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A Ronda Da Noite - Agustina Bessa-Luis PDF
A Ronda Da Noite - Agustina Bessa-Luis PDF
A RONDA DA NOITE.
Todas as grandes obras implicam um segredo que nunca será desvendado.
Elas são o motivo das coisas que não podem ser ditas antes de o seu tempo
ter chegado. Por intuição e não por entendimento assumido pela cultura, os
artistas descobrem o caminho de novas propostas da criação do mundo.
Agustina Bessa-Luís, neste romance que não se despede da conversação com
a sua época, descobre novos predicados no que parece ser apenas um caso
do dia: um desfile duma companhia de arcabuzeiros chefiados pelo senhor
Banning Cocq cujo retruco parece ser a finalidade da obra.
Não é tal. O pintor excede a encomenda e atinge uma verdade conflituosa e
profunda. A companhia de Banning Cocq não está disposta a obedecer à
ordem de marcha. Simplesmente recusa-se a ser diferente daquilo que a
cidade lhe propõe. Cada um faz o que a sua consciência lhe dita. A virtude
criadora da destruição está encadeada na vida pública que é a Ronda da
Noite.
Badana direita
***
A RONDA DA NOITE
AGUSTINA BESSA-LUÍS
A RONDA DA NOITE
ROMANCE
LISBOA GUIMARÃES EDITORES
COPYRIGHT: AGUSTINA BESSA-LUÍS. 2006
Guimarães Editores, Lda.
Todos os direitos reservados
Editor: Francisco Cunha Leão
Rua da Misericórdia, 68 1200-273 LISBOA
Telef. 21 324 31 20 - Fax. 21 324 31 29
email: geral@guimaraes-ed.pt
www.guimaraes-ed.pt
CAPÍTULO I
DIA DE FINADOS
CAPÍTULO II
A PICADA DUMA PULGA
O ESPÍRITO DO DRAGÃO
CAPÍTULO VII
CAPÍTULO VIII
JUDITE
Dava-se por feliz por não ter, como Dário, rei dos
persas, duzentas pessoas de família à sua volta.
No entanto, a presença de Maria Rosa tornou-se,
durante um período que achou ser o do verdadeiro
luto, muito insistente. Recordava o que lhe tinham
dito, que os ossos não ficam todos calcinados com
a cremação, e isso dava-lhe um sentimento de
compensação, pensando que a ressurreição podia
fazer-se a partir desses despojos.
Por algum tempo, repugnava-lhe entrar nas
cavalariças onde velhas mantas e selas estavam
abandonadas e a Ronda esperava por ele. Mas depois
voltou o hábito de entrar na enigmática maneira de
Rembrandt, naquilo que nele era inabordável e
motivo de assombro sempre renovado. Não era só um
assombro que parte do conhecimento da arte de
pintar; era uma emoção convertida em carne e
predicado dela que era talvez uma qualidade de
partilhar com o mundo inteiro o valor da vida.
Deitava-se cedo, vendo ainda pelas frinchas das
portadas o dia claro. Não lia na cama, mas
variados textos dos livros que tinha lido lhe
acudiam à memória. E saboreava-os, como se
travasse com eles uma conversa desconexa e, no
entanto, profunda em que a personalidade inteira
dele próprio se desenhava.
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Uma caseira vinha fazer-lhe a comida e os filhos
dela depressa invadiram a casa, a ponto de
Martinho pensar mudar-se mais uma vez. Mas a casa
dos Nabasco, se não era a do crescimento da
família, tinha qualquer coisa que existe nos
quadros de Rembrandt: era a beleza, sem que isso
envolva uma configuração clássica, mas tudo o que
se pode adicionar como suas combinações, tanto o
excitante como a paixão obscura do demoníaco.
Abria uma porta e hesitava em transpor o umbral,
de tal modo o acometia um sentimento de
descoberta, de ir revelar o que ali estava
guardado para ele.
As coisas compuseram-se no dia em que Josefa
apareceu. Como a casa ficava no cimo duma colina e
não havia estrada até lá, ela estava corada da
subida e parecia quase agradável: vermelha como um
pimento, como disse a caseira que lhe abriu a
porta a contragosto, pressentindo que acabava de
ser despejada.
Josefa trazia na cabeça um boné, desses que se
usam para assistir às partidas de futebol, e o seu
aspecto era caricato. "Como pintaria Rembrandt
esta rapariga?" - pensou Martinho quando a viu.
Pintava-a como ela era, descrevendo uma liberdade
assegurada pelo auto-domínio, o que a fazia
realmente parte dum acontecer cósmico. Olhou para
Josefa com simpatia, como se encontrasse alguém da
sua mais íntima relação. Notou que ela tinha a mão
meio aberta estendida para ele. Adiantou-se e
cumprimentou-a.
- Não a esperava, não senhor.
- Não venho incomodar? - Ela pousou o saco de
viagem e olhou em volta, entregue à sua natureza
doméstica que a levava a dar a cada objecto o seu
lugar peculiar.
- Não. Gosto muito de a ver. - E pensou se ela se
chamaria Josefa ou qualquer outra coisa. Ficou com
a mãos entre os joelhos, sentado numa cadeira, a
olhar para ela, como se
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esperasse uma explicação. Josefa desatou a chorar.
Limpou o rosto com um lenço de papel amarrotado e
não disse nada. Mas era evidente que ela queria
ficar e que viera com essa ideia assente na
cabeça. Era o único elo que Martinho tinha com
Maria Rosa, uma coisa que lhe fazia chegar a vida
desaparecida da avó. Mas o que de facto assegurou
o lugar de Josefa foi o caso de ele a ter
surpreendido na cama, ao abrir por engano a porta
do quarto dela. A impressão que recebeu foi
acompanhada pelo sobressalto de ter cometido uma
indiscrição. Ela, com o braço direito inteiramente
nu e o seio descoberto, tinha uma expressão de
surpresa mas de obediência ao mesmo tempo. Parecia
esperar que Martinho a mandasse fazer qualquer
coisa, como recolher as gamelas dos cães cuja
comida salgada os punha furiosos. Deixava-lhes
água em abundância, o que os fazia cair numa
sonolência pacífica.
Ele recuou um passo sem, no entanto, deixar que a
porta se fechasse. Josefa era assombrosamente
parecida com Hendrickje, a segunda mulher de
Rembrandt, a sua beleza inculta arrastava uma
sensação de conforto e de saciedade. Desde aí, a
sorte de Josefa estava traçada. Ela ia ser a dona
da casa, ia conhecer todas as chaves, todos os
lugares de provisões, até aqueles que eram mais
escondidos, quase subterrâneos. Onde as
salgadeiras respiravam um suor salino; onde as
caixas do azeite forradas de zinco mostravam, ao
abrirem-nas, uma limpidez maciça como se
contivessem âmbar. Josefa entrou na posse de todo
o movimento da casa; das horas, repartidas como os
espaços num quadrante solar. Agradava-lhe ser a
serva, mais do que a patroa. E nunca, na sua
cabeça, se poria a ideia de casar com Martinho ou
fazer com ele vida conjugal. É certo que ele a
procurava às vezes na cama; mas antes de a manhã
clarear já Martinho estava no seu próprio leito,
onde recebia o almoço abundante, o café a fumegar
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numa tigela vidrada e os pãezinhos frescos em que
a manteiga derretia.
Só ela sabia entender os seus gostos, sabia
alimentá-lo e dar valor à sua solidão. Porque
Martinho, pela primeira vez, conhecia o calor duma
vida que tem a consistência duma devoção. Para
isso, era preciso que ninguém o acompanhasse e
tentasse compreendê-lo. Ou esperasse qualquer
coisa dele, como a partilha dos mesmos lugares e
gostos. O que Josefa tinha de bom era que nada a
rebaixava ou a punha numa situação elevada. Fazia
o seu trabalho e não se preocupava senão com isso
e apenas isso.
Perguntar a Josefa se ela o amava, seria criar uma
textura absurda numa unidade sociológica cujo
sentido se estropiava. E ele sentia como era
confortável viver assim, sem dar explicações dos
seus sentimentos e sem se deter com qualquer
choque de situações.
Lembrava-se de vez em quando de Judite, mas sem
saudade ou remorso. Quando um deles morresse,
tardariam a saber isso; e até a comover-se, sendo
preciso recorrer a imagens antigas, convencionais,
como a do dia do casamento, do qual, o que melhor
retinha, era o chapéu de Maria Rosa, preto com uma
grande flor cor-de-cravo a balançar sobre a aba.
A casa foi ganhando a traça monumental para que
fora criada. No tempo dos barões Nabasco ela não
passara dum solar tradicional, com os três salões
de entrada e as alcovas escuras que defendiam do
frio. A escadaria exterior, talhada num granito
tão grosseiramente como a pedra dum lavadouro,
sofreu alguns retoques. Fora feita para ser usada
por gente que morria cedo, sem artrites e
dificuldades de movimento. Embora Martinho se
lembrasse de ver descer os degraus, um a um, e de
lado, um tio que nunca se casara e bebia a sua
aguardente branca como água da fonte.
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Uma das salas foi ampliada para receber a Ronda da
Noite. Uma moldura de veludo carmesim fez
desperceber as suas mutilações, e o cão encontrou-
se tapado pelas pregas sumptuosas dum reposteiro.
Podia dizer-se que Martinho criara um altar para o
seu Rembrandt. Pouco iluminado, com um fulgor
interior que estava em acordo com a cena
espontânea e improvisada, o quadro parecia, mais
do que nunca, uma brincadeira maliciosa que tocava
as raias do abuso.
Este livro está prestes a terminar da maneira como
devia ter começado. Pela paisagem. Não havia
paisagem naquele retalho do cemitério visitado no
dia de finados por Maria Rosa e Martinho. Havia
apenas datas, sem nada que desse uma ideia da
organização interna duma vida. Nascimento e morte
era tudo o que ficava disponível; a paisagem, como
a arte, concerta um sentimento de gratidão. Uma
criança não a percebe; uma pessoa grosseira e
inculta quanto à sua personalidade, não a
distingue.
O lugar que Martinho escolheu para se fixar com a
Ronda da Noite, pertencia a uma paisagem. Dizia-se
(ainda que essa recordação não existisse mais e
fosse apenas a prestação conferida a uma lenda)
que a casa e os quintais, pomares e tanques,
lavadouros e minas de água, tinham sido levantados
sobre um cemitério romano. Dois ciprestes
altíssimos faziam ainda sentinela a essa memória
incerta.
Pelo lado da fachada, com as suas dez janelas de
guilhotina, a paisagem era em descida que nada
mais oferecia como acesso senão uma espécie de
barranco bordejado dum lado por oliveiras, e do
outro por uma sebe de amoreiras bravas. Foi por aí
que Josefa subiu, como fazia toda a gente que
encurtava caminho para aldeias mais altas e
desconcertadas na paisagem. Mas, pelo lado Norte,
a entrada principal fora há muito inutilizada
pelos sucessivos Invernos que cavaram barrancos
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intransitáveis. Diversos planos, no sentido de
restituir ao estradão antigo uma parte da sua
viabilidade, foram abandonados pelos serviços
públicos. O caminho servia apenas a casa dos
Nabasco que, desde longa data, tinham abandonado a
região, deixando a monte o que tinha sido uma
espécie de castro inexpugnável.
Martinho pensou refazer a traça da estrada, mas
não se apressou com o projecto. Gostava desse
abrigo sinistro que o lado Norte tornava mais
arcaico. O portão de ferro foi tudo o que ele
ajustou nos velhos gonzos, tendo que substituir as
lanças da cimeira. Pintou-o de verde, e o reluzir
da tinta nova percebia-se entre a folhagem como um
tremor de luzes fugazes e tristes.
A entrada, imediatamente orientada para o pátio
que era a antecâmara de casa nesse estilo, tinha
um encanto peculiar. Martinho achava-a parecida a
um obscuro fundo à Rembrandt. Hendrickje podia
mergulhar as pernas até ao joelho nas enxurradas
que, desde o Outono, faziam do pátio um lago em
que boiavam ervas e folhas. E logo, atrás dela, os
pesados reposteiros da primeira sala de receber,
às vezes encharcados de água da chuva porque entre
o pátio e a sala só havia alguns curtos degraus em
leque, duma beleza surpreendente. Percebia-se como
a jovem Hendrickje se mostrasse curiosa do seu
prazer, ao arregaçar a camisa para banhar à
vontade as pernas. A carne mole e macilenta
ganhava uma luz fresca debaixo da sombra do pátio.
Martinho, depois da companhia da Ronda, preferia a
do pátio e toda a discreta alma dessa entrada
principal. A capela, o bastante espaçosa para um
par de noivos e o oficiante, era pintada de azul
com estrelas, no que se entendia como abóbada
celeste. Josefa dedicava-lhe, como a todo o resto
da casa à sua guarda, umas horas por semana.
Removia as flores secas, mudava o pano do altar e
deitava um pouco de veneno
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nas cavernas do bicho da madeira. Tudo isto com um
solidário espírito de limpeza que excedia a sua
capacidade de devoção.
Martinho nunca a vira rezar. "Tanto melhor, não se
distrai com as coisas da alma, o que, nas
mulheres, é uma variante da sedução", pensava. Mas
Josefa também não era do tipo sedutor nem sabia
para que servia levantar os braços para mostrar a
delgada cintura; como via fazer às jornaleiras que
iam levar o almoço aos trabalhadores, descendo a
rampa do caminho, com um balançar das ancas
deveras tentador. Martinho nunca teve a ideia de
selar com Josefa qualquer compromisso; mas um dia,
no abrir da madrugada e porque não dormia, falou-
lhe nisso.
- Isto pode não ser duradouro. Tu és tu e eu sou
eu. As coisas podem mudar.
- Que mudem. Não estou cá para lhe pedir favores.
Deixe-me dormir.
Ele levantou-se e foi para o quarto, meio
desconcertado. Tentou ler um bocado, mas as letras
dançavam-lhe diante dos olhos. "Diabo de
rapariga!" - pensou. "A liberdade é difícil de
consentir nos outros." Mais uma vez a Ronda se
tornou clara para ele: não era convencional em
nada, mas antes retratava um tumulto feliz de
gente entregue à vontade de agir sem que ouvissem
a voz de comando do capitão Banning Cocq. A lei
ficava à margem, abrangia um ritmo de progresso
que a multidão não podia ou não queria acompanhar.
Bastava que a criança luminosa atravessasse a cena
para tudo ficar explicado: ela era a forma
universal, prestes a desaparecer na
individualidade de todos, no que eles tinham de
singular.
Já não estava tão atento à obra cujo significado o
deslumbrara. Ainda que desse à Ronda da Noite um
lugar privilegiado na moldura de veludo carmesim,
não passava tanto
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tempo na sua companhia. Fingia muitas vezes estar
mergulhado em profunda meditação quando Josefa
batia à porta com uma refeição que ele gostava de
tomar sozinho. Mas até ela se retirar não perdia
nenhum dos seus movimentos que registavam apenas a
ocupação dum dia de trabalho. Humilhava-o que
Josefa não o incluísse nas suas preocupações. Uma
galinha doente ou o vento que se levantava e ia
enrolar a roupa nas cordas, a secar, eram para ela
motivo de maior concentração. Corria a recolher a
roupa ou a medicar a galinha; e Martinho sentia-se
relegado para um plano que não era honroso para
ele.
"Será que compreendemos as mulheres?", pensava.
"Temos um lugar na vida delas e isso é tudo."
Tentou explorar o ciúme dela e excitá-la para
depois não a satisfazer. Josefa ficou apenas
desconfiada. Mas não deixou de cumprir com as suas
obrigações e de o servir pontualmente.
Havia nos arredores algumas casas com raparigas na
idade de casar. Martinho, ainda que não estivesse
livre do vínculo do casamento, era um alvo a
considerar. Foi convidado para jantares, recebeu o
melhor tratamento, quase como se fosse um viúvo
com rendimentos e saudades a gerir. Mas quando
voltava para o solar caía-lhe em cima uma sensação
de desperdício e quase de medo. Seria que tinha
uma alma e essa era um objecto investigável?
Quando se dedicava a detalhar a Ronda em todos os
sentidos, não estaria a averiguar a natureza da
alma?
Um dia, descendo pelo pátio em direcção ao pomar,
viu Josefa inclinada no lavadouro. O facto de ela
não se voltar ao sentir-lhe os passos, incomodou-
o. Mas, ao mesmo tempo, que ela estivesse,
arregaçada, com a água a escorrer-lhe dos
cotovelos, deixava-o a sós com a sua nudez. Era a
alma dela que estava a ser consumida, e não o
corpo, pelos olhos que a
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averiguavam. Ela sabia. Voltou-se devagar, limpou
um salpico de espuma no rosto e dispensou-lhe um
grande sorriso. Seria amor? Era, em todo o caso,
um acto de salvação.
Lembrou-se de que, quando era pequeno, as pessoas
não se cumprimentavam - davam-se a "salvação".
Entre as primeiras horas da manhã e as Trindades,
que anunciavam o crepúsculo, trocavam "a
salvação". Antes ou depois disso, não se dirigiam
a palavra. Era como se os perigos da alma
apertassem o cerco e ela estivesse mais indefesa.
Não estar fora de casa depois das Trindades era
recomendável. O sorriso de Josefa encheu-o de
alegria.
Porém, no dia seguinte, anunciou-lhe que Judite
não se opunha ao divórcio e que era provável ele
casar-se outra vez. Josefa estava diante dele, com
o avental recolhido em ponta sobre a barriga, como
todas as vezes que ele a chamava e ela não se
achava apresentável. Não disse nada.
- Não dizes nada? - disse Martinho, depois do
silêncio que se tornara difícil.
- Eu? - Ela pareceu tomada de surpresa.
- Estou a falar contigo.
- Comigo?
- Com quem há-de ser?
Em parte não era verdade nada do que Martinho lhe
dizia sobre Judite. Ela continuava a viver com o
pai e nada fazia supor que ia pedir o divórcio.
Estava satisfeita com a mesada que recebia e, como
mulher casada, tinha mais respeito com que
valorizar a sua triste história propícia a mal-
entendidos. As coisas extraordinárias que
acontecem às pessoas vulgares ficam, em geral, no
mais profundo desconhecimento. É preciso que a
relação dum espírito com outro as faça claras à
luz da pequena história. Se não fosse a Ronda e
todas as viagens morais feitas em volta dessa obra
enigmática, Josefa não teria
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praticamente existido na vida de Martinho Nabasco.
Foi no momento em que entreabriu a porta do quarto
dela, para lhe perguntar qualquer coisa acerca da
rotina doméstica, que ele a inseriu no tempo de
Rembrandt. Desde aí, ao ver o ombro que a camisa
ao escorregar deixava a descoberto, ao ver a sua
expressão de surpresa meio inquieta, Martinho
recebeu-a no seu coração como se fosse a própria
Hendrickje. Desde aí ela entrava na sua vida.
Doutro modo, não passava de alguém que lhe
comunicava impressões externas; o seu cheiro a
fritos nos cabelos quando ela fazia ceboladas de
peixe, não era decerto a melhor dessas impressões.
Mas por detrás da imagem sensível de Josefa, do
seu rosto que não tinha nada de bonito, estava uma
alma que era o material para o conhecimento do
outro. Nunca tinha encontrado uma criatura tão
livre e tão exposta ao mesmo tempo. Era como uma
lagartixa que, ao ser pisada, deixava a cauda e
escapava-se, como se nada tivesse acontecido, para
a fenda do muro. Se havia alguém digno de figurar
na Ronda da Noite era Josefa. Podia ser incluída,
com as mangas arregaçadas e uma galinha morta que
não era o símbolo de nada, mas muito simplesmente
o anúncio dum jantar suculento. Martinho não podia
impedir-se de a provocar.
- É contigo que estou a falar.
- Estou a ouvir.
Mas a atenção dela estava posta em muitas outras
coisas do seu dia-a-dia. A roupa que tinha que
tirar dos arames antes que chovesse; a calda para
o arroz, que era sempre o acepipe preferido desde
que se descobriu a índia. Arroz de forno, com
loureiro seco; arroz de grelos, de feijão, de
hortos, de manteiga, de peixe, de carne, de
simples estrugido de cebola. - Como quer o arroz?
- disse Josefa.
Mandou-a sair. Era uma mulher estúpida ou só capaz
de reagir a coisas solidárias com a sua natureza?
Natureza prática,
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sem a qual ela flutuaria no vazio. Uma coisa o
maravilhava: a sintonia erótica em que ela estava
com o mundo. Criava um objecto de amor nas
circunstâncias adequadas. E era por isso que
Martinho duvidava de ser o homem da vida dela, mas
o objecto do amor dela, que era uma natureza
erótica e a repartia por todas as realidades
concretas da sua vida.
Não havia maneira de fazer-lhe compreender nada
fora dos conteúdos vitais que eram quatro, como os
dos sáurios de há quinhentos milhões de anos. Eram
comandos cerebrais em que a sensibilidade não
tinha entrada senão por imitação. O seu mundo
reagia admiravelmente àquele regime oposto a
conceitos rígidos fechados, a uma lei, em suma.
Quase tudo o que Martinho lhe dizia soava como
palavras e ele sentia-se completamente à deriva
supondo em Josefa uma completa falta de
necessidade de crescimento interior. E, todavia, a
compreensão de um conteúdo particular, o
nascimento, a morte, era para ela de fácil acesso:
a vida, na sua unidade, enfim. As vezes, tinha
medo dela; do que ele se recompunha, achando que a
falta de cultura de Josefa, a sua completa falta
de aproveitamento escolar que tivera na infância,
era uma prova de inferioridade pronta a ser
declarada pelo Parlamento Europeu como uma espécie
de fatalidade de grupo que uma forma económica de
séculos não conseguira senão viciar cada vez mais.
Quando afinal era o contrário. Em princípio, teria
de admitir que Josefa não tinha carácter. Isso
implica considerações pejorativas, se não
trágicas. Era dotado dos atributos de
sobrevivência, mas a supervivência como sinal duma
estrutura em evolução permanente, não se percebia
nela. Como no quadro de Rembrandt, o que Simmel
notara conforme um pensamento de Goethe (que há
certos fenómenos da humanidade que são errados por
fora e verdadeiros por dentro), a
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estrutura da Ronda é desproporcionada vista por
fora mas, desde dentro, está conforme. Porque a
própria vida é assim: segundo as entregas dos
conteúdos da existência que o indivíduo faça
movido pelos acontecimentos, por insignificantes
que sejam, tudo parece casual e desproporcionado.
É o que na mulher se chama histeria e
injustificado procedimento. Mas, visto do
interior, este procedimento obedece a uma evolução
contínua, necessária e conforme a sua unidade.
Pelo que Josefa, com a sua obtusa moral e dados
restritos de compreensão das coisas, estava mais
pronta a evoluir correctamente do que um filósofo
aparentemente capaz de perseguir uma forma
universal.
Como não tinha uma educação académica e não estava
impressionado por teorias sobre a lei universal,
Martinho era mais capaz de entender Rembrandt e o
seu modelo, a segunda mulher Hendrickje. É
possível que esta, mais do que Saskia, tivesse o
comportamento interior dum modelo: uma qualidade
individual que vivia e morreria com ela. Não é
causa de reflexão uma coisa dessas; assim, a Ronda
não é igualmente causa de reflexão. Todos os
detalhes estão ali, a posição social, a riqueza, o
lado vulgar e sensual; tudo isso é o impessoal do
homem, e seria um erro conhecê-lo através dessas
diferenças. O capitão Banning Cocq e o seu
ajudante de campo não são apenas os soberbos
dignitários com ambições políticas. Como o porta-
bandeira e a criança que atravessa a multidão, não
são apenas figuras simbólicas e muito menos
satíricas. Há em todas elas um desapego das suas
funções e da sua natureza, que não se entende
senão como felicidade. A lei não as obriga, não as
oprime: são pessoas felizes, indivíduos presentes
no universal que é o comum das suas vidas.
A dada altura Josefa teve um comportamento
estranho. Parecia estar preocupada por alguma
coisa que não se atrevia
331
a confessar, e Martinho, muito cautelosamente,
fez-lhe algumas perguntas. Não afastou a ideia de
ela estar grávida.
- Tens comido o suficiente? E o trabalho que tem
sido demais?
- Não, não. Para o trabalho chego eu. Mas, se quer
saber, eu vou-lhe dizer. - Embora ele introduzisse
no serviço as inovações há muito rotineiras na
casa de Maria Rosa, máquinas de lavar e limpeza,
Josefa preferia ainda lavar o chão da cozinha de
joelhos, pela força do braço. Era assim que ela
estava, de rastos, com a saia recolhida entre as
pernas e tendo ao lado o balde onde mergulhava a
escova. Levantou-se e teve o mesmo gesto de
sempre, de quem enxuga o suor ou um salpico de
espuma com o braço. Era um gesto que pressupunha a
entrada noutro episódio. Martinho, não sem alguma
inquietação, preparou-se para a ouvir. E se fosse
de facto uma criança que ela ia anunciar-lhe?
Quase começou a conversa nesse sentido. Mas Josefa
antecipou-se:
- Pelo que me consta, a sua mulher, a dona Judite,
não volta mais. Estou enganada?
- Não sei dizer, Zefa. Trata das coisas que
entendes e deixa o resto que não te diz respeito.
O que dizia respeito a Josefa era a casa com a sua
grande cozinha lajeada e que mantinha ainda a
lareira tradicional com duas colunas de pedra que
delimitavam a zona do fogo. Além disso, havia o
forno do pão, com a boca enegrecida pelas
labaredas de muito tempo de aquecimento; e havia
também duas grandes masseiras que serviam agora
para arrumo de trastes sem uso, tampas
desirmanadas, utensílios de ferro que não tinham
mais préstimo e que eram mais ou menos objectos de
museu.
De resto, a cozinha, toda ela era um museu. Na
obscuridade estavam as peneiras, os aquecedores
das camas, os ferros
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de brunir que eram meros pedaços de ferro fundido
e que, mesmo sendo diminutos, pesavam sobre as
pregas, os colarinhos e tudo o que fosse preciso
fazer brilhar como laca. O mundo do trabalho
estava ali bem presente, sem desfalecimento nas
tarefas que se sucediam: lavar e descascar
legumes, cortar a carne com um deleite fundo e
sensual, depenar as aves, abrir-lhes os ventres
com um golpe que lhes expunha os intestinos e o
fígado cuja pétala de fel esverdeada era preciso
extirpar. Josefa era gulosa dos intestinos de
galinha, que, depois de lavados, esvaziados, se
enrolavam num pau fino de salgueiro e eram
guisados como um acepipe. E tam- > bém gostava de
refogar pés de cabrito, que desapareceram do
mercado pela dificuldade que traziam aos
matadouros, sendo considerados subprodutos a moer
para o gado e a juntar às rações de farinhas.
A cozinha era um reino. Não se entrava nela sem
fazer três vénias, como no protocolo dos antigos
papas. A primeira, desde a porta que dava para o
exterior e pela qual tinham acesso todos os
estranhos: pedintes, compradores de vinho e
azeite, alguém que trazia um recado ou pretendia
um favor.
A segunda vénia era para ser feita pelos que
entravam pela porta de serviço, sobre um lanço de
escadas donde se descobriam as capoeiras e os
quartos dos hortelãos ou moços de estrebaria, que
não estavam mais a uso. Em tempos, a casa tivera
baias para seis cavalos, onde agora havia um longo
alpendre e uma arrecadação de tonéis destinados a
serem vendidos.
A terceira vénia era a da porta que dava para o
interior, um corredor estreito em cujas paredes se
podiam adivinhar quadros de Santa Luzia, com o
prato e os olhos no prato; assim como ramos de
oliveira benzida entalados na moldura dos quadros.
Quem chegava a essa porta eram os patrões, as
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criadas de dentro e um sem número de aderentes à
casa, como as mulheres sem ofício certo que
contavam novidades e comentavam em detalhe a vida
dos lugares, vizinhos ou não. Havia também os
barbeiros dos vivos e dos mortos, os padres, os
doutores, as costureiras cuja máquina se ouvia a
espaços no seu cubículo onde se amontoavam
retalhos, linhas e botões.
Josefa era a prima dona desses sítios, vividos
como nenhuns outros na casa. Enquanto as visitas
de Martinho à sua cama foram regulares, ela teve
ao seu dispor um quarto que não era principal e
dava para uma sala de passagem. Era o quarto do
capelão, com janelinha meio devorada pelos pés de
vinha que cresciam em baixo. Cerca desse quarto
ficava o oratório, uma peça soberba do século
XVIII, que foi vendida à revelia dos herdeiros
ausentes e que Paula qualificava como um roubo. Em
vez do oratório, verde e ouro, havia agora um
armário onde se guardavam lençóis e cobertas de
cama. Mas persistia o cheiro da cera e das
grinaldas dos "anjinhos", as crianças que tinham
morrido na família.
Quando as noites e as sestas de amor se espaçaram
até se tornarem raras, entre Josefa e Martinho,
ela mudou para um cubículo junto da cozinha que se
destinara a despensa e donde ela podia ouvir tudo
o que se passava na área de trabalho. Quem subia e
descia as escadas, quem vinha buscar o leite ou
trazia o pão, e coisas assim. Martinho não gostava
de lá entrar, pelo cheiro que recebia nas narinas,
de velhos untos e conservas caseiras apodrecidas
em vinagre, nas talhas de barro: pimentos,
pepinos, ou azeitonas pretas que reluziam como
olhos de gente.
Todo o objecto de culto não funcionava mais. Na
capela, a pedra de ara tinha sido retirada e o
sacrário não tinha porta; via-se o interior
constelado de estrelas douradas. Apenas a
334
Ronda merecia uma espécie de liturgia, com a sua
moldura de veludo carmesim e os jarrões da China a
fazer-lhe sentinela. A falta doutra devoção,
Josefa dedicava-lhe uma veneração que era cópia da
oração diária que Martinho dedicava ao quadro.
Endireitava o cadeirão posto em frente do capitão
Banning Cocq, no melhor ângulo, para captar as
suas palavras, caso as fosse ouvir. E o olhar da
pequena Saskia, acreditava que se cruzava
voluntariamente com o dele. Travava com ela um
diálogo de grande cortesia e afabilidade e Josefa
várias vezes o vira mexer os lábios e sorrir como
se estivesse a gozar uma conversação. Percebia até
algumas palavras:
- Falou comigo?
- Eu? Não... Vai à tua vida e deixa-me em paz.
Recebeu uma carta de Judite, em vez dos lacónicos
telefonemas, e ela era muito clara: queria
finalmente divorciar-se. Entendeu que ela talvez
estivesse grávida e quisesse regularizar uma
situação menos airosa. Mandou-lhe os papéis que
Judite pedia e não quis entrar em detalhes
fastidiosos. Ficava pois livre para ele próprio
casar e ter filhos, o que lhe parecia uma coisa
como outra qualquer. Havia nas cercanias raparigas
educadas ainda à moda antiga que podiam agradar a
Maria Rosa, se ela estivesse viva. "Mulheres que
gostem de lavar a loiça", como ela dizia. Era, no
seu entender, prova dum espírito franco e de
sensualidade.
As saídas de casa tornaram-se mais frequentes para
Martinho e às vezes colhia uma flor nos caixotes
que Josefa tinha plantado à beira do tanque.
Primeiro, fazia disso um certo segredo, depois não
escondia mais esse gesto de galanteria para uma
mulher que ele "tinha em vista". Com a idade, as
jovens comoviam-no a ponto de as lágrimas lhe
subirem aos olhos.
335
Josefa punha nos seus programas de limpeza um
maior ardor. Lavava as janelas de cima a baixo e
grandes ondas de espuma escorriam das vidraças
como nuvens descidas do céu. Martinho disselhe,
uma noite, depois de jantar:
- Talvez me case.
- Quando?
- Desde que encontre a pessoa certa.
- Não há pessoa certa para isso. Há a pessoa certa
quando se quer um electricista, mas para casar não
há. Convém que não seja de todo pobre nem
demasiado rica.
- Cá temos a Zefa a filosofar! Que tem uma pobre
de mal? E uma rica?
- A pobre é para sempre um poço de inveja; a rica
deita-lhe à cara tudo o que comer e diz: "Sai do
meu bolso..."
O que incomodava Martinho é que ela não
demonstrava ciúme nem tristeza. "Qualquer outra
deixava de comer, é o que as mulheres fazem quando
querem parecer desgostosas". Mas Josefa não
parecia sentir o mínimo desgosto. Martinho
atribuía isso a o sentimento de rivalidade não
fazer parte dos quatro comandos cerebrais.
Uma vez saiu de casa pela manhã e telefonou a
dizer que não vinha almoçar. Josefa achou que o
dia era todo dela e que podia iniciar as limpezas
da Primavera.
"Agora é que vão ser elas" - pensou. E pôs-se a
cantar com todas as forças, coisa que Martinho não
permitia dentro de casa. Ela gostava de cantar no
trabalho no lavadouro, sobre qual os ramos da
nespereira desenhavam sombras movediças; à janela,
sacudindo tapetes como se estivesse a defenestrar
inimigos. Gostava de cantar, e cantava. Não era
uma prova de alegria; mas de força poderosa e
imparável.
Naquele dia a força manifestava-se e ela enchia
consecutivamente baldes que despejava no pátio
fazendo correr a
336
água pelo plano inclinado. Voltando para dentro, o
olhar dela pousou na Ronda que estava no último
salão; e mesmo este tivera que ser provido dum pé
direito mais elevado, sacrificando-se para isso as
mansardas. O fato do lugar-tenente, com as suas
galochas de luxo, causava uma boa impressão. Era
um belo homem, com o bigode loiro e as plumas
brancas no chapéu. "O resto está muito sujo, não
se vê nada" - pensou Josefa. E, num repente,
decidiu-se. Ia lavar a Ronda com os seus
detergentes e esponjas duras. Até o cão não se
sabia de que raça era, tendo escondido a cauda
entre as pernas, assustado pelo rufar do tambor.
Ela preparou-se. Todo o seu material de campanha
foi trazido e Josefa começou a sua limpeza. Até
onde chegava a sua estatura, que não era alta, ela
esfregou, inundou, raspou, até que fios de tinta
começaram a correr. Voltou-se para trás, julgava
ter ouvido passos. Mas era o vento que carregava
nos ramos da nespereira. Já não se intimidava;
cada vez que atacava um figurante da Ronda fazia-o
com mais empenho e atrevimento. O desastre estava
consumado e ela recuou um pouco; só o porta-
bandeira e o jovem do capacete de bombeiro, como
ela dizia, tinham ficado intactos. Saskia tinha
simplesmente desaparecido com a sua galinha à
cinta. Josefa deu uma última demão de água limpa
ao rosto diluído numa mancha mais clara. Sentia
uma espécie de contentamento que lhe fazia bater o
coração com força. Onde estava o ícone de
Martinho, aquilo por que ele se enternecia até às
lágrimas e o fazia estudar até altas horas os
livros que pudessem trazer-lhe informações sobre o
pintor? O seu enigma não podia mais ser
auscultado. O seu efeito tinha desaparecido. A sua
linguagem intuitiva não se ouvia mais. Josefa
admirou-se de ter, em tão pouco tempo, destruído a
unidade dessa extraordinária obra. Estava
encharcada, o frio fazia tiritar. Mas
337
teve discernimento para arrumar os baldes e as
esponjas e voltar a pôr no lugar a cadeira de
Martinho. Agia distraidamente, como se, pondo
ordem nas coisas, tudo voltasse ao que era. E o
capitão Banning Cocq lá estava a dar as suas
ordens, ainda que só fosse a sombra dele.
Quando, já no avançado da noite, Martinho entrou
em casa, viu luz no quarto do capelão. Depois a
luz extinguiu-se e ele pensou que Josefa a tinha
apagado. "Porque mudou ela de quarto?" - pensou.
Mas não estranhou nada, sabendo como ela resolvia
limpar tudo e desalojar as coisas dos seus
lugares, deixando no ar um cheiro de lavanda, de
pinheiro, tão forte que causava náuseas.
Antes de se deitar, como de costume, foi ver a
Ronda. Primeiro achou que as luzes não se tinham
acendido e precisou duns instantes para se adaptar
ao que julgava ser o segundo salão com os retratos
austeros dos Nabasco. Não via a Ronda, mas só uma
figura com uma alta cartola. Era o que restava da
Ronda da Noite. Franziu os olhos e voltou a abri-
los. Um grande grito travou-se-lhe na garganta e
ele caiu quase de bruços, quase sem acordo, o
sangue a latejar-lhe nas fontes. Se tivesse sido
atingido por um disparo, não ficava mais
atordoado. Depois levantou-se e, com toda a força
da sua alma, verificou os estragos. Eram totais, a
Ronda tinha desaparecido; e só o porta-bandeira,
talvez o próprio Rembrandt com uma faixa brilhante
e o chapéu de plumas cinzentas, parecia
apresentável e intacto.
- Josefa! - disse Martinho, entre dentes. Lembrou-
se da luz acesa e a seguir apagada no quarto do
capelão. Precipitou-se para lá, a porta estava
apenas encostada, ele abriu-a, metendo o ombro
nela porque a julgou trancada. Josefa estava
sentada na cama, os pés com as chinelas apenas
seguras pelo dedo grande; parecia ébria e
cantarolava baixinho. Em vez de
338
gritar com ela, de lhe bater até, Martinho foi
tomado duma estranha comiseração
- Estás aí? Que andaste a fazer, sua tola? Parece
que saíste do tanque, como uma bruxa, à meia
noite. - E, como ela não dava mostras de entender
nada, aproximou-se e, com uma ponta da coberta da
cama, pôs-se a enxugar-lhe o cabelo - Vamos, não
tenhas medo, mulher! Não te faço mal. O que
passou, passou...
Como não podia remediar o estado em que ela estava
sem a despir, pôs-se a desapertar-lhe a roupa, o
que, porque estava molhada, era difícil. Josefa
ficou nua e a sua pele pardacenta ganhava aos
poucos calor. Rembrandt não teria ignorado as
pregas do ventre balofo e o punho fechado contra o
sexo. Impassível, Martinho executava como um
enfermeiro a sua tarefa de samaritano. E,
subitamente, veio-lhe à ideia a soma de desgastes
e de violência que tinha sofrido a Ronda da Noite;
mais do que qualquer outro quadro ou obra de arte,
a Ronda da Noite sofrera variadas agressões tanto
físicas como as devidas ao desgaste do tempo e dos
restauros. Cortes devidos às suas dimensões e
destinados a fazer caber o quadro em espaços mais
estreitos, deram à Ronda uma perda que não pode
ser mais recuperada. O facto de Martinho assegurar
que a pretensa cópia em seu poder era de facto um
original, fundava-se na integridade da pintura e
nas suas dimensões conforme o original.
Em 1976 um homem investiu contra o quadro com uma
faca de cozinha e desferiu golpes que tiveram que
ser reparados; assim como houve muitos outros
danos, devidos à fricção de todo o género, da luz,
do calor e da humidade. Borrifada com água e
ácido, a Ronda continuou a ser alvo de ataques que
se atribuíram a doentes mentais. Mas haveria no
suposto doente mental uma lucidez para além da
razão comum? Martinho pensava que sim, depois do
deplorável acto de
339
Josefa cujas consequências julgou não puder
suportar. Mas o estado daquela mulher, os seus
soluços que pareciam um estertor, sobrepôs-se ao
desgosto que ele acabava de sofrer. Não acreditava
que um afã de limpeza levasse Josefa àquela
violência exercida sobre o quadro. Um momento de
loucura não parecia próprio dela, sempre tão cabal
e séria no seu trabalho. Era alguma coisa que ele
pôde desvelar quando a apertou nos braços para a
acalmar. Era a solidão que ela sentia perante a
divinização da obra de arte. Martinho fez com que
ela falasse, ainda que só lhe arrancasse palavras
entrecortadas, mal decifradas por ele que apurava
o ouvido para não perder nenhuma delas.
- O que te deu, mulher? Conta-me, que eu não digo
a ninguém... Conta-me só a mim.
Depois de a ver agasalhada e limpa na cama do
capelão, voltou a interrogá-la. Mas Josefa só
disse que não se lembrava. Quando Martinho voltava
costas, ela chamou-o.
- Eu pensava que gostava mais do quadro do que de
mim. De mim e de tudo que tem de ser amado pelas
pessoas para que possam viver. A vida faz-se com o
amor dos outros.
- Mas que tolice! O que te deu... que ideia a
tua... Estava embaraçado, descontente. Quando se
retirou não passou pelo terceiro salão onde
estavam os restos da Ronda da Noite. Era cedo para
avaliar os estragos que sabia serem irreparáveis.
Fechou, com cuidado, a porta atrás dele e não quis
pensar mais no que tinha sucedido. Um elo de
paixão sem argumentos ligava-o agora substituída
no serviço da mesa por uma rapariga de fora.
Depois as coisas foram-se ajustando a uma
realidade que não excluía o desejo de se
entenderem.
340
O quadro foi desapeado e convertido em retalhos,
depois queimados. Só o porta-bandeira resistiu e
foi emoldurado para ser pendurado sobre o fogão da
primeira sala, a que dava para o pátio e que era a
entrada principal. Depois, como aquilo o
incomodava, relegou o "porta-bandeira", que tinha
sido identificado como sendo o retrato de Jan
Cornelis Visscher, amador de obras de arte, de
música e de livros, foi colocado numa salinha
escura onde havia duas estantes e dois sofás de
veludo verde. O cão, também poupado à esfrega de
Josefa, ainda que indistinto na pintura, mereceu
as atenções de Martinho que o fez, como ele dizia,
"embalsamar" e pôr na parede do corredor, entre
dois cadeirões Luís XIII.
Ainda que todo o desastre se mantivesse em
silêncio, acabou por chegar aos ouvidos de Paula e
dos cadetes, que pediram contas do sucedido. A
ideia que lhes acudiu foi que a Ronda tinha sido
vendida com bom proveito para Martinho e que ele
ensaiara a sua destruição para não a ter que
repartir como herança. A Ronda ficara indivisa,
sendo considerada mais uma mania de Martinho do
que um objecto de valor. E se fosse verdade e ela
valesse alguma coisa? Isto não chegou a cavar um
fosso nas relações de família porque a preguiça se
impôs a todos os outros sentimentos. Martinho
estava tão longe que Bernardo, um dos cadetes, não
lhe chamava parente próximo.
O mais estranho foi que Josefa resolveu ir-se
embora; apresentou-se diante de Martinho depois de
jantar e pediu-lhe que lhe fizesse as contas.
- Que contas? Não te pago todos os meses e até
ficas com alguns trocos das compras, quando calha?
Isto ofendeu muito Josefa, nem ela sabia porquê,
porque era verdade. Mas dava aos pobres esmola do
seu bolso, com o que se sentia equilibrada no
deve-e-haver. Exigiu esmiuçar a
341
dívida de Martinho, que nunca lhe pagara somas
muito atrasadas do terceiro mês; e do subsídio de
férias também não recebera por inteiro o que lhe
era devido. Tudo isso perfazia uma conta calada e
Martinho ficou estupefacto. - Sabes o que tu és?
Uma vigarista de primeira apanha. E as consultas
na clínica privada quando foi preciso?
- Não lhe pedi nada.
Olhou para ela com vontade de lhe saltar ao
pescoço, mas, de repente, achou-se tão farto
daquele diálogo que a dispensou com um gesto. Teve
a noção de que ela não perdoava a ela própria tê-
lo ofendido com a limpeza do quadro; e agora
queria criar um ponto de ataque para sair
honrosamente das suas perplexidades. Nunca mais
tinham abordado aquela terrível noite; mas ela
estava presente como qualquer coisa de injusto,
uma lesão nas suas relações. Ela disse: - Quando
precisar de mim estou ao dispor. Se casar e tiver
filhos eu venho ajudar a criá-los. Posso ainda
ser-lhe útil, nunca se sabe.
Era isso que lhe devia; ser útil era uma ferida
aberta no seu peito. Não pedia mais, mas também
não se satisfazia com as carícias dele que não
eram senão parte dum sentimento de plenitude de
que ela ficava impedida. "Há paixões muito
diferentes que não derivam da sexualidade", pensou
Martinho; porque tinha lido isto nalgum livro, não
sabia onde. E se Rembrandt pintasse como se fosse
conhecedor duma libido que ainda não se
diferenciasse o suficiente e que, por isso, tinha
que manifestar-se pela forma sexual? O que havia
entre ele e Josefa pertencia a essa área
desconhecida, o que fazia que ela não se sentisse
bem com ele; e que ele a amasse, apesar de tudo.
- Que vais fazer para casa? - perguntou. Mas era
como se outra pessoa tivesse perguntado.
- É a minha mãe que está velhota e precisa de mim.
342
- Julguei que a tua mãe tinha morrido. - Não lhe
deu tempo para replicar, e acrescentou: - Fazes
bem. Se eu te chamar, tu voltas?
- Volto, esteja descansado.
Mas percebia-se que ela estava desejosa por
desaparecer, como um rato que encontra uma saída
num labirinto. As pessoas eram assim. Quando
Josefa virou as costas, ele teve um momento de
sofrimento como nunca tivera outro assim. As
lágrimas corriam-lhe pela cara sem que as pudesse
parar. Antes pelo contrário: agradava-lhe que
fossem tão abundantes e sinceras. Como sempre, as
pessoas que mudam o curso da sua vida, ou morrem,
deixam para trás uma série de indícios que fazem
com que a sua presença não se desvaneça durante
algum tempo. De vez em quando Martinho ia
encontrar qualquer coisa que tinha pertencido
exclusivamente a Josefa: um par de chinelos
perdidos debaixo duma cama ou uma peça de roupa
não tão usada que ele não pensasse em devolvê-la.
Mas, retendo-a em casa, criava na sua mente a
ideia de que Josefa ia voltar. Depois, isso foi-se
desvanecendo e já não pensava nela senão com
pequenos desejos de macular a sua recordação pondo
em relevo os seus defeitos.
Agora que a Ronda da Noite deixara de ser o seu
altar de meditação, não via como justificar a sua
permanência ali. Todavia, estava enredado com as
famílias vizinhas, as que tinham filhas casadoiras
e que viam nele um partido muito de considerar. A
força desses interesses munidos de sentimentos
apaixonados em que participavam mães e filhas,
paralisava-o a ponto de querer ceder e acabar
assim a sua vida de visionário: extinguindo-se o
poder da sua neurose, ele não tinha outro caminho
senão submeter-se à via doméstica que lhe era
indicada. No simples gesto da parte duma das suas
prováveis noivas,
343
de lhe passar a saladeira à mesa, havia uma
representação sexual. Era como se ela dissesse: "O
meu ventre está ao teu alcance, basta que aceites
esta taça de alface." Ela não via o instinto
sexual como sendo parcial no feixe dos instintos
que contêm forças impossíveis de clarificar. Mas
um homem era diferente. O seu trajecto na vida, a
soma dos seus interesses profundos, derivam de
fontes eróticas não determinadas apenas pela
sexualidade. Ainda que esta desse um impulso ao
instinto de sobrevivência que se mede com todos os
outros como limite do sentido da própria vida.
Quando se dá uma inflação da sexualidade, a
energia do intelecto sofre um golpe que pode ir
até à alteração da realidade.
Parecia-lhe agora a Martinho que a Ronda da Noite
se apoderava dele (o termo é possessão) como um
símbolo cujo significado fosse o seu próprio
pensamento. A pessoa era iluminada para se
transformar na própria obra de arte. A carga
afectiva contida em Rembrandt e nos seus modelos
resultavam na imagem do mundo com o qual, assim,
Martinho criou uma aproximação. Essa tonalidade
afectiva ia ter importância na relação com as
outras pessoas.
Os seus projectos de casamento não deram
resultado, e Martinho acabou por não ser benvindo
no seio das famílias que o tinham recebido com uma
espécie de histeria da procriação. Quase de
repente, perderam todo o escrúpulo e lançaram
sobre Martinho as calúnias que podiam significar
mais para a sua perda. Em primeiro lugar,
avançando além da suspeita, declararam-no
homossexual. Ele próprio se interrogou sobre isso
e procurou na sua infância indícios duma natureza
que se teria tornado "oculta". Descobriu que, aos
quatro anos, costumava esconder-se debaixo das
fraldas da camilha, ainda em uso em casa dos
Nabasco. Gostava de sentir o cheiro do sexo das
mulheres sentadas à mesa. Era preciso tirá-lo à
344
força do seu esconderijo e, sem alcançarem outro
significado que não fosse o duma brincadeira
teimosa, distraírem-no com guloseimas e jogos.
Martinho, já com dez anos, desenvolveu um horror à
sua própria nudez. Vestia-se voltado para a parede
e fechava-se no quarto à chave enquanto se olhava
com desgosto. Invejava as raparigas porque o sexo
delas não era exposto e não podia assim despertar
qualquer repugnância. Achava mesmo que o culto
pela beleza se destinava a ofuscar um sentimento
de desagrado pelo sexo e o programa doloroso do
nascimento.
Quando Martinho contava quatro anos, teve a
primeira fase que se podia dizer nutritiva, em que
a casa da avó lhe foi revelada. E, com ela, a
Ronda da Noite. A primeira noção que teve da cena,
foi que era real. O tamborileiro estava a tocar no
seu tambor; a menina brincava com alguém que não
se via no quadro. E as personagens principais, o
capitão Banning Cocq e o seu lugar-tenente estavam
numa situação precária; porque, tendo a obra,
pelas suas dimensões, sido apeada até ao chão,
para caber na parede da sala de jantar, como
medida de precaução, foi-lhe posto diante um sofá
de palhinha, desses que eram peças de resistência
nos casarões brasileiros. O belo sofá de jacarandá
ocultava até à cintura as figuras do primeiro
plano, que ficavam trucidadas. Elisa, que não
recebeu de boa vontade o pequeno Martinho, porque
ia alterar-lhe a rotina do seu trabalho, explicava
em termos apocalípticos o que era a Ronda: um
agrupamento de aleijados e pessoas disformes,
agrupados na noite com intenções que não podiam
ser recomendáveis. Para Elisa tratava-se duma
revolução, dum assalto, ou qualquer coisa desse
teor onde Banning Cocq e o seu ajudante de campo
tinham perdido as pernas. E como Martinho rompia a
chorar, aos gritos e em riscos de perder a
respiração, ela dizia-lhe que as pernas deles
voltavam a crescer; para ilustrar
345
o que dizia, afastava o sofá e lá apareciam os
belos cavalheiros no esplendor da sua pose.
Martinho, ao crescer, fez da Ronda a sua leitura
preferida. Quando outras crianças se distraíam com
legos e carrinhos de corda; ou até a banda
desenhada com aventuras dos seus super-heróis,
Martinho só comia diante da Ronda e adormecia com
o dedo espetado na sua direcção, a tentar
decifrar, entender e, por conta própria, criar uma
versão satisfatória. Quando Paula o levava com ela
e o vinha buscar no meio de muitas e aliciantes
promessas, Martinho enfurecia-se e atirava-lhe com
o que tivesse à mão. Paula culpava a mãe desse
desaforo, mas a verdade é que Maria Rosa não
retinha a criança nem mesmo a cativava, ocupada
que andava sempre com os seus chapéus, luxo de
após-guerra e volumosos como um canteiro de
flores. Nesse tempo, Maria Rosa era ainda o
bastante nova para inspirar paixões, facto de que
se admirava porque não estava interessada em jogos
eróticos. Mas até Martinho, aos dez anos, sabia
avaliar o encanto da avó, como se fosse uma
feiticeira, de tal modo excitava a sua fantasia,
abrindo caminhos por onde circulava uma libido nem
sempre luminosa. Aprendia que o amor nasce dessa
torrente maliciosa de que o corpo tem o mapa
espiritual.
Com o segundo casamento de Paula e porque nasceram
João e Bernardo quase só duma vez, a situação de
Martinho esclareceu-se: nunca mais haveria aquela
batalha campal entre ele e a mãe, observada por
Elisa que, com as mãos cruzadas na barriga, só
podia dizer: "isso não se faz", meio divertida com
a ira do pequeno Martinho.
Era a casa da avó que ele temia deixar, ou era a
Ronda que ele não dispensava na sua vida? A
verdade simbólica emanava da Ronda e não da
presença de Paula, inadequada como sua mãe. A
Ronda era, no fim de contas, o seu oratório e a
sua religião;
346
tanto mais que qualquer invocação de fé não
passava, na família Nabasco, senão duma inútil e
vaga petição de princípio.
Em tempos muito antigos, quando Maria Rosa não era
ainda nascida, a fé era ainda referida na igreja
como qualquer coisa que junta comodidade ao dia-a-
dia das pessoas. As cadeirinhas, os genuflexórios
da família, estavam na sombra dos pilares do
transepto. Havia também coxins de veludo vermelho
onde os joelhos doentes podiam arrimar-se. Mas
depois tudo isso foi desaparecendo e só Elisa, por
hábito e efeito da sonolência, à noite, rezava o
terço e tinha à cabeceira uma pequena pia de água-
benta que foi ficando seca e sem uso.
Este livro parece que acaba onde devia ter
começado: a infância de Martinho Nabasco. Mas o
fim justifica o princípio. Sem o pequeno Martinho
de quatro anos, assediado pelo tropel da Ronda a
todas as horas do dia, tendo por imaginária
companheira de surpresas e brincadeiras pensadas a
fada luminosa do quadro.
Entre a avó snobe que não lhe prestava muita
atenção porque ela própria enchia o espaço de
todos os processos emocionais; entre ela e Elisa
que nunca soube ser inimiga ou amiga, ele era
feliz. Porque muita coisa escapava às duas
mulheres, como por exemplo o abuso das criadas
mais novas, pobres raparigas da província cuja
maior aspiração era ganhar para uma gargantilha de
oiro e depois para um volumoso relógio de pulso.
Na realidade, o verdadeiro problema que conduzia a
uma neurose profunda, não era a sexualidade. O
sexo é muitas vezes o desvio de causas que
procedem de muito longe e cujo perigo se tenta
saldar com as contravenções do prazer proibido. Os
governos sabem-no. Por isso estimulam festivamente
o acto sexual, as fantasias que ele reclama, para
347
ocultar dos cidadãos as suas autênticas
preocupações. O que consegue é uma neurose
colateral que vai até ao abandono da personalidade
e da vontade criadora.
Quando Elisa se apercebeu que Martinho era alvo de
atenções pecaminosas das jovens, expôs em público
as suas suspeitas (às vezes nada mais do que
suspeitas), obtendo com isso uma satisfação extra
na sua vida de espia e de delatora. Martinho
ganhou uma imunidade a respeito das mulheres. Como
adolescente não se impressionava com a nudez
delas; e isto dava-lhe uma sensação de poder sobre
as dificuldades e contribuiu para uma concentração
maior nos problemas, charadas, enigmas que se lhe
apresentavam ao correr dos seus dias.
A sua educação não teve nada de formal. Maria Rosa
quis educá-lo como um príncipe. Ou quis torná-lo
disponível para a realidade interior, o mundo dos
espíritos e dos sonhos; dos feiticeiros e dos
demónios. Dos deuses também, ainda que ela os
ignorasse, ficando a sua relação com eles
convertida na espuma das lendas e da ficção melhor
ou pior elaborada. Ela não sabia nada dos deuses,
que sempre tinham guiado os homens através da sua
existência irracional. Fez, sem intenção, de
Martinho um primitivo; daí a atracção dele por
Rembrandt, um mago da selva que nunca se desbrava
completamente no mundo interior. Num tempo em que
a superstição parece completamente desbancada pelo
civilizado, Martinho tinha que precaver-se para
não o tomarem por doido. Ao contrário dos cadetes,
seus irmãos germanos, ele não tomava as ideologias
político-sociais senão como novas apropriações da
mágica que se arroga como medida de salvação. A
prova disso era que muitos governantes tinham as
suas bruxas particulares, que os visitavam
regularmente para incutirem-lhes segurança,
sobretudo quando as epidemias
348 AGUSTINA BESSA-LUÍS
psíquicas se declaravam. Fosse porque debaixo da
frivolidade que temperava a sua tendência aos
excessos Maria Rosa atingia uma realidade
profunda; fosse por snobismo, que ela tinha em
mente ser o seu próprio culto da personalidade,
ela não deu a Martinho uma educação que lhe
favorecesse uma carreira.
A carreira tornou-se a alma da emancipação. A
emancipação em relação à mãe, em suma, que
simbolizava a autoridade e a obrigação de fazer
alguma coisa para corresponder às suas próprias
necessidades. Há povos dotados para a inatividade,
assim como há outros que se satisfazem na
obediência e são adequados à aprendizagem. Os
primeiros são povos condenados à pobreza, uma
pobreza mítica porque pressupõe a carência das
necessidades. Qualquer plano para os enriquecer
tem de falhar porque a inatividade pressupõe um
estado mais invejável do que todo o sucesso
material.
A carreira pode significar competitividade, mas
não se assume como objectivo. A educação de
Martinho teve como resultado um estado interior
cada vez mais vasto. Adiantou-se para dentro de si
próprio. O tempo primitivo era reconhecido em cada
uma das suas caminhadas interiores; o mesmo
acontecia com a província rural em vias de
desaparecimento. Por exemplo, o hábito de quando
se encontrava uma ferradura no caminho, ela devia
ser considerada como um bom presságio. Assim como
pendurar a ferradura à porta de casa, posto que a
ferradura é uma protecção contra os feitiços.
Sobre o portal das antigas cavalariças (onde a
Ronda encontrou abrigo durante algum tempo), lá
estava a ferradura, que Martinho achava
indispensável no seu foro íntimo. Se descesse um
pouco no escalão social, verificava que havia
imediatamente uma linguagem que aparentava as
pessoas muito para além dos laços de família.
Algumas lendas que
349
perduravam no meio urbano, apenas como efeito
romântico na imaginação, não se extinguiam, ainda
que sofressem deturpações. Como aquela de se dizer
que as éguas lusitanas eram fecundadas pelo vento.
É o cavalo que simboliza o vento e, na lenda
alemã, ao vento é atribuída uma lascívia com
efeito sobre as mulheres jovens.
Vestígios do culto do cavalo encontram-se
sobretudo no Ribatejo, cujas danças sapateadas
simbolizam o tropear dos cascos no solo; e é muito
possível que esse exercício de homens fosse
outrora uma invocação de fertilidade de que as
mulheres eram excluídas. Comer carne de cavalo é
ainda visto como uma emergência miserável e o seu
uso não esteve nunca generalizado, posto que o
cavalo é uma figura mítica.
Depois da destruição da Ronda da Noite e passado o
período de luto, todos os projectos de Martinho se
desvaneceram. O seu casamento com uma jovem da
região perdeu toda a viabilidade e ele espaçou as
suas visitas até que ela compreendeu que não
estava mais no caminho de Martinho e que ele não
pensava casar-se. De resto, os papéis do seu
divórcio não chegavam, e ele não tinha qualquer
empenho em apressar o caso. Tanto quanto sabia,
Judite também não tinha em vista mudar de estado.
Limitava-se a cuidar do pai, e as coisas
funcionavam como se ele fosse eterno e não
admitissem qualquer mudança.
Entretanto, o rosto de Judite tinha-se esfumado na
sua memória e só olhando para os retratos que
tinha dela podia aproximar-se da realidade que
tivera na sua vida. O retrato do casamento, a que
Maria Rosa quisera dar alguma ênfase, não lhe
dizia grande coisa. Talvez o que é humano não
esteja tão ligado a nós como se pensa, e por isso
prescindimos do que amamos, tão depressa.
350
Como nas pessoas que se concentram no sentimento
da melancolia, a ideia do seu amor extinto por
Judite recriava-se ainda com o seu
desaparecimento. Podia-se dizer que lhe era mais
grata a memória embelezada pela necessidade de a
honrar, do que tudo o que vivera como casado. Os
mestres, ainda que mais medíocres do que sublimes,
tinham-lhe ensinado a arte de sentir, a mais fácil
de degenerar e de redundar na extravagância. Sem o
notar, viu-se preso de inspirações súbitas e
tentações semelhantes a gostos grotescos.
Rembrandt devia ser como ele, um homem sério, por
exemplo, obediente às leis da cidade; mas que, com
o sucesso e a riqueza, se transformasse num
melancólico que se acha atraído pelo desejo de
vingança iluminado por ofensas e injustiças mais
ou menos reais. Ele próprio, Martinho, quis
dedicar-se à pintura e fazer versos. O facto de se
dizer que Portugal é um país de poetas vem dessa
sombra de melancolia e insucesso que a todos
afecta.
Tendo passado uma geração que ele reconhecia pelas
modas que lhe eram comuns, viu-se incapaz de ver
as mudanças senão com uma ponta de desprezo. Sem a
capitosa presença de Maria Rosa, para quem os
outros faziam parte do encantamento por si
própria, Martinho não era senão um adulto por
convicção e, de facto, um homem tímido a quem a
liberdade assustava.
Amputado da Ronda da Noite, Martinho esteve muito
tempo imóvel e encontrou nisso uma satisfação que
qualquer trabalho ou dedicação por alguma coisa no
mundo não lhe podiam dar. Pensou se as ideias mais
nobres do homem não passavam duma encenação dum
efeito teatral que partia da sua má consciência. O
que estava bem explícito no Jardim do Éden, era
esse compromisso do homem para com Deus: o de
construir um palco gigantesco onde se ia imitar a
criação.
351
O valor cultural duma obra em liberdade torna-se
discutível e até condenável; como ficou provado
com a apresentação da Ronda da Noite aos poderes
de Amesterdão, incluindo os das mulheres que se
apressaram a rir-se de Rembrandt e a humilhá-lo,
tomando a plenitude caótica da obra em questão
como uma silenciosa aversão aos ditos poderes. O
que de facto era.
A arte, na obra de Rembrandt, não pertence à
herança que todos esperavam do seu génio. É uma
captura do acontecimento e não a história dele. É
tanto mais extraordinário esse acontecimento
quanto joga com o que lhe é simultâneo: a nudez de
Susana no banho não ignora o olhar concupiscente
dos velhos embora ela não se aperceba da presença
deles. Tudo o que concorre para um efeito é
simultâneo; e antes de um facto se produzir ele já
concorria para a unidade através de pequenos
acontecimentos auxiliares. No caso da casta
Susana, um arrepio que podia ser atribuído à água
da piscina, denuncia o desejo em que ela participa
porque é motivo dele. O erro é o acompanhante duma
verdade e o que a faz percorrer o seu caminho em
segurança. Porque erramos? Naturalmente porque a
verdade se adianta a nós e ameaça assim a nossa
liberdade. É preciso atrasá-la com o erro, que não
é efeito da estupidez humana, mas uma delinquência
propositada que nos faz ganhar tempo sobre a
verdade.
Muita coisa se escreveu sobre o crime, mas deixou-
se de dizer muita coisa sobre ele. Martinho, ao
dobrar a casa dos sessenta anos, teve a revelação
de que tinha uma personalidade policial.
O extraordinário interesse que o crime desperta,
tanto no aspecto ritual (sacrifício sangrento)
como no carácter de transgressão absoluta, tem um
significado que escapa ao racionalismo
352
habitual. Martinho perguntava a ele próprio o que
tinha movido Maria Rosa a adoptar a órfã de
Estrelinha Sopa-de-Massa. Seria só indulgência e
uma forma de extravagância, o desejo de desafiar a
sua auto-estima, ou outra coisa mais
inconfessável, como o prazer de aplaudir a
singularidade do crime?
Desde a ira de Caim que, de resto, criou a seita
dos caimitas, os que contestavam a preferência de
Deus pelo pacífico Abel, que a psicologia
histórica do erro esteve em causa. A violência foi
consagrada como um processo útil de provar a
aptidão do homem para a relevância dos seus
direitos.
Tudo isto seria muito impopular se Martinho Dias
Nabasco se dedicasse a uma carreira pedagógica, ou
simplesmente a uma convivência normal com as
pessoas do seu tempo. Mas, à parte a tentativa de
não se manter à margem da sociedade, como quando
pensou casar outra vez e gerar filhos (não
esquecia a promessa de Josefa de os criar), ele
não via saída para a sua situação.
Feitas as contas com Paula e os irmãos, os seus
meios não eram abundantes. Paula levara tudo o que
pudera, inclusive a pequena ânfora com as cinzas
de Maria Rosa, do que se arrependeu; porque não
sabia onde pôr o que considerava uma relíquia, mas
não tanto que lhe dedicasse um oratório como os
japoneses aos antepassados. Os cadetes olhavam
para aquilo com indiferença, tanto mais que
estorvava em qualquer parte.
- E se as lançássemos ao mar? - disse João,
puxando as meias brancas até ao joelho, como
sempre fazia quando se sentava. Era um genuíno
cidadão urbano e tudo o que se passava além da
Rotunda do Relógio era a província, ou seja,
território bárbaro. Lisboa acabava no fim da
Avenida das Descobertas. E todas aquelas casas dum
carácter palaciano
353
(dizia-se palacete no antigamente) estavam
adaptadas a fins sociais; a vida de família tinha
sido extinta, um tanto porque a raiz capitalista
não era mais exposta nos indícios de riqueza
francos e pomposos. Paula reagiu com a ideia de
atirar ao mar as cinzas de Maria Rosa. Martinho
viveu a lembrança das férias em Vila do Conde,
coutada da gente da capital, onde o mar era
alteroso e onde às vezes apareciam afogados com
camarões presos nos cabelos. Nunca viu nenhum, mas
essas histórias causavam-lhe arrepios. Lançar ao
mar as cinzas de Maria Rosa parecia-lhe uma
profanação. Optou por fazer-lhe um nicho numa
salinha que tinha sido de costura e agora não
tinha mais utilidade. - Assim está bem - disse
João. A avó era uma imagem descontínua em volta do
tronco da família que ia sofrendo golpes, apagando
as inscrições amorosas. Lendas, ditos de espírito
ou pacóvios, que sedimentavam a memória de grupo,
tinham sido arrumados num canto onde ninguém
passava, como na salinha de costura de Paula. Um
dia, quando João se casasse e tivesse filhas, elas
haviam de lançar gritinhos de júbilo ao descobrir
os vestidos de Maria Rosa, obras de arte com molas
forradas e remates artesanais. "Meu Deus, no que
se perdia o tempo..." - diriam.
Desde o dia em que Martinho, aos quatro anos,
encontrou o seu caminho na Ronda da Noite, como se
fosse a floresta do Pequeno Polegar, a avó passou
a ser a rainha má da história. Aos sete anos
internou-o num colégio de padres onde não sabia o
que fazer senão interrogar-se sobre tão terrível
castigo. Por fim, um dos contínuos, que tinha o ar
dum guarda prisional, aconselhou Maria Rosa a
levar a criança.
- Não se sabe defender e vai apanhar uma doença -
disse. Martinho passou a ter um grande respeito
por todo o tipo de guardas, fossem enfermeiros,
porteiros ou até jardineiros
354
municipais. Achava que eles tinham enormes poderes
e eram capazes de libertar da sua condenação
pessoas como ele. Martinho passou todo o ano
seguinte com pequenas febres que não era possível
detectar. Comia batatas fritas e lia revistas de
banda desenhada. Maria Rosa mostrou-se
compreensiva, tanto mais que o doutor Horácio
Assis e Bento Webster, o poeta, lhe diziam para
ser paciente. Martinho ia abrir as asas e mostrar
o que valia, em qualquer altura.
Aos dez anos sabia muito pouco da matéria do
liceu. Era indolente, não brincava, excepto quando
construía cidades de cartolina às cores. Isto
prometia que ele fosse arquitecto. Quando se
encontra o destino para uma criança parece que
todas as coisas se ajustam e que os bens culturais
positivos foram cumpridos. Mas Martinho era
incapaz do mesmo ritmo de progresso que faz feliz
uma geração sem a fazer cultivada. A política
cultural da sua época fazia parte dum conteúdo
objectivo sem limites; enquanto que a cultura
subjectiva só muito lentamente se aprofundava.
Fosse pelo desinteresse de Maria Rosa, que não via
os efeitos da idade da razão manifestados tão
depressa como ela desejava, a verdade é que
Martinho ficou entregue a si próprio. Tiveram
fracos resultados as lições dos professores
particulares, que acabavam sempre por insinuar a
incapacidade do aluno para aprender. Só quando
apareceu na sua vida um jovem mestre, por quem
Martinho se pode dizer que se apaixonou é que ele
despertou para o estudo e venceu todos os exames
com extrema facilidade. O jovem professor, quando
não teve mais que ensinar, foi dispensado.
Martinho mergulhou num desespero que tratou de
ocultar de toda a gente. A avó era uma eterna
coquete, sem mais alma do que a que lhe davam os
vestidos e o seu desejo de eternidade. De vez em
quando falava dele com orgulho, porque tudo era
matéria
355
para o seu snobismo. Dizia-se oriunda dos Diez de
Espanha e foi ela que inventou a Ronda da Noite
como fazendo parte do tesouro da duquesa de
Mântua; que o deixou ficar para trás nos caminhos
da Estremadura por causa das suas dimensões
exorbitantes.
Quando os Nabasco estavam o que chamavam "bem de
finanças", mudavam-se para a cidade, a pretexto de
irem a banhos para as praias do Molhe ou de
frequentarem gente importante. A beleza de Maria
Rosa abria-lhe as portas e, tendo já a filha
casada segunda vez, ainda despertava paixões. Não
que ela lhes desse motivo, porque a sua melhor
táctica era a duma amizade amorosa, muito em voga
com o flirt. Os costumes, depois da primeira
Guerra Mundial, tinham-se tornado "infanticidas",
como dizia Margô, a cunhada de Maria Rosa. Os
contraceptivos, a higiene íntima, tornavam o acto
amoroso estéril. As famílias numerosas
desapareciam e o filho único melhorava as
condições da vida doméstica. Quando a segunda
Guerra estalou, com o ideal germânico da prole bem
nascida e educada para um conceito de vitória
compreendido como realidade construtiva, encheu o
espaço europeu como uma grande bolha de ar.
Apareceram as refugiadas, que não usavam meias e
tomavam banhos de sol completamente nuas na praia.
Paula tratava de as imitar, mas as restrições
tradicionais da família impunham-lhe um decoro que
era o garante do casamento conveniente.
No solar dos Nabasco não havia vestígios quase de
Maria Rosa. Ela negociava com o marido o pulo para
a cidade e conseguia passar os invernos fora,
algumas vezes até em Paris, que era a sua
metrópole muito querida. Passava por parisiense,
com o seu ar desinibido e elegante. Mas depois de
Paula se casar pela segunda vez e o Nabasco
comprar na Maia a Casa do Cão, as coisas mudaram
radicalmente. Foi quando a Ronda
356
ficou abandonada, com o sofá de palhinha a tolher
as pernas do capitão Banning Cocq. Passaram alguns
anos antes que Martinho desse pela sua falta. Foi
por acaso que se encontrou com a Ronda. O avô
tinha morrido e foi sepultado, no lugar da sua
origem e não no território dos Dias. A grande
pedra do sepulcro abriu-se para ele e foi a última
vez que se abriu. Maria Rosa impressionou-se com
aquela pesada laje sobre uma grelha de ferro
destinada a deixar cair o corpo, conforme se ia
desfazendo, na cova funda. Varrida e limpa, a cova
não apresentava vestígios doutros enterros. O que
faziam aos restos, coveiros ou quem fosse, não se
sabia. Decerto procuravam os dentes de ouro e
mexiam nos ossos como em desperdícios sem valor.
Talvez fossem parar ao lixo, e daí aparecerem
caveiras intactas entre os resíduos fumegantes que
pareciam arder eternamente à beira da estrada.
Quando o avô morreu (ainda não se falava no
casamento com Judite), Martinho fez uma visita à
casa da Ronda. Tratava-se, mais propriamente, de
proceder às obras no jazigo, muito danificado por
infiltrações e o andar do tempo em geral.
O dia apresentava-se tempestuoso e Martinho teve a
ideia de abrigar-se na Ronda, que era perto, na
colina com ares de castro romano. Mas o caminho
estava intransitável. Martinho meteu o carro por
um estradão que acabava alguns metros adiante.
Lembrava-se das trovoadas que se formavam nos
quatro cantos do vale, e preocupou-se. Mas o
portão da Ronda estava à vista, ainda que fechado
e coberto de ferrugem. Só havia maneira de passar
adiante, era saltar por cima da sebe que murava a
entrada; o que Martinho fez, ficando pouco
apresentável e coberto de ramos enegrecidos pela
chuva.
A porta da casa estava encostada, provavelmente
tinha-se perdido a chave.
357
Se havia cães, ele não deu por isso. "Era o que me
faltava", pensou. A água corria, cobrindo-lhe os
sapatos e ele percebeu que estava num lugar seu
conhecido. Martinho sabia que havia um pátio
diante da entrada principal, um pátio musgoso e
empedrado. Um alto cipreste montava guarda à
entrada. Ele entrou. Percorreu os três salões, as
luzes da cidade próxima cintilavam por entre os
fios de chuva. E à luz espaçada dos relâmpagos ele
viu a Ronda. Parecia ter uma iluminação própria,
com a menina vestida de seda, a correr por entre a
companhia do capitão Banning Cocq e do seu lugar-
tenente. Um sentimento à margem da sua cultura, à
margem daquela noite em que a chuva se despenhava
do telhado, apoderou-se dele. Pelas suas
dimensões, o quadro estava arrimado à parede como
se tivesse escorregado; a sua base estendia-se
pelo soalho e parava porque uma trave pregada no
chão o impedia de se estender completamente na
sala. Martinho tinha o capitão junto dos seus pés,
mas não o podia ver graças à escuridão. A única
parte visível era a jovem vivandeira ou fada que
parecia esgueirar-se alegremente para o outro lado
do salão. Parecia ter vida e despedir um olhar
travesso em direcção a Martinho.
A chuva abrandara, mas ele não tinha vontade de
voltar a fazer o caminho de volta. Quem lhe dizia
que não podia haver uma derrocada e o passo estar
impedido? Ou até ele ser apanhado nela, de mistura
com pedras e raízes?
Procurou velas e achou, no lar da cozinha, um
prato que servia de castiçal. Tinha em cima um
bocado de estearina a que ele ateou lume; brilhou
uma luz fumosa e, lentamente, para prevenir os
golpes de vento que apagassem a vela, Martinho
voltou para a sala.
358
Era nessa noite que ele pensava, muitos anos
depois, já quando a Ronda da Noite não existia, e
ele estava sentado diante da porta principal
aberta de par em par. Decorria a canícula em
Julho, e um bafo quente, filtrado pela ramada do
pátio, chegava-lhe ao rosto. Tinha na mão um
enxota-moscas feito de papel de jornal, como se
usava em tempos; de vez em quando Martinho agitava
o ar com ele e o seu pequeno rugido lembrava-lhe
que não estava só. Tinha vestido um fato de linho
que lhe ficava largo; não se lhe viam os pés
debaixo das pernas das calças que arrastavam.
Pensou com uma ternura súbita no quadro que o
acompanhara desde a sua tenra idade, e não sentiu
pena de o ver destruído. Deixara-lhe uma ideia
profética, como se o mundo começasse, desde a sua
obscura pincelada, a conhecer-se melhor. A
companhia do capitão Banning, mau grado a sua
ordem de marcha, divertia-se desobedecendo, porque
"toda a lei é uma injustiça". O desafio estava
lançado pela intuição do artista. Já quando a
segunda Guerra Mundial quis impor uma disciplina
universal, moral, étnica, artística, as coisas
estavam no fim. Não se tinha combatido por paixão
guerreira, por fixação num lugar mental que se
queria eterno; combatia-se cegamente porque todas
as razões estavam em causa e entravam em agonia.
"Se assim for, melhor é" - disse Martinho. A lei
era a consciência de cada um; e ainda que nem em
dez mil anos isso fosse um pressentimento que se
troca na interacção dos homens, mesmo os mais
insignificantes e transitórios, valia a pena
esperar.
O vento cálido, que arrastava a flor do
sabugueiro, entrou pela sala. Era como se a Ronda
chegasse, com o seu porta-bandeira e homens
armados de escopetas; e a pequena fada,
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vibrante de entusiasmo, se juntasse a eles, para
rir, para provocar, para dizer quanto a terra é
jovem.
Martinho teve uma pneumonia na entrada do Inverno
e não pôde vencer a doença. A enfermeira que vinha
recolher sangue para análises perguntava-lhe
sempre a mesma coisa:
- Então não consegue? Não consegue?
Ele estava convencido que conseguia. Como toda a
gente, aliás.
Porto, 16.07.2006