou à
igualdade político-jurídica com grupos dominantes, ainda se limita a
reformas dentro dos quadros fundamentais da ordem (talvez, nesse
momento, se localize a maior parte das contemporâneas experiências
educacionais dos trabalhadores). O momento iii) é o da “consciência de
que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento atual e
futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e
podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados”
(GRAMSCI, 1989, p. 50). É o momento mais interessante e fecundo para
a organização dos trabalhadores, pois é quando, cientes das limitações da
sociabilidade burguesa, passam a tentar tornar seu ponto de vista em
ponto de vista dos subalternos, convertendo-se no momento da disputa
aberta de hegemonia.
É nesse contexto de graus na relação de força que se pode dizer que,
no fundamental, a independência dos trabalhadores enquanto classe
social, na efetivação de sua própria formação cultural no intento de
criticar o discurso hegemônico, faz mais sentido se, também como
prática, buscar destruir as condições objetivas que tornam possível a
existência de tais discursos.
Se é verdade, afinal, que “toda relação de 'hegemonia' é
necessariamente uma relação pedagógica” (GRAMSCI apud DIAS, 2006,
p. 65), é a partir da relação hegemonia dominante versus hegemonia
subalterna que passa a existir o terreno fértil para a construção da
identidade dos trabalhadores. Do contrário, as classes subalternas, não
estando em condição de estruturarem-se autonomamente, isto é, não
construindo seu próprio saber e prática em permanente luta contra a
racionalidade dominante, estarão sempre sujeitas aos limites do campo
econômico-corporativo e, portanto, incapazes de arquitetar a saída da
dominância, que apesar de material é também ideológica e, dessa forma,
incapazes de criar sua própria hegemonia.
É importante ter a discussão sobre a necessidade de formação/visão
de mundo autônoma de classe/hegemonia em mente, pois a constituição
279
do saber e da subjetividade da classe trabalhadora é importante para que
ela compreenda a totalidade como uma concepção epistemológica central,
e possa, a partir disso, realizar uma intervenção mais adequada na
realidade social. Como não poderia deixar de ser, essa estruturação da
classe trabalhadora de forma ideologicamente autônoma só ganha
concretude na história a partir das experiências reais que ela mesma logra
empreender no terreno da práxis social. É a partir dessa objetividade que
é possível comparar as diversas práticas no tempo e no espaço e mensurar
as suas potencialidades, seus erros e seus acertos táticos na construção de
uma hegemonia ideológica e política proletária.
Assim, se na trajetória de organização de atividades formativas
classistas não há nenhuma tendência de crescimento progressivo com
rumo inexorável ao socialismo, de outro modo, o que ocorre
freqüentemente são manifestações difusas, com momentos variáveis de
organicidade, com muitos avanços e recuos do ponto de vista político.
Na história recente do Brasil, é a partir do fim dos anos 1970, e
praticamente durante toda a década de 1980, que a reorganização do
movimento operário também vai refletir em inovadoras contribuições
para as iniciativas de formação de trabalhadores, lançando as bases de
estruturas educativas que serão as mais complexas e as que terão a vida
mais longa já registrada na história do sindicalismo brasileiro, como a
estrutura de formação da Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Em grande medida impulsionada pela luta contra a ditadura, a prática
formativa da CUT no período inicial de sua constituição era balizada por
um conteúdo teórico crítico de viés marxista, objetivando contribuir no
processo de formação da consciência revolucionária da massa dos
trabalhadores, mas também das novas direções sindicais. Ainda que
existissem na maior parte dos sindicatos e instituições trabalhistas dos
anos 1980, práticas de auto-formação operária de natureza profissional –
legado deixado pelo assistencialismo sindical da estrutura oficial –, é sem
dúvida o fato mais notável dentre todos os que dizem respeito ao
experimento na seara educacional de trabalhadores aquele praticado pela
central sindical nascente4.

U . 0 ) 0 *%+ 0
) + &J;;J'

280
Contudo, em fins da década de 1980 e início da próxima, com a
entrada de um novo padrão produtivo no setor industrial, principalmente
trazendo novas técnicas gerenciais da força de trabalho, tecnologias de
produção em base micro-eletrônica e computacional, com seus
conseqüentes efeitos sociais, como por exemplo, retração do emprego
formal e desemprego em massa, a formação profissional ganha força e
começa a se tornar uma pauta prioritária entre as entidades responsáveis
pela educação de trabalhadores no país. Por conta disso, alguns sindicatos
de maior porte e centrais sindicais sem tradição de combatividade iniciam
ou enfatizam (por conta própria ou em parceria com governos e/ou
entidades patronais) práticas de qualificação profissional.
Nas páginas seguintes, discutiremos com mais detalhes o processo de
surgimento das experiências de formação efetivadas pela CUT nesse
contexto e o seu posterior desenvolvimento. Todavia, é importante que se
diga que a presente seção deste trabalho foi escrita considerando as
históricas experiências educativas organizadas pela própria classe
trabalhadora como manifestações de resistência aos imperativos da
produção de mais-valor, fazendo coro com uma noção de historiografia
que leva em conta a participação ativa dos subalternos na construção de
suas trajetórias, e não apenas como receptores meramente passivos de
propostas irradiadas de agentes como o Estado ou as classes dominantes.
É por essa perspectiva que merece ser registrado o valor das iniciativas
que partiram de trabalhadores, mesmo quando não tiveram
conscientemente um caráter determinado de transformação radical social,
pois, como atividade coletiva, a organização inicial de natureza autônoma
de trabalhadores visando sua própria educação (seja ela propedêutica,
profissional ou política) já oferece a possibilidade de se forjar uma
“consciência da solidariedade de interesses do grupo social”, que por sua
vez é pré-requisito para a emergência de uma consciência de classe
revolucionária contra o capitalismo.
De agora em diante, mesmo respeitando o caráter de iniciativa
popular de boa parte das atividades de educação de trabalhadores levadas
a efeito pela CUT, nos preocuparemos, entretanto, com as opções
políticas realizadas por ela no conjunto de alternativas que estavam a sua
disposição no contexto em que se realizavam, notadamente a década
compreendida entre 1998 e 2008.

281
A POLÍTICA NACIONAL DE FORMAÇÃO DA CUT NO PERÍODO DE VIGÊNCIA
DO PLANFOR DO GOVERNO FHC
Na esteira dos ajustes políticos e econômicos institucionais
empreendidos pelo governo FHC com o discurso de adequar o país para a
entrada na globalização, a proposta de reforma da educação profissional
aparece como uma tentativa de conformar os trabalhadores para se
adaptarem às necessidades de flexibilização da produção exigida pelas
empresas brasileiras a fim de que estas pudessem ter suas produtividade e
competitividade aumentadas na concorrência do mercado mundial.
Nesse sentido, para Souza,
B #Q*C
0 ) )
0
)S -
, )S
) ) .
) ,
&"6%Y. J;;9
UV5'
Para se fazer cumprir as propostas relativas à questão, no primeiro
ano de mandato, o governo FHC criou a Secretaria de Formação e
Desenvolvimento Profissional (Sefor), vinculada ao Ministério do
Trabalho (MTb), com as tarefas de reformular conceitualmente a noção
de educação profissional, fazer a devida articulação institucional e
construir um novo tipo de relação entre Estado e sociedade civil (cf.
Ibidem, p. 482). Para se cumprir a reforma, continua Souza, as ações
atribuídas à Sefor ficaram definidas como sendo as seguintes:
' )
,
,
) , D
' )
)
D
' , 4
0 &
0 3 ' 4 )

282
)
)S 4
) - ?
? 0 4 S 0D
'

) , )
D
'
< F +
)
- &(G."!$ 588K "6%Y. J;;9 '
Colocando em prática estas ações, em 1996 o Conselho Deliberativo
do Fundo de Amparo ao Trabalhador, pela resolução nº 126/96, criou o
Planfor5, que, sob o âmbito da Política Pública de Trabalho e Renda
(PPTR) do MTb, e a partir das verbas oriundas do FAT, objetivou dar
unicidade aos diversos programas de qualificação que estavam em curso
pelo Brasil. O entendimento do governo para o assunto era que, em
função das mudanças no padrão produtivo pelo qual passava o Brasil e o
mundo, as instituições que praticavam esse tipo de educação teriam que
ser reformuladas para atender essa demanda de novas competências
requeridas pelas empresas. É sem meias palavras que o governo federal
oficialmente afirmava que
B ) C
" "
B C
) @ , D
) ?
"
D
&(G."!$ 5888 J9'
O financiamento do Planfor acontece por meio do FAT e se dá com
recursos propiciados pela rubrica “qualificação profissional”, sendo
repassados aos Estados e Distrito Federal e aos parceiros nacionais e

K . ) >
# ) > \ ) >
\ ) +

283
regionais através de convênios firmados com o Conselho Deliberativo do
Fundo de Amparo ao Trabalhador (CODEFAT) e o MTb. Ele é
gerenciado no nível federal pelos mesmos CODEFAT e MTb, e também
pela Secretaria de Políticas Públicas de Emprego (SPPE) e o
Departamento de Qualificação Profissional (DEQP); já nas instâncias
estaduais/municipais quem os gere são os Conselhos
Estaduais/Municipais de Trabalho ou Secretarias de Trabalho ou
equivalentes.
É bom lembrar que a criação do Planfor se deu em consonância com
o princípio neoliberal praticado pelo governo FHC, segundo o qual o
Estado não seria mais o ente obrigado a propor soluções “universalistas”
para as políticas sociais (estas passaram a ser entendidas sempre como
“gastos”), fazendo com que, nesse cenário, ocorresse a descentralização e
a privatização de boa parte de suas atribuições. É a partir desse
encaminhamento que a divisão em instâncias para gerir e planejar o
Planfor estava em perfeita correspondência com a necessidade neoliberal
de retirar determinados poderes do Estado, conquanto que a execução de
seus cursos e programas por meio de uma rede de instituições, tanto
públicas quanto privadas, também dizia respeito a uma modalidade de
privatização das políticas públicas voltadas à formação profissional6.
Nesse ínterim, para poder executar a educação profissional, as agências
se candidatavam segundo critérios definidos em lei e de acordo com a
inspiração política da reforma da educação profissional, e, se aprovadas,
passavam a realizar a formação recebendo os recursos do FAT, principal
financiador do país para atividades nesse campo.
É bem verdade que numa apreciação crítica a respeito do Planfor,
encontramos a explicação de que se trata de uma política compensatória
de emprego no contexto dos efeitos da subordinação econômica do país
ao grande capital internacional (levada a cabo com mais profundidade
pelo governo FHC); contudo, inspirado na reedição da teoria do capital
humano7, o Planfor operou durante todo o seu funcionamento com o

9 5889 5888 G 5U 0
" " )S )S )S

: E # &5889 VL' = B C
) )
) 6 - = A )

284
princípio de que cada trabalhador seria responsável individualmente pela
sua própria educação, e conseqüentemente, pela garantia (ou não) do seu
emprego. A partir de uma interpretação linear e imediata da realidade, ele
significou a expressão de um construto ideológico que pode ser resumido
na formulação de que o emprego e a grandeza de salário de cada
trabalhador estaria em proporção direta com o nível e a qualidade de
formação de cada um.
É nesse sentido que dizemos que o Planfor representou o avanço da
sanha privatista sobre a educação brasileira, e, especialmente sobre a
educação profissional, deixando como conseqüência mais um elemento
para o desmonte (de grande parte do que havia) de ensino universal
público, gratuito no país, além de ter interceptado o processo de
construção de uma educação unitária com as características necessárias
para o desenvolvimento de, no mínimo, trabalhadores críticos e capazes
de dominar o saber do processo de trabalho, que há muito era
reivindicação histórica dos trabalhadores e movimentos de esquerda
vinculados à educação no Brasil. No entanto, mesmo sabendo das
limitações de se atender essas demandas num arranjo societal que se
pauta pela lei do valor, queremos ressaltar que o peso do golpe dado pela
privatização do ensino profissionalizante no Brasil fez amainar ainda
mais a luta mesmo por reformas progressistas por dentro do sistema8. Foi
nesse panorama que a CUT deu início às suas investidas na prática de
formação profissional associada a sua política de formação mais geral.
Somada à crise percebida nas suas bases por conta das
transformações no mundo do trabalho, nos início dos anos 1990, a
Política Nacional de Formação (PNF) da Central também sofre um revés
por causa da diminuição do financiamento internacional das suas
atividades de formação. Como é sabido, inspirada na idéia de
solidariedade internacional de classe, boa parte da PNF da CUT obteve
uma sustentação pecuniária importante de ONG's, sindicatos e centrais

)
) A
V .
, )S > ,
? 0
)S N
) 0 )

285
sindicais européias no período compreendido entre o fim dos anos 80 e
início dos 90. A esse respeito, Mora (2007) nos noticia, por exemplo, que
mais da metade dos recursos para a Escola Sindical Norte da CUT, em
Belém, nesse tempo, veio das centrais DGB da Alemanha, da ICCO
(ONG holandesa), da CISL italiana, além de campanhas feitas por
governos e centrais do velho continente. A Escola Sul por sua vez,
também contou com a cooperação internacional da Alemanha e Itália,
mas também com receitas sindicais e vendas de serviços. Com o Instituto
Cajamar também não foi diferente; apesar de obter recursos com as
livrarias que possuía e com prestação de serviços, também recebia
importante aporte financeiro de agências européias. Assim como também
a Escola 7 de Outubro, que fundamentalmente foi construída e bancada
pelo ISCOS-CISL com um projeto de 1,2 milhão de dólares.
É o que a própria CUT evidencia nas resoluções do seu V Concut de
1994, quando, ao fazer o diagnóstico de sua situação financeira, constata
sua situação de inadimplência e crise por conta da diminuição do número
de sindicalizados e, também, quando verifica o estado das receitas
advindas de convênios internacionais, que segundo ela, vinham “caindo
ano a ano, obrigando a CUT a assumir paulatinamente as despesas de
atividades e de organismos que eram tradicionalmente financiados por
recursos externos” (CUT, 1994, p. 88)9.
Assim, a partir desse conjunto de elementos, articulados e
mutuamente determinados, como as mudanças na organização produtiva,
neoliberalismo, social-democratização das centrais européias, recessão
econômica, surgimento e crescimento da Central Sindical Força Sindical,
escasseamento das verbas e hegemonia da Articulação Sindical na sua
executiva, que a CUT viu nos recursos provenientes do FAT, ao mesmo
tempo, uma solução para seus problemas de caixa e uma alternativa para
recuperação de seu prestígio político, e partiu para as experiências no
campo da educação profissionalizante de trabalhadores.
Por mais que o discurso seja o de disputar as concepções de
formação profissional dadas pelo patronato com recursos públicos no
âmbito do Planfor, a CUT, por vias oblíquas, acaba por compactuar com
a reforma privatizante do ensino profissional brasileiro e reforçar o

8 E 0 1o 122333 q . J5 J;;:

286
fetiche da qualificação contra o desemprego ao se apresentar como mais
uma agência que seguiu as diretrizes do Planfor e se tornou apta a
executá-lo. O início indireto dessas experiências se deu em 1996 quando
a Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), integrante de sua
estrutura vertical, começou a desenvolver o Programa Integrar voltado a
metalúrgicos desempregados, fornecendo-lhes a formação profissional
em conjunto com ensino de primeiro grau (daí a origem do nome do
programa). Mas em 1997 a CUT submeteu um projeto, por meio do
convênio MTb/Sefor/CODEFAT 0011/97, e em 1998 a própria Central
iniciou, sem intermediários, a sua participação no Planfor através do
Programa Integral de Capacitação de Conselheiros das Comissões
Estaduais e Municipais de Trabalho, Emprego e Renda e de Formação de
Formadores em Educação Profissional, para atuarem nas instâncias
tripartites, responsáveis pelo gerenciamento do FAT. Conforme se pode
ver na citação do texto a seguir (organizado por dirigentes cutistas e
publicado pela própria Central), para a entidade, o início de suas
atividades no campo da formação profissionalizante não se deu com outro
motivo a não ser o da luta contra o desemprego:
B C ) *%+
)
N
) 0
@
4 &".%$ + .$ J;;L LU'
Para a realização dos cursos entre 1998 e 1999, Delúbio Soares de
Castro, representante da Central no CODEFAT, propôs no final do ano de
1997 que se aumentassem as verbas para o programa de 360 milhões de
reais para 1 bilhão, para que a CUT pudesse disputar um montante de
verbas ainda maior (cf. TUMOLO, 2002, p. 199). Não sabemos informar
se de fato para o ano seguinte a verba aumentou e/ou quanto teve de
aumento; no entanto, pudemos averiguar que para o ano de 1998 a CUT
recebeu 8 milhões de reais do FAT a fim de executar os seus programas
de formação previstos (cf. TEIXEIRA, 2008).
De fato, o que há de mais verdadeiro é que a estrutura de formação
da CUT engrandeceu-se a partir desse ano e a PNF se reorganiza e
amplia-se como nunca havia feito na sua história, visando captar um
montante ainda maior de recursos do FAT, para efetivar um número

287
também maior de cursos e programas profissionalizantes e, segundo a
própria Central, poder disputar ainda mais com o empresariado as
concepções político-pedagógicas em educação profissional. Em resumo,
pode-se dizer que a orientação da CUT para a disputa de projetos de
formação profissional no âmbito do FAT era que, como as entidades
privadas e patronais desenvolviam uma educação parcial, voltada
exclusivamente para o atendimento das demandas produtivas, de
conformação de um trabalhador apto a operar com as inovações do
sistema produtivo, a Central deveria usar as mesmas armas e o mesmo
espaço, como um locus da “disputa de hegemonia”10, para conseguir
desenvolver uma formação de trabalhadores de natureza política e
sindical, básica e profissional, que, ao mesmo tempo, lhes daria a
qualificação pretendida, também fornecer-lhes-ia o instrumental crítico
para atuarem no mundo do trabalho.
Sendo assim, foi no ímpeto dado pela experimentação na prática de
fornecer cursos de educação profissional com verbas do FAT que a
temática ganhou mais centralidade no interior da Central. Nessa direção
deu-se início a um novo ciclo de reajuste estratégico/institucional da
PNF, que começou com a realização da 13ª Edição do Encontro Nacional
de Formação (ENAFOR), passou pela organização de consecutivas
conferências nacionais da formação e foi coroado com a efetivação, no
período relativo a 1999/2002, de um amplo Programa Nacional de
Formação desenvolvido em praticamente toda a Rede Nacional de
Formação.
É nesse contexto que a Formação assumiria o papel central de
qualificar dirigentes e lideranças sindicais para enfrentar esse cenário de
mudanças, além de fazer da prática em educação profissional o principal
veículo de intervenção da CUT nas propostas a respeito destas políticas
de geração de emprego e renda. Como as ambições da Formação cutista
ampliaram seus horizontes a partir de então, é nesse período que a Rede
Nacional de Formação assumiu uma forma mais bem definida de
funcionamento a fim de se gerir um Plano de Formação articulado
nacionalmente de verdade, pois, segundo se pode deduzir, para a CUT os

5; " I = A ( *%+
? ?

288
planos de formação anteriores não tiveram uma abrangência nesse
âmbito. O que nos atrai a atenção nesse ponto em especifico é o fato de
que mesmo a CUT tendo criado a sua Secretaria Nacional de Formação
ainda em 1984 no seu primeiro congresso e já desenvolvido ações
formativas de caráter nacional e planos de formação com alcance em todo
o país desde então, é somente depois das mudanças de rumo de um
sindicalismo com horizonte na construção radical de socialismo para um
sindicalismo propositivo (no qual a adesão à prática da formação
profissional com recursos do FAT é só uma derivação mais evidente),
que a Central diz efetivar sua Política de Formação com abrangência
nacional.
A análise de tal episódio nos permite concluir então que a formação
para a entidade só se tornou prioridade, portanto, quando ela pôde
disputar verbas públicas para promovê-la, e mesmo assim, com clara
inclinação para a educação profissionalizante. Ademais, conjecturamos
explicar que esse fato só encontra entendimento se tiver como base a
acirrada polarização entre a “esquerda” e a “direita” da Central, que
durou com relativo equilíbrio de forças até o seu IV Concut (1991), com
a vitória deste último setor, e que pôde, por fim, hegemonizar suas
concepções de mundo e de sindicalismo. A partir daí, e tendo como uma
de suas prioridades a formação profissional com recursos oriundos do
FAT, a CUT passa a disputar e requerer um montante cada vez maior
daqueles recursos, conforme ilustra o quadro a seguir:
Repasse dos recursos vindos do FAT para a CUT de acordo com o ano:
ANO VALOR
1998 R$ 8 milhões
1999 R$ 21 milhões
2000 R$ 35 milhões11
2001 R$ 30 milhões
2002 R$ 35 milhões
Fonte: Mora (2007); Souza (2006b); Teixeira (2008)

55 Y )S I E # . \
& * (' J;;J , #.+ *%+
L8 S 6 )
6 )S 1 Y.G $6> " G
< 3 34 C/M )&7 J;;L 5K: E ) &F
* 0 '4! # * Q % *
* J;;L U9

289
O PLANO NACIONAL DE QUALIFICAÇÃO (PNQ) DO GOVERNO LULA E A
FORMAÇÃO CUTISTA NO PERÍODO 2003 – 2008
A partir da posse do Governo Lula em 2003 e das mudanças
operadas por sua gestão à frente do Ministério do Trabalho nas políticas
públicas de emprego e educação profissional, a PNF da CUT recebe um
novo impacto transformador. Se, à primeira vista, poder-se-ia pensar que
os vínculos históricos e políticos do partido agora no governo com a
Central fossem concorrer na direção de ampliar os recursos públicos do
FAT para a prática de formação profissional da entidade, na realidade o
que ocorre, a princípio, é algo bem diferente.
Tomando medidas com a finalidade de reordenar a relação de
transferência de recursos para as centrais sindicais, o Tribunal de Contas
da União (TCU) averigua e detecta irregularidades na prestação de contas
do FAT para as centrais CUT, Força Sindical (FS), Central Geral dos
Trabalhadores (CGT) e Social Democracia Sindical (SDS) entre 2000 e
2002, e determina por suspender, ainda em agosto de 2003, os
financiamentos do Planfor para estas entidades12. De imediato, todos os
programas e cursos que estavam em andamento na PNF da CUT
terminaram abruptamente de uma hora para outra, criando uma
verdadeira desestabilização em toda a RNF. Em decorrência das
avaliações pelo novo governo dos danos causados ao erário público pelos
gastos descontrolados do FAT no Planfor e constatando que o programa
não apresentava os devidos resultados no que dizia respeito à articulação
entre Política Pública de trabalho e renda, educação e desenvolvimento, o
MTb lança em 2003 o seu próprio Plano Nacional de Qualificação
(PNQ).
Aprovado pelo CODEFAT pela Resolução 333/2003, o PNQ se
propõe a ser uma política pública de qualificação social e profissional
com uma estratégia de integração das políticas de emprego, trabalho,

5J ! )S " J;;9 KL KK E
*%+ )S
) ) N )
) ? J;;5 *%+ L; S #.+
#" 9 S D J;;J )
#" L S ^, ) ) " ="A
? J;;; 9 S

290
renda, educação e desenvolvimento (BRASIL, 2003). Por meio de
procedimentos institucionais e diretrizes comuns, seu funcionamento
procede de modo nacionalmente articulado; no entanto, suas ações são
implementadas de forma descentralizada através de planos diferentes e
complementares, quais sejam, os Planos Territoriais de Qualificação
(PLANTeQs), os Projetos Especiais de Qualificação (PROEsQS) e os
Planos Setoriais de Qualificação (PLANSEQs). Os PLANTeQs
acontecem em parceria com estados, municípios e entidades sem fins
lucrativos com o objetivo de atender demandas por qualificação
identificadas com base na territorialidade, já os PROEsQS efetivam-se
em parceria com entidades do movimento social e organizações não-
governamentais e destinam-se ao desenvolvimento de metodologias e
tecnologias de qualificação social e profissional e, finalmente, os
PLANSEQs se dão em parceria com sindicatos, empresas, movimentos
sociais, governos municipais e estaduais e procuram o atendimento de
demandas emergenciais, estruturantes ou setorializadas de qualificação. A
soma dos três é que dá a configuração final do PNQ, conforme a
esquematização a seguir representa:

Assim como o Planfor, o PNQ é responsável pelo gerenciamento dos


Planos e pela liberação de recursos do FAT (também por intermédio do
CODEFAT), cabendo a responsabilidade pela sua efetivação às agências
executoras que têm convênios firmados com o MTB. A propósito das
formulações conceituais entre os dois planos, pode-se dizer que o PNQ
apresenta uma tentativa de integração das políticas de ação social e
profissional com uma suposta formação integral do trabalhador, que
elevaria, contudo, a sua escolaridade.

291
Observando isso, pode-se dizer que não se trata de coincidência o
fato de que muitas das diretrizes que orientaram a criação do PNQ
estivessem próximas daquelas que eram defendidas nos fóruns da CUT,
uma vez que é real o vínculo orgânico de similitudes políticas e
ideológicas do seu campo majoritário com a ala hegemônica do PT.
Assim, conjecturamos que muito do que foi feito na realização das
concepções do PNQ tiveram influência direta do acúmulo de discussões
que a Central tinha na questão, bastando observar o intenso intercâmbio
de quadros da CUT na composição do governo Lula.
Iniciado de forma provisória ainda em 2003 a fim de se fazer a
transição do Planfor, o PNQ ganha efetividade a partir de 2004 fazendo
parte do Plano Plurianual 2004 – 2007 (PPA) do Governo Federal nas
ações de promoção das transformações que se propôs a realizar para o
Brasil. Embora se possa notar alguns avanços conceituais importantes no
PNQ, que incorporou, a seu modo, certas demandas de movimentos
sociais da educação com os quais o PT historicamente se vinculou, os
seus alcances práticos não se distinguem do antigo plano, uma vez que
principalmente nas estruturas macroeconômicas o Governo Lula optou
por dar seqüência às políticas neoliberais e, assim, manter a mesma base
operacional na qual o Planfor se assentava.
Do ponto de vista de postura política, a posse de Lula em 2003 na
presidência da República faz a Central projetar um novo cenário para a
sociedade brasileira, acreditando ser viável um projeto político desse
governo que fosse “pautado por mudanças capazes de resgatar a
dignidade e a auto-estima da população e dos trabalhadores brasileiros,
com crescimento econômico e distribuição de renda, mais empregos,
proteção social e resgate da cidadania, ampliação da democracia e da
participação popular” (CUT, 2003, p. 9)13. Nesse panorama, a CUT
elabora as diretrizes para sua PNF se adaptar a essa nova demanda aberta
pela vitória do candidato à presidente que historicamente apoiou. Assim,
para esse momento, as resoluções do VII Concut (2003)14 é que serviram

5L E 0 1o 122333 q . J5 J;;:
5U > * ) 0
" , > # ) ^ * $ ) , " t
+ ) F I 4 " % 2FI

292
de influxo para a elaboração das diretrizes de sua PNF para o período
2003-2006.
É diante desse novo momento político de arranjo no poder
institucional que a PNF da CUT se apresenta contemporaneamente. Com
o contingenciamento dos recursos do FAT, a Central se vê obrigada a
diversificar as fontes de financiamento de suas atividades de formação.
Embora as atividades de formação no âmbito dos convênios com o PNQ
não sejam as únicas realizadas pela CUT nesse cenário, pela sua
abrangência elas têm importância significativa para o que representa o
conjunto de todas as atividades da PNF.
Averiguamos que a partir da emergência do PNQ, os contratos de
prestação de serviços formativos com as Centrais não mais obedecem aos
princípios de acordos únicos, de abrangência nacional (tal como ocorria
no Planfor), mas pelo contrário, passam a ocorrer com entidades para
atender em circunscrição local e regionalizada. Foi nesse rumo que boa
parte da Formação cutista se descentralizou e ficou reduzida aos
convênios que os seus sindicatos e Escolas sindicais fizeram com o
Ministério do Trabalho. Diante disso, é que o convênio mais importante
firmado entre uma entidade cutista e o MTb (no campo do PNQ) se refere
ao PROEsQ – Quem Luta Também Educa!. Financiado com auxílio do
FAT, o projeto foi executado entre 2005 e 2007 pela Escola Sindical São
Paulo – CUT, com colaboração direta da SNF e de outras Escolas
Sindicais.
De outro modo, não obstante ser o PROEsQ – Quem Luta também
Educa! – o programa de formação mais expressivo desenvolvido por uma
instância da CUT no âmbito do PNQ no período pós-2003, ele não é
considerado um programa exclusivo da PNF da Central, gerido pela
Secretaria Nacional de Formação. Por outro lado, após o fim do Planfor,
boa parte do que corresponde à prática de formação sindical e
profissional da estrutura da CUT se desconcentrou da SNF, espalhando-
se em práticas localizadas levadas a efeito pelos sindicatos e Escolas
Sindicais da Central. Embora numa intensidade menor que a adquirida
quando os recursos do FAT abundavam, as práticas de formação
sobreviveram sob a forma de prestação de serviços educativos e/ou na
forma de comercialização de cursos a outras instituições e sindicatos,
e/ou ainda através de convênios com ONG's e prefeituras municipais no
contorno do PNQ. De maneira geral, o que ocorreu foi a diversificação
293
das fontes de financiamento e parceria dos agentes da Rede incumbidos
da formação na prática de programas e cursos.
Contudo, em relação aos projetos de abrangência nacional
desenvolvidos pela SNF nos termos da Política Nacional de Formação da
CUT, constatamos que até o início de 2008 eles correspondiam aos
projetos Todas as Letras e Juventude Cidadã. Dentre eles, de longe, o
projeto Todas as Letras é o de maior envergadura do período, dado o
grau de dedicação de toda Central na sua realização – o que acabou
redundando numa boa quantidade de informações e material produzido a
seu respeito – e pode ser considerado o mais importante e representativo
do período.
O Projeto Todas as Letras faz parte do Programa Brasil Alfabetizado
do Ministério da Educação e estava sendo desenvolvido sob uma forma
de parceria da CUT com a Petrobrás e com o próprio Ministério da
Educação através do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação,
além de contar também com o apoio da Unesco e da Scania do Brasil.
Iniciado em 2005, este projeto se propunha a realizar a alfabetização e o
letramento de jovens e adultos em 23 estados brasileiros, com
participação de 80 mil educandos e mais de 3 mil educadores (cf. CUT,
2005). A proposta da Central era de interferir no processo de educação de
trabalhadores analfabetos a fim de disputar as concepções metodológicas
e políticas do processo de alfabetização, utilizando a experiência que já
tinha na área de educação de trabalhadores e a capilaridade da entidade
nas várias regiões do país, fornecendo-lhes o conhecimento dos seus
direitos de cidadania.
Tão importante quanto discutir a forma de implementação desses
novos cursos praticados pelas Escolas, sindicatos e CUT's estaduais, em
perfeita concordância com a PNF e, portanto, com a CUT nacional, é
mister discutir e problematizar a partir de nossa perspectiva, o verdadeiro
conteúdo, repleto de significados, das justificativas que a Central tem
lançado mão para efetivá-los, o que representa, de fato, implicações
conseqüentes da estratégia política empregada por ela no cenário da luta
de classes dos últimos anos, permitindo-nos qualificar claramente qual o
seu posicionamento em um dos lados dos pólos classistas contendores da
sociedade brasileira. É o que tentaremos trazer à tona na próxima seção.

294
PNF E CUT: DISPUTA DE HEGEMONIA, CENTRALIDADE DO TRABALHO E
PRINCÍPIO EDUCATIVO
Como se viu na discussão acima apresentada, o início das atividades
de formação profissional da CUT com primazia sobre a formação
político-sindical foi acompanhada, no plano discursivo, de um princípio
justificador assentado na idéia de que o fenômeno social do desemprego
se resolveria na esfera individual com a devida qualificação do
trabalhador para o mercado de trabalho. Dada a fragilidade do argumento,
que não se sustentaria em pé em qualquer debate sério que levasse em
consideração o processo de desenvolvimento histórico do modo de
produção capitalista, a CUT acaba por alterar o ideário filosófico
apoiador da sua inserção nas práticas de formação profissional. Nesse
ínterim, em sintonia com a estratégia política mais ampliada da Central,
também a formação cutista passa a se utilizar da categoria disputa de
hegemonia para legitimar sua atuação na área da formação profissional.
Embora tenhamos usado o mesmo conceito de origem gramsciana
para justificar a necessidade de práticas de auto-educação do proletariado,
há uma distinção de abordagens entre eles, sendo possível só distinguir o
significado nos usos de uma e outra à medida que se cotejar com a
acepção originária marxista e contextualizar a visão de mundo geral
adotada pela CUT a partir da metade da década de 1990, que acabou por
conduzi-la ao afastamento das lutas históricas da classe trabalhadora
nacional. Apesar de nossa concordância com os estudos que revelaram a
perda do horizonte combativo socialista da CUT, isso não significa que
expressemos que de uma forma deliberada ela tenha se convertido numa
central conscientemente defensora do liberalismo econômico e da ordem
social do capital tal como a Força Sindical, que lucidamente foi criada
para ser o braço sindical do capitalismo neoliberal no país. De outro
modo, o que queremos ressaltar é que, embora a CUT apresente críticas
pontuais a aspectos danosos aos trabalhadores no padrão do capitalismo
brasileiro, ela, nos planos da elaboração teórica e de sua atuação, não
mais se distingue de uma modalidade de esquerda mundial que,
desiludida, em grande medida, com as análises críticas a respeito do
“socialismo real” no leste europeu, passou a enxergar numa abstrata

295
noção de democracia o caminho para apenas uma “sociedade mais justa”,
e não mais socialista15.
É na trilha aberta pela adesão a esse princípio que a Central começa a
se utilizar do termo disputa de hegemonia para explicar suas ações.
Segundo se pode depreender dos discursos e práticas dela, temos que sua
noção de comportamento político se assemelha a de entidades, ONG's e
outros movimentos sociais que se julgam atuar num impalpável espaço da
sociedade denominado terceiro setor em busca de uma cidadania. Esse
contexto é que fez com que a CUT passasse a lançar mão, com cada vez
mais freqüência, dos termos disputa de hegemonia e sociedade civil como
forma de dar chancela a suas intervenções, especialmente no campo da
formação de trabalhadores.
Segundo as teorias do terceiro setor das quais a CUT se apropria, as
subdivisões das sociedades modernas se concentram em três âmbitos
distintos, a saber, o Estado, que seria a esfera da política e do poder; o
Mercado, entendido como a esfera onde teria vigência a lógica
econômica e o lucro e, por fim, a esfera da Sociedade Civil, o terceiro
setor propriamente dito, onde vigoraria uma espécie de propriedade
pública não estatal regida por uma racionalidade pautada na solidariedade
social e, portanto, contraposta às outras duas. Seria exemplo de entidades
pertencentes a esse terceiro setor uma inumerável quantidade de
entidades assistencialistas, ONG's, organizações sociais de diversas
montas, instituições filantrópicas etc. É exatamente aqui que é possível
situar a auto-proclamação da CUT como entidade com atuação no seio da
sociedade civil.
Segundo pode-se interpretar das suas práticas e retóricas, uma vez
que o Estado tem se mostrado ineficaz na realização de políticas públicas
e o Mercado, por sua natureza lucrativamente ambiciosa, não seja o
espaço para tal tipo de ação, caberia às entidades dessa suposta sociedade
civil (onde ficticiamente inexiste a distinção de classes) efetivar os
serviços sociais públicos que as outras duas esferas têm se mostrado
incompetentes em realizar. Diga-se de passagem que, vinculados ao

5K > ) + &588U JV' =


,
A

296
período de vigência das políticas macro-econômicas neoliberais, que
visualizam as políticas sociais como gastos do Governo, os serviços que
mais têm exigido a participação dos movimentos do terceiro setor estão
principalmente ligados aos campos da educação, saúde, lazer e educação.
É nesse espaço que entra o conceito de disputa de hegemonia acoplado ao
de sociedade civil na atuação da CUT. Assim, ela estaria atuando como
uma dentre tantas outras entidades pertencentes ao universo da sociedade
civil, e concorrendo com elas para influenciar as concepções e rumos das
políticas sociais que sofreram com a descentralização por parte do
Estado. Destarte, a Central não mais concebe o movimento organizado de
trabalhadores sob a forma sindical como o sujeito político por excelência
da história e da transformação social. O sindicalismo seria mais um
movimento com atuação na sociedade civil e a disputa de hegemonia,
portanto, se resumiria à estratégia propositiva de compactuação com o
capital, realizando intervenções que não transbordem o limite da
institucionalidade burguesa16. Para Zarpelon essa:
B C ) *%+

0
* 6
)
N 0 * )
*%+ ? ) 6>Iw D - *%+
@
- 4 -
)
) 4 2 )
&Y.G $6> J;;L 5UK'
É importante observar que os conceitos em tela também fazem parte
do rol das categorias analíticas do marxismo, especialmente em Marx e
Gramsci, e nos podem fazer acreditar que por serem assim, eles
mantenham o lastro de orientação classista da CUT. De outro modo, no
nosso entender, a serventia deles para a CUT se deve mais a uma forma
59 . ) )
, ? . ) *%+
I $ ) 0 I
= & , '
)

297
residual de atuação com horizonte no socialismo que fazia parte do
passado da Central do que de fato uma estratégia contemporânea de
organização dos trabalhadores rumo a sua emancipação. Afirmamos isso
porque, tanto em Marx quanto em Gramsci, embora estas categorias
apresentem matizes diferentes (mas não fundamentais, na própria teoria
de cada um, e na comparação entre elas), em momento algum elas
funcionam para legitimar a atuação reformista de entidades do
movimento dos trabalhadores. Para ficar mais claro a diferença entre a
concepção usada pela CUT e o sentido dado por Marx e Gramsci faz-se
importante distinguir qual seria a definição clássica dos conceitos para o
marxismo.
Em Marx, o conceito de sociedade civil representa o espaço das
relações de produção, significa a parte estrutural da sociedade e sua base
material e, em função disso, ela é a determinadora do Estado porque este
se encontra inserido nas relações sociais de produção. Nesse sentido
Marx chega a dizer que o Estado é a expressão oficial da sociedade civil
(cf. MARX e ENGELS, 1982). Assim, para o filósofo alemão, há uma
subordinação clara do Estado à sociedade civil, uma vez que “é ela que o
define e estabelece a organização e os objetivos do Estado, de acordo
com as relações materiais de produção” (CARNOY, 2003, p. 92).
Por sua vez, Gramsci dá um salto interpretativo em relação à
definição de Marx, complementando-a, sem, no entanto, negá-la. Para o
pensador italiano, sociedade civil também é o Estado (cf. DIAS, 2006, p.
32), mas ao incluir o conceito de hegemonia no seu sistema explicativo,
ao mesmo tempo encontra-se a explicação que ela (a sociedade civil) atua
no campo da superestrutura, significando o “complexo das relações
ideológicas e culturais, a vida espiritual e intelectual” (CARNOY, 2003,
p. 93). Nessa linha de raciocínio, a hegemonia representa a direção moral,
intelectual, política e cultural das classes dominantes, trabalhada pelo
convencimento não-violento como racionalidade universal e visão de
mundo única para as classes subalternas e as demais no interior da
sociedade civil. Exatamente nesse ponto reside a incongruência na
utilização dos termos sociedade civil e disputa de hegemonia pela CUT.
Como se nota, a definição cutista está em desacordo com as
elaborações marxistas e gramscianas das quais se reivindica depositária,
uma vez que para estes pensadores, a sociedade civil não é de maneira
alguma um espaço coeso e homogêneo e muito menos o espaço de
298
participação na cidadania como faz crer a interpretação terceiro-
setorialista da Central. Completamente oposto, a sociedade civil é
perpassada pela contradição porque é nela que se manifesta o
antagonismo de classes. Dessa forma, a disputa de hegemonia colocada
em pauta pela CUT não passa de fraseologia, de discurso vazio, porque
não se orienta pela construção da hegemonia da classe trabalhadora
entendida como força social e política da história (que se dá quando a
classe empenha-se em fazer o seu ponto de vista se tornar o ponto de
vista dos subalternos). A contra-hegemonia dos trabalhadores passa
necessariamente pela formação da sua identidade de classe, calcada no
desenvolvimento cultural e ideológico de uma consciência de classe para
si, mas também forjada no enfrentamento cotidiano com as classes
dominantes, através de mobilizações de massa, greves e protestos,
elementos estes que trazem a possibilidade de superar a visão
economicista/imediatista a respeito dos interesses mais radicais dos
trabalhadores.
Como a prática da CUT tem sido de não-confronto com o capital e
de proposição e participação nos espaços institucionais (onde os fóruns
tripartites e as sugestões nas contra-reformas neoliberais são a melhor
expressão), pode-se dizer que a sua acepção de disputa de hegemonia não
passa de eufemismo para explicar a sua adesão à ideologia e à prática do
pacto de classe.
Em adição ao complexo teórico-filosófico de conceitos de raiz
marxista que a CUT lança mão para justificar a qualidade de sua
intervenção no âmbito da educação integral e da formação profissional, é
bastante freqüente também encontrar as expressões trabalho como
princípio educativo e centralidade do trabalho, principalmente em uma
articulação recíproca. Em diversos documentos, publicações e coletâneas
de artigos produzidos pela própria SNF e pelas Escolas, e publicadas pela
Central, recorre-se à ajuda de intelectuais pertencentes ao quadro da
formação cutista e a acadêmicos brasileiros reconhecidos pelas suas
pesquisas na área, como, mais notadamente, Maria Ciavatta, Gaudêncio
Frigotto e Márcio Pochmann, a fim subsidiarem teoricamente a defesa da
metodologia usada nas suas atividades de educação.
Entretanto, a existência do debate acerca do trabalho como princípio
educativo, apesar de ser um tema candente na atualidade da formação
cutista, tem uma origem um pouco mais antiga do que faz crer a sua
299
utilização pela CUT. Tumolo (2005) já havia detectado a importância
desse conceito no pensamento brasileiro sobre Trabalho e Educação. De
acordo com o autor, o tema em questão era bastante recorrente no
pensamento educacional brasileiro de matriz marxista entre fim dos anos
1980 e início dos anos 1990, mas, segundo ele:
. 8;
0 <
0

, 0
<
F + G " + F"+
* t + *%+ &+%F6$6 J;;K
JU;'
Em síntese, a elaboração teórica dessas categorias reside na
argumentação de que o trabalho é a categoria ontológica fundante do ser
humano genérico, a atividade pela qual o homem humaniza-se (tal como
se afirma na tradição marxista, mais notadamente em Gramsci e Lukács),
e, por isso, a educação deveria, necessariamente, fundar-se no trabalho,
depreendendo-se daí que essa atividade ineliminável da condição
humana, mesmo no contexto de assalariamento e alienação capitalista,
deva ser o princípio de todo o processo educativo.
Contudo, a discussão a respeito do trabalho como princípio
educativo é longa, complexa, polêmica e ainda em curso. O que
desejamos sobressaltar a esse respeito é que, enquanto a CUT insistir no
discurso da centralidade do trabalho para o processo de educação sem a
respectiva consideração prática – de intervenção na realidade para a
transformação socialista – da centralidade política dos trabalhadores, as
suas práticas educacionais só não estarão esvaziadas de conteúdo político
porque estarão preenchidas com o discurso da formação para o trabalho
na forma social do capital, que é, sobremaneira, fetiche e alienação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo dos anos, através de escolhas políticas e como elemento
determinado e determinante das transformações na base material, o

300
referencial de mundo crítico socialista, expresso nas atividades de
formação da PNF, foi se tornando rarefeito em seu interior, até se
converter em formação profissional galvanizada por conteúdos no limite
dos temas típicos da agenda liberal, como é exemplo a noção
despolitizada de cidadania, e, quando muito, com condenações apenas
morais e conjunturais contra o sistema.
Ademais, segundo a extração que se pode fazer da atividade prática
da CUT, vê-se que ela transferiu para os espaços tripartites oficiais a luta
de classes, secundarizando o enfrentamento cotidiano com o capital nos
locais de trabalho, nos sindicatos e nas lutas políticas gerais para a
construção do socialismo. A opção da CUT por esse caminho demonstra
um não reconhecimento do Estado como instrumento de dominação de
classe e a disputa de hegemonia acabou se resumindo a uma disputa
ideológica, onde o ensino de uma visão de mundo crítica (tal qual a
proposta da educação integral afirmava) seria a panacéia dos problemas
sociais e dos problemas de organização dos trabalhadores.
Como se sabe, as atividades de formação não são neutras, pois,
através das escolhas metodológicas, dos objetivos e dos conteúdos que
praticam, trazem em si a carga das suas intenções ideológico-políticas.
Desse modo, afirmamos que de forma conscientemente orientada, a CUT
abriu mão da concepção segundo a qual a pedagogia para o
enfrentamento com o capitalismo se daria na práxis, ao articular
conhecimento teórico sobre o funcionamento do modo de produção e
formas de superá-lo com atividade política prática, como greves,
mobilizações de massa, protestos, manifestações etc.
Tal atitude é empiricamente constatável ao analisar o
desenvolvimento da PNF. Se, por um lado, nota-se a complexificação da
sua estrutura funcional e organizativa, principalmente a partir da entrada
da CUT na formação profissional com recursos provenientes do FAT, por
outro lado, há um retrocesso da instrução crítica teórica do conteúdo
desses cursos. Concomitante a esse processo de desenvolvimento
muscular da Central nos espaços oficiais em detrimento da representação
nas bases, há também uma equivalente progressão do Partido dos
Trabalhadores (com o qual CUT está organicamente vinculada) no
sentido de aumento da participação (inclusive dos quadros da CUT) nos
espaços políticos formais, o que nos leva a afirmar, que a estratégia de
formação cutista, especialmente durante a vigência do Planfor e do
301
desaguamento dos recursos do FAT, estava amplamente vinculada à
participação em um projeto de poder capitaneado pelas candidaturas
petistas e coroado com a eleição de Lula ao executivo federal.
Se, desde 1998, a prática da PNF se confunde com as propostas
oficiais, uma vez que se limita a atuar segundo políticas educacionais do
governo federal, a sua vinculação ao institucionalismo estatal por meio da
PNF se torna mais evidente no período do Governo Lula, quando se
converte praticamente por inteiro em correia de transmissão das
concepções de educação aos sindicatos, especialmente. Vide, por
exemplo, as principais transformações sentidas na PNF; boa parte das
suas mudanças de rota foram por pressão de fatores externos, ligados às
determinações do Estado, que influenciaram sobremaneira a posição
política dos seus dirigentes. Foi assim quando da constituição da Rede
Nacional de Formação, que se formatou para melhor gerir os programas
de formação no campo do Planfor, foi assim também quando resolveu-se
unificar num único projeto os programa de formação da RNF (visto como
algo positivo pela Central), que se deu em função do contingenciamento
de recursos do FAT a partir de 1999 e foi do mesmo jeito que a CUT pôs
em prática a diversificação das fontes de financiamento da PNF, algo
discutido há anos nas suas instâncias mas que só fora efetivado com as
exigências de contenção de recursos impostas pelo PNQ.
É nesse contexto de atuação que, de alguns anos para cá, a PNF da
Central tem atuado no que diz respeito à formação exclusivamente
sindical no âmbito da formação de dirigentes, pois, como se viu, outra
boa parte da política de formação recente se destina à parceria com o
governo federal para alfabetização de adultos e qualificação profissional.
Isso se dá em função do afastamento da CUT das lutas nas bases,
concorrendo para a formação de novos quadros afastados da experiência
real dos trabalhadores nos locais de trabalho.
Assim, embora abrigue no seu interior cada vez mais minoritárias
correntes bem intencionadas politicamente, o que tem efetivamente
ocorrido até então é o aprofundamento de um processo de transformação
da CUT naquela modalidade de sindicalismo que ela nasceu combatendo.

302
REFERÊNCIAS:
1. BRASIL. PLANFOR – Plano Nacional de Qualificação do
Trabalhador – avaliação gerencial 1995/98: balanço de um projeto
para o desenvolvimento sustentado. Brasília: MTE/SEFOR, março,
1999.
2. CUT – Central Única dos Trabalhadores. Resoluções do 5º
Congresso Nacional da CUT (CONCUT), 1994. Disponível em:
<http://www.cut.org.br>. Acesso em 21 de agosto de 2007.
3. ______. Forma & Conteúdo Edição Especial. Todas as Letras, nº
12, outubro de 2005.
4. CORREA, João Guilherme de Souza. Formação de Trabalhadores
e Movimento Sindical: desenvolvimento e consolidação da
Política Nacional de Formação da Central Única dos
Trabalhadores (CUT) na última década (1998-2008). 131f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação
em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.
5. DIAS, Edmundo Fernandes. Política brasileira: embate de projetos
hegemônicos. São Paulo : Sundermann, 2006.
6. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real.
São Paulo: Cortez, 1996.
7. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno.
Tradução de Luiz Mário Gazzaneo. 7ª ed., Rio de Janeiro :
Civilização Brasileira, 1989.
8. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere, volume 1 (Introdução
ao estudo da filosofia. A filosofia de Benedito Croce). Edição e
tradução, Carlos Nelson Coutinho; co-edição, Luiz Sérgio Henriques
e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1999.
9. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos sobre Educação e
Ensino. São Paulo: Moraes, 1983.
10. ______. Cartas: Marx a Pavel V. Annenkov (em Paris). In: Obras
Escolhidas. Tomo 1. Lisboa, Avante, 1982.

303
11. MORA, Eliane Arenas. O caminho da subsunção da Política
Nacional de Formação da CUT às diretrizes de sociabilidade
neoliberais. 294 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de
Educação, Universidade Federal Fluminense, 2007.
12. SAUL, Ana Maria; MAZZEU, Francisco José Carvalho; SILVA,
Janete Bernado; DOMINGUES, Marte Regina; CONCEIÇÃO,
Martinho (orgs). A intervenção da CUT nas Políticas Públicas de
Geração de Emprego, Renda e Educação de Trabalhadores:
avaliação, resultados e ampliação de perspectivas. São Paulo:
CUT/Unitrabalho, 2003
13. SOUZA, José dos Santos. Os descaminhos das políticas de
formação/qualificação profissional: a ação dos sindicatos no Brasil
recente. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e Miséria do
Trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, p. 475-497, 2006a.
14. SOUZA, Nilda Rodrigues. Formação Profissional e ação sindical
no Brasil. 2006. 195 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)
– Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2006b.
15. TEIXEIRA, Rodrigo Dias. A conversão da CUT e a relação com o
FAT (1990-2000). In: História e Luta de Classes, ano 4, nº 5,
Trabalhadores e suas organizações. Rio de Janeiro, 2008.
16. TOLEDO, Caio Navarro de. A modernidade democrática da
esquerda: adeus à revolução? Crítica Marxista, ano I, nº 1, São
Paulo: Brasiliense, 1994,
17. TUMOLO, Paulo Sergio. Da contestação à conformação. A
formação sindical da CUT e a reestruturação capitalista.
Campinas: Unicamp, 2002.

304
TRABALHO, IDEOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROFISSIONAL NO BRASIL:
análise da visão industrial nas décadas de 1930 e 1940

*
) .

INTRODUÇÃO
Neste texto, analisaremos as ideias dos industriais brasileiros ligados
ao IDORT1 (Instituto de Organização Racional do Trabalho),
privilegiando como análise o debate e a defesa da educação profissional
feita pelos industriais no período histórico de 1930-1940. No início do
século XX, observamos o processo de constituição de base produtiva
industrial no país, contribuindo para o surgimento de ideias relacionadas
à organização do processo industrial nacional. É neste contexto que
surgem propostas articuladas por um grupo de industriais liderados pelo
engenheiro e industrial Roberto Simonsen para a organização de uma
entidade que defendesse a organização e a racionalização do trabalho a
partir das ideias tayloristas. Segundo Ibanhes (1992, p. 27):
B C )S ) )
S )
,
) 0 ? S
e / R e ) 0 R e R
e ) R e ) R T
)S
N N @
Lembramos que os industriais já haviam criado em 1928 o CIESP
(Centro das Indústrias do Estado de São Paulo), com o objetivo de

E ) %>!*.F " * % , *
&* %*$.G' I + Q!"+ E(G2# 2%>!*.F 1
p ]
5 X ) !E6G+ -, )
/ ( ! 58L; &6G+'
6 ) G + # "
- )
)

305
organizar e representar politicamente os industriais paulistas. Criam o
IDORT em 1931, com o objetivo de sistematizar e divulgar as suas
ideias, em período de acirrada disputa das frações de classe burguesa.
A partir da década de 1930, empresários (principalmente paulistas)
tornam-se adeptos do taylorismo no Brasil, e é buscando implementá-lo
nas empresas que se organizam e fundam o IDORT em 23 de Julho de
1931, em reunião realizada na sede da Associação Comercial de São
Paulo. Cunha (2005) nos informa que esta entidade desempenhou um
papel importante no ensino profissional paulista e também no país, no
entanto, entendemos que o ensino profissional acessível e voltado para
formação (oficial) da classe trabalhadora somente se concretizará de fato
em 1937 a partir do movimento escola novista, com a elaboração da
Constituição de 1937.
A burguesia industrial divulgava e defendia a criação de centros de
educação profissional, como estratégia para capacitar os trabalhadores,
aumentar a produção e qualificar para o trabalho heterogestionário, mas
fundamentalmente como mecanismo para “educar”, “disciplinar” e
“controlar” a força de trabalho, ou seja, os valores e a ideologia como
agências educativas, além de hierarquizar e fragmentar o interior do
espaço fabril, busca com isso conter a mobilização e quebrar a autonomia
das organizações dos trabalhadores3.

O PAPEL DO IDORT NA ELABORAÇÃO E DIVULGAÇÃO DAS IDÉIAS DA


BURGUESIA INDUSTRIAL
Ao analisar a organização dos industriais nesse período histórico,
Antonacci (1993) nos informa que os mesmos pretendiam transformar o
espaço fabril e implantar novos métodos de trabalho que aumentassem a
produção com dimensões do “fazer-se da burguesia industrial paulista,
enfrentando as potencialidades dos trabalhadores”. As propostas de
organização e racionalização do trabalho, difundidas pelo IDORT,
segundo Antonacci (1993), foram “ampliando, diversificando e
infiltrando por toda a vida social, cultural e política, através de múltiplos

L
G ?

306
e variados mecanismos de poder, administrando, economicamente e
politicamente a tudo e a todos” (ANTONACCI, 1993, p. 17).
Tenca (2006) também realiza estudos e análises referentes à
organização dos industriais nesse período, compreendendo que “a ação
idortiana caracteriza-se como uma prática político-pedagógica de longo
alcance”. Segundo ainda Tenca (2006, p. 31):
6 !E6G+ @
@
* @ -

"
0 0
@
&+ >*. J;;9 L5'
A burguesia industrial divulgava suas teses via revista IDORT,
fazendo discurso para o operariado de conciliação de classe, colaboração,
disciplina, todos unidos em prol do progresso do país, propondo “[...] que
os patrões e os operários se unam na defesa dos interesses mútuos”, pois
se os trabalhadores fossem parceiros no projeto burguês, só teria e “[...]
iria ganhar com o desenvolvimento industrial”, “teria sua parcela de
riqueza” (PICHELLI, 1997, p. 18).
Entendemos que eram discursos que visavam amenizar os conflitos
sociais ou mesmo conter as organizações de trabalhadores ligados às
ideias marxistas e que, segundo os industriais, deveriam ser neutralizado,
pois estavam questionando, atrapalhando o projeto industrial, protelando
o desenvolvimento do país.
Antonacci (1993, p. 103) nos informa, por exemplo, sobre as defesas
de Simonsen referente à harmonia social, solidariedade, como forma de
se contrapor às teses de luta de classes.
. , a
) )
) N
0 >
) )
) N ?

307
"
)
Esta pesquisadora nos mostra, ainda que as ideias e as ações dos
industriais tivessem claramente o objetivo de enfraquecer ou mesmo
eliminar as resistências operárias, a luta de classes e as ideias marxistas
do meio operário. Simonsen entendia que “o desenvolvimento contínuo
da cultura técnica e profissional, reclamada e recomendada pelos
sindicatos operários, à admissão do controle operário na solução dos
problemas econômicos, vão arrefecendo, naturalmente a luta de classes
anunciada e preconizada por Karl Marx” (ANTONACCI, 1993, p. 103).
Assim como Antonacci (1993), Weinstein (2000) observa que o
industrial Roberto Simonsen tinha bem claro seus objetivos com relação à
organização do IDORT e suas defesas pela organização e racionalização
do trabalho, demonstrando sua aversão aos trabalhadores e sindicatos que
tinham orientação marxista. Este industrial defendia:
B C )
0 E 0
) ) e
0 R e R
" e 0
) ) .
)
? B C )
, ) a
h F ?
&` !>"+ !> J;;; VV'
Ou seja, os principais defensores da organização científica do
trabalho deixavam evidentes suas propostas de organização não somente
para a indústria, mas sim para a sociedade como um todo e que suas
idéias eram fundamentais para neutralizar a luta de classes.
Concordamos com a análise dos pesquisadores citados, pois
entendemos que o discurso ideológico e a prática industrial dos principais
membros do IDORT4 tinham por objetivo convencer os trabalhadores de

U ) !E6G+ ) ,
58J; G " ) 0
58JV ? , ) ) * ! @

308
que seria possível construir uma sociedade “harmônica”, sem “conflitos”,
de “colaboração”, mas que, na verdade, tinha como objetivo desqualificar
o discurso formulado pelas lideranças operárias, que pretendia,
“rearticulando o espaço fabril, educar o operariado segundo os princípios
da ética do trabalho e desse modo, consolidar o projeto hegemônico da
burguesia industrial” (PICHELLI, 1997, p. 77).
Ao analisar essa questão, Antonacci (1993, p. 46) observa que um
dos objetivos era “quebrar a autonomia e o poder desses grupos
operários, que, nas formas de trabalho e de organização, expressavam
uma elaboração cultural de vida através de concepções e disposições de
tempos e espaços, de costumes e comportamentos, enfim, todo um modo
de viver e se relacionar disseminado pela sociedade”. Essa autora observa
ainda que era também objetivo dos industriais ligados ao IDORT:
B C ) )
B C 6 )
?
,
)S )
&.>+6>.**! 58VK 89 8:'
Os ideólogos do IDORT entendiam que esse Instituto tinha um papel
importante a cumprir, pois deveria incluir em seus objetivos “[...] a
pesquisa e o intercâmbio de idéias, a aplicação de métodos científicos e a
transformação dos inimigos de classe em colaboração para ‘prosperidade
geral’” (WEISTEIN, 2000, p. 89).
Em reunião com os empresários em 1918, Simonsen5 proferiu um
discurso entusiasmado sobre a racionalização do trabalho:

" &*! " ' = A


&I!.>6++! J;;: 8;'

K$ " G F
6 ) G + =& '

)S ) )
a &` !>"+ !> J;;; LU'

309
. (
) 0
)
) B C )
) N ,
e ,? R
e ) )S
)
- 0 R B C
0 ) S ,
) e ) R &*%>Q.
J;;K L5'
Percebemos, no discurso desde entusiasta do taylorismo, a concepção
de colaboração de classe, de cooperação cordial, como mecanismo para
se conseguir viabilizar a sua proposta e possibilitar elevação dos lucros.
Verificaremos, no decorrer de nosso trabalho, que estas ideias são mais
enfáticas na década de 1930, com a fundação do IDORT, e também a
partir de governo com viés industrialista e tendo como seu chefe de
Estado um presidente formado nas ideias positivistas.
Neste período histórico, a instituição analisada por nós foi
fundamental na disputa dos industriais com o setor agrário-exportador, no
aparelho do Estado e também no convencimento e cooptação dos
trabalhadores.
Neste sentido, concordo com Tenca (2006):
6 !E6G+ 58L5 -,
58J8 )
,
) @
) ) )
? ) )
&+ >*. J;;9 L8'
Simonsen, Roberto Mange e outros industriais entendiam que o
Estado tinha um papel fundamental na divulgação da ideologia de
“cooperação de classe”, propondo uma sociedade “harmoniosa” entre
capital e trabalho. Estes industriais defensores da organização racional do
trabalho definiam ainda o Estado como “um mecanismo potencialmente
útil para disciplinar os membros da própria classe” (WEINSTEIN, 2000,
p. 71).
310
Ou seja, não bastava disciplinar apenas os trabalhadores no espaço
fabril, mas era urgente que o Estado colaborasse para a disciplina de
setores industriais que ainda tinham certa resistência às ideias de
organização racional do trabalho. Era necessário reprimir os movimentos
sociais como forma de garantir a implementação do projeto industrial, ao
mesmo tempo, destruir as organizações que questionavam as propostas
tayloristas, a exploração do trabalho no espaço fabril.

ORGANIZAÇÃO INDUSTRIAL E DISPUTA PELA HEGEMONIA NO PERÍODO


VARGUISTA
Em 1930, sobe ao poder Getúlio Vargas, ocorrendo um processo de
transição que nada tinha de “revolucionário”, pois foi um rearranjo do
bloco de poder, porém sem mudar as estruturas de poder, a velha
estrutura latifundiária do país. Conforme entende Antunes (1980), este
processo deu-se “pelo alto”, não tendo participação da classe
trabalhadora, que foi excluída de qualquer participação, uma vez que
ficou nítida a conciliação estabelecida entre as frações dominantes.
Este processo foi importante para o início do capitalismo industrial
no país, porém sem ruptura, sem conflitos, mas a partir de “conciliação
entre o velho e o novo, entre vários segmentos representantes dos
interesses agrários e mesmo dos setores urbanos emergentes”
(ANTUNES, 1980, p. 67). Foi um processo em que ocorreu conciliação
de classe, mas torna-se importante ressaltar que o mesmo não se deu de
forma tranquila, pois ocorreram fissuras no interior da classe dominante,
nas disputas “pelo maior controle do aparelho do Estado buscando uma
participação mais decisiva na nova configuração do poder” (ANTUNES,
1980, p. 69).
Antunes (1980) observa ainda que, após a “ascensão” de Vargas ao
poder, o Estado passa a implementar política sindical com o objetivo
principal de “controlar” e “desmobilizar” os operários. Conforme
Antunes:
6 ) 0 -
,
) , ,
0
)S 0

311
) a
) &.>+%> " 58V; :U'
Os empresários defensores das ideias de organização e
racionalização do trabalho verão suas percepções sobre “paz social”,
“cooperação de classe”, sociedade “harmoniosa” defendidas por Vargas,
como nos informa Vianna (1976): “a ‘paz social’ era procurada através de
concessões e benefícios concretos, a que não era insensível a massa dos
assalariados. A possibilidade do controle operário incluirá
necessariamente uma legislação minimamente protetora do trabalho”
(VIANNA, 1976, p. 150).
Estes mesmos industriais ficarão mais entusiasmados, ao ouvirem o
pronunciamento feito por Vargas, nos primeiros anos de seu governo,
afirmando que:
6 ?
)
> ,
0 ,
0 @ F
, -
) < )
? N )
0 ,
# 0 &g.GI." 58LV 8:28V'
Além de relacionar a importância da cooperação do proletariado com
o Estado, Vargas faz crítica às lideranças estrangeiras como sendo
perturbadores da ordem e que não tinham sentimentos de amor à pátria.
Mesmo que a burguesia industrial buscasse cooptar segmentos da
classe trabalhadora, fazendo um discurso nacionalista de crescimento do
país via industrialização e de condições para todos a partir de unidade
nacional, não podemos afirmar que essa burguesia era de fato nacional,
neste sentido, eu concordo com Buonicore (2009), que, ao analisar esse
período histórico, observa:
6

N
? e R
6 - @

312
. )S

0
@ > (
-
-
a a .
g &58L; 589U'
- &(%6>!*6G J;;8 5L;
5L5'
Com relação à proposta de um novo sindicalismo, defendido por
Vargas, Gianotti (2007, p. 131) nos informa que essa proposta significava
que os trabalhadores “deveriam defender a conciliação de classes e zelar
pela harmonia de interesses entre capital e trabalho. As idéias-chave
passarão a ser ‘colaboração de classe’ e ‘paz social’. Não haveria mais
lutas. O Estado seria o pai de todos”.
Ao analisar a relação do Governo Vargas e os industriais, Tenca
(2006) observa que os industriais:
B C )

, 0 )
) , e 0 R e R )

)
@ &+ >*. J;;9 U5'
Os diversos pesquisadores citados entendem que o discurso
ideológico tinha como objetivo construir uma sociedade harmônica, sem
conflitos e com colaboração de classe.
Com relação ao fortalecimento dos industriais, tendo o Estado como
aliado em suas ações, concordo com Antunes (1980), que aponta o
fortalecimento da burguesia industrial a partir de um forte aliado, que é o
Estado varguista, que formula e implementa uma “política sindical
coibidora, controladora e que visou a sujeitar politicamente a classe
operária à dominação do capital, através da dissolução de suas
organizações independentes e, em função da resposta operária, do
desenvolvimento da repressão policial, que em determinados momentos,
como em 1935, foi incontrolável” (ANTUNES, 1980, p. 73).

313
Observamos que, se a cooptação não funcionasse, não tivesse efeito,
utilizava-se da força e da violência5 para reprimir greves e protestos dos
trabalhadores.
Segundo Weinstein (2000, p. 75), a questão da “ordem social” não
era:
B C <
)
T )
- .
, S
e R
Nas primeiras décadas do século XX, a burguesia estava alarmada
com a capacidade de organização, mobilização e enfrentamento da classe
trabalhadora, neste sentido é que buscam diversas alternativas para barrar
este movimento, via leis de expulsão do país, repressão, cooptação e
também educação profissional, com o objetivo de adestrar, orientar e
disciplinar os trabalhadores.
O discurso empresarial de cooperação de classe, além de ser questão
ideológica de colaboração, envolvimento, na prática, mostrava-se
contraditório, pois, não obstante a exploração imposta à classe
trabalhadora, o controle6 no espaço de trabalho era cada vez mais rígido e
os empresários passaram a criar métodos de controlar a vida dos
operários fora das fábricas. Para viabilizar este controle extra fabril,
criaram as “vilas-cidadelas”, que eram um “conjunto de moradias e
agrupamentos coletivos edificados pelas próprias fábricas para seus
operários” (ROLNIK, 1994, p. 100). Ao analisar a situação dos
trabalhadores no início do século XX no Brasil, esta autora nos informa
ainda que a cidadela:

K * ) ) @ & 0 ' ) 0
, =& ' ) ,
. "
e R ) 0 A &` !>"+ !>
J;;; U5'
9 # ? 0 )
=@ )
e ) R ) , )
, A
&` !>"+ !> J;;; L9'

314
B C 1 )
- , @
, > , ,
- N -

! "# $ $
% !
& ' ( ) !
" $ *
( ' !
! ( %
, ) )
? ) -
) F
, 0
0
@ 0
< -,

+
a 1
, &G6$>!h 588U 5;; 5;5 '
Ou seja, buscavam-se diversas formas para controlar o trabalhador,
sendo que, além das vilas-cidadela, muitos industriais criaram também a
“vila higiênica”, que, segundo Rolnik (1994), diferenciava-se também do
cortiço:

. )
) ,
.
, B C
a . )S )
.
)
&G6$>!h 588U 5;;'
Esta autora observa que as intenções dos industriais em controlar os
trabalhadores além fábricas não era questão fácil, pois os becos, pátios
dos bairros populares, contribuíam para que as pessoas conversassem dos
problemas cotidianos e, neste período, os anarquistas tinham forte

315
atuação nos bairros, o que facilitava as mobilizações que rapidamente
ganhavam as ruas.
> ,
@ S ) " N

) )
? &G6$>!h 588U 5;U'
Campos (1988) é outra autora que analisa muito bem o controle que
procurava impor aos trabalhadores para além muros das fábricas.
Segundo esta autora,
)
)
<
)S
) ) )
+ -
)
)

- )
0
)
)S F ,
0
6 ?
-
) ) &*.F 6"
58VV 5V'
Concordamos com esta autora, no entanto, torna-se importante
afirmar, assim como bem explicita Rolnik (1994), que havia resistência
de movimentos organizados, ora pelos anarquistas, ora pelos socialistas
ou comunistas que, a partir de organizações populares, buscavam a rua
como forma de protestar ou pelas condições de moradias, ou para
condenar as ações truculentas do poder público.

316
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL COMO ESTRATÉGIA DE DOUTRINAR,
DISCIPLINAR E PREPARAR PARA O TRABALHO FABRIL
Mesmo que pretendamos focar análise nos anos de 1930 e 1940,
entendemos que o debate em torno da educação profissional já estava
colocado no país no início do século XX e que, no decorrer dos anos, irá
se acentuar, principalmente com a organização dos industriais no CIESP
e com a criação do IDORT em 19317. A Lei n°1.184 de 3 de dezembro de
1909 já apontava para a preocupação de educação dos jovens filhos dos
operários.
)

? , ?
, , .
)
)S
. )
, ) ,
&*%>Q. J;;K 5U5'
A partir dos apontamentos deste autor, verificamos também a
articulação do setor privado com o Estado, que buscava garantir que estas
escolas tivessem como principal objetivo atender aos interesses da elite
industrial. Em 1909, o governo de Estado de São Paulo estabelece
contratos com o setor privado e instala escolas profissionalizantes com o
objetivo de formar força de trabalho qualificada para o trabalho fabril.
Em sua pesquisa, Cunha (2005) nos informa que o texto da lei n°
1,192 de 22 de dezembro de 1909 expressava a persistência da concepção
do ensino profissional como algo destinado aos desvalidos, em
consonância, aliás, com a exposição de motivos do decreto do presidente
de República desse mesmo ano:
# I
0
)

: 6 -, - 0 0
HH . ) * "
58JV E *! " &* ! @ " '
-

317
? 55
)
&*%>Q. J;;K 5UJ'
O debate em torno da educação profissional8, com o decorrer do
tempo, vai ganhando maior importância em diversos setores da
sociedade: acadêmico, empresarial e governamental.
Entendemos que foi na década de 1930 que se aprofundou o debate
em torno da educação profissional no Brasil, no entanto, foi na década
seguinte que os industriais conseguiram, com apoio do Estado, criar uma
importante escola de formação dos trabalhadores. No período do Estado
Novo (1937-1945), os industriais conseguiram regulamentar as propostas
de ensino profissional o Brasil a partir da reforma Capanema (1942),
conhecida também como Leis Orgânicas do Ensino9. Esta reforma
estruturou o ensino profissional, reformulou o ensino comercial e criou o
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI.
A partir dos estudos realizados, compreendemos que os industriais
tinham como estratégia formar os trabalhadores brasileiros, como
mecanismo de diminuir ou mesmo retirar do setor fabril os trabalhadores
estrangeiros10, pois os mesmos em sua maioria tinham ideologias
“estranhas”, eram “contestadores” e podiam criar “problemas” para o
projeto nacionalista de industrialização do país.
Diferente de anos anteriores, em que se defendia a vinda de
trabalhadores estrangeiros para o Brasil, por serem os mesmo

V . !E6G+ ) N ) G F =
/ )S ) )
( & ' 5VVK 0) $ + # E
. & ' * 58;L JV
, " , )S
@
&(Gl.> J;;8 JK'
8 * 58UJ2UL1 E U ;:L L; -
58UJ DE U ;UV JJ - 58UJ
" >.!D E U JUU 8 58UJ , 1
DE 9 5U5 JV 58UL

5; * )S
# # , +
, = $ A N
& !*Q $$! 588: :9'

318
qualificados, neste novo momento histórico do país (década de 1930-
1940), ganha força no setor industrial a ideia de que se fazia urgente e
necessário a substituição da força de trabalho estrangeira11, por
trabalhadores nacionais, pois não tinham “vícios” e “idéias complicadas”,
“estranhas”:
6( )
B C
( S )
0 ,
@
B C.
N
0 N ?
)S B CE
, e R e ) R
& !*Q $$! 588: 9'
Os efeitos destas ideias são constatados já nos anos 30 em
decorrência da diminuição da imigração para o Brasil e do crescente
processo de migração para as principais cidades como, por exemplo, São
Paulo, como bem nos informa Pichelli (1997): “entre o período de 1931 e
1946, chegaram a São Paulo 651.762 migrantes internos contra 183.445
estrangeiros. Já no período anterior, entre 1881 e 1930, os estrangeiros
somavam 2.250.570, contra apenas 289.179 nacionais” (PICHELLI,
1997, p. 6).
Constatando a necessidade de os trabalhadores nacionais compor
definitivamente a força de trabalho no país, como estratégia também de
substituir a estrangeira pelos trabalhadores brasileiros, tornava-se
indispensável educar, instruir e preparar o mesmo para o mercado de
trabalho. Lembramos que esta preocupação se torna mais evidente com o
crescimento dos projetos de industrialização do país, principalmente após
Getúlio Vargas12 assumir o poder no Brasil.

55 ( ( ? d U JU: - 58J5
? )
d U :UL 58JL &>.I$ 58:U'
5J . 0 g )S
) = 0
) , ) ? 0 ?
0 A &.>+%> " 58V; ::'

319
Neste sentido é que seria fundamental e urgente um projeto
educacional que possibilitasse a formação de um novo homem, porém
que fossem “operários dóceis, saudáveis e produtivos, além de uma nova
elite, capaz de comandar a sociedade dentro dos novos princípios da
ordem burguesa” (PICHELLI, 1997, p. 6).
Em seus estudos, Romanelli (2006) observa que outros fatores
também contribuíram para a restrição da importação de trabalhadores
estrangeiros. Segundo esta mesma autora:
B CX ? )
0 )
.
) ? )
0 ( . ?
0 )
@
) 6 0
)
) !
1
)
) B C
?
4 -,
)
&G6F.> $$! J;;9 5KK'
Daí a informação dada pela mesma autora, de que é a partir deste
processo que surge a iniciativa dos industriais brasileiros de treinar
trabalhadores nacionais, emergindo a partir desta preocupação a
necessidade urgente de se criar uma escola de formação de trabalhadores;
inicia-se neste período o surgimento do SENAI (Serviço Nacional de
Aprendizagem Industrial).
O SENAI foi criado a partir do Decreto Lei 4.048, de 22 de Janeiro
de 1942. Romanelli (2006) nos informa que o mesmo foi criado com o
objetivo de organizar e administrar escolas de aprendizagem industrial
em todos o país, podendo também manter, além dos cursos de
aprendizagem - que eram mais rápidos, segundo a Lei Orgânica do
Ensino Industrial, e tinham por objetivo a preparação dos aprendizes
menores dos estabelecimentos industriais -, “cursos de formação e

320
continuação para os trabalhadores não sujeitos à aprendizagem”
(ROMANELLI, 2006, p. 166).
Somando o descontentamento com os trabalhadores estrangeiros aos
problemas em decorrência da guerra, cresce no interior dos industrialistas
a necessidade de se criar esta escola. Neste sentido é que o Governo
Federal cria o sistema de ensino paralelo ao oficial, que foi organizado
em convênio com as indústrias via CNI (Confederação Nacional das
Indústrias). (ROMANELLI, 2006, p. 155).
O trabalho qualificado era compreendido neste período como meio
de se manter a ordem13, evitar a desordem, mas também como
“instrumento inteligente de produção industrial” e, para garantir e
implementar esta ideologia, dispunha-se de instituições educacionais
como Liceus de Artes e Ofícios14 e asilos desvalidos (CUNHA, 2005).
Formação/educação profissional para os trabalhadores era um dos
principais objetivos do IDORT, tanto que Lourenço Filho e Roberto
Mange eram responsáveis, no interior desta organização empresarial, pela
questão educacional. Tenca (2006, p. 40), ao analisar a educação no
interior do IDORT, entende que:
) ! 6 ) G +
?
<
E @ ,

$ " 0
)

5L . ) 0 G @ N

0 )S - ) & ' 0
) <
&*%>Q. J;;K'
5U . = < ) ( "
0 E 0
, ) , N )
0 )S . , . 6
58;9 G ^ # * ( F
" ? "
)S 58J; 0
, A &*%>Q. J;;K 55K 559'

321
Importante lembrar que o principal entusiasta e articulador para que
se concretizasse a criação da Escola Livre de Sociologia e Política era
Roberto Simonsen, Presidente da FIESP e fundador do IDORT.
Na inauguração desta escola em 1933, Simonsen deixava claros os
objetivos definidos para a escola:
B C
)
) -, ? )
0 )S

) ) )
)

, N )
&"!F6>" > 58LJ 5L'
Simonsen (1933, p. 7) apresenta ainda sua visão sobre o papel da
escola de sociologia e política, como estratégico para a formação da elite
nacional.
. ) )S
\ )
,
) -
?
) ,
"
)S

&"!F6>" > 58LL :'


Weinstein (2000) também analisa este movimento e o processo de
fundação da Escola Livre de Sociologia e Política, em que, em sua
fundação, é divulgado um manifesto sobre os objetivos desta escola.
Conforme Weinstein (2000, p. 94), o manifesto propunha a formação de
uma:
B C 0 0
B C !

322
e 0 R 0

, )S
0
-
) &` !>"+ !> J;;; 8U'
Ao também analisar a educação profissional no Brasil, Tenca (2006,
p. 41) nos informa que, na reorganização do ensino profissional no Brasil,
o IDORT teve participação ativa das discussões, contribuindo com ideias
também:
B C ) E . )
" ) @ &E." 'D ) " "! " "*D
G ) . I &G.I '
" D N
#! " ) $ " 0
58LL N ) %
" 58LU . "
6
!E6G+ 58L5
@ ) 0
)
)S

Ao mesmo tempo em que os industriais fundam a Escola Livre de


Sociologia e Política para formação profissional dos trabalhadores, a fim
de atuarem na indústria que estava sofrendo alterações significativas, os
mesmos criam a Universidade de São Paulo, com o objetivo claro de
formação da elite industrial e empresarial paulista.
A Constituição de 1937, por exemplo, em seu artigo n° 129,
determinou um papel inédito para Estado, empresas e sindicatos no
tocante à educação profissional das “classes menos favorecidas”.
Conforme este artigo:
6 N
)
* ? )

0 )S
X @ a

323
, .
, ?0
0
@ &*%>Q. J;KK JV'
Ao analisarmos estes decretos, Romanelli (2006) nos informa que o
ensino industrial, a criação das escolas de aprendizagem foi de “[...] um
aspecto de indiscutível valor da história do ensino profissional, pois
revela uma preocupação do governo de engajar as indústrias da
qualificação de seu pessoal, além de obrigá-las a colaborar com a
sociedade na educação de seus membros”. Esta autora observa, ainda, que
os trabalhadores técnicos eram importados, pois não existia no Brasil
força de trabalho qualificada para realizar trabalho no setor industrial
(ROMANELLI, 2006).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto, procuramos demonstrar, por um lado, que a principal
organização dos industriais no período analisado, com relação à educação
profissional, era mesmo “doutrinar” uma classe que se tornasse submissa,
“dócil” e não contestasse as mudanças que estavam ocorrendo no espaço
fabril; por outro lado, viam, na educação profissional controlada, gerida
pelos industriais, com apoio do Estado, uma forma de preparar os
trabalhadores, tornando-os modelos, “operários padrões”, isentos de
ideologias “complicadas”, “estranhas”, conforme era amplamente
divulgado pela revista IDORT. Fizemos apontamentos no texto das
diversas estratégias de controle, cooptação e mesmo de repressão por
parte do Estado Varguista, buscando garantir a “ordem” e “harmonia
social”.
A partir do exposto, entendemos que a luta de classes, o confronto
dos operários com a classe dominante, dava-se de diversas formas,
organizados por inúmeros movimentos e também pelas lideranças do
Partido Comunista. Observamos que o Estado foi decisivo para a
cooptação da classe trabalhadora, fragmentação dos mesmos e
enfraquecimento dos sindicatos combativos via leis sindicais;
principalmente no período do Estado Novo, podemos observar forte
repressão, prisão, perseguição e extradição de muitos trabalhadores
ligados às organizações de luta social e que não aceitavam as regras

324
Ao analisarmos os documentos do IDORT, fica evidente que a
preocupação fundamental com a educação profissional para a formação
de trabalhadores “brasileiros” para a indústria estava também ligada com
a política de substituição dos estrangeiros por brasileiros, pois esses não
tinham idéias “estranhas” (anarquismo, socialismo, comunismo). Neste
período, estava em curso a política de “banir” do chão da fábrica e do
país (prisão, extradição, deportação) as lideranças políticas e sindicais de
origem européia. Entendemos que estava claro o projeto industrial
burguês, que buscava a construção hegemônica de seu pensamento e
projeto nacional, buscando enfraquecer os trabalhadores, cooptando,
fragmentando e perseguindo lideranças sindicais, com apoio do Estado,
principalmente no período do Estado Novo; e disputar a Hegemonia com
o setor agrário-exportador, ocupando espaço em setores estratégicos do
Estado no período varguista. Entendemos que o IDORT foi o principal
instrumento de elaboração, divulgação e defesa das concepções da
burguesia industrial neste período histórico, buscando, com isso,
consolidar suas idéias.

REFERÊNCIAS:
1. ANTUNES, Ricardo. Classe operária, sindicatos e partido no
Brasil: da revolução de 30 até a Aliança Nacional Libertadora,
Cortez, São Paulo, 1980.
2. ANTONACCI, Maria Antonieta M. A Vitória da Razão? O
IDORT e a Sociedade Paulista, Marco Zero, São Paulo, 1993.
3. BUONICORE, Augusto César. Marxismo, História e Revolução
Brasileira: Encontros e Desencontros, Anita Garibaldi, São Paulo,
2009.
4. CAMPOS, Cristina Hebling. O Sonhar libertário: movimento
operário nos anos de 1917 a 1921, Pontes, Campinas, 1988.
5. CUNHA, Luiz Antônio. O ensino de ofícios nos primórdios da
industrialização, UNESP, São Paulo, 2005.
6. CUNHA, Luiz Antônio. O ensino industrial na irradiação do
industrialismo, UNESP, São Paulo, 2005.
7. IBANHES, Lauro Cesar. O Discurso Político-Ideológico e o
Projeto Racionalizador do Instituto de Organização Racional do
325
Trabalho – IDORT – na Década de 1930, Dissertação de
Mestrado, Centro de Ciências Humanas, UFSCar, 1992.
8. GIANOTTI, Vito. História das Lutas dos Trabalhadores no
Brasil, Mauad, Rio de Janeiro, 2007.
9. MORAES, Carmen Sylvia Vidigal. A Socialização da Força de
Trabalho: Instrução Popular e Qualificação Profissional no
Estado de São Paulo, EDUSF, Bragança Paulista, 2003.
10. NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República,
Ed. Univ. de São Paulo, São Paulo, 1974.
11. PICHELI, Valdir. O Idort enquanto proposta educacional no
contexto de formação da hegemonia burguesa no Brasil (1930-
1944), Tese Doutorado, FE/Unicamp, Campinas, 1997.
12. ROLNIK, Raquel. São Paulo, início da industrialização: o espaço
e a política, In: Kowarick, Lúcio: As Lutas Sociais e a cidade, Paz
e terra, São Paulo, 1994.
13. ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no
Brasil, Vozes, Rio de Janeiro, 2006.
14. SIMONSEN, Roberto. Rumo à Verdade, São Paulo, Editora Ltda.,
1933.
15. SIMONSEN, Roberto. O Trabalho Moderno, In: A Margem da
profissão. São Paulo Editora, São Paulo, 1932.
16. TENCA, Álvaro. Razão e Vontade Política: O Idort e a grande
indústria nos anos 30, Dissertação (Mestrado), Unicamp,
Campinas, 1987.
17. TENCA, Álvaro. Senhores dos trilhos; racionalização, trabalho e
tempo livre nas narrativas de ex-alunos do curso de ferroviários
da antiga paulista, São Paulo, UNESP, 2006.
18. WEINSTEIN, Bárbara. (Re)formação da classe trabalhadora no
Brasil, 1920-1964, Cortez: CDAPH-IFAN, São Paulo, 2000.
19. VARGAS, Getúlio. A Nova Política do Brasil, Vol. II, José
Olympio, Rio de Janeiro, 1938.

326
20. VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e Sindicato no Brasil, Paz e
Terra, Rio de Janeiro, 1976.

327
328
IDEOLOGIA E DOMINAÇÃO EM DESENHOS
DA DISNEY E PIXAR
/

Os mecanismos de dominação exercitados por uma classe sobre a


outra não se restringem à sociedade burguesa. Entretanto, no interior
desta forma de sociabilidade eles foram progressivamente se sofisticando
e, sem prescindir do uso da força física, quando necessário, ganhou um
grande espaço entre as formas de dominação outras mais sutis e
sofisticadas, mas que, em seu conjunto, se mantém em íntima ligação
com as questões colocadas pela materialidade da vida cotidiana e a
necessidade de produção e reprodução de suas estruturas. Embora tendo
uma finalidade material, ou seja, garantir que as relações sociais de
dominação atuais se perpetuem, eles são identificados, em geral, como
pertencendo ao campo da ordem simbólica e, por vezes,
equivocadamente, como produto do pensamento puro.
Efetivamente, as formas sutis de conformação dos indivíduos, social
e coletivamente, à ordem estabelecida se multiplicaram desde a
consolidação do capitalismo industrial e, em particular, no transcurso do
século XX. Disto constituem exemplos clássicos o crescimento e
expansão da propaganda e marketing. Observa-se, neste terreno, que
nenhum indivíduo é obrigado a comprar qualquer mercadoria que seja,
embora todos se sintam compelidos a fazê-lo, pouco importando se o
consumo do produto em questão seja para satisfazer uma necessidade real
ou imaginária. Compelido a dar vazão cada vez maior às mercadorias
produzidas (e reproduzidas), o capital, por não reconhecer fronteiras
senão aquelas estabelecidas pelo próprio processo de acumulação,
percorre o globo terrestre, levando a cada recanto sua imagem de
civilização e, com ela, a construção e reconstrução do ser social que
assume o consumo de mercadorias como o parâmetro para a identificação
com a maior ou menor felicidade individual.

E " * " % !& " '


% $ G + 1
J;;8]

329
Compelido por sua própria natureza interna a expandir
continuamente o reino das mercadorias, o movimento do capital elimina,
na medida do possível, toda e qualquer barreira que se interponha a este
processo, incluindo a eliminação das faixas etárias às quais o apelo ao
consumo está direcionado. Assim, incorporam-se as camadas mais jovens
das classes básicas da sociedade à esfera do consumo programado de
mercadorias, criando-se neste processo o conceito de infância e
adolescência. Juntamente a este processo, no qual os jovens são
transformados em trabalhadores produtivos, seja geralmente em
condições de informalidade, seja em condições de formalidade de
emprego, o capital descobriu, também, novos nichos de mercado, os
quais busca explorar fazendo um apelo a um campo essencial para a
efetividade da produção e circulação de mercadorias, isto é, ao terreno da
subjetividade e, mais particularmente, do desejo. Realiza com isto sua
essência, a de criar continuamente novas necessidades, ampliando assim
sua própria lógica de dominação.
Assim, se em suas origens as mercadorias estavam voltadas,
prioritariamente, para o consumo das populações adultas, no transcurso
do século XX, com a incorporação das novas gerações à esfera do
trabalho produtivo, o capital intensificou a necessidade de expandir a
produção de novos objetos de desejo. Operação acompanhada,
progressivamente, pela internalização sistemática de uma educação
formal e informal nas jovens gerações, capaz de induzir ao consumo de
mercadorias, ainda que seja para a satisfação de necessidades reais ou
imaginárias, na qual vai implícita, igualmente, a leitura bastante
particular do sentimento de felicidade e infelicidade individual.
Quando o estímulo permanente ao consumo de mercadorias como
parâmetro de felicidade não esta posto no presente, ele é socialmente
interiorizado através de uma projeção para o futuro: “o que você quer ser
quando crescer?” Ao que se espera uma resposta que aponte menos para
uma profissão e mais para os benefícios que dela se pode extrair
monetariamente, tais como consumo de carro do ano, lancha, iate,
viagens e vários outros elementos de satisfação individual e coletiva, real
ou imaginária, que satisfaçam, sobretudo, às necessidades de realização
do próprio capital. Objetivos que, teoricamente, só poderão ser obtidos se
a escolha profissional for a “correta”, isto é, objetivamente a mais
rentável.

330
O quanto este modelo junto às novas gerações está imbuído, nos
tempos presentes, da lógica da mercadoria, é demonstrado pelas listas de
aprovação dos vestibulares. Provavelmente não aparecerá na televisão,
gritando como um alucinado ou alucinada, um aprovado ou aprovada no
vestibular em arquivologia, letras, ciências sociais, filosofia, artes e várias
outras profissões que restrinjam as possibilidades de levantar a pergunta
“quem quer ser um milionário”. Entretanto, para além do status que
secularmente cultivaram, as chamadas “profissões nobres”, das quais
destacam-se, por exemplo, engenharia e medicina, ganham destaque, pois
a elas vêm atrelados, também, os símbolos de riqueza, consumo e
felicidade futura.
Para moldar para o consumo, é insuficiente ao capital que sejam
criados compradores de mercadorias que dependam de pais, tios, parentes
em geral, ou que se animem apenas nas datas festivas, das quais as mais
clássicas são o dia das crianças, o aniversário e o Natal e, ainda, que uma
parcela pequena da juventude tenha acesso à Universidade. A este
conjunto de elementos, o capital precisa incutir, também, uma
determinada ética do trabalho, sem o que novas mercadorias não poderão
ser consumidas no futuro, quando as crianças e adolescentes tornarem-se
adultos. O que envolve um trabalho mais amplo por parte dos
mecanismos de socialização desenvolvidos pela sociedade burguesa.
Dentre estes mecanismos, ocupa um lugar particular, em épocas mais
recentes, a socialização para o trabalho através de produções
cinematográficas direcionadas, essencialmente, ao público infanto-
juvenil, como é o caso de desenhos produzidos pelos estúdios Disney e
Pixar, e sobre os quais estarão centrados os argumentos deste artigo.
Alimentando a discussão, a hipótese desenvolvida é de que não se trata
apenas de simples entretenimento, como o quer fazer supor a propaganda
de divulgação destes filmes, mas, sobretudo, de uma mercadoria rentável
(o próprio filme), estruturada a partir de uma determinada visão de
sociedade (a sociabilidade capitalista) e utilizando determinados
mecanismos ideológicos de dominação (uma leitura particular sobre o
que é o trabalho e sua finalidade).
Na indústria do entretenimento, os estúdios Disney ocupam, há
décadas, um lugar de destaque. Porém, mais do que entreter, a mercadoria
que a Disney produz carrega consigo a carga ideológica na qual se
procura manipular, seduzir e integrar aos princípios da sociabilidade
331
burguesa. Igualmente, a temática envolvendo uma determinada leitura
sobre o que é o trabalho atravessa de longa data, mesmo que na condição
de pano de fundo, as produções cenematográficas da Disney. Cite-se,
como exemplo, histórias como as de “Branca de Neve e os Sete Anões”,
“Cinderela” e “Pinócchio”, que têm encantado gerações de crianças em
todo o mundo, e também de adultos, os quais já foram domesticados pela
sociabilidade capitalista. Em razão de sua popularidade, é desnecessário
aqui fazer uma sinopse de cada uma dessas histórias infanto-juvenis.
Cumpre reter, por outro lado, os elementos que, em cada uma delas,
integram a problemática do presente artigo, isto é, a abordagem que é
dada à atividade trabalho enquanto elemento de mediação do ser social
com a realidade objetiva e os valores aos quais estão ligadas as
mediações necessárias do ser com a realidade objetiva e com os demais
seres que com ele compartilham determinada forma de sociabilidade.
Nesse sentido, um ponto possível de partida é “Cinderela”.
Explorada sem piedade e morando em condições insalubres, após uma
extensa jornada de trabalho onde precisa ser polivalente (cozinha, encera
o chão, costura, entre outras atividades mais que possam ser exigidas) a
personagem Cinderela é o prenúncio da informalização do trabalho,
tornada estrutural ao capital, no transcurso do século XX. Como grande
parte da força de trabalho contemporânea no mundo, não dispõe de
direitos sociais básicos e, portanto, juridicamente precarizada, está
confinada a viver o seu pequeno universo cotidiano de injustiças, de
modo resignado. O ardil do trabalho cotidiano, para Cinderela, é
apresentado como uma sorte de provações, teste para a preservação de
sua honra, pureza e inocência, animada pelo ideal do “quem espera
sempre alcança”.
Realiza-se por esse caminho o preceito bíblico de que “comerás o
pão com o suor do teu rosto”, compensado pela presença de um rito de
passagem para um mundo de salvação representado não pelo céu, mas
por um castelo, no alto da colina, perto das nuvens, verdadeiro paraíso a
ser atingido. Consequentemente, o trabalho emerge em “Cinderela”
como a mortificação necessária para a purificação da alma. É o momento
que se impõe enquanto caminho obrigatório antes de se atingir a “terra
prometida” ou, no caso da personagem central, o feudo desejado.
Ainda que situado em um tempo longínquo “Cinderela” é, na
prática, expressão da situação de “precariato”, isto é, proletária colocada
332
em situação de “vulnerabilidade social” que dominaria o capitalismo
séculos ou décadas depois no contexto da globalização das economias.
Ela é, ao mesmo tempo, o embrião do ideal para a situação que passa a
dominar o capitalismo globalizado nos dias de hoje: polivalente, dócil e,
mais ainda, servil, vivendo sem projeto para além daquele que é dado
pela sua própria cotidianeidade de infortúnios ou torcendo pela sorte
grande (o príncipe), substituída, nos dias atuais, pela possibilidade de se
ganhar um grande prêmio de loteria. Presa aos “infortúnios” da vida, a
exemplo do que ocorrerá com milhões e milhões de filhos de assalariados
quando atingirem a idade adulta, “Cinderela” reforça a idéia de que há
injustiças no mundo, mas que os puros de alma podem suportá-las, pois a
eles pertencem o reino dos bons.
Há, pois, em “Cinderela”, um princípio socializador no qual a saída
para o infortúnio é individual, ainda que a personagem central seja
ajudada pelo campo da mágica, do mítico e de alguns animaizinhos
sempre prontos a servi-la. Ainda aí, a organização coletiva só serve aos
fins exclusivos do indivíduo, centro das atenções da sociedade burguesa.
Mas, o indivíduo egoísta, descolado de qualquer projeto coletivo e imerso
em um mundo dicotômico que separa os bons e os maus, o certo e o
errado, mecanicamente, sem mediações outras que revelem o complexo
da sociabilidade. Debilidade que não é atenuada mesmo que se chamem a
isto, para as crianças, jovens e adultos, de “conto de fadas”.
Os princípios da socialização de crianças e jovens para o mundo do
trabalho reproduz-se, igualmente, em “Pinocchio”, “canto de cisne” do
trabalhador artesão, na figura de Gepetto, e apologia da nova mentalidade
ligada ao trabalho capitalista industrial, o fordismo. Como diz o filme,
logo às primeiras cenas, Gepetto “é um entalhador”. Essa condição faz
com que, para ele, o trabalho seja fluição, expressão de um ofício, da
busca da perfeição, a tal ponto que o resultado de sua criação poderia
ganhar vida. No entanto, assim como os alquimistas estavam
impossibilitados de transformar pedras em ouro, Geppetto se confronta
com o limite ontológico dado pela madeira entalhada. Daí decorre a
necessidade da mediação mística agindo como entidade criadora. Homem
religioso, a idéia de um Deus criador transmutado em fada madrinha é
figura constante nos desenhos de Walt Disney e atuam, na prática, com o
objetivo de deixar em segundo plano a categoria trabalho enquanto
elemento fundador do ser social. Assim, o verdadeiro ato criador e

333
realizador acaba dependendo não da práxis humana e sim do ato místico,
do sopro sobrenatural, do qual o trabalho emerge como mero
coadjuvante.
Gepetto é senhor de seu ofício e, enquanto não intervém o ato
místico da criação dado pela fada madrinha, reduzindo o trabalho humano
a um mero detalhe, ele é o “entalhador”, dotado da arte de lidar com o
material que constitui o seu ofício. Nesta condição, é a expressão de um
tipo de trabalho e de trabalhador que seria cada vez mais colocado em
xeque na transição do século XIX para o século XX, com a generalização
do taylorismo-fordismo e que se aprofunda nesse início de século XXI.
Enquanto a artesania permanece em Geppetto, outro é o mundo que o
cerca e dentro do qual o personagem Pinocchio tem de viver. Fora dali,
domina a lógica mercantil e o trabalhador do qual se precisa não é o
artesão e sim o homem-boi, coisificado, pronto para as tarefas sem
criatividade e, no entanto, necessárias à acumulação, a exemplo do que
propunha Taylor. Outro não é o sentido da alegoria na qual crianças
entusiasmadas com a Ilha dos Prazeres são progressivamente
transformadas em burros.
Aparentemente, reside aí uma crítica à brutalidade da vida moderna.
Mas, no fundo, o que há é uma condenação estritamente moral a prazeres
da vida, considerados incompatíveis com a dinâmica da acumulação e,
portanto, necessários de se renegar. Instrumentalizados em certa direção,
prazeres que podem ser desfrutados na vida cotidiana são apresentados
como vícios que condenam os indivíduos à desgraça. Daí as crianças
serem apresentadas como seres que vão se transformando em burros ao
adotarem uma conduta que se afasta daquilo que delas será exigido pelo
capital, ou seja, tornarem-se seres produtivos.
Aparentemente se constituindo em zelo moral pelos bons costumes, a
crítica a comportamentos desviantes das crianças, na realidade, nada mais
é do que a condenação a certo tipo de forma de trabalhador a ser
rejeitado, para o que muito contribui a admiração que Walt Disney tinha
em relação a Henry Ford, seja no plano da organização do trabalho, seja
naquele dos princípios referentes ao que é ou não uma boa força de
trabalho. A cena em que o personagem Pinocchio fuma e se degrada
ainda mais na escala humana nada mais faz, assim, do que traduzir a
leitura de Ford sobre o trabalhador fumante. Diz Ford:

334
+
, ,
a
- @ B C 6
)
> @ # 6
@ 0 B C "
, 6
? ,
g
6 &#6GE
588K K; '
Vê-se, pois, que não é casual, em “Pinocchio”, que a crítica ao
consumo de cigarro esteja menos ligada aos perigos que o mesmo
representa para a saúde e mais ao que poderia representar em termos de
trabalhador ideal a ser forjado.
Situa-se em “Pinocchio”, através da alegoria proposta de
transformação de seres humanos em burros, a leitura dysneiniana da
moralidade que deve ser apropriada pelo trabalhador no sentido de tornar-
se um ser útil para a sociedade.
Enquanto em “Pinocchio” domina a leitura do trabalho em
contraposição absoluta aos prazeres da vida, através da potencialização
negativa de certos atos básicos da cotidianeidade, em “Branca de Neve e
os Sete Anões” ele é atrelado diretamente à acumulação de riquezas. Para
os sete anões, a mina da qual extraem as pedras preciosas constitui sua
empresa particular, à qual vão felizes todas as manhãs, como pequenos
proprietários empreendedores, realizar um trabalho monótono, repetitivo,
unilateral, que dilacera corpo e alma, mas que, no entanto, é vivido como
positividade, visto tratar-se aí da acumulação privada. Por tratar-se de
acumulação privada, de “empreendedorismo”, conceito administrativo
tornado comum no final do século XX, a atividade insalubre dos sete
anões nas minas aparece não como momento de brutalização e
desrealização do ser social, mas sim como fonte de sua felicidade.
Certamente, ficam felizes a cada pedra preciosa que encontram. Mas,
efetivamente, abstrai-se na história levada às telas, que o trabalho a ser
executado em uma mina, seja para extração de pedras preciosas ou silício,
guarda, em ambos os casos, uma dimensão única: o de ser atividade de

335
degradação e mortificação do corpo e espírito pelas próprias condições
nas quais, necessariamente, ele precisa ser realizado.
Coroando o quadro apresentado pelo desenho de animação de
“Branca de Neve os Sete Anões”, está ainda a veiculação de uma
determinada postura a ser assumida pelo trabalhador quando ele se
levanta todas as manhãs para ir ao encontro de sua atividade vital,
mediatizada pelo salário ou pela acumulação de riquezas: ele deve
acordar disposto, alegre, munir-se dos bons fluidos, sem o qual o trabalho
se transforma em tripalium, martírio, sofrimento.
Vender uma determinada leitura do sentido do trabalho para o ser
social, direcionando assim o olhar das jovens gerações para a única
dimensão possível em que ele poderia ser realizado, tem marcado,
também, algumas das produções da Pixar. Retém-se aqui, como exemplo,
“Monstros S/A”, provavelmente o caso mais clássico de socialização para
o trabalho. Efetivamente, o filme poderia mesmo ser chamado de “O
Toyotismo para Crianças e Adolescentes”, que o espírito da produção
não seria traído.
Em “Monstros S/A” delineiam-se todos os elementos de cooptação
para o exercício futuro da atividade trabalho em uma fábrica moderna ou,
de modo mais geral, em uma empresa moderna. Destaque-se,
inicialmente, a existência de trabalhadores, no caso, os monstrinhos,
profundamente comprometidos com os rumos da empresa, sua
produtividade, eficácia e crescimento. Os personagens centrais são
Sullivan e Mike, dedicados funcionários e sempre dispostos a colaborar
com a acumulação de riquezas da empresa. Portanto, não há conflitos
entre eles, trabalhadores, e o dono da empresa, o representante do capital.
Em “Monstros S/A”, a luta de classes acabou, uma vez que ambas as
partes perseguem, aparentemente, os mesmos interesses, reforçado, no
caso dos trabalhadores, pelo prestígio que angariam ao quebrarem suas
próprias metas de produção, ou seja, os sustos que devem dar nas
crianças.
Ao lado da diluição da luta de classes, da venda da idéia de que os
mais esforçados desfrutarão de prestígio e terão seus nomes em placas e
cartazes afixados na empresa, “Monstros S/A” assinala também para a
necessidade dos trabalhadores não construírem, entre si, laços de
comunidade fraternidade além daqueles necessários à acumulação de

336
capital. Sullivan e Mike são amigos, mas, acima de tudo, representam
uma dupla, sendo mesmo possível dizer, em linguagem gerencial
moderna, uma “equipe”. Para além deles, os demais trabalhadores são
concorrentes e, ao mesmo tempo, são vistos como concorrentes pelos
demais. Cria-se assim a impossibilidade de soldarem-se solidariedades de
classe entre o conjunto dos trabalhadores, uma vez que cada equipe
concorre com as demais e os trabalhadores se colocam, no interior dos
espaços de produção, como inimigos, uma vez que correm atrás dos
bônus auferidos pelos seus bons resultados ao longo da jornada de
trabalho cotidiana.
Para reforçar nas jovens gerações a compreensão de que capital e
trabalho não se constituem em pólos antagônicos, Sullivan apresenta-se
como conselheiro do proprietário da empresa, preocupado com os rumos
da acumulação. Ambos se lançam, pois, a um esforço de concertação
social, deixando claro para as novas gerações que elas não precisam de
organismos de mediação de seus interesses, representados seja pelos
sindicatos ou por partidos, de resto, obviamente ausentes no transcurso da
história.
Por fim, uma formulação não menos importante em “Monstros S/A”,
dentro do espírito de cooptação das novas gerações: o que fazer com os
trabalhadores que não atendem aos padrões de qualidade da empresa?
Neste aspecto, o filme dá um recado direto às novas gerações: aqueles
que não desempenham corretamente suas atividades devem ser banidos
do espaço de trabalho, como maçãs podres, a fim e que não contaminem a
caixa. É assim que, ao ser detectado um trabalhador que,
descuidadamente, não tomou as precauções necessárias para a realização
de suas tarefas, é chamada uma equipe de esterilização que o coloca em
situação humilhante, diante de todos os demais.
Observa-se, pois, através dos elementos colocados ao longo deste
breve artigo, que os mecanismos de dominação do capital sobre o
trabalho têm-se aprimorado, colocando-se até mesmo ali onde aparece de
modo insuspeito. Tais colocações buscam, por sua vez, alertar para a
necessidade de reconstrução de uma nova sociologia do trabalho, a qual,
nas últimas décadas, tem se centrado basicamente no espaço fabril e da
diversidade de empregos, em geral, tentando compreender as razões da
aceitação, por parte da força de trabalho, de instrumentos de dominação
que contribuem diretamente para a degradação do trabalho. Trata-se,
337
pois, de invocar a um olhar mais amplo, atentar para a compreensão do
porque a pedagogia da fábrica, para usar uma expressão clássica, tem se
colocado cada vez mais fora dela, de tal modo que no espaço de trabalho
nada mais acaba fazendo além de realizar e colher os frutos de uma
socialização prévia. Tarefa que transcende ao esforço de um único
investigador, uma vez que está em pauta a compreensão dos modernos
mecanismos ideológicos de dominação e cooptação da força de trabalho
para a lógica do capital, pois é neste terreno, também, que se trava a luta.

BIBLIOGRAFIA:
1. FORD, Henry, A filosofia de Henry Ford. In: BEYNON, Huw.
Trabalhando para Ford. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
2. ABENDROTH, Wolfgang. Conversando com Lukács. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1971.
3. AUED, Bernardete Wrublevski. Educação para o (Des)emprego,
Petrópolis(RJ): Ed. Vozes, 1999.
4. BERGER, Peter L. & BERGER, Brigitte. O que é uma instituição
social ? In: FORACCHI, Marialice Mencarini e MARTINS, José de
Souza. Sociologia e Sociedade (Leituras de Introdução à
Sociologia). 9° tiragem. São Paulo: Livros Técnicos e Científicos
Editora S.A., 1984.
5. BEYNON, Huw. Trabalhando para Ford (Trabalhadores e
Sindicalistas na Indústria Automobilística). Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995.
6. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000. vol. 2.
7. MARX, K. e ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2007.
8. MARX, K., La marchandise et la monnaie. In: _____. Le Capital.
Moscou: Éditions Du Progrès, 1982. Vol. I
9. MÉSZÁROS, István, A Educação Para Além do Capital. São
Paulo: Boitempo Editoral, 2005.

338

Você também pode gostar