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Badana Esquerda

A RONDA DA NOITE.
Todas as grandes obras implicam um segredo que nunca será desvendado.
Elas são o motivo das coisas que não podem ser ditas antes de o seu tempo
ter chegado. Por intuição e não por entendimento assumido pela cultura, os
artistas descobrem o caminho de novas propostas da criação do mundo.
Agustina Bessa-Luís, neste romance que não se despede da conversação com
a sua época, descobre novos predicados no que parece ser apenas um caso
do dia: um desfile duma companhia de arcabuzeiros chefiados pelo senhor
Banning Cocq cujo retruco parece ser a finalidade da obra.
Não é tal. O pintor excede a encomenda e atinge uma verdade conflituosa e
profunda. A companhia de Banning Cocq não está disposta a obedecer à
ordem de marcha. Simplesmente recusa-se a ser diferente daquilo que a
cidade lhe propõe. Cada um faz o que a sua consciência lhe dita. A virtude
criadora da destruição está encadeada na vida pública que é a Ronda da
Noite.
Badana direita

Rembrandt, com as suas limitadas noções de cultura, pinta livremente, sem


estar prisioneiro dos costumes e das ideias recebidas. E entra no carácter da
época que desponta e que se traduz pela frase: O direito é a injustiça.
O princípio da autoridade entra em colapso, e quando Banning Cocq
comanda a sua companhia não é obedecido, porque toda a ditadura é uma lei
e toda a lei é uma injustiça. A disciplina que a guerra pretende impor é uma
farsa. Sucede-lhe a destruição criadora que nos séculos seguintes se irá
afirmar, ainda que sob o aspecto duma desordem.
O princípio da autoridade, pregado desde os púlpitos políticos, guerreiros,
partidários, quer ter alcance sobre todo o ensino oficial; sobre o estado
militar, os laços conjugais, o prestígio paterno e a vida pública em geral.
Rembrandt pinta, Martinho decifra. A Ronda da Noite é um fenómeno
mundial, ao mesmo tempo um apocalipse e uma intervenção genial em que a
cultura se inventa, se precipita, se nega e reflecte a destruição criadora. Tão
visível e perturbadora na Ronda da Noite. Como o leitor sabe: porque o
turbilhão de nuvens e de clarões já começou.

***
A RONDA DA NOITE

AGUSTINA BESSA-LUÍS
A RONDA DA NOITE
ROMANCE
LISBOA GUIMARÃES EDITORES
COPYRIGHT: AGUSTINA BESSA-LUÍS. 2006
Guimarães Editores, Lda.
Todos os direitos reservados
Editor: Francisco Cunha Leão
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CAPÍTULO I
DIA DE FINADOS

Naquele ano coube a Martinho Dias Nabasco


acompanhar o que restava duma família numerosa e
abastada, ao cemitério da terra natal. Ainda havia
muitos descendentes no estrangeiro, mas a casa em
que se reuniam objectos e memórias mais presentes
estava praticamente desabitada. Com o mau humor
que caracteriza os jovens ao ter que proteger
publicamente os velhos, Martinho deu a mão à avó
para ela não tropeçar nos seixos levantados da
calçada. Um mar de automóveis cobria a estrada.
Uns em movimento, outros procurando um lugar mesmo
diante dos portões e entradas que prometiam não
ser frequentadas na manhã austera de Finados, as
carrocerias brilhavam ao sol aberto. O cemitério,
que Martinho conhecera ainda meio rural, com
alguns jazigos de capela elevando-se sobre as
campas de terra, alargara-se, apinhado de
sepulturas recentes; os mármores e o granito
polido davam ao campo-santo um aspecto de cozinhas
bem arrumadas, alegradas por braçadas de flores.
Entre a massa de crisântemos, despontavam
orquídeas claras. Era um luxo, uma glória
prestados aos mortos. E que mortos! Martinho
admirava os rostos patéticos em caixilhos dourados
e as letras também douradas nas lápides novas em
folha.
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- Parece que morreram todos ao mesmo tempo -
disse, ainda a segurar a mão da avó, fria e de
dedos esqueléticos e bonitos.
- Tem compostura e sobretudo não me faças rir.
- Eu? A avó é que se ri de tudo sem compaixão.
Sabe bem que sim. Como o nosso jazigo está
estragado! Mas tem dignidade assim como está. - O
fio da sua camisola pegou-se à balaustrada do
jazigo que fora inovador no seu tempo. Era cercado
por troncos fingidos de cimento, o que na época
devia representar o máximo, se não de bom gosto,
pelo menos de ousadia. Começava a época do betão,
e o velho engenheiro, de quem Martinho mal sabia o
nome, deixava ali a sua marca desafiadora. Era avô
do avô, o que para Martinho vinha a dar um
parentesco distante e labiríntico. Pelos retratos,
via-se que era um homem elegante, no seu fato de
pied-de-poule cinzento e a barba que provavelmente
lhe escondia o queixo fraco. O mesmo que Martinho
herdara, um pouco fugidio, o que fazia sobressair
o nariz avançado e estreito. Um nariz de judeu, e
está tudo dito.
Não deixava por isso de ser bonito, o jovem
Martinho. Era doce como o açúcar quando queria e
paciente como Cristo. Se bem que, também como
Cristo, tivesse súbitas cóleras que só a avó
compreendia.
- Isto vai passar. É um homem e os homens são
imprevisíveis - dizia ela à mãe de Martinho, a sua
filha Paula, uma morena de olhos soberbos, quase
verdes, e que não tinham perdido ainda o brilho. A
avó passara o cabo dos cinquenta anos com alguma
dificuldade, e um fibroma que se desenvolvera
nessa idade diminuía-a a ponto de a pôr nervosa e
pronta a desfazer-se em lágrimas. Consultou em
Paris um médico velho e compassivo; passou-lhe uma
receita que ela aviou Praça da Ópera, indo depois
comer ostras entre desenganada
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e ligeira de sentimentos. Como Proust, Martinho
Dias Nabasco crescera entre duas mulheres que o
amavam. Era um amor sujeito a mudanças, como tudo
na vida.
Nesse ano, Paula Nabasco demorou mais tempo as
férias em Biarritz e não pôde ir florir a campa
dos mortos, cada vez mais distante na província
que fora o berço dos Nabasco e que se urbanizara
até ficar irreconhecível. O que ligava Paula a
Biarritz era uma velha história de família; o
exílio dos Nabasco nos tempos da República e
também a fortuna de que dispunham para se fazerem
respeitar sem se olhar ao nome ou à origem. Duma
irmandade de muitos irmãos, que mais parecia
convento do que lar de proporções normais, os
Nabasco tinham-se corrompido a ter poucos filhos,
depois da guerra de 14, quando a vida se tornou
bizarra e divertida. Ter só um filho ou um
"casalinho" tornou-se um capricho da burguesia bem
nascida. O tempo do avô Nabasco, o do jazigo em
betão armado, fora o último da procriação natural
sem o recurso ao preservativo e ao coito
interrompido. Teve nove filhos, dos quais três
eram deficientes mentais, de instintos matreiros e
pirómanos, e assim por diante.
Mas Maria Rosa Nabasco, a avó de Martinho,
limitou-se a dar à luz um rapaz e uma rapariga a
quem pôs o nome de Paula, nome que ainda não
existia na família e que ela, a avó, achava
indispensável numa genealogia católica. S. Paulo
era, entre outros, o seu amigo preferido por
razões que ela dificilmente abordava mas que não
eram as mais canónicas.
Até aos nove anos, Martinho Nabasco esteve
convencido que o mundo era partilhado por pessoas
inteligentes, inventivas e criadoras. Quando se
apercebeu que havia muita gente "parada", como a
avó Maria Rosa dizia, isso perturbou-o. Numa
família em que até os
deficientes mentais eram bem servidos de massa
cinzenta que dava origem a anedotas, ditos
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de espírito e calembures geniais, o facto de se
perceber que aquilo não era tudo e que podia haver
verdadeiras hordas de brutos e de melancólicos
activos e passivos, teve grande efeito em
Martinho. Até os Cunhas, que eram por tradição
criados dos Nabasco, constituíam uma elite de
gente apurada de gostos e de entendimento. Os
Cunhas eram sete irmãos e uma irmã chamada Ana.
Muito feia, ao contrário dos outros, que eram
elegantes e bonitos rapazes, ela detinha o
espírito mais elevado e a graça correspondente.
Nunca casou e Maria Rosa chamava-a muitas vezes
para lhe alegrar o coração, que era dado a súbitas
apreensões, como o rei David.
- Acho que somos parentes. Também eu gosto de
música como remédio e não como prazer - dizia. Os
Cunhas eram bons tocadores de viola e cavaquinho,
sabiam cantigas completamente graciosas e
cozinhavam muito bem. Durante duas gerações foram
presentes na casa dos Nabasco e contribuíram para
a felicidade dos dias que nem sempre eram de
aproveitar.
Atrás de Maria Rosa e do neto Martinho ia uma
herdeira dos Cunhas e que carregava as flores do
dia de finados. Simples crisântemos, novelo,
brancos e redondos como nuvens brancas e redondas.
A Elisa era uma mulher robusta que vestia um
uniforme azul-marinho, ou o que ela fazia parecer
um uniforme, com colarinho e um gilet cizento a
completar. O efeito era sóbrio mas parecia uma
extravagância numa época em que os costumes eram
ditados pelos espaços de pronto-a-vestir. Ela
orgulhava-se de não se converter aos jeans, se bem
que ao preferir as saias de pregas estava a
valorizar o porte de matrona.
- Ainda havemos de ver o dia em que os homens usem
saias. São mais cómodas e mais arejadas - dizia.
Estabeleciam-se grandes discussões em volta de
questões pequenas, e
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aquilo despertava o espírito e tornava-o
incandescente. Na hora perto do jantar, quando se
entrava na cozinha para destapar as panelas e
provar os molhos, acontecia aquela variada
conversa sobre palavras, hábitos e o que os
explicava. Martinho já não conhecera a casa da Rua
de Belomonte que tinha a cozinha e a sala de
jantar no terceiro andar voltado ao rio. Ao que
parecia, era uma casa mítica. Às seis horas da
tarde abria-se a porta do quintal aos cães e eles
subiam pelas escadas como um esquadrão da guarda.
Iam para a cozinha, derrubando cadeiras, abanando
as caudas como chicotes. Ganindo de alegria. Eram
cães de caça; e embora não houvesse mais caçadores
em casa, alimentava-se essa tradição com os
setters bonitos, cor de fogo cujo pêlo luzia ao
lume do fogão de lenha. Porque até muito tarde se
cozinhava a lenha e se usava a lenha para os
fogões de sala. Ouvia-se o crepitar das achas
secas como um ruído de bom augúrio na manhã
enevoada. O rio tinha ainda humores de estação,
crescia no Inverno e acumulava nas margens
laranjas e traves partidas; e algum cabrito morto
vinha na corrente, rápido na flor das ondas já
invadidas pelo mar aberto. Tudo isso Martinho não
tinha conhecido. Nem a mãe dele, Paula, que se
distinguia por ser dessas mulheres enclausuradas
ainda, e que aprendem equitação para o caso de ir
viver em grande estilo com um senhor das lezírias
ou com um lorde inglês. Imaginações que se
desvaneciam ao primeiro baile de debutantes, já em
declínio mas ainda consultoria de casamentos.
Martinho apertou, sem querer, o braço da avó ao
ter diante dos olhos a pesada pedra do túmulo. Era
de facto terrível, com as argolas de ferro
enferrujadas e o musgo negro que a cobria. "Não
vou deixar que a metam aqui" - pensou, desolado. E
um toque de pó-de-arroz na face dela, junto à
orelha esquerda, enterneceu-o como o rasto duma
mulher bonita.
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"Até ao fim somos amantes uns dos outros" -
pensou, triste. A educação de mulheres dera-lhe um
descaramento ritual, sem nada de perverso, só
amadurecido pela reflexão.
Deteve-se a olhar para as campas cobertas de
inscrições saudosas, de flores caras, de
candeeiros vermelhos dentro dos quais uma chama
curta ia sucumbindo. A morte tinha-se tornado uma
vaidade mais, uma festa de anos em que só faltava
o "parabéns a você" mas não a mesa abundante.
- Tem frio, avó? - perguntou.
- Não, só um pouco de fome. Mas, espera: não é
fome, talvez não seja. A morte é excitante. Esta
gente toda vai comer demais e enrolar-se na cama
com peúgas e tudo. Não se devem frequentar lugares
destes na minha idade. São lúbricos e quase mal
afamados.
Um dente dela abanava quando ela falava, e
Martinho podia distinguir um ligeiro ciciar da voz
que dantes não tinha. "Pronto, a velhice está a
bater-lhe à porta. Não vamos pensar nisso, não
quero pensar nisso. Pronto, acabou, pensamentos
vagabundos!" Beijou-a, a rir-se, e notou que os
cabelos dela tinham um cheiro de ferro frisado.
Os cabelos. De repente as mulheres puseram-se a
usar franja e Nietzsche disse que era para
esconder a testa e o que ela presume:
inteligência, independência de vida, sexo,
gerência dos negócios e outras coisas. Por mais
que olhasse para todos os lados, as mulheres não
pareciam diferentes. Quer dizer: talvez se
adaptassem com mais dificuldade a um destino de
donas de casa e mães de cinco filhos ranhosos e
impertinentes. A verdade estava à vista, a
crueldade era uma forma de razão prática, mas isso
sempre existira entre as mulheres e os homens
também. Só uma educação muito rígida as
controlava. Casavam-se por amor, mas o amor
incluía tudo o que se pode imaginar como na
história do Humpty Dumpty. Cascas
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de ostras e peles de raposa ou daquelas águas de
Colónia estafadas cujos frascos eram sempre uma
ralação pois não pertenciam a nenhum lugar: nem ao
lixo nem a uma colecção, nem para encher outra
vez. Paula Nabasco disse que outra vez que lhe
dessem um frasco desses o mandava de volta de
presente para outra pessoa.
- Eu só gosto de lavanda. Mas quando fiquei
grávida do Martinho enjoei a lavanda e nunca mais
a pude suportar. Isto deve ter um sentido, não
sei.
Paula penteava os compridos cabelos pretos. Tão
pretos quanto podiam ser, com reflexos metálicos.
Há coisas que se lêem nos livros mas que, nem por
isso, deixam de ser assim. Negro asa de corvo
existia. Eram os cabelos de Paula.
"Aí está uma coisa que não se desfaz depressa. O
cabelo" - pensou Martinho. Pôs-se a olhar para a
cabeça das pessoas que enchiam o cemitério e ficou
desconcertado. Pareciam todas como as dos
condenados à guilhotina ou ao machado, pontas
cortadas ao acaso segundo o critério do barbeiro
da prisão. Os pensamentos dele voaram noutra
direcção, conduzidos por uma curiosidade que o
fazia memorizar os momentos menos interessantes da
vida. Coisas de que ninguém se lembrava saíam da
memória como ratos dum queijo gigantesco. Era uma
ideia tola mas divertida como as crianças costumam
gostar.
A avó apoiou-se ao gradeamento da campa e ficou um
instante recolhida depois de fazer o sinal da
cruz. Martinho tomou um ar compungido, se bem que
com a avó não se podia ter a certeza de nada.
Decerto estava a pensar em coisas completamente
alheias à ocasião e que tinham que ver com
necessidades básicas, pequenas compras ou
contactos com as amigas. Tinha poucas, grande
parte delas tinham morrido, o que a não a afectara
muito. Os velhos são para morrer e as capoeiras
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devem ser remoçadas, com o cacarejo alegre das
novas frangas. Sempre o galo de plumas ruivas e
brilhantes a fazia rir.
- Parece um mosqueteiro com esporas e tudo! - Ela
ajuntou as pregas do vestido e endireitou-se como
se lhe fossem tirar uma fotografia. Odiava que a
fotografassem. Tinha, como muitos povos antigos,
um receio de que a fotografia lhe levasse a alma,
o que não deixava de ter algum fundamento.
Martinho pensou que ela tinha a pose perfeita para
ser retratada, tendo aos pés, até à cintura, a
massa de crisântemos brancos e enormes. Era uma
mulher linda, mais ainda do que fora em nova.
Paula tinha muitos ciúmes dela, passara o tempo a
imitá-la, rastejando em volta dela como um
cãozinho que implorasse carinhos. A avó era parca
em beijos e afagos. - "Dão-me volta ao estômago,
as crianças felizes dispensam-nos muito bem" -
dizia.
Cabelos pretos. A primeira vez que Martinho
verificou o indestrutível dos cabelos foi quando
abriram o túmulo de Patrícia Xavier para
procederem a reparações de alvenaria. Os cabelos
estavam intactos. Enrolados debaixo da cabeça
reduzida a caveira completamente descarnada,
pareciam uma almofada. Martinho estava presente
porque o jazigo pertencia aos Nabasco e, por
deferência, estando o túmulo dos Xavier ocupado
pelos sucessivos mortos desta família, Patrícia
ficou sepultada numa antiga capela do cemitério da
Lapa, duas vezes assaltada depois da Revolução dos
Cravos. Tinha as proporções majestosas dum andar
de boa área, um T1, digamos assim. Velhas rendas
pingavam do altar, donde os candelabros de prata
tinham sido roubados; e, por terra, jaziam alfaias
do culto, o suporte do Evangelho e umas galhetas
com borras de vinagre. O lampadário, que viera de
Veneza, também faltava. O ar era húmido, havia
infiltrações e os ratos tinham roído papéis,
talvez pagelas com a vida dos santos ou
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restos de bouquets amarrotados como lixo e
deixados a um canto. E os cabelos. Espessos,
abundantes, como tantas vezes Martinho vira em
Patrícia. Ela ia jogar bridge com Maria Rosa
Nabasco, às quartas-feiras. Ao todo, quatro
mulheres vestidas a rigor e que calçavam luvas de
suède e tomavam chá na confeitaria Oliveira, uma
vez por outra, quando saíam para compras. Eram
mulheres em que se sentiam os hábitos caros, que
não perguntavam o preço das coisas, que se
limitavam a "mandar a casa". Não estavam
dependentes do orçamento e, praticamente, eram
seguras do marido que tinham e da modista que as
vestia. O género de mulheres de que Maria Rosa
Nabasco era a última, como relíquia dum tempo
acabado, tempo de privilégios que tinham a sua
moda, como os chapéus e as receitas de pastelaria
e os pudins sem um pó de farinha.
Patrícia Xavier fora a primeira "a faltar", como
se dizia. Era alta, sempre bem calçada e com meias
tão finas que era preciso vesti-las com luvas,
como se recomendava sempre na embalagem de origem.
Não se podia imaginar que ela morrera dum aborto
mal sucedido, mas foi assim. O espanto varrera as
salas descobrindo o segredo mais do que era
permitido. Mas, para Paula, que tinha doze anos,
aquilo ficou encoberto e ela não sofreu nenhum
prejuízo no seu Natal em que tudo correu
normalmente; sem faltarem os presentes de Patrícia
Xavier, coisas de preço como era costume ela dar,
caxemiras e estojos para as unhas de pele de
qualquer bicho raro, ventre de aligator ou assim.
Patrícia foi sepultada na capela dos Nabasco, não
porque não houvesse lugar no jazigo de família
dela, mas porque se levantou uma resistência muito
dura devido às causas da morte. Um aborto não era
tão extraordinário e sobretudo depois dos quarenta
anos as mulheres recorriam aos médicos para se
recomporem dum acidente que, na verdade, tinham
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previsto mas não acautelado. Patrícia disse apenas
a Maria Rosa o que tencionava fazer.
- O Rogério Conceição, em oito segundos, resolve
isto. Oito segundos é o recorde dele.
Maria Rosa olhou para ela com inquietação. Não a
censurava, mas tudo aquilo lhe parecia parte duma
maldição que pesava sobre as mulheres. Alguém lhe
tinha dito que o mundo só tinha salvação quando as
mulheres deixassem de ter filhos e os sexos fossem
um só. Era inconcebível, mas talvez se chegasse lá
um dia.
- Onde ouviste isso? - disse Patrícia. Aquilo
parecia-lhe um atentado à sua dignidade, embora
ela visse, nesse momento, a sua dignidade bastante
comprometida.
- Não sei.
- Comigo não faças mistérios.
- Não faço mistérios, não sou pessoa para isso.
Foi uma coisa que li.
- O que andas tu a ler, menina? Depois da Lady
Chaterley julguei que já tinhas lido tudo. E agora
vens-me com essa do sexo único. Fazes ideia do que
estás a dizer?
- Faço. Já não te metias em sarilhos nem ias parar
a uma clínica onde te remexem nas entranhas como
se estivessem a abrir um cofre em oito segundos!
Já é ser perito de arrombamento! Fazes-me rir e
chorar ao mesmo tempo.
- Tu nunca choras, Maria Rosa.
- Às vezes. Chorei um dia, quando tinha quatro
anos e me cortaram o cabelo à rapaz. Dei gritos
tamanhos que até se ouviram nos vizinhos. E não
era pequena distância; nós vivíamos num chalé
dentro dum jardim grande.
- Não querias parecer um rapaz.
- Não sei. Era uma grande pena. Nunca me senti tão
infeliz depois disso. Às vezes pensava no que me
fez chorar
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tanto e não encontro o motivo. Morreu-me um filho
em pequenino mas não é a mesma coisa. Estás certa
que sermos mulheres é a origem de todo o mal? O
desejo dos homens, o prazer com que convencem o
desejo, são coisas horríveis, se lhes pintarmos
toda a sorte de maldades que são o excitante
necessário. Já agora que falaste de Lady
Chaterley, essa mulher tremenda e sem compaixão.
Sem compaixão, o sexo é uma batalha vulgar, um
crime como não há outro igual.
- Deixas-me arrasada. Agora não sei se hei-de
fazer o aborto ou não. Dizes bem: aquele burro do
Lawrence não percebeu nada das mulheres. Ou só
percebeu o que era para perceber por ele próprio.
Não houve o primeiro Adão mas a primeira Eva. Dá-
me mais uma pinga de chá. Onde compras o chá? A
mamã comprava-o numa loja de modas, era chique.
Nunca percebi a diferença do que é chique e do que
não é chique. Disseme o Mariano, que é professor
na Universidade: "Porque é que o amarelo não há-de
dizer com o rosa?" Depois as cores psicadélicas
ficaram na moda. É uma questão de votos e não de
gostos? O que é que faz o voto?
- Tem pena de mim. Choveu todo o dia e a chauffage
avariou. O voto é uma inveja compulsiva, aí tens.
Passados dias Patrícia Xavier morreu e aquilo
entendeu-se como um desastre. Os médicos calaram-
se no diagnóstico, o que levantou mais suspeitas,
tanto mais que ela tinha recorrido a uma parteira
e não teve a assistência do tal experiente
arrombador de cofres. Maria Rosa afastou do
espírito a ideia de que a amiga se achara
invulnerável e que não era possível acontecer-lhe
nada. Não viu o perigo, quando o perigo nos rodeia
por toda a parte e não nos dá tréguas. Há
quinhentos milhões de anos éramos mais espertos,
quer dizer, o crocodilo dos pântanos com o seu
olho que não se sabe se está a dormir ou acordado.
Talvez não dormisse nunca e os seus quatro
comandos
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cerebrais estivessem sempre alerta. Sendo assim,
não nos temos aperfeiçoado, mas sim a natureza
cometeu erros uns atrás dos outros. Que vida!
Patrícia Xavier ia impecavelmente penteada quando
foi para o caixão; e parecia bem, que era o que
ela mais desejava.
O velho "pardieiro" dos Nabasco, como lhe chamava
o doutor Horácio Assis, merecia agora o nome. O
estradão que lhe dava acesso a cavalo tinha
sofrido derrocadas tais que era um perigo
frequentá-lo. Diferente das outras propriedades
cuja casa se encontrava a meia-encosta, aquela
fazia-se notar porque se erguia no cimo duma
colina. A cor amarela, na tradição vienense, tinha
desbotado a ponto de parecer parda. Rodeava-a uma
série de planos que iam até um pátio que
justificava em tempos a entrada principal e que
guardava a beleza primitiva, húmida, musgosa e
tranquila. E dentro, como acomodações, havia três
salas consecutivas com retratos de família e
canapés de jacarandá. O mais estranho era uma
cópia nas dimensões naturais da Ronda da Noite de
Rembrandt. Ocupava toda uma parede da sala de
jantar, e os pés do capitão Banning Cocq e do seu
lugar-tenente tocavam o chão. Para prevenir
qualquer avaria, um dos famosos canapés protegia a
parte baixa do quadro. O que durante os anos de
infância de Martinho, lhe causava terror e
curiosidade.
Os Nabasco viveram sempre de heranças, de pecúlios
de tios e tias, da chegada de arcas com enxovais
intactos, de loiças, livros e mais retratos de
damas rígidas e feíssimas. Nos Nabasco a beleza
chegou tarde com os casamentos que já não eram com
primas, mas bonitas passeantes de Carreiros, na
Foz do Douro. Dantes, o casamento planeava-se
desde o berço; depois passou a ser mais inspirado
e insubmisso.
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Justamente Maria Rosa pertencia a essa nova era
dum após-guerra em que a Europa, ao recompor-se
dos seus desastres, produzira um prodígio de
cultura, a cultura de imitação. Era bonita, fazia
ginástica e punha de parte o "bordado a cheio" e
os romances de Delly. Além disso, convertera-se a
uma religião a que chamava personalidade.
Com isso da "personalidade", Patrícia Xavier, com
quarenta anos feitos, faleceu de processo abortivo
como uma personagem de Stefan Zweig. Era mais nova
que Maria Rosa seis anos, que tinha já um neto que
falava e andava, Martinho Dias Nabasco.
O Outono tinha feito a sua aparição e, entre
nuvens ligeiras, um sol derretia o gel dos
cabelos. Quase todos, rapazes sobretudo, usavam um
gel que lhes espetava o cabelo como pregos e isso
dava-lhes um ar marginal como eles queriam.
Martinho continuava a segurar a avó pela cintura,
o que o obrigava a torcer-se um pouco. Todas as
vezes que ela falava inclinava-se para a ouvir,
embora não fosse preciso. Era um tique que impunha
submissão fazendo-a levantar o rosto para lhe
chegar ao ouvido.
- Como estás surdo, Marto! Na nossa família fica-
se surdo muito cedo.
- Não estou nada surdo. E se estivesse não é
vergonha nenhuma.
- Não era para Beethoven, mas nem todos são como
ele. Em ti não passava dum defeito físico, quando
nele era outra coisa.
- Outra coisa, o quê?
- Um aviso, não sei. Conheces aquilo de Deus que o
marcou alguma coisa lhe encontrou?!
- Não conheço. Por favor não meta os pés na água.
Olhe esse degrau.
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- Ele era mau, como todos os músicos. Esta cancela
tem que ser arranjada. Alguém tem que arranjar
isto.
- É um trabalho difícil - disse Elisa, a sacudir
de cima dela os restos das flores.
- Difícil, como? Temos que o pagar até que pareça
fácil. É o único meio. Onde está ele? Martinho! -
A voz tomava um acento desesperado quando o
chamava. Como se ele tivesse morrido e ela não o
soubesse ainda; quando já todos estivessem
informados e preparassem o luto. Não como dantes,
as tarjas de lã preta no braço ou na lapela, o
fumo no chapéu. Sabia-se como se dirigir a uma
pessoa assim; com alguma cerimónia, descia-se do
passeio para ela passar, levantava-se alto o
guarda-chuva para lhe dar lugar à direita. Um
rápido esboço de dó no pregar dos lábios e ele ou
ela, lá iam, com a troca dum cumprimento mais
quente. Dizia-se, ao falar do morto: "que Deus
tenha, que Deus guarde..." Ou então, como na gente
dos Cunhas que eram, com toda a certeza, cristãos-
novos: "Deus o tenha na sua santa guarda".
Conheciam-se os conversos pela sua rigorosa
presença nos sacramentos. Ajudavam à missa,
tocavam na igreja. Um olhar em que nadava um certo
abandono da verdade, fazia-os diferentes. Os
Cunhas eram diferentes, diga-se o que se disser.
Olhem para Elisa (o pai dela chamava-se Eliseu e o
último filho, o sétimo, era Adão para não "correr
o fado" e não ter natureza de lobisomem). Tem
graça que até Maria Rosa Nabasco acreditava nisso.
Se alguém esperasse o amaldiçoado, numa
encruzilhada, à meia-noite, e lhe fizesse sangue,
o mau encanto acabava. Para tudo há uma solução,
era o que aquilo queria dizer. Viu Martinho que
andava longe a ler as lápides e investigar o nome
dos antigos ali sepultados. Vizinhos e parentes,
reduzidos a um feixe de ossos no melhor dos casos;
porque de tempos a tempos, por razões de limpeza
ou de obras, tudo era varrido
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para a vala comum, pesquisando-se o ouro das
próteses dentárias, uma renda para o coveiro, que
lhe aproveitasse. Porque coveiro e carrasco são
afinidades negras.
Martinho não se lembrava de ninguém. Velhos
lavradores e os filhos deles, com os anos de
opulência marcados nas mãos brancas de unhas com
estrias, ainda ele vira na casa do avô Nabasco.
Mas do bisavô Nabasco, nem sombras. O primeiro
homem que estudara na família fora um dos rapazes
que fora para Coimbra cursar Direito; e depois
disso não fez mais nada na vida, que os Nabasco
não eram para trabalhar, para isso havia criados,
caseiros, hortelãos, rapazes que até aos dez anos
pediam esmola e depois se empregavam nos armazéns
e nas terras, a colher azeitona. Alguns faziam um
ofício de faz-tudo. Acompanhando caçadores,
limpando o calçado, a fazer recados e a mandriar o
mais que podiam. Entre eles e os filhos da casa
fazia-se uma amizade que durava uma vida. Eram
alcoviteiros fiéis, carregavam segredos com
austeridade do coração mas não lealdade absoluta.
Mentiam muito e eram mal agradecidos. Ser pobre
era um ofício que às vezes compensava.
Martinho não teve desses contratos de convivência
em que cabia tudo, a cólera, a vingança e a
dedicação pura e clara. Era o mais urbano da casa,
fez Filosofia e Letras, passava um Verão inteiro a
ler o século dezassete francês e inglês. Foi uma
espécie de órfão por vocação, porque quando o pai
morreu ele sentiu um pouco de alívio; e quando
mãe, Paula, casou outra vez, com um oficial da
Marinha, ele agradeceu ficar com a avó para
sempre. Como se ela fosse imortal, destinada a uma
vida faraónica e substancial, rodeada de objectos
de toilette e vestidos caros, como ela gostava
tanto na vida como na morte.
Muitas vezes, Martinho surpreendia os olhos dela
banhados de lágrimas. Não chegavam a correr,
pareciam fazer parte
22
daquele azul-pardo das pupilas. Mas eram lágrimas
que lhe eram destinadas, a ele, Martinho Nabasco.
Envergonhava-se de a preocupar; e assim, voltou
para trás, deixando a leitura da inscrições
lapidares e saltando uma ou outra campa escurecida
pela chuva.
- Vamos embora - disse Maria Rosa. Era ainda uma
mulher alta nos seus sapatos rasos que, no Verão,
eram sempre ténis brancos. Tinha a elegância das
proporções e aliava o desdém à mais fina escolha
dos pormenores. Surpreendia sempre, com os seus
ombros largos e as écharpes compridas como quedas
de água. Martinho quase a abraçou para a conduzir
ao carro; e Elisa, que guiava e não ele, fez-se
esperar um pouco porque ela tinha orgulho na arte
de se fazer indispensável. Fingia sempre
contratempos vários. Ora dizia faltar a gasolina,
ora pressagiava tempestade ou censurava o
trânsito, o tempo, as estradas, carregando de
impropérios os que mandam. Havia uma certa
felicidade nessa soltura de humor descontente. E
Maria Rosa deixava-a falar.
- Ela gosta do delito dos outros. Enfraquece os
dela.
- Que paciência a tua, avó! O que eu acho é que
ela é malcriada, rabujenta e intratável. Merecia
ser Messalina ou Agripina ou outra como elas.
- Deixa-a lá, que tem doença que chegue.
- Doença? Que doença?
- Coisas da bílis negra, como dizia o Hipócrates.
Pode dar em cancro, entendes?
- Bá! Nunca se sabe quando estás a falar a sério
ou a brincar.
No outro dia ainda foram ao cemitério da Lapa onde
estava a gente do Porto, ou parte dela. Também
estava lá uma criada, a Dores, que foi casada e se
separou por não se adaptar a espaços pequenos. Em
geral, os homens não gostavam das
23
criadas de ricos para casar. Eram dissipadoras e
gastavam demais; propensas à boa cozinha e aos
costumes fidalgos, davam esmolas acima das posses
que tinham e eram orgulhosas para com os vizinhos.
- Não é por nada mas não me dou com maltrapilhos -
diziam alto, para que as ouvissem. O marido batia-
lhes.
Se para alguma coisa Maria Rosa tinha boa memória
era para as empregadas que tinham servido os
Nabasco. De solteira, de casada e já no estado em
que estava, o de viuvez. "O estado natural da
mulher", como dizia Mat, ou Mateus, um escritor
dotado e com algumas luzes de História. Era
familiar dos Nabasco, um primo talvez, e dava
pistas para as conversas de domingo. Ao domingo
(aquilo era muito antigo) os almoços prolongavam-
se até às cinco da tarde; se Maria Rosa se
esquecia que devia levantar-se primeiro, ninguém
se mexia, e os jarrões da China, aos quatro cantos
da sala, pareciam convivas empanturrados de
dobrada com feijão branco ou carne assada para
quem queria outra coisa. Eram almoços abundantes,
com muito açúcar e bebidas fortes. Só mais tarde é
que se serviu coca-cola, que tinha os seus adeptos
porque "limpava os canos". As criadas já não
acabavam o resto dos copos nem eram gulosas como
dantes. Faziam dietas e sabiam muito de cremes
faciais e de fibras, que comiam ao pequeno-almoço,
em vez das tigelas de café com sopas de pão
fresco. Às vezes, o duro era para os patrões,
salpicado de água e metido no micro-ondas.
— Sabem porque as mulheres eram gulosas dantes? -
dizia Mat, segurando com força os braços da
cadeira como se fosse lançar-se à água. - Porque
eram tratadas como os cães da tribo e só lhes
tocavam os ossos. Habituaram-se a roubar comida
para elas e para os filhos esfomeados. Mesmo
estando saciadas roubavam sempre, como Yolanda,
que tinha debaixo
24
da cama uma mala com provisões, como os antigos
seminaristas.
- Não acredito - disse Maria Rosa, franzindo os
olhos para evitar o fumo do cigarro. Fumava
durante o dia todo, esmagando o resto mal ardido
no cinzeiro. - Não gosto que se fale dos criados
como se fossem cegos e surdos. Eles têm o ouvido
muito apurado e também sabem ler nos olhos, como
eu os ensino. Um piscar é para não servir mais
vinho; dois pestanejos é para trazer água com gás
para limpar uma nódoa. Não se imagina como os
homens sujam as gravatas com salpicos da salada.
- Sempre os homens! - E Mat, com uma cabeça
poderosa e olhos de pastor, pequeninos e metidos
nas órbitas, decerto de vigiar o rebanho, dava-se
muito ares de proletário rico; tinha muitos filhos
por fora e dinheiro em quantidade suficiente para
ser avaro. Havia um parentesco qualquer com os
Nabasco que ele, de vez em quando, fazia entrar
nos seus romances. Esteve muito tempo apaixonado
por Paula e ela chamava-lhe o matricida porque
estava convencido que só Maria Rosa se opunha aos
seus amores.
- Eu não me oponho a nada - disse ela -, é o
estilo Lao Tzé, ou coisa que o valha. Vencer
cedendo, cansar o inimigo sem lhe dar luta. Isto
dito assim à mesa de jantar é um bocado indigesto.
- O Nabasco, que depois morreu dum enfarte, bateu
no copo com a colher do café e todos pensaram que
ele pedia silêncio e que ia falar. Era o dia de
finados ao almoço e comiam rojões com sangue.
Coisa que Martinho achava absolutamente primitivo
e alvar.
- Não me posso lembrar que estou a comer um animal
doméstico, quase uma pessoa de família. - Alguém
fora para o piano e improvisara um concerto de
jazz não sem algum talento. Toda a gente tocava
alguma coisa um pouco acima do
25
amadorismo. Os Nabasco não suportavam amadores,
fosse na arte, fosse nos negócios ou na política.
Mas o país estava caído na rede larga dos amadores
que navegavam pela internet moldando o perfil com
os resíduos do espírito passado.
Durante três dias, todos os anos, honravam os
mortos da família com visitas às campas que
estavam meio ao abandono durante o resto do tempo.
Eram três jazigos de dimensões não colossais mas
mesmo assim do tipo mausoléu. O do Porto era o
maior, uma capela onde se podia celebrar missa e
que tinha dentro espaço para seis ou sete pessoas
e genuflexórios forrados de veludo carmesim. Os
ratos deram em roer uma parte, decerto tentados
pelos pingos de cera. Os candelabros de prata,
como já disse, tinham sido roubados, e o
lampadário, também de prata, caíra do tecto,
provavelmente devido a infiltrações da chuva.
Maria Rosa sentou-se, verificando antes se o
assento oferecia segurança.
- Já não sei muito bem quem está aqui. Mexeram com
isto, faz alguns anos, porque apareceu um caixão
deslocado e disseram que tinham metido nele uma
pessoa viva. Não acredito. Foram só os gases que
explodiram.
- O barulho devia ter acordado os mortos - disse
Martinho. E Elisa olhou para ele, marcando o
silêncio como uma reprovação. O culto dos defuntos
era para ela sagrado e acreditava na ressurreição
da carne no dia do Juízo Final. Entornou
deliberadamente a água da limpeza a ponto de a
fazer chegar aos pés de Martinho.
- Saia lá para fora que me está a estorvar. -
Parecia um anjo da vingança com o seu fato preto
até às orelhas, donde tirara os brincos de ouro.
Era o único dia do ano em que se separava dos
brincos. Martinho obedeceu-lhe, um pouco
envergonhado. Era dado a um espírito ligeiro e não
deixava escapar a ocasião para um dito vivo. A avó
dizia que por aí se
26
conhecia o mau carácter que ele tinha. Mau
carácter no sentido de fazer mal a alguém,
atraiçoar um amigo ou viciar um testamento. Coisas
dessas a que a família era sujeita como a uma
doença de pele. Se a expressão "em bom pano cai a
nódoa" tinha aplicação, era nos Nabasco, burgueses
de quatro gerações que foram acumulando bens e
também foram merecendo a confiança da cidade para
quem o dinheiro não suja as mãos nem corrompe a
memória.
No entanto, Maria Rosa punha de parte o velho
Nabasco fazedor de fortunas, ríspido como tudo,
intransigente, perfeccionista. Depois dele fora o
dilúvio dos decadentes, amigos mas não sedentos de
mulheres e com o gosto pelas viagens. As letras
entraram na família pela porta grande, e a menina
Margarida Isabel, apoquentara as pessoas lá de
casa com o seu génio. Era cunhada de Maria Rosa e
parecia, no meio dos Nabasco, uma flor de paixão,
com os seus versos e a aristocracia que lhe corria
no sangue. Descendia ela duma açafata da rainha D.
Mariana, mulher do nosso rei-sol D. João V, e não
deixava que isso esquecesse a ninguém. Muito menos
a ela, Margarida Isabel, ou Margô, para abreviar,
que se lembrava de tudo que lhe acontecera desde
que viera para o Porto para casar. As irmãs, Ana e
Estefânia, ficaram para sempre em Lisboa, donde
também casaram sem mudar de sítio, posto que
viúvas voltaram à casa paterna, na Graça. Margô
ajeitou-se mal com a família Nabasco que achava
petulante, ainda que sem dote. Os rapazes beijavam
a mão às senhoras e até às solteiras, estivessem
enluvadas ou não. Muito do trato de corte tinha-se
perdido, mas Margô, como emigrante que era,
procurava lembrar as antigas tradições.
No que ela era perfeita era na poesia. Tinha o
sentido nobre do verso, sem cair em melancolia, e,
para ela, no seu íntimo, dava pouca importância à
fidalguia cheia de bons 27
27
sentimentos para com os criados e as amas de
leite. Ela tinha um rabo de judeu ao fim das
costas, como se dizia; e por isso era capaz de
malícia fina e fantástica. Sofreu bastante com o
desdém das cunhadas, menos de Maria Rosa que
sentia pena dela pelo marido que tinha, tão sem
imaginação que não distinguia um boi duma vaca nem
o chá preto do chá verde, e coisas assim. Mas
também é verdade que não tinham muito que dizer
uma à outra e que havia entre elas silêncios de
"cortar à faca".
Quando Paula Nabasco se casou pela segunda vez com
um capitão da marinha, Maria Rosa tomou Martinho à
sua conta e deixou de se interessar pelo resto dos
parentes. Margô acabou por voltar para Lisboa com
os filhos, vivendo de rendimentos escassos como se
fossem abundantes. Depois morreu, não sei como.
Havia nessas famílias um espírito de clã que as
fazia bonacheironas, com prazenteiro gosto pelos
almoços de domingo ou os bailes em que se comiam
doces de coco predilectos dos homens. Mas se algum
estranho era introduzido na sala, em geral por
leviandade dum dos rapazes da casa, logo se
amotinavam os corações e inventavam partidas para
o afugentar. Em Lisboa era o mesmo. A democracia
cobrira de beijos a massa cinzenta dos novos
poderes; todavia, por detrás da graça cristã e a
aparência de fraternidade, permanecia uma espécie
de ira que varria brutalmente quem julgava aceder
ao lugar do "grupo". Presumia-se que, embora
parecessem carroceiros, se lhes via a raça porque
tinham uma pinta de sangue ao canto dos olhos.
Coisa curiosa! As antigas bonecas de Nuremberg
tinham essa pinta vermelha ao canto dos olhos.
Martinho ria-se mas, no fundo, respeitava essas
impertinências com que se fazia um reino e se
sustentava o ego duma nação.
28
Por vontade dele não perdia o tempo a visitar os
mortos, que estavam bem onde estavam e dispensavam
apresentações. Era incrível a quantidade de viúvas
que havia na família. Além das solteiras,
verdadeiros enxames delas, umas elegantes outras
quase no limite do ridículo porque não abandonaram
as modas do seu tempo e em que o paradigma do bom-
tom era a rainha de Inglaterra com saia de pregas
e um lenço atado debaixo do queixo como quando
visitava as vítimas dos bombardeamentos. Isso é
que era ter raça, qualquer coisa que não depende
de saber estar à mesa ou escolher um chapéu. Ou
melhor ainda: saber quando meter as mãos nos
bolsos não parece mal.
Martinho divertia-se com os temas que Maria Rosa
lhe propunha como conversa.
- Os pequenos assuntos fazem o pensamento vivo.
Não é a dizer a fórmula de Einstein que nos
tornamos inteligentes - dizia.
- Então como é?
- É a dar resposta ao que parece não a ter.
- Como por exemplo?
- Por exemplo: porque é que se rolam os polegares
quando se está sentado sem fazer nada?
- É um costume que eu não tenho.
- Porquê? O que mudou para fazer desaparecer esse
costume?
- Os lojistas? Aqueles que esperavam o freguês com
uma resignação cristã. Já não há gente dessa.
Ele tinha visto os gregos rolarem as contas nos
dedos de maneira laica e não religiosa e pensou
que o rolar dos polegares teria o mesmo
significado: uma distracção que evitava a
impaciência. Maria Rosa maravilhou-se daquela
explicação, achando admirável um rapaz como
aquele, que improvisava as
29
respostas mais saborosas sem lhes dar o acento da
erudição. Mantinha a inocência dos primeiros anos
e o gosto de interrogar. Mas, dentro de pouco
tempo, ele teria de casar e entrar no que se
chamava "o rol da gente séria". Que mulher lhe
seria destinada? Já não se davam jantares para
convidar os pais de raparigas casadoiras e avaliar
dos seus predicados: fortuna, saúde, incluindo as
taras como inclinação ao suicídio. E também os
bailes concorridos pelas jovens a serem colocadas
como esposas virtuosas e condescendentes estavam
mais ou menos desertos. Quem ia uma vez não ia
mais. As bonitas herdeiras já não esperavam a
declaração na sala que dava para o jardim
mostrando-se radiantes ainda que apreensivas. E as
coisas do sexo tornavam-se imposturas da tentação.
A metafísica do corpo não fora ainda escrita e as
raparigas contentavam-se com a preparação do
enxoval que, para algumas, era ocupação da vida
inteira. Herdavam-se baús com camisas e
penteadores, cheios de laços tão frescos como se
saíssem de véspera da fábrica ou do atelier de
costura. Um noivado desfeito, a morte dum dos
namorados, vinha suspender o casamento, sem que
ficasse o desejo de reatar o estado de promessa.
As sempre-noivas abundavam nesses lares de
mulheres úteis, sensatas, livres de dores de parto
e das infidelidades matrimoniais. Viviam uma
felicidade paralela, criando sobrinhos ou servindo
na casa como dedicadas tias de alguém que partia
um dia para iniciar uma era de lágrimas e de risos
falsos, porque o riso da juventude tinha-se
quebrado e tudo decorria naquela forma de piedade
que é o amor da carne e do perdão. Maria Rosa foi
a única das irmãs que casou. Sem falar duma outra
que se fez freira e teve uma história com certo
escândalo com o médico do convento. Nem por isso
abandonou os votos e, depois da sua aventura,
ficou mais fortalecida para a ideia platónica da
feminilidade.
30
Enquanto passeava pelas áleas do cemitério, no
segundo
dia de Finados, levando atrás de si Martinho
embevecido de a
ver tão nova e elegante, Maria Rosa ia anotando os
mortos i
conhecidos e dos quais sabia a história apócrifa.
Não era só Cristo que tinha os seus apócrifos; as
famílias notáveis da cidade (e todas as outras
também) tinham a gesta escolhida para constar nas
conversas públicas ou particulares. Só um olhar
penetrante como o das mulheres plebeias, criadas
ou mestras de piano, sabia entrar nessas meadas de
factos, inconfessáveis, ou simplesmente inócuas,
que faziam a lenda perdida das famílias. Incestos,
testamentos viciados, bastardias, ruínas,
perdições do amor e do jogo, tudo estava ali
sepultado debaixo do musgo das lápides, atrás dos
ferros dos portões das capelas mortuárias. Ela
própria, Maria Rosa, esteve durante um ano
sequestrada pelo marido, quando era nova, sob a
suspeita de traição. A prisão domiciliária era o
tratamento dado às esposas infiéis. Tinha dois
benefícios: reforçava os laços eróticos e evitava
o descrédito da separação. Maria Rosa não se
lembrava de ter sofrido muito no seu tempo de
reclusão. De resto, não se tratava dum calabouço
mas duma propriedade que o Nabasco tinha, toda
murada e com glicínias a cobrir os muros. Ela fez
depressa a sua casa de aventura, com cretones à
inglesa e livros de viagens. O Nabasco não
suspeitou nunca de que a mulher o
enganava com ele próprio. Achou-a mais encantadora
com os
cabelos cortados sobre as orelhas, à Colette, e as
pernas bronzeadas ao sol de Março, o mais doce e
forte para queimar a pele. "O sol de Março queima
a dama no paço", dizia-se assim. Ela fez boas
amigas entre caseiras e filhas delas, doidas a
contar coisas secretas, sem circunspecção nenhuma
e guardando o carácter jovial de quem não tem
segredos.
- Nada pior para a personalidade do que a
circunspecção. Foi Oscar Wilde quem o disse.
31
- E disse bem. - A avó falou, sem se voltar para
ele, como se estivesse à espera de encontrar
alguém conhecido. Muitos tinham morrido, esse ano
tinha sido fatal para os fumadores. Ela lembrou-se
do Manuel Fontes, um dos seus amores da juventude.
Era tão rica de adoradores que quase não dava por
eles. Martinho pensou: "Que bonita deve ter sido
mas não tem nenhum traço bonito. É mais uma ilusão
de óptica." Enquanto a mãe não se casou outra vez
ele sentia o mesmo acanhamento em andar com ela na
rua. Fazia com que não caminhassem a par e, se
encontrava um colega do liceu, fingia que Paula
era uma estranha e não respondia se ela se lhe
dirigia. Tinha uma espécie de vergonha em
acompanhar uma mulher nova e atraente que os
outros rapazes podiam desejar. Um dia em que um
colega foi a casa dos Nabasco (o que lhe causou um
choque porque não os imaginava tão abastados)
Paula apareceu à entrada da sala, vinda da rua.
Tinha umas luvas altas enroladas nos pulsos e
aquilo fazia a impressão de ela pertencer ao mundo
das actrizes. Ainda ninguém pintava os olhos, mas
ela tinha sombras azuis e os dentes brilhavam
entre os lábios quase dourados. Martinho percebeu
a perturbação do amigo. Ninguém tinha uma mãe como
ele, e a ideia de que pudesse haver um laço
incestuoso entre ele e Paula deixava-o irritado.
Quando ela saiu de casa, com o seu capitão da
marinha, sentiu-se mais descansado. A avó já não
despertava pensamentos pecaminosos em ninguém;
mas, mesmo assim, era melhor não facilitar.
Continuou a guardar alguma distância quando eram
vistos nos concertos ou em qualquer outro lugar
concorrido. "Não tem nenhum traço bonito" -
pensava, como para se defender dalguma surpresa
desagradável. Considerando que Maria Rosa fora
muito mais interessante do que Paula, estava a
afastar aquela amarga sensação de a partilhar a
ela, Paula, com todos os amigos que diziam dela
32
coisas indecentes ou simplesmente abonatórias.
Convenceu-se de que iam lá a casa só para a ver, o
que era exagerado. Mas era talvez por isso que
Maria Rosa só tomava ao seu serviço raparigas
notoriamente belas, como Yolanda ou Marina que
pareciam panteras enjauladas, movendo-se de um
lado para o outro com um passo cauteloso como se
pisassem a selva. Nunca se pôs o caso de Martinho
namorar qualquer dessas musas de avental, preto na
maioria das ocasiões, porque seria impensável
parecerem criadas de farda, ainda que talhada por
modistas caras. Coisa que Maria Rosa não se
proibia de pôr em prática nos tempos de que
restava apenas uma memória apagada.
O maior defeito de Maria Rosa continuava a ser o
da curiosidade; por isso, a memória não era muito
respeitada e facilmente esquecia coisas que podiam
significar muito para outra pessoa. Ainda falando
de Yolanda, que teve um êxito breve como
alternadeira, já não se verificava o empenho das
raparigas pobres e bonitas que era ter um filho
dum homem com fortuna. Agora não tinham mais um
objectivo calculista, porque no filho punham a
consumação dum futuro desafogado; agora queriam
divertir-se e ir às discotecas com botas altas, se
possível num carro de luxo, desses a que os homens
chamam "o terceiro tomate" e que causava sempre
uma sensação arrasadora.
Yolanda contraiu uma doença má, nada de sexual
como seria natural no caso da Dama das Camélias,
mas qualquer coisa de conversável como uma
laringite infecciosa, maneira de referir um
cancro. Martinho ainda a foi ver com Maria Rosa,
ao hospital e comoveu-se de a ver tão mudada. Se
pudesse casar com todas as mulheres apertadas pela
desgraça como por uma algema de ferro, fazia-o.
Era sujeito a uma sensualidade da miséria e
acreditava que a pobreza, a dor, e
33
todo o género de malvadez no mundo eram acicate do
desejo. Um homem resistia a uma deusa mas não a
uma qualquer desamparada, ignorante e sem mais
espírito do que uma gata vadia. Maria Rosa achava
que ele ou lera demais ou era maricas.
- Em qualquer dos casos não me surpreendes. O
melhor, nas mulheres, são os defeitos. Com as
virtudes chega-se ao altar mas não a um trono,
quer dizer a uma boa cama.
Quando se punha assim, a dizer "verdades como
punhos", a avó estava francamente irritada. Não
que não houvesse uma dose de lógica no que dizia.
Consultando a História e os dicionários de grandes
personagens, o que se encontrava lá eram mulheres
suspeitas. Suspeitíssimas. Envenenadoras,
meretrizes, mentirosas e, na maioria dos casos,
muito pouco interessadas nos homens. A luxúria
delas era fingida. Por isso o corpo criava tantos
impedimentos, que não eram senão evasivas. Que ia
acontecer àquele rapaz que ela amava tanto? Ia ser
enganado, arrancavam-lhe a pele e as unhas, tudo o
que era protecção, em troca dum prazer que não
passava de submissão. Talvez ele preferisse a
guerra como iniciação. As guerras eram feitas com
a iniciação dos mancebos, tudo era permitido ao
mesmo tempo: a violação, o roubo, a morte, o jogo,
o chegar ao fim do horror e ainda insaciado. Quem
diz que tem recordações da guerra que o impedem de
falar é um hipócrita. O que o impede de falar é o
prazer, aquele fraternal aceno antes de premir o
gatilho e que quer dizer "é a tua vez, eu sigo-
te". Há um momento em que não há deuses, em que
não são necessários.
Ela preocupava-se com Martinho. Mas quem a visse,
caminhando entre os mortos com o vestido curto que
lhe descobria as pernas magras como as velhas têm,
ligeiramente arqueadas como se fossem cair de
joelhos, diria que dava um
34 AGUSTINA BESSA-LUÍS
passeio na tarde de sol, gozando o parque florido,
honrosamente florido de maciços de crisântemos
amarelos e magenta. Deixou cair uma luva e
Martinho apanhou-a. Era uma luva de pelica
cinzenta em que os dedos estavam moldados. Ele
sabia onde as tinha comprado, sabia tudo a
respeito dela; escondia a ele próprio que sabia
tantas coisas para não ter que explicar isso.
Elisa vinha atrás com o jarro onde fora buscar
água para limpar o jazigo e disse qualquer coisa
sobre o mau estado de tudo. A seu ver, deviam-se
juntar os mortos num só lugar em vez de andar
naquela correria de Finados.
- Estás doida? Sabes quanto custa uma trasladação?
- disse Maria Rosa, sem deixar o seu passo de
passeio.
"Quem é pobre não tem vícios" - foi o que Elisa
pensou. Sempre conhecera nos Nabasco aquelas
crises que iam desde os empréstimos ruinosos até à
penúria. Depois levantavam-se com uma herança ou
um novo crédito cuja origem ficava sempre obscura.
Negócios de volfrâmio, vendas de património que,
até aí, não se sabia que existia, nem onde. - Não
se mudam os mortos de casa, é uma questão de
decência. Assim como não se despejam os inquilinos
que ficaram pobres.
- Eu só quis dizer que é um desperdício. Em
flores, em deslocações, em tudo.
Mas ela calou-se, filosofando para o seu íntimo
que com aquela gente era inútil ter razão. Nem
sabiam o que isso era, não obedeciam a leis senão
quando era do proveito deles. Não lhes perdoava
terem-lhe feito pagar a dentadura postiça que fora
um golpe muito duro nas suas economias. Era a
avareza dos ricos, que alimentava um rancor activo
durante toda uma vida. Sem isso, provavelmente não
havia redenção e fidelidade que durasse. Maria
Rosa lembrava-se de Patrícia Xavier que se
queixava de não prender em casa nenhuma empregada.
A boa índole que tinha fazia-as mais soberbas e
indisciplinadas do
35
que se fosse injusta e até de humor tirânico. A
violência fixa o erotismo, é o que ela pensava.
Tinha com Maria Rosa conversas "abomináveis",
interrompidas por repentino medo de irem muito
além nas suas cogitações. O que sabem as mulheres
dá para arrasar montanhas.
Patrícia morreu de maneira desastrosa mas não
digamos que imerecida. Tinha-se empenhado em não
ter filhos antes dos quarenta e fez o aborto como
um facto mais no seu quotidiano, esperando à noite
estar em estado de jantar fora. Era uma mulher
alegre e sem problemas profundos. Dava pena
contemplá-la morta, bonita e maquilhada como se
esperasse pelo vestido verde esmeralda de que
tanto gostava. O verde era a sua prova de boa pele
e espírito festivo. Não ia bem senão com as mais
belas, claras e de cabelos de ébano, não
completamente pretos. Ninguém como Patrícia para
gozar o mundo e contentar-se com o que tinha.
Sabia vestir-se com um trapo, agradar sem
compromissos, beber sem cair de bêbada. Parava
quando alguma coisa lhe dizia que podia perder as
chaves do carro; gostava de carros bonitos e de
homens feios; que eram os melhores, como os figos
maduros. Era o que ela dizia.
Lá estava, debaixo duma lápide que se partira e só
tinha em cima algumas flores fulgurantes mas que
eram artificiais. O marido tinha casado outra vez
e ela estava esquecida como um gato morto.
- Põe aí as violetas africanas que eu trouxe. -
Maria Rosa rezou um Padre-Nosso. Mexia os lábios
mas como não se lembrava exactamente da oração,
fingia murmurar as palavras que, de resto, já não
eram iguais. Martinho reparou que ela tinha um
terço no pulso, um terço dum só mistério e feito
de ametistas lapidadas delicadamente. Usava sempre
as coisas apropriadas dum gosto muito pessoal
difícil de detectar, como um crime perfeito. De
repente, sentiu-se mal mas esperou
36
um bocado até ver se se recompunha. E se morresse
num cemitério, às onze da manhã, quando devia
estar a lavar as meias no lavatório? No meio
daquela multidão que ia empanturrar-se de carne de
porco com alho e castanhas. Como as castanhas lhe
lembravam os mortos, cozidas, deixando uma nódoa
de sangue velho onde caíssem! Martinho nem notou
que ela se encostou demasiado a uma grade; o olhar
penetrante dele aflorou-lhe o rosto pálido. Mas
não disse nada.
Caíam uns pingos de chuva, grossos, espaçados,
anunciando o aguaceiro de Outono que sacode os
ramos ainda cobertos de folhagem e dobra a ponta
dos ciprestes. Elisa tinha posto o cesto das
flores na cabeça e começara a andar depressa. Sem
ela, a vida de casa seria muito mais difícil, sem
pontualidade, sem torradas quentes ao primeiro
almoço e às quatro da tarde. Todos os Cunhas eram
extraordinários no serviço doméstico; todos sabiam
cozinhar e depenar galinhas ou esfolar coelhos, e
dançar o vira, e tocar viola. Gostavam de usar
bigodes retorcidos, era um princípio, como o de
ser baptizados. Eram bonitos, mas a única irmã que
tinham, essa não era bonita. Quem era então Elisa
se não era irmã deles? Maria Rosa deu conta de que
os seus acessos de confusão, como uma paragem do
sangue imperceptível no cérebro, começavam com um
súbito interrogar-se sobre coisas de interesse
nulo. Como eram as luvas de Patrícia quando foi de
dama-de-honor ao seu casamento? Até ao cotovelo ou
pouco acima do punho? Tentou lembrar-se mas não
conseguiu. E se armasse uma cilada a Elisa? Ela
estava lá e não esquecera nada. Mas não sabia como
perguntar-lhe sem levantar suspeitas. Que tinham a
ver as luvas de Patrícia com o dia de Finados ao
fim da manhã? Elisa ia desconfiar e achar que ela
estava senil. Procurou derivar, pensar noutra
coisa; mas lá estavam as luvas de Patrícia, duma
cor indefinida. De repente lembrou-se nitidamente:
37
"Eram rosa-cravo, altas. Nem podia deixar de ser,
tratando-se de Patrícia Xavier." Ficou tão
satisfeita que aquilo se reflectiu na cara. "Ainda
é bonita, nunca mais deixa de ser bonita", pensou
Martinho. Havia muito tempo que se faziam
verdadeiras adivinhas sobre aquele rosto fresco e
liso como marfim. "Minerva passou-lhe com a mão
pelo rosto", disse um dos noivos que passavam lá
por casa e nem sempre se comprometiam no noivado.
De quem era a culpa de haver tantas solteiras na
família? Passado o primeiro desgosto da quebra do
namoro, elas criavam asas e todas se envolviam com
os seus hábitos carinhosos (eram mesmo
carinhosos?) quanto à vida urbana. Iam aos
concertos ou ao cinema, viajavam, compravam bolsas
novas e falavam de tudo com delicadeza, procurando
não ferir ninguém, nem mesmo os príncipes do
Mónaco. Eram tão isentas quanto, de facto, não
punham paixão nas coisas, só um pouco de incerteza
quanto à sua realidade.
Maria Rosa disse que os extraterrestres vinham de
noite dar-lhe uma injecção e que ficava no lençol,
junto do braço esquerdo, uma gota de sangue. E lá
estava o pingo de sangue, às vezes outro mais
pequeno. Se não fosse um estratagema dela, ou algo
parecido com magia, então não se podia explicar.
Os homens faziam ouvidos moucos.
- Dá para perceber?
- Não, não dá para perceber. E calem-se.
As coisas ficavam por aqui. Martinho, porém, desde
pequeno que não a largava, ficava atrás duma porta
para a surpreender caso acontecesse uma coisa
dessas que povoam o coração da infância e são
irresistíveis de esperar, de desejar. Só Helena,
uma amiga da casa, a primeira que se empregou na
companhia inglesa dos telefones, olhava com doçura
a pequena Maria Rosa que não teria mais de cinco
anos e começava
38
a aprender a ler. Helena Prates com a irmã
Augusta, eram raparigas vistosas e que tomavam o
mundo como se fosse inventado por loucos. Também
elas nunca se casaram talvez porque tinham muito
amor no segredo da sua alma. Fora de casa, com
mais um irmão solteiro e bondoso a ponto de
parecer excêntrico, elas levavam uma vida
angelical; embora, com a idade, se tornassem
ridículas mas sempre respeitosas com as pessoas de
alto nível, como os banqueiros e os professores.
Quem muito critica, ofende a ordem das coisas. E,
no entanto, Maria Rosa achava-as estranhamente
cheias de humor e quase estupefactas de o mundo
girar ao contrário do seu próprio juízo.
Teve um sobressalto; acabava de eliminar o marido
do seu passeio de finados. É verdade que ele tinha
morrido bem há quinze anos e, nesse momento pelo
menos, sem a ajuda de fotografias e momentos
épicos das suas vidas (quer dizer, momentos
infelizes mas que tinham deixado um rasto
indelével, não completamente para desdenhar), não
via nitidamente as feições dele. Nunca
compreendera como ele se fixava numa empregada do
escritório de maneira tão compulsiva. Tivesse ela
maus dentes, ou falasse com a boca cheia, além de
cheirar a amostras de perfumes, ficava caído por
ela. Parecia empenhado em arrebatá-la aos colegas
como se fosse um saque de guerra. Nem se
incomodava a perguntar se estavam a vê-lo assumir
o papel de lobo da alcateia, ia com ela para a
cama e começava uma relação de fidelidades ao
nível dos negócios. E compensava Maria Rosa com
uma generosidade de sexo, ou mesmo um objecto que
sabia ela ter na ideia, um frigorífico novo, por
exemplo. Isto se ela tinha para com "a outra", a
chamada "criatura" dos anos cinquenta mas que
agora era a colaboradora, a tradutora dos meandros
da escrita, a mão esquerda do seu braço direito.
39
Onde estavam os homens cautelosos como se
caminhassem na selva onde se escondiam armadilhas
para ursos? Eles faziam a constância do casamento,
mentiam, mostrando às vezes o jogo para provocar a
sorte mas não com o objectivo de mandar ao ar o
baralho. Eram eles que selavam a instituição com
um beijo na testa, coisa que exasperava Maria Rosa
pelo que tinha de inóquo, de respeitoso, de quase
insultuoso no seu castigo à boa mulher que ela
era.
Mas quem podia dizer que ela era a boa mulher das
Escrituras, a pérola das esposas, vestida de saco
quando chorava os seus mortos? Ela escorregou nas
pedras onde crescera o musgo e Martinho deu uma
corrida para ampará-la.
- Mandei ou não rezar uma missa pelo teu avô?
- Não sei. Venha para casa. Está a precisar duma
sopa quente. Tem os lábios roxos.
- Estou a precisar dum espelho, queres tu dizer.
Detesto que me vejam com má cara.
- Não digo que está com má cara.
- Também a Menina dos Fósforos do Andersen não se
dizia que tinha má cara. Mas fazia pena. Deve ter
casado bem, se é que resistiu ao Inverno de
Copenhaga. A neve é um bom condutor da literatura.
Sentirmo-nos abrigados enquanto o frio glacial
espreita pelas nossas janelas deve dar uma força
poderosa à mão que escreve e ao coração do
escrevente. Não achas?
Mas ela já não esperava pela resposta, nunca
esperava pela resposta. Estava a visionar o marido
no cadeirão de veludo verde e que parecia
indestrutível. Tinha ganho um tom pardo, as
franjas estavam desbotadas mas intactas. Era um
veludo alemão resistente a tudo, à guerra e às
mudanças de casa. "Como pude aturar tudo aquilo?"
- pensou, com calma e demorando o passo para que
Elisa também esperasse.
40
Não queria mostrar-se mais ágil do que ela, velho
mostrengo de pés espalmados como o dos gansos, ou
ánades, ou o que fosse. Gostava de Elisa, fazia
parte da mobília, tinha uma alma como a mobília
tinha. Acontecia-lhe ver o pó num móvel e voltar
atrás para o limpar com o lenço, pedindo desculpa.
As coisas inanimadas enterneciam-na. Não se sabia
até que ponto eram inanimadas. A sua função era
uma forma de articulação viva, como nas pessoas.
O Nabasco avô, quem o podia descrever? Talvez
deixá-lo para outro capítulo. Era um suicida
falhado. Tentou matar-se quatro vezes e nunca
acertou. Primeiro com fósforos (outra alusão à
Menina dos Fósforos) que diluiu num copo de água;
mais tarde, mergulhando na piscina e mantendo-se
no fundo até que alguém o puxou para cima e lhe
fez respiração boca-a-boca. Talvez o jardineiro,
episódio de que o Nabasco não queria recordar-se.
Ter aquela boca mole como um verme contra a sua
boca, causava-lhe repugnância. Também usou uma
arma de fogo mas porque a empunhou com a mão
esquerda, vá-se lá saber porquê, o tiro não o
atingiu mortalmente. A nossa vida está cheia de
actos falhados que não têm outra intenção senão a
de causar aflição aos outros. Torturá-los, porque,
mais ou menos, todos somos torcionários.
Tudo isto aconteceu estando o Nabasco (Filipe
Tadeu Nabasco, imagine-se!) solteiro. Depois de
casar com Maria Rosa retraiu-se um pouco e já não
armava grandes cenas melodramáticas que eram
devidas ao seu temperamento nervoso e a crises de
depressão. Mas distraía-se a fingir que a enganava
e a criar um clima de suspeição. Até que ambos
envelheceram e se foram aceitando como eram,
perdendo muito da sua velhacaria e espírito
histriónico.
Às vezes Maria Rosa tinha que recriar o Nabasco
porque Martinho lhe fazia perguntas a respeito
dele. Não o tinha
41
conhecido senão nos seus tenros anos e não se
lembrava senão dum homem comprido como um poste,
nesse caso um poste derrubado pois estava sempre
estendido no cadeirão e só se levantava para ir
almoçar fora. Tinha uma mesa sempre marcada no
restaurante mais elegante da cidade e onde o
tratavam com uma deferência litúrgica,
desembaraçando-o do sobretudo como duma capa de
asperges. O restaurante, de resto, respirava um ar
de sacristia, ninguém falava alto e os criados
pareciam deslizar em pantufas. Quase não apareciam
mulheres e Maria Rosa nunca acompanhava o marido.
Era como gente dum clube, ou duma seita, melhor
dito; porque não falavam entre eles, como se,
decorados os estatutos, já nada houvesse a dizer.
O Filipe Nabasco destacava-se como um pelourinho
da cidade. O ponto mais alto da carreira dele fora
o de proprietário dum jornal de sucesso que ele
amava como um filho. A fortuna dos Nabasco não
provinha de negócios, nem de propriedades. Era
dessas fortunas sólidas, alimentadas por heranças
ou rendimentos acumulados, resultado de aplicações
financeiras especulativas. Nada que o obrigasse a
levantar-se intempestivamente do seu cadeirão
verde ou a atrasar o seu almoço da uma e um quarto
da tarde. Era um desses homens cujo estatuto se
media pelos sapatos feitos em Londres e pelo lenço
de bolso de cambraia branca, sem monograma. Não
era uma pessoa divertida, ainda que tivesse
espírito. Mas não gostava de se expor à apreciação
dos outros que, no seu entender, não mereciam que
se lhes desse motivos de experiência. A
experiência e o treino são coisas diferentes e no
tempo dos Nabasco sabia-se isso. "A experiência
faz o cavalheiro, o treino faz a profissão." O que
se advertia era que Filipe Nabasco não tinha uma
profissão, era um auto-didacta com referências. A
cidade não o punha à prova em
42
qualquer circunstância da vida; limitava-se a
mantê-lo dentro do círculo de influências que é
com que se fazem as conspirações da História.
Filipe Nabasco não tinha grande importância como
inovador de ideias ou criador de doutrinas; ou
mesmo como mecenas, que é o papel que se reserva
aos que acreditam nos benefícios da cultura. Maria
Rosa contava com ele para lhe dar o braço ao
descer umas escadas em público e moderar assim os
efeitos da sua artrite reumatóide. Não se julgue
que era só isso. Amava-o com uma delicadeza que
faz a felicidade dum casamento destinado a durar.
Nessa hora em que passava pelas campas de muitos
amigos mortos, uma ternura parecida à saudade
tocou-lhe o coração. Filipe Nabasco tinha sido um
marido sólido, se não perfeito e admirava-a um
pouco, o que é o segredo das relações estáveis.
Isso impedia que não fossem nunca demasiado
familiares e que se não respeitassem a ponto de
degradarem o casamento com um excesso de razões
para o traírem. Martinho disse que ela devia
calçar as luvas, tinha as mãos geladas.
- Sempre tive as mãos frias. É bom sinal.
- Porque é bom sinal? - disse ele, a rir-se;
porque os velhos lhe faziam essa alegria súbita de
lhes sobreviver.
- Mãos frias, coração quente, é o que se diz.
- Não sabia.
- Deve haver uma razão qualquer para se dizer
isso. Hei-de perguntar ao doutor Horácio.
O doutor Horácio Assis pertencia ao escol dos
médicos de família que, como os advogados, tinham
uma clientela escolhida cujos segredos estavam a
bom recato nas suas pastas. O segredo era um
princípio de ouro num contrato de tratamento,
fosse de saúde ou de finanças. Horácio Assis sabia
mais da vida da sua clientela do que sabia da sua
própria ciência. De resto, dizia ele, para curar
há duas receitas: dieta e pés
43
quentes. Não acreditava na grande parada do
laboratório e, na verdade, perdia-se um bom bocado
no diagnóstico que era sempre o mesmo. "As pessoas
sofrem quase todas de insignificância e só as
podemos aliviar dizendo-lhes que escrevam um
livro, plantem uma árvore e façam um filho." Isso
traduzido para os tempos mais recentes resumia-se
em comprar um automóvel, fumar erva e ir a um
concerto de rock.
O paciente acabara. Agora o que o substituíra era
um non-sense que já não tinha a sensualidade dum
Felini mas que fazia com que a liberdade se
parecesse com um rito de passagem: sexo e
crueldade mental.
O doutor Horácio, diga-se, era tão velho que dava
o lugar às mulheres no autocarro, sobretudo se
estivessem grávidas. O que fez com que uma bonita
rapariga lhe dissesse que também ia ter uma
criança. Não parecia, era delgada como uma agulha.
- De três dias - explicou, para escândalo do
doutor que tinha os modos dum médico de família
real inglesa. Ele usava luvas de camurça cinzenta,
ninguém mais se atrevia com aquilo.
A própria Maria Rosa, que se tinha por avançada,
embora o seu jogo de canasta das quintas-feiras
não fosse exactamente um expoente de modernidade,
costumava rir do doutor Horácio com um timbre de
maldade; porque rir já é por si só um mau
prenúncio, embora se diga que o espírito de Deus
só desce sobre quem tem uma alma alegre. É
possível. De qualquer maneira o doutor Horácio,
alto e mirrado, fora em tempo muito dado às damas
e elas achavam-no "o máximo", com o seu beija-mão
e os gostos musicais. Quando chegava a ser íntimo
duma mulher era como se a tomasse ao seu serviço
e, na verdade, tratava-a distraidamente. De resto,
era muito distraído, era um dos seus encantos ser
distraído. Maria Rosa
44
perguntava-se se era de facto ele que jazia na sua
grande capela de estilo manuelino ou se se
enganara e fora parar a qualquer outro lugar no
qual se perdesse. Como perdia os filhos quando
eram pequenos e a própria mulher, voltando sozinho
do teatro sem pensar que a levara na sua
companhia.
- Bem me parecia que me faltava alguma coisa -
desculpava-se. Era compassivo até às lágrimas e
fora o primeiro a conhecer o estado de Patrícia
Xavier, que recorreu a ele já desfeita por dentro
como qualquer mulher de má vida às mãos duma
abortadeira vulgar, dessas que só falam dos netos
lindos que têm e que respiram a virtude do
matrimónio. O doutor Horácio ficou esmagado;
tirava e punha os óculos e limpava-os com a aba do
casaco.
- Como foi isto? Como foi, respondam-me! Patrícia
já estava morta, com a dobra do lençol puxada para
o rosto, e ele soluçava ainda, encostado a um
móvel, o nariz a pingar, ridículo, triste,
vagabundo na sua própria aflição. Tinha pena das
mulheres, sempre a sangrar, sempre avariadas de
dentro, carregando a cruz do sexo, maior que a de
Cristo. Não perdoava que fossem tão mal feitas
para o amor, com buracos a mais, sempre a
desfazerem-se de medo, de sofrimento, e, no
entanto, "prontas para outra", batendo fortemente
os tacões com a vitalidade das suas entranhas que
até lhes saíam pelos olhos radiantes. E depois
escreviam versos, as pobres coitadas! Todavia,
quanto poder no sangue do seu ventre!
Maria Rosa viu uma campa tão coberta de flores que
parecia um canteiro de orquídeas verdes. Havia
muitas orquídeas, dantes nem se viam e ficavam no
profundo da selva amazónica, tenras como carne de
mulher nova. Um rosto, um medalhão de esmalte
mostrava uma rapariga com brincos compridos,
sorrindo timidamente. "De que morreu ela?" -
pensou Maria
45
Rosa. - "De que se morre tão nova?" Nem sequer
tinha visto os filmes mais famosos, a cores,
cavalgadas, bailes da corte, amores em fiacres, um
beijo com a cabeça descaída para trás ou o pé
direito levantado em sinal de rendição. Ela sentiu
um frio trespassá-la mas recompôs-se logo,
endireitando-se para corresponder ao cumprimento
de quem a tinha reconhecido. Era um emblema da
cidade, Maria Rosa Nabasco, aspirante à
eternidade, como toda a gente que ali estava morta
ou viva, no dia de Finados.

CAPÍTULO II
A PICADA DUMA PULGA

Uma família não funcionava perfeitamente sem os


seus criados, gente de fora e parentes pobres.
Além dos directamente implicados na sua saúde e
estado das firmas e propriedades: os médicos, os
advogados, os capelães (que eram os párocos da
freguesia ou, com mais elevação, os secretários do
episcopado). Depois vinham os fornecedores de
víveres e vestuário, os responsáveis da
apresentação urbana, os merceeiros de grosso, ou
de garrafeira, os alfaiates, ourives, decoradores
e mestres-de-obras. Também tinham o seu lugar
marcado na agenda da casa os explicadores, as
baby-sitters, pessoal muito reduzido face ao de
antigamente que compreendia a professora de piano
e a jovem au-pair que ensinava línguas e
acompanhava as meninas da casa, tratando também de
assegurar o futuro com algum bom partido que se
apresentasse.
A casa era um mundo que fervilhava de convites e
contas para pagar, de despesas faustosas ou
miúdas, de renovação de cortinas ou de roupa de
casa, de projectos para os filhos, de pensões para
os que estudavam no estrangeiro, de pequenas
paixões e rivalidades domésticas e de grandes
crises tanto financeiras como amorosas.
Um casal bem instalado e digamos que exemplar,
conhecia pelo menos dois ou três dramas
sentimentais, duas quebras
48 AGUSTINA BESSA-LUÍS
na fortuna, algum casamento desastroso e uma morte
mal explicada e que passava por ataque súbito ou
um diagnóstico que pressupunha uma febre tropical,
coisa difícil de inventar, quanto mais de ser
credível. As famílias eram classificadas pelas
suas tendências e bizarrias; havia as com
inclinação à loucura, ao jogo e às ideias
extraordinárias, como os fazedores de maquinaria
que não servia para nada, os criadores de
pássaros, os caçadores, que eram respeitados até à
medula das suas capacidades de tiro e de
agremiação. De quem não se falava abertamente era
dos desaparecidos em lugar incerto, dos
homossexuais e das mal casadas. Um parente dos
Nabasco esteve dez anos no interior do Amazonas a
confraternizar com os índios e com os voluntários
duma tropa de choque, na selva. Voltou, mas não
disse nada da sua experiência, nem ninguém
insistiu em lhe perguntar.
Políticos, havia poucos. Algum secretário de
Estado rejeitado pela capital, não por ordem da
sua inaptidão mas porque não se adaptava, não
gostava de comer mal nem de amigos de ocasião.
- Prefiro ser enganado na minha terra, a ser
traído na corte - dizia, com boa dose de espírito
prático. O Natal em casa e a amante num segundo
lar, era o que ele considerava o paraíso à sua
medida, que é a medida da maioria.
Havia os melómanos que se diferençavam dos
intelectuais porque não punham por escrito a sua
sabedoria. Frequentavam Weimar e conheciam a fundo
as vozes, os intérpretes e a maneira de tratar uma
ária italiana ou um gospel. Chamavam a Boccelli
"pobre homem" e a Pavarotti alguém a medir com
Gigli. Os melómanos eram fechados a qualquer outro
prazer; as mulheres pareciam-se com palhaços do
circo quando confrontadas com a voz dos grandes
cantantes. Falavam alto e compunham o cabelo,
quando não saíam para
49
telefonar, encostadas às portas e alimentando
conversas duma vacuidade exasperante. Era
Schopenhauer quem dizia que se espantava sempre
que as mulheres abandonassem a sala no momento
mais importante dos concertos. Porque faziam elas
aquilo ele não podia descortinar. Mas Maria Rosa
dizia:
- É porque não suportam o génio nem nada que as
ultrapasse.
- Acha que é isso? - Martinho tinha por costume
duvidar de tudo que ela tinha como certo.
Abrandava aquela indignação de a julgar superior a
ele, ou antes, infalível. Porque tudo se
concertava para ela lhe ganhar quaisquer que
fossem as circunstâncias e as apostas lançadas
sobre elas. Apostavam, duma maneira indiferente da
parte de Maria Rosa e da parte de Martinho, duma
maneira que parecia concisa mas que era, na
realidade, um desesperado face-a-face com a morte.
Ela não arriscava nada, ele comprometia-se até à
alma. Decerto era esse laço que os unia desde que
ele era uma migalha de gente e ia pendurar-se nos
lençóis da cama dela, se o avô não estava, para
que ela o puxasse para cima, rindo-se, com aquela
gargalhada franca e radiante que o cativava antes
mesmo de saber falar.
Era um menino gordo e cambaleante, com pés que
pareciam almofadas, o que atrasava o andar dele.
Aos dois anos ainda não corria; levantava-se nas
patas traseiras, como ela dizia, e ficava muito
tempo de pé, surpreendido e sem se atrever a dar
um passo. Já pensavam que ele tinha qualquer
defeito e Patrícia Xavier, que vinha de manhã
partilhar o primeiro almoço com Maria Rosa (viviam
no mesmo prédio e as varandas eram contíguas),
dizia muito cruelmente que ele nunca mais falaria
direito. Era tremendamente ciumenta e Maria Rosa
dava-lhe o desconto.
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- Não vou zangar-me pela picada duma pulga -
dizia. Arrebatava nos braços o pequeno Martinho. -
Diz alguma coisa, vamos, diz uma coisa qualquer. -
Ele olhava-a, com os olhos assombrados, sério,
porque o amor se quer sério e ele amava-a. Até que
um dia (estando Patrícia a sacudir no pé a chinela
de cetim claro, só se vestia pelas duas horas da
tarde e, às vezes, andava até à noite a arrastar a
camisa enxovalhada mas que, com as suas costas
curvas, a fazia parecer fatal e lânguida, no
género das mulheres dos anos 30, mulheres ricas,
bem entendido), até que um dia Martinho, de pé no
seu baby-grow amarelo, disse, peremptoriamente:
- Merda.
Ambas ficaram sideradas, Maria Rosa de
contentamento não cabia na pele, quanto mais no
robe já muito lavado e com manchas de leite
bolsado e outras coisas, compota e verniz das
unhas. Até gema de ovo, que era difícil de sair,
como muito bem se conta num romance da boa era
americana dos romances. Sempre se aprende alguma
coisa naquelas narrativas de arredores, com
vizinhos a beber cerveja logo pela manhã. Enfim,
Patrícia Xavier levou a mal aquela primeira voz do
jovem Martinho e vaticinou logo ali.
1.º - Que ele havia de dar desgostos à família e
que seria mau estudante, no que acertou
completamente. Não era mau, era um caso perdido.
Ficava nas aulas a olhar para tudo atentamente,
nem sequer desejoso de sair para o recreio, que
achava uma área inóspita, com um vago sabor a
presídio.
2.º - Patrícia Xavier disse que ele não era
inteligente.
- Talvez seja só curioso como Einstein. Com a
curiosidade fazem-se mais coisas do que com a
inteligência - disse Maria Rosa.
51
- Depende de que coisas. Matar e roubar deve-se
mais à curiosidade do que à inteligência.
Sem que dessem por ele, Martinho, aos cinco anos,
ou até antes, já sabia ler e não lhe escapavam as
notícias e os obituários dos jornais de que era
assíduo leitor. Gostava dos nomes das pessoas e
divertia-se a acumulá-los na memória como se
fossem borboletas espetadas com um alfinete. Só
dois anos depois é que, estando Maria Rosa doente,
eele lhe leu a correspondência sem se enganar numa
palavra. Ela não se admirou; sempre tinha esperado
que Martinho não a ia decepcionar. Gostava tanto
dele que seria impossível o seu amor não ser
correspondido. Ele correspondia-lhe com
desprendimento, como se esperasse um ajuste de
contas um dia que ela morresse. Então se veria se
a amava ou não; sem o saber, carregava as emoções
como um fardo de que não se sabe o que contém.
- És um jerico, mais nada - disse Margô, a segunda
mulher do seu tio-avô e que o achava mimado
demais. - Assim não se faz nada de ti. Tens que
misturar-te com os outros rapazes e aprender com
eles as coisas da vida. Nem que tenhas que ir para
a cama com um ou outro. Mas assim, tão engravatado
e a comer flocos de aveia, não vais a lado nenhum.
- Toda a gente come flocos de aveia, é moda. Por
aí não é que o gato vai às filhoses - interrompeu
Elisa, que estava a polir os talheres de prata.
Uma vez por ano tirava-os dos estojos de flanela e
dava-lhes lustro, apagando as manchas amarelas.
Era uma perda de tempo. Nunca mais eram usados
desde que os grandes jantares tinham acabado e na
máquina não se podiam lavar.
- Que gato, e que filhoses? - disse Margô. - Nunca
percebi isso. Fazes o favor de falar para que a
gente entenda.
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Elisa não deu resposta, aplicada como estava a
limpar as facas novas de trinchar que nunca tinham
sido usadas. Eram bonitas e espelhantes mas não
cortavam bem. "É o que acontece com as coisas
bonitas" - pensou Elisa. - "Não têm muita
serventia".
Margô II era a segunda mulher de Tadeu Nabasco.
Por coincidência tinha o nome da primeira, a
Margarida Isabel cujo destino me escapa. Morreu
nova, na sagrada companhia da família de origem
aristocrática mas que nunca se honrou do seu
talento poético e que lhe censurava as amizades de
esquerda. Tadeu sentiu-se livre duma esposa
incómoda porque valia mais do que ele e que, para
a possuir, tinha praticamente de a violar. Casou
outra vez com Margô II que descobriu no casino
como choca; era o nome que se dava às mulheres que
atraíam para o jogo os forasteiros e os incautos.
Margô II, a cunhada de Maria Rosa, andava pela
casa dos Nabasco desde que lhe morrera o marido e
nem sequer fazia a cama dela. Também não arrumava
a roupa que despia e deixava tudo espalhado pelo
quarto. Ouvira dizer que uma princesa não tocava
em nada que lhe partisse as unhas ou lhe
desmanchasse o penteado. Também não andava pela
casa com chinelos nem que fossem de cetim com
pompons, como ela gostava. Tinha gostos de mulher
mantida e a mania de se parecer com princesas
vinha daí. Não enganava Elisa, que estava farta de
saber distinguir uma senhora duma fedúncia
qualquer. A maneira como ela dizia fedúncia era
racista de todo. Uma senhora aprende a calçar as
luvas aos cinco anos e nunca mais se esquece:
primeiro os quatro dedos bem alisados, depois o
polegar. Mas nem nas luvarias de Paris sabiam
isso. Era uma pena, mas também não se perdia nada.
- Elisa, você é muito atrevida mas não lhe levo a
mal - disse Margô. - As vezes dou-lhe razão mas
veja lá se brune as
53
rendas das minhas camisas de noite. E os folhos, e
as fitas. Hoje ninguém respeita nada. Você é
diferente. Trata mal as pessoas mas não as coisas.
Porquê? Não, não diga nada. Se começa a falar
nunca mais acaba.
Elisa esfregou com mais empenho a colher que tinha
na mão. Quem a desenhara sabia o que fazia.
Ergueu-a à altura dos olhos para lhe admirar o
brilho. E achou que a maior parte das pessoas não
percebia nada de nada. O seu ventre produziu sons
que a aborreceram e deixou cair a colher para
dissimular. Agora urinava-se pelas pernas abaixo
quando se levantava duma cadeira e aquilo
envergonhava-a. Juntou as coxas com força mas a
urina soltou-se na mesma e ela ficou zangada. Que
estava ali a fazer Margô? Ao tempo que ficara
viúva e tinha vindo para passar uns dias e nunca
mais despegara de casa! A única coisa que fazia
era encher os açucareiros e cortar papel para
forrar as gavetas. Grande ajuda! Mas, diga-se a
verdade, Margô tinha bom feitio e podia-se falar
com ela à vontade. Tinha um passado de pobre
porque era filha duma costureira que nada mais
sabia do que fazer bainhas. A cortar, era um
desastre; acabou a fazer fardas para os colégios
e, mesmo assim, não era de fiar, deixava sempre um
ombro abaixo e outro acima. Aos quinze anos Margô
parecia uma estátua da liberdade, com a cabeça
pequena em cima dum tronco alto e bem
proporcionado. Os olhos eram castanhos, quase não
se via o branco dos olhos. Tinha coração de pega,
muito compadecido, os homens gostavam mas
deixavam-na depressa. Teve um filho que morreu
antes de chegar a andar e a quem ela chamava "o
meu anjinho". Fazia abortos consecutivos, uns
davam para bem, outros para mal; mas escapou
sempre, ainda que tivesse ficado estéril sem o
saber. Enchia a casa com a sua beleza
serpenteante, o penteador a desdobrar-se pelo
sofá. Era a única pessoa da casa que tinha um sofá
aos
54
pés da cama, assim como um toucador com folhos de
cambraia, de gosto muito duvidoso. Filipe Nabasco,
o marido de Maria Rosa, não gostava de a ver lá
por casa. O que não impediu, quando o cunhado
morreu, de lhe propor sustentá-la em troca de
amores descomprometidos.
- Não faço isso à Maria Rosa, poça - disse Margô,
que às vezes falava de maneira pouco académica.
Como é que um homem culto e snobe como o irmão de
Rosa, perdera a cabeça com uma mulherzinha tão
vulgar? Amava-a mas não se atrevia a casar com ela
porque a irmã era a chefe da família, por ser mais
velha e ter uma boa posição. Mas quando caiu
doente e Margô o tratou com uma dedicação de irmã
da caridade, ela comoveu-se.
- Se queres casar, casa.
Abraçaram-se com um nó de lágrimas na garganta.
Vinha ao de cima a infância comum, a felicidade e
o castigo de muitos dias descontados já para a
morte. Os cães que tinham tido, a primeira
bicicleta, o namoro de Rosa com um amigo do irmão,
o nascimento de Martinho de quem ele fora o
padrinho. E selava esse pacto com uma palmada
furiosa sempre que o via. Porque lhe batia, era um
enigma. Por despeito, porque não lhe perdoava ter
achado lugar entre ele e Rosa. Não lhe perdoava
tanta coisa, a partir dum silêncio que ia
aumentando como um tumor maligno. O silêncio dos
desejos insatisfeitos, da cadeia impossível de ser
quebrada e que fazia o amor durar eternamente ou o
mais parecido com eternamente!
As coisas com Margô eram diferentes. Era a amante
disponível, que podia desprezar e que o fazia
sentir bem com as suas fantasias, as suas francas
aberrações, a maneira de praticar sexo sem medo,
sem vergonha, como num quarto de acaso; longe da
família e do respeito que lhe devia e que às vezes
lhe apetecia provocar. Era um vagabundo por
sentimento,
55
um pouco cobarde porque fugia da aventura. Mas do
que ele gostava era de ir para África caçar a
pacaça e, ao pôr-do-sol, ver a silhueta dos negros
recortar-se na savana. Fora um bom engenheiro de
estradas e caminhos de ferro, levara Margô com
ele, o que deu mau resultado. Todos os homens
caíram de desejo por ela e foi preciso mandá-la
para Portugal com as suas botas de couro da Rússia
e o capacete colonial. Margô estava no melhor da
idade, era alta, com seios pequenos e um pouco
caídos, mãos e pés como de criança. Mexia com os
homens, não só porque fosse bonita mas porque se
convertia em gazela diante deles, uma peça de caça
em fuga ou em repouso, com aqueles olhos de
perfeita esfera palpitante de medo e graça
infinita do medo. O desejo era aguçado pelo medo,
pela indefesa corte que o medo faz à morte. Margô
era irresistível por ser tão oferecida ao seu
destino que, de resto, acabava por vingar-se do
caçador. Foi assim que aconteceu.
- Que aconteceu o quê? - disse Martinho. A avó
estava a escolher entre as torradas aquela que
fosse mais tenra; já não tinha os dentes sólidos,
capazes de mastigar com o peso de meia tonelada.
- Aconteceu que Margô deixou o meu irmão no meio
do caminho, como um tolo, e disse que não queria
nada mais dele. Os homens não se importam de ser
enganados seja qual for o pretexto. Mas se não há
pretextos ficam desesperados. Não há vergonha que
se compare à dum homem abandonado sem pretexto.
- Isso parece obra do diabo - disse Martinho. -
Nunca ouvi nada igual.
- Nem vais ouvir nada igual nem que vivas cem
anos. Que cem anos? Duzentos anos que é a idade
normal duma vida humana.
56
- Da sua, não da minha. Não vou viver muito. É um
pressentimento.
- Os pressentimentos são fáceis de enganar. A tua
tia Margô chegou um dia cá a casa e mostrou-me a
aliança do casamento partida em duas. "Caiu-me ao
chão e partiu-se", disse ela. "Isto quer dizer
alguma coisa".
- Quer dizer que estava mal soldada ou coisa
assim.
- De qualquer maneira quer dizer alguma coisa.
Estou a vê-la com o chapelinho com uma pena posta
ao lado e aquele vestido azul escuro com uma gola
branca e punhos também brancos. Sabia como vestir-
se para os homens, quanto mais pecadoras mais
sérias.
- Ela era pecadora?
- Não. Não sei. Acabámos por nos zangar porque eu
nunca soube. Ela recebeu a herança do meu irmão
quando ele morreu, e saiu daqui de candeias às
avessas com toda agente. Chegou a inventar que o
filho que tinha tido em solteira era do meu irmão.
Disse o que lhe apeteceu e foi-se embora. O que
ela não disse é que já não tinha nada a ver com o
casamento. Mas não se separava nem nada. "Acho que
estou apaixonada" - disse ela.
- Por quem? Perguntei.
- Por ninguém. Aí é que está. Por ninguém. Cheguei
a pensar que seria por um assentador de alcatifas
que foi a nossa casa fazer um trabalho, mas não.
Pelo porteiro? Cheira a
tabaco. Não lava a roupa desde a Páscoa e estamos
em Novembro. Os amigos do teu irmão? Quem podia
ser? Um esquelético, com nariz nobre? Gosto dos
homens esqueléticos, mas vestidos. Acredita que
pensei nisto durante muito tempo. Choro por
qualquer coisa, fico feliz por qualquer coisa.
Agrada-me cozinhar, mas depois deito tudo fora e
vou para a varanda sem fazer nada. Um gato do
vizinho, nem vais
57
acreditar: veio lá para casa e olha para mim como
se fosse gente. Instalou-se lá e de lá não sai.
Uma planta que estava seca, floriu de repente como
se abrisse as asas vermelhas.
- Que planta é?
- Não me perguntes, não sei nada de plantas. Mas
aquela deixou-me meio assustada. O gato
comportava-se como uma pessoa; a planta era como
uma pessoa. Um dia, a mulher da lavandaria (nunca
pude com isso de lavar roupa, tu sabes) olhou para
mim e acho que perdeu o juízo, fugiu de casa,
perdeu o emprego e juntou-se com um homem mais
novo vinte anos.
- Isso do homem mais novo ou muito mais velho é
sintomático.
- O quê? O quê? Repete lá - disse Margô, como se
se estivesse a despedir num cais de embarque,
cheia de malas de viagem.
- O tempo tem que ver com a paixão. Quando não
acertamos com a duração do tempo é porque estamos
apaixonados.
- Já te aconteceu?
- Não.
- Estamos a desconversar. Tu sabes muito mais do
que dizes.
- Toda a gente sabe mais do que diz, mas não dá
conta. Maria Rosa estava transfigurada, parecia de
novo ter vinte anos e uma sensualidade como um rio
cobria-lhe as feições da terna alma da juventude.
Que formosa era, esculpida na massa do tempo que é
o corpo de Eros inteiramente! Margô achou nesse
momento a explicação de tudo; porque a terra
girava em volta do sol, porque as amêijoas sabiam
a beijos molhados. O cão veio de rojo e a gemer
pedir-lhe-uma carícia. Ela fez uma pirueta e abriu
os braços: - Vale a pena incomodar
58 AGUSTINA BESSA-LUÍS
a Deus pela picada duma pulga - disse. E desatou a
rir, inconsolável.
O irmão aceitou um novo contrato para África e
todos pensaram que aquilo ia matá-lo. Com suborno
ou não, declararam-lhe a saúde suficiente para
aguentar o clima e via-se que estava acabado,
sempre febril e a suar muito. Voltou para morrer,
dizendo-se cansado, nada mais do que cansado.
Escrevia cartas que pareciam dum letrado, bonitas
de se ler mas um bocado escusadas. Parecia querer
interessar Martinho, que tinha quinze anos, nas
jovens da Cidade do Cabo, desinibidas e alegres
como as europeias não eram. Não ficou dele senão
umas polainas de cordões e algumas camisas de
kaki. Era pobre como um rato, tinha algumas
dívidas que Filipe Nabasco pagou, não sem mostrar
que era generosidade e não dever. Maria Rosa
chorou como se aquilo fosse o primeiro desgosto da
sua vida. Martinho custou-lhe a consolá-la e
pensou que havia melhores maneiras de perder o
tempo. Não sabia nada de sofrimento e aquilo
fazia-o parecer desalmado. Maria Rosa lembrava-se
de quando a mãe dela a tratava por desalmada
quando se calava friamente às suas ordens e
reprimendas, sem contudo obedecer de boa vontade.
Muitas coisas que a mãe tinha por educativas a ela
pareciam-lhe apenas conflituosas segundo o seu
estilo de vida. Aos doze anos tinha já um estilo
de vida que era amadurecer os seus gostos que
diferiam muito dos das suas companheiras, algumas
mais bem sucedidas nos estudos, nos amores e no
desporto. Mais audaciosas do que ela no que tocava
a perseguir um lugar brilhante na sociedade;
casando bem ou doutorando-se com distinção. A ela,
Maria Rosa, não sobrava senão a continuação da
formatura doméstica e aquela confortável monotonia
de segunda filha dum casal que, afinal, não era
como os outros. Sentia-se isso nas conversas à
mesa atravessadas pelo espírito pícaro do pai e as
59
reticências da mãe que não o aprovava. Servia-o
mas não tinha por ele grande estima moral. Era um
homem com relações da noite, que jogava bilhar com
perícia e fazia vela. Nunca estava completamente
falido mas vivia debaixo dessa ameaça. Um negócio
(gostava do negócio como se gosta duma amante,
prevendo as infidelidades dela), uma herança,
contribuíam para o seu bom humor que não o
abandonava. Nunca trabalhara e isso fazia-o
culpado mas sem ser vítima fosse do que fosse.
Maria Rosa amava-o não sem uma ponta de desprezo,
o que é bom para o sentido de família. Os defeitos
dos outros favorecem o próprio ego.
Ela cresceu aprendendo a trabalhar, o que o pai
achava um pouco ridículo, presenteando-a às vezes
com coisas caras como se lhe pedisse desculpa. No
fundo, esperava dela um casamento proveitoso para
as suas finanças sempre em défice, como ele dizia.
Era um bom pai, comparado com outros. Que outros,
Maria Rosa não sabia nem estava interessada em
averiguar.
Não havia uma crise de gerações, simplesmente um
contrato que se podia definir de liberdade como
paixão. Todos queriam ser livres, os mais velhos
com os seus vícios de madurez, os novos com as
suas curiosidades. Era preciso não mexer no
território privado de cada espécie, não deixar
pistas e viver superficialmente as relações de
parentesco. Escavando um pouco, havia surpresas
chocantes, erros, esboços de crimes, violências
que não chegavam a consumar-se. Maria Rosa, quando
não tinha mais do que três anos, reteve uma cena
que lhe pareceu fantástica: o pai atirou um prato
contra a parede e ela pensou se não seria um jogo
ou uma prova de qualquer habilidade. Reteve a cor
dos abat-jours, que eram verdes e a sala estava
mergulhada numa penumbra verde; o que ela achava
bonito, fazendo com que ela parasse no seu lugar,
à
60
espera do que se seguisse. Não se seguiu nada de
importante, a mãe saiu a chorar e isso pareceu-lhe
vagamente decepcionante. As pessoas choravam e
gritavam como as crianças no berço. Queriam os
seus brinquedos e libertar-se das suas fraldas. E
ser adulto não era diferente.
Olhava para Martinho como se ele lhe provocasse o
riso. A filha deixara-o ao seu cuidado quando se
casou segunda vez com um oficial de marinha e
praticamente desapareceu como se fosse tragada por
uma farda com galões dourados. Teve ainda mais
filhos, mas Maria Rosa ignorou-os. Chamava-lhes os
cadetes, não sabia como os tratar. Paula ofendia-
se e cada vez se afastou mais da mãe. Não se
atrevia a tirar-lhe Martinho porque isso seria
criar dificuldades à herança que esperava dumas
mãos que não eram muito liberais. A medida que
envelhecia, Maria Rosa tornava-se no potencial
pote de libras enterrado para ser partilhado pelos
sobreviventes. Perguntavam-lhe pela filha e os
netos, ela dizia:
- Não temos filhos, temos herdeiros, quando a
morte se aproxima.
Os laços de família eram transferidos para aquele
calculado sentimento de abono merecido. Um fundo
de fria tristeza andava a par da sua natural
sovinice. Achava um desperdício tudo o que gastava
com gente do seu sangue; e, contudo, era generosa
com estranhos. Era um traço do feitio paterno, que
punha nos desconhecidos uma probabilidade de
ganho. Um bom nome era melhor do que dinheiro no
banco.
Não sabia que homem estava a preparar com a
educação que lhe dava. Como os príncipes, tivera
preceptores escolhidos na elite tanto clerical
como leiga. Aos poucos, via nascer em Martinho o
carácter, onde só havia temperamento que carecia
de interesse pelo risco e era, por natureza,
fleumático. Mas ao despertar para os princípios
práticos que haviam de
61
obter-lhe sucesso na vida, apareceu nele a cólera
que só com dificuldade dominava com a razão. Era
um rapaz de estatura abaixo da mediana, com
disposição para a autoridade, o que o fazia perder
os amigos. E também as primeiras namoradas o
receavam, e tinha, como os jovens solitários, um
desdém pela entrega da sua intimidade; depressa o
tomavam como uma pessoa vaidosa e pueril. Tinha a
faculdade de prever e por isso conhecia as
debilidades que iam arruinar as relações. Não era
emotivo porque era capaz de paixões. A avó disse
que ele se parecia a um toiro no meio duma praça e
que, de repente, arremete sem que se possa
perceber o que lhe chamou a atenção.
- É um visionário - disse o doutor Horácio, que
lia Kant como pedagogo. Via o estado de distracção
em que Martinho incorria e, ainda que isso fosse
sintoma de preocupação profunda, era-o também duma
natureza enganadora. Tinha muitas caras ao longo
do dia e, no geral, não se podia dizer que alguma
delas era a verdadeira.
O seu último preceptor, professor jubilado e com
muita experiência da juventude escolar, estava
mais à vontade com as emoções pela franqueza em
que elas se manifestam. São mais próprias de
mulheres, pela sua versatilidade; mas também há
homens que se emocionam facilmente, aqueles que
tiveram uma vida perigosa e que se deixam levar
por súbitos desejos de redenção, chorando com a
simples lembrança do lar paterno ou dum cão que
morreu e de quem eram amigos. Esses são homens de
acção mas não de paixão. Maria Rosa seguiu o
conselho do preceptor, que lhe disse para pôr
Martinho a dieta severa. Não comia pão branco
senão ao chá, e carne só duas vezes por semana.
Não bebia vinho, ainda que lhe fosse permitido um
whisky antes de jantar. Nunca se sentava à mesa
sem gravata, ainda que às vezes descalçasse 62
os sapatos debaixo da mesa. Isto era a prova duma
confiança absoluta em si mesmo.
- Não conheço ninguém que se atreva a descalçar-se
enquanto come a sopa que, em geral, fumega. Os pés
podem fumegar mais do que o vulcão. É ou não é? -
disse Martinho. As raparigas que estavam por ali e
o ouviram, mostraram-se desconfiadas. Nada as
incomodava mais do que o humor dum homem sério. O
humor estava ligado ao aturdimento e não à razão.
Uma das coisas que impedia que o bom gosto se
desenvolvesse nas pessoas era a falta de se
reunirem à volta duma mesa, escolhendo a comida e
os convivas. A maior parte das vezes as pessoas
juntavam-se ao acaso, sem preparação para travarem
uma conversa a não ser com objectivos imediatos de
melhorarem a sua vida ou dar a impressão de que a
melhoravam. As pessoas já não coravam, se ouviam
uma palavra obscena, sobretudo se estavam mulheres
presentes, limitavam-se a sorrir de maneira
rápida, como se tivessem pressa de deixar passar
uma indiscrição; se o caso se repetia, alguém
travava com o vizinho uma conversa que parecia
importante e não passava dum par de tolices. A
banalidade afasta o compromisso.
Para desconcertar a solidão em que Martinho vivia,
não só pelo exibicionismo da avó, mas porque ele
era um rapazinho débil, chamava para casa às
quintas-feiras alguns vizinhos. Até aos dez anos
Martinho adoecia sem razão aparente e tinha febre.
Ficava na cama, bem resguardado no seu pijama de
flanela, e comia batatas fritas. Isto durava seis
dias, depois do que se levantava e ia para o
jardim dando voltas à casa na bicicleta. Mal
chegava aos pedais e o volante de corrida
obrigava-o a uma posição incómoda. Mas a
incomodidade dava-lhe um prazer invulgar; tinha
uma particular admiração pelo
63
sofrimento e imaginava possuir dons
extraordinários, de transformação em pessoas
prodigiosas capazes de voar e de vencer grandes
perigos. Isto era, em parte, resultado dos filmes
que via e que lhe provocavam uma excitação
sombria. Aparentemente era obediente e amável para
toda a gente, mas guardava uma soma de ideias
maliciosas que um dia talvez se iriam libertar.
Sobretudo o facto de haver na sala de jantar um
quadro que era a cópia da Ronda da Noite de
Rembrandt. Na sua vaidade mística que não admitia
contradição, Maria Rosa habituara-se a não
duvidar. Para ela a Ronda da Noite era autêntica e
tudo o mais que pudesse assemelhar-se era pura
falsificação. Bastava um só olhar para ver que
Rembrandt não lhe pusera a mão. Mas o mesmo se diz
do quadro que com tanta fama se pode ver no
Rijksmuseum. Filipe Nabasco, não tinha uma ideia
muito clara de quem era o pintor, nem isso lhe
interessava. Bastava-lhe acumular na honra da
família o factor duma celebridade.
Entre os amigos de Martinho havia dois irmãos que
não se impressionavam com A Ronda da Noite.
Tiveram mesmo a ideia destruidora de apagar uma
figura a que chamavam o quarto mosqueteiro. Nos
dois anos em que frequentaram a casa dos Nabasco,
tomaram como entretenimento fazer pequenas
alterações no quadro como se faz nos enigmas
"quais as diferenças". Ninguém ia descobrir, tanto
mais que A Ronda da Noite, como a tela era
conhecida, nunca foi observada com atenção. Mas
isso ficou gravado tão profundamente em Martinho
que sonhava amiúde com A Ronda da Noite, como uma
cena que estivesse por detrás dum portão chapeado
de ferro e impossível de mover. No entanto, ele
abria-se lentamente e A Ronda da Noite ganhava
vida. Como na realidade, tratava-se da preparação
dum desfile onde 64
todos procuravam o lugar certo, fazendo daquela
agitação uma festa ou preparativos para uma festa.
Os amigos de Martinho depressa cresceram e
esqueceram A Ronda da Noite e os seus pequenos
vandalismos. Mas Martinho não. De tempos a tempos,
tinha aquele sonho, nítido e sem alterações nos
seus pormenores. Constava que Filipe Nabasco tinha
vendido o quadro, porque vendia tudo sem o mais
pequeno remorso e mesmo sem precisar de dinheiro.
A fortuna deu-lhe até ao fim da vida e Maria Rosa
quando ele morreu teve algumas surpresas
desagradáveis. Tinham desaparecido algumas jóias
de família, dessas que não são usadas pela falta
de ocasião adequada, que eram os bailes da corte,
no tempo da rainha Maria Pia. Na família Nabasco
houve duas açafatas cujos vestidos de gala estavam
ainda guardados dentro de folhas de papel de seda.
A educação que Maria Rosa (Maria Rosa Firmina, era
o nome dela) dava a Martinho era ainda um resíduo
desse passado que não tinha nada de austero e onde
a educação literária era reputada como pedantaria.
Com a viuvez da soberana D. Amélia fez-se um
concerto beato entre a corte e o clero e chamaram-
lhe a santa Amélia. Foi depois da implantação da
República que a família se dividiu, ficando o
núcleo monárquico dos Nabasco, imigrando no Brasil
na época mais agitada, e tomando o rumo da
esquerda os que tinham sido afectos à burguesia
intelectual de inclinação republicana. No Brasil,
o Nabasco desse tempo apanhou hábitos francamente
vagabundos, jogava e valia-se da sua estirpe
europeia para exercer influência numa sociedade
opulenta e ainda ancorada nos costumes da
escravatura. O hábito de presentear com ouro as
criadas e que durou até aos meados do século vinte
em Portugal, era, ou parecia ser, um capítulo da
casa de engenho, onde as escravas se adornavam com
ouro em abundância. Fosse como fosse, os Nabasco
antigos trouxeram, quando
65
voltaram do exílio, uma criada preta chamada
Esperança que foi lendária, pelo lado mau, na
família.
Maria Rosa teve a parte mais favorável da história
porque se casou com o Nabasco enriquecido não se
sabe porque combinações de negócios de guerra e
expropriações, ou coisa pior ainda. Foi nessa
altura que A Ronda da Noite entrou em casa, pela
janela, ou seja, por uma varanda envidraçada das
traseiras, porque pela porta não cabia. O facto de
ter havido parentes que foram embaixadores em
Berlim e Amsterdão dava um pouco de crédito à
autenticidade de Rembrandt.
Os dias mais felizes de Martinho decorreram no
campo, na propriedade que ficou a chamar-se a
Ronda. Porque o quadro lhe serviu de estudo antes
que soubesse ler e contar.
Com a saúde do avô avariada, foram para a cidade,
onde havia melhores recursos médicos. E a Ronda da
Noite ficou na parede, travada pelo sofá de
jacarandá.
O Nabasco durou pouco. Martinho lembrava-se de que
o caixão deu problemas para sair de casa, que
tinha uma escada de caracol íngreme como tudo. Era
a Casa do Cão, assim chamada pelas suas dimensões
apertadas no meio dum parque luxuriante.
De qualquer modo, os amigos da casa mais
acreditados em coisas de arte, afiançavam que se
tratava duma falsificação. Ou, quando muito, duma
obra do atelier de Rembrandt mas dum dos seus
discípulos. Havia, ao que diziam, pinturas
originais e outras espúrias que se reconheciam
porque não tinham mãos ou estas se encontravam
dobradas para vencer a dificuldade de as desenhar.
A Ronda da Noite dos Nabasco sofria desse defeito
ou digamos que evasiva do seu autor. Mas o quadro
abandonado na casa da Ronda continuou a estar
presente nos sonhos de Martinho. Adormecia, e lá
estava A Ronda da Noite com os seus cavaleiros a
tomar medidas
66
para incorporar um cortejo mas pouco dispostos a
colaborar, só a gozar a sua liberdade. Martinho
acabou por tomar o sonho como uma premonição e
isso aumentou a confiança nele próprio. Acreditava
que lhe estava destinado um papel no mundo e que,
como Cristo, nascera num lugar desconhecido para
melhor formular um pensamento original. Era, aos
doze anos, um rapaz de paixões e que facilmente se
entregava a desvairadas crises de irrealidade ou
de ambição contida. A Companhia do Capitão Frans
Banning Cocq, como se deve chamar A Ronda da
Noite, um homem rico e futuro presidente da câmara
de Amesterdão, é uma composição atrevida duma cena
que não reflecte o passado. Não é a pose de
qualquer coisa que deve ser lembrada na sua
imobilidade académica, mas um momento em que acção
se junta com uma espécie de entusiasmo fogoso. Não
é o que aconteceu que lá está, mas um
acontecimento em vias de se produzir.
Por isso é que, tão inesperadamente, como o
símbolo da inspiração, aparece a menina
luxuosamente vestida, como uma figura de procissão
mas à qual não foi distribuído o seu papel.
Martinho reflectiu nisto, ou seja, na Companhia do
Capitão Frans Banning Cocq, como numa charada que
lhe fosse proposta a ele somente. Como lhe
explicou um amigo da avó, provavelmente alguém que
a tinha amado quando era nova, A Ronda da Noite
não significava nada de militar, mas talvez uma
confraria que se prepara para se juntar em dia de
festa, tendo à frente o capitão Cocq e o seu
lugar-tenente, vestidos para o luxuoso retrato em
proporções grandiosas. Tão grandiosas que não
coube na parede da câmara de Amesterdão. Quando o
capitão foi eleito presidente, ou burgomestre,
quis dar ao quadro o lugar conveniente; só que não
cabia. Então mandou cortar o tambor e uma parte à
esquerda, sem prejuízo da cena, ao que ele
julgava. As suas relações com Rembrandt,
67
que era íntimo dos burgomestres e os pintava com
grande respeito e sofisticação (quem paga tem
direito à minúcia e até a um olhar desvanecido)
favoreceram o estilo do quadro. Um estilo
eufórico, próprio duma alegre parada que se
prepara na melhor das intenções, simulando gente
armada mas, de facto, sem movimento bélico.
Martinho lembrava-se de que quando Maria Rosa
punha o colar de pérolas, Bento Webster, que tinha
tido numa trajectória pelas casas de vinhos, a
visitava. Pelo aspecto que ele tinha, tendo já
dobrado os sessenta anos, fora um elegante
cavalheiro que fazia poesia e agradava às
mulheres. Usava ainda luvas de camurça clara e
Maria Rosa tratava-o com deferência, como se ele
fosse parente da rainha de Inglaterra. O bigode
loiro e a corpulência majestosa, faziam supor que
fosse um filho do rei D. Carlos. Também havia a
hipótese de Bento dever a paternidade ao Infante
D. Afonso, a quem chamavam o arreda porque
passeava em Lisboa a conduzir os seus Mercedes com
mão mais inábil do que segura.
De qualquer modo, Bento Webster Soares era um
homem de sociedade, casado com uma senhora da
província, do tempo em que a província tinha
pequenas cortes lindamente servidas de jovens e de
peixe assado. Ele enganou-a sempre, porque um
poeta é sempre um Eros faminto de emoções novas.
Cultivava a dor imaginária e a nostalgia dos
emigrados, ainda que nunca tivesse saído do Porto
nem isso lhe fizesse falta. Só depois dos anos
cinquenta, mais precisamente depois da segunda
Guerra Mundial é que as pessoas começaram a querer
viajar, mais por curiosidade sexual do que por
espírito de aventura. Maria Rosa, só depois de
casar saiu do país e foi ao Louvre conhecer a Mona
Lisa, que estava, muito vulnerável, à altura dos
olhos de qualquer estudante.
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No geral, só os ricos iam para a neve, em Saint
Moritz, e davam a primeira queda antes dos vinte
anos. Maria Rosa, aos trinta e seis anos era o que
se chama uma mulher que apetece elogiar,
justamente porque não se tem a ideia de casar com
ela. Era culta, polida, inteligente; e tinha
muitos apaixonados, casados e solteiros, e
sobretudo daqueles rapazes em vias de ficar
solteirões por excesso de bom gosto e pela
faculdade, que alguns têm, de antecipar as coisas,
como a felicidade improvável no casamento. As
mulheres costumam respeitar os incasáveis e
permitem-lhes que entrem nas casas delas como se
fossem maridos platónicos.
Bento Webster Soares pensou em tirar uma mulher
dos braços dum marido, senão por algumas horas, ao
fim da tarde. O adultério tem o seu horário, como
o calista e as provas na modista tinham o seu. Já
não há calistas, no Porto creio que tem dois ou
três; foram substituídos pelas manicuras, o que
não é a mesma coisa, nem se lhe compara.
- Um calista era uma arte, uma manicura é uma
profissão - disse Maria Rosa, que tinha estranhos
diálogos com Bento Webster. Como poeta, como
homem, como tudo, ele estava fora de moda. Era
destes homens de quem se tem vergonha de ser vista
a almoçar no restaurante, mas que se convida para
jantar. Fica bem à mesa e não se embaraça com os
talheres. Do seu trato com ingleses, tinha uma
sombria simpatia pela jardinagem; depois de regar
o jardim (havia muitos jardins no Porto) vestia o
smoking nem que fosse para comer uma talhada de
vitela fria que já tinha três dias de frigorífico.
Nunca desejara ser rico, isso pertencia a um mundo
que a alma viril não habita. Detestava as mulheres
muito novas e os pickles de conserva.
- Ambos são legumes avariados - disse Webster.
Martinho ouviu isto, tinha oito anos, e pensou que
Bento
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Webster Soares era de desconfiar. Desconfiava das
pessoas adultas como se fossem ladrões ou
chantagistas em potência. Um dia o colar de
pérolas da avó desaparecia e só ele sabia quem o
tinha levado no bolso do sobretudo. O colar de
pérolas que servira várias vezes como caução,
quando as finanças estavam por baixo e não havia
dinheiro senão para as despesas elementares. Para
comprar um bonito par de pérolas cinzentas, não
havia; nem para trazer para o salão o espelho de
Veneza com aquela moldura de flores de cristal,
não havia. O supérfluo, o que envolve o prazer
sensível na sensação dum objecto belo, arrastava-
os como a paixão do jogo. Os Nabasco jogavam por
prazer e não por vício. De resto, tinham a ideia
de que podiam suspender de repente uma vasa,
levantarem-se e ir embora só porque o táxi
chegara. Não era verdade mas - que importa? A
verdade era uma coisa prescindível e não de todo
se podia avaliar.
Só os ricos sabem o valor do dinheiro, dizia o
Nabasco, fumando a sua cigarrilha que lhe dava o
prazer dum beijo. Como Maria Rosa odiava aquela
cigarrilha! Ele fumava como se fizesse sexo, com
uma lentidão mascada, uma visível audiência dada
ao prazer. Nunca a beijara daquela maneira; com
aquele contido ardor, o silencioso pasmo de se
achar possuído. "Nem eu queria" - disse ela. E
veio ao de cima um vómito, como se tomasse
consciência da sua violação, qualquer coisa que a
segurava à terra e punha dentro dela um insecto a
que era preciso dar um nome e uma identidade. -
Que querem de mim? - disse ela. A ideia de que um
dia não daria à luz, nem teria prazer nem dor,
agiu nela como um sedativo. Libertação do desejo e
da morte.
Era decerto isso que estava na Ronda da Noite.
Gente que se preparava para um festejo, a sua
liberdade; mas estava armada e vestida como se de
antemão lhe destinassem um
70
papel que não tinham escolhido. O burgomestre
vestido para presidir à sessão solene com a sua
faixa de gala e os sapatos de laços das grandes
ocasiões; o lugar-tenente, segurando a acha com
que daria sinal para a audiência começar. O chapéu
com plumas brancas não podia ser mais adequado. As
botas acima do joelho, as galochas a meia-perna. A
casaca bordada com arabescos e os cabelos
ondulados como que com ferro de frisar. E atrás
dele as armas aperradas, os piques alçados, risos
e exclamações. O tambor-mor, o tal que ficou
mutilado porque não cabia na parede; um belo
cavaleiro de gola frisada como só se frisava em
Amesterdão; os cascos, as mãos toscas, a bandeira,
um negro ou um gnomo que foge por entre a
multidão. A criança luminosa e feliz, tão à
vontade no meio dos homens que vão desfilar e não
combater. De repente, tudo pode mudar e todos
tomam um lugar diferente na parada. As expressões
mudam, aquele que está escondido atrás dum braço
estendido, adianta-se. É um espião, o que sabe
qual o rumo a tomar? O burgomestre sabe alguma
coisa, tem um olhar surpreendido, vai tomar a
palavra. Terá tempo para isso ou é apenas um gesto
teatral, ensaiado, inofensivo? Pode ser mal
interpretado e o capitão Cocq está em riscos de
fazer da sua Companhia um montão de cadáveres. Não
está previsto e tudo está em movimento. O
desfecho? A menina não conta com nenhum desfecho e
tem o rosto inocente e está à vontade no meio da
gente que ela conhece bem, todos familiares e que
lhe prometeram um lugar importante no desfile. Nos
seus sonhos, Martinho, quando tinha sete anos,
gostaria de se vestir como a menina, a pequena
Saskia, uma herdeira rica. Punha uma camisa da
avó, do tempo em que se usavam as baby-doll, e
dançava abrindo os braços, sem parar. Maria Rosa
surpreendeu-o mais de uma vez e bateu-lhe.
Arrependeu-se logo porque Martinho não percebeu
71
se tinha feito algum mal. Tinha os olhos cheios de
lágrimas mas não se queixou.
- Não quis magoar-te - disse a avó, embaraçada. -
Não gosto que mexas nas minhas gavetas.
- Não estava fechada.
- É o mesmo. Tira isso e vamos almoçar.
Deixou-o só para que ele se despisse, e o quarto
tomou a dimensão dum teatro, com o arco que
separava a alcova da sala onde estava o cofre e os
restantes móveis. Abria para uma varanda
envidraçada com estores de lona branca; era a
casa-de-banho, ocupada a todo o comprimento pela
tina e as outras loiças dum verde claro. Na borda
da banheira, a esponja parecia ainda húmida.
Estava a apodrecer e tinha uma cor parda de carne
cozida. Martinho odiava ser lavado com ela, era
como um animal morto boiando na água espumosa.
Pensava laboriosamente no que tinha feito para
encolerizar tanto a avó. Havia mistérios no
comportamento das pessoas e, como na Ronda da
Noite, elas dissimulavam qual era o papel que
desempenhavam.
O avô Nabasco, que Martinho conhecera desde os
quatro anos e depois ele desapareceu, com o cabelo
cortado à escovinha e o ar divertido que ele punha
para falar com crianças! Dizia sempre uma adivinha
difícil de perceber e tratava todos como se fossem
idiotas. Só fazia uma excepção para os Cunhas, a
dinastia de criados que o serviam e em que ele
depositava toda a confiança. Adão e Miguel, ao
mesmo tempo hortelãos e capazes de cozinhar e
servir à mesa como ninguém. Tiravam os pratos pela
direita e punham outro pela esquerda. Ou seria o
contrário? Martinho gostava de estar na cozinha
com eles e com Ana, a irmã feia como um trovão,
mas a melhor criatura do mundo. Parecia horrenda,
tinha sempre os cantos da boca molhados, e os
seios caíam-lhe até à barriga.
72
Ficara sempre apegada aos costumes da sua aldeia
e, à noite, metia a camisa numa bacia de água para
afogar as pulgas. -Já não temos pulgas, Ana Cunha
- dizia a avó.
- Tanto faz. - Ela gostava do seu ritual, de tomar
chá de cidreira à noite, de acender lamparinas aos
santos, de fazer dieta quando era menstruada, isso
até depois de velha e seca por dentro. - São
coisas minhas, sinto-me bem assim.
- A Ana Cunha é uma bruxa, tenho medo de comer o
que ela faz - diziam as novas, as dos quartos, as
brunideiras e criadas de meninos. Mas não
resistiam porque ela era boa cozinheira. Estava
sempre às voltas com as massas e os refogados, via
passar com amargura o tempo da boa mesa, dos
grandes assados de peixe e dos capões recheados.
Agora poupava-se, sem falar na guerra em que se
comia soja e se adoçava o café com mosto. Ela
durou pouco depois do armistício, a grande Ana
Cunha. Deixou o oiro à Maria Rosa e dela pouco
ficou; os aventais remendados no ventre porque se
coçavam ao roçarem-se pela borda da mesa e pela
pedra do tanque. Tinha sempre alguma peça de roupa
ensaboada no lavadouro, embora se usassem máquinas
para tudo. Martinho teve sempre um pouco de medo
dela.
- A Ana Cunha era uma santa - disse a avó, olhando
para as mãos que começavam a encher-se de manchas.
Quem a substituiu foi a Elisa, uma sobrinha que,
essa sim, era bonita a valer. Alta, de cor morena
clara e os cabelos pretos sempre a escorregar-lhe
para o rosto. Rosto cavado, olhos grandes, um ar
de deusa prestável e singular. Foi casar com um
tio que estava no Brasil e que ela nunca tinha
visto. Assim se perdeu um modelo para um
costureiro do melhor que há, em Paris ou na
Itália, ou por aí. Depois de enviuvar, voltou e
nunca mais saiu da casa.
73
Martinho não se esqueceu da cólera da avó quando o
viu dançar com uma camisa dela vestida. Quer
dizer: esqueceu-se mas, quando já era homem,
lembrava-se; e parecia-lhe que ela tinha
surpreendido alguma coisa de alarmante, como se
visse a estátua de Galateia tomar forma sob os
traços dum rapazinho.
De vez em quando (os Nabasco eram novos ainda, e
até aos vinte e oito anos perdoava-se-lhes tudo:
dívidas, mulheres de má fama e excentricidades
maiores) acontecia qualquer coisa que ficava no
rol dos segredos de família. Por exemplo, quando
Filipe Nabasco se apaixonou por uma afilhada dele
e da mulher e se separou de Maria Rosa. Não foi
viver com a jovem, mas deu-lhe casa e um bem-estar
de acordo com o nome dele. Não houve filhos e
dizia-se que o Nabasco nunca lhe tocara. A
predilecção que Maria Rosa tinha pela afilhada
incomodou-o tanto que quis assumir a paixão por
ela quando afinal o que sentia era ciúme pela
mulher. Foi uma época de grande sofrimento para
ambos, mas tudo acabou em bem e o Nabasco veio
envelhecer para casa dele, passada a sua
voracidade dos sentidos que ninguém foi capaz de
suspeitar. Ou talvez fosse. As pessoas não deixam
escapar nada do que é a onda dos afectos em que
dificilmente sobrenadam e raramente se salvam.
Todos vivem numa comunidade, ligados pelo
sentimento de se protegerem, mesmo que tenham de
derramar sangue para isso. Houve um momento em que
a afilhada correu perigo de vida. Acima de tudo
estava a camada nobre do procedimento e a união
quase perfeita do casal Nabasco. Rangiam dentes,
estalavam ossos, sob a pressão do eros
insatisfeito. Mas era preciso assim para que o
mundo rolasse no sentido que lhe fora dado.
A morte de Filipe não foi um drama para ninguém.
Maria Rosa estava cansada de cuidar dele e o
primeiro luto que fez
74
quando soube que o marido estava condenado, durou
pouco. Depressa retomou os seus hábitos e ia
jantar com as amigas ou a Londres comprar qualquer
coisa que lhe fazia falta. Os ricos são pessoas
muito especiais, vivem por sua conta, que é uma
coisa que mais ninguém faz. O gosto, que tem a
tendência a estabelecer os princípios da
moralidade, é influenciado pelo preço e não pela
noção do sublime. O jogo da sensibilidade, desde
que não haja um factor exterior que ameace o
estado das coisas, é facilmente atribuído ao bom
gosto, seja no vestir, ou no gozar um espectáculo
ou escolher um marido ou uma mulher.
Filipe Nabasco, uma vez perdida a esperança de
recobrar a saúde, viu crescer à sua volta os
hábitos em que teria que morrer e que eram o seu
último passo na Ronda da Noite. Maria Rosa ficou
senhora do neto desde que Paula tivera filhos do
segundo matrimónio, os cadetes, como ela lhes
chamava. Casada com um oficial da marinha, que
resumia a vida social ao círculo da sua patente,
Paula depressa abandonou as praxes da família e já
não aparecia no Natal nem nas férias. Perdeu pouco
a pouco a memória de Martinho, de quem se
orgulhava apenas quando lhe diziam que crescia em
graça e em sabedoria. Não era um rapaz dotado para
os tempos futuros porque não se enquadrava no
comum. Em parte devido à sua educação de príncipe,
com preceptores mais do que com profissionais do
ensino.
Martinho chegou aos quinze anos muito ignorante da
vida de rapaz, ainda que a avó lhe proporcionasse
companheiros de brincadeiras enquanto viveram no
lugar da Maia, numa pequena propriedade de recreio
que tinha uma história secreta. Constava dum chalé
pequeno onde só cabia um casal e dois criados e
talvez uma cadela biegle. O lugar chamava-se Aguas
Santas e nos primeiros anos de vida de Martinho
75
pertencia a um amigo de Filipe Nabasco que faliu
estrondosamente arrastando na ruína a família e a
amante titular para quem ele comprara o chalé
conhecido pela Casa do Cão pela exiguidade do
tamanho. Mas o parque era assombroso, com um
pequeno bosque de árvores raras e, no meio do
bosque, um lago, com uma ilha. No meio da ilha um
pinheiro rasteiro e a sombra inquietante dos seus
ramos. A propriedade, de recreio, como eu disse,
estendia-se em u, ladeada por tílias gigantes. Ao
lado havia uma bouça onde pernoitavam os pavões
que, como se sabe, gostam dos ramos altos. A lenda
de que os pavões trazem desgraça não sei de onde
veio. O seu grito estridente talvez concorra para
a triste fama que têm. Mas, a verdade é que o
antigo dono de Águas Santas se suicidara pondo o
cano duma arma de caça debaixo do queixo e
disparando. Tinha construído uma garagem no lugar
duma capela que mandou arrasar, e aquilo
contribuiu mais ainda para o mau nome da
propriedade.
Nesse tempo era muito vulgar os grandes
capitalistas, negociantes ou donos de fábricas,
terem uma amiga nos arredores da cidade a quem
dispensavam todas as atenções, menos uma: a da
liberdade. Não podiam sair à vontade pela cidade
nem receber senão a modista ou o estofador. Quanto
à modista era algumas vezes cúmplice nas
escapadelas que faziam ao regime de sequestro.
Estas amantes eram em geral muito bonitas e
chegavam a casar com os seus protectores caso eles
enviuvassem. Pelo que os filhos não se atreviam a
condenar o pai, com medo das consequências que
eram o nascimento de irmãos bastardos, legitimados
e com direito a herança. De qualquer maneira, a
amante era um valor comum e inalienável.
Não se diga que havia enganadas entre mulheres tão
prevenidas. A seriedade era uma divisa, não um
sentimento.
76
A política era uma fórmula negocial; o poder uma
fonte de informações cuja dinâmica íntima
respeitava às grandes fortunas. Os bons cidadãos
conhecem-se no pensamento de Danton: "O legislador
deve conciliar o que convém aos princípios com o
que convém às circunstâncias".
Mas, falava eu de Aguas Santas e da Casa do Cão.
Muito antes de Filipe Nabasco ter comprado a
propriedade (de recreio, note-se bem, o que é
sempre funesto para um homem de negócios) já
pesava sobre ela a lenda duma fatalidade. Houve um
suicídio, depois um criado perdeu a vida a descer
a uma fossa para a limpar; houve incêndio numa
mansarda deixando a casa em muito mau estado, até
que o dono dela se cansou de tantos acidentes e a
vendeu a um amigo. Em pouco tempo, por fraude e
más companhias, este ficou arruinado. É
extraordinário o número de pessoas que não levam
até ao fim uma vida sólida e bem ordenada. Pode
dizer-se que se cansam de ser perfeitos e optam
pela alteração da vontade que os leva a cometer
loucuras: como perder tudo o que tinham, guardando
apenas o suficiente para alimentar um vício
qualquer, sem demasiada extravagância. Morrem como
vítimas de qualquer sina funesta, mas na verdade
entregues a uma preguiça profunda de que não
conseguem ou não querem libertar-se.
Com o peso dessa má fama, Maria Rosa Nabasco não
descansou enquanto não mudou de casa. Mudou para
outra maior, na vizinhança, mas nem por isso se
desfez no seu espírito a aura da fatalidade.
Filipe Nabasco, antes de morrer, fez um pedido
estranho. Quis que A Ronda da Noite voltasse a ser
posta na parede da sala de jantar, caso o Torreão
Vermelho viesse a ser comprado por Maria Rosa. Se
havia nisso a intenção de desfazer um malefício,
não se sabe. Confessou que, quando era criança,
tinha pintado pequenos sinais com tinta
77
da China, nas caras da Companhia do capitão Cocq,
e que não pareciam mais do que a picada duma
pulga. O sentimento de ter ofendido a obra de
Rembrandt apareceu à hora da morte com atroz
clamor da sua alma e mandou que se limpasse em A
Ronda da Noite todo o vestígio de vandalismo. Mas
não se sabia como começar, pois não havia traços
visíveis de qualquer dano. O próprio Martinho se
lembrava de ter visto um dos seus amigos marcar o
quadro com pequenas cruzes e sinais ortográficos.
Mas onde estavam eles? Com o tempo tinham-se
incorporado na pintura e não era possível detectá-
los.
Os Nabasco, ou o que deles restava, estavam
entrincheirados na sua nova casa e era a quarta
vez que mudavam, penduravam cortinas e adaptavam
os móveis a diferentes espaços. Quem mais
censurava aquelas alterações era Ana, a
cozinheira. Estava habituada ao seu fogão de
quatro bocas e à cavidade com carvão onde fazia as
torradas e não se cansava de queixas e indirectas.
Cada vez se vivia pior com tantas máquinas que ela
se recusava a manobrar e até danificando-as por
vingança heróica, em honra do tempo passado.
Estava cada vez mais parecida com a Calibã de A
Tempestade, e sofria de diabetes, pelo que lhe
cortaram dois dedos dos pés. A voz dela, pedindo
aos gritos que Maria Rosa a fosse ver, ouvia-se
desde o fundo da escada. Não a escada em caracol
da Casa do Cão mas outra, em leque, com corrimão
de ferro forjado.
Maria Rosa, viúva, bem parecida, com fortuna
indetectável e que se dizia estar a bom recato na
Suíça, teve ainda pretendentes, o que causou em
Martinho profundo espanto. Aos sessenta anos Maria
Rosa sentia-se como que confortada com os santos
sacramentos: nada lhe faltava, o Senhor era o seu
pastor nos verdes prados, mas um homem era a sua
ideia mais consoladora. Mas uma viúva tem sempre
um escrúpulo em
78
casar, a não ser com alguém a que o primeiro
marido não pusesse objecções. Não encontrou
paralelo com o Nabasco de dezoito anos, que tinha
sido "a cidade" da sua vida. Aquela que tem portas
terrestres e portas celestes; a que tem torres que
travam as tempestades. Mas muita coisa ia
acontecer. Tinha retratos dele que enchiam uma
grande gaveta duma cómoda; Filipe aos sete anos
com um chapéu de ráfia e de calção; Filipe aos
doze quando era o príncipe Sandokan de todas as
meninas em férias. Nadava bem e lançava-se de
bicicleta como um corredor da volta a Portugal, ou
melhor, da Itália, em competição com os maiores.
Com Copi, cuja fama de campeão estava estampada
nas pedras das estradas. "Forza Copi!" Aquilo,
anos mais tarde, ainda arrepiava a pele do
Nabasco, em viagem com Maria Rosa, um pouco mais
de recém-casados. Tinham-se amado mas com
reservas, porque ela não correspondia à flor das
noivas, a quem as soquetes ficavam bem. Não tinha
as pernas tão altas e finas como ele desejaria. E
era demasiado inteligente para o gosto dele. O pai
Nabasco fazia troça.
- Quiseste uma doutora, agora aguenta-te.
Maria Rosa não era doutora, não tinha nenhum
curso, mas a memória dela era surpreendente.
Retinha tudo o que lia, que ouvia, que lhe passava
diante dos olhos. Não se parecia com uma dona de
casa ligeiramente decepcionada mas assente nos
seus deveres. Criara Paula com bons exemplos e
mandara-a educar por freiras que a ensinaram a
falar com rapazes e a sentar-se com decência e
orgulho, o que é muito difícil de aprender. Um
orgulho de maneiras e de nome de família, que
nunca se esquece, nem que se atravesse o deserto
em fuga aos soldados do faraó. Paula dera-lhe
Martinho, um rapazinho dócil que pensou educar na
Inglaterra em colégios nobres.
79
- Para quê? - disse o Nabasco. - Sai de lá um
parvo chapado com manias excêntricas.
- Que manias?
- A de ir à Grécia no Inverno e a de comer roast-
beef frio. Por exemplo.
- Sempre se comeu roast-beef cá em casa. - Ela
lembrou-se das travessas de cristal com massa
alourada no forno e dos grandes pedaços de carne
em sangue, cheirando a queimado; a mostarda, os
pickles, o vinagre de vinho, a soja escura. Comia-
se bem nos Nabasco. Era por isso que Filipe não
arredava pé. Gostava do seu banho quente, do
sabonete inglês, de quem lhe cortasse as unhas dos
pés. Tinha uns pés bonitos, rosados no calcanhar,
palmas um pouco curvas. Usara meias de seda quando
era novo, e ligas pretas. Mas não queria admitir
que as usara, porque era coisa de gigolô ou não
sei quê. Martinho tomara conta da casa quando
Paula se foi embora com o novo marido. Um
marinheiro, imagine-se! Não havia marinheiros na
família dum e doutro lado. Ganhavam pouco, não se
riam, tinham ideias fechadas a qualquer fantasia,
eram justos, não davam gorjetas. Maria Rosa e toda
a gente lá de casa andavam de táxi de cá para lá,
davam esmolas como se fossem afogar-se a seguir,
não reparavam nas contas e pagavam às cegas sem
perguntar o preço. Tempos felizes, sem cálculo,
sem deve-e-haver. Paula ia às lojas e mandava ir
as compras a casa sem saber o custo de nada. Era
um vício quase contemplativo o de deixar um rasto
de abundância por onde passava. Além de que era
bonita como o sol e se vestia como se vestem as
elegantes sem moda ou à moda do ano passado. Tinha
cabelos lisos que lhe faziam sombra nos olhos.
Martinho tomou o lugar dela, o lugar de tudo. O
Nabasco esfumou-se como o mágico da lâmpada, e
adeus aos banhos
80
de espuma e às tesouras das unhas douradas.
Martinho era o senhor da casa. Se chorava, era um
levante, corriam todos, havia sempre no fogão um
lote de biberões fervidos e as retretes entupiam
com as fraldas descartáveis. Mas ao vê-lo rir tudo
se compunha; Maria Rosa deitava-se no chão para o
ensinar a gatinhar e fazia de leão, de urso, de
coelho franzindo o focinho. Martinho não gostava
de brinquedos, tão deliciado ficava com a avó e
com as invenções dela, os teatros que ela armava,
as histórias que interpretava, as mágicas que lhe
saíam das mãos. Estava apaixonado por ela como
nunca mais esteve por ninguém. Se não a via,
encolerizava-se, atirava com tudo, batia em toda a
gente. Quando ela voltava da rua mostrava-se
ofendido e aquilo durava o dia todo.
- Fazes mal a essa criança - dizia Nabasco. Estava
resignado àquela felicidade, na Ronda da Noite
ocupava um lugar de fundo, escurecido entre
figurantes e o fulgor da festa em preparação.
Martinho tinha quinze anos quando ele morreu e
Paula veio para o enterro a fazer-se uma
carpideira. Martinho não apareceu e daí por diante
não se encontravam muito. Maria Rosa não abriu a
boca, tinha-se fechado uma porta que ela não
queria senão fechada.
- Agora estamos sós, tu e eu.
- Estamos bem assim - disse Martinho. Estava um
rapaz crescido, meio loiro, com uma barba que
despontava como um véu sobre a pele lisa. Não se
parecia com ninguém, fora buscar uns genes
ingleses não se sabe de que natureza porque não
havia bifes na família, como dizia o Nabasco, que
no tempo da guerra foragermanófilo. Bento Webster
Soares, que era empregado numa casa de vinhos,
punha-se muito formal; respirava por todos os
poros Sua Majestade Britânica e entristecia-se até
às lágrimas com os amores contrariados da
81
princesa Margarida. "O terrível sangue dos Tudor"
era uma maldição que ele sentia como se fosse sua.
Webster foi um dos preceptores de Martinho.
Podemos vê-lo na Ronda da Noite em terceiro plano
empunhando uma bandeira meio desfraldada, e é
notório que ele está em cima dum degrau, um quinto
ou sexto degrau duma escada.
Se repararmos, A Ronda da Noite ou a Companhia do
capitão Cocq, está disposta, senão amontoada em
cima dumas escadas; e, nesse aspecto, o problema
da atribuição de valores fica resolvido. Cada um
ascende até onde lhe é possível, quer seja por
mérito próprio ou condição social. Há os que não
podem ultrapassar o seu grau de obscuridade; ou os
que aspiram a valorizar-se mediante uma filiação
de partido; ou ainda os que ostentam uma insígnia
castrense, o casco, o fusil, o bastão e a faixa. O
rumo não estava ainda definido, muito menos o
percurso. Mas arvoravam todos já os títulos e as
missões, ensaiando as posições e posando para a
História que possivelmente ficaria muda a seu
respeito.
A casa do Torreão Vermelho foi a última residência
dos Nabasco. Se bem que o lugar se tivesse tornado
ruidoso demais, a propriedade resistia mesmo
depois de se ter declarado um incêndio que
arruinou uma parte, o lado oeste, se é que não
estou em erro. Para além dos muros parecia que
pouca coisa tinha sido alterada. Excepto uma certa
grandeza ociosa, propícia para os dias de Verão em
que se jantava no jardim e se comia lagosta fria
ou espargos frescos. Isso tinha acabado, não por
falta de dinheiro, mas porque a riqueza já não
estava a ser levada com frivolidade e merecia
maior discrição. Agora eram os suburbanos que iam
para a neve ou para os paraísos tropicais. Maria
Rosa mal se atrevia a sair de casa, e o único luxo
que não escondia era o do seu cabeleireiro.
82
Começava a preocupar-se com o casamento de
Martinho que fizera vinte e cinco anos. Não era um
rapaz como outro qualquer. Nunca ocupara um lugar
de chefia ou outro, e há duzentos anos que se
vivia de heranças sem contudo se ignorar o mundo e
as suas oportunidades. Um dos antigos tinha tido
um castelo em Aosta, outro morrera em Espanha
combatendo os vermelhos. Nesse tempo, um rapaz com
uma data de privilégios ia para a guerra de
Espanha como se fosse para a Legião Estrangeira.
Caía-se nesse buraco na areia por ladrão ou
fugitivo, também por amores mal parados. Às vezes
eles eram cumpridores da disciplina de quartel e
evitavam a promiscuidade, o que fazia com que se
tornassem invisíveis. Os Nabasco eram católicos
como se esperassem ser sagrados reis pelo próprio
Padre Eterno. Isto até uma certa data.
Quando se deu a revolução de Abril, Maria Rosa fez
as malas, enrolou a Ronda da Noite e meteu-a no
forro da cavalariça, na Ronda. Foi para o Brasil
passar umas férias que se anunciaram maiores do
que o costume. Não se deu com o calor, as comidas,
a praia e uma certa melancolia arrebatada que se
consumava no carnaval. O carnaval nunca lhe
pareceu uma coisa alegre mas uma fantasia de
colonos saudosos. Além do mais, Martinho deixou-a
no Rio e foi-se embora.
- Este rapaz merecia umas chicotadas - disse o
doutor Horácio, que o achou bem de saúde e sem
explicação para aquela atitude.
- Não é atitude. É que eu lá não fazia nada.
- E aqui o que fazes?
- Vivo, como disse Barras. Não dou na vista e
passo por parvo.
Quem era exactamente Martinho nunca foi
averiguado. Se fazia parte dalguma elite de
espionagem, isso parecia ridículo num rapaz que
não teve preparação de nenhuma espécie,
83
nem escolar, nem comunitária, nem mesmo
profissional. Era um órfão da opinião pública,
podia dizer-se que era um incolor com ideias. Não
desejaria por nada no mundo ser incluído naquela
massa de gente cujo descontentamento se cura com
uma liberdade moderada. Ou, pelo menos, é o melhor
meio de conservar uma chaga sem perigo de
infecção.
As vezes podia-se avaliar do seu comportamento uma
alma nobre e singular. Outras vezes parecia perto
de estar a pairar sobre todas as cabeças sem lhes
dar importância; mas a verdade é que Martinho
sabia que chega um tempo em que o crime mais
terrível pode ser cometido sem que cause muita
reprovação; porque ele germinou desde há muito no
coração das pessoas e só é preciso que ele se
conjugue com o competente discurso. Aconselhou à
avó que não se mexesse até que o uso da fortuna
tornasse o seu regresso mais confortável. O que
causou estranheza foi o facto de o Torreão
Vermelho não ter sido ocupado pela gente
necessitada dos bairros pobres. Todas as
revoluções têm o seu vandalismo, e esse evitou o
saque e coisa pior.
Ele era alguém protegido ou apenas escapava pelas
malhas do acaso que pode parecer justiça do poder?
Era um desconhecido, poucos o reconheceriam se
fosse acusado ou suspeito, de tal modo não tinha
identidade pública e não tinha hábitos nem registo
de facção, não alimentava querelas, não escrevia
nos jornais, não frequentava clubes e não se
demorava com as mulheres. Também não as evitava.
Saía com companhia e durante uma semana parecia
interessado. Depois tornava-se negligente ou
puritano, conforme lhe convinha. Chegou-se a
pensar que ele era homossexual, isto constou nas
famílias que tinham filhas para casar e de quem
Martinho ignorou as intenções. Ele era um bom
partido e, embora estivesse murado numa cripta que
era o Torreão
84
Vermelho, haviam de descobri-lo e chamar por ele.
Bento Webster não compreendia.
- Com perto de trinta anos ou te casas ou vão
achar-te um ingrato. Não te são concedidos tantos
prazeres frívolos, tanta ociosidade incorrigível,
sem pagares o teu tributo que é dar aos ricos o
que é dos ricos, o teu dinheiro, o teu sangue e a
tua vontade. Aprende com as coisas simples.
Maria Rosa espaçava as notícias, ou as cartas dela
não chegavam ao destino. As pequenas causas não
geravam grandes efeitos como antigamente se dizia,
e Martinho mudou de repente os seus hábitos e
tornou-se instável, mentindo de maneira compulsiva
sem que isso fosse reparado. A sua vida parecia
ser a dum inválido e ele movia-se à vontade porque
não constava senão como alguém efémero e de pouca
resistência.
Justamente o que ele tinha era uma resistência
mental extraordinária. Não se opunha a nada mas
fabricava constantemente uma espiral de
movimentos, de paixões, de violência sem
significado aparente, que servia para se defender,
desqualificando qualquer ataque antes de este se
produzir. O mundo estava preparado para a
carnificina e esta era introduzida no sistema de
todas as maneiras.
Maria Rosa apareceu um dia e, sem o beijar, sem
pousar as malas, disse:
- Se não te casas, caso-me eu. É preciso que
alguém faça alguma coisa. Que tal cultivar a nossa
horta?
CAPITULO III
O MUTANTE

O estado de Martinho foi considerado crítico. Em


reunião de família, a que faltava Paula e todos os
da casa dela, deliberou-se uma coisa: que Martinho
estava a caminho duma hipocondria. Não uma
depressão, que essa era uma tendência do povo
português, mas qualquer coisa relacionada com um
choque emocional. O que não parecia plausível,
porque Martinho não chegara a recear nada na vida
e quando a avó adoecia ele ia para a ilha de S.
Giulio, não saindo senão para voltar para casa.
Distribuía gratificações por tudo e por nada e
tinha um paquete às ordens para ir à farmácia
comprar-lhe pílulas e xaropes. Quanto a mulheres,
não se interessava, ainda que, ao sábado, ficasse
na borda do passeio a ver os recém-casados que
eram fotografados e chegava a ir beijar a noiva
como se fosse da família.
Como tinha tido uma febre tifóide em pequeno,
atribuíam-lhe o que parecia um estado de confusão
a uma infecção antiga. Mas Horácio Assis, o médico
que defendia Martinho de qualquer calúnia
incipiente, sobretudo no que tocasse a uma
possível impotência, mostrava-se contrário a esse
diagnóstico. Na sua opinião, tudo era resultado
duma educação de isolamento e falta de
competividade. Nada o afectava e a Revolução
parecia-lhe uma transição para outra via de
intolerância nervosa dum povo inteiro.
86
Porque Martinho era inteligente a ponto de
perturbar alguém se travasse relações com ele.
Webster considerava-o um mutante, uma espécie que
não se produzia em grande número e que não tinha
antecedentes na escala biológica. No entanto era,
ou parecia ser, uma espécie indefesa, o que nunca
sucedera em qualquer dos reinos da natureza.
O facto é que deixava as pessoas atónitas quando o
conheciam e quando o seu síndroma de adaptação se
revelava. Por exemplo, no tempo em que esteve
longe da avó e que os seus hábitos se alteraram,
tentou ter amigos e conviver mais. O que deu um
resultado funesto, porque eles, arrebatados pela
sua inteligência e pela expansão desmesurada da
sua malícia, que era uma forma de criatividade,
sofreram as consequências. Entraram num delírio
que, nalguns casos, não foi possível debelar e que
acabou por os perder. A inflação sexual acentuou-
se neles e declarou-se uma reacção que os levou à
morte prematura. Não em todos, mas alguns.
Maria Rosa achava que o casamento podia trazer a
Martinho uma cura qualquer, posto que reconhecia
nele um caso de hipertrofia cerebral. Não fora
moldado por estudos académicos nem se sujeitara a
uma educação convencional. Como Mozart, desde
tenra idade, esteve livre para usar das suas
tendências, o que revelou o seu génio em plenitude
e sempre dentro dum magma maldoso.
Como é que o casamento podia ser benéfico para
Martinho não é muito fácil de entender ou é de
todo impreciso. O papel da espécie e o factor
social influíam seguramente na personalidade de
Martinho; e decerto havia combinações genéticas
que actuavam nele mais do que a educação. Mas
Maria Rosa era peremptória: Martinho devia casar-
se. O seu estado revelava uma falta de disciplina
mental que podia ser pelo menos atenuado com a
influência duma mulher. Não
87
uma mulher pervertida pela cultura, mas alguém
muito simples com estrutura mental e facilmente
aceite.
Durante um par de anos Maria Rosa não viu quem
servisse às suas intenções; tanto mais que o
doutor Horácio a perseguia com o seu parecer que
classificava Martinho como um hipomaníaco bem
caracterizado pela euforia das ideias. Tão
depressa era espirituoso e meigo, como se mostrava
agressivo e sarcástico. Enfim, um tipo humano em
que caberia uma multidão de personagens de ficção.
Com os seus olhinhos vivos por detrás dos óculos
riscados pelo uso, o doutor aplicava a sua teoria,
não sem o prazer de magoar Maria Rosa. Sempre a
desejara e, por timidez e falta de decisão, nunca
se declarara; sendo ela já viúva e ainda
apetecível na sua beleza, o doutor tanto pesou as
suas intenções que deixou passar a ocasião de as
formular por palavras. Maria Rosa guardou azedume
daquele desencontro, tanto mais, como dizia, ter
um médico em casa era uma aspiração antiga do seu
berço provinciano. Gostava dele e dos seus tiques
meio tolos como o de se apresentar dizendo:
- Horácio Assis. Horácio, como Nelson.
Ela ria-se sempre, o que o fazia feliz. Fazer
feliz um homem era um princípio que destronava o
conflito. Dava-lhe razão, o que é outro princípio
de absolvição. Só que ao despromover o conflito
preparava-se o ajuste de contas que é afinal a
relação mais usada entre o homem e a mulher. O
conflito é útil como guarda da crise conjugal e
mediador entre os dois sexos.
- Quero para o meu neto uma rapariga dócil e que
cumpra com as vontades dele - disse Maria Rosa,
fazendo saltar nos dedos as pérolas do seu famoso
colar. Quando se sentia deprimida punha o colar e
sentia-se mais animada. Uma rapariga dócil e
obediente não ia fazer feliz Martinho. Era um
88
mutante, e por isso não correspondia a nenhuma
espécie de terapia, tanto mais que se instalara o
erro quanto às capacidades humanas para a
felicidade. Os homens têm uma preparação inata
para a agressão como exercício de autodefesa. Se
esta lhes é limitada, aparece a violência como
frustração. As agressões sob todas as formas:
violação, espancamento, abuso sexual invadem o
campo social quando se exerce autoridade sobre a
forma como ser feliz. As pessoas não pretendem ser
felizes mas ser criadoras, o que mais se refere ao
homem do que à mulher.
Em dada altura, quando já estava em crise o
ajustamento doméstico e as raparigas faziam uma
vida de vadiagem com atenuantes, pois eram mais
cultas e mais capazes de gerir a sua solidão,
apareceu o que Maria Rosa tanto ambicionava, uma
noiva para Martinho. A verdade é que não tinha
antecedentes muito recomendáveis; ela, e uma irmã,
eram filhas dum casal desavindo e sempre em vias
de reconciliação que logo resultava em pior
agravamento das relações. As crianças presenciavam
as cenas mais degradantes, e isso, longe de as
assustar, dava-lhes uma noção de calor humano que
o amor mais terno não poderia igualar. Era
frequente os filhos de casais que se maltratam, ou
até que se excitam com as sevícias em crianças,
preferirem esse abrigo doloroso à segurança das
instituições para onde eram levadas. Não é a
desventura de Oliver Twist que faz dele um pequeno
herói, mas sim a sua resistência ao mal e ao
treino das suas paixões perante a ordem inevitável
do mundo real.
Ao voltar do Brasil, Maria Rosa deu de cara com a
casa saqueada, o papel da parede arrancado, sem
que houvesse explicação para isso, e todos os
electrodomésticos avariados. Os quadros e as peças
de valor tinham sido de antemão negociados com
antiquários. Dez anos ou mais depois, ainda Maria
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Rosa encontrava um objecto que fora dela, entre o
recheio duma loja de bric-à-brac. Primeiro por
preço irrisório, depois já mais conforme o valor
do mercado. Os seus casacos de leopardo e de vison
tiveram compradores imediatos. Mas o de chinchila
andou muito tempo ao desbarato porque não era
conhecida a sua cotação. Uma sociedade de novos-
ricos emergia dos escombros das tentativas para
chegar à liberdade. O que restava, no melhor dos
casos, eram os Robinsons da liberdade. A ideia de
que era preciso vencer ou abandonar a partida,
exigia forças sobre-humanas a um povo habituado à
sensibilidade caseira ou ao discurso intelectual.
Os intelectuais julgavam ir ao leme dos
acontecimentos quando eram remadores unicamente.
Em política, na melhor das hipóteses, estava-se na
leitura de Gramsci. A linguagem de Gramsci, tão
shakespeariana algumas vezes, seduz os políticos
cultos ou diremos "cultíssimos". O que faz com que
uma revolução seja um projecto e não uma vingança,
é a apreciação dos actos políticos como se fossem
actos históricos.
íamos naquilo que dissemos da noiva de Martinho:
Maria Rosa, porque soube da tragédia que lhe
manchou a vida (o pai matou a mulher num bacanal
de fúria) recolheu em casa a criança. Não tinha
mais de doze anos e era duma beleza casta e com
qualquer coisa de falsa erótica. Quando é falso o
erotismo? Quando se distrai com a festa da
felicidade.
Uma figura completamente falsa na Ronda da Noite é
a da pequena Saskia no meio da gente do capitão
Cocq. Não tem mais de cinco anos, era assim que
Rembrandt a via com o seu sentimento enternecido
mas que disfarça, se não anula, uma face tenebrosa
da sua humanidade. Quanto mais ele reduz a
estatura de Saskia e a faz comer o cogumelo da
Alice do País das Maravilhas, mais se liberta nela
o impulso da
90
infelicidade. O sucesso e a glória tinham o
sentido de o tornar insatisfeito?
A rapariguinha que Maria Rosa trouxe para casa e
não tinha nessa altura mais de doze anos, era
filha duma mulher a quem chamavam a Sopa-de-Massa,
mas de nome próprio era Estrela. A filha era
Judite, como uma tia que tinha, aleijada de
nascença, com uma corcunda grande que parecia uma
trouxa que troussesse às costas. A menina
envergonhava-se de ser Judite porque se lembrava
do enorme aleijão da tia. Quando foi para casa de
Maria Rosa disse que se chamava Patrícia, que
estava muito na moda. Elisa, a criada de
confiança, que pertencia à dinastia dos Cunhas,
logo que a viu augurou mal dela.
- Tem olhos de vaca, grandes demais - disse. Para
ela os grandes olhos pintados, eram olhos de vaca.
Mas Judite era uma criança bastante vulgar que não
se parecia em nada com o que depois foi. Elisa
costumava dizer que mulher feia em criança pode
ficar bonita e depois recupera a fealdade quando
for velha. "O que o berço dá, a tumba o leva."
No caso de Judite isso dava para arrepiar. A mãe
fora esfaqueada, metida num cesto com as pernas
partidas e atirada na linha do comboio, para
parecer que fora trucidada. O pai, o assassino,
estava a cumprir pena máxima e era, como detido,
exemplar. Era um homem alto e de modos graves.
Falava pouco e comia de cabeça baixa, sem mostrar
emoção alguma. Amava as filhas e não as esquecia.
Judite, aos poucos, foi perdendo a imagem do pai e
dedicou-se a Maria Rosa sem perder a sua posição
de afilhada ou acompanhante que lhe dava
credibilidade, senão merecimento. Maria Rosa
estava preparada para surpresas como a de ver o
detido, uma vez cumprida a pena ou meio perdoada,
chegar para pedir a custódia da filha. Quanto mais
ela estivesse valorizada pela educação e elevada
pelos hábitos e redimida
91
pelos gostos, mais ele havia de fazer pressão para
a levar ou lhe pôr um preço. Assim, Maria Rosa não
tirou Judite da servidão nem lhe deu esperanças de
coisa melhor. Todavia, o pai com o tempo deixou de
ser um estorvo ou uma ameaça. Maria Rosa passou a
dar mais atenção à criança que, de resto, estava
adaptada à sua posição subalterna. Era feliz com a
rotina da casa, aprendera tudo o que é preciso
para manter em ordem a barca da família e para
fazer feliz um marido que gostasse de comer bem e
a horas. A certa altura, vendo Judite a costurar à
luz duma lâmpada que lhe iluminava os cabelos,
Maria Rosa apercebeu-se de como ela era bonita,
distraída como estava no seu trabalho. Tinha uns
olhos dum azul raiado de preto, muito estranhos, e
parecia uma candidata a um harém pela raridade do
seu tipo. Maria Rosa disse a Webster:
- Nunca tinha reparado nela como mulher. É uma boa
figura.
- É. Daqui a pouco tem-na aí a namorar com o filho
dum empreiteiro que tenha um carro vermelho.
- Judite não sabe dessas coisas. E muito recatada
e simples. Veja como se penteia que parece uma
virgem de Murillo.
- Vejo, vejo. Mas isso não impede.
- Não impede o quê?
- Que lhe dê alguma surpresa. Com as raparigas
novas nunca se sabe. Mudam como o vento.
- O principal é saber de que lado está o vento -
Maria Rosa pôs-se a contemplar o pé, que estendeu
para diante como se procurasse o calor do lume.
Era um gesto que lhe ficara do tempo em que o
fogão de sala era ainda refúgio de Inverno e
reflectia um conforto perdido, com as badaladas do
relógio e o ligeiro tinir da loiça quando a mesa
era posta para jantar. Nabasco levantava a cabeça
quando entre portas
92
via passar a branca nesga dum avental. Era ainda o
sedutor caseiro, com olho aceso para as criadas
novas, que o desfrutavam, tendo, no entanto, uns
sonhos parecidos com um amor tranquilo com os
filhos bem tratados, almoçando fibras e iogurtes.
"Bem tratados" era como se dizia dum animal
doméstico. Ela estava a moldar aquela rapariga -
para quê? Não tinha direitos sobre ela, Judite
podia abalar com as suas coisas, um colar de
pérolas de água doce, um relógio de pulso com
correia de crocodilo, alguma roupa de pouco preço.
As gavetas com o melhor da sua lingerie, as suas
caxemiras, Maria Rosa tinha-as fechadas à chave.
"Para que, não vendo, não cobice" - dizia, até
para serenar Elisa que tinha dentro dela uma
inveja dos diabos. Era como um tumor a crescer, a
palpitar, a segregar líquidos babosos, sujos,
fatais. A sua velhice, a de Elisa, era incómoda.
Queixava-se muito, suspirava alto, tinha sempre ao
lume um púcaro com chás, com café requentado, com
tudo o que lhe parecesse alimentar-lhe o despeito.
Porque cada vez mais estava despeitada por não ter
nada senão uma reforma que não lhe dava senão para
remédios e para ir à terra no Natal. O ouro que
possuía fora todo prenda dos patrões. Pagavam-lhe
a dentadura, recebiam-lhe em casa a família, em
férias ou para fazer análises ou ir até às festas
populares. Depois acabou tudo. Já não havia
jantares, a casa grande com dez janelas de
frontaria e a varanda ao meio, foi abandonada há
que anos! As Carlotas, as Beatrizes, as Carolinas,
tinham desaparecido, e com elas os bailes de
máscaras com as "Marias Antonietas" com chapéus de
plumas e cachos à inglesa. As reuniões dançantes,
os casinos de Verão, as "praias de bolso", como se
dizia, porque eram íntimas, em família, tudo isso
desapareceu. Emília estava lá, conhecia toda a
gente, recebia gratificações e um corte para uma
blusa. Do cimo da escada que dava para o Torreão
Vermelho,
93
estando já acamada, chamava Maria Rosa. Fazia-a
subir dez vezes a escada - e para quê? Para lhe
perguntar:
- Aquela Vitorinha que cantava tão bem que parecia
um rouxinol? Já morreu? Já morreu?
- Sei lá quem era a Vitorinha! Dorme... dorme...
- Aquela que vivia não sei onde e dizia versos.
- Não é do meu tempo.
Bem sabia que não era do tempo de Maria Rosa, nem
dela Elisa. Mas gostava de humilhar as mulheres
todas, ricas e pobres, que lhe traziam saudades da
vida de paixões e de pecados, dos amantes e dos
amigos, dos patrões, dos homens de balcão, de
todos os que amara de maneira libidinosa ou
maternal. Os conhecimentos que ela tinha de sexo
enchiam uma enciclopédia. Era uma doutora,
iniciava nessa disciplina as meninas da casa que a
ouviam, meio por brincadeira mas de orelha afitada
como os cães de caça. Como Elisa era mais velha e
as suas recordações se tornavam charadas para
Maria Rosa, esta teve para com ela alguma
paciência. Era difícil falar com os velhos, não se
entendia parte do que eles diziam. Os lugares
tinham mudado, as casas tinham sido demolidas.
Quem falava agora das "praias de bolso"? A da
Granja, a do Piolho, a do Molhe? Todos os anos
havia um balde novo e uma pá para recolher a areia
molhada e fazer bolos também moldados em forma de
peixe ou de estrela. E o fato de banho novo, como
a gabardina nova na entrada das aulas, despertavam
uma calorosa expectativa! Sempre havia alguém que
causava maior surpresa, mais entendido na moda. E
Maria Rosa voltava da praia amuada, ficava calada
à mesa.
- Que tens, Rosi?
- Não gosto que me chamem Rosi. Todos já sabem.
- Está bem, Rosi. Não te zangues, Rosi.
94
Era o irmão, todo bronzeado, com uma boca de
rapariga e dentes largos e devoradores. Ele tinha
sorte, todos o amavam e queriam fazer parte do seu
bando. Não era tímido com as raparigas e sabia-se
que tinha encontros com mulheres mais velhas com
as quais o amor era divertido. Usava sobretudo à
americana e era o excêntrico da família. Depois,
foi o primeiro a mostrar-se zelador dos costumes e
quando lhe lembravam as passadas inconveniências
fingia-se esquecido. Era carinhoso com Maria Rosa
e ela teve muita pena quando ele morreu. Morreu de
quê? Estava vivo e bem disposto e, de repente
desapareceu; não foi cremado e lançado no jardim,
como ele queria. Havia ainda pirilampos no jardim.
Maria Rosa gostava de pensar que um deles era o
irmão, coitadinho.
No fim de contas, o que era o amor das pessoas
senão aquela cena do trapézio voador, dando as
mãos, a fazer saltos mortais com a rede, sem a
rede, e no fim, se é que havia fim, a fazer vénias
de ginastas e a sumir por detrás dos reposteiros?
E os palhaços rematavam, a fingir que eram
ridículos, mas tristes, zangados, com vontade de
deitar o fogo à barraca.
- Rosi, porque estás tão calada, Rosi?
- E tu que tens com isso?
Pensando bem o irmão era quem dava as ideias, quem
inventava as conversas. Mas, assim como veio a
este mundo, assim partiu.
Maria Rosa pensou que se Judite crescesse mais um
palmo se tornava numa mulher muito interessante.
Até podia passar por alguém que pertencesse à
realeza e calhasse de usar uma tiara na cabeça.
- Por esta é que eu não esperava - disse Maria
Rosa. Primeiro disse isto ao seu cão, que
desenvolvera uma inteligência humana e percebia
muito do que se lhe dizia. Mas
95
depois teve de se aconselhar com o doutor Horácio.
- Não pensava que a pequena se pusesse assim.
Assim, era como um jardim de Maio. Tudo nela
brilhava e os seus quinze anos pareciam as pedras
dum rio onde a água passa como prata azulada. O
tom de pele de Judite era azul quando lhe dava a
luz do poente. O doutor Horácio disse que era um
tom de pérola.
- Qualquer dia o meu neto vai reparar na criatura.
- Se não reparasse é que era para estranhar.
Porque lhe chama criatura?
- É como se dizia em casa dos meus pais. Alguém
que está pronta para levantar vôo, entre a rola
brava e a pega. Os rapazes olham para ela quando
sobe a escada, que é a melhor maneira de apreciar
uma mulher. Porquê? Sei lá porquê?! O talhe, a
perna, a anca que balança como um barco. Digo-lhe
que há muitas que mostram o que são, o que querem
e o que vão conseguir, só com subir uma escada.
O doutor Horácio pensou que Maria Rosa, velha e
com artrite, ainda comovia, ainda era suculenta
como sopas de chocolate.
- Já não se sobem assim tantas escadas. Há
elevadores.
- Já não se podem conhecer as mulheres pelo andar.
Elas correm, atropelam toda a gente com as
mochilas, saltam dos passeios com os braços
abertos como se fizessem patinagem. - Fez uma
pausa. - Não sei quem na família foi corredor de
patins no Brasil. Eu encontrei no Brasil uma data
de parentes mas não se pareciam nada para o nosso
lado. Tinham raça aimoré ou então japonesa, é
parecida. A criatura vem trazer o chá. Repare bem
nela.
Quando entrou Judite, depois de bater duas vezes
com a ponta do dedo, o que era talvez a maneira de
se distinguir duma criada, o doutor pôs-se a olhar
para ela, esquecido dele
96
próprio. Não via Judite desde o Verão, estava-se
perto do Natal. Era extraordinário como ela se
modificara. Não era ela, era outra pessoa, segura
de si, e isto criava uma indiferença sedutora à
sua volta. Será que essa respiração profunda,
vinda das arcadas do peito como um jorro de lava,
a conduzia a uma passagem até aí ignorada, a
passagem para a liberdade? Teve pena dela junto
com uma espécie de inveja. Como homem, aquele
caminho era-lhe interdito. Há muito que depusera o
seu preço aos pés de neve da liberdade. Seguiu-a
com os olhos; mas a estatura dela ondulava na
linha do fumo que o cachimbo do doutor, belo homem
no seu tempo, agora desfigurado pelo abuso do
álcool ou (quem sabe?) por alguma droga cada vez
mais ineficaz, levantava no ar onde se tinha
queimado açúcar. Aquele cheiro da sua infância
perturbou-o como se alguém espiasse os seus
segredos nocturnos.
- A minha mãe queimava açúcar no quarto quando
estávamos doentes - disse, por dizer, como se
recuperasse a conversa da distância onde a
deixara.
- Como se fez tarde! Não vi o tempo passar.
Maria Rosa estava a despedi-lo. O doutor reviu
todo o percurso feito com ela, tudo em pormenor,
os vestidos que ela usava e que ela escolhia
minuciosamente antes de se deitar; para no outro
dia não ter desculpa para a demora no quarto - que
acabava sempre por acontecer. Não saía do quarto
sem desmanchar a cama como a cama dum animal morto
e que não voltaria mais a servir-se dela. Sacudia
as almofadas cujas penas escapavam sempre e ela
segurava com o dedo molhado em saliva. E,
sobretudo, não aparecia despenteada nem ao gato
que a esperava atrás da porta para ir comer o seu
prato de biscoito. Era um gato com uma genealogia
suspeita, que bufava a desconhecidos e tinha uma
ideia muito segura do que era uma poltrona ou uma
cadeira.
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Havia muito tempo que Maria Rosa sujeitava Judite
a um exame severo. Disse, mexendo a sua xícara de
café, não demasiado para que o açúcar não
derretesse todo e no fundo ficasse uma pequena
crosta como um rebuçado que ela comia com delícia:
- O que temos aqui? Uma rapariga pouco
inteligente, mas Deus sabe o trabalho que nos pode
dar uma rapariga pouco inteligente. Ela sabe muito
bem o que quer da cinta para baixo, todas as
mulheres o sabem. Mas na área do cólon começam as
coisas mais sérias.
Bento Webster estava nesse dia particularmente
feliz. Tinha bebido o seu Porto deixando-o demorar
na boca até sentir um ligeiro ranço nos dentes.
Era um apreciador de Porto, nascera rodeado desse
aroma quente e à sua mesa, corria, depois de
jantar, o frasco de cristal que o dono da casa
passava pela esquerda até que o último conviva se
servia. A mãe de Webster, uma senhora alta, com um
alfinete de corais preso na blusa, levantava-se e
ia guardar o vinho à chave. Não voltava a sentar-
se; os homens ficavam sós. Iam fumar para a sala
ao lado e caíam numa modorra entrecortada de idas
ao water-closet. Juntos, os comensais não eram
agradáveis, mas cada um por si não deixava de ter
qualquer graça e particularidade. Bento ouvia-os
contar anedotas e falar de negócios, isto quando
já tinha dezoito anos. Saía para a varanda e
encostava-se nela. Via os vultos que se moviam a
passear na sala. Andavam quilómetros sem deixar a
área da alcatifa cinzenta com algumas nódoas.
Nas paredes, quadros com paisagens e mares em
fúria. Quando estava descontente e se zangava com
um amigo ou com a namorada, ia ao paredão de Leça
de carro, até que as ondas lhe lavavam os vidros.
Era uma sensação forte, de perigo íntimo, que ele
não desejava partilhar com ninguém.
98
Não amava a noiva, casou-se para cumprir com uma
obrigação social. Era bonita, mas casaria na mesma
se fosse aleijada, até a respeitaria mais porque a
infelicidade o comovia profundamente. E escrevia
versos.
Aos quarenta anos, ou pouco menos, apaixonou-se
por Maria Rosa. As outras mulheres punham-na de
parte tanto quanto podiam. Era mais culta, lia as
páginas literárias e não usava chapéu, o que era
um pouco subversivo. Uma fitinha de veludo
castanho coroava o seu cabelo penteado à Diana
Durbin. E os rapazes, com medo de desagradar a
quem enumeravam como casáveis, não a abordavam
francamente. Maria Rosa teve sempre uma fama que
não era imaculada. Diziam que ia com mulheres para
a neve ou que se deitava com homens ricos que
gostavam de privar com parceiras duma tarde da
alta sociedade. Nada disto era verdade, mas um
pequeno indício conduz a uma prova sonhada.
Já tinha mais de sessenta anos e Bento Webster
amava-a com o consentimento da mulher dele que era
fleumática como todas as mulheres fiéis.
Permitira-lhe sempre amores mais ou menos
platónicos com mulheres casadas. Elas têm a
segurança dum preservativo e não havia o perigo de
bastardias. Era ela quem o mandava sair para os
serões de Maria Rosa Nabasco. As vezes um aluno do
Conservatório ia lá tocar piano. O Porto gosta do
fora de moda como se gosta duma mésaliance, ou
seja, duma inconveniência com humor.
Depois de viúva, Maria Rosa continuou a receber os
amigos, a quem dispensava cuidados que a
inteligência lhe ditava e que eram quase sempre
relacionados com a saúde.
- Não me diga que a sua tosse voltou. Não faz nada
contra isso?
Ele sentia-se querido, amimado, mais do que se a
mulher lhe fizesse uma cena de ciúmes. As grandes
prostitutas são
99
procuradas pela sua perfeita cópia do maternal.
Mas as grandes amantes conhecem que a alma do
homem está no medo da morte. O pulso tem mais
poder do que o coração.
A Elisa não escapava nada. Chamava fingida a Maria
Rosa, fazia trejeitos nas suas costas. Conhecer-se
como inferior, é um reino. Era ela quem odiava a
Ronda da Noite, pelas dimensões, as personagens, a
cena de que não percebia nada, a mistura de
mosqueteiros, arcabuzeiros, brilho de sedas e um
esgueirar de pessoas que não era possível saber o
que fazem, o que querem, que utilidade têm. Às
vezes passava-lhes o aspirador com um pouco de
maldade, como se quisesse levar-lhes os bigodes,
as faixas, os títulos e os bastões de comando ou
os piquetes de guerra.
- Cuidado, nem sabes o que fazes. Isso vale uma
fortuna - prevenia Maria Rosa.
- Não se aflija! - e para as suas entranhas Elisa
dizia: "Um dia de chuva em Maio na minha terra
vale mais do que isto".
Ela era doutros tempos, outras memórias. Havia
sempre algo para contar à vizinha, grandes
queixas, lamúrias, como se exibisse valores. O
povo português lastima-se para ser lastimado, que
é sempre prenúncio de lucro. As pessoas unem-se
pela clandestinidade que há em ter sucesso. É-se
feliz em enganar, porque no engano há sempre um
fio de expectativa que nos favorece.
Quando Martinho se tornou homem, os amigos da casa
viram-se lesados na intimidade que gozavam junto
de Maria Rosa. Ele passou a ocupar a casa por
inteiro. Já não era só nos jantares com os
Brandões e os Pestanas e algum inglês de pronúncia
tortuosa, mas também quando o incluíam nas
conversas propositadamente sérias e instrutivas.
Martinho desconfiava que entre eles as conversas
não eram tão solenes. Riam-se
100
como doidos e por pouco se atiravam das janelas de
tanto rir e inventar piadas. No fim de contas,
Martinho aprendera a ser sisudo, mas o que
encontrava eram homens que não perdiam uma ocasião
de se divertir. Parecia ser melhor gozar a
companhia uns dos outros e rir com estrondo, do
que estar na companhia de mulheres e dar uma boa
imagem de cavalheiros.
- Avó, eles não são recomendáveis, ao que parece.
- Não te fies no que parece - disse ela. - São
muito benquistos.
Benquisto era uma coisa inseparável de qualquer
deformidade. Ter os pés chatos ou orelhas grandes
demais. Martinho via-se ao espelho do quarto de
banho que dava sobre os quintais vizinhos, o
quarto de banho da avó com uma banheira onde cabia
um caiaque, e desanimava. Tinha a cara cheia de
sabão mas a barba mal despontava. "Serei
benquisto" - pensava. Tinha-se feito um rapaz que
felizmente não era bonito por aí além e que sabia
entreter as senhoras velhas, dando-lhes a mão para
descerem um degrau. Já não se acendia o cigarro a
uma mulher, mas ele fazia-o, com surpresa de toda
a gente. "Donde vem este? Não deve saber nada de
mulheres, só de matemática." Mas ele era um
mutante; se fazia coisas antiquadas era porque
guardava nos labirintos do cérebro coisas que
executava quase de forma automática.
No primeiro momento (ofício dum mutante) Martinho
exercia uma impressão de ser um inimigo. Era um
inimigo mas oculto por mais de cem artifícios e
simpatias. Descreviam-no como alguém amável e
quase distraído ao ponto de se poder falar de tudo
diante dele, como se ele não estivesse presente.
Nunca tinha pensado em casar mas, sem hesitação,
aceitou a proposta da avó a esse respeito que era
casar com Judite, e ponto final.
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- Ponto final, agrada-me. -Judite não te agrada?
- Ah, não! Não é isso. É uma perfeição, mas que é
que eu faço com uma perfeição? As raparigas
perfeitas são tremendamente banais.
- Sabes porque é que te falo de Judite? Porque é
própria para um rapaz puro como tu.
- Eu não sou puro, avó. Um rapaz puro é um cínico
e eu não sou cínico. Judite está bem, já disse.
- Estás a evitar-me? Conheço-te; estás a evitar-
me.
- Não estou nada. - Ele tirou do bolso uma pequena
lima e pôs-se a corrigir o oval duma unha. -
Desculpe, avó. Parti-a não sei como. Diz que me
conhece. É bom ter alguém que nos conheça.
O feitio discreto e amável que ele tinha era um
facto, estava em parte relacionado com a vida
solitária que levara. Não lhe proporcionaram
contactos com outros rapazes da sua idade nos
estudos, onde tudo começa: brigas e afectos,
aspirações e desistências. Martinho aprendeu a não
lutar com pequenas opções, reservando-se para as
grandes quando fosse o caso. Muitas das suas
forças eram poupadas e no seu espírito acumulava
razões para vencer. Mas, vencer o quê? Onde
estavam os inimigos se não os provocava? Onde
estavam os caminhos se não os abria? O mundo era
grande e ele tinha de começar por algum lado.
Obedecer parecia-lhe uma forma de proteger-se da
imaginação, que era uma das fraquezas da alma. -
Esta criança não tem imaginação. Por isso é tão
bom aluno - diziam os professores. Era verdade.
Tudo o que fazia era automático e lógico e assim
atingia uma nota sempre alta em matemática. A
terrível mat. em que os portugueses se quebravam
como contra um rochedo. Mas não lhes
proporcionavam tantos encantos da imaginação? Não
estavam eles,
102
como o criado que serve à mesa, de que Kant fala,
tendo na cabeça algo de grave e que o persegue,
como um eco duma música de baile?
Martinho não se distraía, ainda que usasse de
ocupações afins, como a leitura, que lhe
proporcionava o equilíbrio necessário para
conservar as forças da mente. O casamento com
Judite parecia-lhe adequado porque fazia parte do
jogo com coisas levianas sem contudo alterarem o
seu estado de atenção profunda. As mulheres reagem
contra essa preocupação do homem, que não sabem em
que consiste mas que as erradica do colóquio com
ele próprio. O colóquio prejudica a relação. Todos
os desequilíbrios entre o homem e a mulher estão
acentuados ou provêm inteiramente dessa presunção
do diálogo que não protege as afinidades, só as
cultiva erradamente.
Judite tomou como uma felicidade o casamento com
Martinho. Sabia que a intimidade com ele não seria
possível, nem ela a desejava. No fundo estava
preparada para o que viesse, inclusivamente ser
abandonada por ele. Todas as mulheres são, de
antemão, abandonadas. Quando não o reconhecem
entram numa delirante função de pensar contra si
próprias.
Maria Rosa teve a inteligência de a criar para a
companhia dum mutante. Judite nunca entraria na
área proibida que era a do homem em mudança de
pele, como a serpente. "A serpente que não muda de
pele, morre." Isto é sabido, só que a mudança é
vista como o desesperado objectivo contrário:
ficar no estado em que se encontra, de prazer e de
felicidade. Para isso, a melhor proposta é mudar
de mulher, o que, nalguns casos e se a fortuna o
proporciona, equivale a uma repetição de situações
forçadamente delituosas. No delito o homem simula
a intensidade da paixão.
103
Os primeiros tempos para o casal foram de
entendimento quase absoluto. Mantinham-se os
hábitos de celibatários com o acréscimo duma regra
nova: o direito do mais débil que correspondia a
uma ordem dos Cavaleiros de Malta ou algo
parecido.
- O poder está no homem - disse o doutor Horácio.
Nunca perdia de vista este princípio da
inteligência entre todas as coisas, e às vezes até
abusava dela no tempo em que tinha consultório e
operava nos hospitais. Era para ele profundamente
agradável (se há outra palavra, não me ocorre) um
doente deitado numa cama e à sua mercê. Era um
ritual o segredo quanto ao verdadeiro estado do
enfermo, e não chegava a ter consciência disso. Em
mente, simulava quase a violação com a
disponibilidade dum corpo e as suas diferentes e
contrárias formas do prazer. Não lhe eram
desconhecidos os territórios que o rei da Pérsia
procurava, onde um novo prazer fosse descoberto.
Evidentemente não se dava conta da situação, mas
muitas curas obtivera com a cooperação sensual dos
seus pacientes; como se atingissem ambos o cerne
do milagre.
Maria Rosa sempre teve para com o doutor Horácio
Assis uma atitude maliciosa. Punha o seu colar de
pérolas e esperava-o deitada na cama, não como
doente mas como amante. Não trocavam nenhuma
palavra licenciosa, mas subentendiam todas as
indecências da alma que sempre acompanham as do
corpo.
Quando Maria Rosa fez a sua menopausa (período de
humilhação e penitência que o homem não deixa
escapar) criou-se um ambiente de perfeita não-
beligerância entre ela e o doutor Horácio.
- Você não fala nisso e eu não deixo de me rir -
disse ela. O doutor Horácio percebeu os danos que
resultariam
104
para ele se Maria Rosa lhe recusasse esse alimento
vital do riso. Evitou toda a alusão a um luto da
espécie, fechada a mandíbula uterina, e tudo
passou sem carnificina de maior. Dir-se-ia até que
Maria Rosa descobriu aquilo que o rei persa
procurava, instituindo um prémio para quem lhe
trouxesse a novidade dum prazer desconhecido: o do
riso mais deleitoso e informativo quanto à
alegria. Talvez a verdadeira mutante fosse ela e
não Martinho. Mas era fora de dúvida que Martinho
era uma criação de Maria Rosa, ou ela activara
nele um dom que talvez todas as pessoas tivessem.
Um dom de euforia miudinha que não se fazia
entender à primeira vista; nem à segunda, porque
passava despercebida a todos que têm por virtude
própria tudo o que lhes acontece.
Desde criança que Martinho se apercebeu duma força
maliciosa mas sublime que tinha sobre as
criaturas, pessoas ou animais e até plantas.
Quando se tratava do jardim da Casa do Cão,
prodigioso jardim onde cresciam como árvores as
gardénias, não era visível qualquer poder agindo
sobre ele. Mas desde que Maria Rosa transplantou o
jardim para a sala de estar e até as varandas
adaptadas a estufas, as coisas começaram a
acontecer. Judite ficou grávida logo no primeiro
mês de casada, mas abortou espontaneamente.
Martinho disselhe que não era saudável passar
muito tempo junto das plantas; o ar era absorvido
por elas até ao ponto de se tornar malsão. Mas
Judite não tomou aquilo a sério. Todavia, às
vezes, tinha a impressão de que as plantas a
espiavam. Mudavam de posição, não todas, mas
algumas, e pareciam ter expressões e até trocar
palavras inaudíveis. Não falou disso ao marido
senão quando teve o segundo aborto.
- Tens razão. É melhor acabar com aquilo - disse.
Estava muito cansada, perdera muito sangue e o
doutor
105
Horácio pediu para ser vista por uma junta de
especialistas. O que apuraram não era muito
animador.
- Não tem nenhuma malformação mas tem, no entanto,
qualquer coisa que não nos agrada. Há casos na
família de que nos possam pôr ao corrente?
Maria Rosa não sabia nada sobre o quadro clínico
da família de Judite; excepto do crime do pai, de
resto um homem sem antecedentes e que ia morrer de
pneumonia, como se disse. A mãe era uma mulher
robusta, alta, com a natureza da loira geniosa,
com tendência para a bebida. De resto a fúria
ciumenta dela tinha muito dum apetite que não era
sexual. Maria Rosa não sabia mais nada.
- Nada de que eu me lembre. Foi criada cá em casa
e foi sempre regular em coisas de mulher.
- Que coisas? - disse um dos médicos, com uma
ponta de cinismo. E Maria Rosa tomou a peito
aquele tom, não disse mais nada.
Passaram os primeiros alarmes e Judite recobrou a
saúde. Tornou-se de repente muito garrida, saía
mais e passava o tempo em compras e nos cinemas.
Tinha o pressentimento de que estava ameaçada e
que tudo tinha a ver com o seu casamento. Gostava
de Martinho, mas não se sentia bem ao lado dele.
Recusava-se a acompanhá-lo e achava sempre
pretextos para se afastar dele. Talvez acontecesse
o mesmo com todos e os filhos serviam para
estabelecer as distâncias entre os casados. O
exemplo estava bem perto pois Maria Rosa dizia que
Paula lhe servia de escudo contra uma intimidade
nupcial.
- Nupcial, digo bem. Mantinha-me dentro do
contrato mas fora da satisfação. No casamento não
devemos estar satisfeitas para não ficar saciadas
- dizia Maria Rosa.
106
Ela lembrava-se de se recusar a viajar com o
marido, não encontrava prazer em ir para hotéis
luxuosos onde tudo lhe era estranho, a começar
pelos espelhos. Precisava de dois dias, pelo
menos, para ser adoptada pelos espelhos e para
fazer funcionar as torneiras, ou para decorar os
números de serviço nos telefones. Não gostava de
pequenas surpresas, de escolher roupa de viagem,
de emalar conjuntos a dizer, que se revelavam
sempre desirmanados.
- Agora não posso sair. Paula precisa de mim.
- Paula tem quem trate dela. Com doze anos sabe
muito bem ficar só - dizia o Nabasco, meio
enfadado. Habituou-se a não ter a companhia de
Maria Rosa fora de casa que até se esquecia dela
quando a levava. Mas nada disso era importante nas
suas vidas. Ela não teria amantes porque prezava
muito o segredo do corpo e ele, se deparava com
alguma tentação, não lhe dava o valor duma
substituição. Dizia que não deixava bastardos
atrás dele mas, no enterro, apareceu um rapaz que
ninguém sabia quem era e que se manteve à parte
com um ar nem afligido nem nada. Maria Rosa disse:
- É talvez um filho dele. Deve ter sentimentos
preguiçosos.
E não pensou mais nisso. Às vezes, todavia,
pensava que algum dinheiro tinha sido desviado e
até um colar de âmbar que lhe faltou podia muito
bem ter ido parar a outras mãos. Um homem não
distingue entre o que é possível e o que é
impossível. Enquanto que para Deus, segundo Kant,
não há distinção entre o que é possível e o que é
real.
Quando Filipe Nabasco morreu, Maria Rosa decorou
de novo a casa. Pendurou A Ronda da Noite na
entrada, que ampliou por esse motivo. Quem chegava
tinha imediatamente aquela recepção do capitão
Cocq e o seu ajudante, resplandecentes
107
de felicidade e de cerimonial. Era como se fosse
acolhido em plena festa e convidado a entrar nela.
- Caramba, Maria Rosa, não se espera este
acolhimento. Só falta ouvir o tambor do
tamborileiro.
- Falta mais do que isso - disse ela. - Alguma
coisa como a santidade do real. A santidade do
real é o que faz o artista.
Ela tinha ido, com os anos, ganhando uma patina de
velha prata, com os cabelos francamente brancos
segundo a sua fórmula de que o branco intimida. Às
vezes, para se levantar de manhã, tinha que passar
de relance os olhos pelo seu guarda-roupa, para se
convencer a sair da cama. Seria outra com outro
vestido e outra cor nos lábios. Agora via-se mais
ao espelho, o que era sinal de que envelhecia. As
mulheres novas guardam a imagem da sua juventude
desde pela manhã; as mais velhas têm que corrigir
a impressão que lhes deixou o primeiro olhar do
dia. Agora preocupava-se com Judite. Seria que ela
não queria filhos de Martinho e achava incestuoso
o casamento com ele? Grande parte das mulheres não
querem filhos de homens que admiram. Preocupava-se
com Judite mas não lhe fazia perguntas. "O que
for, soará" era o dito favorito de Elisa que
começava a perder-lhe o respeito. Era qualquer
coisa de imperceptível, como num sonho
interrompido e que não se podia reatar. Tratava-a
por você e depois desculpava-se.
- Agora toda a gente se trata por você... Isto
pega-se.
Não se pegava, mas com esse desleixo de linguagem
acudia-se a um despeito profundo. Afinal a
revolução não emancipara os pobres, os infelizes,
só os tornara menos anónimos. Lamentavam-se como
crucificados, mas faltavam os meios para os descer
da cruz. Tinham a absolvição, mas não o bálsamo,
que já não era o reino do céu. A impaciência
excitava a
108
inveja; a solidão era um novo gueto, evitavam-se
as coisas tristes, dava-se preferência ao riso, à
barafunda, ao circo, à história projectada com um
efeito clínico da sexualidade. As mulheres não
perdiam de vista o amor empregando a habilidade
para chegar aos fins pretendidos. Faltava porém a
exactidão, por falta de meios para obter um
resultado fiável. Faltava a confiança que nos é
dada como ideia duma perfeição suprema.
Martinho, que ocupava o tempo a gerir as inúmeras
heranças de Maria Rosa, terras exaustas e votadas
ao abandono, valores praticamente reduzidos a
ruínas, passava muito tempo fora. Durante semanas
a fio não era visto e não mandava mensagens. Os
dias eram para ele iguais, como se fosse um colono
numa estância penal e preferia contratar
estrangeiros de Leste porque esses não tinham
lugar para novas amizades. Queriam ganhar dinheiro
para comprar uma casa na aldeia deles e um belo
dia desapareciam como se empreendessem uma fuga.
Não se despediam e deixavam para trás tudo o que
lhes estorvasse na viagem: roupas,
electrodomésticos e um saco cheio de meias velhas
por lavar. Martinho sentia um pouco de tristeza,
mas era o seu preconceito de posse que falava;
como se escravos se evadissem da sua herdade e
contassem mais com uma liberdade sem condições
melhores para sobreviver. Quanto mais eram bem
pagos e cheios de benefícios, mais se acentuava
neles o desejo de perder, de retomar as
dificuldades que os tinham trazido em busca de
trabalho. Voltavam para o seu clima inóspito e
para as suas comidas e a sensualidade do que é
conhecido e amado. Numa das suas estadias fora de
casa, Martinho foi saber o que se passava com um
casal de checos que desaparecera. Não foi difícil
encontrá-los, tinham-se separado e estava cada um
para o seu lado.
109
- Pareciam tão unidos! - disse Martinho. A mulher,
muito bonita e com os cabelos loiros desatados,
encolheu os ombros.
- Nós estávamos unidos pelo perigo. Quando
voltámos não precisávamos mais um do outro. Os
vizinhos, os parentes, até os nossos garfos e
facas no louceiro, nos davam confiança.
"Aí está o problema da confiança", pensou
Martinho. Tinha um casaco forrado de cordeiro da
Rússia e durante muito tempo ia tirá-lo do armário
para o acariciar. "A confiança é melhor do que o
amor. Estamos todos a morrer à sede por falta de
confiança."
Nesse tempo esteve observado pela polícia, que fez
o que pôde para lhe encontrar qualquer culpa: de
contrabando, de negócio ilegal, qualquer coisa que
fosse. Não admitiam, segundo a sua regra
profissional, que Martinho andasse pelos
aeroportos numa simples viagem que não se podia
dizer de recreio. Perdia às vezes os aviões e, no
meio duma turba desorientada, ia parar a um hotel
de luxo onde o albergavam como se fosse um turista
com grandes meios. Admirava-se do tratamento que
lhes davam, dos almoços pantagruélicos e da
simpatia das hospedeiras. Mesmo assim, tinham que
ouvir recriminações e protestos dos que não
passavam de vadios de férias pagas. Era uma gente
ingrata e mal comportada. "Como posso gostar
deles?" - pensava. E reprimia a ideia de os ver
esmagados por uma derrocada qualquer,
sequestrados, reduzidos a cinzas. Eram uns
desagradecidos; e quando se riam era com afectação
e maldade.
Mas havia surpresas. Um dia, numa dessas demoras
de gare deparou com um casal e a filha de quinze
anos. Eram professores e tinham como destino
Lisboa, onde participavam num congresso sobre o
ambiente. As coisas foram dum efeito
110
nuclear, não havia outro nome. A mulher tinha uma
graça particular, era uma judia de Nazaré. Diz-se
que as mulheres de Nazaré têm uma beleza especial
e todas se parecem, a ponto de ser possível
atribuir-lhes um parentesco com Nossa Senhora.
Elas parecem reinvindicar um traço fisionómico que
define uma individualidade partindo do seu
interior. É a compaixão. A mulher descobriu
Martinho como se ele estivesse no meio duma
multidão e em volta dele houvesse uma luz radiosa
e que, no entanto, era parte da diversidade de
tudo que o rodeava.
Desde esse momento ela não abandonou mais
Martinho. Podia dizer-se que queria servi-lo em
todos os passos que ele dava; trouxe-lhe café,
deitou-lhe açúcar, viu como ele o bebia com uma
espécie de devoção. Incutiu no marido e na filha a
sua extasiada presença e, no hotel para onde foram
mandados, na noite lúgubre e como que insensata,
com uma chuva miúda a escorrer nos vidros da
camioneta, ela bateu-lhe à porta do quarto para
lhe levar creme de barbear e um pouco de
cicatrizante para o caso de se ferir. Falava um
alemão em que se não perdia uma palavra do que
dizia. Nenhum gesto ambíguo, nenhuma fantasia da
imaginação.
Ela olhou para Martinho com tal transporte de
felicidade que o coração dele bateu, advertido
pela unidade interior que era o fundamento das
suas vidas.
Depois, não se passou mais nada. No dia seguinte
partiram todos para Lisboa e lá se despediram duma
maneira vulgar, como pessoas que esperassem a
bagagem ao mesmo tempo. Nunca mais se encontraram.
Mas Martinho ficou persuadido de que, como na
Ronda da Noite, havia os traços fisionómicos
diferentes de todas as pessoas e uma dádiva
interior que tinha a consistência divina que as
unia. Tinham cargos diferentes, tentavam acertar
no
111
desfile conforme um programa de festa (dizia-se
mesmo que a Companhia do capitão Cocq devia
escoltar a comitiva da rainha Maria de Médicis)
mas, desde o íntimo de cada um, tudo estava
alinhado e não havia qualquer desordem neles.
E se Martinho fosse um mutante? Desde criança que
ele agia nas pessoas com alguma projecção que lhe
era estranha. Não diz George Simmel no ensaio
sobre Rembrandt, que a juvenil história de Jesus é
concebida dum modo completo, profano e pequeno?
Sem exaltação e sem o que se chama mística com
tanta ostentação, aludindo ao uno até no sentido
político e militar? Lembrava-se de como as outras
crianças (algumas pobres, filhos de lavadeiras e
de operários que Maria Rosa chamava como para dar
exemplo de beatitude social) o rodeavam
automaticamente, como se todos os conteúdos
interiores fossem um só fenómeno desde o
fundamento da vida. Um sentimento ardente que
perdurava até nos sonhos e nas mais humildes
tarefas ou cargos superiores que viessem a
desempenhar, como se não houvesse nada entre o
homem e a sua profundidade.
Ele sabia que o que dizia Maria Rosa às suas
criadas não passava de presunção ou de simples
recomendação escolar:
- Quando limpam o pó ou dão lustro aos meus
sapatos estão a servir a Deus e não a mim.
- A senhora é que nos paga, há alguma diferença.
Passando em revista as criadas dos Nabasco,
Martinho encontrava maravilhosas condições de
êxtase para ele próprio. Elas trabalhavam como
Rembrandt, como se isso não fosse um fim, mas um
meio para alcançar a suprema cultura, a paz do
sentimento e da vontade, que sempre nos atraiçoa.
As criadas eram: Elisa, sobrinha de Ana Cunha,
mulher muito feia e com uma anca mais alta do que
outra. Não lhe tendo sido possível simular que era
simétrica e bem talhada
112
com a moda das anquinhas, feita expressamente para
a rainha Maria Leczinska, Ana Cunha nem sequer
chegava à sala em dia de visitas. Outra, era
Armanda, inteligente, crítica, sem nada de rústico
e tão convertida às cerimónias que ia abrir a cama
dela antes de jantar para ter a sensação de que
era mais do que uma cozinheira do trivial.
E havia Marina, dum génio tão desabrido que as
portas tremiam com os seus passos. Os homens
tinham-na magoado, mas fez por esquecer pondo uma
energia assustadora a limpar as pratas e a brunir
até os panos do pó. Tantas figuras da mocidade à
velhice! Tantos humores diferentes e estruturas
que deixavam Martinho assombrado. Evitava-lhes dar
trabalho. Muitas vezes ia passar a ferro as
calças, à noite, estando todos deitados e depois
dizia que não chegara a usá-las. Deixava sempre na
travessa um bife dos melhores, que não parecesse
sobra. Dava-lhes chocolates dizendo que não os
podia comer. Elas percebiam e entrelaçavam aquela
religião fora de toda a mística com a paixão
obscura de serem iguais no discurso da vida.
Agora já não era assim. As raparigas do serviço
doméstico, o mais bem pago do mercado, punham
máscara de beleza e jogavam no bingo. Mas não
tinham o sentido profundo dum amante, como
Armanda, que toda a vida amou um cantor ligeiro e
tinha como efeito da sua paixão o ser feliz nas
nuvens.
E se Martinho fosse um mutante? Nada de
transcendente e de superior, mas uma centelha de
animação que a tudo dá movimento e sentido. Maria
Rosa mostrava o seu descontentamento porque ele
não se desenvolvera como era previsto. Tornara-se
insignificante e perdera muito cabelo. As vezes,
ela não resistia a demostrar-lhe que ele ficara
muito abaixo das suas expectativas. O amor precisa
então de reforços
113
para se orgulhar daquilo em que se aplica? O
incessante apelo à beleza, os recursos para a
corrigir e despertar nos mínimos pormenores era
uma forma de cativar o amor que andava perdido num
deserto de planos que não chegavam a ter execução.
A possibilidade de errar, que está em toda a obra
que se realiza ou não chegou a ser, é o sentido do
amor. Martinho via, todas as vezes que chegava a
casa, antes de pousar a mochila e o saco de
viagem, que A Ronda da Noite estava lá para lhe
transmitir o que nunca tinha sido dito; que o
trabalho da mão não estava acabado e que a
objectividade das cenas eram apenas vestígios do
impulso que levava o artista a pintar. As suas
imperfeições, exploradas nos auto-retratos até à
exaustão, estavam em relação com os fundamentos da
vida, como se o homem não fosse um modelo mas o
indicativo para outra coisa inabordável que
pertencia ao não criado.
Praticamente Martinho tratava das suas vinhas,
replantava-as, protegia os bacelos das grandes
geadas, confiava a peritos a sua poda, via brotar
os primeiros gomos donde a folha ia crescer e que
traziam como que a candura dum recém-nascido no
botão algodoado. Os solares, com dez janelas na
frontaria, estavam quase reduzidos a escombros,
até porque os incêndios, no seu abandono, os
tinham assaltado, levando, como ladrões, os
retratos, as prendas de anos, as coisas que tinham
o brilho do uso, cabos de facas, de cutelos, de
navalhas cujo contacto causava um arrepio na
espinha. Os tectos tinham caído com um estrondo
abafado pela caliça. Martinho sentia um prazer
perante tanta ruína, como se o sentido relativo da
vida lhe fosse mostrado com toda a sua
possibilidade de fracasso. Estava ali a obra que
lhe era confiada, e que lhe concedia a excursão
para o infinito e que 114
ele só teria tempo para a ver nascer como a
criança que se retira do ventre da mãe.
Não pensava habitar nenhuma daquelas casas que
lentamente ia trazendo à forma inicial. Mas tudo o
que lhes dava forma, o mais pequeno gonzo duma
porta, a cor com que a cobria, verde-musgo, de
preferência, ou zarcão, ou ainda um castanho de
beterraba misturado com terra, davam-lhe prazer,
como se fossem obra das suas mãos.
Maria Rosa assustava-se com as despesas e a
grandiosa maneira de gerir uma fortuna já de si
desfalcada. Chegaria um dia em que não restaria
nada do património dos Nabasco e a Ronda da Noite
seria enrolada mais uma vez, não para ser posta
noutra parede (parede cada vez mais estreita e
inadequada às suas proporções), talvez num museu
ou no átrio duma empresa. Quanto à sua
autenticidade, não estava apurada a verdade. Os
conhecedores não quiseram pronunciar-se, com
receio de a carreira do quadro ser afectada pela
sua opinião. Ficava a ilusão de se tratar do
Rembrandt original.
As viagens de Martinho tinham relação com a
reconstrução das casas que, na região mais rebelde
do país, a transmontana, eram à volta de seis.
Palácios com escadarias bifurcadas, guarnecidos de
pedras de armas que tinham sido retiradas e em
cujas fontes a água não corria mais. E também
passais, as antigas moradas de abades, confiscadas
no tempo da República e que continham retratos de
reis e rainhas, subitamente transferidos para
outros lugares mais concorridos e convenientes.
Assim, numa biblioteca pública, ficou o retrato de
D. Teresa, a suposta mãe de D. Afonso Henriques,
pintado com a ingénua e inábil arte que preservava
a personalidade. Mulher formosa, de cores
campestres e algo boçais.
Estando uma vez em Aosta, hospedado no hotel do
casino que tinha a particularidade de soalhos
rangentes como
115
os dentes rangentes do Purgatório, Martinho teve
outra experiência que lhe fez compreender quanto
no tempo há apenas fugacidade e não outra medida
senão esta. Tinha visitado o museu do mobiliário
que fora doação dum português e, ao sair de lá viu
um homem tão alto que, ao inclinar-se parecia uma
cana dobrada pelo vento. "O homem é uma cana, mas
pensa", ocorreu-lhe, com um pouco de ironia à
mistura. Quando se assustava era quando se detinha
bruscamente como para reunir forças para resistir.
A que resistia senão ao tempo? Percebeu que aquele
homem, em quem reconheceu uma pessoa morta há
muito, lhe era trazida por um efeito do tempo que
ele alcançara graças a uma imobilidade absoluta.
Nessa noite, ao percorrer o longo corredor
subterrâneo onde as montras cheias de jóias
despediam raios de luz, viu um casal que se
aproximava. Ela trazia um vestido branco e um
colar de pérolas servia-lhe de cinto. Olhou para
Martinho sem parecer vê-lo, mas, no outro dia,
estava à porta do quarto dele completamente
embriagada de amor e pronta a entrar e cair-lhe
aos pés. Foi preciso que o marido a arrancasse do
chão com violência e à força a levasse com ele.
Não os viu mais. Teve medo, nunca tinha sentido
tal medo em toda a sua vida. A partir daí
acumularam-se os sintomas e, voltando para
Portugal, refugiou-se ora numa, ora noutra das
suas casas que correspondia a uma herança sem
valor; a mãe, vendo que ele fazia obras e compunha
o que o tempo foi arruinando, pediu-lhe contas.
Foram vendidas as propriedades uma a uma e só
ficou um dos solares, o da Ronda, que ainda estava
em bom estado e onde Martinho decidiu fundar a sua
própria família. No entanto, a submissa Judite
recusou-se a ir com ele. Não lhe dava filhos e
gozava duma vida de criada grave de que nunca se
desprendera e os prazeres da cama não pareciam
atraí-la. Faltava encontrar
116
comprador para a Ronda da Noite, e Martinho
dedicou-se a procurar as pessoas interessadas no
negócio; foi então que a sua vida mudou
radicalmente. Entrou em contacto com avaliadores
de obras de arte e ficou informado de quantas
cópias e fraudes estavam nos museus e passavam por
autênticas. Sendo os originais fechados nas
colecções particulares ou estando simplesmente em
lugar incerto.
Era um estranho mundo de pesquisa, de jogadas, de
viagens e operações em que nunca se conhecia a
pessoa que vendia ou que comprava. Para lá da
febre do ganho, havia uma atmosfera acumulada de
factores fecundos em que a paixão do jogo estava
presente. Gradualmente Martinho marcou o seu lugar
partindo da Ronda da Noite que foi avaliada em
milhões e declarada falsa, e ainda mantida na
expectativa doutra peritagem que nunca era
conclusiva. Se Martinho queria sair daquele
terreno de especulação, era de novo arrastado com
novas perspectivas de fortuna tão grandiosa que o
impediam de recusar outro lance. O mundo parecia
um imenso campo de negócios em que circulavam
todas as paixões. E havia uma rede de espionagem
em volta da mercadoria a ser trocada e cujo
merecimento era ponderado por lobis para que o seu
preço fosse incluído na ilusão, na mística da
descoberta. Havia quem nunca chegasse a ver o
objecto em causa; e havia aqueles para quem ele
circulava no seu sangue como por efeito dum
comando cerebral. O desejo palpitava nos espaços
em que as ambições pareciam ter a voz. O mundo
estava construído sobre aparências que não
correspondiam à sua estrutura natural. Os sinais
identificavam as pessoas, fossem sinais de classe,
de servidão, ou honoríficos, ou infamantes; mas o
que tinha uma expressão profunda era a mistura
quase se diria sangrenta, de todos os sinais. A
linguagem académica e barroca fora substituída
pelo calão, o obsceno e a embriaguez
117
do insensato. Os sinais infamantes, como o
uniforme, sinal de servidão, fora deposto; e o
sinal de classe, o título nobiliárquico, sofrera
um rebaixamento e só sobrevivia admitindo o sinal
plebeu como seu parceiro. E também os sinais
gráficos eram abolidos pelo computador e pela
escrita dos autores. A melancolia era batida pelo
estridor; e os sinais naturais da relação com os
outros, com o círculo familiar ou profissional,
sofreram grandes danos. Assim como a afinidade das
ideias já não resultava com a mente distraída na
confusão de mil coisas em que se perdia a unidade
do colóquio.
Que fazia um mutante num mundo sem estratégia
moral, que nunca teve? Teve apenas sinais de
obstinação lógica e um desejo sanguinário de
poder; o que era demonstrado até à saturação pelo
espectáculo em que a memória se debilitava para
dar lugar à excitação. O espírito da lotaria, do
grande prémio que ia resolver todas as
dificuldades, instalara-se. Não se dava um passo
senão para imitar o prazer que era imaginar-se
rico e belo e sedutor. Não se trabalhava por
pouco, vivia-se de arranjos com as oportunidades.
O próprio Martinho teve a tentação de fazer da sua
natural faceta de mutante, ou do que nele
provocava uma espécie de ambição do mérito sem que
houvesse o dom que o justifica, de fazer disso um
lucro qualquer. Quando voltou para a mulher,
durante uns tempos, viu que ela estava a escrever
um livro: ao mesmo tempo, pintava um retrato e
também se entregava à música. Não se atreveu a
levar aquilo levianamente e felicitou-a. O embuste
era uma forma de evitar atritos e as pessoas
coabitavam sem repugnância na regra da habituação.
Julgavam comunicar e o que faziam era habituar-se.
- Não está mal - disse Martinho, sem hesitar.
Judite estava empenhada no seu trabalho e a ele
parecia-lhe cruel dissuadi-la e dizer-lhe que não
passava duma macaca a descascar
118
amendoins. Era o que lhe apetecia dizer. Mas
armava-se tal alvoroço, a avó vinha repreendê-lo,
Judite chorava gastando uma enorme quantidade de
lenços de papel; e ele acabava por desdizer-se e
achá-la parecida com Berta Morisot ou qualquer
outro de meia-tigela. O exemplo que davam era o da
amante de Rodin que acabou louca à força de não
ser reconhecida como comparável a ele. Quanto
tinha aguentado Rodin com aquela pequena megera na
cama, no atelier, em toda a parte! Foi desde aí
que começou a paródia da criação nas mulheres que
se puseram a ser artistas e a ter ideias sobre
tudo. - "Valha-me Deus, no que me meti", pensou
Martinho.
A mulher tinha engordado mas continuava com
aqueles olhos azuis raiados de negro que lhe
agradavam. Mas daí a estar enamorado, não estava.
Disse a Maria Rosa:
- Gosto dela, mas não é para toda a vida. Não sei
que vai acontecer quando me apaixonar por outra.
- Um homem como tu não se apaixona por ninguém.
Imita o amor que se torna melhor do que o
verdadeiro.
- Então não sei nada do amor? É triste.
- Os homens têm uma incapacidade natural para o
amor. E as mulheres para fazer negócios e ir para
a guerra.
- Mas fazem negócios e vão para a guerra.
- Como D. João amava. Para iludir a própria
impotência.
Ele riu-se, roendo um osso de galinha, que era o
que gostava mais: galinhas do campo, assadas e bem
loiras. Seria por isso que os homens preferiam as
loiras? Sorriu mais ainda, imaginando uma
quantidade de alarves em redor da fogueira, a
devorar galinhas gordas e apetitosas. Era uma cena
resplandecente de cordialidade, que incluía o
desejo profundo, como um desejo alimentar antigo
de milhões de anos.
119
Mas, acima de todos, estava o seu desejo de
liberdade. Podia dizer-se que os homens criavam as
suas muralhas para sentirem a emoção maior da
liberdade. Os sedentários, habitantes de cidades,
condicionados ao calor das casas e ao conforto da
vida doméstica, não conheciam mais a elevação do
espírito que é fruto desse impulso de liberdade. A
palavra é usada como excitante de comícios, mas
não tem já o mesmo sentido. E na mudança de
mulher, na infidelidade quase ritual, encontravam
um resquício do entusiasmo que arrasta o prazer da
liberdade.
Martinho inclinou-se para beijar Judite e, ao
mesmo tempo, achou que estava a desprezá-la.
Analisava-a demasiado e ela tornava-se em qualquer
coisa de repugnante. Tolstoi não analisava a sua
cossaca e ela entrou na sua alma como um dardo de
cupido.
Ele voltava amiúde para a sua casa da Ronda, que
não chegou a restaurar e cujo telhado deixava
entrar a água. Assim, em ruínas, ninguém ia pedir-
lhe contas, como a mãe fazia cada vez que via
alguma coisa de que tirar proveito. Talvez
Portugal fosse mais feliz, pobre e desmantelado e
sem despertar ideias de invasão, ou facilmente
capaz de ser tido por um povo de pastores. Nada
para acrescentar ao rol das grandes conquistas,
nem em espaço, nem em cultura. Tinha uma história
nobre, mas desconhecida. Heróis, amantes,
pensamentos intraduzíveis pelo amor e pela arte.
Não se quisera revelar, apresentar um valor de
saque. Ele concluiu:
- Será que a Ronda da Noite é autêntica? Escapou
ao esbulho, à cobiça dos conquistadores e Goering
não chegou cá para o levar num camião Tir? Logo
Rembrandt, que sorte!
- Que estás para aí a dizer? - falou Maria Rosa.
Estava a perder o ouvido, era fatal.
120
Elisa tirava a mesa, sempre com aqueles olhares de
suspeição que faziam dela uma combatente na sua
trincheira. Qualquer dia morria e ficava um vazio,
um buraco no chão como quando se arranca um nabo
branco e suculento. Martinho nunca gostara de
nabos, não tinham sabor, era alimento de animais.
Mas agora achava-os diferentes porque os
incorporara à memória. Memória de criança à
desfilada na avenida, na bicicleta de senhora.
- Porquê de senhora? - disse Maria Rosa. E o
Nabasco replicou que podia ainda nascer uma menina
e a bicicleta servia para os dois. Tinha uma ideia
da economia que não condizia com o seu prazer em
gastar. E para ligar tudo, comprava coisas velhas
e sem préstimo. Candeeiros, cadeiras de leilão,
rimas de pratos com monograma dum restaurante
desaparecido. Maria Rosa achava-o doido, achava
todos os homens doidos.
- É o que temos - rematava, com uma lentidão no
pensamento que queria dizer acordo consigo mesma.
Ninguém achou bem que Estrelinha, Sopa-de-Massa,
como lhe chamavam quando andava a fazer recados,
fosse morta à machadada (parece um exagero, são
lendas que se formam) e depois deitada à linha do
comboio. Mas também ninguém guardou disso uma
recordação; nem Judite, nem a irmã dela. Mas as
coisas mais aterradoras ficam metidas nas frinchas
do cérebro, enredadas nos fios dos nervos, e um
dia aparecem. Como a morte da Estrelinha, Sopa-de-
Massa, aconteceu no dia da morte de Ana, a
cozinheira parecida à fada Carabosse. Ela gritava
e chorava e dizia uma coisa inacreditável: que
fora, não o marido mas a filha que a matara,
espetando-lhe uma tesoura no coração. Ana não era
pessoa para mentir, era uma qualidade que ela
tinha.
121
- Será verdade? - disse Emília. Os pêlos dos
sinais na cara estavam mais encaracolados, como
quando chovia.
- Sei lá! - E Maria Rosa não quis conversas para
não incomodar Judite, que sempre era a filha da
morta. Judite estava a pintar um retrato de
família, com flores, e estava a sair-se bem. Pena
era que Martinho não a apreciasse.
- Podias dizer-lhe alguma coisa; alguma coisa,
dizer que gostas - disse a avó.
- Deu-me muito trabalho gostar de nabos. Anos a
fio não gostei e depois mudei. Ou eles mudaram,
com os químicos e as águas poluídas, sei lá! Pode
ser que eu venha a gostar do retrato de meninas
com flores.
- Não te custava nada.
Mas Martinho já se tinha evaporado; ouviu-se o
carro a derrapar na areia do jardim, e ele foi-se
embora. Nesse momento dificilmente se gostava dele
e Maria Rosa comprava a Judite qualquer coisa
bonita para acalmar a dor que ela sentia. As
mulheres passavam a vida a sofrer aqueles
sobressaltos, piores que maus tratos. Era uma
impressão de serem úteis e mais nada. Em vão elas
se esforçavam por serem queridas e se desfaziam em
bondade até à ignomínia, ou até ao pecado, como se
costuma dizer, que não chegavam ao coração deles.
Estava ela ali, Judite, a pintar aguarelas, a
sujar a bata de tinta que nunca mais saía com
todos os perfumes da Arábia ou detergentes
líquidos e em pó, e não recebia senão um
pensamento ofensivo. Via-a como uma mulher e ela
não era apenas uma mulher; mas o duplo dele
próprio. E ela amava-o realmente? Ela tinha que o
revestir de qualidades para o amar, como a
fortuna, a casta, o parentesco dele com outros da
mesma espécie. Precisava de tudo o que pudesse
apagar a noite com que ela se debatia.
122
Uma noite pacífica do fim do Verão.
Judite tinha onze anos e dormia com a irmã, num
quarto que dava para as traseiras da casa. Já
tinham começado as vindimas e um cheiro de lagar
onde o vinho fermentava andava no ar. Ela ouviu a
mãe que se levantava. A porta do quintal chiou e
Judite percebeu que a mãe saía de casa. Uma dor,
como um ciúme, atravessou-lhe o estômago. Com o
pai não se importava, mas com a mãe era um
contínuo fardo de suspeitas; seguia-a às
escondidas, sabia todos os passos dela, as horas
de chegada, o tempo que levava a arranjar-se e a
roupa que vestia. Para o trabalho era uma, para ir
às compras, outra. Quando prendia os cabelos
loiros e cacheados era porque pensava fazer
limpezas. Outras vezes deixava-os caídos nos
ombros e eles eram como uma torrente crespa de
fios de ouro. Amava-a com desespero, inveja,
tristeza, tudo o que faz do amor danação e culpa.
Viu como ela se afastava, depois a noite tragou-a,
não a viu mais. Judite foi atrás dela e ouvia-lhe
os chinelos a raspar na terra ou a deslocar as
pedras do caminho. Estavam já longe de casa e
percebeu algumas vozes: a do pai, pachorrento,
depois mais viva, e a doutra mulher que não
conhecia.
- Que vieste aqui fazer? - era o pai que falava.
Parecia envergonhado e decerto quis convencer
Estrela a ir-se embora porque ela respondeu duma
maneira insidiosa, com malvadez. Disse coisas
horríveis porque tinha mau feitio e não sabia
conter-se. A outra mulher avançou para ela e
Judite viu a mãe cair com um pequeno grito
afogado. A outra tinha-a ferido com a tesoura das
vindimas que tirou do bolso. Mas Judite só
percebeu que o pai estava afastado e talvez se
preparasse para voltar para casa. "Tenho que ir
deitar-me, senão ele mata-me", pensou. Não queria
dizer que ele a maltratasse, era uma maneira de
conceber um aviso. A mãe prevenia-as, às
123
duas, ela e a irmã, para que estudassem as lições,
para que não sujassem a roupa nova, para que não
se demorassem ao fazer um recado. "Vai depressa,
senão mato-te... Se te sujas, eu mato-te." Ela
habituara-se a ouvir aquilo e não prestava muita
atenção. Agora pensava que tinha de correr pela
vinha acima e deitar-se na cama, ofegante mas
segura de que ninguém descobria que a mãe entrava
e fechava a porta com duas voltas da chave. Dormiu
até de manhã.
Acordou, não viu a mãe na cozinha, em camisa,
descalça como ela gostava de andar em casa. O
fogareiro do petróleo não estava aceso e a gata
esfregou-se nas pernas de Judite, a pedir comida.
O pai estava sentado a fumar e levantou a cabeça
quando a viu.
- Vai para o teu quarto, depois chamo-te.
- A mãe?
- Vai para o teu quarto.
Alguma coisa havia na voz dele que a convenceu de
repente. Veio-lhe à ideia a noite e a mãe a sair
com um casaco que lhe ficava curto e deixava ver
as pernas muito brancas. Não parecia ter-se
deitado nem se tinha despido para isso. A irmã,
que tinha cinco anos, apareceu a coçar-se; Judite
empurrou-a para o corredor e levou-a consigo quase
de rastos.
- Vou contar à mãe - queixou-se ela. Mas Judite
sabia que nunca mais ela havia de fazer queixa,
nem pedir que lhe tirasse a nata do leite, nem
nada. O pai acusou-se do crime e não foi possível
fazer com que ele denunciasse mais alguém como
cúmplice. Sabia-se que ele tinha uma amiga mas não
falou nela, nem sequer a viu. Bateram-lhe e ele
gritou no escuro duma adega de terra batida, com
covas onde o vinho empoçava. Eram gritos que se
ouviam da estrada; as mulheres paravam para os
ouvir, arrebatadas de paixão pelo homem,
124
mas com algum conforto de serem as contadoras da
história daí em diante.
Judite e a irmã foram separadas e viam-se de vez
em quando, não escondendo o embaraço. Não se podia
dizer que Judite não amava a mãe. Amava-a, e
muito. Mas tudo aquilo suspendeu no seu coração o
fogo que lá ardia e, de certa maneira, foi como
se, como naquela noite, se deitasse na cama, com o
cobertor pela cabeça, e ficasse calada até ao fim
do mundo.
Maria Rosa não ignorava no que se metia ao levar
para casa Judite, filha da Estrelinha Sopa-de-
Massa. Era um risco. Não que soubesse como as
coisas se tinham passado, só Judite sabia. Mas era
um risco porque Judite andava metida na noite, com
a mesma força de se cruzar com a morte, fosse ela
qual fosse, para libertar a sua alma de tanto
sofrimento e de que ela não conseguia libertar-se.
CAPITULO IV
O QUE AS TELHAS ESCONDEM

Para começar, as coisas passam-se normalmente. As


casas são seguras, quando uma torneira pinga não
se demora a consertá-la; se a gata deu à luz seis
crias, afogam-se quatro; se um pobre bate à porta,
como dantes fazia, dá-se uma esmola, pequena, para
não se ficar sem trocos. Pede-se sempre um
abatimento nas lojas, e isso funciona em todas as
longitudes, tanto no Cairo como numa aldeia perto
do Lago Maggiore. É uma cortesia, não equivale a
outra coisa senão a uma cortesia. Os saldos são o
cerimonial do comércio que dantes ocorria de
maneira muito imaginativa.
- Não é muito caro?
- Faço um abatimento por ser para si.
Um silêncio em que se trocava a linguagem do
afecto; gratidão e parentesco de bairro. Depois o
embrulho feito com sentimento e precaução, o fio
atado em cruz e rematado com um pequeno toro de
madeira, para não magoar os dedos. Maria Rosa
lembrava-se disso, mas não se lembrava dos preços.
Não perguntava, apenas dizia:
- Mande a casa, senhor Alves. Posso vir trocar?
O senhor Alves olhava para ela com ternura.
Merecia um beijo aquela graça de menina, com cinta
firme e pernas bem feitas. O que ele não sabia é
que no Verão ela não trazia calcinhas e o vento da
tarde lhe beijava as partes íntimas. Bem
126
melhor do que se o senhor Alves, neto duma
aristocrata, lhe aflorasse o rosto nem que fosse
para retirar uma formiga. Uma formiga nos cabelos?
Porque não? Tudo são bons pretextos para conviver
com aquela beldade de frente e de costas, uma
beldade circular. Os rapazes que estavam a
trabalhar numa obra diziam uma obscenidade quando
ela passava. Maria Rosa gostava e ofendia-se, as
duas coisas. Era o tempo mais bonito da sua vida,
cheio de doces encontros prometidos à felicidade.
Gostava de rapazes de bom parecer, não só os que
jogavam hóquei e que passavam ao domingo no
passeio fronteiro; mas também de operários, de
cabelos soltos e mal cortados, com a caixa das
ferramentas e talvez um pão com queijo de bola, ou
um pouco de fiambrino. Melhor do que a cama era
aquele olhar trocado em que ia o desejo honesto de
corromper a usura da confissão. Amavam-se em
poucos segundos, deixavam-se com a satisfação de
se merecerem em cinco segundos. E, contudo, ela
desviava os olhos, sem dissimular a atracção. Era
incontável a felicidade desses encontros. Chegava
a casa, a mãe achava-a estranha.
- Que fizeste?
Não respondia. E Margô, a que se casou com o irmão
de Maria Rosa, já tinha invadido a casa, às quatro
horas, quando vinha do Instituto Inglês e descia a
escada aos saltos para lhe dar as boas-vindas. Era
grande, sabia línguas e o pai dela era um médico
de grande nome na capital.
- Onde andaste? Compraste alguma coisa?
Iam merendar pão com manteiga e tinham por prémio,
não sempre, uma noz de chocolate, que acabaram; já
ninguém as vê nas confeitarias. Só éclairs
gigantes para pobres gulosos. O sol descia,
levantavam-se os estores à tardinha. E até ao
jantar Maria Rosa parecia meio sonâmbula, toda
metida no gozo dos encontros compadecidos, com
amantes que nunca se
127
voltavam a ver, e não respondia à eterna pergunta:
- Que fizeste?
Teve um período de anorexia, ficou tão definhada
que lhe desapareceu o período. Chorava sem razão,
chegaram a temer pela saúde dela, e o pai disse
que era preciso distraí-la. Atravessava uma crise
de dinheiro e na mesa isso era bem visível. Os
belos rodovalhos grelhados com grãos de pimenta a
eriçar-lhes a pele, já não apareciam. Nem as peças
de caça, faisão ou perdiz que se vendiam
gravemente com um pouco da solenidade do que é
raro; como uma jóia em veludo negro.
E, todavia, o pai pôs de parte a avareza que lhe
raiava os olhos de sangue, quando lhe pediam para
ir de férias ou dar um presente a uma amiga; punha
de parte essa raiva de homem de não cumprir com o
seu dever de fazer a casa farta e a mulher
contente entre lençóis. Vendeu, pediu a usurários,
empenhou o seu Patek-Phillipe e Maria Rosa teve
rosas e anéis, o que quer dizer que tudo se
preparou para a alegrar como a idade dela pedia.
Dezoito anos, olhos de azeite à flor da água.
Começava a comer melhor, perdoou ser tão
impertinente e sofrer por coisas que não
aconteciam.
Perdoou alguns sonhos maliciosos, como quando uma
noite acordou e viu o irmão no quarto, a olhar
para ela, sem se mover. Às vezes, mesmo estando de
costas, percebia aquele olhar. E o pai também,
tinha dias. Ela indignava-se mas, antes disso,
sabia que estava culpada, que era ela quem
começava com o despudor duma inocência que é o
pior pecado. Inocência que espreita como um
dragão, e se esconde como o sal na neve fria.
E o pai esteve prestes a arruinar-se completamente
por ela, a fingir que tudo estava na maior
prosperidade, mandou-a estudar para Inglaterra e
conhecer pessoas, tudo. E até o
128
irmão se queixou porque não teve um carro de
corrida que tanto queria e não teve.
- Para outra vez - disse o pai. O caso ficou
arrumado.
Se nesse tempo a Ronda da Noite já estivesse por
perto, tinha-a negociado ao desbarato para cobrir
as dívidas às quais dava nomes, como a "dentuça"
ou a "movediça": uma porque a trazia ferrada na
perna, outra porque o atolava cada vez mais.
Quando a Ronda da Noite foi atribuída a Filipe
Nabasco, numa dessas heranças que constavam no seu
cadastro de parente presente apenas na árvore
geneológica, ele nem sequer a quis ver. Nem tinha
muitas luzes sobre arte e dava mais atenção a um
negócio de volfrâmio (onde, de resto, perdeu muito
dinheiro por multas e vários danos) do que a um
Museu do Louvre todo inteiro. Só o que podia
comprar e vender num prazo curto que envolvesse
uma conversa de café, era o que lhe interessava. A
Ronda ficou enrolada como um tapete velho na parte
de cima das antigas cavalariças, muito maiores do
que a Casa do Cão.
Filipe Nabasco, não tendo onde estender a Ronda em
todo o seu tamanho (como não houve largura
suficiente na câmara de Amesterdão e por isso foi
mutilada), deixou-a na cavalariça onde dormia o
feitor. Nessa altura Maria Rosa desviou os seus
problemas íntimos para a maldição da Casa do Cão e
falou na mudança.
Quando a Ronda foi mostrada em toda a sua extensão
(3,63111 por 4,37m), fez-se um silêncio. Na
cavalariça, banhada pela luz fraca da porta meio
encostada, o Capitão Frans Banning Cocq, senhor de
Purmerland e de Ilpendam, parecia um tanto
recomposto da surpresa por ter visto o seu tenente
Van Ruytenburch, vestido com tanto luxo. Para não
se confundir com ele, deu um passo (de modo quase
imperceptível) para diante, o que faz com que se
notem os pés calçados com
129
sapatos de laços, tendo à altura dos joelhos
também laços abundantes. Podia estar tranquilo o
capitão Cocq porque o fato de veludo preto, a
faixa traçada no peito, de seda cor-de-cravo, além
da luva de camurça que segura o bastão, serem
prova evidente da sua categoria. Contudo, ele não
deixa de ter um olhar de preocupação e procura não
reparar na figura do seu tenente. Mas é difícil
não reparar. Todo ele é luminoso, a nota mais
luminosa da tela, se exceptuarmos a pequena, e
doce, e divertida menina que está a tentar
atravessar a companhia do capitão ainda
desprendida da ordem de marcha, ainda entregue a
uma despiciente desordem. O tenente sobressai
pelas galochas de cano largo sobre as botas com
joelheiras bordadas. Devem-lhe ter custado um mês
de soldo, ou mais, assim como o chapéu emplumado.
O nosso tenente quis fazer boa figura e não se
poupou a despesas. Não é todos os dias que se posa
para o mestre Rembrandt que está afogado em lutos
e provavelmente em dívidas. Ele acaba a Ronda da
Noite quando Saskia morre. Não será a alma de
Saskia que se converte num duende para romper
caminho pelo meio da companhia do capitão? Uma
criatura tenebrosa, coroada de folhas de carvalho,
parece estorvar-lhe o passo. O carvalho, pela sua
dureza e resistência, estava relacionado com a
ideia de imortalidade. É possível que Rembrandt
quisesse simbolizar na figura macabra a morte, um
condutor da alma feliz e infantil de Saskia, ou da
pequena Cordélia morta de pouca idade. O
sentimento pagão e delirante vai impregnar a Ronda
da Noite que é terminada em 1642, ano em que morre
Saskia, depois da filha Cordélia; é a segunda
Cordélia, a primeira morre em 1638. O estado moral
e mental do pintor seria precário, e é isso que dá
profundidade à Ronda da Noite. Pinta como se
falasse com ele próprio, indiferente em desatinar,
levado por um escrúpulo apenas quanto ao destino
que continuamente lhe marca encontro.
130
Interroga-se, enquanto pinta. Os contínuos auto-
retratos dizem que se preocupa consigo mesmo. É um
lunático, um homem que persegue honras e uma vida
de luxo e estabilidade, como qualquer judeu de
Amesterdão? Não é, com certeza, um judeu. Os
judeus são maus pintores, mas pode-se dizer que
Rembrandt é um bom pintor? Dos seus oito
discípulos, ou colaboradores, há quem pinte melhor
do que ele. Mas não há quem recolha, dum só traço,
aquele olhar, sempre o mesmo, que se alimenta dum
vazio que há na vida, vazio da cultura e do amor,
em tudo.
Era este olhar que Martinho achava ser-lhe
dirigido. Aos poucos sentiu-se visado pelo autor
da Ronda. A última colocação do quadro, no cimo da
escadaria principal e numa sala que era suposto
ser o átrio, não foi o mais favorável. A Ronda
ficou na penumbra e a única coisa que sobressaiu
nela foi a rapariguinha e o tenente com as suas
galochas novas e o ar de primeira figura, o galã
da cena. Tudo o mais ficava mergulhado na sombra,
como que velado por um reposteiro espesso. Pintar
é para ele um ganha-pão, mas significa também um
pedido de explicações. Pede à obscuridade que se
abra e tome a palavra; os momentos culminantes,
como a ressurreição de Lázaro, são momentos
profusamente iluminados, correspondem a um desejo
que sai do mais profundo da alma. A rapariguinha
da Ronda que avança entre a multidão, distraída e
sem orientação, parece dizer: "Segue-me e saberás
porquê".
O quadro chegou a ter, para Martinho, o sentido
dum livro de adivinhas. Tinha que o ler e
interpretar. Escondia, em grande parte, a sua
fascinação pela Ronda, a ponto de falar em vendê-
la para cobrir as dívidas da casa. Mas fazia isso,
como aqueles que estão perdidamente apaixonados e
fingem desprendimento para não serem alvo de
atenção particular 131
e que, com ela, lhes seja arrancado o segredo. O
melhor do amor é o segredo. A sua aparente
rendição a ponto de se tornar diáfano e vulgar,
serve apenas para preservar o segredo. Não é uma
coisa a que se renuncie abertamente; apenas se
pode misturar com outros sentimentos para não ter
que o beber em estado puro, o que causaria a
morte, como às vezes acontece. "Felizes os que não
amam senão a sombra das coisas", disse Martinho.
Tinha subido a alta escadaria, cujos muros estavam
cobertos de azulejos verdes, e respirava com
dificuldade. Judite estava a falar com alguém na
sala nobre, quase despojada de móveis e com um
piano de cauda a marcar a importância desse lugar;
embora ninguém tocasse piano, ele impunha-se,
parecia pedir o seu concertista, alguém que o
amasse e não apenas decifrasse os seus sons.
Martinho estava perto de fazer dez anos de casado,
data considerada de crise para o casal. Isso
talvez explicasse os pequenos e quase teatrais
empenhos que Judite mostrava em agradar-lhe:
- Amo-te tanto! - dizia ela. Como Cordélia dizia
ao pai, o rei Lear. Mas isso não significava que o
amasse deveras. Era mais astuta do que as irmãs,
apenas isso. Porque o amor, como as cenas obscuras
de Rembrandt, é assim obscuro, toldado como a água
escura dum lago ou dum poço muito profundo.
Martinho, que ia refazendo as casas arruinadas da
família, tendo, para isso, conferências com os
arquitectos e mestres-de-obras, pensava que as
pessoas não ocupavam na sua vida nada de
comparável. "Porque é que hei-de amar as pessoas?
Basta ser-lhes grato, se for caso disso, ou
gratificá-las se também for caso disso. Mas amá-
las é fora de questão. O amor é como se diz de
Deus: "Não devemos jurar o seu santo nome em vão",
pensava ele.
132
E pensava muitas coisas que as telhas duma casa
escondem. Todo o mal do mundo vem de que se dão ao
amor nomes que não lhe correspondem, como o
desejo, a paz, os inocentes prazeres da vida em
comum, a admiração pela beleza e pela juventude.
Esta noção prática e transbordante do amor fazia
com que o achassem intrigante e que alimentassem
contra ele uma vontade de o destruir. Se era um
mutante, isso pressentia-se pela capacidade que
ele tinha de alertar as pessoas. Ficavam inquietas
e faziam coisas inesperadas, contra a lógica dos
seus costumes.
Bento Webster, que toda a gente julgava ser um
antigo suspirante de Maria Rosa, casou-se de
repente com uma rapariga muito nova, que lhe deu
um filho. Não se tratava de luxúria de velho,
longe disso. Era uma decisão tomada para preencher
o vazio do amor de que ele teve uma vaga
informação.
Martinho dedicou-se a averiguar o que há de
vingativo na prática das grandes criações do
homem. Um massacre pode ser encarado como uma
grande criação cuja perversidade induz ao castigo
e ao arrependimento. A finalidade é essa: elevar-
se ao nível da grande expiação e, com ela, atingir
o exemplo. Mas o homem não sabe qual o percurso da
sua verdadeira intenção. A violência é um
excitante com vista à criação e é por isso que é
muito difícil de ser erradicada. Até nas naturezas
mais dóceis a violência está incubada e no momento
oportuno se manifesta. No âmbito familiar coexiste
com a doçura de carácter e a graça dos rituais.
Por exemplo, no casamento de Martinho, diante duma
assembleia de pessoas educadas e cerimoniosas,
Martinho sentiu de repente o desejo de acorrentar
à sua vontade um acto tão simples como dizer sim.
Fez-se um silêncio incómodo quando ele
133
demorou a declarar-se disposto a ser marido de
Judite. Ela olhou-o com espanto e preocupação.
- Diga quero, meu amor, diga quero... - murmurou.
E Martinho gozava o pânico da noiva e a
interrogação dos convidados. Um pouco mais e tudo
entrava em colapso. Chegaram-se a ouvir, muito
baixo, as notas do Hino à Alegria que substituía a
estafada Marcha Nupcial. Depois o silêncio tornou-
se insuportável. "É o massacre" - pensou Martinho.
"Estou a arranhar-lhes a pele até fazer sangue;
estou a remexer-lhes com os nervos e a esfolá-
los". Uma senhora saiu a correr e tomou o caminho
da toilette que não sabia onde ficava. "Vai
urinar-se pelas pernas abaixo." Ele disse
nitidamente sim, sem olhar para Judite, que baixou
a cabeça. E houve um som na assistência como se
libertassem pássaros no ar. Tinham-se
escandalizado ou tinham gostado desse momento
grosseiro e de puro massacre?
- O melhor de tudo é que nos amámos, nesse
instante - disse Martinho enquanto se barbeava à
noite, antes de se deitar. Foi uma bela noite de
núpcias e Judite, com a sua camisa que brilhava
como a água, tornou-se sua mulher. Com decepção e
com esperança de que tudo corresse melhor no
futuro.
No entanto, não teve filhos.
- Não foi bonito o que você fez - disse a avó,
passado tempo. Tinha um ventre abaulado e as
célebres pérolas caíam-lhe como cordeiros numa
encosta. Judite perguntara uma vez o que queria
dizer abaulado e Maria Rosa explicou:
- Em forma de baú, minha tola. Martinho disse:
- Eu não fiz nada. Que foi que eu fiz?
- Não se fala mais nisso. - Maria Rosa calou-se um
momento. Tinha a certeza de se ter enganado com
Martinho.
134
Mas quem não se enganava com toda a gente?
Estrelinha Sopa-de-Massa não deixava as pessoas
boquiabertas ao ser morta como uma vitela no
matadouro? E tudo isso, com o génio que ela tinha
e forças nas mãos como uma carrejona. Maria Rosa,
por meias palavras que Judite lhe dizia, apurava
coisas extraordinárias: que não fosse o pai o
assassino mas ela, Judite, exactamente. E até
Martinho fez perguntas, porque era investigador e
gostava de aclarar as coisas. Não por nada, porque
sim ou porque queria ter motivos para não
respeitar ninguém.
- Foste tu, Judite? - Às vezes tratava-a por tu,
outras vezes por você. Era conforme lhe dava. -
Mataste a tua mãe?
- Eu? Não brinque comigo, não me fale nisso que já
lá vai.
- Se tu o dizes... Mas olha que tenho cá uma
desconfiança.
- Desconfiança de quê? Não se ponha a desconfiar
de mim, Marto.
- Não é nesse sentido.
Esteve para dizer que a achava fiel como um pastor
alemão, mas não disse. Tratava-a com uma
agressividade graciosa, que é a maneira de os
homens se imporem às mulheres inábeis no amor.
Julgava ele que Judite desconhecia todos os
talentos de que dispunha, cultura, sensibilidade
musical e gosto para se vestir. Mas ela só
desconhecia o que lhe parecia supérfluo para o
entendimento entre os dois. Entendimento de cama e
de dinheiro. A Judite pouco lhe importava fazerem
férias juntos e receber presentes do marido. Em
geral eram coisas de que ela não gostava,
elegantes sim, mas acima da sua preparação. Maria
Rosa fizera um bom serviço ao dar-lhe noções de
etiqueta ou a fazer-lhe ver o valor dos objectos:
a distinguir o cristal do vidro, ou o linho puro
do paninho
135
de lençol barato. Mas, além disso, não se
importava com aquele entendimento que o berço dá e
nada mais que o berço.
Às vezes Judite cometia gafes estrondosas; outras
vezes, menos. Mas dava para entender que ela não
pertencia ao mundo dos Nabasco onde se dava muita
importância a não beijar uma mão enluvada ou comer
espargos frescos à mão. Era um dialecto especial
que Judite não abrangia e escapava-lhe um palavrão
quando ficava enervada, "porra" ou "merda", por
exemplo. Mas sacana, isso nunca dizia, pois sabia
ter uma conotação vadia, de presídio, ou parecido.
Mesmo ao pai dela, um feitor pobre, nunca ouvira
palavras dessas.
Porque é que Maria Rosa pusera em Judite muitas
esperanças quanto à felicidade do neto? Estar
casado com ela era o mesmo que ter um emprego a
meio tempo, pois Judite não se metia na vida dele,
como faz uma boa criada com o patrão. Saía de casa
e era como se partisse para regiões inacessíveis e
até pudesse perder-se por lá e não voltar mais.
Casos assim tinham acontecido e tinham feito
história. Como o primo que era pianista de
carreira e se embrenhara no Amazonas para sempre,
cafreando-se, alegremente ou não, não se sabia.
Vista de perto, a vida das pessoas só era seguida
à linha de água; as profundezas não se enxergavam,
lá onde passam os peixes cegos e as raias
gigantes.
- Peixe é um símbolo fálico. Cuidado com isso -
disse Martinho. Estava a engraxar os sapatos, ele
próprio tratava do seu calçado e deitava-lhe um
bocadinho de cuspo para o conservar, ou não sei o
quê. Judite não sabia o que era um símbolo fálico,
nem se importava. Quando foi ao Alentejo um dia,
aprendeu alguma coisa nesse sentido. Falos eram
menires de pedra, não podiam ser outra coisa, com
meato urinário e tudo.
136
- Isto é um símbolo fálico? Não se parece nada com
um peixe - disse ela. Aprendeu que o mundo está
cheio de símbolos fálicos, ela é que não tinha
reparado. Fumando o seu cachimbo, muito à inglesa,
Martinho ouvia-a não escondendo a si próprio
quanto lhe agradava ter aquela mulher por perto.
Ela tinha-se tornado adulta duma maneira que
incluía uma degradação da sua moralidade. Não o
bastante para ser desaprovada, mas simplesmente
ganhara em falta de gravidade, o que numa mulher é
sempre atractivo. Cada vez mais se tornava difícil
para Martinho admitir a ideia de separar-se dela.
Contudo, só graças às suas saídas de casa, para
dirigir as obras nas suas desmanteladas casas de
campo, ou no regime de vida activa sem
actividades, é que Martinho a suportava. Em parte,
fingia estar desprendido de Judite o bastante para
não despertar o ciúme da avó. Mesmo velha como
era, Maria Rosa constituía um perigo, pois só dela
dependia a ideia que ele tinha de liberdade. E se
com as mulheres em geral se passasse o mesmo?
Delas dependia a imortalidade absoluta que se
atribui a Deus; quer dizer, a impossibilidade de
desaparecer completamente. Isto causou um calafrio
a Martinho e esteve perto de cair doente. As vezes
os seus pensamentos eram tão alucinantes que não
queria ninguém presente, pelo receio de os deixar
perceber. A vida social do casal era quase
inexistente. Ainda que isso fosse improvável, o
deslize que havia de Martinho ter casado com uma
rapariga com história criminal, não era perdoável.
Podiam passar cem anos que isso não era esquecido.
O doutor Horácio prevenira Maria Rosa, que não lhe
deu ouvidos.
- Não me dá nenhuma novidade. Nada é permanente e,
se dermos a Martinho a vantagem que há em partir
do que não oferece motivos de permanência, estamos
a dar-lhe a felicidade numa salva de prata - disse
Maria Rosa.
137
- Tire lá a salva de prata que não é precisa. Quer
dizer que o defeito é um condutor da felicidade?
- Exactamente. A perfeição não é erótica. É o erro
que é erótico e não a beleza.
O doutor Horácio punha-se a pensar se Maria Rosa
durante toda a vida de casada não estivera sempre
informada das escapadelas do Nabasco que, afinal,
não tinha necessidade de ter amantes. Os
mandamentos não se destinam a promover a perfeição
do homem, mas a medir as suas imperfeições, mais
necessárias do que ímpias. "Será que ela viu
isto?" - pensou o doutor, fazendo como de costume
o gesto de acertar os óculos no nariz como para
ter a certeza de que eles lá estavam.
Judite não reclamava por não acompanhar o marido e
estabeleceu-se um acordo entre eles que agradou a
todos: estavam casados, mas fora de certos
compromissos que só convinham a uma linhagem, a um
nome de família em permanência. Não faziam nem
aceitavam convites juntos, não eram vistos ao
mesmo tempo em lugares de recreio ou de cerimónia.
Isto criava uma falta de cumplicidade que afinal
lhes deixava a independência da vontade com
respeito à sua própria diferença. Contudo, não
ficava esclarecido se o casal se amava ou se
experimentavam um conceito novo de matrimónio.
Judite não entrava nestas cogitações e limitava-se
a ser uma boa criada, aproveitando as suas folgas
da maneira que lhe dava mais prazer e que era a de
ser útil e descomprometida. Quando fazia um
cruzeiro achava sempre maneira de se ocupar das
crianças nos infantários ou dos cães nas suas
jaulas de bordo. Nunca se queixava de nada e comia
a sopa fria sem repugnância e esperava
pacientemente que lhe mudassem a roupa do seu
beliche. Ao terceiro dia de viagem já a tinham
138
reconhecido como a hóspede encantadora e
guardavam-lhe um lugar abrigado ao lado da
piscina, como se ela fosse uma parenta incógnita.
Era tudo natural, sem troca de benefícios; ao fim
da viagem, ela partia deixando uma saudade atrás
dela. Tanto a empregada da faxina, como o rapaz do
bar, e até o capitão que, para a experimentar, lhe
apertara o braço de maneira convidativa, guardavam
um pequeno despeito de amor vendo-a sair com as
suas malas de mão que, de repente, a denunciavam
como uma pessoa rica. Que andara ela a fazer senão
a enganá-los a todos?
Ela voltava para Martinho sem ter nada que contar,
só um pouco mais queimada do sol, e retomava a
lida da casa como se não estivesse fora senão o
tempo duma matiné.
- Foi divertido? Encontraste gente interessante?
Parecia que Martinho lhe falava chinês. Deitava-
lhe os braços ao pescoço com tal alegria que ele
não perguntava mais nada. Afastava-a um pouco para
a olhar de frente, e aquela sensação de
desconforto, como se estivesse a violar uma
criança, enchia-o dum medo estranho e de estranho
prazer. O que é uma mulher? Não era, bem vistas as
coisas, um predicado real. No caso de Judite, a
sua alegria não dependia da satisfação dos seus
desejos; podia-se dizer até que ela não tinha
desejos senão os que eram manifestados pelos
outros. Mas o que sustentava a inquietação sobre a
sua pessoa era a falta dum elo estável com o
mundo. De repente, tudo podia mudar e Martinho
estava preparado para aceitar a morte dela; mas
não estava preparado para outro tipo de abandono.
Alguns homens (ela sabia isso) apressavam-se em
deixar o lar e a constituir outra família, para
não terem que se ver abandonados. Pressentiam que
há um ponto de ruptura (e os médicos, entre os
quais Horácio Assis, chamavam-lhe climatério) em
que as mulheres deixam a sua dimensão
139
terrestre e todas as ligações com a terra lhes são
indiferentes. Não sem sofrimento, não sem desordem
profunda. A transformação dos fenómenos do corpo
são a mudança que se opera na sua mente. O doutor
Horácio achava que Judite, ainda que fosse muito
nova ainda, estava a desfolhar o seu climatério,
como se desfolha um malmequer. Se chegasse à
última pétala e isso coincidisse com a palavra
bem-me-quer, ela entrava em casa e nunca mais saía
de lá senão num bonito caixão de mogno. Mas se a
palavra fosse mal-me-quer, não teria descanso.
Eram coisas que ele pensava. O facto de ela não
engendrar qualquer coisa viva, um filho, não
queria dizer que ela não fosse fértil, ou antes,
que renunciasse à fertilidade. Martinho tinha
ainda muito que aprender com aquela mulher.
Conceder que Judite lhe podia dar lições, ela que
nunca aprendera que não se empunha uma faca à mesa
como se fosse uma lança, era totalmente bizarro,
senão impossível. O doutor Horácio avisava-o:
- O climatério dela já começou. Não se sabe no que
pode dar.
- No que pode dar? Nada de bom, concordo. A mulher
está no útero, já diziam os romanos. Tenho uma
quantidade de dores de cabeça à minha espera.
Já ninguém dizia "dores de cabeça", mas chatices
ou fases quando se tratava de mudanças. Martinho
estava nesse momento ocupado em revestir de
azulejos o jardim e andava em busca de painéis,
ficando cada vez mais conhecedor sobre a matéria.
Mas de Judite não sabia quase nada, excepto que a
maternidade lhe fazia falta. Vê-la a tratar com
crianças, era notório que as amava do fundo da sua
alma tíbia e infantil. A menos que aquilo não
fosse senão uma recordação reprimida dos tempos em
que um menino de dois anos era um
140
prato suculento. A civilização estava a retroceder
os seus milhões de anos depois do ser primordial
que a tinha formado. E daí as fantasias com
dinossauros como se fossem contemporâneos; e
outras coisas. Era tudo tão isolado como Deus no
infinito. Quando Judite entrara na Casa do Cão,
não tinha mais de doze anos. A instrução que
tivera, além do curso de costura num Patronato e o
primeiro ciclo da preparatória, era sobretudo
doméstica. Aprendera com a mãe os trabalhos da
vinha destinados às mulheres, vindimar, sachar,
levar a comida aos homens em grandes vasilhas de
latão. Aprendera que, mantendo a colher do caldo
dentro da panela, o calor se concentrava nela e
durava muito mais tempo. Também sabia matar
frangos e coelhos, sem se impressionar, tendo até
uma pequena ira que fazia as coisas mais fáceis.
Era preciosa na vida de casa mas quando Maria Rosa
a mandou estudar maneiras e sobretudo querendo
tirar-lhe o sotaque local, viu-se em dificuldades.
Bonita era, com os olhos azuis raiados de preto e
os cabelos aos anéis. Alta, com um rosto à Clouet,
um pouco surpreendido e claro, causava nos homens
uma impressão cautelosa que é o princípio duma
paixão. Por ciúme talvez, Maria Rosa não a quis
deixar partir com nenhum deles e discutiu em
família as vantagens de casar Martinho com ela.
- Não sei se é boa ideia. Ele que diz? - O doutor
Horácio estava tão incomodado que lhe faltavam as
palavras. Nunca se vira uma coisa dessas. - Ela é
como um animal em cativeiro, um dia vai querer
voltar à selva.
- Já não há selva, doutor - disse Maria Rosa, meio
agastada. - Martinho gosta mesmo dela; bem vejo o
olhar dele, quase suplicante, quando ela o serve à
mesa. É um intelectual e os intelectuais casam com
as cozinheiras.
- Eu casei com uma professora.
141
- Quem lhe diz que teria feito melhor se casasse
com uma cozinheira?
- Você diz. Mas a Maria Rosa é uma matriarca, só
gosta de mulheres ignorantes e que sejam as traves
da casa. Tem que falar com o seu neto muito a
sério. Está em causa a felicidade dele.
Maria Rosa tinha motivos para ficar pensativa, mas
não ficou. Uma vez que estavam sós, ela e
Martinho, depois de jantar e Judite lhe ter
preparado o cachimbo e saído da sala, ela abordou
o assunto. Tratou-o por você, como nas ocasiões de
maior solenidade.
- Não é novidade para si, mas queria perguntar-lhe
uma coisa: que pensa de Judite?
- Que Judite?
- Bem, não é a de Holofernes. A nossa Judite.
- Não sei. Diga-me a avó.
- Não lhe agrada?
- Sim, agrada-me. É como uma irmã para mim.
- A parte o incesto, que não deixa de ter
atractivos, que acha casar-se com ela?
- Casar-me? - Ele fechou os olhos como se o fumo o
incomodasse e uma onda de prazer fê-lo corar.
Desejava Judite quando a via, com os braços nus, a
lavar roupa miúda e a pô-la em sabão ao lado, como
se fazia dantes e ela tinha aprendido desde
pequena. Aos quatro anos, a mãe punha-lhe um
banquinho diante do lava-loiça na cozinha e ela
esfregava panelas do tamanho dela, raspando com a
unha o feijão-frade pegado no fundo. Aos quatro
anos ia para a colheita do morango nas estufas, e
não se queixava. O trabalho assentava-lhe como uma
luva; crescera a mexer-se, a ser mandada, a ouvir
os gritos da mãe que a repreendia, a sacudia, não
a deixava parar. Mas fez-lhe um vestido para a
comunhão, tal
142
como o duma noiva; com grinalda e véu, e até luvas
de algodão branco que ela se esforçou por não
sujar.
- Se as sujas, mato-te! - disse Estrelinha Sopa-
de-Massa. Parecia uma lady, grande e com sardas
douradas. Judite ficava a olhar para ela com
admiração, agradecida por ter uma mãe tão bonita,
ainda que geniosa. Quando o sol lhe dava, na
varanda das traseiras, era uma autêntica estampa.
Ao pai amava-o doutra maneira. Era um amor severo,
não deixava que ele lhe desse um beijo desde os
seis anos. Fechava o quarto à chave para ele não
entrar. Mas estava sempre pronta a fazer-lhe
recados, a ir comprar-lhe cigarros, a pedir
emprestada uma tesoura da poda. Não o desgostava
em nada. Punha-se a olhar para a imagem de Cristo
morto na cruz, com uma ferida azul de sangue
pisado no lado e que parecia verdadeira. As
lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo. "Não o vou
desgostar em nada", pensava.
- Onde estiveste tanto tempo?
- Fui ao catecismo.
- Rai's partam tanto catecismo! Escolhe-me essa
hortaliça.
- Já vou.
A bata era curta e descobria-lhe as pernas altas
com um pêlo loiro, que a mãe não deixava que as
rapasse. "Depois nascem mais fortes." Mas, com
isso, resistia a achá-la mulher feita e a entrar
na roda das casadoiras.
Como é que Judite se tinha adaptado não se
percebia muito bem. Seis anos foram o suficiente
para ela se transformar e Maria Rosa orgulhava-se
da sua obra. Aos dezoito anos Judite era uma
senhora, direita como um fuso (ou torneada como um
fuso, tanto faz) e só pecava por uma coisa:
gostava de telenovelas e era capaz de memorizar
seis ao mesmo tempo, sem se enganar. Ainda que
fosse para ela um sacrifício
143
assistir a jantares, quando se recebia na casa,
comportava-se lindamente. Então, vestida de veludo
preto, causava sensação.
Ninguém se admirou quando Maria Rosa comunicou o
casamento do neto com Judite. "Se o Nabasco fosse
vivo, as coisas não se davam", disseram. Mas como
Martinho não a levava ao clube, nem aparecia com
ela senão muito raramente, deixaram de falar no
caso. No fundo, os homens eram muito fleumáticos
quanto aos deslizes uns dos outros e costumavam
dizer que está tudo bem logo que não haja
engarrafamentos de trânsito.
O Porto não tem tradições fidalgas, toda a gente
sabia. Negociantes, empresários, capitalistas, com
as artes no Porto, a exemplo da Revolução
Francesa, chamam artistas aos trabalhadores de
certas profissões, como pintores, canalizadores e
electricistas. Pessoas como Martinho Nabasco
mereciam algum respeito porque eram ricos e só por
isso. A seguir vinham os médicos e os professores
e por fim os padres e os jornalistas. Era
frequente os rapazes de boas famílias não terem
grande instrução mas apenas mestres de caligrafia
e contas. Maria Rosa seguiu essa cartilha quando
já não era usada.
- Como as coisas mudaram! - disse Maria Rosa. Já
deixara de fumar há muito tempo, mas tinha aquele
gesto de quem procura um cinzeiro ou uma caixa de
fósforos, deitando em volta um olhar pesquisador.
- Não digo só pela periferia e as pracetas novas,
e as linhas de trânsito que vão dar a qualquer
parte (Deus me livre de querer saber aonde vão
dar, nunca mais lá chegava), mas pelas pessoas.
Não conheço ninguém. Ou estão mortas, ou em casa,
com Alzheimer. Eu recebia para o chá às quintas-
feiras e às vezes aparecia um desconhecido e
entrava. Podia roubar as gabardinas no ben-galeiro
e ninguém impedia. Agora fechamo-nos a sete chaves
144
e para recebermos alguém tem que trazer um crachá
da polícia. Tenho três cães soltos à noite e
câmaras por toda a parte. Ninguém entra que não
seja filmado.
- Que ingénua! - disse o doutor Assis. - Eu
apresento-me aqui com a minha camisola de gola
alta puxada até ao nariz e ninguém me reconhece. E
os seus cães são de exposição. Com duas pedradas
estão arrumados. Espero que não tenha em casa o
seu colar de pérolas.
- Onde o havia de ter? Preciso dele de repente e
quero-o à mão.
- De repente, como?
- Posso ficar de cama e gosto de o pôr na cama.
Sabe disso.
- Parece uma heroína da Agatha Christie.
- Tanto melhor! A Agatha Christie é do meu tempo.
Fazia uns romances como arranjos florais; com uma
aranha dentro. A Highsmith era melhor. Li
bastantes livros policiais, são muito repousantes.
Ela falava muito ultimamente, "como uma matraca",
dizia o doutor Assis que, entretanto, se
modificava também. Tornara-se guloso e comia seis
scones com manteiga duma assentada. No tempo em
que os scones não eram congelados e se faziam
todos os dias para o lanche, sabiam muito melhor.
O grande canapé de veludo alemão parecia uma canoa
no rio Amazonas. Tudo era mais bonito, até a luz
do pôr-do-sol era mais bonita.
- Já falou com Martinho? Vamos a coisas sérias -
disse o doutor Assis.
- Que mania interromper as coisas agradáveis com
coisas sérias! A Patrícia Highsmith tinha, quando
eu a vi em Toronto, um casaco de caxemira cinzenta
e um olhar de
145
raposa à caça de coelhinhos bravos, desses a lavar
a cara à beira duma poça de água. Não me esqueci
mais.
- Que estava você a fazer em Toronto?
- Qualquer coisa séria. Comprar umas peles, não
sei. As peles de foca estavam muito baratas, eu
fiz algum negócio com isso.
- Não me diga que era foca bebé.
- Não. Era a foca avó. - Ela riu-se e deitou-se
para trás, no seu jeito de rapariga que, no
entanto, roçava pela melancolia. Não por nada. Mas
as mulheres guardam no fundo do coração um
cumprimento para a juventude que nelas passa sem
aviso e sem saudade, e a qualquer momento da vida.
Não era fácil abordar o assunto do casamento com
Martinho. Dizer-lhe o quê? Que ninguém se casa com
a filha dum assassino, por mais bonita e bem
educada que ela seja? Ele estava no seu direito
para lhe responder asperamente e até de cortar
relações ou pedir à avó que não o recebesse mais.
E Assis não queria encarar essa hipótese; gostava
de jantar nos Nabasco, de comer bem e jogar a sua
partida de bridge quando havia com quem. Maria
Rosa não era viciada, mas as cartas davam um toque
feliz ao fim do seu dia. Baixava as luzes e só a
mesa de jogo ficava iluminada. Como nos filmes dos
grandes marginais, com sobretudos forrados de
cetim vermelho. Havia nela uma obscura inclinação
para a clandestinidade e fora decerto isso que a
levara a adoptar Judite. Qualquer que fosse o seu
comportamento, não a decepcionava. Como acontece
com pessoas no fundo arrebatadas por um sentimento
congénito de desordem e até de malvadez, ela tinha
súbitos desejos de redenção. Gostava de ter ao pé
dela gente nova e ingénua, que de certo modo
corrigia na sua alma as acções que praticara ou
estivera prestes a praticar: desvios de
testamentos, roubos em família de jóias e peças de
loiça
146
avaliadas em alto preço. Donde viera a Ronda da
Noite? Suspeitava-se que era uma cópia, dessas que
quase chegam ao valor dum original; o prazer do
negócio, em Maria Rosa, superava o do jogo. Viver
na casa do Torreão Vermelho, donde se via a cidade
inteira mas que era de certo modo inabitável
(porque não tinha aquecimento, só uma quantidade
de lareiras, que era impossível ter acesas ao
mesmo tempo por falta dum oficiante apropriado),
significava que ela tinha ideias sobre a Ronda.
Maria Rosa não era pessoa para se afeiçoar a um
valor; tinha-o como refém dum contrato aparentado
com o jogo. Tinha uma autêntica paixão pelos
leilões e, nesse sentido, corria as casas a serem
arrematadas como um atleta percorre a área da
prova e avalia as suas condições. As jóias raras
também a tentavam, se bem que, com excepção do
colar, não as usasse. Os longos lóbulos das
orelhas (índice de felicidade para os chineses)
tinham crescido sem terem nunca suportado
arrecadas ou brincos de qualquer preço. Quando
Judite lhe fazia ver que a casa se tornara grande
demais, com as suas três salas de tectos altos e
os frescos nas paredes com as nove musas, e outros
espalhafatos semelhantes, Maria Rosa ficava perto
de a odiar.
- Que queres? Uma sala comum e a marquise? Se não
te agrada, muda-te.
Era estranho como Estrelinha Sopa-de-Massa dizia a
mesma coisa, mas exactamente a mesma coisa, quando
Judite se queixava: "Se não te agrada, muda-te..."
Era um estribilho que continha uma lição; abria-
lhe a porta para uma vida de surpresas como ela
própria tivera, algumas boas, outras para
esquecer. A vida!
Se Judite tinha recordações desse tempo, do pai
que bebia, da mãe iracunda, guardava-as para ela
própria. Olhava para o Cristo na cruz, na igreja,
em tamanho natural e com
147
membros de atleta, e sentia-se insegura. Como era
que Ele se deixara prender e maltratar daquela
maneira? Judite tinha um antepassado almocreve que
fazia recovagens para o cerco do Porto e outras;
trazia de Espanha galões e rendas, com que fez
fortuna. Chamava-se Jesus, o que confundia muito
as crianças. Quando era muito pequena, Judite
tinha vaidade em descender do Jesus das encomendas
e sentia-se alguém com aquele parentesco, tão
distante que nem uma lebre a correr o apanhava,
como lhe dizia a mãe.
Como viu Judite o casamento com Martinho? Ninguém
lhe perguntou nada antes de ele aceitar recebê-la
como esposa. Depois parece que ficou desiludida
porque se tratava quase duma união de facto e não
duma cerimónia a valer, com hino na igreja e
vestido de noiva.
- Posso ir de branco?
- De branco ou de cor, é contigo - disse Maria
Rosa, compadecida. - Levas um ramo de gardénias cá
do jardim que são um espanto.
Para ela uma união de facto não passava dum
ajuntamento, mas prevenia decepções. Tinha nos
ouvidos as catilinárias do doutor Assis que não se
fartava de condenar aquilo, dizendo que a cabra
puxa sempre ao monte e coisas assim. - Ora, pode-
se fazer o que se quiser, já não há censura para
nada e não perco as minhas partidas de brídge por
causa disto. E tu, Judite, não te ponhas triste.
És tão honrada como as outras e não tens nada a
perder.
- Jura? - disse Judite, num tom de voz distraído,
mas que não era tão distraído assim. Maria Rosa
deu-lhe um enxoval digno duma princesa. Pena era
que as antigas bordadeiras do Porto já não
existissem, mas em Bucareste sim, que havia
autênticas fadas da agulha que faziam ponto de
sombra e a
148
cheio. Mandou vir de lá camisas que mais pareciam
vestidos de Madame Récamier no sofá.
O casamento não mudou nada, se exceptuarmos a vida
conjugal, que não foi por aí além, nada parecido
com as cenas de amor explícito apresentadas na
televisão ou no cinema. Qualquer criança de quatro
anos sabia beijar com a língua e que o sexo era
uma distribuição de encontrões. Isto tornava-as
desprevenidas quanto ao assédio de pedófilos que
se insinuavam pela arte da rendição a começar pela
curiosidade.
Como Judite não tinha filhos, pensou-se que levava
uma vida de vestal, para não dizer de freira, que
levanta objecções de toda a espécie. Mas não. O
casal era feliz desde que a sua intimidade não
fosse sujeita à opinião de todos. Dantes só a
lavadeira tinha acesso aos lençóis dos casados; e
daí às suas relações em que passava o conceito do
ser humano, qualquer que seja a sua idade, cultura
e tamanho; o conceito de que não são as suas
perfeições que os recomendam, porque em toda a
perfeição há elementos negativos. No amor há um
impudor brutal, a par duma castidade postiça.
Judite preferia preservativos cor-de-rosa,
desacreditando-os como objecto sexual. Não
confiava totalmente em Martinho e pensava que ele
lhe podia transmitir a sida de que tanto ouvia
falar.
- É homem e os homens fazem coisas que nem se
acredita - disse Elisa, que ficou indignada.
- Ele não é desses. Fica-te mal teres ideias
dessas.
- Não são ideias, são pressentimentos.
- Os teus pressentimentos são muito malcriados. -
E Elisa virou-lhe as costas.
Judite pensava se estaria ou não apaixonada. Na
dúvida, dava-lhe para se dedicar às artes,
começando pela poesia. Alguém disse que os maridos
não consentiriam na vida real às suas mulheres
aquilo que elas punham em verso. Não contente
149
com esses trabalhos, Judite enveredou pela prosa e
valeu-se das meias verdades que são desejos
estropiados. Pretendia uma liberdade sem saber,
como ninguém sabe, quais as leis que regem a
liberdade. No fundo, queria incomodar Martinho
arrogando-se uma moralidade que precisava duma
cultura e de Deus como cultura, para se afirmar.
Ele estava muito longe de se interessar pelo mal-
estar que ia crescendo e ameaçava tornar-se
crónico. Não a contrariava nem se ria dela, mas
também não lhe anunciava nenhuma compreensão,
apenas um respeito que era devido a ele próprio
como marido. Talvez esperasse que Judite
desaparecesse da vida dele, como por encanto, sem
que ele se sentissse culpado de nada. "Não se pode
viver muito tempo com uma mulher sem se efeminar",
pensava Martinho. "Vamos acabar por termos tendas
à parte para não sermos um só sexo." Ele tinha
lido um diálogo atribuído ajesus e Maria Madalena,
diálogo em que se reconhece o fim do
desentendimento entre homem e mulher "quando ela
deixar de dar à luz e houver um único sexo". Era
alucinante, não se podia falar disso, pelo menos
por enquanto. Martinho suspirou e dormiu um pouco,
estendido no sofá vermelho que tinha mudado para
um rosa esbatido.
- Não vem jantar? - disse a avó, do fundo da
escada.
- O que é o jantar?
Ele sentiu que estava na Casa do Cão muitos anos
antes e se punha a mesa no jardim, ao fim da tarde
de Julho. Havia lagosta e vinho espumante em copos
altos. "Vai lavar as mãos" - disse o avô.
- Jesus não lavava as mãos.
Isso valeu-lhe uma bofetada com os dedos, Martinho
fugiu com a cara e desequilibrou-se mas não chegou
a cair. O avô andava a dormir com a criada de
sala, uma morena baixinha
150
que não prestava para nada. Mais duma vez foram
encontrados no andar por cima da garagem e que,
porque não havia chauffeur, se destinara a quarto
de costura. Era quente e sombrio e dava ideias de
segredo e decomposição da carne. Um dia, descia
ele pela avenida onde havia amoreiras de frutos
brancos e sem sabor, e apercebeu-se de ver outra
pessoa que, como ele, conhecia esse mesmo lugar.
Já tinha estado ali, no corpo de outro. Guardou
para si essa estranheza, não tinha mais de sete
anos.
- O que é o jantar?
Foi Elisa quem lhe respondeu para lhe dizer que
ele ia gostar. Era dada a mistérios sobre as mais
pequenas coisas. "Quem te disse isso, Elisa?"
Calava-se. Até se calava quanto ao horário dos
comboios e o boletim meteorológico. De tudo fazia
reticências e ares sabedores. Se não fosse isso,
também não tinha graça. O cabelo ia-lhe caindo e
ela guardava-o numa caixinha de papelão.
Tosquiava-se o cão e ela guardava o pêlo cortado.
- Para que é isso?
- Para nada.
- Então para que o guardas?
- É uma recordação.
- Não é um feitiço? Calava-se.
Há uma quantidade de pessoas que não fazem nada em
países amuados na sua História e que entendem que
outra coisa não vale a pena. Quando possuem um
talento natural, para o qual não é preciso
instrução, desenvolvem o engenho para produzir
obras que não se podem explicar segundo o
mecanismo do ensino. Para essas é inútil qualquer
método de preparação; saem-se melhor ou pior com a
sua afabilidade, que é uma aceitação do mundo em
contraste com o rigor do
151
juízo. Por isso, um grande artista é sempre
insensível ao justo e ao injusto e o que primeiro
advertimos nele é a faculdade de conhecer as
regras, mas não aquelas pelas quais a natureza
oferece ao homem ordem, segurança e prémio desta
obediência. Ficaríamos surpreendidos ao saber
quantos em Portugal não seguem as regras e se
regulam por outras que limitam a dificuldade ao
astuto. A astúcia é a soberana qualidade do
português. "Quem brilha na segunda fila, eclipsa-
se na primeira", disse Voltaire. É uma espécie de
provérbio, que não chega a todo o entendimento.
Martinho era desses que brilham na segunda fila.
Na primeira não era sequer convidado a brilhar e
havia uma porção de indivíduos menores que se
destacavam em todas as áreas. Isso dava-lhe a
possibilidade de poupar-se à mediocridade que é
precisa para vencer as filas dianteiras, duras de
vencer, se não impossíveis de pressionar. O motivo
por que o português, quando tem talento, prefere a
segunda fila é porque sabe que na ordem do
colectivo tudo é insolúvel. Poupa-se tempo em
segunda fila, mais do que é imaginável. Mas também
se vive com atraso, com respeito à civilização; e
a sensibilidade profunda que se exercita em
segunda fila é inimiga da rapidez para agir.
Em certo sentido Martinho era um parasita, mas um
parasita pensante. A única coisa que não se
atrevia a descobrir era o carácter da sua mulher.
Partia do princípio de que, para o casamento ser
bem sucedido, tinha que jogar com forças
desiguais. Um tinha que estar submetido ao outro e
haver sempre uma iminência de guerra entre os
dois. Não era solução, quando surgiam
dificuldades, separarem-se; imediatamente iam
buscar situações contraditórias em que se pratica
o sentimento mais soberano, que é a compaixão.
Esta era a
152
única variante das relações do casal e a única que
mantinha em equilíbrio as suas paixões próprias e
singulares.
Estrelinha Sopa-de-Massa, assassinada numa noite
do fim do Verão, sabia quando o marido a enganava:
deixava de lhe bater e tratava-a com respeito
devido a uma desconhecida. Foi nesse estado que ia
além da suspeita que ela o seguiu, sendo vista
pela filha que a acompanhou de longe e assistiu ao
crime. Martinho tinha sempre alguma coisa a
averiguar quanto àquele caso e até se podia supor
que casou com Judite como um inspector da
judiciária se casa com um processo difícil. Seria
ela completamente inocente? Ficava acordado de
noite a rever a situação que as testemunhas tinham
mostrado, mas era evidente que não dominavam a
verdade e estavam excitadas pelo deleite público
de se encontrarem na primeira linha. Com Judite
não se passava nada; nem ele a interrogava, nem
ela parecia ter na memória senão um vazio. Só um
dia, quando Martinho voltou muito tarde para
jantar, ela disse sombriamente:
- A minha mãe deitava no balde a comida e mandava-
nos dormir.
Maria Rosa não estava presente porque jantava no
quarto às sete horas da tarde. Tinha dificuldade
em descer escadas, e recebia os amigos no andar de
cima, numa sala a que chamava o jardim de Inverno.
Desde os doze anos que Judite não se referia à
mãe. Era como se tivesse nascido duma "pedra
parideira", como as que há em lugares lendários do
país. Mas dessa vez falou da mãe como se estivesse
viva e ficou com os cotovelos fincados na mesa,
muito absorta, parecendo interromper uma cólera de
cujo perigo se apercebeu de repente.
- Estás bem? - disse Martinho. Esperava que ela
chorasse ou fizesse alguma coisa para o punir; mas
Judite serviu-o como de costume e levantou-se para
ir buscar outro guardanapo,
153
reparando que o dele tinha caído. Parecia
assustada e comprometida. Pôs diante dele a
manteiga e os gressinos e tudo o que ele podia
apetecer. Pepinos de conserva também. Estava
arrependida ou, mais do que isso: estava
verdadeiramente desorientada e corrigia, com actos
judiciosos e simples, a sua confusão. Martinho
sossegou-a com a sua fleuma, pediu-lhe desculpa
por ter chegado tarde.
- Não fiz nada de mais. O tempo passou. - Não
gostava de mentir, isso humilhava-o. Ela tinha os
olhos febris, os lindos olhos que pareciam negros
quando havia pouca luz. "A beleza tem qualquer
coisa que nos tranquiliza. Como uma enfermidade
que nos acompanha e da qual deixamos de ter medo."
Ele serviu-se um pouco mais abundantemente do que
o costume, querendo dar-lhe prazer com isso. Há
mulheres que se sentem retribuídas, mais do que
com o sexo, quando os maridos apreciam as suas
ofertas de comida. E aqueles homens, efémeros como
amantes, que nunca voltavam duma viagem sem um
presente de bolinhos ou de pralinés, como se
viessem dum país remoto! Eram inestimáveis.
No seu caso, nada tinha mudado. Era ainda o senhor
da casa e a avó a deusa Lar, ainda que quase
invisível nos seus aposentos do primeiro andar.
Mas para Judite não havia um lugar certo; andava
por toda a parte como num comboio demasiado
ocupado e esperando que ficasse livre um assento
para tomar posse dele e pendurar no cabide o seu
impermeável e na bagageira os seus sacos de
plástico. Não se podia dizer o que tinham dentro
porque não correspondia ao nome da loja. Judite
aproveitava tudo até à última e um saco de
plástico era para ela precioso, tanto mais se
sugeria qualquer coisa luxuosa. Gostava de saldos
e de pedir descontos. Mesmo no estrangeiro pedia
abatimentos; Martinho ia para a porta, a fingir
que não a conhecia.
154
- Que mania de falar inglês! Não sabe inglês
bastante e fica ridícula a abanar as mãos e a
repetir yes, yes.
- Eles não se importam. Estão ali para vender e
não para me fazerem exame.
Às vezes ela tinha resposta pronta, era mais
inteligente do que parecia. Isto punha-o nervoso.
Acreditava que um dia Judite havia de lhe dar uma
surpresa, apaixonando-se por quem não devia ou
coisa assim. Aconteceu tal como previa. Um homem,
novo no círculo das suas relações, apareceu em
jantares de Maria Rosa. Já não era ela quem
convidava; e fazia uma curta aparição com as suas
pérolas e dispensando um sorriso familiar, porque
todos os convivas eram herdeiros doutros que
tinham morrido ou mudado de rumo. Agora havia uma
gente mais ambiciosa em que se cruzavam os
afluentes da meritocracia. Todos tinham cursos
superiores e até mais do que um. Preparavam-se
para a competição, quando antes estavam seguros do
terreno, pisado quase exclusivamente pelas elites,
nem sempre ricas mas afiançadas por uma vida sem
escândalo, fosse de finanças, fosse de libido.
Pessoas como Martinho já não havia mais nenhuma.
Os seus companheiros de "aventuras de cordel",
como dizia o doutor Assis, tinham casado e
empobrecido com dignidade, retirando-se para as
suas propriedades para "lamber as feridas" e fazer
render, sem sucesso, o nome e as telhas dos seus
velhos solares. Já quase só havia rapazes bem
colocados e que não sabiam nada de maneiras, nem
de alfaiates. A uma sociedade que se reunia
sucedia uma multidão que se juntava. Não havia
cultura, havia opiniões e a imitação delas.
Mas, de tempos a tempos, aparecia, como uma cabeça
duma rã num lago, uma pessoa discreta, de olhos
parados, e era apresentada com um excesso de
adjectivos para esconder que não era ninguém do
grupo. Foi o caso dum rapaz novo
155
ainda, mas amadurecido pelo trabalho, e um
trabalho de cariz exclusivo, como era o foro
empresarial. Ao que parecia, nada o dissuadira de
ganhar dinheiro, mas isto fazia-o com uma
competência (dizia-se eficácia) tão brilhante que
não deixava rasto de ser alguém destituído de
virtudes. A marca da sua convicção em ser um
ganhador estava em que ele gostava de ser elogiado
pelos seus dons de pequeno burguês: o amor dos
filhos e a fidelidade conjugal. Desprezava os
políticos porque lhe pareciam ingratos, desonestos
e sem palavra. Desconhecia que um político é, por
natureza, pouco ou nada agradecido aos seus
apoiantes; que deixam sempre uma cláusula nos seus
acordos por onde possam escapar; e, sobretudo, um
político estima, como se fosse ouro, um processo
sobre costumes porque ele levanta o bastante
alarido para criar um clima de indignação onde
devia haver discrição. E a indignação é um surto
epidémico que o legislador não pode controlar.
Nesse entretanto, elevam-se os políticos, criando
factos que, na realidade, são sobretudo efeito dos
seus jogos. Este homem de que estou a falar
chamava-se Manuel Andrade. Era mais alto do que o
normal e tinha uma cabeça redonda, à Péricles, que
dizem ter tido uma cabeça de cebola. Não era
bonito nem particularmente amável. Os homens muito
empenhados no seu trabalho não são amáveis nem
sabem mostrar simpatia. Não se interessam por
mulheres e para eles é como se fossem todas
iguais. Alguém que goste do poder, não digo que
detesta as mulheres, mas não lhes presta atenção.
Napoleão dizia que amava o poder como artista, mas
não é verdade. O poder não se ama, pratica-se,
assim como as mulheres não se amam, distribuem-se
pela vida dum homem como se fossem uma paciência
com cartas.
Manuel Andrade, antes dos quarenta anos estava tão
rico que, antes de abrir a boca, era já uma força
de persuasão.
156
O dinheiro fazia-o poderoso, o desejo fazia-o
desgostoso de si próprio, porque adquirir era
muito menos do que desejar. Os homens ricos todos
se parecem neste particular: o amor de acrescentar
a fortuna é traído pelo receio de a achar
vulnerável às crises que a arruinam.
Quando ele se apresentou pela primeira vez no
Torreão Vermelho causou uma impressão
desconfortável em Martinho. "Aqui temos um homem
disposto a mostrar o seu poder porque sabe que
nada o pode parar", pensou. Judite estendeu-lhe a
pequena mão de unhas cortadas rentes, o que era
sinal de que não as queria ver quebradas nas suas
simples tarefas de casa. Manuel Andrade sentiu uma
espécie de culpa por não poder gozar da sua
companhia falando-lhe como os homens fazem com as
mulheres, como se quisessem ignorar o seu
subdesenvolvimento. Tudo o que podiam conceder-
lhes era uma salvação do que seria a sua vida na
China ou na índia há duzentos anos.
Mas tudo isto não ocorria a Manuel Andrade.
Subitamente ficou feliz e bebeu com delícia o seu
champanhe rosado. As pessoas pareciam-lhe sinceras
e boas e sentiu um estranho bem-estar em não ver
nenhum indício de falsidade à sua volta. Não era
daqueles de quem se dizia que "tinham subido a
pulso" para esconderem que o invejavam. Na
verdade, era filho dum lavrador remediado que o
mandara estudar, a ele e aos irmãos, sem esperar
que fossem muito além da mediocridade. Nunca se
atrevera a pensar que eles ocupariam lugares de
responsabilidade.
Mas Manuel Andrade surpreendeu toda a gente. Fez
exames brilhantes e perseguia conhecimentos cada
vez mais ambiciosos. Não namorava, não ia ao
cinema, lia apenas livros de gestão financeira e
esperava a sua ocasião.
157
Um rico reconhece outro rico com só apertar-lhe a
mão e a vê-lo atravessar uma sala.
- Tenho boa impressão deste rapaz - disse um rico.
- Não pisa os tapetes, anda só em volta deles. -
Convidou-o para jantar às quartas-feiras, depois
trocou os dias e ficou bem disposto porque ele não
protestou. Manuel Andrade não tinha uma táctica,
tinha uma ideia, estar acima das suas ambições.
Sentado ao lado de Judite, à sua esquerda, quase
não falaram; mas não se sentiam como estranhos, o
que os fazia rir com tal satisfação que todos
começaram a reparar neles. O doutor Assis foi
dizer a Maria Rosa.
- Passa-se qualquer coisa, lá em baixo. Não sei o
que é, mas as pessoas falam todas ao mesmo tempo e
não se ouvem umas às outras.
Maria Rosa estava na cama e mudava os canais da
televisão com um vigor irritado.
- Não há nada que preste.
- Ouviu o que eu disse?
- Não.
- Acredita no diabo?
- Quem não acredita? Os ateus não acreditam em
Deus mas no Diabo acreditam. - Ela estendeu as
pernas na cama, e aquilo devia fazê-la sofrer
porque se queixou. - Não me serve de nada, não me
tira as dores. Vem aqui perguntar-me coisas que
não me servem de nada. Era melhor calar-se. - Era
um quarto largo, com cortinas que davam para fazer
velas para uma nau; mas leves, como se a espuma do
mar as tecesse. Ela parecia não ter tomado atenção
senão aos estalidos dos seus joelhos, mas disse
apressadamente: - Julgo ter percebido.
- Percebido, o quê? Já disse que alguma coisa se
passa. Tive uma ideia terrível.
158
- O dinheiro e o amor é uma ideia terrível.
- Como adivinhou?
- Não adivinhei. Já sabia. Quando se encontram é
como o canto dum pescador num barco que se perde
no nevoeiro. Não se pode voltar dum amor assim.
Ele esperou que Maria Rosa dissesse mais alguma
coisa, mas ela não disse mais nada. Não estava
perdida em pensamentos, tudo nela era concreto e
sem sombra de pena. O doutor Assis desceu para o
andar de baixo e foi tomar o seu café que,
entretanto, tinha esfriado. Quase toda a gente
tinha ido embora, restavam dois homens que
discutiam assuntos conflituosos em que se
percebiam coisas sobre vidas privadas. O vinho
fazia-os destemidos e sinceros. Judite não estava
presente. Ainda se praticava o velho costume
inglês de deixar os homens sós para beber e falar
mais livremente. Não era o salão principal, com o
piano aberto e uma série de frescos que
representavam as nove musas um pouco parecidas com
o modelo favorito de Boticelli. Era a pequena
biblioteca com mezanino e retratos de escritores
do século dezanove. Vitor Hugo e Lamartine, em
pose para a posteridade. Martinho, à parte num
sofá de molas gastas, estava a admirar um cocker
dourado que tinha entrado em busca de guloseimas.
- Que bonitas orelhas tem este cão - disse, quando
viu o doutor Assis. "Com que se droga ele?" -
pensou o doutor enquanto sorria, com doçura.
Estaria na fase da metadona ou alguma coisa mais
estimulante? Verificava os dentes escurecidos de
Martinho e aquilo entristecia-o. Ao menos os
desgostos não o atingiam quando viessem; a morte
da avó, a queda da casa, o despedimento dos
criados que se tinham feito arrogantes. O
châuffeur, a exigir os subsídios atrasados, uma
pequena fortuna. E Judite? Não se sabia no que ia
dar, o doutor nem sequer lhe concedia o benefício
da dúvida. Gostava
159
dela, os homens gostam de todas as mulheres em que
captam alguma coisa de disponível. Sentou-se ao
lado de Martinho e o sofá rangeu com o seu peso.
- Estes dois não se vão embora - disse. Mas viu
que Martinho não estava em estado de manter uma
conversa. Não era desagradável a companhia dum
drogado; indefeso e pacifista, leve como uma
pluma. Talvez a dose certa desse a receita do
cidadão comum e as guerras acabassem. Mas o mundo
caía numa ficção monstruosa que nem o filósofo
Kant teria imaginado. Ele disse que um artista da
política podia dirigir o mundo por meio duma
ficção capaz de suplantar a realidade. A ficção da
liberdade já fora experimentada no Parlamento
inglês; a da igualdade também, na Convenção
francesa. A do sexo fora iniciada para
desacreditar a revolução bolchevista. A ficção da
droga estava em pleno concerto com o poder; e o
terrorismo de espectáculo estava a ser aplicado
como o meio de criar o cidadão ideal, o incapaz de
si mesmo.
O doutor seguia com o olhar o cão que atravessava
a sala desiludido. "Coitado! Era tão fácil dar-lhe
uma bolacha..." Martinho parecia ter-lhe captado o
pensamento e chamou o cão repetidas vezes. Mas ele
não veio; já tinha sido enganado e fizera disso um
reflexo condicionado. A partir daí as coisas
tomaram um cariz funesto. Judite tornou-se o
centro dum motim familiar que ensombrou uma década
inteira; tudo o que podia ter registo na história
política ou social deixou de ser sequer notado.
Tanto as paixões esvaziam a mente de qualquer
factor exterior a elas. A única pessoa que parecia
indiferente era Martinho. Nada o afectava e aos
poucos deixava de sair de casa. Mostrava ter por
Judite um sentimento arrepiante, como se esperasse
vê-la morta a qualquer momento. Não entrava mais
no quarto da avó para lhe dar o
160
primeiro beijo do dia; e não respondia às queixas
dela senão com um sorriso falso.
- Abandonas-me, já não vejo ninguém dos meus
conhecidos. A porta bate com o vento e vou adoecer
com as correntes de ar.
- Não há vento. Estamos no Verão e com um sol
muito bonito. - Elisa prendeu no colchão os
lençóis; habituara-se a ver Maria Rosa meio
demente e que, aos poucos, não sabia onde estava
nem quem lhe falava. Tinha momentos lúcidos e
irritava-se porque não a serviam rapidamente e
davam preferência a outros, pessoas estranhas que
ela nunca tinha visto. Paula veio visitá-la mas
não trouxe os cadetes, os dois filhos.
- Para quê? Iam encher-se de medo, além disso não
foram criados aqui. Esta casa está horrível. Todas
as torneiras pingam e a escada principal parece
que se mexe quando olho para ela de cima.
- São tonturas, deve consultar sobre isso - disse
Elisa. Enfurecia-se sempre que Paula vinha com o
seu enorme casaco de vison diamante preto. Mas,
como era no pino do Verão, não conseguia
identificá-la vestida de rosa e com sapatos como
bichos de focinho aguçado.
- Onde está Judite?
- Vamos lá saber! Se está em casa esconde-se por
aí.
- É bem uma casa para a gente se esconder. E a
mamã? Pensas que vai morrer?
- Mais depressa morro eu. Está com um coração de
ferro.
- Sempre teve um coração de ferro. Percebes o que
eu digo... Que chá tão bom tu sabes preparar!
Pouca gente tem mão para o chá. Diz-me, Elisa -
ficou calada, como a inventar o tom com que devia
prosseguir. - O colar está em lugar seguro? Sabes
onde está o colar?
161
- O senhor Nabasco sabe dessas coisas, eu não.
- Vejo que faltam coisas... Aquela figura duma
dama a ler. Um ovo de Fabergé... Desapareceram,
foram roubados?
- Aqui não entra ninguém sem que se saiba. Há
alarmes na casa toda.
- Isso não vale de nada. Os ladrões de casa são os
mais difíceis de evitar.
Elisa levantou o tabuleiro do chá; tinha cortado o
cabelo muito curto e estava ridícula. "As mulheres
querem enganar até ao fim", pensava o doutor
Assis. "Que espera esta carcaça?"
Elisa não só cortara o cabelo como o pintara de
vermelho que pretendia ser veneziano. "O mundo
sempre foi uma paródia pegada." Mas é com Elisa
que acabo este capítulo: ela viu que Paula não
subia para se despedir da mãe.
"Depois de velhos não temos filhos, temos
herdeiros", pensou Elisa. Parodiava Maria Rosa,
mas não dava conta.
CAPITULO V

O ESPÍRITO DO DRAGÃO

Não há poetas como os chineses. Não sei como tive


esta ideia, mas foi com certeza por causa do que
um poeta do século V chamou "a sabedoria do
desprendimento". Para o espírito desprendido,
todos os lugares são distantes, diz o poeta, cujo
nome não me atrevo a escrever por receio de
consumir letras sem escola.
Não se sabe se por efeito dalguma droga leve (como
o doutor Assis tinha por certo), se pela natureza
de mutante, Martinho tinha um espírito
desprendido. Fazia parte da sua condição de
português essa falsa indolência que era uma
senilidade sem moléstias. Nunca amara de verdade
Judite e foi com surpresa que se apercebeu que ela
era amada com paixão. Para ele, Judite tinha sido
resgatada a um destino triste, passando da
orfandade para o serviço de burgueses sem fortuna
e acabando por casar com um reformado que desse
desconto ao sangue que ela tinha nas veias. -
Maria Rosa ocupou-se de Judite como dum objecto
sem préstimo achado no fundo dum baú e fez dela
uma camareira. Não | uma criada, e com isso Elisa
debatia-se com todas as forças, mas como agente
duma vingança. Contra Paula, evidentemente. Se a
prejudicasse o bastante para ser lembrada por
[ela, atingia o seu objectivo.
Os grandes ódios entre pais e filhos, que dormitam
através de muitos anos de ressentimento (porque há
sempre uma
164
dívida a saldar de liberdades furtivas), raramente
se resolvem no arrependimento. Tudo é matéria de
acusação e canseira de argumentos para o
alimentar. Esse estado de furor mais ou menos
latente, e muitas vezes engrandecido até ao drama
partilhado por toda a comunidade, é o que se chama
o espírito do dragão. Vive numa cova profunda
esperando a ocasião de se manifestar com rugidos e
labaredas. Esse o contributo das relações humanas
para que a sociedade mantenha a pulsação criadora.
Na continuidade da revolução, passados os tempos
de retaliação ou de aproveitamento pelos mais
aptos para resistir e vencer, estabeleceu-se
aquilo que precede a ruína e que é uma ordem
fingida, tanto económica como social. Não eram
tomadas grandes medidas porque elas difamam sempre
o legislador. Quem tinha ocasião de servir-se dos
apoios comunitários deixou-se envolver na
corrupção e acabou mais pobre, só que com mais
gozo de gastos. Martinho citava Danton dizendo que
os meios revolucionários tinham sido funestos a
muita boa gente, pois a revolução não se opera
geometricamente; é como uma enxurrada que
desmorona muita coisa útil e arranca muitas raízes
de bons pomares de fruta sã.
O que se passou com Martinho era difícil de
adaptar às circunstâncias. Teve dinheiro
suficiente para aplicar nas terras que, na
realidade e na sua maioria, eram improdutivas.
Gastou a maior parte em melhoramentos supérfluos,
dando ordens pelo telefone e indo instalar-se nos
seus solares como se fosse um senhor feudal. Como
a maioria dos portugueses, tinha a noção de que,
de qualquer modo, seria enganado. Ninguém conhecia
os verdadeiros princípios da governação, e os
melhores cidadãos eram frequentemente apontados
como facciosos desde que reagissem contra a
desconsideração do bem público, incutindo a ideia
de que o grande inimigo
165
do povo era o seu governo. Partindo da ideia de
que o silêncio deve reinar à volta do poder,
fundou-se a instituição inatacável dos media
destinada a fabricar as opiniões. A maior parte
das pessoas novas aprenderam a ser tímidas para
estarem de acordo com o moralista político. Os
velhos falavam de doenças como de viagens à volta
do mundo. A palavra de ordem era preparação para
qualquer tipo de funcionário a ser escolhido e
empregado. Martinho atingiu o ideal do português
maduro: ver o mundo através da sua luneta
assestada no passado, sem mexer um dedo a não ser
para deitar açúcar suficiente no seu café.
De repente, porém, quando havia já um cheiro de
bolor nos armários e pouco que comer, a não ser
farinha para bolos, a casa dos Nabasco prosperou
estranhamente. Houve maneira de se fazer canis de
rede de aço para os cães de guarda; e instalaram-
se alarmes por toda a parte. Podia-se ser
fotografado desde todos os cantos das salas, o que
contribuiu para que Elisa cuidasse melhor a sua
aparência e mudasse mais vezes de avental. Não
faltou a piscina e uma colecção de carpas gigantes
no lago há muito desactivado. Deixou até de ser um
lago para ser um ribeiro em volta do jardim.
Carpas como aquelas, Martinho tinha-as visto no
castelo de Elsinor, e ficou muito impressionado.
Seriam de facto centenárias ou era uma lenda
originada pela sua corpulência e vigor?
A casa readquiriu a sua opulência. Só que não
havia senão carros utilitários na garagem, embora
se voltassem a ver as grandes marcas com os
motoristas, ainda que sem farda e polainas.
Recebia-se pouco, o tipo de convivas tinha mudado.
Eram economistas, alguns industriais ricos que
tinham desprezo pelo poder. Tinha-se passado da
República a novos impérios: o do petróleo, o das
armas nucleares, e o dinheiro não produzia ideias
senão de mais dinheiro. O rico abandonou
166
a sua hipocrisia, e os bancos que arruinavam os
governos e as pessoas tiveram a sua vindima e
passaram a registar os seus lucros publicamente
como se estivessem à mesa de jogo. Não se sabia
donde vinha o dinheiro nem para onde ia, e
Martinho estava nalguma encruzilhada por onde ele
passava.
Havia quem dissesse que a casa da Ronda servia
para o tráfico de droga e que, de mistura com o
fornecimento de lenha para as lareiras, que eram
sete, entravam os pacotes de cocaína. Eram
fantasias de merceeiros, que acreditavam que os
contentores do lixo eram valas comuns de gente
assassinada.
Mas que era um facto haver muitos crimes,
domésticos e outros, saltava aos olhos. Dava-se
talvez demasiada popularidade ao que não passava
do caso do dia mais trivial. E que, outras vezes,
se dava publicidade a transgressões fictícias só
para manter viva a curiosidade dum público
ignorante e sem projectos de acção. Bastava-lhes a
reforma e uma viagem a uma praia de palmeiras e de
sexo diurno. Até Elisa se tirou de cuidados e
comprou umas férias donde veio picada dos
mosquitos e com ideias feitas sobre massagens
tailandesas.
- É uma indecência, são como os macacos do Palácio
de Cristal.
Ela ainda conhecera os macacos na antiga versão do
Palácio, sempre a copularem e as fêmeas com as
mãos metidas na vagina, enfim um espectáculo que
fazia rir os rapazes e corar as meninas. Elisa
passou a achar o mundo uma reserva sem selecção
nenhuma ou então que o espírito de selecção tinha
mudado muito. Agora era o dinheiro e a cultura
como poder financeiro, mal sucedido, é verdade. E
o que é mal sucedido comporta uma lição moral.
Judite estava apaixonada. Toda a gente sabia,
menos ela. Tudo o que afecta o sistema é
extraordinariamente severo,
167
perscrutador e bem afinado. Uma paixão violenta é
mais depressa notada do que um tremor de terra num
sismógrafo. Judite raramente via Manuel Andrade e
estava sempre acompanhada quando o via. Mas todas
as suas emoções eram observadas, e a probidade do
sistema (que fazia com que as velhas notas de
vinte escudos fossem realmente queimadas em vez de
serem usadas antes de saírem da circulação)
funcionava. Alguma coisa é incorruptível no reino
da Dinamarca.
Ao lado da cidade que parecia abandonada, só com
fachadas mortas e janelas barradas com tijolos,
havia a cidade de feira, com vivendas, como
carroceis, telhados sobrepostos a que faltava a
neve oblíqua do Japão antigo. Faltavam-lhe as
lanternas vermelhas de Quioto e, às portas,
gueixas pintadas de alvaiade. Os jardins
desapareciam e, em vez deles, cresciam as estufas
dos supermercados, verdadeiros palácios de pobres,
iluminados e quentes, tópicos da imaginação
consoladora. Tudo era imitação: o algodão e a seda
eram fibras; a carne era fibra também; fibras os
sapatos que fingiam peles variadas, com fivelas,
laços, flores. As bijuterias pingavam das
prateleiras, os pastéis eram grandes, para bocas
devoradoras. A multidão engordava e crescia,
apaixonadamente.
- Não sei porque te pões assim - disse a avó.
Estás a escrever um livro?
- É o que faltava. Os livros não são escritos por
escritores, é verdade, mas por pesquisadores de
ouro. Pretende-se descobrir uma mina e não os
grandes objectivos da humanidade. Que eu prefiro
os artistas pouco informados e que não saibam nada
fora do seu bairro. Que coisas fantásticas se
podem escrever sem sair da nossa rua!
- Ou do teu quarto.
- Ou do meu quarto - repetiu ele. Estava intrigado
com tudo o que se passava com Judite, na verdade
pouca coisa
168
no seu dia-a-dia. Mas a atitude suspensa que ela
tinha, pressagiava um acontecimento que não era
bom. Parecia estar muito calada à beira dum
precipício, ou duma linha férrea onde passassem
comboios de alta velocidade. Ninguém podia deitar-
lhe a mão e segurá-la e, até, nesse sentimento de
iminente fatalidade havia o desejo insidioso de
ver a sua queda. "No fim de contas, é com ela."
Era um pensamento tão rápido que quase não se
articulava na sua cabeça. Uma vingança que era o
pormenor duma vida mal partilhada. E se a avó lhe
fazia alguma pergunta sobre Judite e o acordo que
havia entre os dois, não a levava a sério e dizia
que tudo era normal.
- Então estão em risco de não se entenderem,
menino. Não há nada de normal na normalidade.
Preocupava-se, deu-lhe para esconder as pratas e
os quadrinhos que tinha de impressionistas, como
Boudin. Quando a revolução estalara, vendeu
precipitadamente a colecção de pintura que tinha
em casa. Algumas telas foram enroladas para fora
do país; outras no forro das malas onde ninguém as
procurava porque a guarda aos tesouros nas
fronteiras era feita por gente acanhada e pouco à
vontade nesse ofício. Viviam ainda na Casa do Cão,
onde não havia lugar para nada. A maior parte dos
valores vinham dos solares desabitados do Nordeste
onde a população era fiel aos antigos princípios e
não aderira à mudança. A Ronda da Noite veio dum
desses solares ventosos e onde chovia como na rua.
Houve problemas com a Ronda, quiseram arrolá-la
como um original, e os peritos, receosos de serem
apontados como cúmplices, não se atreviam a fazer
uma avaliação rigorosa. Ficavam-se por
ambiguidades, em risco de parecer mal
intencionados à espera dum lucro qualquer de toda
aquela farsa.
Porque era uma farsa deixar correr a ideia de que
a Ronda era autêntica e de que valia milhões. Como
era possível tudo
169
ter passado como uma pedrada na água? Ou como a
queda duma castanha da índia.
- Notou alguma coisa na Judite?
Falou com precipitação, como se pudesse retirar o
que tinha dito. Maria Rosa olhou para outro lado,
disse que lhe corresse as cortinas, bonitas
cortinas de chintz, o mais inglês que era
possível. Assim como o canapé aos pés da cama e o
cesto para o cão, que já tinha morrido. Talvez
houvesse larvas brancas a roer o seu tapete
vermelho. Bem que o merecia, o tapete vermelho! As
orelhas do cão caíam-lhe fora do cesto como roupa
a secar numa varanda.
- Alguma coisa? Desde os doze anos que noto coisas
na Judite. A mudança para mulher e aquela mania
que ela tinha de beber água pelo fundo dos copos,
quando os copos tinham em baixo uma taça cavada.
Acho que já não se fazem copos desses. Judite era
uma aberração; todas as raparigas passam por isso,
a aberração. Comia pêssegos com leite, estava
sempre a misturar coisas que não se misturam.
- Algumas misturam-se, não quer dizer nada.
- Sim, algumas. Café com leite. Mas chocolate com
café não se misturam. É como as palavras: algumas
juntam-se, correm umas para as outras para se
abraçarem.
- Não presto muita atenção a isso.
- Deves prestar, senão és manhoso. Sabes o que é
ser manhoso? É o que tu és.
- Que foi que eu fiz?
- Nada... nada... Judite, aos quinze anos, ficou
de rastos. Queria ser amada e até o teu avô lhe
servia. Ela cantava, ouvia-se cantar com uns
trinados como uma sereia. Queria enfeitiçá-lo,
deitar-se com ele, dar-lhe um filho. As meninas de
quinze anos são um forno aquecido; só querem cozer
o pão.
170
- Está a exagerar, avó. Não gosta das mulheres, e
acabou-se.
- Não gosto das mulheres, não. Pode-se fazer com
elas o que se quiser. Um barrete de papel, até.
Podem ter prazer umas com as outras e depois vão
ao cinema e choram com uma fita estúpida. Não têm
remorsos de nada.
- Se me lembro, casou-me com Judite.
- É uma poldra amansada. Amansei-a para ti.
Eduquei-a para ti. Levanta o cotovelo quando bebe
pelo copo; não muito, só um bocadinho.
Ele sorriu, tristemente talvez. Quando um homem
fica triste é desesperante, não há nada que o
console. Maria Rosa virou a cara para não ter que
lhe perguntar nada a que ele ia responder com
evasivas, se não com mentiras banais. Quando o
Nabasco vinha de fora, com o seu colete de
caçador, ela sabia que tinha mudado de roupa em
casa da amante. Cabelos nunca os via no ombro
dele. Nem os procurava, tinha vergonha dos ciúmes
que sentia. Pensava que a outra estava em "piores
lençóis", como dizia para ela própria. "Se consigo
rir, consigo perdoar..."
- Judite está aí está-se a apaixonar. Isso
acontece duas ou três vezes numa vida. Tens muita
sorte, ela ganha com isso e tu também.
Entrou Elisa com o tabuleiro do chá e pôs-se a
virar as xícaras e a destapar o bule, com olhos de
mordoma, enquanto se esforçava para ouvir. Como
não percebeu nada do que se passava, bateu com a
porta quando saiu. Andava continuamente de roda
das pessoas para atar os nós das suas intrigas.
Das coisas mais surpreendentes que Martinho ouviu
a Maria Rosa foi o seguinte: "Para duas pessoas se
amarem são precisas três". Isto constava duma
educação que ultrapassava em muito o nível da
primária.
171
Não evitava que Martinho conhecesse o bafo do
dragão que era a pegada no coração das trevas.
Quando Conrad escreveu O coração das trevas estava
muito longe de produzir um livro de aventuras e
muito mais longe de registar uma lição sobre o
poder. Fez muito mais do que isso, em parte com a
intuição que faz o grande escritor. Que ele foi um
grande escritor, não há dúvida nenhuma; mas o que
não foi abordado foi a sua passagem pelo coração
das trevas, que é de índole sexual e não podia ser
outra coisa: um bocejo do grande sáurio, imóvel na
lama do rio cuja nascente se desconhece.
O sexo tem um percurso cujo mapa ainda não foi
desenhado. Isto porque se ignoram as suas linhas
mestras. Só se sabem os seus sinais, tão
abundantes como as religiões na terra e como as
areias no mar. Primeiro há uma identificação
sexual em tudo o que vive e morre; na natureza das
coisas, mesmo que pareçam inanimadas. Uma pedra é
dotada de carácter sexual, reage e move-se, influi
no ciclo dos climas na terra. É muito raro que o
coração das trevas seja descoberto na sua caverna.
Quando isso acontece produz uma alteração na
natureza que, como sabem, não depende do conceito
de Deus. Judite estava na linha da verdade que é
tudo, menos demonstrável. O desejo era nela uma
ordem tão exclusiva que se tornava paralelo à
sabedoria. "A sabedoria pressupõe uma faculdade de
desejo". Martinho ficou interessado no processo de
Judite que, no seu entender, estava no limiar do
coração das trevas com o único amuleto que a podia
salvar - a sabedoria. Como era que uma mulher sem
grande cultura e para quem o prazer de viver
estava em cumprir com os trabalhos domésticos,
como por efeito duma teologia moral, chegava ao
limite daquele mistério? Estava visto que ela se
debatia terrivelmente. Primeiro foram as erupções
da pele que se destinavam a tornar o sexo
impossível pela repugnância ao cheiro e
172
ao tacto. Isto durou alguns meses e os médicos não
a curaram. Depois vieram os sentimentos
exasperados, o amor pelo marido em quem acumulou
perfeições nunca imaginadas. Ele recusava-se,
sabendo que não era a pessoa que o desejo chamava.
Chegou a bater-lhe cruelmente, a ponto de Maria
Rosa intervir e proibir-lhe que tratasse Judite
como uma escrava. Ser uma escrava era a melhor
maneira de a defender do desejo e continha uma
forma de sabedoria.
Maria Rosa não usava de grande empenho em defender
Judite. A violência agradava-lhe, comunicava-lhe
uma força que tinha qualquer coisa de corrupto e
puro ao mesmo tempo. Judite debatia-se no meio de
grande sofrimento; pensava em Manuel Andrade com
uma espécie de demência e imaginava ter com ele
relações felizes e fora de qualquer oposição.
Tendo conhecimento de que ele mudara de casa com a
família, que era numerosa, descreveu para si todo
um quadro de encontros nas salas abandonadas e
onde só ficara a alcatifa com nódoas de café ou da
baba do cão. Deitava-se com ele no chão e o prazer
arrastava-os para além da realidade e como se
todas as perfeições se consumassem neles.
Mas, a par desses sonhos, de que acordava desfeita
de tristeza, porque os sabia breves imitações de
felicidade, ela descobria um caminho novo, o da
fatalidade da sua própria perfeição. Vestia-se
pobremente e Elisa chegava a emprestar-lhe roupas
que agradavam a Judite, ela não dizia ou não sabia
porquê. Dava-lhe segurança andar na rua misturada
na multidão, sem nada que a distinguisse, sem
poder ser notada pelo nome nem pela indumentária.
Tudo isto, com a agravante de que tinha demoras
fora de casa, como se fossem fugas cada vez mais
conseguidas, criava um ambiente de dissolução que
nada ia poder salvar.
173
Era muito raro, Manuel Andrade e ela não se
encontravam, ou não sentiam qualquer desejo em
encontrar-se. De tal modo a vontade criava neles o
desconforto do amor. E chegavam a ser felizes
quanto mais a frustração dos seus amores
funcionava como um prazer.
Tudo se passava às claras e toda a gente afecta à
casa podia conhecer a descontrolada situação,
tanto física como moral, da família e dos
próximos. Paula esteve duas vezes no Torreão
Vermelho a fim de marcar as peças mais valiosas
com um selo que parecia de leilão. Disse a
Martinho:
- Desconfia de toda a gente. Os tempos não estão
para amar. As coisas que desaparecem nesta casa!
Os ladrões de dentro são os piores.
- Não diga isso. Elisa é como um cão de guarda e
não deixa que se perca nem um alfinete.
- Um alfinete, acredito. Mas ouro e prata, não
sei. E roupa de cama. Se desaparece, nem em dez
anos se pode dar conta.
A insidiosa pesquisa da mãe aborrecia-o. Não lhe
bastava Judite transtornada e em risco de ser
internada numa clínica, ainda para mais a querer
entrar naquele teatro de sombras.
- Não volte cá, senão eu vou-me embora.
- Sou a tua mãe - disse Paula; mas tinha o cuidado
de não se mostrar ofendida, para não provocar um
corte de relações. Desesperava-a não representar
ali nenhum papel. Mesmo se morresse ninguém dava
conta. Tinha a impressão que o passado deixara de
ter valor, que interpretar o presente era
completamente inútil. Era ainda uma bela mulher,
alta e com olhos muito separados. Mas os olhos
tinham diminuído com a idade e as pestanas tinham
caído e foram substituídas por pêlos quase
invisíveis. Martinho pensou se o amor dele não se
referia à pessoa que ela tinha sido e não àquela
senhora
174
desbotada e empenhada em criar problemas de tudo;
até da política internacional e do terrorismo
urbano. Ninguém ia fazer dela refém, mas agia como
se isso fosse possível.
A primeira fuga de Judite deu-se em Dezembro e
passou-se o Natal sem ela. Telefonou a dizer que
estava bem. Martinho não tinha dúvida de que ela
estava bem. Sabia, sem detalhar as razões, que não
era um marido enganado. A vida, a partir dela
própria, tinha um sentido que não podia partilhar
com ninguém.
Judite voltou, e, à primeira vista, parecia
animada e cheia de vontade de retomar os seus
hábitos no Torreão Vermelho. Mudou as flores na
casa toda, trocou de carro porque o dela lhe
pareceu inferior à sua posição e fortuna.
- No fim de contas sou rica. Não há nenhum mal em
parecer o que sou - disse.
- É um risco que terá que correr. Os impostos vão
cair-lhe em cima e não diga que não a preveni.
Martinho voltava a tratá-la por você, o que era
sinal de reconciliação e de que tudo voltava ao
normal. Mas o dragão estava apenas adormecido. "O
mais terrível num estado de desejo puro é que se
tem a noção de que tudo está resolvido e que o
mundo está à nossa espera de braços abertos para
nos receber de volta. Mas nada disso acontece. De
repente voltamos ao mesmo e ainda com maior
violência. Não sabemos do que seremos capazes,
temos que tomar cuidado a todo o momento" -
pensava Martinho. Mas o certo era que isso não
passava de especulações sobre o caso de Judite, de
quem não sabia nada nem nunca saberia.
O que ficara depois daquela noite em que seguiu a
mãe até ao lugar do crime? Martinho tinha a
certeza de que ela não tinha sido mera
espectadora; que tinha agido de qualquer maneira.
Como? Correu para defender Estrelinha Sopa—
175
-de-Massa ou, do lugar em que estava, assistiu a
tudo, paralisada de medo ou talvez embriagada pela
cena do crime? Ela esteve dois dias sem falar,
ninguém suspeitou da sua presença na noite, que
era clara, os dias mal tinham começado a diminuir.
O brinco de ouro que se achou não era da morta,
mas de Judite. Escondeu o outro para que não se
soubesse.
Ouvia os gritos do pai quando o torturavam no
armazém que dava para a estrada. Confessou, mas
nada disse da amante, nem se ela estava na sua
companhia. O desejo vivia nas suas veias.
Despediu-se das filhas quando ia para a prisão e
escrevia-lhes. Mas quando Judite foi recebida em
casa pela Maria Rosa e o Nabasco a olhou da cabeça
aos pés e disse que parecia boa rapariga, nunca
mais recebeu cartas da penitenciária. Houve ordens
expressas para que a correspondência fosse
interrompida e, aos poucos, Judite esqueceu-se de
tudo o que a ligava ao passado. O conforto e a
promessa de fortuna maior contribuíram para o
vazio nas suas recordações. Todavia, ela
significava um factor de risco.
- Só pessoas doidas como nós é que adoptavam essa
rapariga. O melhor da vida está em provocar um
facto, tirando a Deus a prioridade.
Ele não pôde deixar de admirar Maria Rosa, tão
fina de ancas que até podia usar jeans elásticos
como qualquer rapariga de quinze anos. Ficava
muita coisa por esclarecer e que Maria Rosa sabia.
Por exemplo, o que se passava na cama das duas
irmãs durante a noite, uma iniciação que nunca
mais haviam de esquecer mas que no processo de a
ignorar estava a síntese da vida inteira.
Já não passava pela Ronda da Noite sem parar, como
se alguém lhe travasse o passo. Aquele tumulto em
que cada um preparava a sua situação, fascinava-o.
O homem que dispara o
176
seu fusil, o cão que começa a correr, ganindo de
medo, a criança resplandecente no meio da
companhia do capitão Cocq, a ufana atitude do seu
tenente das galochas bordadas! Ninguém sabe o seu
lugar, o momento é de paródia, pertence a cada um.
"Se houvesse um lugar para mim, eu deixava tudo e
ia ocupá-lo", pensou Martinho. Mas era uma das
suas muitas fantasias que lhe ocorriam quando
percebia que a sua razão estava abaixo da vontade
sem desejo algum, que era o que fazia dele o
mutante. Pode-se ser feliz sem ter quaisquer
sentimentos? A avó ia ver uma ou outra freira do
colégio onde fora educada. As antigas mestras
tinham morrido e recebiam-na no refeitório dizendo
"uma das nossas meninas", o que lhe dava prazer.
Mas agora havia outras religiosas que
condescendiam com o que eram pecados noutros
tempos. E se diziam enamoradas de Jesus com um
despudor vulgar.
- Imagina que nós suávamos de medo de irmos para o
inferno ao reparar que tínhamos pernas bonitas. E
agora incutem nas raparigas o gosto de se acharem
bonitas, pernas, cabelos, orelhas, tudo.
- Estão mais filósofas - disse Martinho; e riu-se
sem ironia. Quando dizia alguma coisa difícil de
interpretar atribuíam-lhe qualquer malícia. - A
perfeição física do mundo é tão importante como o
direito da criatura à felicidade.
Pensou que a avó não perdera nada com as más
lições recebidas; ela soubera participar na
perfeição física do mundo com os seus penteados "à
pajem" e os sapatos vermelhos, sandálias, a bem
dizer.
O estado de Judite agravou-se e de dia para dia
ela estava mais intratável. Tinha todos os
sintomas da gravidez: a falta de menstruação, os
vómitos matinais, os "desejos", um pasmo dos
sentidos que às vezes precedia um desmaio. Elisa
aplicava-lhe nas fontes compressas de vinagre e
abanava a cabeça com
177
ares doutorais. No entender dela, tudo o que
acontecia com as mulheres era relacionado com a
gravidez. Mas Judite não estava "prenhe", como ela
dizia. Não alcançava; e o que para muitos era
talvez uma bênção, para ela parecia ser qualquer
coisa de errado, como a criação duma nova
substância.
Ora se mostrava apaixonada por Martinho, ora lhe
fechava a porta do quarto, não respondia quando
ele lhe falava. Tinha prazer em contrariá-lo nas
mínimas coisas, não lhe poupava os pequenos
ridículos: os primeiros indícios de calvície, a
preguiça, a maneira de mexer o café para a
esquerda e que era sinal de avareza. Perseguia-o
com motejos, achava-o cómico no vestir, na maneira
de comer a sopa, soprando-a um pouco na colher.
Não havia gesto que ela não perscrutasse, falta
que não denunciasse. Tinha alusões torpes como
certas inclinações que eram herdadas duma gente
sem mérito, só presunçosa, violadora de criadas,
surdas à piedade, falsos beatos, incapazes de
perdão sob um preconceito de justiça. Os Nabasco
eram denunciantes, políticos de tertúlia, homens
sem ofício, caçadores de méritos. Ela mordia o
beiço para não falar, e se Martinho insistia ela
achava-o entorpecido pela droga e que não valia a
pena falar mais. Mas nunca dizia palavrões,
continha-se, tomava ares de senhora, ela que
nascera entre injúrias e louça partida. O ciúme da
mãe que parecia doida, infectada de pensamentos
que uma má mulher não teria, aparecia no seu olhar
esgaseado, nas mãos que destruíam e agarravam, e
se transformavam em presas. Porque levava a menina
da Ronda uma franga morta à cinta? Martinho disse
que era uma forma de confessar um crime. Judite
calou-se; subitamente calou-se.
Ele fechava a porta, escapulia-se como um ladrão,
vermelho de vergonha. Estava muito lúcido, muito
prudente; achava que Judite amava outro homem.
178
- Gosta de outro homem. Se pudesse, matava-me.
- Se pudéssemos, todos nos matávamos uns aos
outros - disse Maria Rosa. Contou as suas gotas,
uma a uma, com recolhimento, como se rezasse.
Disse que era tempo de ter outro cão. - Um cão
pequeno, que goste de dormir. Mas não, não é uma
boa ideia.
- Porque não é uma boa ideia? - disse Martinho. A
avó divertia-o e amava-a por isso. Também não há
outra maneira de amar os outros. "E os Macabeus,
gente trágica e voluntariosa?" - Ele sorriu.
"Também... também..."
- Nada mais triste do que morrer e deixar um
animal órfão dos hábitos que nós criamos para
eles. Nem quero pensar nisso.
- Nem eu quero pensar nisso. - Ele encostou a
cabeça no colchão da cama e ela riu-se muito. -
Porque se ri?
- Pareces o cão do Goya.
- Agora pareço o cão do Goya. Está bem.
- Nos últimos tempos, quando Goya estava já
acamado, o cão vinha para o pé dele e pousava a
cabeça no colchão em sinal de veneração. E ele
pintava-o como podia, não muito bem. Começaram a
dizer que era a fase mais genial do Goya, coitado.
Porque se via só aquela cabeça que parecia dum
fantasma? Porque a cama era alta, à espanhola.
"Que mulher tão esperta, como uma doninha!" -
pensou Martinho. Uma fazia-o sofrer, castigava-o,
quebrava-lhe as pernas cem vezes por dia; dava-lhe
pão duro e carne de cabra. Outra alegrava-lhe a
alma, escolhendo-o para partilhar o reino dos
céus. Uma e outra eram preciosas, justas e
condimentadas com pimenta e giroflé. Sem elas só
havia cavalariças no mundo.
Maria Rosa tinha uma pequena úlcera secreta.
Gostaria que Martinho enveredasse pela política,
já que na família não
179
havia politocratas, nem médicos, nem padres, tudo
considerado carreira de pobres. Mas o poder, com
os seus tiques, a sua elite de fraternidades
paradoxais, de alternativas parlamentares e de
férias em camaradagem, parecia-lhe bastante
aceitável. Dava benefícios que dantes se chamariam
boas gorgetas. Já não havia o político à vontade
na sua soberania, que se veste de calça às riscas
e que não tem automóvel particular, nem sobretudo
de Inverno, nem admiração por livros. Mas diz a
palavra certa no tempo certo e que não fala de
assuntos escabrosos, de filhos ilegítimos e
esposas dos outros. Esse pertencia ao clã dos
fiéis, comia no Círculo uma sopinha caseira e não
se dava senão com académicos, no que se refere a
intelectuais. Era austero em público, tinha humor
em privado, dizia "o senhor ministro" falando de
Salazar e achava-o um provinciano ressentido e um
patrão com caprichos que se parecem com medidas
úteis.
Em Portugal confundem-se os novos feudais com os
fascistas. Não se pode dizer que Maria Rosa
pertencesse à linha dos novos feudais, ainda que o
defunto marido fosse classificado como tal. Os
seis solares brasonados que estavam no nordeste
transmontano pertenciam à monarquia de província
que julga ter uma hora precisa para levantar a sua
bandeira, mas que não passa de escorregar nas suas
ruínas. Sem ideias pré-concebidas Martinho ia
compondo os telhados e substituindo as
canalizações. Seria preciso o dom dum Midas e
transformar em oiro tudo em que tocasse para dar
aos solares um mínimo de aparência. Martinho tomou
aquilo como uma obrigação, sedutora até ao ponto
em que julgou pertencer a uma dinastia em que a
grande fortuna parecia ser mais imortal do que os
seus gestores. Enquanto o património se bastava a
si próprio e as tribos de dez filhos convergiam
para o capital comum, e alguns se colocavam nos
ministérios para proteger
180
o que já era um precipício de dívidas, enquanto
isso, as coisas pareciam compostas. Mas tudo tem
um fim, as famílias diminuíam, como no caso de
Filipe Nabasco, advogado nas horas vagas e caçador
de narcejas. A filha única, Paula, enviuvou cedo
dum parente pobre, conhecedor em louças da índia.
Casou depois com um homem de nível castrense mas
incapaz de ver o mundo como uma deusa de muitas
mamas.
Martinho deixou-se ficar na área dos antiquados
que não fazem golfe ao domingo de manhã e são
reconhecidos pelas gravatas atrevidas, cor-de-
rosa, inclusivamente. Quando vão a Lisboa são
detectados pelo sotaque que, em tempos, era mais
apagado pelo estudo do latim, ou pela exclusiva
conversação entre elites.
Martinho era um anoréxico da sua própria fila de
aristocratas aburguesados. Começava por não querer
televisão na sala, e depois não perdiam as
telenovelas com gente conhecida que, até aos vinte
e cinco anos, brincava aos teatros. A avó era a
única que tinha um traço original de matriarca,
embora se vestisse de calças e antigos cardigans
de lã de camelo. Martinho estava preparado para a
ver estatelar-se na escada e a dizer, como Santa
Teresa, que o diabo a empurrara. "Talvez escape ao
colo do fémur para morrer a dormir de paragem
cardíaca" - pensava. Elisa, que era mais nova
quatro anos, tomava ares doutra geração e gostava
de se mostrar capaz de serviços pesados. Ainda se
matriculou num ginásio para ir nadar, mas não
chegou a frequentá-lo. Fez dietas de legumes crus
e de peixe grelhado, e Maria Rosa disselhe que,
excepto a fome, as dietas são para ricos.
- Custas-me mais em bifes de lombo do que em
salário. Vai-te matar!
Elisa punha máscara de beleza antes de se deitar e
pregara mais do que um susto a quem batia à porta
à noite e ela descia
181
para abrir. Coisas que já não aconteciam porque a
casa tinha alarmes e até um gato os fazia retinir.
A maior parte das vezes nem estavam ligados, e
Elisa continuava a levantar a ponta da cortina
para ver se andava alguém lá fora. Os ladrões
traziam animação ao Torreão, no caso de se
interessarem. Sabiam, no entanto, que a única
coisa de valor não cabia numa carrinha e que, além
do mais, não se podia negociar.
- Se não fosse a Ronda, há muito que já tinha
mudado de casa e ia viver para um andar com vista
para o mar. Adeus escadas e escadinhas, móveis
onde cabe uma corporação de bombeiros com
capacetes e tudo - disse Maria Rosa. Elisa, que se
pusera muito melindrosa, pensou que ela lhe
lançava uma indirecta. Quando era nova tinha uma
queda para bombeiros e fardas em geral.
- Um homem é um homem, mas fardado é outra coisa -
dizia.
Também ela estava farta de casas como mastabas
onde se criavam quatro gerações de crianças
vestidas à marinheira e que tomavam óleo de fígado
de bacalhau aos garrafões. Tinham partido, ficavam
os retratos num velho álbum com letras de marfim.
Já nem se sabia o nome delas, nem como tinham
vivido e morrido.
- Quero ser cremada e que não fiquem sinais de mim
- disse Maria Rosa. Mas não se separava do colar
de pérolas nem dizia onde o tinha.
- Às tantas nem ela sabe. Está muito esquecida. -
Elisa falava baixo "para as paredes não ouvirem".
As mesmas emoções que se viveram nos gabinetes de
Catarina de Médicis podiam ser registadas ali, com
os sulfurosos pensamentos e planos esboçados na
cabeça de gente que toda a vida andara em pontas
de pés, segredando coisas triviais. Enchiam o
coração com intrigas de amores, de heranças, de
poderes que se
182
cruzavam entre a alcova e a cozinha. Quem era mais
poderoso? Leonor Teles ou o alfaiate de Leça do
Bailio? E os pequenos duendes da Ronda, ela com o
pombo morto à cinta, ele com uma coroa de folhas
de carvalho, símbolo de imortalidade, num quadro
em que tudo está ao acaso e para acontecer.
Martinho tinha grandes conversas sobre a Ronda;
cada vez mais se capacitava de que, a ser uma
cópia, fora feita no atelier do artista. Assim, a
ser verdade, valia uma fortuna, porque há
coleccionadores de cópias como os há para
originais. Era uma ideia cada vez mais acariciada
e que iluminava os maus pressentimentos dos
Nabasco quanto ao seu futuro, que não podia ser
senão desconfortável e mesquinho. Um dia
arrendava-se um armazém para guardar a Ronda e ele
ia viver para três assoalhadas com marquise. Era
uma ideia arrepiante. Maria Rosa lembrava-se da
vivenda onde nascera, frente ao mar, abundante de
espaço, com terraços que ofereciam a ruidosa
companhia do mar cuja espuma, nos dias de Inverno,
salpicava as janelas do rés-do-chão. Tudo era
feito para uma vida sem cuidados, havia sempre
dinheiro vivo em casa, muitos criados e cães,
visitas vestidas para sair e jóias postas. Paula
já não conheceu nada disso, no tempo dela já se
previa um emprego e o condomínio, nascer na
clínica, ter baby-sitter nas noites em que se
comia fora.
- No teu tempo como era? - perguntava ela à mãe,
meio encantada.
- Nada de especial. Faziam-se quatro refeições em
casa, servidas à francesa. Arroz ao almoço e ao
jantar, e duas sobremesas. Vinho do Porto ou
aguardente velha. O whisky não era bem visto. Nem
os queijos de fora. Uma vez por outra, com o
calor, jantava-se no jardim, ainda de dia. Os
pirilampos brilhavam nas sebes de buxo. E a flor
do tabaco cheirava melhor que as rosas.
183
- Onde está a flor do tabaco?
- Perdeu-se, não a vi mais em nenhum lugar.
Isto era na Casa do Cão, já Paula estava casada e
Martinho tinha dez anos. Lia muitos policiais e
tinha uma capacidade de dedução acima do normal.
Não se deu bem com o internato, apareceu-lhe uma
gaguez que se prolongou até tarde. O avô mandou
que o trouxessem para casa e aí ficou depois que a
mãe casou outra vez. Era feliz no seu quarto, que
mais parecia um estreito quarto de vestir com uma
cama que tinha desde criança e que foi preciso
aumentar para que lhe servisse quando adulto. Era
uma cama envernizada e que tinha, como remate na
cabeceira, um laço de madeira que se foi partindo
com as mudanças.
O avô morreu na Casa do Cão, o esquife não cabia
na escada de caracol e foi preciso descê-lo pela
varanda do quarto. Já não era pequena humilhação
aquilo, quanto mais os bombeiros a gritar ordens,
como se evacuassem um prédio em chamas. Toda a
gente estava farta daquela cena e Maria Rosa, na
sala de visitas, em baixo, fechou-se à chave e não
apareceu a ninguém. Os que vieram ao enterro
andavam pelo jardim e até à noite passearam por lá
como se estivessem num lugar público. Maria Rosa
disse que nunca mais ninguém morria na Casa do
Cão.
- É indecente sair pela janela como um ladrão -
disse. As lágrimas secaram, de tão irritada que
estava. Foi assim que mudaram para o Torreão, que
era dum ferrageiro, entretanto falido. Os
ferrageiros eram gente de dinheiro e fora dos seus
balcões lustrosos pelo uso e da penumbra dos seus
armazéns, faziam muita vista. Sabiam muito de
pregos e parafusos e tinham uma conversa profunda
a respeito da folha de Flandres e verguinha, e
coisas assim. Evidentemente que os Nabasco não
ligavam com gente dessa, o que era desculpável,
184
mas não era bonito. Já nesse tempo Maria Rosa se
revestia de democrata (chamavam-lhe democratóide)
e foi ela quem fez o negócio da compra do Torreão
Vermelho, sem nem por um minuto dar a perceber que
sabia da ruína do ferrageiro e sobretudo que sabia
que ele deitava sopas no café do pequeno almoço.
Já era bastante ter perdido a fortuna, com
amantes, dizia-se; não era preciso achincalhá-lo
com aquilo de ele ser tão pouco elegante que até
usava um lápis na orelha quando estava no balcão.
A cidade era muito exigente quanto ao estrato
social de cada um. Uma mulher que vendia fruta à
entrada duma ilha podia ter entrada franca no
Torreão Vermelho, porque tinha bom carácter e não
invejava os ricos; enquanto que alguém com grande
fortuna e dois Ferrarís, nunca seria recebido na
casa dos Nabasco. E porquê?
- Ah, porquê! O carro e a mulher, duma marca
qualquer - disse Maria Rosa. Não era distinto
contar dinheiro em público, quanto mais mostrar
grandeza e superioridade fosse no que fosse. E
Elisa era da mesma opinião; ainda que ela achasse
ter direito à comida dos patrões e não apenas à
dos criados, uma merda com azeite de segunda.
Também se lhe dessem alargas, levava a casa à
falência, em pouco tempo. Fosse como fosse, depois
da morte de Filipe Manuel Nabasco, ela, Maria
Rosa, entendeu mudar tudo. A Casa do Cão tinha uma
fama deplorável porque se construíra a garagem no
lugar onde havia uma capela. Era melhor não
arriscar e, como o Torreão Vermelho ficou à venda,
ela aproveitou para dar um pontapé no passado e
optar por uma decoração mais conforme o seu
género. O seu género era influenciado pelos filmes
dos anos cinquenta, com mulheres vestidas de lamé
e raposas brancas, e escadas como as de Jacó, tão
largas que cabiam nelas anjos aos pares. Era um
luxo nova-iorquino que
185
nunca deixou de admirar. Ninguém, na cidade, por
rica e opulenta que fosse, usava desabillées
debruados de plumas de cisne, que afinal até são
baratas, como dizia Margô, a cunhada preferida de
Maria Rosa, uma snobe aristocrata, coisa que
também não era bem aceite porque, na cidade, a
aristocracia era símbolo de presunção e
inutilidade, ou de coisa pior. Se é que há coisa
pior do que a inutilidade. Há, é ser um
intelectual.
O Torreão Vermelho fez Maria Rosa desabrochar.
Andava pelos sessenta anos e já não se esperavam
dela surpresas; ainda que fosse por essa altura
que as mulheres de sessenta anos começaram a dar
na vista, a apaixonar-se pelos maridos das amigas
e a não se limitarem a ter amantes - a casarem com
eles. Todos sabem que casar com a amante é
confundir a virtude pública com o prazer secreto.
Mas casar com o parente próximo que é o marido da
sua grande amiga é mais do que escândalo, é uma
falta de imaginação.
Maria Rosa nunca chegaria a isso. Decidiu ser uma
inovadora. Numa terra em que a imaginação já tem
que ter a idade suficiente para ser uma tradição,
o caso de Maria Rosa foi censurado. Apenas isso.
Segundo os princípios celtas, uma mulher rica pode
fazer o que muito bem quiser. Uma mulher é uma
mulher, mas uma mulher rica é outra coisa. E uma
viúva rica é carne limpa.
O Torreão Vermelho encheu-se de preceptores e
gente de leis (não havia um dia em que não
aparecessem partilhas, reclamações de caseiros e
de inquilinos, obras a resolver) e a educação de
Martinho foi profundamente debatida.
Dos oito aos nove anos ele tinha estado num
colégio interno, e quase morrera de saudades e de
doenças variadas, como uma primo-infecção, uma
tuberculose óssea, além duma coqueluche de que o
quiseram curar fazendo-o subir
186
em avião durante meia hora. O que o aterrou
deveras e desde aí apareceu-lhe a gaguez. O que
uma criança de oito anos pode contar da sua
experiência num colégio da mais fina proporção
pedagógica não é coisa que sirva para a história
de Oliver Twist. As seduções, as sevícias, as
iniciações ao terror e à realidade não dispõem
ainda de vocabulário para serem denunciadas. Se é
que há vontade de denúncia; porque no indizível há
a mais profunda forma erótica que vai servir para
que a vida inteira seja bem sucedida ou falhada.
Uma criança de oito anos pode entender mais de
sedução do que Cleópatra e Casanova. A natureza
mune-se de recursos inimagináveis para produzir a
sua área de domesticação. É necessário que, para
além da sua pele de cultura, de imitação e de
aprendizagem, perdure um campo de sobrevivência
que confina com o horror. É verdade que, ao longo
duma carreira fácil de adaptação, a criança
esqueça voluntariamente o período de iniciação a
que foi sujeita e todos os conselhos nele
recebidos. Mas, um belo dia, tudo pode sair das
trevas, do coração das trevas, e produzir um
acontecimento que terá que se chamar condenável.
O que sucedia com Martinho era que, desde os seus
oito anos, não esqueceu o que aprendera: que era
indefeso e ao mesmo tempo carregado de requisitos
para alimentar a sorte. Sabia que a verdade com
asas de pomba não existe; mas que com garras de
dragão está sempre perto de se mostrar.
Os amigos mais próximos de Martinho, não muitos,
casaram tarde com mulheres que não iam pedir-lhes
contas da sua virilidade, que não era a de
"crescei e multiplicai-vos". Não tiveram filhos,
como ele próprio não teve filhos. Tinham uma vida
amistosa com as mulheres deles e dos outros,
gostavam de ter em casa um canto só deles, onde
tudo estivesse desarrumado e de poder atirar com a
roupa sem ter que a dobrar.
187
Também punham muito em causa dizer quanto ganhavam
e em que passavam o tempo durante o dia. Dia em
que, na maior parte dele, não faziam nada;
enquanto que as mulheres faziam mil coisas e
chamavam a isso uma vida agitada quando era apenas
uma vida de tagarelices, ainda que se tratasse de
coisas sérias, como a saúde e o preço das coisas.
A medida que ficavam satisfeitas nas necessidades
básicas, a casa, a alimentação e os seguros contra
incêndios, aumentava a preocupação com a saúde.
Não se pensava em morrer mas em durar muito tempo.
Todavia, a intenção suicida estava mais em causa
na sociedade urbana. Doenças fatais, epidemias
imparáveis, eram recebidas com uma certa fleuma,
muito diferente da resignação. Porque na fleuma há
vontade própria e consentimento, e na resignação
há abandono da razão. As doenças suicidas cresciam
em número e em perigosidade; porém, entravam na
saga da família e eram acarinhadas como títulos de
nobreza. Na casa dos Cunhas, se uma mulher era
operada a um fibroma, as outras todas da família
ou da vizinhança queriam ter o mesmo tratamento,
equivalente a uma condecoração por mérito. A
doença e o acesso às urgências regulavam a vida
dos mais velhos; fazia o seu recreio e os seus
pólos de convivência. Já não eram só "as viagens
dos pobres", como se chamaram, eram a sua tese
filosófica e o seu parlamento, a sua igreja. A
viagem dos pobres tinha alternativa na cobertura
que se dava ao empréstimo para compras
sumptuárias, como o carro, a piscina e as férias
nos paraísos sexuais. Até Elisa quis viajar de
avião e chegou a ter o bilhete na mão, mas ganhou
medo tal que não podia chegar a uma janela que não
sentisse ouras. Gerações de indígenas com os pés
na terra reagiam a sentirem-se suspensas no ar,
parecendo tudo aquilo engenho do diabo. Ficava
amarela e vomitava. Margô entrava na Casa do Cão a
despedir-se porque ia para New-York.
188
- Para onde vais, Margô? - dizia Maria Rosa, que
voltava a vestir a roupa de pastora, às flores.
Era Primavera.
- Para o coração do mundo, minha filha.
- O coração do mundo é Paris. E Patras, o olho do
cu.
- Disparate! Queres alguma coisa?
- Alguma coisa... Um cachorro quente com muita
mostarda. Não estou a brincar. São os melhores que
há.
Mas Margô não voltou lá a casa porque morreu dum
aborto mal parado. O enterro dela não foi nada
concorrido. Margô estava no caixão com as mãos em
cima do externo e um terço nas mãos. Tinha
escolhido um vestido com mangas "à religiosa" e
parecia tão bonita como era nos seus melhores
tempos. Via-se logo que tinha classe e que sempre
a tivera: nenhum detalhe a traía, eram os sapatos,
eram as pregas, era o cabelo arranjado com um
pouco de laca frisado dos lados como ela gostava.
O salão, donde retiraram os móveis do centro, era
grandioso e o chão brilhava sem ser demais.
Serviam-se petits-fours e chá verde e preto; ou de
camomila para quem quisesse. Maria Rosa sentou-se
um bocado, como se estivesse a fazer malha, e fez
de propósito, não reconheceu ninguém. Mas, de
facto, não conhecia. O mundo mudara, os velhos
ficavam em casa ou tinham morrido. "Eu não os
tinha reconhecido se os visse", pensou, distraída.
As mulheres perguntavam-lhe vivamente:
- Não me conhece?
- Oh, sim, estou lembrada...
- Estive consigo há quarenta anos, no aeroporto.
- Sim, é possível. Há quarenta anos! O tempo
passa. A outra contou-lhe dos filhos, que tinha
três, engenheiros e um médico.
"Um médico em casa faz muito jeito." Maria Rosa
sorriu e encolheu os pés para deixar passar.
Servia-se café com chocolate
189
preto na borda do pires. "Digamos que de luto",
pensou. Nos momentos solenes dava-lhe para rir. E
Martinho puxava-lhe pela manga, a avisá-la. "Onde
teriam ido buscar estes candelabros?" Eram peças
de Murano, originais, com velas e um cordão para
as fazer baixar e acender. Ninguém tinha outros
iguais; e vislumbrou no rosto da morta um fio de
orgulho, porque tinha classe.
Ainda não tinham mudado de casa, mas foi logo a
seguir. O Torreão Vermelho foi posto à venda com
parte do recheio e Maria Rosa foi ver como aquilo
era por dentro. Uma casa vazia faz sempre a
impressão de que há gente a espreitar pela frincha
duma porta. Depois abre-se, e não está lá nada;
trapos secos e torcidos no lavadouro da cozinha e
fuligem caída, com o vento, flores secas numa
jarra. Na porta do frigorífico uma mola com
recados. "Volto às seis, panados para o jantar".
Maria Rosa teve um arrepio, como se aquilo lhe
fosse dirigido. O doutor Assis não deu por nada.
- Estas casas velhas estão um caco. Nada funciona
e é preciso remover tudo - disse, meio irado. Não
compreendia porque ela queria mudar-se tão
depressa, deixando para trás uma porção de tarecos
e bacias onde duas gerações tinham escarrado e
banhado os pés. Porquê tanta pressa?
- Não sei - disse Maria Rosa. A alta estatura dela
recortava-se contra a parede nua. Havia marcas de
quadros nas paredes e buracos de pregos
arrancados. - A Ronda vai ficar bem aqui.
Finalmente. - Ela deitou um olhar circular pela
sala vazia e silenciosa. Uma vareja grande estava
pousada e não tardava que começasse a zumbir e a
chocar contra as vidraças. Nada para dar uma
sensação de abandono como uma vareja numa casa
vazia.
- Vou afinal ver esse decantado quadro - disse o
doutor. - É tão grande assim?
190
- Tem seis metros e sessenta e três por quatro e
trinta e sete.
- Não é coisa que se meta na gaveta.
- Media quase quatro por cinco. O tamanho dum
quarto de dormir.
- Um pequeno quarto. Tudo é relativo. Percorreram
a casa, que parecia inóspita e fria. Ainda
havia cinza nas lareiras e uma porta batia nalgum
lugar. E o que dava mais tristeza era a casota do
cão com um pouco de palha a sair de dentro e a
tigela da água com poeira seca no fundo. Maria
Rosa imaginou-se dona de tudo aquilo e a alma
arrefeceu-lhe de tão receosa. Teria ainda idade
para começar com outro brio coisa tão tenra como é
a casa própria? Abrir espaços, escolher cores,
medir, calcular, imaginar efeitos e proporções.
Martinho tinha-se formado sem ter nunca visto um
esquadro e uma régua. Mas as obras dos solares,
que implicavam problemas de arquitectura, fizeram
dele um leigo com escrúpulos, o que quer dizer que
se tornara mestre. Ao ver o Torreão Vermelho na
sua nudez, se não no princípio da sua ruína, achou
que ele valia algumas insónias. Além do que, a
Ronda teria um lugar decente que abraçar, logo à
entrada, com a luz do poente a fazer brilhar o
fato do garboso tenente das galochas.
Quando o Torreão ficou pronto para ser habitado, a
Ronda da Noite fez a sua entrada solene e durante
dois ou três meses foi admirada, discutida e
avaliada. No Porto não há nada que não se avalie,
é um princípio conspiratório. Houve quem a achasse
mais escura do que o original e sobretudo que lhe
tinham suprimido figurantes, além dos que
constavam na sua história. Despertou a inveja dos
coleccionadores e não lhe pouparam críticas
arrasadoras. Maria Rosa ficou impassível, tanto
mais que a Ronda era para ela um património que
nunca
191
entrara em partilhas e a que não lhe interessava
pôr um preço. Sempre esteve convencida que era uma
cópia do atelier do pintor e que, por isso, tinha
um valor incalculável. Alguma coisa lhe dizia que
a Ronda não estivera guardada mas escondida
propositadamente desde que a duquesa de Mântua,
regente de Filipe IV, saíra de Portugal com um
espólio que carregava mais de cem burros. Ou
porque a Ronda fosse demasiado grande para ser
transportada, sobretudo transportada sem dar na
vista, ou porque o saque não a incluía por estar
num palácio das cortes de aldeia, o facto é que
não saiu do país. E o seu rasto foi-se perdendo,
escapando a outras desordens, como a do consulado
de Junot que chegou a intitular-se rei de
Portugal. Estava já com o cérebro avariado e
Napoleão não lhe deu ouvidos.
O que Martinho conseguiu apurar foi que a Ronda
andou na colecção do pintor Joaquim Marques que
morreu em Lisboa em 1822, e que era amigo de
Pillement que teve contratos importantes no Porto,
sendo o maior o do Palácio dos Carrancas. É
possível que Pillement trouxesse a Ronda para o
Porto, ou para Coimbra, onde se venderam por alto
preço, em 1794, cenas campesinas e outros. Havia
muitas falsificações, umas bem elaboradas, outras
francamente avaliadas como falsas. Os marfins, que
se chamavam "tartaruga do Alentejo" para não dizer
que eram corno de boi, enchiam os bric-a-brac e
eram, mesmo fingidos, muito procurados. As peças
de lotes destinadas a leilões estavam
inventariadas; excepto as que eram encomendas para
oferecer. Da Ronda não havia vestígios, o que
alimentava a hipótese de ser um quadro de
embaixador, presente particular e que teria tido
um percurso mais ou menos clandestino. Havia no
Porto pessoas que se entendiam com a arte sem ter
estudos dela; e que pegavam num prato ou numa
jarra de faiança e logo lhes descobriam a origem.
192
Uma dessas gentes, que tinham o dom da adivinhação
para afiançar a autenticidade duma obra, parece
que viu a Ronda e disse:
- É de Rembrandt, dele próprio.
Causou estupefacção tanta segurança; e tanta, que
duvidaram dele. O Norte não gosta de se enfrentar
com certezas e por isso condenaram a Ronda sem
mais análises e provas.
Foi daí que a Ronda da Noite foi desterrada para
os solares de montanha, a bem dizer, e onde vivia
uma horda de caçadores estimados pelo espírito
esbanjador e o culto do padrinho. Apareciam
algumas vezes nos jantares dos Nabasco com as
mulheres, que eram peludas e silenciosas. Quando
se deu a revolução de 74, mostraram-se na sua
forma de eruditas e com as filhas formadas em
Inglaterra. Mas eles continuavam estranhos, como
naturais dum principado de que não se esgotou o
modelo em certos aduares de província, tanto no
Alentejo como no Fundão, ou no Nordeste
transmontano. Gente que de snobe nada tem, mas sim
uma nobreza que desdenha de emblemas e
pergaminhos. É possível que entre eles alguém
estudasse no Colégio dos Nobres, de Turim, mas
isso não constava das conversas de salão. Martinho
pertencia a essa casta que directamente se filiava
na identidade portuguesa.
A identidade de um povo faz saltos, como a
natureza também os faz. Tão depressa parece
esmorecida, se não apagada pela influência de
nações mais poderosas, como da sua própria pena de
morte é indultada e volta a dar sinais da sua
fonte, onde corre o sangue de muitos povos e de
cada um tem o melhor da sua sobrevivência.
- A Ronda, que veio embarcada para Portugal, não
há dúvida. Embrulhada em esteiras das quais se
podia ver ainda a trama.
193
- Só o avesso é que é autêntico - disse o doutor
Assis, meio irritado. Tinha ciúmes de tudo o que
podia destroná-lo do amor por Maria Rosa. E aquele
quadro, grande e famoso, ocupava na vida dela um
lugar que o doutor não tinha. - Identifiquem-se as
caganitas de rato de porão e pode saber-se ao
certo donde veio a Ronda.
Estavam à entrada do Torreão Vermelho, digna
morada dum ferrageiro que não teria desdenhado de
financiar Rembrandt porque o Porto é grande
pensador em coisas de lucro e mais-valia. Maria
Rosa, desde criança que ouvia aquele canto de
sereia que era coleccionar para vender por melhor
preço. Havia vários tipos de coleccionador na
família de Maria Rosa: o jogador, que se paga
pelas próprias mãos e recebe ouro e prata,
gravuras inglesas e até canetas Parker antigas - e
esses são os prestamistas com um toque de parente
no mesmo ofício. Outros eram os que coleccionavam
por amor à arte, que se entregam ao amor fatal,
que iriam roubar para conseguir uma alfaia no
leilão dos Gonzaga arruinados; ou uma relíquia
trazida da Itália por diplomatas; ou um lote de
azulejos andaluzes. Senhoras como Isabel Egídia ou
Petronila Doroteia, herdavam baús de prendas de
casamento por usar, como tesouras de costura à
Pompadour ou caixas com o Triunfo de Anfitrite
pintado.
Do Torreão Vermelho, que uma noite ardeu da parte
norte, sabia-se que tinha sido construído pelo
ferrageiro Sebastião Clemente, tendo Clemente
passado a apelido. Ele intitulava-se proprietário
de cutelaria, o que era quase um título de
nobreza, posto que a cutelaria do Minho foi uma
indústria famosa conhecedora da têmpera do aço.
Além disso fabricavam instrumentos cirúrgicos e
toda a espécie de facas. Facas de toilette, facas
de cabeleireiro, facas curvas, assim como navalhas
da barba, de mola, de enxertar, umas
194
com cabo de ouro e madrepérola, de chifre e de
barba de baleia. O Norte tinha uma grande
indústria de vários ramos. As árvores de Trépano
eram instrumentos de cirurgia que causavam
arrepios e espanto.
Com tudo isto, Sebastião Clemente tinha o
privilégio dum lugar à direita do sacrário, na
missa da uma, e a passear de cabeça alta na
Avenida Brasil ou em Carreiros, melhor dito. Era
um homem baixo que usava um guarda-pó de riscado
azul e ia para o estrangeiro (jantar no Ritz, de
preferência) quando queria caprichar de estróina.
Depois dos cinquenta anos, reconciliava-se consigo
próprio e pode-se dizer que estava preparado para
a falência.
Todas as pessoas que moraram mais de cinco anos
numa casa (outros dirão sete porque é o tempo que
as células precisam para se renovar) deixam um
pouco de si em tudo o que tocaram. Direi mais: em
tudo em que participaram no acontecer do dia-a-
dia. As vezes, pequenos episódios são difíceis de
levar connosco porque se fixam a tudo o que os
envolveu. Maria Rosa estava persuadida de que até
uma cortina arranhada por um gato mantinha
qualquer coisa como um sentido de defesa e não
caía tão bem como as outras. De tal modo que tudo
o que é criação do homem ou do espírito que o
move, comunica-se à obra criada.
No lago maior (não confundir com Lago Maggiore)
que estava no centro do parque da Casa do Cão,
ficou um barco que não tinha a proporção dum
brinquedo. Era um barco pesqueiro, feito pela mão
dum poveiro e que Filipe Nabasco tinha comprado.
Nas noites de chuva e vento ele balouçava-se na
água e ouviam-se gritos aflitivos no seu
cavername. Era tão nítido que não era possível
atribuir ao facto qualquer efeito da imaginação.
Possivelmente o barco era a cópia doutro barco
195
que naufragara e o pescador que o construíra
transmitira-lhe o desespero dos homens abandonados
ao mar alterado.
De qualquer forma, o barco ficou no lago e foi-se
despedaçando lentamente. Muitos anos depois,
quando Martinho quis ver a Casa do Cão, já ela
estava reduzida a uma creche ou coisa que o valha,
ainda viu uma tábua vermelha a flutuar no que
tinha sido um fabuloso lago de jardim, com uma
ilha ao centro onde se derrubavam os ramos dum
pinheiro que era como uma selva inteira em
miniatura.
A mudança para o Torreão Vermelho obedeceu em
parte à necessidade de resgatar a Ronda do seu
cativeiro na província. O Torreão Vermelho, além
de possuir condições para abrigar o quadro
(3,631x1 por 4,37111) deixava respirar livremente
a Companhia do Capitão Frans Banning Cocq
preparada para avançar, mas ainda surda a uma
ordem que estava a ser dada. Não lhe obedeciam,
era tudo.
O lugar mais adequado era, à primeira vista, o
salão de baile. No tempo em que o Torreão Vermelho
foi construído, o salão de baile era ainda
representação dum luxo que correspondia a um
direito conquistado. As jovens da casa não tinham
tempo para convidar os seus pretendentes, porque
casavam cedo. O salão de baile não se abria duas
vezes durante o ano e só pelo Natal se armava um
presépio com figuras quase em tamanho natural em
que sobressaíam travessos mamelucos de turbante de
seda.
A última ocasião em que o salão foi usado foi de
facto para a festa de casamento da filha do
cutileiro, uma pequena gorda que se parecia a uma
fada má. A mãe de Maria Rosa conhecia-a dos tempos
das termas, onde se faziam retratos de grupo. Mais
tarde, ao vê-los, ninguém mais reconhecia ninguém.
Depois disso, o Torreão Vermelho perdeu o seu viço
e deixou de ser assunto de curiosidade. Quem
assinou o
196
contrato de venda foi um homenzinho que tinha a
gola da gabardina oleosa, o que causou repugnância
a Maria Rosa.
Na cozinha ficou uma panóplia de facas velhas e um
cepo cheio de golpes onde se partiam as peças de
carne maiores. Um sangue negro estava entranhado
na madeira e parecia o desenho dum mapa de rios
serpenteantes.
Foi difícil a colocação do quadro. Decidiu-se
pendurá-lo no salão de baile, mas brigava com as
nove musas pintadas a claro-escuro na parede. A
solução (foi Elisa quem teve a ideia) foi, de
resto, muito simples: a Ronda foi colocada numa
antecâmara ao cimo da escada, o que deu relevo às
figuras gozosas da festa: a pequena Saskia e o
tenente Van Vlaardingen. Tomaram um aspecto
entendido e parecendo haver alguma coisa entre
eles. Era uma combinação de sorrisos que não
enganava. O tenente conhecia a menina,
provavelmente a filha do portador do estandarte, o
próprio Rembrandt.
A entrada no Torreão Vermelho teve um efeito
extraordinário em Judite. Escolheu para quarto de
dormir um pequeno aposento que mais parecia um
armário dos que se destinavam às mudas de roupa de
mesa e de cama. Nessa altura já o casal tinha
quartos separados, embora não estivesse desavindo.
Mas as constantes indisposições de Judite, as suas
crises de lágrimas, as insónias e doenças de pele,
levavam àquela solução. Ela parecia mais
conformada com os seus padecimentos porque não os
tinha que partilhar com o marido.
Como o quarto por ela escolhido ficava num patamar
duma escada de serviço, usada pelas criadas,
Judite sentia-se segura. Mas depois que só ficou
Elisa, que tinha pouco ouvido, Judite não quis
ficar mais ali e mudou-se para o Torreão onde
havia uma estreita sala que se destinava a ver a
cidade. Não era raro haver desses mirantes nas
casas da burguesia rica; eram uma espécie de
prenda às mulheres da família
197
que, saindo pouco, tinham disponível toda a cidade
e conheciam assim as suas torres, igrejas e
bairros até ao mar. Não se sabe que efeito teria
nelas essa liberdade do olhar; fazia-as mais
saudosas do que não conheciam e amavam por lhes
ser proibido. Judite encontrou repouso nessa
prisão de fantasia. O marido respeitava o seu
estado que sabia não ser de louca mas de amante
que se recusa. Não pensava em ter ciúmes (porque
isto de ciúmes tem muito que ver com o pensamento)
e sentia pena de a ver tão abandonada aos
sentimentos que, no fundo, ela desconhecia. A
virtude não está no arrependimento, mas em ser
estranho às paixões sofridas. Nesse tempo já os
conflitos do corpo, os segredos que até aí eram
disciplina da ciência e dos confessionários,
estavam na rua. A linguagem abria-se, perdendo o
simbolismo erótico para ser apenas uma evasão dos
impulsos violentos, comandos pré-históricos que
iam tomar ascendente sobre a reflexão. Mas a
reflexão trazia um acrescido sofrimento porque ela
descobria novas formas de descontentamento. Só
pela compaixão era possível amar. E Martinho, como
se nos braços tivesse um corpo cruxificado, amava
Judite a ponto de lhe dedicar muitas lágrimas pela
libertação que ninguém lhe podia dar.
O doutor Assis disse:
- Uma viagem fazia bem a Judite. As viagens
inventaram-se para quem está triste. Se não
houvesse pessoas tristes não havia agências de
viagens. Que julgam que o infante D. Henrique fez
ao criar a Escola de Sagres? Um ponto de partida
para se poupar à melancolia. O mundo não andava se
não fosse a culpa dos homens. E vejam como ele
provava a culpa, como precisava dela até se
desgarrar por dentro. Por fora era um elegante,
bem vestido e bem calçado. Mas tinha o irmão em
cativeiro para atear a culpa todas as noites, como
quem acende uma lamparina a um santo.
198
- É possível - disse Martinho. Encantava-o ouvir
falar assim. Aquele velho médico que nunca se
impressionava com os casos dramáticos entregues
nas suas mãos, tinha momentos de emoção muito
particulares. Ele disse:
- Quando Judite romper aquela pele da tristeza e
começar a falar muito e a rir por tudo e por nada,
acautela-te com ela.
- Eu conheço o ditado: "Previne-te quando o homem
calado se faz tagarela". É um provérbio ladino. A
alegria esconde coisas que não se imaginam. Mas de
que vale pensar nisso? Acho que estamos melhor com
o que não sabemos.
A qualidade de mutante fazia a sua garantia ou
pelo menos não era atingido pelas maliciosas teias
da vida. Quando a avó foi para o Brasil porque era
vaiada na rua pelo facto de se vestir à fáscio,
como se dizia, Martinho não partilhou os receios
dela, deixou-se ficar, sabendo porém que a casa
podia ser ocupada, como foi mais tarde, para um
infantário. Em pouco tempo o formoso parque foi
arrasado e as tílias da avenida também derrubadas
para servir de lenha barata ou para grosseira
marcenaria. A medida da ocupação das casas,
habitadas algumas, outras só em época sazonal, foi
inteligente. Anunciavam-se os motins com
consequências imprevisíveis e era preciso dar
satisfação à cólera do povo. Os perigos da
igualdade anunciada eram a anarquia e também a via
secreta de nova servidão. Havia quem, amando a
revolução, lhe fazia frente moderando as paixões
da oposição. Eram homens cultos mas que não tinham
o génio suficiente para salvar uma situação já de
si precária; porque uma longa opressão torna-se
insuportável desde que nasce a ideia de a poder
vencer. Vencer rapidamente, porque tanto quanto um
estado de guerra é longo, a revolução não se faz
demoradamente. Era preciso distrair o povo dessa
situação premente que é ver nas reformas o
primeiro sinal de fraqueza. Quando um despotismo
se acaba
199
deve deixar-se morrer, não o substituindo por
reformas, que é o que em geral se faz.
A ocupação anárquica de casas, que é o que em
geral se faz, serviu de barreira à desordem e ao
ajuste de contas, que tem um papel selado com
sangue em todas as revoluções. Martinho Nabasco
vivia ainda na Casa do Cão quando a emoção
revolucionária se apoderou dos espíritos. Duns,
porque o fulgor duma inovação qualquer age nas
pessoas como um rastilho de alegria feroz; doutros
porque, como espectadores, sentiam o perigo que
nem sequer poupa os que estão na berma a ver
passar o cortejo. E, por precaução ou medo, subiam
ao palco das operações com a convicção de estarem
a seguir um argumento da sua autoria.
A liquidação da História foi um dos principais
conflitos que na revolução se levantaram da parte
dos conservadores interessados em manter o povo
longe da realidade. A realidade era a de ser o
país uma potência sem recursos, com um contingente
de emigração capaz de afundar todas as suas
aspirações que não fossem as de se aburguesar pela
calada. Isto é: plantar a sua horta discretamente
e em família. Com esta matéria social uma
revolução só podia ser urbana. A força militar que
a apoiou, viu-se a braços com a sua própria
fraqueza que é a de não saber controlar o tumulto
dos civis. Os mais inteligentes hesitaram e
recorreram a uma disciplina mitigada; deram ao
povo a liberdade para agir segundo as suas
necessidades e não segundo as suas aspirações.
Foi assim que se permitiu a ocupação de casas que
depois se tornou num cancro nas reformas e que
contribuiu para a degradação dos costumes e da
vida administrativa. Maria Rosa voltou do Brasil,
indisposta com o clima e o acolhimento que recebeu
lá. O burguês revolucionário ia tomar ascendente
em Portugal, posto que aglomerava negociantes,
financeiros,
200
advogados, funcionários, médicos, todos os que
viviam de rendas colhidas no proletariado e que se
intitulavam de esquerda; e democratas, que lutam
por receitas e não por salários.
Martinho já não era o rapaz um pouco fariseu de
feitio, retraído e singular por cultura e por
escolha. Estava agora distanciado dos seus amigos
decadentes que, entretanto, tinham casado com
mulheres mais velhas; tinham filhos doutro
casamento e eram menos exigentes do que uma
"donzela peregrina", como Elisa chamava às jovens
bonitas de boa gente.
Felizmente Judite não era "uma donzela peregrina",
nem nada disso. Se bem que não fosse destituída de
beleza e os seus olhos azuis e raiados de preto
fossem surpreendentes, anunciava-se como uma nova
raça de aventureira; a que apanha o período hippy
e o dos comandos publicitários. Contudo, havia de
suceder-lhe um contratempo, apaixonou-se
perdidamente. Perdidamente não quer dizer que
arrancasse os cabelos e fosse para a varanda de
madrugada, ouvir a cotovia. Os grandes amores são
como as grandes dores, silenciosos. Só que trazem
com eles a virtude de em nada serem calculados,
nem sequer pressentidos. Decorrem com sintomas que
mais parecem de doença extraordinária, se não é
que o amor não é uma doença das células que se
renovam. E aqueles que não amam contam mais
células mortas do que as outras pessoas, os
amantes que amam.
Há amantes que amam como há seda pura, seda
selvagem, seda de Xangai e de Beijing. De Beijing
não sei se há mas, sendo a capital, é natural que
os mandarins guardassem nos seus pavilhões
escarlates as sedas para presentear os seus
aliados. Por agora ficamos em que há amores dos
que amam e os outros, que são, de resto, mais
duradouros e de trazer por casa. Com estes faz-se
tudo o que se quer. Fazem-se famílias inteiras,
sexo e até má poesia. São coisas de que iremos
falar.

CAPITULO VI O TORREÃO VERMELHO


Maria Rosa teve uma vez uma conversa muito
proveitosa com o neto. Ela gostava, como todas as
mulheres que não perderam o tique da ociosidade,
de falar de coisas que não se praticam e apenas se
imaginam. Ela dizia, por exemplo, que, se fosse
nova, ia viver para uma dessas cidades do Oriente
com tradições severas, que são as que sabem melhor
transgredir. Teria um motorista pago além das suas
posses, porque era proibido às mulheres conduzir;
e, outra coisa, ocupava todo o seu tempo livre a
fazer compras e assim a evitar os maus
pensamentos, condutores da depressão.
- As mulheres nesses países têm uma vida
invejável. Comem a toda a hora coisas que engordam
e usam uma roupa folgada que lhes esconde as
banhas. Passam o tempo que querem com os filhos,
que não são tão numerosos como dantes. Os
rapazinhos ficam tão dependentes delas que são
dominados para sempre pela mãe, a tia, a avó. A
sociedade é feminina, as leis são feitas para os
princípios e não para as circunstâncias.
- Não é tanto assim. Não me interessa - disse
Martinho, lançando uma baforada do cachimbo. Maria
Rosa desconfiava de que não era só tabaco o que
ele fumava. Fechava os olhos a muita coisa, aquela
era mais uma. Também a ela
202
não importava tudo o que fazia as conversas
acaloradas. Elas ocupavam o vazio que há entre as
pessoas, mesmo as mais chegadas, e mantinha as
relações no ponto certo que era o da solidão
compartilhada. As coisas mais belas que havia nos
sentimentos um pelo outro só foram mostradas à sua
alma depois de um morrer. Há uma segurança
definitiva na morte dos que se amam. Ele disse:
- Aquela medida de não permitirem às mulheres o
curso de Direito tem algum sentido. As mulheres
julgam com emoções e quando as querem corrigir são
cruéis e não justas.
- Achas que eu sou cruel?
- Não personalizes tudo. Também isso é prova da
tensão sazonal em que vivem as mulheres.
- A tensão sazonal. Parece um insulto.
- Aí está. Tudo lhes parece um insulto, é uma
forma de inflação. Acontece com as mulheres o que
acontece com o dinheiro. Com o dinheiro, os preços
podem subir tanto que já nada se compra. As
consequências já se sabe como são: a riqueza
súbita dos pobres, parecer influente o que o não
é, as dívidas grandes serem pagas com pouco.
- E as mulheres cabem aí?
- Não. Mas entram em qualquer discurso. A inflação
é isso.
- Não és feliz com Judite? Não respondas. Nós
vamos levar a inflação a esse ponto.
- Eu sou feliz, pelo menos é o que me parece. Ela
está apaixonada por outro homem e tenho muita pena
dela. Sofre muito e eu não a posso ajudar.
- Dorme com ela, que sempre ajuda.
A avó estava magnífica, deitada na cama com
baldaquino e toda reluzente de sedas, a cama e ela
própria. Sempre gostara de roupa interior luxuosa
e o marido oferecia-lhe coisas
203
lindas, escorregadias e que criavam um sentimento
de doçura, na verdade nada sensual. Isto de se
julgar que as mulheres de cama têm um estilo
próprio de provocar com roupas íntimas, é um
engano. Com roupas íntimas não se provoca nada,
elas são o contrário da excitação. O cancã sim,
era excitante; libertava o cheiro a sexo com
aqueles folhos e saias agitadas no ar. Estes
pensamentos não eram abordados no quarto da avó;
se o fossem, era duma maneira espirituosa, como se
viessem directamente dum monólogo de Oscar Wilde.
Ele tinha o prazer do monólogo, os outros todos
vinham daí.
Martinho disse que Judite não o preocupava senão
em que o sofrimento dela não era sua culpa. Com a
culpa as pessoas sabem como tratá-la e vencê-la
também. Mas a inocência é terrivelmente dolorosa e
não se lhe pode pegar de nenhuma maneira. Ele,
Martinho, estava à espera que, uma vez livre do
amor que a arrastava, cada vez mais fundo, para o
coração das trevas, ela subisse à superfície, como
Lázaro do seu sepulcro. Nunca mais se falou de
Lázaro e não é coisa pouca ser um ressuscitado.
Também não se falaria mais de Judite, quando ela
saísse ilesa do coração das trevas.
- Achas que ela te deixa? - disse a avó. E
espalhou na cama os anéis dos dedos e voltou a
enfiá-los.
- Penso que sim. O amor triunfa de tudo, menos da
felicidade.
- É pena, é pena. Eu gosto dessa rapariga.
- E depois, avó, que se pode fazer duma pessoa
feliz? Nada. Também é preciso ver uma coisa: o
pobre volta à pobreza, não se pode afastar dela
para sempre. É um vínculo; o amor do amor. Um país
que é governado por pobres, pelos que amam a
primeira cama onde se deitaram, será sempre pobre.
Há qualquer coisa na primeira noção de vida
difícil e
204
dolorosa que pode passar por moeda forte. Mas
estou a cansá-la. Deite-se para baixo um pouco.
- É o que vou fazer. Mas diz-me uma coisa: o
sofrimento, que dizes do sofrimento?
- É o que nos vale. Sem ele não havia valores nem
criação do mundo. Não tem frio?
- Frio, sim, tenho. Es tu que me fazes frio.
Gostas de ser infeliz.
- Receio bem que sim.
Ele saiu, pisando de leve o velho tapete de
Aubusson manchado por sete vidas de cães e de
gatos. E só se ouvia o travar dos autocarros como
mamutes que se repousam duma corrida para a sua
extinção. O Torreão Vermelho, banhado pelo último
clarão do sol, parecia um engano de arquitectura,
como se fosse feito para resistir às areias do
deserto. Em todos os cantos da casa Martinho
levantava os mortos ao som das suas objecções: o
cutileiro, com a bata azul de trabalho, ia lavar
as mãos a uma pia que havia na cozinha, tão
pequena que servia só para os pássaros beberem.
Todas as casas têm uma forma de calão, de
blasfémias, de boçalidades, como se, por cima do
seu traçado, as vozes dos operários ficassem
impressas. Era um cruzar de palavras brutais ou
escarninhas que o trabalho trazia consigo. Não há
trabalho amável e sensato. O que Deus fez não se
chamou trabalho mas um sonho com efeitos
colaterais, que são a realidade.
Cada recanto no Torreão Vermelho parecia ter uma
história que não era adequada às histórias que são
envolvidas pela teia da experiência comum. Uma
época tem a sua linguagem, um modo de vestir, de
comer e de amar. Sade, por exemplo, está na raiz
do prazer que se reveste de algo cómico para não
cair no coração das trevas. O coração das trevas
está intacto na sua profunda área de segredos e é
rodeado por
205
numerosa matilha encarregada de desviar os
intrusos: a matilha política, a doutoral e a
anarquista. O político que tem uns mínimos de
confiança na sua carreira e no seu partido nunca
deixa a casa no campo nem o fio de inteligência
com os nativos do seu tempo. Embora nunca deitasse
o pião com as crianças da sua idade, dirá que as
conhece a todas pelo nome e que está informado do
caminho que levaram. Está visto que as esqueceu a
todas essas crianças; mas o que não esqueceu foi a
sensação de bem estar quando estava na sua cama de
palha. Nenhum colchão ortopédico lhe dará tamanho
conforto e nunca há-de compreender outros desejos
e outras relações que não sejam símbolos do que
foi a sua investidura na vida: a injustiça, a dor
e o que as tutela e suprime. A política, em suma.
Percorrendo o Torreão Vermelho tinha-se a
impressão de que Kafka procedia assim para fazer
os seus romances. Não se tratava de pessoas vivas,
mas outras, que saíam da parede e vinham juntar-se
a ideias de pessoas e vestir as suas roupas e
funcionar como elas. Eram muitíssimo mais
atraentes do que aquelas que obedecem a praxes
impostas do exterior. Só que, como nos sonhos,
estavam sempre em risco de serem apagadas e a sua
explicação não tinha nexo.
O cutileiro era como um homem qualquer quando
vestia a sua fatiota de cerimónia feita por um
alfaiate que talhara um paletó ao príncipe de
Gales, uma vez que o príncipe de Gales perdera a
bagagem ou a deitara pela janela. Mas o cutileiro
na sua loja de cutelaria era completamente um
grande da sua rua. Entendia de aços de Thiers e de
osso embutido e marchetado. Percebia de tudo da
sua arte; avançou até aos ferros hospitalares,
pinças, bisturis e lancetas. Um dia que levou para
casa um estojo com material de parto, a filha,
julgando que o fórceps era uma tenaz da salada,
mandou-o para
206
a mesa dentro da saladeira com alface de Inverno.
E o fórceps, brilhante e sensual no seu novo
destino, causou sensação.
Desse passado vivido no Torreão Vermelho, Martinho
retirava ensinamentos e passeios pelo mundo
desconhecido. O que era um cutileiro? Isso
oferecia um estudo sobre o ofício, a competência,
o espírito da matéria. Ele entretinha-se, às
vezes, com estas coisas, um jogo, uma jardinagem
de palavras.
Todavia, o cutileiro não se revelava senão em
mínimas proporções. Por exemplo, no Torreão da
casa, feito para alargar a vista sobre a cidade.
Era como debruçar-se sobre um corpo aberto, ter à
disposição as vísceras, o coração a bater no saco
musculoso, muito diferente do coração que se grava
numa árvore, num namoro de Verão. E a cor da casa,
dum vermelho pardo, um sujo grená semelhante ao
sangue a que se misturou vinagre para não coalhar.
A chuva já o desbotara, era mais rosa do que
daquele pegajoso tom que tivera e que merecera um
concílio de arquitectos e mestres-de-obras; e de
pessoas de família, jovens e velhos, cada um com a
sua mania, gosto, presunção e desejo de se impor.
Quanto mais tinham conhecimento da sua
insignificância na engrenagem do projecto, mais se
desbocavam a atalhar as coisas, a levantar
dificuldades. O cutileiro tinha que cortar pela
raiz, soprar das entranhas a sua tirania e acabar
com a discussão. Por pouco não brandia os seus
tesouros de ofício, um punhal malaio ou uma faca
argentina com bainha de couro e que tinha na ponta
uma mulher nua em prata lavrada.
Por fim venceu o vermelho sangue mas atenuado,
como o sangue que corre nas calhas dos matadouros,
com laivos de gordura, a boa gordura que fará
sabão de toilette com perfume de alfazema ou
rosas.
207
O cutileiro não era uma pessoa qualquer. Quem
construíra o Torreão Vermelho não era uma pessoa
qualquer. Martinho certificou-se onde ele dormia;
era um quarto que dava para a escada nobre, um
quarto de rapaz. Queria dizer que não tinha
filhos, só meninas. Nas casas antigas do Porto mas
que não eram de grande padrão burguês, havia o
quarto com porta para a escada. Permitia a vida
nocturna, a visita de amores clandestinos, a
discrição combinada com o sabor vadio do celibato.
No caso do Torreão Vermelho não havia rapazes. O
cutileiro, que tinha uma fila de antepassados
banhados nos aços finos franceses, viu-se sem
herdeiros, além das jovens desengraçadas, uma
delas Umbelina e outra Carlota, as meninas do
Torreão Vermelho. Duma se sabia que era feia sem
atenuantes. Mas a outra tinha sal e outros
condimentos de Goa e de Malaca, não sei se digo
bem.
Os lugares do Torreão Vermelho pertenciam quase à
periferia no tempo em que a Casa do Cão fora
comprada pelo Nabasco. Em 1930, aproximadamente.
Havia uma flora singular de palmeiras e diversas
árvores do Brasil; só que não atingiam o porte
imperial das airosas espécies do Recife, com as
desgrenhadas cabeças à brisa costeira. A palmeira
foi um emblema que o português pregou na lapela de
capitalista. Filipe Nabasco tinha ainda no bilhete
de identidade a designação de capitalista; do que
achou estar à beira de ser suspeito, como fora o
título de fabricante no século XVIII. Substituiu-o
pelo de proprietário; o que também não lhe
agradava. Se tivesse que ser sincero, diria que
era caçador e jogador de bilhar. Quanto à fortuna
que se lhe escorria pelos dedos, havia de durar o
que lhe duravam os fatos de lã da Covilhã, uma
eternidade, sem exageros.
208
A morte de Elisa ocorreu numa segunda-feira, dia
de mudar as roupas de cama; ou antes, de as lavar
nos grandes tanques de pedra com lavadouros
ásperos e outros mais macios. Havia ainda luxos
desses, Maria Rosa trouxera de solteira hábitos de
grande estadão, com criadas, moças de recados, e
hortelãos e jardineiros. Além dos faz-tudo, que
eram empregados de meia-idade que compunham
goteiras, fechaduras e cadeiras partidas. Eram os
sábios do borralho, que estavam à noite a um canto
da cozinha a pregar tachas no calçado avariado. A
Paula, ainda pequenina, faziam muito medo as solas
despregadas, com filas de dentes que lhe pareciam
animados de maus instintos.
Paula, até aos cinco anos, era inteligente e cheia
de graça. Depois ficou igual a qualquer outra
pessoa.
A morte de Elisa foi muito sentida, embora ela se
tivesse tornado exigente demais e chamasse as
pessoas para a sua beira a toda a hora. Queria que
lhe acendessem a luz, que a virassem na cama, que
lhe mudassem as fraldas e que lhe trouxessem
novidades. Olhava como se não percebesse nada e
dizia:
- Isso não pode ser assim...
- Tanto pode, como é - dizia-lhe a costureira, uma
tal Genoveva que só sabia subir e descer bainhas.
Também pregava botões e cortava a linha com um
golpe do dente canino, que era um espanto.
Chamavam-lhe a Génia dos botões, e ela não se
importava. Era extraordinário como havia pessoas
que não se importavam: nem com alcunhas, nem que
lhes ralhassem, nem que demorassem a serem pagas,
e tinham paciência com tudo. Martinho conheceu um
rapaz no Iraque (não me façam perguntas) que se
chamava Abdul e a quem tinham queimado a casa e
feito muitas e horríveis atrocidades de guerra; e
ria-se com enorme, grandiosa satisfação como se
209
ao perder tudo não houvesse mais para suportar, e
isto fosse bom. A realidade do horror fazia-o
conhecer a pequena proporção de paz que nos é
destinada, mas tão insuficiente que nem é
estimável, apenas nos faz rir. Martinho teve a sua
parte de informação num período de ternura
colectiva provocado pelo "mal de ouvido", como
disse Byron. Parecia que o mundo era um inferno e
os lamentos chegavam como imundícies e colavam-se
à pele. A mulher de Abdul teve tempo para comprar
uns sapatos e discutir com a sua cunhada a cor e o
feitio; ávida, entre o prazer e a dor, permitia-
lhe que alguma coisa de habitual a fizesse dispor
de um estado de consolação.
- O mal de ouvido, que quer isso dizer? - A avó
estava recostada na cama e não pensava levantar-
se. O modo como evitava virar-se dizia do
agravamento do seu estado, mais doloroso do que
perigoso.
- O mal de ouvido é o que nos é contado, diferente
do que sofremos. Todo o mundo anda intoxicado com
o mal de ouvido, mas a realidade é diferente. Mais
instantânea, produzida pela morte vivida. Não há
lágrimas, não há qualquer precaução da natureza
para aliviar a dor. A dor está presente e absorve
tudo à volta.
- Eu sei o que é a dor. As mulheres sabem como
nenhum de vocês, que a abraçam como se fosse uma
amiga. Estive dois dias e duas noites com dor de
rins e digo-te que o parto de rins é o pior. Pior
do que arrancar os dentes a sangue frio. Qualquer
humilhação que nos aliviasse a dor era bem vinda.
Inclusive ser violada à vista de toda a gente na
rua. A dor dos homens pode ter a obstinação ou a
heroicidade para a recordar. Mas a nossa dor não é
assim. É só vergonha, não está fundada no
entendimento, não há o inimigo a quem apelar ou
odiar. É a dor a que chamam natural. Não tem nada
de natural.
210
- Percebo. Há umas palavras da Medeia, de
Eurípedes, em que ela diz que preferia ir para a
frente da batalha a dar à luz. Penso que isto
explica a irreconciliação entre as mulheres e nós.
"Só teremos paz quando as mulheres deixarem de
parir".
- Isso é assustador, mas não se pode ir mais
longe. Onde leste isso?
- Não sei, nem quero saber.
- Está feito, está feito! - disse ela como se
concluísse de repente alguma coisa que lhe
repugnasse. Bateu fortemente no colchão para
espantar a gata que queria meter-se dentro dos
lençóis. Martinho pensou: "Tudo o que se faz por
elas é pouco, são mal-agradecidas e gostavam de
nos banir do mundo, tanto nos acham imperdoáveis,
tanto nus como vestidos".
- Amou o seu marido?
- Tinha dias, horas. Não podíamos chegar muito
perto um do outro, nem perguntar nada. O amor é
uma tradição local. Eu amo as criancinhas pequenas
como as feras amam as crias. Porque é preciso
protegê-las dos machos e dos predadores. Estive
noites acordada para vigiar a Paula no berço.
Sabia que ela corria perigo.
- Perigo, que perigo?
- Perigo - disse a avó. Um lampejo de fúria
iluminou-lhe todo o rosto e depois acariciou a
gata que deixou ouvir um ralo de satisfação. - Não
somos nada de bonito. É pena. Mas isto há-de
melhorar.
- Quer o seu chá?
- Pode ser, sempre é uma consolação.
- Imagina quantas mortes de escorbuto, de
afogamento, de enforcamentos no mastro maior foram
precisos para a avó ter essa consolação.
211
- Imagino. Parte do sabor está nisso.
- Não gosta de nós - disse Martinho, a rir-se.
Adorava a avó e tudo o que vinha dela, espírito,
redundância, paixão e até calúnia. Era uma mulher
devastadora e cheia de recursos para sobreviver e
ajudar as suas crias. Ela olhou para um quadro da
parede que não tinha a ver com nada e disse,
pausadamente:
- Acho que a Judite matou a mãe e o desgraçado
agarrou-se à culpa para a salvar. Os homens gostam
dessas coisas.
- Que coisas? Está a inventar.
- A culpa. Gostam de ser culpados. Inventar é uma
forma de perceber.
Ele desceu as escadas, passo a passo, muito metido
consigo e a avaliar o que tinha ouvido. "Mal de
ouvido", nada mais do que isso! Estava perturbado
e assim esteve durante dias a fio. Não conseguia
falar com Judite e interpretava tudo mal do que
ela lhe dizia. Não era o facto de admitir que ela
fosse uma criminosa, mas o de ser ludibriado.
Agora como era que as coisas se iam passar?
Aceitava-a na cama dele quando ela quisesse
voltar? Falava-lhe abertamente de tudo aquilo?
Decididamente era um arranjo para durar. E comeu
com apetite a sua perdiz congelada desde o Natal e
que tinha caçado na Terra Quente. Quando pensava
na caça, muitos pensamentos nobres se esvaíam na
sua cabeça e um prazer franco animava-o. O cantil,
as polainas, a arma dobrada com os canos como a
farejar o chão, passavam na memória dele como um
clarão de felicidade. Apeteceu-lhe sair da cidade
e ir para a montanha, ou para o solar da Ronda,
meio arruinado e que o vento varava de lado a
lado. A verdade estava com ele quando se deitava
no colchão de palha e ouvia os cães disputar os
ossos que, sendo cozidos, se lhes pegavam aos
dentes e era preciso tirá-los com a mão enluvada.
Eram cómicos, de
212
boca aberta, sentados nos quartos traseiros.
Martinho ria-se e as lágrimas caíam-lhe pela cara,
de tanto rir.
- Não me venham dizer o que é preciso para
divertir um homem!
Dormia como um justo, se é que o justo tem bom
dormir. O caseiro, ou o que fosse, estava na
cozinha a pesar a pólvora para os cartuchos que
comprava vazios e depois carregava como sabia.
Tudo era ordem e zelo. Martinho chegou a receber
na cama uma das moças da casa e uma criança nasceu
dessa paz de alma em que se encontraram; sem medos
e ponderações e não sei que mais. "As
consequências tiram a vontade de tudo", pensou.
Compreendeu que a barafunda da política, de todos
os actos humanos tinha início no conflito entre
pessoas e as suas divergências necessárias à
estima de si mesmas. Um bom governo é impossível
de definir porque todos os governos, sem excepção,
partem da má fé quanto à tranquilidade pública e a
previsão das consequências. As consequências são
inseparáveis desde que as posições absolutas dos
povos são desencadeadas. "Um pouco de agitação dá
energia às almas, e o que verdadeiramente faz
prosperar a espécie é menos a paz do que a
liberdade", escrevia o senhor de Voltaire, que
sabia do que falava. Só que a liberdade se funde
com a bestialidade que não se pode erradicar da
força que comanda os nossos actos. Essa força não
mede as consequências e por fim vemos as fases
mais opulentas e afirmativas dum país serem
marcadas por uma espécie de alienação colectiva
que faz tábua rasa das leis mais sagradas e
protectoras da espécie humana. Quando não se
espera ver mais a panóplia dos baixos instintos
autorizarem a tortura e os massacres mais
impiedosos (impiedosos mas populares), estamos de
novo em circunstância delituosa
213
da História, em que a energia adquire a sua parte
de milícia nacional pronta a sacrificar a
liberdade que criam as leis justas.
No fundo, o homem é escravo da prosperidade cujos
abusos estão ao alcance dos inaptos e dos
corruptos. Pouca coisa o satisfaz e lhe dá a
felicidade. Mas é preciso muita coisa para o
convencer de merecer a felicidade.
No tempo de Inverno em que Martinho deixava o
Torreão Vermelho para ir aproveitar o que restava
dos solares em ruínas, podia dizer que era um
tempo de felicidade. Aprendia coisas, até como se
fazia uma sopa e a maneira de a temperar e torná-
la saborosa. Também se tornou muito conhecedor das
crianças, das suas doenças sazonais; e de como
eram ensinadas sem demasiado carinho porque elas,
se são saudáveis, não gostam de ser protegidas,
isto ridicularizava-as. Não lia nada nem levava
livros com ele. O que encontrou numa gaveta do
quarto de rapazes doutros tempos, foi uma edição
meio desmantelada dos contos de Conan Doyle, com
gravuras admiráveis dum autor de quem, decerto,
ninguém ouvira falar. A celebridade tinha-se
inventado depois, provavelmente quando Lindberg
atravessou o Atlântico. O poder era muito mais
tentador.
Quando voltava, caíam-lhe em cima todas as
preocupações em forma de contas a pagar, cartas a
responder e soluções a dar aos problemas de
família. A mãe, Paula, queria divorciar-se, a
cozinheira ir embora, Elisa morria com a doença de
coração que tinha há muitos anos, para mais a ala
oeste do Torreão Vermelho tinha aberto uma fenda
onde cabia um braço. Era preciso repará-la quanto
antes.
- É no que dão casas velhas - disse o doutor
Assis, que, entretanto, se via sozinho, viúvo e
com a fortuna muito comprometida. A mulher morreu
discretamente como tinha vivido e pode-se dizer
que nunca tinha conhecido Maria Rosa
214
nem ninguém lá de casa. Suportava sem aprovar nem
desaprovar a ligação platónica que o marido tinha
com a senhora Nabasco. Não podia vencê-la, nem
queria. Era uma loira deslavada, elegante à
maneira inglesa, das que falam de flores e do
tempo. Todas as noites o doutor Horácio Assis saía
para passar uma hora na sala de Maria Rosa, se é
que não jantava lá e lhe levava chocolates com
recheio de licor.
- Não é tanto o bombom que me agrada mas a maneira
como o fazem. É um mistério! Há gente muito
esperta neste mundo e não faz mais nada senão
bombons de licor.
- Fazem amêndoas também - disse Martinho. -
Parece-me ainda mais difícil.
Nesse tempo ainda Maria Rosa vinha para baixo,
depois deixou de vir. Dava-lhe prazer descer a
escadaria do Torreão Vermelho, de maneira lenta e
sensual, como nos filmes a preto e branco.
Mulheres impressionantes, com um ar parvalhão de
estarem a ser filmadas e tendo na cabeça um papel
completamente falso. As ladies, as ingénuas, as
rameiras vestidas de vermelho, e isso bastava para
as denunciar. Em Nova Iorque, nos anos cinquenta,
uma mulher digna não se vestia de vermelho mas de
lamé, fino como uma meia. Maria Rosa gostava de
vermelho; todas as vezes que olhara para o
Torreão, como vizinha (porque o cutileiro ainda
não estava falido nem vendia a casa), era para se
interrogar. Que vermelho tinha sido no princípio?
Um vermelho Chirico que se via tanto na paisagem
italiana? Ia bem com os ciprestes altos e quase
negros.
No seu tempo (gostava de dizer "no meu tempo",
como quem conta os passos demoradamente) ela ia
com o marido para as termas italianas, desfrutava
do tratamento de águas como se fosse algo de
sacerdotal. Os hotéis tinham pé-direito imenso,
custava olhar para o tecto. E, nos balneários,
encontravam-se pessoas célebres, a filha de
Mussolini com as crianças,
215
a senhora Ciano. Sem querer, Maria Rosa copiava-
lhe os vestidos dum bom-gosto perfeito, só para
eleitos.
- Burgueses ricos - disse Filipe Nabasco, com
aquele desdém português, em que paira uma ideia de
perfeição como a de Deus ao criar o mundo. A
aristocracia acabara; havia moleiros, que tinham
mais ar de príncipes, do que gente de sangue azul.
Martinho já não os apanhara a chegar, lado a lado,
mulher e homem, para pagar a renda do seu moinho.
Eram belos como não sei quê, honestos como
Tancredo em Bizâncio. - Burgueses ricos... - disse
o Nabasco. O fascismo era uma vontade limitada às
coisas, o fim da noção do divino.
- É pena eu não ser nova. Agora todas as mulheres
se vestem de vermelho. Perdi a minha cor, e para
nada.
- Mas eu via-a de vermelho muitas vezes - disse
Martinho.
- Não me desdigas. Nem tudo o que se diz é para
ser provado.
Era isto que a tornava inimitável. A mulher do
doutor Assis não podia igualar-se a ela e talvez
sentisse prazer em mandar o marido adorá-la todas
as noites. Assim ele aprendia quanto era
insignificante e voltava resignado e muito mais
capaz de ser um bom marido.
O país estava a funcionar sob a fresca maneira dos
politocratas. Já não era uma arte confidencial,
era um desempenho de palco, com maquilhagem,
provas no alfaiate recomendado, cores conforme o
conselho da televisão. O corte de cabelo tinha que
ser apropriado, o colarinho italiano, o padrão
imposto pelo costureiro. Se bem que em Portugal as
coisas fossem tímidas e pouco favorecidas pela
instrução popular que não percebia de modas, nem
dos chapéus de S. Magestade Isabel II. Para o
povo, o politocrata era um mandão, espécie
216
de polícia-mor, que punha escutas nos telefones e
podia ouvir os suspiros de amor dos amantes.
Tratava-se de substituir Elisa, a fiel mordoma, e
tinham medo de contratar alguém que viesse para
informar e ler as cartas antes de as entregar, não
numa salva de prata, como era a antiga praxe, mas
de mão para mão. Molhada, esfregava-a no avental.
- Ponho o correio na mesa? Você que acha?
- Era o vous francês que se pegara à língua de
imigração e que grassava em todos os sentidos,
quase como uma continência feita à democracia.
Judite saiu da sua paixão em grande classe,
completamente soberba, como se carregasse manto e
coroa. Queria ser servida pela esquerda e que a
tratassem por madame.
- Se não for assim, não compreendem, nem aprendem
outra coisa, nem nada.
- Olha que porra! Eu tenho o nono ano e a carta de
condução.
A nova empregada sentou-se bruscamente e
acrescentou que não queria servir burgueses. Não
se praguejava, falava-se mal. E já ninguém se ria
com a ingenuidade do boçal, nem com o erro da
gramática do iletrado, nem com a ciência
licenciosa do aprendiz da cultura. Mas as baterias
do sarcasmo incidiam sobre os maiores, a pobreza
visava mais alto, o perímetro da sua consolação
alargava-se até ao ministro, ao Papa e até ao
reino dos céus. Tudo era tolerado desde que se
pagassem os impostos e não se provocassem
engarrafamentos nas estradas. Sobre tudo isto, uma
moral de efeitos caricatos compunha o quadro duma
sociedade em que prevalecia o princípio
filosófico: "O homem só faz asneiras quando quer
ter razão".
217
O Torreão Vermelho datava dos anos trinta, quando
a filha mais velha do cutileiro foi pedida em
casamento por um grande importador de farinhas.
Era um negócio próspero começado na guerra de 14-
18 que aproveitou nesse sentido a pessoas pouco
escrupulosas que ficaram de repente ricas. Subiram
na vida que era um disparate, como diziam os
Cunhas, serventes por tradição. Adão, Miguel e
Salvador nunca se afastaram da área dos grandes
proprietários, como os Nabasco que evitavam
chamar-se capitalistas. De resto, capitalista era
um adjectivo desconhecido quando a moeda era ainda
relacionada com a moralidade. A fortuna era
avaliada em bens ao luar, terras e a produção
delas.
Adão, Miguel e Salvador tinham a confiança dos
Nabasco, o que era melhor do que ter o nome deles
e as preocupações da sua fazenda. Foram felizes,
com famílias numerosas e subiram na vida, chegando
a polícias, carteiros e enfermeiros, sem nunca
aspirar a ter carro e dinheiro no banco, nem
amantes, a não ser qualquer amiga de ocasião a
quem ficavam gratos toda a vida. Quem queria obter
um favor dos Cunhas era favorecer essas amantes
sem história; não há como a lembrança de amores
ocultos para acentuar uma gratidão.
O trigo tinha subido depois da guerra e faziam-se
transacções muito rendosas com as misturas de
aveia e dizia-se que de ossos humanos. A filha do
cutileiro foi bem servida dum noivo que se
apresentava como um grave homem de negócios. Era
baixinho, falava muito da educação que dava aos
filhos e estes, não se sabe porquê, detestavam-no.
Quando o cutileiro faliu passou a dar à mulher um
tratamento indecoroso e só a deixava vestir-se bem
quando saía na companhia dele.
- É um biltre - disse Maria Rosa. - Sabes o que é
um biltre?
218
- Eu sei, é um sem-vergonha, um safado ou por aí.
Caiu em desuso essa palavra.
Martinho Dias Nabasco estava na cabeceira da mesa
a fazer bolinhos de pão e a olhar para Judite de
fugida. Ela parecia muito à vontade e mandou abrir
as portas de vidro para o jardim. A sala ao lado
era destinada à conversa depois do almoço e
oferecia a vista das flores e das grandes árvores
de sombra. Martinho pensou se ela estaria curada
da paixão que tinha pelo carismático Andrade a
quem Bento Webster Soares prestava homenagem
sempre que podia. No entender de Martinho, o
excelente Andrade era um homem cruel, só que não o
mostrava. Uma vez que um gato se meteu no motor do
carro dele para se abrigar do frio e saiu de lá
espavorido depois duma viagem infernal, ele
contava isto a rir-se com prazer. Martinho ficou
com a impressão de que ele era uma pessoa a
evitar. Admirou-se de nunca ter sentido ciúmes com
a paixão de Judite por ele. Sem deixar de o amar,
o que não estava na possibilidade do seu controlo,
ela sentia-se ameaçada. A história do gato também
fizera efeito nela e ocorria-lhe nos momentos mais
dolorosos da sua vida. Quando julgava que estava
no limite das suas forças e a ideia de se matar
lhe parecia fácil, como adormecer à beira da água,
o gato saltava seguido do riso do homem que ela
tinha preso no coração com ganchos de ferro.
Um dia tudo desapareceu. O sinal foi assim: estava
sentada diante da porta aberta para o jardim; o
dia estava quente mas chovia como se um véu
ondulasse no ar. Teve a noção de que ele entrara e
ficou um momento parado atrás dela, sem se
anunciar. Foi um momento frágil, tudo podia
acontecer como correrem para os braços um do
outro, gemendo de paixão e de prazer. Ela
levantou-se, virou-se e viu pela porta que dava
para o átrio, uma grande porta de ferro-forjado, a
figura do
219
ajudante do capitão Cocq. Parecia estar a
presenciar a cena. A porta estava fechada,
fechara-se com o toque mole do trinco, mas ela
viu-o pelos espaços entre os florões de ferro. Viu
como se as plumas do chapéu dele se agitassem
devagarinho.
- Que surpresa! Toma um café comigo? Eu ia agora
tomar um café.
- Não, minha senhora.
Ela pensou que na grande mão que ele tinha a
xícara devia parecer minúscula. "Porque fazem as
xícaras tão pequenas quando são mais para os
homens do que para nós?" Sentiu-se de repente
muito à vontade, cheia de forças e alegria.
Estranha alegria. Ele podia cair morto ali e
Judite não deixava de sentir-se confortável, com a
chuva a entrar pela porta aberta do jardim. Quase
não se viam as sebes da "lágrimas de princesa" com
flores derrubadas, rosa e brancas. Talvez não
estivessem lá e, sem que ela soubesse, acabassem
de ser cortadas. Era uma ilusão de óptica, ou quê?
Cingiu-se à écharpe de lã e avançou para receber a
visita. Ele não estava lá. E do lugar em que ela
se encontrava não podia ver o tenente mas só a
massa de personagens menores que se preparavam
para ouvir a ordem de marcha. Preparar-se é uma
maneira de dizer: cada um fazia o que queria,
falava, tocava tambor, cruzava as suas lanças sem
nenhuma disciplina militar. E isso do capitão Cocq
estar a apontar o caminho a seguir, não era
verdade. Estava a mostrar a sua estatura, a sua
faixa vermelha e os sapatos de laços. Judite, a
primeira coisa que fez foi ir olhar para a Ronda
da Noite. "Nunca o tinha visto assim" - pensou
ela. A menina, no meio daquela turba preparada
para se bater ou simplesmente desfilar, não estava
assustada mas meio divertida. Estava vestida como
para um baile, mas a galinha morta à cinta, não se
podia dizer que
220
fosse um enfeite, um símbolo; é talvez uma nota de
humor, como o pintor usa nos seus próprios
retratos, apanhados de surpresa. Como se ele
dissesse: uma galinha à cintura duma rapariguinha
pode não querer dizer nada. É um motivo para um
espaço vazio. Já pintou os dois pavões mortos (eu
diria antes perus) para um dia de festa. E uma
menina olha para eles, com o mesmo ar de
divertimento, como se esperasse vê-los voar. E há
aquela outra ave suspensa pelas patas num prego, à
espera de ser depenada para o jantar. Ele pinta
tudo, sem imaginação ou escolha. Pinta o que tem à
mão, pessoa, animal, flor; qualquer coisa que mexe
ou que se oferece ao olhar. Pinta por vocação, por
mania, por encomenda, por riso, por prazer. As
suas cenas bíblicas não são dramáticas? A
companhia do capitão Cocq é uma patuscada de
bebedores de cerveja? Ele não está ali para
filosofar, mas para se embebedar de tinta e de
glória. Porque, ele, Rembrandt, é admirado,
procurado, chamado a pintar a sua cidade, os seus
burgomestres, as suas riquíssimas senhoras de
extraordinárias golas brancas. Cristo parece um
pedinte espantado de se ver subir aos céus?
Andrómeda não se parece nada a uma virgem entregue
ao apetite do dragão? Teve já quatro ou cinco
filhos e os seios seriam flácidos se não fossem
elevados pela tracção dos braços? Não importa. Não
é um esteta, é um homem fascinado pela realidade e
não um serviçal da arte. Pinta carcaças de bois no
matadouro como se estivesse a ouvir uma história
de enforcados. E a degolação de S. João Baptista
com a cabeça do profeta no chão faz-nos estremecer
e querer vingá-lo. O festim de Ester tem uma
melancolia de quem sabe que o desejo se consuma na
perda da liberdade. O ceptro perdeu a sua
dignidade, parece mais uma faca de trinchar.
Ester, perfumada por dentro e por fora, cede à
súplica do seu povo e é, como Bethsabé, uma vítima
vingadora.
221
Maria Rosa, no dia em que recebeu a Ronda no
Torreão Vermelho, disse que esse foi o dia mais
feliz da sua vida. Já tinha dito isso antes e
disse o mesmo muitas vezes depois. Martinho
lembrou-lhe isso.
- O dia mais feliz da minha vida foi quando a
minha mãe casou e foi viver para longe com o
marido da Marinha. Eu tinha medo de que ela me
levasse e eu entrasse no regime da tropa, a
levantar-me às seis da manhã e coisas no género.
Depois nasceram os cadetes, os meus irmãos, e
fiquei mais sossegado. Não os vejo muito mas acho
que são bons rapazes. Levam com o cinto de vez em
quando mas isso só lhes faz bem. É um hábito
saudável e não há assim tantos hábitos saudáveis.
- Cala-te, menino, não é verdade nada do que estás
a dizer - disse Maria Rosa. Ria-se das coisas que
Martinho inventava. "Se não fosse o que se
inventa, a vida era muito aborrecida" - pensava.
Quanto aos cadetes, bonitos rapazes loiros, quase
iguais, e cabelo à escovinha, pertenciam a um gang
de malfeitores de elite, vestiam-se de preto e
usavam botas com atacadores que eram como uma
arma. Um pontapé daquelas botas matava uma pessoa.
Mas isso foi quando tinham quinze anos ou pouco
mais. Estavam prontos a assentar e a tornarem-se
em politocratas de grande envergadura, conhecidos
pelas opiniões radicais mas com saídas de fuga.
Desprezavam o aparelho partidário, sempre à beira
do stress e que usa as sondagens como quem usa
calmantes.
Martinho não fazia nada para se encontrar com os
jovens irmãos que eram mais altos do que ele meio
palmo seguramente, e que transmitiam a Paula, a
mãe, a ideia de que Martinho pertencia às
estrebarias do país, e que tinha o complexo de
Augias. O rei Augias fora quem mandara a Ulisses
limpar as estrebarias que há cem anos não eram
limpas. As
222
estrebarias eram as contas do Estado e a
formidável e fumegante bosta da corrupção. O que
eles não sabiam é que, para o provinciano, ser mal
julgado na capital, como um primário cuja educação
se fez na base dos dez mandamentos, é um ponto de
honra. O país real era feito de provincianos com
olhos na nuca, que conhecem tudo e se servem do
que é adequado para não terem problemas com o
próprio Deus. Enquanto que o politocrata se limita
a não ter problemas com a polícia.
Quem era Deus para um feudal como Martinho
Nabasco? Ele costumava dizer:
- Se uma coisa não existe, não merece contradição.
De facto, é um absurdo o que se passa com os
leigos deste país: dizem que Deus não existe e
querem prová-lo. Mas têm tantos argumentos como os
crentes para provar o contrário.
Recomendava como leitura as Lições sobre a Teoria
Filosófica da Religião, de Kant, mas ninguém lhe
ia seguir o conselho havendo tantas coisas para
fazer; e também Martinho folheara apenas o tal
livro, retendo algumas frases para as ocasiões,
como, por exemplo: "Onde há um grande entendimento
há uma grande indecisão", o que não se podia
assegurar que fosse do próprio Kant.
Como novo feudal, Martinho começava por ter a
mania das grandezas. Lançara-se na reconstrução
dos solares como se dum compromisso se tratasse, e
havia quem o chamasse de monárquico republicano.
Não andava longe da verdade quem assim falava, num
desses repentes de espírito tão próprio dos
portugueses recalcados.
Martinho tinha, no seu "delírio discreto do
majestático", uma cada vez maior condescendência
para o espectáculo de corte, o cerimonial com
polícia a cavalo e render-da-guarda e coisas
assim, sabendo bem que tudo isso é mais provocador
223
do que dissuasor. Mas há períodos da História, se
não sempre, em que a provocação é um direito bem
ou mal exercido. Ela quebra com regras que estão
prestes a caírem no seu oposto, a libertinagem, e
dão azo à inovação. A libertinagem era uma regra
também e favorecê-la precipita o regime favorável
aos negócios.
A Ronda da Noite personificava o novo feudal. No
imenso quadro nada estava concluído; nem o
desfile, nem os lugares de cada um, nem até os
retratos, de resto pagos de antemão. Havia na
Ronda um espírito grandioso mas pouco convencido.
Sem heroicidade, apenas eloquente quanto à sua
definição do desejável. O capitão Cocq, futuro
burgomestre de Amesterdão, imita a gravidade do
comando; enquanto que o seu lugar-tenente é o
protótipo dum genro ideal: brilhante, bem à moda,
elegantemente vestido no seu fato amarelo-palha, e
com a petulância da obediência, que é uma
petulância como outra qualquer.
A petulância da obediência é o que faz o clã
perfeito. Os jovens cadetes que se moveram no
sentido da política, tinham esse espírito. Não
condiziam com o Torreão Vermelho tendo nascido
numa maternidade e vivido sempre em condomínios
fechados com um espelho de água usado apenas pelas
crianças. Os cadetes não tinham tempo senão para
jogar um pouco de golfe aos domingos de manhã,
enquanto o campo não era invadido pelos ricos de
segunda escolha que punham o boné ao contrário
para se mostrarem dinâmicos e com menos cinco
anos.
O condomínio de luxo era um labirinto de
corredores como arroios que iam desaguar à cave
onde estavam as boxes com carros que pressagiavam
uma loira alta e vestida correctamente, porque os
homens não gostam de moda que dê na vista senão o
essencial, os cabelos e as unhas.
224
Já não estava em uso a "moda de ontem", o que dá o
cunho da elegância que é a falta de novidade com
atitude. Agora tudo era brilhante, sem sotaque,
ligeiramente indecente mas com um toque
conservador que vinha do berço. O Torreão Vermelho
não era nada disso. O fantasma do cutileiro e dos
seus amigos importadores de farinhas, andavam por
lá com os seus colarinhos antiquados e as unhas em
mau estado. Sabiam dar ordens e não se importavam
de ajudar a carregar um fardo. A sua seriedade era
proverbial, tratavam os empregados como família e
dispunham deles para uma pequena troça de
superiores, imprevisíveis no prémio e no castigo.
Martinho disse que os cadetes eram ovos de
dinossauro, que nunca chegariam a chocar.
- O mundo anda mais depressa do que se julga e
eles ainda não saíram do ninho e tudo mudou.
- O que mudou? - disse Maria Rosa. - Os novos
feudais, como tu dizes, não vão mexer em nada.
Todos se aproveitam mas ninguém quer mudanças.
Ninguém manda, as alianças são perversas, ninguém
se atreve a subir sem para-quedas, a anarquia tem
a prioridade porque corrompe sem parecer
controlar.
- É um bom discurso, avó.
- Tu foste um professor, meu querido patife.
- O segredo é de controlar as investiduras. A
paciência e a modéstia são o principal. Não
acusar, não vencer demasiado, deixar que se crie a
indecisão que modela a verdade necessária. Diga-me
uma coisa: ainda gosta de Catarina da Rússia?
- Ah, sim. Todo o português tem um russo no cólon
transverso. Não se digere nada sem isso.
- Sabes o que dizes, ou é só um improviso feliz?
225
- Há muito de sabedoria instantânea no que
dizemos.
- Mudou de tom e perguntou: - Tenho fome. Que há
hoje para o almoço?
- Eu que sei? Só como arroz seco e fruta. Mais
nada. Gostas de mim?
- Não para comer.
- Porque se gosta das avós? Proust gostava da avó
dele. A história do lobo mau anda por aí. A
sexualidade difusa anda por aí. Se vires um rapaz
desejável gostar das avós, já sabes que elas lhes
servem de garantia sexual. A convivência com as
avós inspira ideias de castidade.
- Isto está a tornar-se difícil - disse Martinho.
Tinha posto o seu cachecol vermelho, e isso tinha
qualquer coisa de litúrgico. Gostava imensamente
da avó, ela tinha um espírito racional. As pessoas
ligam-se entre elas graças a um entendimento
racional e não por sentimentos que são sempre
mesquinhos, como o amor. Não há nenhum amor que
não seja mesquinho, pensava ele. Pensava no seu
caso com Judite e na maneira como ele a tratava:
com um ciúme infame, que não era capaz de dominar.
Ela estava à sua direita, à mesa, e Martinho
continha-se para não a espancar, de repente,
fazendo tombar a cadeira atrás dele e apertando-
lhe a garganta com toda a força. Aquilo era
arrasador, depois passava. Judite tinha a noção do
perigo, mantinha-se calada, mexendo nos talheres
de maneira imperceptível. Se dormissem no mesmo
quarto alguma tragédia já teria acontecido. O
espaço era necessário ao trato conjugal. Para
extremar as diferenças
- concluía Martinho. Grande parte dos crimes
domésticos ocorriam na estreita convivência de
pessoas em crise, por motivos sexuais ou
económicos, mas sempre desencadeados na provocação
da vida em comum. Os tectos baixos favorecem as
paixões, disse Corbusier e desde que se cortou um
piso
226
à altura dum prédio de rendimento, as pessoas
acharam-se enjauladas em espaços muito limitados.
E se os anacoretas viviam em espaços exíguos,
viviam sós.
Era difícil para um homem, neste caso Martinho
Nabasco, perdoar a Judite a paixão dela por outro.
Tinha momentos de cólera tão arrebatadora que
olhá-la nos olhos implicava um perigo de morte.
Casara com ela mais para agradar a Maria Rosa do
que movido pelo amor. E, agora, comportava-se como
um marido traído, vendo em tudo sussurros
maldizentes e chegando a decifrar palavras de
troça que na realidade não eram proferidas. Nunca
entrava no quarto de Judite e, aos poucos,
estabeleceu-se um pacto de renúncia aos deveres
conjugais, criando-se um abismo que não seria mais
ajustado aos desejos. Era, de resto, impossível
que o desejo obedecesse à emoção das antigas
praxes da intimidade. Judite aparecia-lhe vestida
para sair e nunca mais no abandono da toilette da
manhã, os cabelos ainda soltos, os olhos
sonolentos. Ia-se encontrar com um outro - quem
era?
Embora muita gente soubesse daquela ligação sem
qualquer entendimento físico, Martinho recusava
qualquer informação nesse sentido. Sobretudo
dispensava ao excelente Andrade o melhor da sua
simpatia. Elogiava-o, carregava-o com o peso da
sua lealdade. Dava jantares em que exigia que
Judite estivesse presente, dando-lhe o lugar junto
do amante e alegrando-se de os ver juntos. O rosto
crispado de Judite parecia diverti-lo. E quando
todos se retiravam e as brasas se apagavam sob um
manto de cinza branca, no fogão, Martinho pedia-
lhe que ficasse na sala. Sabia que ela sofria e
isto despertava nele uma fúria mesquinha, não
perdia a ocasião de a rebaixar, de apontar-lhe a
ignorância, o mau gosto e o envelhecimento. Judite
tinha trinta anos, ele dizia-lhe:
227
- Os teus melhores dias passaram. Não vale a pena
gastares dinheiro em vestidos. Até não tens tão
boa figura que o justifique.
Ela ouvia-o calada, quase indiferente. A
indiferença ao amor que a arrastava estava a
consumi-la. Chegava a sentir prazer na ideia de se
matar, sem testemunhas, como se acontecesse; uma
queda, um mergulho no mar, pouca coisa. Era uma
dor que não acabava mais; sempre a rasgar-lhe o
peito, sempre a encher o lar duma exclusiva
verdade, o desejo. Não era amor mas alguma coisa
ainda agarrada à terra dos primeiros animais de
sangue quente. Um desejo de violação e de prazer,
sem consequências senão ainda o desejo. Ele tomou
a decisão de a matar, e mais duma vez, ao entrar
na garagem e tendo Judite descido primeiro,
avaliou a maneira tão simples de a esmagar contra
a parede. Judite percebeu e fez disso um motivo de
o deixar. Porém, não se deixa alguém que nos
segura quando no ar andávamos em cabriolas. Tudo
havia de passar e o esquecimento era como fartura
de pão depois de fome que nos toldasse o juízo.
O amor é uma palavra para muitas emoções cujas
raízes estão encobertas e entrelaçadas. Foi um
tempo doloroso para ambos, em que a presença e a
ausência eram motivo de condenação. O desprazer em
que andavam alimentava a guerra dos sentidos.
Judite tomou precauções para não terem que
recordar que eram marido e mulher e que o seu
compromisso equivalia a direitos. Judite começou a
pôr em termos práticos a separação e daí em diante
teve uma linguagem jurídica. Munida da lição
legal, o caso adquiriu uma realidade que até aí
não passava dum passo a desmentir. Mas todos os
pequenos avanços no litígio, por efeito duma
coerência interna, tornavam-se razões definitivas
e inflexíveis. Já não compreendiam
228
uma reconciliação, ainda que deixassem para depois
o título de "bons amigos".
Na ordem do desfile, na Ronda da Noite, não há
ainda uma ideia de felicidade. Cada um prepara a
sua actuação mas, ao mesmo tempo, isso não passa
dum progresso para o contentamento. Não se
percebeu ainda qual a acção a executar. Será um
desfile? Será uma marcha nupcial ou simplesmente
de tipo ritual? A criança que desliza pelo meio da
turba mantém o gracioso ar de farsa, de
brincadeira; quando ela chegar ao outro lado do
quadro, talvez tudo já tivesse mudado. A ordem do
capitão Cocq não foi ouvida e todos recolheram a
suas casas. A bandeira foi arreada, o lugar-
tenente mais uma vez sacudiu o rebordo das suas
galochas e o seu contentamento foi substituído
pela desilusão. A sensação de estarem a preparar-
se para qualquer coisa de magnífico na sua
finalidade, submeteu-se ao desejo de comer e de
dormir. O impulso para a acção esmorece já quando
a pequena fada saiu do quadro e se precipita para
fora. Ela é a musa que serve todos os artistas e
deixa a cena quando todas as dificuldades estão
resolvidas: quem tinha em vista um casamento,
casou; quem se lançava num desfile de festa ou de
combate, já o fez. Mas, no momento em que tudo
está por decidir, a felicidade ainda está lá como
se dependesse da ordem do capitão Cocq para dar
início à parada. Quem não sabe que o homem há-de
morrer? Só a menina, vestida para um baile ou para
o seu próprio enterro, não sabe. O resto do grupo
está ali em equilíbrio entre os seus sofrimentos e
as suas alegrias, e a sua vida tem um significado,
a Ronda da Noite tem um significado - o de tornar
inofensivo tudo o que fere e tudo o que salva.
No momento em que Judite punha o pé na beira do
quadro, já a caminho dum final da sua paixão, já a
entrar na obscuridade, o ponto em que a felicidade
se encontra com a felicidade,
229
como dois rios que se juntam no arrepio duma única
onda, ela entra na eternidade. Perde a sua
humanidade mas recebe qualquer coisa de merecido,
o direito de ser parte do que não existe e,
portanto, lavada de toda a contradição.
Todavia, ela não tinha atingido ainda a
extremidade da Ronda. Fechava-se à chave de noite
porque era assaltada por terrores que a deixavam
acordada. Pensava que ia morrer às mãos de alguém
a quem ela magoara muito, ainda que não se
lembrasse quem era. Talvez Martinho tivesse um
plano para se livrar dela e não lhe dar a
liberdade. Seguia com atenção tudo o que ele
fazia; a mais pequena mudança de hábito nele, a
enchia de apreensões. No Torreão Vermelho havia um
cofre grande que não fora retirado devido às
dimensões que tinha e Judite não passava diante
dele sem estremecer. Era de ferro, com desenhos
dourados sobre a pintura verde e cabia lá dentro
uma pessoa. Ela começou a imaginar-se lá fechada,
a sufocar e a entrar em agonia. Ninguém dava por
isso e um dia só encontrariam um pouco de pó seco
e os ossos que nunca se desfazem até na cremação
dum cadáver.
- Quais são os ossos que não se desfazem quando um
corpo arde? - perguntou, subitamente, à mesa.
Tinham convidados e alguém deixou cair no prato o
garfo. - Ninguém sabe?
- Não está aqui nenhum médico legista - disse
Martinho. Olhou para ela com comiseração, mas
indignado. Quando era que aquilo ia acabar? Porque
é que Judite não se embebedava? Era mais fácil
para todos. Era verdade que preferia que ela
morresse ou que fosse internada por transtorno
mental. Mas tudo obedecia a um ritual demorado,
uma pessoa não desparecia assim sem deixar
testemunhas e uma porção de papéis. Usava agora
para com ela dum cinismo que pretendia poupar a si
próprio o sofrimento. Um dia em que ela
230
apareceu para sair com penas de pavão no vestido,
Martinho disse que as penas de pavão dão má sorte.
Ela arrancou-as uma a uma e o decote deixava ver
os seios nus. Ele disse simplesmente que se
despisse mais ainda porque não gostava de ver as
coisas pela metade. Outra vez, como o penteado lhe
pareceu escandaloso, com mechas verdes, ela rapou
o cabelo completamente e durante um ano dizia a
todos que fazia quimioterapia. Pensava-se que ela
ia morrer e evitavam falar nisso a Martinho.
Algumas mulheres disponíveis faziam-lhe a corte,
convidavam-no para sair. Ele batia-lhe. Pensava
que Nero e Calígula ficaram na História como
monstros, mas não se sabia que mulheres eles
tinham. Calígula amara muito a dele, isso era
sabido, e era decerto dominado por ela. Razão de
sobra para a depressão dum César. Ameaçava pô-la a
tormentos para saber o que fazia ele amá-la tanto.
- Não sei como eu reagiria se fosse César - disse.
Maria Rosa não se apercebia de todas as horríveis
desordens do casamento que, no entender dela, era
como qualquer outro.
- Um bom casamento não existe. O melhor é aquele
onde as crianças gritam em voz baixa - rematou
ela. - Felizmente o casamento não é para toda a
gente, senão dispensavam-se as guerras e os filmes
de terror.
Passavam algumas horas de tréguas juntos e
Martinho conseguia esquecer-se que tinha um ogre
em casa e que ultimamente Judite tinha visões. Via
Martinho passar diante dela com uma mulher
desconhecida. Outras vezes acusava-o de lhe roubar
roupas e jóias para dar a uma amante. Mandava a
ela própria flores e fingia receber telefonemas de
alguém muito íntimo. Pensava que ele tinha filhos
ilegítimos que educava passando com eles muitas
horas do dia. A intriga crescia entre eles e já
não era possível recuar duma mentira cada vez mais
tecida com a verdade. Havia, no entanto, um ponto
que
231
não abordavam: a morte violenta de Estrelinha e a
condenação do pai que cumpria pena há quinze anos.
Não falavam disso. Porém, a ameaça rondava e
Martinho punha-se de repente a fazer contas.
- Quantos anos tinhas quando vieste para cá? Dez,
ou doze?
- Tinha feito a comunhão no dia da Assunção. Vim
em Outubro, com doze anos. - Ela falava, calma,
ocupada a percorrer o seu calendário, mas
contendo-se para não varrer tudo com uma cólera
cega. "Bandido! - pensava. - Quer apanhar-me como
a filha dum criminoso. Não sou a filha dum
criminoso. O meu pai era um homem sério. Lá por
ter uma amante não deixava de ser um bom homem."
Amante, não era palavra do seu vocabulário. Estava
carregada de reprovação e foi modificada para
concentrar nela o acto da lapidação que não saíra
dos hábitos tribais assim há tanto tempo. Dizia-se
amantilhona ou fêmea para exprimir desprezo e
pelourinho. As coisas foram mudando e agora eram
mais consentidas, se não aprovadas no seu sentido
libidinal. Num dos jantares no Torreão Vermelho,
estando presente uma aristocrata italiana
acompanhada por um rapaz bonito como um sol, ela
disse:
- Não é o meu marido mas o meu amante. - Fez uma
pausa, a que ela deu o encanto dum olhar saudoso.
- Marido não tem o mesmo sabor de amante. Diz-se
"mio amante" e as pombas voam como a neve em Maio.
Ela estendeu os braços para compor o xaile nos
ombros e parecia que lhe nasciam asas. Judite riu-
se para esconder a confusão. Vinha duma família
pobre mas sem miséria, desse meio onde começa a
burguesia que lê as dietas alimentares e compara
as filhas com as rainhas de beleza. Mas havia uma
classe estável, como a de Maria Rosa Nabasco, com
dívidas mas crédito também; e para quem a
província era um tipo de
232
heráldica, com cães e cavalos soltos num prado.
Orgulhavam-se de não ser snobes, de vestir o trajo
das lavradeiras, garrido, com muito ouro ao
pescoço e nas orelhas. Dançavam lindamente airosas
danças populares e conheciam toda a gente dos
arredores, quem nascia e quem morria, quem se
casava e com quem. Como tudo mudava, desertavam
das velhas praxes que se foram tornando
românticas, dispendiosas e sem público que as
respeitasse e aplaudisse. A província não
acompanhava a euforia do conforto e a ilusão da
fortuna. Para Maria Rosa, que sempre detestara a
aldeia, os caminhos de lama e os dias de chuva
intermináveis, não houve mudança. Só Martinho se
interessou em conservar os solares e possivelmente
na intenção de fazer negócio com eles. Os Nabasco
tinham a veia especulativa, e o primeiro olhar era
avaliador. Isso vinha de longe. Não emprestavam a
juros mas invejavam quem o fazia. E, sobretudo,
cuidavam a aparência e nunca aceitavam estar
vencidos pelo destino e pelas mulheres. Preferiam
sofrer calados a ser falados em público, nem que
fosse por coisas vantajosas. Há na timidez da
personalidade um diálogo com qualquer coisa que
não pertence à razão.
Em suma, os Nabasco eram gente em que as nações
confiam e que já existia nos tempos em que as
guerras eram assunto de conselho e não de vontade
viciosa e brutal. Os Cunhas, pessoal doméstico de
geração para geração, davam brilho à casa dos
Nabasco, até que por fim acabaram com empregos de
polícias e carteiros, muito diferentes das suas
origens sedentárias a que deviam o espírito
curioso e confa-bulador. Martinho costumava dizer
que era o último descendente de alfaiates de Vale
de Mouros, que cosiam bem e contavam histórias
como cosiam. Mas não era verdade. O lado árabe
estava mais presente nos Cunhas, sobretudo no
Miguel, que mentia como uma cesta rota, sendo a
mentira a sua arte
233
de ficção. Todos os irmãos Cunhas tinham cantado
para adormecer Martinho e tangido a viola para
ele. Também lhe ensinaram a andar de bicicleta e a
encher cartuchos com chumbo e pólvora. Tudo isto
conversado com novidades e histórias pícaras que
dava gosto ouvir. Gente que de ignorante não tinha
nada e de gascão alguma coisa tinha. Pensando
nisso, Martinho considerava que a sua infância
fora parecida à dum conde no seu condado, de
mistura com galgos e irmãos colaços.
Esse coração feudal voltava ao de cima, quando
acalentava a ideia de se contrapor ao poder
central, fazendo-se eleger contra a maré
partidária e segurando pelas rédeas o favor do
povo. Martinho podia ser um homem da actualidade
protegido por guarda-costas, benquisto pelas
mulheres e, o melhor de tudo, sempre ao abrigo de
suspeitas que não passam além das paredes do seu
gabinete.
O novo feudal é um abençoado como o rei. Nada lhe
pode tocar, tem dois juristas na sua corte e um
negro que lhe faz os discursos. Mas, para
Martinho, ser um feudal português parecia-lhe
caricato. Sabia que, uma vez escolhido, teria que
servir ambições e pagar exorbitâncias pelo seu
mandato; mandato de que era merecedor mas que
sobre o qual pesa a má sombra duma coligação com
idiotas e de notáveis que é preciso satisfazer.
Antes queria o anonimato em que se aborrecia, do
que a celebridade em que se humilhasse.
A democracia, que na mocidade lhe parecia fácil e
soalheira, acabava por despertar nele
irritabilidade de casta que julgava não existir
nele. Usava jeans com jaquetão com botões
metálicos porque isto o situava na ambiguidade
majestática, necessário num tempo de ambiguidades.
Maria Rosa achava-o ridículo mas, se o ridículo
mata, mata muito lentamente.
234
O feudal punha toda a sua renúncia numa gravata
que não usaria num casamento de província. A sua
maior ambição é a de ir para a capital quando o
citadino já lhe tinha marcado o bilhete de
regresso. Seria sempre um estranho na Assembleia e
um desgraçado no restaurante onde todos se
conhecem e o criado sabe os gostos de cada um. Só
ele não está informado dos dias em que se come
cozido ou há carapaus fritos com arroz de grelos.
Pensava ir comer empada e vol-au-vent, e sai-lhe
bacalhau com grão, que ele detesta. Mas sentar-se
à mesa com um ministro vale bem um amargo de boca.
Não, Martinho nunca seria capaz de fazer trezentos
quilómetros de avião em primeira classe para estar
a horas com um inimigo que no corredor lhe dizia:
"Isto de esquerda e direita não tem mais sentido"
- e depois, desde a sua bancada, estilhaçava a
condescendência de que dera provas. Como podia
Martinho dizer, com um acento político inimitável,
que "a finalidade nos efeitos pressupõe um
entendimento na causa"? E bem podia dizê-lo,
porque ninguém ia tomar a frase como um descarado
plágio. Pelo contrário. Iam cobri-la de ridículo,
como um gato cobre as suas necessidades.
Não sendo cientista, nem escritor, nem empresário,
a sua vida estava entregue ao desmazelo mental.
Não tinha um dossier, nem um projecto, nem uma
intriga a gerir. Depois de se apiedar de Judite,
que amava outro homem e se debatia com a virtude
como se se tratasse da sua compatibilidade com
Deus, Martinho achou-se numa maré de tédio. Dormia
muito e ia ao cinema.
Ninguém supõe que ir ao cinema na idade adulta
significa um estado de humilhação. É como falar
francês na sociedade russa no século XIX,
demonstra um desejo de selecção.
235
O mesmo acontece quando toda a gente veste de
igual e não quer distinguir-se senão pelo luxo da
miséria. Quando estava sentado na sala escura e
via no ecrã as figuras estereotipadas do bom e do
mau, Martinho sentia-se defendido. Os seus
preceptores tinham morrido, não tinha caderneta
escolar nos estabelecimentos de ensino, ninguém ia
pedir-lhe contas da sua cultura, da sua fé, da sua
política. Qualquer zulu se exprimia melhor do que
ele quando dizia, já livre de missionários e de
negreiros: "Não quero ser europeu". Mas Martinho
nem seria completamente sincero se dissesse que
não queria ser português. O mais natural é que não
quisesse ser humano. Não havia maior vergonha do
que isso; era um sentimento para além de toda a
frustração. Como ia preocupar-se com Judite e
abrir-lhe a porta e a cama quando ela lhe pedisse?
Preferia ser cornudo a dar-lhe esperança de
felicidade que ele não suportava, sendo um homem
no mundo onde parecia não haver progresso.
Elisa morreu na sua mansarda, que estava numa
confusão de santos e retratos, além de remédios de
que se encharcava como se fossem coisas de
feitiçaria. Para ela, os médicos eram chamas que
tivessem o poder sobre matérias diversas. Já só
respirava com a ajuda do oxigénio, e o seu estado,
como não se alterava, incomodava toda a gente. Até
Maria Rosa, que lhe queria como família, sentia
uma pequena decepção quando lhe diziam que Elisa
estava na mesma.
Embora sofresse muito e cada dia fosse um
suplício, despertava sempre para qualquer mudança,
ainda que fosse imperceptível. Maria Rosa, que
quando era nova servira no hospital como auxiliar
benévola (ela dizia benévole, à francesa), nunca
vira tal tenacidade em se prender à vida. Também é
verdade que, com os seus trinta anos e com uma
farda engomada e de tecido especial, ela não se
debruçava sobre as
236
suas pacientes levada por profundas cogitações.
Era-lhe poupada a parte mais repugnante, que era
mudar as fraldas e lavar o doente, em geral
reduzido a um saco de vísceras avariadas.
Aproveitava, no entanto, da atmosfera excitante em
que a morte era um acidente da natureza que
tivesse a cumplicidade de todos. Para isso, um
erotismo como um vínculo de sobrevivência, corria
como um rio nos longos e espelhantes campos de dor
e de humilhação. Com o pretexto de que ela própria
estava doente, e fora no hospital que se infectara
dum vírus que não era comum, Maria Rosa abandonou
a sua missão caritativa. Fez por esquecer depressa
os fenómenos que nunca quis averiguar. Bastava
olhar para a rua, agitada pela travessia dos peões
nas passadeiras, para sentir-se parte dum mundo
absurdo, o mundo da morte.
Muitos anos depois, o estado de Elisa nas suas
últimas horas em que se debatia e chamava toda a
gente para participar na sua preparação para o
desenlace, levava-a outra vez para o hospital. As
jovens enfermeiras esperavam dela algumas prendas,
como de facto ela lhes oferecia, em artigos de
toilette e vestidos caros que não usava mais.
Roupa interior que não se via nas montras e que,
quase em sigilo, se tirava das gavetas, coberta de
papel de seda. Só em desembrulhá-la, um arrepio de
prazer subia até à nuca.
Nesse tempo, os ricos eram ainda tomados como uma
tribo privilegiada que, por qualquer capricho da
natureza, era destinada a uma vida gozosa e
simples. Viajavam e, ao primeiro olhar, via-se que
não se vestiam numa costureira de pátio que tem a
saia juncada de linhas. Quando se obtinha um
sorriso dessas raparigas ricas, um sorriso educado
e quase tímido, isso representava uma festa que às
vezes abria uma parada de ambições no coração das
modestas aprendizas, estudantes, empregadas de
balcão com namorados além da
237
sua condição. As mais bonitas jovens da cidade
eram empregadas de balcão na luvarias de luxo onde
aprendiam a conhecer os artigos caros e uma
clientela que os comprava sem perguntar o preço.
E, no entanto, regatear um pouco era um hábito até
dos mais abastados. Com essa ligeira escaramuça
entre o custo e o valor real, não havia acerto de
classes. Fingia-se, ao introduzir na operação da
compra uma hesitação que honrava o pobre. Mas,
Margô, a cunhada de Maria Rosa, não cumpria com
essa praxe.
- Mande a casa, se faz favor. - E dava ainda uma
volta nos tacões para levar com ela o esplendor
das vitrinas, com as prateleiras de cristal onde
se expunha o melhor da casa. Era uma jovem
instruída e que lia muito. Isso servia-lhe para
tomar um lugar na família de excepção, que a
conduzia a uma casta superior e impossível de
atingir pela escola do dinheiro. Ela nunca se
havia de submeter à disciplina do dinheiro e,
praticamente, podia dizer-se que desconhecia o seu
valor. Fumava muito e o tabaco era a única coisa
que ela pagava em metal sonante, como se dizia.
Morreu ainda nova e deixou uma enormidade de
tailleurs Chanel que causou espanto. Para muita
gente, só nessa ocasião se soube que ela tinha
dívidas de muitos anos e que se chamava Margarida.
Todos a tratavam por Margô, até os criados, os
filhos, a arara branca no seu poleiro dourado.
Elisa disse que Margô seria lembrada por não
gostar de torradas só barradas dum lado. Margô não
teve um lugar na Ronda, o que era muito
extraordinário dado que ela e Maria Rosa tinham
vivido a mesma juventude e disputado os mesmos
homens, que não paravam de pôr defeitos a cada uma
delas.
- Margô é linda que se farta. No colégio deram-lhe
um quarto só para ela, para segurança de todas
nós. Vestia-se de
238
homem no Carnaval e ia para a rua namorar as raparigas. Tinha muito
sucesso — dizia Maria Rosa. E o Nabasco retrucou que ela não lhe
agradava.
— A beleza não é erótica.
— Então o que é?
— É teológica.
Maria Rosa admirava aquele jeito que tinha o marido para «virar o bico ao
prego». Para sair sempre bem das dificuldades. Como podia ignorar a
vontade de apertar Margô nos braços e beijá-la como se isso fosse um modo
de vida? Ela tinha mais confiança em Margô. Em nome da antiga amizade e
dos pequenos segredos em que se envolviam como se fossem caçadores de
borboletas. Uns eram raros, outros eram vulgares e não mereciam entrar para
a colecção. Margô era mais adiantada no sexo, em teoria sabia bastante;
contudo não estaria disponível para conversas desabusadas. Era até severa
na linguagem e não permitia insinuações mais atrevidas. O motivo por que as
pessoas se tornavam descaradas era porque não lidavam com o sexo senão
num regime de ignorância. Lá estava a pequena Saskia na Ronda da Noite, a
deslizar por entre a companhia do capitão Cocq, com o seu vestido de
anjinho de procissão, e aquilo não tinha nada de provocador. Ninguém
reparava nela, mas toda a gente recebia a viabilidade de pecado que ela
continha, absurda e real, com a ave morta à cinta como um despojo de caça.
Às vezes, enquanto descia as escadas, Maria Rosa ia olhar para a Ronda e,
apoiada à sua bengala, olhava para Saskia vendo nela parecenças com
Margô. "Era destas mulheres em que não se apaga o pecado original",
pensava. No fundo, são precisas cem vidas para ajuizar duma pessoa. A voz
de Elisa ouvia-se a chamar por ela, e Maria Rosa deitava-se de bruços na
cama e cobria a cabeça com a almofada.

CAPÍTULO VII

TEORIA DO CÉU QUANDO NUBLADO


Ele herdou uma pitada de sal no sangue. E as unhas também tinham, de
certeza, sal bastante, isso explica porque as roía desde pequeno. Embora
perdesse um pouco dessa mania, ainda era visto à tarde, diante duma janela,
a roer as unhas.
Quem? Martinho, evidentemente. Já não apresentava sinais de mutilação,
com o branco do sabugo como a parte gorda dos chouriços feitos com a
fêvera do cachaço do porco, os melhores. Mas ainda se via bem que ele
gostava do paladar salgado da carne humana.
Tudo o que fizeram para o impedir de roer as unhas, foi em vão. Deitaram
pimenta nos dedos; até caca de gato, que era nauseabunda, ou um pouco de
óleo de ricínio, o mais eficaz. Ele parava, entre soluços tão profundos que
pareciam vir directamente do coração. Depois, continuava. Elisa dizia que
ele sentia a falta da mãe.
— Não me explicas porquê — disse Maria Rosa, saída do banho como
Afrodite, só que perfumada de sabonete que devia cheirar a rosas mas não
era verdade. Elisa sabia como a incomodar.
— Não digo nada, pronto. Mas eu penso que ele se agarra aos dedos como a
dez tetas apojadas.
Martinho parava para se interrogar sobre a
apojadura, que era o afluir do leite na fêmea
quente e sadia. Havia crianças pobríssimas que
mamavam nas cadelas, e isso não era de estranhar.
Cresciam com um entendimento retardado e dizia-se,
como Elisa dizia:
- Mamou numa cadela quando era pequeno.
Não era habitual mas acontecia. A mãe só chegava
para a ceia, tinha a blusa molhada do leite que se
soltava e punha a criança ao peito. Deitava-lhe
por cima da cabeça um lenço de assoar e, na
sombra, protegida, atenta aos ruídos da casa, a
criança mamava. Ela, a mãe, sentada na soleira, ou
numa cadeira baixa, a falar alto, a contar vidas.
Se a voz era zangada, a criança chorava. Ela
embalava-a, ajeitando na mama a cabeça do menino.
Os morcegos começavam a voar baixo, pressentindo o
gado que saía para beber.
Martinho nunca tinha fome. Movia a cabeça a dizer
que não, se lhe chegavam à boca a colher da papa.
Era preciso soltar a égua e a cria para que ele as
visse aos pinotes e se esquecesse que comia. A
Armanda, que tinha um génio destrambelhado e não
sabia tratar de crianças, dizia que Martinho
parecia doido, com aqueles olhos esbugalhados para
melhor perceber se o estavam a enganar. Estavam a
enganá-lo para o fazer comer, para lhe dar banho,
para o fazer sair e apanhar ar.
- É um traste. Quando for grande há-de bater na
mulher dele - dizia Armanda. Alta e delgada,
parecia uma freira sem vocação. Criticava tudo e
todos.
- Criticas tudo e todos. Assim não arranjas marido
- disse Elisa, a bater os bolinhos de bacalhau e a
prová-los com o dedo.
- Os homens não ligam ao que dizemos, mas ao que
cheiramos.
- És uma porca.
241
- Sou assim.
Por fim encontrou marido e foi feliz com ele.
Martinho lembrava-se que ela se ria do seu pequeno
sexo com divertido riso e contava que via as mães
beijar os filhos naquele lugar, doidas de ternura.
- Eu não era capaz.
- Sabes lá tu do que és capaz! Um filho é todo
limpo como um diamante. Como Jesus nas palhinhas.
"Jesus nas palhinhas" era como se dizia,
compassivamente. A pobreza romântica ajudara muito
a divulgar a fé no redentor do mundo; a sua
infância, ainda que doutoral e sábia, encontrava-
se com aquela mulher fácil de contentar com a
criança no berço, no seio, no colo. Armanda não
era uma sentimental, era uma mãe irada, e cheia de
amor. Decerto estava na Ronda, só que saíra a
correr para virar no forno a carne assada e
aparecer depois com os beiços húmidos de a ter
provado. As cozinheiras nunca têm fome, ela dizia,
a censurar Martinho.
- Parece um aprendiz de pasteleiro. Enjoou o doce
para toda a vida.
Era inteligente, muito inteligente, o que fazia
que a casa respirasse espírito e opinião, às
carradas. Até ser já grande e ter dormido com
raparigas, Martinho julgava que toda a gente era
inteligente e que se podia falar de tudo, que
todos entendiam. Quando percebeu que também havia
pessoas estúpidas, foi como se lhe tirassem um
pouco de cor à vida. Como se o céu não fosse só de
um azul puro mas nublado e carrancudo.
Armanda ainda viveu na Casa do Cão e assistiu à
morte de Filipe Nabasco. Ela mostrou o que valia
nessa ocasião e não se deitou durante três dias.
Mudava-o como uma criança e soprava-lhe o caldo
antes de lho dar. Maria Rosa mandou que lhe dessem
um pouco de terra para ela construir uma casa, o
242
que foi feito e significou muito para que o
casamento não tardasse. Martinho teve uma erupção
de pele quando ela se foi embora e esteve a arroz
cozido sem sal durante um ano inteiro. Só quando
se esqueceu de Armanda é que melhorou. E, no
entanto, Armanda nunca lhe dera mimos nem lhe
chamava "coitadinho", que era o estribilho de
Elisa.
Elisa morreu no Torreão Vermelho e pediu os
Sacramentos antes de morrer. Tinha ouvido dizer
que, depois da extrema-unção, os doentes chegavam
a recobrar a saúde, e por isso exigiu ser ungida.
Tinha uma ideia muito prática sobretudo e percebia
que o querer é como a antecâmara da acção. Mas não
teve resultado a sua estratégia, e Elisa morreu,
deixando a Paula a sua gargantilha de ouro e dois
anéis entrançados. Paula ficou muito sentida
quando a mãe lhe disse que Elisa já não fazia nada
neste mundo e que o quarto dela estava uma
lástima. Ela tinha caixas com farrapos debaixo da
cama que destinava a tecer mantas e tapetes. Já
não há tecedeiras, ela vivia na Lua.
- A mãe é muito crua - disse Paula.
- Não respondo a isso. Traz-me antes um refresco
de limão.
Todos eram um pouco seus criados ou uma espécie de
papel higiénico: servia-se e deitava-o fora. O
mundo era complacente, cheio de regras auxiliares
do sofrimento e das carências humanas. Mas tudo
isso era fingimento e egoísmo pintado de cal
branca. Sepulcros caiados com cal. Quando se
percebia isso, a alma endurecia como uma bexiga ao
fumo da lareira. - E no tempo em que vinha a casa
uma mulher fazer a marmelada? Chamava-se
Marquinhas e tinha as mãos duras de tanto serem
escaldadas com os marmelos cozidos.
- Que diz, minha mãe?
- Era uma coisa que não entendes.
243
Um dos cadetes entrou no quarto e Maria Rosa não o
reconheceu. Mas evitou que isso se percebesse.
Quando se restabeleceu o bom viver entre Martinho
e a mulher dele, já não tinham condições de
intimidade e de confiança. Era como o tal caldo
verde aquecido, perdia a frescura e o sabor
natural. Tiveram uma conversa juntos e saíram dela
como pessoas que tinham cometido um crime que
haviam de lembrar toda a vida e que esfriava as
suas relações. Mesmo entre os criminosos há uma
aliança que se quebra se escapam à justiça.
Separam-se para o resto dos seus dias, porque a
impunidade não é recompensa. O laço que se faz num
acto culpado desata-se quando o perigo desaparece.
Há uma espécie de vergonha no êxito da culpa.
Martinho sabia que Judite resistira à culpa com
todas as suas forças. Mas não era inocente porque
percorrera o caminho do desejo e perdera a
inocência do coração, ou da alma, se quiserem.
Isto era o suficiente para funcionar como
infidelidade. Mais ainda: a culpa pode unir, mas
aquele que é incorruptível cria um obstáculo ao
amor. O amor precisa de perdão, e, perante Judite,
o marido dela não tinha nada a perdoar. A
perfeição não é erótica, assim como a beleza. Ele
talvez tivesse preferido que Judite corresse para
os braços dum amante e voltasse, arrependida ou
não, mas pronta a ser humilhada por ele porque a
perdoava. Entre eles havia de estar sempre a
decepção de não a poder desprezar. O desprezo é
uma brasa sob a paixão ferida.
Maria Rosa tinha um afilhado que era "da Guarda",
como ele dizia. Um belo homem, educado no
cumprimento dos seus deveres e que casou por amor.
Um dia a mulher enganou-o e ele mandou-a embora.
Passado tempo, Maria Rosa soube que ele tinha
recebido a mulher outra vez, e aquilo desgostou-a.
244
Mandou chamar o afilhado e perguntou-lhe porque a
tinha perdoado.
- Assim como assim, eu tenho que ter uma mulher e
ela está arrependida - disse o homem, que ela
achou bem tratado e até feliz.
- Uma mulher arrependida não te envergonha?
- Nem por isso. Maria Madalena também se
arrependeu e Cristo perdoou-lhe os pecados.
- Tu não és Cristo nem para lá caminhas. Que dizem
os teus camaradas?
- Não dizem nada.
- Isso é mau sinal. Era melhor que se rissem de
ti.
- Não querem sarilhos. Já não se vive como dantes
a beber na taberna e a puxar o canivete do bolso
das calças. Pensa-se na reforma e não na honra, se
a madrinha quer saber.
- Quero saber e não quero. Gostas assim tanto da
tua mulher?
- É a mãe dos meus filhos e eles precisam dela. Eu
também preciso dela. Uma cama vazia é como a
barriga vazia, resmunga sempre. Peço desculpa à
madrinha.
- Está bem, mas não voltes cá. Se precisares de
alguma coisa, escreve.
Elisa foi acompanhar o afilhado à porta e disse,
quando voltou, que ele era um desgraçado, um
bodas, mas que a mulher o trazia limpo e bem
arranjado. Sempre era uma atenuante. Mas não
impedia que fosse uma vergonha tudo aquilo.
- Eu sou à antiga e não entendo estas modernices -
disse. Mas interessava-se muito mais pelo assado
que estava no forno do que pela honra do afilhado
que, no fim de contas tinha amigas por toda a
parte e até filhos incógnitos ou lá como se
chamam. Por acaso, Elisa era uma grande forneira e
nos trinta anos que tinha de casa raramente
deixara queimar
245
a carne. Mesmo quando se zangava, tinha o brio do
ofício e esquecia tudo para cumprir com as suas
funções.
- E a Elisa? - perguntavam a Maria Rosa.
- Ah! Já vai fazendo uma caminha assada.
Ela caminhava para as bodas de prata ao serviço.
Conversas dessas tinham perdido o sentido, e o
adultério igualmente. E até nas aulas de História
se prestava pouca atenção aos amores de Leonor
Teles. Seria mais interessante provar que ela
usava calcinhas e contraceptivos. Um dia em que se
soube que as damas romanas utilizavam como
preservativos bexigas de peixe, ninguém pestanejou
na sala, nem ninguém se riu. Eram formidáveis, os
romanos, foi a ideia que ficou, pondo-se de parte
o império e o assassinato de César, o homem de
todas as mulheres e a mulher de todos os homens.
Os grandes acontecimentos pareciam distantes e
irreais quando comparados com o joelho esmurrado
do nosso filho. Que alarido se fez quando Martinho
era pequeno e partiu um braço, sendo, por isso,
mobilizada uma ambulância munida de sirene e
enfermeiro e equipamento de emergência! Martinho
olhava para tudo entre surpreendido e maravilhado;
o facto de ser o centro de tudo aquilo, enchia-o
de orgulho. Podia sofrer mais ainda para que se
repetisse aquele momento em que ele dominava toda
a gente com a simples queda de um muro. Fora ele
que resvalara ou caiu de propósito, percebendo de
repente o efeito do desastre? Depois disso, nunca
ficou completamente curado dessa tendência para a
catástrofe. Não chorava, mostrava-se dócil a
qualquer tratamento, grato a uma dor que o tornava
soberano.
Foi assim que compreendeu uma coisa: que, muitas
vezes, as crianças que são continuamente
disputadas pela família em crise, começam a
desafiar um tratamento que as põe em risco. São
maltratadas, ameaçadas, até que se estabelece
entre
246
elas e o carrasco (que pode ser um pai apanhado no
torvelinho das más paixões, sendo uma delas a do
poder contestado) um elo de exultação que
corresponde a um vício. Perceber isto punha em
causa o horror da relações entre pessoas que se
amam mas não resistem a uma violência partilhada.
A Ronda da Noite mais uma vez mudou de lugar.
Martinho estava cansado de a ver de tão perto ao
entrar em casa, sendo recebido pela companhia do
capitão Cocq como se fosse esperado. Esperado para
ser integrado na Ronda em que lhe seria dado um
lugar. Que lugar lhe seria dado? Era uma arma, um
tambor, um estandarte, que lhe seriam destinados?
Martinho começou a desviar os olhos e a não querer
receber em cheio a ordem do capitão Cocq; depois,
ostensivamente, desobedecia-lhe e ladeava o
caminho sem levantar os olhos. E disse:
- Não me parece que ali seja o lugar para um
quadro daqueles. Já esteve num celeiro, já esteve
deitado no chão, coberto com palha e os ratos
entraram para dentro da tela por detrás dele.
Havia caganitas de ratos misturados com a linhagem
e eu penso que ela protegeu uma segunda ou
primeira tela. Pode dar-se o caso de A Ronda da
Noite esconder outra pintura.
- Toda a gente gosta de ter um mistério a seu
cargo - disse o doutor Assis, que tratava Martinho
como se tratam as pessoas que se conhecem há
muito: como um doido que não oferece perigo. -
Porque não mandas desmantelar o quadro? Porque
sabes que ele não vale nada e acabava tudo sem
glória. Assim, ainda o vais interrogando, não é?
Nós não queremos respostas, pelo menos, respostas
de surpresa.
O cadete Bernardo não percebia do que se falava no
Torreão Vermelho e achava os Nabasco pretensiosos
com o seu conceito do infinito e da existência de
Deus. Raramente
247
ia ver a avó, que lhe parecia uma inimiga. Levava-
lhe amêndoas torradas pela Páscoa, porque ouvia
dizer que ela as apreciava muito quando era nova.
Maria Rosa quase as atirava à cabeça dele, mas
dominava-se porque a sinceridade para a família é
uma coisa que não cai bem. Pode parecer uma coisa
maquinal, o que é pior do que tudo: como quem anda
de bicicleta ou se atira para dentro duma piscina.
O elogio da família estava outra vez a ser
adoptado pelo novo feudalismo. Um povo baseado no
sangue é pelo sangue que se define e se continua
no tempo. Assim era que Martinho se estava a
defender do seu apocalipse, pondo em risco tudo o
que foi a sua fonte de comunicação, o desejo de
permanência. Permanência e não eternidade.
Agora tratava-se de eternidade; os laços da
família desatavam-se porque o amor universal
estava acima desse vínculo carnal. Abrira-se um
abismo debaixo dos pés de pais e filhos, que foi
denunciado por Freud e a sua escola. Fechar esse
abismo correspondia a criar um novo homem na
terra.
As visitas de Bernardo eram primeiro difíceis;
depois passaram a ser incómodas. Ele estava
empenhado no poder, todas as batalhas lhe serviam
para se afirmar, ganhar terreno, acumular forças.
Nos momentos em que via Martinho caído num
estranho alheamento, parecia-lhe que de alguma
maneira o tinha vencido.
Havia um quarto no Torreão Vermelho que Maria Rosa
destinou para os hóspedes. Era um quarto de
dimensões regulares e que tinha vista sobre a
cidade. Uma cidade de Inverno, só faltava ver cair
a neve sobre os telhados e o silêncio estender-se
até ao mar que, de resto, só se podia localizar
pelo pôr-do-sol. Um clarão duma chama, que durava,
ao que parecia, muito tempo e que, de repente, se
extinguia. Bernardo escondia-se atrás da cortina
da janela, quando o sol desaparecia.
248
- Nunca vemos isto como um sinal - disse Martinho.
O irmão olhou para ele sem entender. Como era novo
e parecido com a mãe! Via-se que em breve ia mudar
muito e só ficava o nariz como um bico de ave que
fazia lembrar um aristocrata escapado à
guilhotina. E se ele fosse alguém desse género? O
problema da reencarnação ainda não fora esgotado.
Martinho gostava de o pôr à prova e perguntava-lhe
à queima-roupa, como se disparasse um tiro:
- Não me disseste, há pouco tempo, que a política
é a arte de dominar os acontecimentos?
- Eu não disse isso nunca.
- E "o interesse é a finalidade da política, e a
intriga a sua arma"?
- Não fui eu, palavra. És um homem que me dá
calafrios. Eu não sou um político. Sou um
manifestante, como agora se diz.
Martinho riu-se. Não era Beaumarchais, então, o
seu querido irmão. Mas porque usava um colarinho
tão alto senão para esconder a cicatriz do cutelo?
Isto era um jogo que o divertia muito. Talvez
simplesmente se tratava de liquidar os seus ciúmes
dos novos amores de Paula e da sua nova família.
Nunca se habituara ao casamento da mãe com uma
pessoa tão marcial e à qual não lhe apetecia dizer
nada. De que podia falar? A guerra das Gálias, a
batalha de Aljubarrota?
Olhou pela janela a cidade e pensou que só quando
a deixava a amava. Como certas pessoas que só
quando morrem são compatíveis connosco. Reparava,
mesmo sem olhar para ele, que Bernardo (o apelido
dele fugia-lhe) tinha qualquer coisa de
instantâneo. Passados os anos da juventude, ele
desaparecia, como o sol na linha do horizonte. A
avó dizia que desejaria ter na família alguém
comprometido com o destino do país. Não seria
Martinho, que se limitava a reconstruir os
249
solares da casa, como ele dizia. E muito menos
Bernardo, que fazia da política uma profissão com
direito à reforma e tudo o mais. Quando recebiam,
e ainda Filipe Nabasco era vivo, este divertia-se
a perguntar aos convivas mais idosos:
- Então está na retrete, meu amigo?
Jogava com a palavra retraite, e isso parecia o
cúmulo do espírito, não reparando que todos
estavam fartos dessa anedota. Mas Bernardo era o
eixo dessa anedota. Vestido de azul, com gravata
da mais pura actualidade, em geral uma gravata
grandiosa que lhe chegava até ao umbigo. Jogava
golfe aos domingos de manhã (acho que já o disse),
mas depois ficou embaraçado com o tipo de
parceiros que teve que suportar, matarroanos que,
para bem de todos, a capital não assimilava.
Felizmente Paula casou na cidade e teve direito à
consideração da porteira. Maria Rosa dizia que
Paula era dessas mulheres com mau génio que
julgam, por isso, ter carácter. A última grande
senhora da família era ela; e não podia falar em
família porque eram burgueses com dinheiro, o que
é diferente de serem aristocratas com memória
demais.
Só em raros momentos percebia que amava a filha
mais do que a Martinho. Era uma voz que vinha do
mais profundo do ser, uma voz com lágrimas que se
estrangulavam na garganta. E também Paula se
voltava para a parede, para que a mãe não visse
como estava emocionada. E tudo isto, sem motivo
aparente. Acontecia com as mulheres com passado.
Iam ao cinema e choravam. Não choravam se morria
alguém, se vestiam um defunto, se recordavam uma
peripécia solene. Mas, no cinema, desfaziam-se em
lágrimas. Martinho achava aquilo um bocado
indecente, uma falta de sentido das prioridades.
Primeiro estavam as crianças de África,
desnutridas e sem assistência alguma. Mas talvez
tivesse que ver com um último rasto do que é
humano e que não desapareceu com os sistemas
250
de informação e de economia. "Valha-a Deus, a
senhora chora, e eu com que cara fico?"
Ele tinha quinze anos, era muito difícil
compadecer-se enquanto os outros estavam a olhar.
Bento Webster Soares, fanático da colónia
britânica a ponto de modelar o nome com um título
inglês, esteve sempre presente, tanto quanto
Martinho se lembrava. Tinha um rosto bem barbeado,
e uma certa corpulência, que disfarçava com os
coletes um pouco frouxos, dava-lhe a elegância da
maturidade. Gostava de mulheres, não desprezando
os avanços de alcova bem mais experientes do que
os seus líricos alexandrinos. Maria Rosa não o
levava a sério, mas ele tornara-se um desses
acompanhantes cuja sensualidade encoberta tem
direitos para além dos juízos de conveniência. Era
o homem que se chamava quando havia treze à mesa
ou quando era preciso conduzir a casa uma senhora
velha e evitar que ela caísse no passeio. Bento
Webster era impecável em abrir um guarda-chuva,
mantendo-se um pouco atrás da mulher que protegia
e parecendo completamente indiferente quanto ao
dilúvio que o encharcava. Era um conviva
insuportável quando recitava a sua poesia, mas um
prodigioso cavalheiro à mesa que não falava
enquanto comia a sopa, atento ao serviço tanto
quanto aos vizinhos do lado. Repartia a conversa
com habilidade e graça. Maria Rosa chamava-lhe o
diplomata do guardanapo.
Martinho, que não tinha as qualidades de Bento
Webster e pensava que os homens à inglesa não
gostam de crianças, foi crescendo tendo aquele
espelho de virtudes de salão diante dos olhos.
Devia-lhe o "saber estar", que copiava sem dar por
isso. Todavia, as pessoas como Bento Webster
caíram em desuso e já não tinham cotação na
democracia que se instalou como novo evangelho
laico. Webster morreu já quando a
251
Ronda encontrara lugar certo no Torreão Vermelho,
cujo nome ele nunca aprovaria. Morreu com mais
idade do que a que confessava e dizia-se que não
saía do país para não ter que mostrar o
passaporte. Martinho, com as poucas lembranças que
tinha dele, achava-o parecido com o doutor Watson,
o indefectível amigo de Sherlock Holmes. Era, no
entanto, muito diferente, porque não tinha
espírito dedutivo. Maria Rosa disse que o maior
agradecimento que lhe devia era o de o ter
esquecido facilmente. Era um cinismo de
circunstância, porque as mulheres nunca esquecem
os homens que as amaram, ajudando-as a superar a
má opinião que têm delas próprias.
Porque o que mais prejudica as mulheres não é o
serem maltratadas, mas facilitarem todas as
injúrias desde que não sejam ignoradas pelo desejo
dos homens. Martinho achava que Bento Webster não
tinha lugar na Ronda da Noite porque não esperava
a ordem do capitão Cocq nem admitia qualquer
preparativo evidente demais. Para ele as regras
estavam estabelecidas e os lugares previstos. Um
porta-bandeira não se podia dar ares de chefe de
claque, nem o tenente se podia vestir melhor do
que o seu superior hierárquico. Não parecia bem, e
o parecer bem estava acima dos dez mandamentos. Os
dez mandamentos ele infringia-os a todos. Primeiro
amava o pai e a mãe e as filhas mais do que a
Deus. A sua profissão, numa casa de vinhos, os
seus punhos de rubis, a sua pequena propriedade
nos limites da cidade e a que ele chamava O
Conventinho, também estavam acima das suas
cogitações metafísicas. Algumas das suas mais
excitantes conquistas começavam com um olhar à
hora da missa, ao fim da manhã. Cobiçar a mulher
do próximo era um dos seus melhores passatempos,
além do seu whisky de malte. No seu estilo, era
muito completo e sem deslizes de procedimento.
252
A família real inglesa merecia-lhe uma veneração
sem qualquer conflito filosófico. Não se falava
dela senão com respeitosa sinceridade, como quando
os amores da princesa Margarida foram publicamente
devassados. Webster atribuiu-os ao "terrível
sangue dos Tudor" e ficou por aí. Achava Churchill
um grosseirão, um alcoólico como constava dos
arquivos diplomáticos e não queria ter de
cumprimentá-lo alguma vez.
- Não acho bem - disse Maria Rosa. Eu só não quero
cumprimentar quem sua das mãos ou parece que nos
oferece um trapo para limpar o pára-brisas.
Martinho ficava encantado quando ela falava assim.
Era uma vida calma e espirituosa, entre camélias,
que as havia de todos os feitios no jardim da Casa
do Cão e que tiveram de abandonar. Ainda quando
passava lá e via a grande palmeira acima do
portão, Martinho tinha pena. Os jantares em
Agosto, fora de casa, e o avô a abrir o champanhe
como quem espera ser ferido de morte; Elisa à
entrada, com ar de divertida censura porque para
ela o jardim não servia senão para comer fruta de
caroço e livrar-se dos gatos e das crianças; e,
mais ainda, o parque que tinha ao fundo um campo
de ténis que nunca serviu a não ser para
plantações de hortaliças nobres, como couves de
Bruxelas e alfaces-manteiga. Martinho viveu lá
vinte anos e o Torreão Vermelho, ao princípio, não
lhe agradou nada. Achava-o uma criação da cabeça
dum cutileiro, com cinco casas de banho, uma delas
forrada com alcatifa de cima a baixo.
Provavelmente ia para lá deitar-se com a mulher ou
assim.
- Lamentável! - disse Martinho - Há coisas que não
se fazem na retrete, ao contrário doutras, como a
má poesia.
Quem dizia isso era um poeta de quem Martinho
gostava muito e que era afogado em horríveis
versos, que lhe mandavam
253
muitos admiradores. "Essas coisas fazem-se na
retrete", era o estribilho dele. Era um homem seco
e cheio de malvadez, mas grande na criação.
Martinho teve o cuidado de nunca o receber quando
Webster lá estava, no Torreão Vermelho. A sua
maneira, o seu amigo, de nome Benjamim, era um
snobe, o que Webster não era de todo. Este seria
um convencido, mas pertencia ao seu meio, sem
pretender nenhum outro, nem mesmo o da família
real inglesa, em terceiro grau que fosse.
- Conheço o meu lugar... - dizia Webster, com
gravidade modesta. Para Benjamim ele não passaria
dum lacaio, mas não era verdade. O lacaio presume
de servir e o gentle-man de servir bem. Divagações
a que Bento Webster se entregava até que morreu,
já com muita idade mas ainda com gosto no vestir e
com olho aceso para as raparigas bonitas.
Esse tipo urbano desapareceu. Andava a pé na
cidade, que tinha pouco trânsito, tanto no Porto
como em Lisboa. Alguém como Webster, em Lisboa não
usava sobretudo nem chapéu-de-chuva e não tinha
automóvel próprio. Andava de táxi ou no carro da
"Companhia" ou do Ministério, e jantava nos
cocktails e depois ia à ópera. Costumes que se
tentam repor mas que nunca mais voltaram. O homem
elegante, que as revistas de moda tentam reanimar,
perdeu o sentido do bom gosto, não leva o
sacrifício ao ponto de comer os palitos no avião
quando janta ao lado dum grande da finança que já
mastigou um ou dois. Não é genuíno, é um imitador.
Cheira o vinho antes de o beber, elogia um vestido
decotado demais ou uma jóia que pode ser falsa,
anda a cavalo para se mostrar bem equipado, diz
mal das mulheres sem ser um entendido em Sodoma e
Gomorra; e, sobretudo, o falso esteta, o falso
homem do mundo, julga que a política lhe convém,
quando a política, se tem cabimento para Freud,
não tem interesse para
254
um homem verdadeiramente moral, que é o que não
faz da moralidade uma regra de prudência. A moral
é uma virtude, não uma conduta.
O poeta Benjamim sobreviveu a Webster sem nunca o
ter encontrado. Mas conhecia os seus versos que
chegaram a ser adaptados ao fado. Tinha o
ressentimento quanto à intimidade de Webster na
casa dos Nabasco, do Torreão Vermelho que achava
ser um lugar à parte na cidade, um lugar onde se
podia ser aristocrata e democrata ao mesmo tempo.
Com a passagem dos anos, dipersaram-se os amigos,
a boa companhia tornou-se em sexo explícito e, não
sendo este, uma distracção permanente sobre o amor
e o proveito dele. Sobre a cultura e o seu
carácter como poder.
Judite não aparecia nesses colóquios. Não que o
marido não lhe desse importância, mas era ela que
os achava perversos por não serem concisos,
defeito que era agora mais do homem do que da
mulher. Recém-saída da sua paixão, ela estava
entregue a uma felicidade de que não percebia as
regras ou que não as tinha. Tudo era para ela
motivo de festa e despreocupação. Como alguém que
escapa dum azar violento, como o de ser esmagada
pelo telhado que desaba, ela ficou reduzida a uma
espécie de oração sem desejos: um estado de calma
absoluta e de gratidão. Martinho amava-a agora
mais, mas a distância que se criara impedia que a
sua ligação se mantivesse. Porque se criara essa
distância? Porque Judite sofrera e amara alguém
sem ter dele necessidade, sem lhe dever nada, e
muito menos ciúme, auxílio e confiança nas suas
emoções. Martinho disse uma vez a Maria Rosa:
- O que a fez casar-me com ela?
- Ela era uma cadastrada.
- Isso é bom? - Fez uma pausa e disse, com uma
sombra de indignação: - Cadastrada?!
255
- Onde houver um crime toda a família é
cadastrada. Eu sempre imaginei Judite a carregar a
culpa do pai, e isso tornava-a numa pessoa
especial, mais homem do que mulher. O homem
procura uma culpa para se elevar acima dela. Eu
pensei que boa esposa ela seria se arrastasse a
culpa com ela. Mais fiel, mais amante. Para dizer
tudo, eu acho que ela foi quem matou a Estrelinha.
- A mãe! Que delírio é esse? Uma criança de doze
anos!
- Funcionou como um rito de passagem. Outra coisa:
ela gosta perdidamente do pai. O crime foi como
sacrifício de adoração. O que mais se ama para
quem se adora. Não era assim com os povos antigos?
E ainda é. Não estamos tão longe da pré-história.
- Coisas pesadas como chumbo. Pode ser que tenhas
razão. As mulheres têm mais razão do que nós.
- Somos mais antigas. Vocês nasceram muito depois
de nós.
- É possível.
Ele levantou-se e deu uns passos no quarto. As
tábuas do soalho gemiam e ele lembrou-se do hotel
de Aosta que tinha o mesmo rangido, o que os
divertia a ele e a Judite, porque eram novos e se
amavam. Andavam sempre perdidos um do outro,
perdidos entre os corredores e os ascensores que
subiam e desciam desencontrados. Na sala de jogo
era impossível reconhecerem-se, uma nuvem de fumo
pairava como um denso nevoeiro. Coisa tão
estranha, parecia inventada para criar uma
atmosfera de paixão e obscuridade! Não se viam as
caras dos jogadores, afogados numa luz parda, com
os focos de luz sobre as mesas. Assim, ninguém se
distraía com o parceiro; e as mulheres de seios
murchos com as jóias faiscantes, não tinham rostos
mas só a mancha da pele. Como o vampiro de Murnau.
Ele disse isso a Judite, de noite, já estavam
deitados,
256
e um arrepio que simulava o medo fez com que ela
se abandonasse como para pedir-lhe protecção. O
medo era então um bom condutor erótico. Ele
repeliu-a, mas vendo a incredulidade nos olhos
dela, os olhos extraordinários que ela tinha,
voltou a recebê-la nos braços.
Nem sempre as coisas corriam tão bem. Aos cinco
anos de casados separaram os quartos e o dele
ficou um pouco ao abandono, com livros e roupas
por cima dos móveis e chaves e botões de punho,
alfinetes das camisas novas, velhas contas,
bilhetes de cinema, tudo acumulado; sem falar nos
remédios para a tosse, variadas pastilhas e coisas
mais sérias, como os antibióticos fora de prazo, e
as vitaminas, os estimulantes, os antipiréticos,
encastelados como numa farmácia, de mistura com
caixas de sabonetes vazias e cremes para as mãos
já secos. Quando Judite ia aos solares do Nordeste
encontrava vestígios da mesma desordem preocupada,
ultimamente anti-depressivos que ele não levava
para casa. Nunca se despia inteiramente diante
dela e também não gostava de a ver nua com medo de
encontrar-lhe defeitos que lhe repugnassem. Era um
tique da época: a beleza perfeita impunha-se para
auxiliar o desejo, quando uma certa irregularidade
era mais conflituosa e mais condutora de prazer.
Martinho interrogava-se: será que o sexo não é
normal e que há milhões de anos o praticamos como
um ofício? Estava a divagar, era disso que ele
gostava; ir contra todas as leis, descobrir
caminhos, derrubar muros e vedações. E Judite? Não
se preocupava com ela, não há nenhuma mulher com
que um homem se preocupe.
- Não sei o que querem de nós. Francamente, não
sei - disse.
- Provavelmente nada de especial. Somos assim. - A
avó compôs os cobertores sobre os joelhos, não
parecia afectada pelo que ele dizia. Era uma causa
perdida aquilo de andarem
257
sempre a cismar nas dívidas que tinham uns com os
outros, nas queixas, nas invejas. E se tudo fosse
um tremendo logro e o amor não existisse? Nem
fizesse falta? - Imagina tu, meu menino, que o
amor é um falso aditivo. Inventou-se para nos
prevenir e afinal dá-nos cabo da vida. Eu acho
tudo ridículo.
- A avó é velha.
- Achamos tudo ridículo, tanto velhas como novas.
Mandame cá acima o meu chá, que já passa da hora.
- Eu trago-lhe o chá.
- Não temos ninguém para isso?
- Às seis horas já não temos ninguém. É assim.
Quem faz o jantar sou eu. Ontem foi Judite, hoje
sou eu.
- Já percebi, mas vivi em melhores tempos. Tinha
três criadas de dentro e uma lavadeira. E
costureira em casa para remendar e fazer os
aventais, trocar os punhos e os colarinhos.
Poupava-se mais, um carro durava uma vida, o
açúcar era luxo, bananas não havia.
Judite metia-se na conversa para dizer que estava
melhor assim, com máquinas por todos os lados e
lenços de papel. Tinha mais tempo livre, ia ao
cinema quando queria, a oferta era muito variada:
ballet, concertos, conferências. Ela não se sentia
só nem envergonhada por saber pouco. Lia os mesmos
livros que os homens e falava das mesmas questões.
O seu vocabulário também se ampliara e as palavras
proibidas podiam ser ditas em voz alta, em
qualquer lugar. Ainda que ela as ouvisse da boca
de Estrelinha Sopa-de-Massa a toda a hora. Quando
estava verdadeiramente zangada ou se ela sofria,
apenas dizia "Jesus, Jesus" e torcia os braços
como se fossem uma rodilha.
- Que mania é essa de torcer os braços? - disse
Martinho. O doutor Assis pensava que era
simbólico, como o beijo, como muitos outros
gestos. Talvez existisse antes da
258
voz humana. Bento Webster não se metia no assunto.
Bastava-lhe a poesia como armadilha para mulheres,
e o resto não era com ele.
O Torreão Vermelho estava mais silencioso e
parecia servir sobretudo para guardar a Ronda da
Noite em boas condições. Todas as vezes em que se
pensava vender o Torreão lá estava o eterno
obstáculo: onde iam meter a Ronda? Oferecê-la ao
governo ainda parecia a melhor hipótese, mas Maria
Rosa, ainda dependente da velha economia, "guardar
até que o preço suba", recusava essa ideia. Também
se ventilou o caso que fazer chegar a Ronda da
Noite a leilão, inventando-lhe uma história como a
que se fez para Perseu e o Dragão. Não sei se
sabem que Perseu e o Dragão, de Metsys, ele
próprio, estava numa gaveta, há muito tempo, num
palácio rural. Tinha sido oferecido por Catarina
da Rússia a um embaixador de Portugal que o
trouxe, dentro duma almofada de crina e o deixou
num malão; até que alguém o descobriu e o mandou
avaliar.
Para ser incluído num leilão, o quadro teve que
ser acompanhado por um currículo que lhe
garantisse autenticidade. Mas a Ronda, não possuía
qualquer prova de origem. Tudo quanto tinha era
uma tela esfiapada que se podia dizer ser o forro
da tela pintada. Esse sim, pôde ser datado e
coincidia com a época de Rembrandt. De repente,
tudo ficou suspenso e não se falou mais da Ronda,
nem dos seus predicados estéticos ou monetários.
Era um aforro que podia ficar esquecido durante
uma ou mais gerações e que havia de acordar como a
Bela Adormecida para fazer feliz o seu príncipe,
aquele a quem "o beijo do dinheiro" dizia alguma
coisa.
Os Nabasco não viviam na penúria porque tinham uma
experiência da economia bastante vasta. Por
exemplo: Filipe Nabasco foi criado no respeito da
pequena poupança. Se deixava
259
cair ao chão o seu pão com manteiga, beijava-o e
continuava a dar-lhe vigorosas dentadas. Também
sabia que as suas calças, ao ficarem demasiado
curtas (demasiado e não um pouco curtas), iam
servir para o irmão "chegante" que era, como
diziam, o mais novo. À segunda-feira comia-se
bacalhau cozido e uma sobremesa pobre, de fritos
de farinha com açúcar e canela. A sopa era
obrigatória, ainda que sempre mal encarada. Na
mesa havia um certo estilo de asilo; não se usava
toalha quando as crianças eram pequenas demais
para serem servidas à mesa dos adultos. Andavam
frequentemente descalças quer fizesse frio ou
fizesse calor. O luxo dos Nabasco estava na
educação e ficou como referência um mestre que
tinha a regra do doutor Johnson como referência
principal: "Toda a frase que se achar bela deve
ser suprimida". Isto tanto quanto ao escritor,
como à conversa e o gosto da indumentária. As
flanelas cinzentas eram preferidas, a linguagem
sóbria e sem muitos adjectivos era aconselhada. O
doutor Johnson estava em toda a parte. Na família,
no paladar, no sexo e até na religião. Comungava-
se pouco, uma vez por mês, às primeiras sextas-
feiras. Não se jejuava, fazia-se dieta. Gastava-se
mais com os necessitados do que com diversões.
Essa educação destinada a fazer perda de apetite
ao diabo, conservou-se até que D. Pedro subiu ao
poder e a região duriense recebeu novo vigor, dado
que algumas casas de lavoura tinham feito
empréstimos para pagar o pré dos soldados. As
coisas mudaram, com os lucros e com uma imitação
que era subserviência, os costumes tornaram-se
mais boçais deixando aos padres as letras, e
muitas vezes a política. Os tutores e mestres de
música deram lugar ao fidalgo absentista que
dormia com a escopeta à cabeceira em vez das obras
de Tucídides. Nesse tempo, os Nabasco com fortes
laços brasileiros e alguma gota
260
de sangue mulato, foram para Lisboa, deixando as
terras aos parentes pobres, como se de colónia se
tratasse.
Maria Rosa, sem grandes ocupações a não ser a de
mãe de família e entrada na idade do desemprego
conjugal, fez questão de recuperar os antigos
hábitos dos Nabasco. Não eram hábitos, eram
preceitos de afirmação. A cultura era uma ideia
moral objectiva que só por breves eclipses
desaparecia nas famílias.
Quando Paula se casou de novo, Maria Rosa, a troco
duma doação quantiosa, guardou consigo o pequeno
Martinho. Com ele veio a Ronda da Noite e o
capitão Cocq prestes a dar a sua ordem de marcha.
Ainda que os primeiros ensinamentos os recebesse
em casa com mestres que excediam as matérias de
estudo, depois a educação de Martinho fez-se em
Inglaterra e em Viena, com os jesuítas. O que
seria de esperar seria que fizesse um casamento
que lhe acrescentasse as vantagens adquiridas; uma
mulher bela e de nome ilustre fazia-o mais
presente na sociedade do que se ele fosse só e
carregado de atributos. A mulher dá à vida dum
homem a flexibilidade que ele precisa para vencer
nos negócios e na carreira.
Não era de esperar que Maria Rosa lhe destinasse
Judite, quase uma criada e de espírito vazio.
Ninguém pensava que ela fosse inteligente. Mas não
havia provas em contrário também. Até, algumas
vezes, Judite calhava ter opiniões muito
determinadas que surpreendiam o marido e que, por
mais que ele quisesse rebater, não encontrava nada
de melhor. Desconfiava de que Judite o andava a
enganar, não com outro homem, mas com as suas
próprias capacidades. Ela passara ao lado da
cultura sem mostrar interesse por aumentar os seus
conhecimentos. Tinha uma vida confortável mas sem
ambições e não se afeiçoava seriamente a ninguém.
Algum gato sem raça, a quem ela falava com voz
amistosa mas sem ser
261
demasiado calorosa, consistia na sua companhia
mais privada. Mas se ele morria, não se mostrava
sentida demais, só lhe reservava um canto do
jardim para sepultura e passava por lá, como por
acaso, para dizer algumas palavras meigas.
Sabia que Martinho prezava muito a sua área de
valores que não queria frequentada pela mulher. Se
ela mostrava estar ao par das suas leituras,
Martinho deixava de lhe falar durante dois dias.
Não suportava que houvesse igualdade de saber e de
meios entre ele e Judite. Ela fazia-se
insignificante e débil mental, como ela dizia para
si própria.
Nada disto escapava a Maria Rosa.
- Tenho confiança nela. Mas a Elisa dizia que uma
mulher como Judite sabe que há prazeres sem
esperança.
- Ela dizia isso? - O doutor Assis ficava varado
de surpresa quando ouvia coisas assim. Como homem,
o que sentia era descontentamento, a conversa com
mulheres tinha limites e as mais ignorantes podem
surpreender. - Não disse felicidade sem esperança?
- Não. Disse prazeres sem esperança.
- Bom. Já é tarde para lhe perguntar a ela. Não
era pessoa da minha simpatia.
Ficou a cismar um bocado, não em Elisa mas noutra
coisa. Fazia-se velho e, instantaneamente,
esquecia-se do que estava a falar. Já não sabia
receitar coisas novas e também não acreditava na
medicina. Era muito impopular entre os empregados
da casa dele e do Torreão, que se resumiam a um
jardineiro e uma mulher da cozinha e outra para o
ferro, todos externos. O vulto magro e curvado do
doutor Assis, que nunca dava gratificações nem os
cumprimentava, incomodava-os. Achavam que teria
sido amante de Maria Rosa, e isto servia para os
autorizar a desprezá-lo. Quanto a Bento Webster,
era diferente. Engraçado, com o porte direito e
uma
262
cinta debaixo do colete, divertia-os. Serviam-no
de bom grado e iam acompanhá-lo à paragem do
autocarro, com o guarda-chuva aberto, se chovia.
Ele dava-lhes dinheiro, que tirava do bolso do
casaco. Dinheiro em notas e não simples moedas.
- Assim vão roubá-lo. O dinheiro traz-se na
carteira ou no porta-moedas.
- Aí é que mo roubavam.
Bento Webster deixou uma memória de homem galante
e fácil de conviver. Desculpavam-lhe os ridículos
e parecia-lhes que era bom que pessoas como ele
não tivessem desaparecido de todo. Quando tudo,
doutra época, desaparece, as paixões que deram
vida a toda uma geração esfumam-se deixando um
rasto débil de melancolia. O doutor Assis tinha
uns ditos inesperados:
- Que ganhamos com o monoteísmo? Eu tinha um deus
para o coração e outro para o fígado; e ainda
muitos mais para as infecções, os vírus e as
febres desconhecidas. Um só Deus não pode dar
conta de tudo.
- Você é um "mágico" - disse Maria Rosa. Mágico
queria significar um original; ter uma pancada e
assim por aí fora. O "mágico" tornara-se quase
suspeito, correspondia à teoria do céu quando
nublado. Não deixava ver as estrelas, confundia a
linha do horizonte, provocava um fenómeno de
desenraizamento que é, como dizem, o mal do
século.
Não sei se se lembram do capitão Hatteras, de
Júlio Verne; um explorador do Ártico que
enlouqueceu durante a sua viagem ao Pólo Norte. No
meio da sua desordem mental caminhava sempre num
sentido, dando que pensar aos seus médicos e
enfermeiros. Por fim, descobriram que ele
caminhava na direcção do Norte. Fora esse o plano
da sua vida; mesmo quando integrou a teoria do céu
quando nublado e o desastre mental se verificou,
ele manteve-se fiel ao ideal
263
profundo. Nunca se reconheceu o malogrado capitão
Hatteras, como um desenraizado.
Pensando Martinho no que fora para ele o prazer no
período de educação, muito duro enquanto o avô
Nabasco viveu, encontrou o seguinte: enquanto
esteve na Suíça foi assaltado por uma febre
tifóide que o prostou na cama, chegando a recear-
se pela sua vida. Os padres ocultaram de princípio
o seu estado e demoraram-se demais em revelá-lo à
família; depois já era tarde para o fazer e
mantiveram-se firmes na sua decisão, esperando que
a forte natureza da criança levasse a melhor sobre
a doença.
Houve um dia em que um desmaio pareceu abrir as
portas da morte. Martinho sentiu-se arrebatado
numa vertigem de que não lograva sair; depois,
como uma onda que o arrojasse para fora,
encontrou-se como que a boiar num grande lago.
Estava a nevar, o seu corpo ardente recebia com
prazer os leves flocos de neve. Mas a sensação de
deleite apareceu quando da sua convalescença.
Pode-se dizer que não havia alteração no seu
estado, mas agia nele uma beatitude magnífica,
como um consentimento divino a que recobrasse a
saúde e vivesse para sempre. Era uma alegria terna
e prometedora; Martinho aprendia a bênção da vida
nessa passagem imperceptível entre a doença e a
cura. Um dos padres velhos chegou a pronunciar a
palavra milagre, mas repreenderam-no com doce
autoridade. Pouco tempo depois morreu e, como era
velho, não deram muita importância ao seu
desaparecimento. Maria Rosa, que foi passar uns
dias a Saint-Moritz, estranhou o neto.
- Queres ir para casa? - disselhe.
- Não. Estou bem e tenho de estudar até Junho.
Mas o que ele não dizia era o grande amor que
sentira ao ser arrebatado para a vida, e a saudade
desse momento lento
264
como se durasse anos e não pudesse medir com os
sentidos ainda perdidos das emoções em que ele
vagueava, sem sofrimento mas também sem
satisfação.
A Primavera tinha avançado enquanto ele estivera
doente e havia crocos roxos ao longo dos caminhos.
As vacas malhadas, com os grossos sinos ao
pescoço, pareciam olhar para ele como se o
reconhecessem.
- Este rapaz cresceu bastante - disse a branca com
pestanas como alfinetes.
- Nunca o tinha visto - disse a outra, ruminando a
sua erva.
- Eu sim. Mas sou mais nova, tenho boa memória.
Martinho riu-se, contente de as entender. E o seu
coração encheu-se de alegria e logo, sem perceber
o que lhe acontecia, o pranto correu-lhe pelas
faces emagrecidas. A convalescença ainda não
estava completa e ele comovia-se facilmente.
Como a avó quando ia ver os filmes antigos que ela
achava vulgares e xaroposos.
Desse tempo de colégio não guardou grandes
recordações; nem mesmo da neve escura e que ao
desfazer-se criava pequenos charcos com placas de
gelo por cima. Mas da Inglaterra, sim. Fez
amizades como revelações do corpo e do espírito; e
o perfume do talco da manhã, depois do duche,
tornou-se para ele uma companhia. O avô Nabasco
achava aquilo efeminado e levava-o para a caça,
obrigando-o a ver os cães que se banqueteavam com
as vísceras quentes dos coelhos.
- Não gostas de ver sangue? - perguntava, com
insídia.
- Nem por isso. O cheiro enjoa-me.
- Os homens não têm nariz e as mulheres não têm
ouvidos.
Referia-se a que as senhoras podiam ouvir
obscenidades sem sequer darem por isso, porque a
virtude não as distraía
265
para as coisas grosseiras. No entanto, a avó, às
vezes, como se brandisse uma acha de guerra,
soltava o seu palavrão. Nada mais do que "merda"
ou "filho da polícia", o que fazia rir o irmão e
todos os Cunhas quando por lá andavam a servir.
Quando o avô morreu, ela deu tamanho grito que se
ouviu na rua. Paula correu a fechar os reposteiros
e a acender as luzes. A dor tinha que ter alguma
contenção e não podia manifestar-se como nas
peixeiras, a gente mais dramática do mundo, não se
sabe porquê. As peixeiras (antes pescadeiras)
tinham a arte do mortório. Era a única gente
trágica de Portugal e ao pé delas os coros gregos
serviam só para enviar mensagens como pelo código
Morse. Elas invocavam os deuses do mar e das
tempestades, submetidas às suas iras cruéis. As
pescadeiras, carregadas de preto, levantando até à
cabeça o xaile preto, gritam com mais ódio do que
devoção. Apedrejam a porta da igreja quando os
seus mortos dão à praia semi-nus e vencidos. Era
assim que Maria Rosa sentia a dor. Um uivo de
espanto que sobressaltou toda a família
reconciliada por um momento, pronta a debandar e
disposta a levar algumas flores que se esqueceram
no quarto onde guardaram os casacos. O coro disse:
"Julgas que só pelas lágrimas, sem adorar os
deuses, podes triunfar dos teus inimigos?" As
pescadeiras iam directas, de rosto descoberto, os
punhos enterrados na areia, enfrentar os inimigos:
o vento alterado, a maré crescida como torre que
alcança os céus. Elas estão à altura dos seus
inimigos, elas sim, estão a vociferar aos ouvidos
dos seus inimigos.
Algumas vezes Maria Rosa era censurada porque lhe
ficava mal aquele dizer as coisas como se jurasse
no tribunal. "A verdade, só a verdade, nada mais
do que a verdade..." Sentia-se como na amurada dum
navio, a voz coberta pelo
266
marulhar das ondas. Ela falava cada vez mais alto,
mas não lograva ouvir-se a ela própria.
- Ouves o que eu digo?
- Não, não ouvi.
Era na travessia que faziam para Patras, no
Peloponeso, viam-se, debaixo de água, as grandes
alforrecas. Custava a crer que fossem animais,
davam origem a lendas, pena ela não ter vivido
nesses tempos. Ela ia deitar-se na coberta e
passavam os homens de bordo, como sombras, mas um
desejo lírico e profundo acentuava a sua passagem.
Eros, o mais versátil dos deuses, combinava-se com
todas as coisas, dado, como ele é, a travessuras.
Um pouco inesperadamente apareceu um comprador
para a Ronda da Noite. Era um decorador que
pretendia cortá-la em pedaços suficientes para
fazer um puzzle que, por meio de efeitos
fotoeléctricos, efectuasse diferentes compromissos
com a realidade. A menina Saskia, o tamborileiro e
o cão podiam pertencer ao mesmo nível e ter uma
interpretação mais verosímil. Todos os personagens
mudavam de lugar, o capitão ficava em segundo
plano e o tenente ganhava importância. Outros, que
até aí mal se distinguiam, ofereciam outra
qualidade e até uma soma de intenções que no
discurso do pintor não se percebiam.
Martinho ficou muito mortificado. Não ia vender o
quadro para retalho, como uma peça de açougue no
seu gancho, mas a ideia parecia-lhe
extraordinária.
- É, não é? - disse o decorador. Tinha pouquíssimo
cabelo e o que tinha deixava ver o crânio
brilhante e cor-de-rosa. Talvez fosse uma nádega e
não um crânio. A Ronda não merecia aquela obscura
exploração, no sentido de a tornar uma diversão,
mas também, se não se tratava dum original, não
havia crime em retalhá-la e fazer com ela um
trabalho de
267
patchwork. Apesar de tudo, Martinho recusou. Não
tinha prova nenhuma de que se tratava dum falso e
podia estar a cometer um erro colossal.
- Daqui a duzentos anos a Ronda pode estar
identificada e valer uma fortuna - disse.
- Uma fortuna em quê? Em bilhas de água? Nessa
altura a água será moeda mais fiável. Adeus mito
do ouro! - O doutor Assis olhava para a Ronda com
um desrespeito singular. Sempre achara o quadro
feio e desproporcionado e que não merecia tantas
atenções. - Qualquer dia lançam impostos sobre as
obras de arte e vais ter que vendê-la, tu verás.
- Não com estes olhos que a terra há-de comer.
Sabe, doutor? "Toda a mudança traz bem-estar",
como dizia Electra.
- Electra?
- A irmã de Orestes. - Sentia-se erudito e aquilo
sabia-lhe bem. Divertia-se a ver o doutor Assis
tão perplexo; mas isto durava-lhe menos do que
duram as rosas, e ia discutir com Maria Rosa coisa
mais vulgares, que era o que verdadeiramente lhe
interessava: a mudança da hora de Verão para a de
Inverno, os horários dos comboios e as notícias do
Iraque.
- Morre menos gente do que nas nossas estradas -
disse - E nas estradas, sabes o que se pensa,
quando se é novo e se gosta do perigo? "Uns
morrem, outros nascem." Ouvi isto e não me
escandalizei. Não estou viciado no Iraque, nem em
nada. As guerras são um excitante sexual, e quando
isto se souber acabam as guerras porque a nudez
não fica bem aos homens e eles vão sentir-se nus
como um verme da terra.
- Um verme da terra! Onde é que eu já ouvi isso?
- És um estupor. Vou subir e falar com a tua avó.
Os velhos entendem-se.
- Acredito. O que têm tanto para dizer? Riem-se
como doidos, não sei o que há para se rirem tanto.
268
- Quando eu era pequeno e chorava, diziam-me:
"Quem mais chora, menos mija". Não é verdade; eu
mijo a toda a hora.
- Não gosta de mim, nem da Ronda, nem do Torreão
Vermelho - disse Martinho, como se fizesse uma
confissão que lhe competia a ele fazer. O doutor
Assis subiu pela escada acima, mas já sem a
vivacidade doutros tempos, de quando transpunha os
degraus da escada de caracol, na Casa do Cão.
Agora pensava muito antes de pôr o pé num degrau e
media-o conscienciosamente. Já não se faziam as
escadas de abade dos mosteiros, feitas para não
obrigar o corpo a saltos e contorsões. Parou a
meio caminho e voltou-se, apoiado no corrimão.
- O corrimão é uma invenção espantosa - disse ele.
- O quê?
- Se a escada do céu não tiver corrimão, não quero
ir para lá.
Martinho ouviu-o rir-se com Maria Rosa. Decerto
estava a contar-lhe aquilo e outras coisas. Ficou
feliz por ouvi-los rir.
Começava a sentir-se um pouco entropecido e a
ideia dum A.V.C, insinuava-se, constantemente
alimentada pelas páginas de saúde e de alimentação
e pelas alarmantes novidades tribais. Uns tinham
morrido em paz, durante a noite, outros ficavam
hemiplégicos, gastando ao Estado somas
consideráveis. Se ao menos houvesse uma epidemia
como no tempo da peste em Nápoles! Descobriu
porque gostava tanto desses relatos macabros e
porque saboreava o terrível desfile dos hospitais,
dos mortos transportados em carretas e a Bette
Davis sacrificando-se para os ir acompanhar no
lazareto. Os bancos estavam falidos, ninguém
investia, ninguém solicitava empréstimos. Martinho
estudava a Grande Depressão, mas adormecia a meio
duma página. Retinha alguma coisa que o
269
fazia mais indolente e céptico. A economia era
cada vez mais servida por homens perspicazes e
cometiam-se erros cada vez maiores; mas eram
sempre respeitados e as suas faltas motivo de
avaliação. O erro tornava-se interessante porque
crescia o desprezo por aquilo que se aprende e em
que se acredita.
O cadete Bernardo, irmão mais novo de Martinho,
que não era tolo, dizia-lhe que não valia a pena
forjar um dossier sobre educação porque tudo se
resumia a uma adaptação às circunstâncias e as
ideias nobres estavam há muito em crise, se não
reduzidas a pó. Convinha animar a produção,
gastando mais e rompendo com a tradição dos
orçamentos equilibrados e do aforro pessoal. Mas o
que aconteceu foi que o ódio aos impostos, uma
tradição milenária, desencadeava uma resistência
em que se desenvolviam vícios da paz: a corrupção
e a corrida aos prazeres. Ninguém se atrevia a
promulgar leis radicais, como impostos grandes e
salários pequenos. Os países estavam a ser
governados por políticos cujas ideias tinham
secado há muito e tinham sido bebidas em sebentas
fora de moda. As gerações viajavam mais depressa
no tempo do que a economia nos mercados.
Bernardo era inteligente mas isso não lhe servia
de nada, nem ele queria. Só queria que não
chegasse a nenhum apocalipse antes de ele gastar
os seus sapatos feitos à mão no seu boothmaker de
Londres.
Era um rapaz elegante, amaneirado sem ser
efeminado e que tratava as mulheres novas como se
fossem velhas e as velhas como se fossem novas.
Tinha a suspeita de que elas, todas juntas, se
preparavam para tomar o poder.
- Talvez não seja tão mau assim. Ficamos mais
disponíveis para ler bons livros e não fazer nada.
Elas acabam por reproduzir-se por cissiparidade.
Estão cheias de razão, se bem que a razão não é
tudo. Vocês aqui, que fazem? - Olhava
270
para a outra margem do rio e o seu estreito fato
de algodão azul-tempestade desenhava-lhe as pernas
finas como as dum rapazinho. O polo era em lã
ardósia, muito chique. Estava à beira de ser um
homem público e de casar bem.
- Abandonas a política? - disse Martinho.
- Nunca. É como uma árvore que não dá fruto mas
que dá sombra. - Repetiu: - E tu que fazes? Este
Porto tem uma luz estupenda. Dizias que era escuro
e que não se via nada. Não é como a floresta do
Amazonas, mas ainda se percebe alguma coisa ao
meio-dia. Para que lado é o mar?
- Do Torreão podes vê-lo.
Iam ambos para o Torreão Vermelho alcançar o mar
com as mãos, como eles diziam. Apesar de terem
idade diferente, lembravam-se de coisas em comum,
como quando os cadetes iam para o Nordeste, caçar
e comer horríveis ceias de pão bolorento e batatas
fritas em água. A pobreza não os surpreendia e,
vendo fumegar a roupa ao lume, porque estava
molhada pela chuva, sentiam-se confortáveis e
felizes. A tempestade andava pelos montes, com um
estrondo de cavalos disparados. Eles sentiam-se
bem na escura cozinha de lavradores, com chão de
terra batida. - Como podes dizer que isto e que
aquilo? Sempre a dizer mal, sempre a fazer queixa
de tudo.
- Eu? - Bernardo foi colhido de surpresa. Sentia-
se agredido com aquela simples declaração de
Martinho que, para ele, era uma pessoa estranha;
quase não falavam a mesma língua, vestiam-se de
maneira diferente. Ir a Nova Iorque era mais fácil
do que ir ao Porto, parecia como ir à Lua. Mas ao
entrar no Torreão Vermelho, um luxo pesado,
austero, caía-lhe em cima. E a Ronda caía-lhe em
cima com aquele peralvilho do lugar-tenente pronto
a declamar um hino à cidade, sem esquecer as suas
galochas bordadas. A verdade é que Martinho
271
se ria dele e era o que o irmão mais temia. Tinha
sido educado como um príncipe da Renascença, e
quando estava sentado no cadeirão de couro, à
cabeceira da mesa, parecia um príncipe da
Renascença ou coisa que o valha. Para nada lhe
servia tanta sabedoria e o dinheiro que tinha.
Porque Paula dizia constantemente, a ponto de
aborrecer toda a gente lá em casa, como eram
opulentos os Nabasco e como tinham seis solares
vazios no Nordeste e Maria Rosa dormia com um
colar que valia milhões. Era uma lenda e era uma
chatice. Não era possível atribuir-lhe anedotas
como aos alentejanos, que esses mesmos estavam
mudados e constituíam um feudo à parte. A primeira
vez em que Bernardo teve a consciência de que as
coisas tinham mudado e que a frustração marcara
encontro com a política, foi quando, estava ele no
Chiado, começou a chover. No meio daquele trânsito
de repente caótico, um carro cinzento-claro (não
prateado mas só dum cinza frio) parou bem no meio
da rua e um homem alto, indiferente, confiante,
saiu; abriu a mala do carro, com vagar mas sem
mostras de provocação, e, depois de encontrar o
que queria, voltou a fechá-la. O motorista não se
tinha mexido do lugar. A um sinal que Bernardo não
pôde ver, o carro arrancou como se fosse entrar
num cortejo e em poucos segundos desapareceu.
Parecia uma imagem recortada num espaço que não
lhe era atribuído; um cenário corrido sobre outro
que continuou a funcionar na tarde chuvosa, bonita
tarde de luzes que se acendiam demasiado cedo como
por comando dum funcionário mal disposto.
Foi uma cena muito breve, desses instantes que
parecem roubados a outro circuito de
acontecimentos sem data e sem história. Mas
Bernardo teve tempo para o localizar: "São os
novos feudais".
272
Vinham, sem se demorarem, da província. O seu
temperamento resoluto, sem mesquinhez, feito duma
memória de reinado local, não consente que lhes
façam resistência, o que na política é uma
dificuldade maior. Os feudais não chegam ao poder
pela falta de paciência com os parceiros da
capital, para com as suas manhas, palavras
desditas e retomadas, alianças, semi-alianças e
camaradagem de Assembleia e de pose para a
fotografia. O riso com que se alivia a tensão das
preocupações é partilhado com os novos feudais.
Eles não frequentam cartomantes, não se fazem
manejar, depilar e arredondar a barba, ou pintar o
cabelo. São homens inteiros, aliados das suas
mulheres que os gratificam com filhos belos e que
na moldura duma porta parecem retratos de si
mesmos. Odeiam a política, odeiam a globalização,
os fins-de-semana, a imitação da riqueza, as unhas
tratadas e os banhos de imersão. Bernardo gostaria
de os frequentar e de ser recebido nas suas
herdades vigiadas por guarda-costas e câmaras
fotográficas. E de pretender as suas jovens que
ele não saberia como tratar, porque são fogosas
sem ser levianas e se destinam a criar uma família
igual à sua. Tradicional na intimidade e cínica
com os estranhos.
João, o irmão mais novo, saiu-lhe melhor com os
novos feudais. Começou por cultivar os mais
velhos, falando pouco e sorrindo sobriamente com
as suas piadas, a sua informação, a sua ideia de
eficácia. Tornou-se um desses hóspedes bem
recebidos a quem não se fazem perguntas porque não
estão ali senão para ilustrar os belos dias em que
se acentua o valor dalguma coisa como um convidado
especial; este pode ser um ás do futebol, um ex-
presidente americano, um músico de renome mas
ligeiramente ultrapassado. É preciso cuidado com
as novidades, os infiltrados que depois resultam
serem caçadores de escândalos ou sedutores das
raparigas da casa.
273
João comportou-se, como os feudais gostavam de
dizer: como um senhor. Usava jeans com paletó
preto, sabia comer marisco com as mãos e bebia sem
se embriagar. Até que teve a sua recompensa, a de
casar com uma prima dos novos feudais. O que
Bernardo achou um sucesso.
A verdade é que os novos feudais estavam a
apoderar-se de regiões até aí proibitivas, mas que
se mostravam preparadas para os receber. Os media,
as revistas de lazer e laudatórias do grande
empresário; e toda uma fileira da direita liberal,
enfim verdadeiramente segura de que a hora tinha
chegado. Acabara o tempo em que tentavam convencer
que tinham na manga um projecto político. O poder
estava finalmente ao seu alcance, e foi isso que
Bernardo percebeu naquela tarde chuvosa no Chiado,
quando, como que vaporizado no cinzento da tarde,
o carro cinzento parou e dele saiu um feudal,
firme, eficiente, fazendo parar o trânsito como se
trouxesse uma ordem policial para o fazer. O
trânsito parou realmente e Bernardo, estupefacto,
disse:
- São os novos feudais. João tinha razão: o
honesto centro reclamado pela democracia.
João já estava em Londres a provar o fato de
casamento e, no quarto de hotel que dava para
Kesington Park, pensou que finalmente se livrava
do pai marinheiro, dos medíocres amigos que tinham
uma coluna nos jornais e da comida dos
restaurantes. Havia um segredo que os feudais não
conseguiram atingir: João detestava coentros. Era
o seu ponto fraco e pedia a Deus que nunca fosse
percebido pela gente perfeita e salutar com quem
se ia aliar.

CAPÍTULO VIII
JUDITE

Ele não podia cruzar o vestíbulo ou, digamos


antes, a antecâmara do salão destinado às festas e
concertos privados, sem sentir uma picada no
coração. A Ronda esperava-o, e, com ela, Saskia
esperava-o, deitando-lhe um vivo olhar de
esperteza e de convite. Enquanto todo o mundo se
voltava na direcção que seria a da formação do
cortejo; e cada um estava ocupado com o seu ensaio
e o seu papel no desfile, ela não. Era
completamente solta na multidão, atravessava-a com
o intuito deliberado de atingir o outro lado do
quadro. "Como Judite" - pensou resolutamente
Martinho.
Judite era a Saskia da Ronda da Noite. Não
pertencia ali, não era uma figura adequada e via-
se logo que vinha doutra paisagem, doutra
sociedade. Era uma variante da realidade, um
pseudónimo.
"Quanta volúpia há em saborear a burla sem se ser
burlado, é coisa que só o erotista entende."
Kierkegaard disse isto tão bem que só admira ter
um espírito o bastante feminino para o dizer.
Saskia é uma erotista que discorre ao burlar-se de
tudo. Ela quer ser seduzida, mas antes disso
seduz; a estratégia está na burla de que se
reveste, sendo a burla um feitiço, como a pequena
Saskia demonstra, com os seus efeitos de magia e a
infantil maneira de passar sem mancha entre a
multidão.
276
Martinho pensava: que tem a ver a pequena Saskia
com uma mulher como Judite? Primeiro, quando ela
chegou à Casa do Cão, alguns anos atrás, trazia
vestido um casaquinho vermelho-cereja, com botões
pretos, o que causava uma impressão de penúria.
Sobretudo, não trazendo luto pela mãe, aquilo
parecia uma inconveniência. Não era assim tão
pobre mas, provocando a comiseração, acharam (as
freiras do Patronato) que ela teria mais
facilidade em ser recebida por Maria Rosa. Era em
Maio, o jardim estava coberto de rosas, as
violetas e os narcisos tinham desaparecido. A
pequena Judite parou à porta da cozinha onde Elisa
estava a fritar ovos, operação delicada que ela
não confiava a ninguém.
- Entra e come alguma coisa - disse Elisa. Na
terra dela não se recebia ninguém sem aquela
espécie de saudação. Sempre havia alguma coisa que
pôr na mesa, pelo menos broa de milho e lascas de
bacalhau cru. A pequena Judite não pareceu
entusiasmada com a oferta. Bebeu um copo de água
com sofreguidão. Santo Deus, como era bonita!
Elisa retirou do lume a sertã e um ovo abriu-se
para derramar a gema no óleo a ferver. "Quem me
dera os dentes dela!" - pensou.
Eram dentes grandes e sólidos que tinham parte na
sedução da mulher. Doze anos e ela era uma mulher
feita, mais alta do que mediana, uns olhos que
pareciam negros mas eram azuis. "Onde vai ela com
uns olhos assim?" - pensou outra vez Elisa. Tirou
o avental da cozinha para, instintivamente se
mostrar mais apresentável. Judite e uma tia dela
que estava grávida e era sardenta, entraram para a
sala de jantar. Um espelho ocupava toda a parede
do fundo e Judite não despregou os olhos dele.
Nunca se tinha visto de corpo inteiro.
Maria Rosa admirou-se de a ver tão mal vestida.
- Não tinham mais nada que lhe pôr?
277
A tia desculpou-se, mas via-se bem que tinham
tirado da tragédia o melhor proveito e repartido
anéis e brincos, um deles apanhado no chão onde se
dera o crime. Também levaram a roupa melhor e a
loiça dos dias de festa. Tudo com muitos suspiros
e lágrimas estancadas com um lenço sujo e
enrodilhado. Aparecia sempre um lenço muito
amassado quando aquelas mulhers choravam. Maria
Rosa despediu a tia. Não gostava de mulheres
grávidas ao pé dela, parecia-lhe alguma coisa de
obsceno e que as águas se iam romper ali e molhar
tudo. E os cães vinham lamber até serem enxotados.
Judite comeu por fim um almoço completo.
- É de muito alimento - disse Elisa.
- Na idade dela é assim.
Entendiam-se por meias palavras ou por meios
silêncios. Estavam de acordo quanto à
contrariedade daquela missão. Educar a filha dum
criminoso era já por si uma tarefa ingrata, tanto
mais que, com doze anos, não se é propriamente uma
criança. Elisa teve um impulso de a tomar como sua
protegida, mas Maria Rosa antecipou-se: - Leva-a
lá para cima e deixa-a descansar.
- Lá para cima, para onde?
A casa era como a dum caracol, escada inclusa, e o
andar principal consistia no grande quarto de
casal, outro pequeno, que era o de Martinho, e o
chamado toucador, todo branco, ao lado do quarto
de banho. Um quarto de banho de mulher mantida,
sempre cheiroso de talco fino, de sabões ingleses
e com uma banheira onde cabia um cavalo; própria
para festas aquáticas a dois, via-se logo. No
andar de cima ficavam as camas das criadas e
portas que fechavam mal. Era quente e mal acabado.
Naturalmente a casa não fora feita para pessoal
interno e Elisa, tanto ela como a criada de
quartos, queixavam-se
278
constantemente. Viam das janelas amansardadas o
Torreão Vermelho.
- Aquilo sim, que é uma casa! Tem retretes em todo
os andares e dispensas com fumeiro pendurado -
disse Elisa.
- Como sabes essas coisas? -Já lá entrei.
- És uma bisbilhoteira.
E, sim, era, e com muita honra. O seu rosto liso e
maduro inchou de orgulho, porque tudo o que ela
fazia lhe dava importância. Tinha o direito de
conhecer a vida de toda a gente, de a comentar e
até alterar segundo o que ela chamava "o seu ponto
de vista". -Tens um ponto de vista muito torto -
disse Maria Rosa. Mas como toda a gente também
tinha, aquilo não oferecia motivo para discussão.
Cada uma ia para seu lado, uma dando ordens
contraditórias, outra cumprindo-as sem vontade,
mas entendidas nos gostos e nos pormenores duma
coisa em que uma é mestra e a outra apenas
espelho. A moda está para a amizade entre mulheres
como o perigo para a lealdade entre os homens. Sem
Elisa, Maria Rosa não teria tão bons resultados
como mulher de sociedade, isto porque à mulher
elegante e bem nascida e assim por diante, falta
sempre a sua imagem real de que ela não pode
desfazer-se; sem o que o prazer sofreria muito com
isso.
Ao belo está pegado o feio; à inteligência, a
obtusa visão das coisas que faz parte do belo
enquanto o consentimos como auxiliar das trevas. O
coração das trevas, sempre à espera e pronto a
devorar, consumir e babar-se de desejo pelo mundo.
Judite, por mais laços e fitas da cabeça aos pés,
não ia desaparecer como foi vista pela primeira
vez na casa à beira da estrada. Uma casa de
feitor, nua por dentro e por fora, com duas camas
de ferro onde os percevejos se recolhiam, nas
juntas,
279
para sair à noite, ávidos, vampiros do sangue
morno que os ia inchar até ser difícil voltarem
aos esconderijos.
- É preciso queimar estes insurrectos - disse a
Estrelinha. E o pai trazia o maçarico e acendia-o
como se fosse assaltar a cova dum dragão, ele
próprio armado como S.Jorge com o fogo e um casco
para se prevenir. Isto fazia muita impressão a
Judite, que tinha três anos. Era preciso tanto
para matar? E as pequenas bestas fugiam, logo
abrasadas; Judite ia mexer-lhes com uma palha de
sorver o seu leite achocolatado. Sentia orgulho
por ser o pai vencedor daquela batalha; e
Estrelinha Sopa-de-Massa interrompia o seu prazer,
esfregando a cama com aguarrás. A casa nunca
cheirava bem. Era a sardinha assada, a couves que
iam ganhando um sabor choco, do almoço para o
jantar. Não eram muito pobres, o pai chegou mesmo
a comprar uma carrinha para serviço e trazia nelas
as compras do supermercado. Às vezes havia uma
surpresa entre as compras: um docinho, um cromo.
Judite trepava-lhe pelas pernas e não o largava.
- Esta rapariga é como uma videira, agarra-se e
não larga.
- É doida - disse Estrelinha, arrumando as
compras. Tinha uma figura soberba, alta e bem
quebrada na cintura. Às vezes, uma nódoa de sangue
estampava-se na saia; ela ria-se, indiferente, se
o notavam. Não era limpa, não se importava em
parecer bem; sabia talvez que aquilo a fazia
desejada.
Tudo mudou quando Judite tinha oito anos e
começaram as grandes brigas em casa. Era como as
grandes caçadas. O pai saía de noite, voltava
tarde, Estrelinha esperava-o acordada. Ou fingia
dormir, imóvel, com o coração trespassado por
setas e punhais, qual deles o mais afiado. Uma
mulher com ciúmes, que finge dormir na cama
desfeita, os travesseiros escurecidos pelo pó e o
suor do trabalho, era uma coisa
280
assustadora; e doce, porque, nos olhos muito
abertos e secos de febre, ela carregava um amor
extraordinário.
O pai voltava, não se ouvia senão ele a descalçar-
se e depois nada. Ia fumar para a varanda das
traseiras, que tinha ninhos velhos de andorinhas
pegados no muro, em cima. Porque não se ia logo
deitar? Judite sustinha a respiração e, como a
irmã dormia, de boca aberta e ressonando
brandamente, ela abanava-a para que ela mudasse de
posição e se calasse. Não queria perder nada das
grandes caçadas.
Primeiro era o rosnar da mãe, tentando parecer
calma, oferecendo-se para fazer café. Mas depressa
o tom dela subia, punha-se a gritar, a vociferar,
como uma fera descoberta no seu covil. Chorava e
depois punha-se a rasgar, a quebrar, amotinada
contra os objectos que eram recordações. Uma vez
que reduziu a pedaços a fotografia do casamento, o
homem bateu-lhe. Com as costas da mão, bateu-lhe.
Talvez fosse um insulto mais provocador, porque
Estrelinha ganhou forças para maior alarido. Dizia
pragas horríveis, queria para ele as doenças mais
fatais; queria-o desfigurado, trôpego, impotente e
velho a arrastar-se como um cão atropelado.
Judite, sentada na cama, ouvia com atenção.
Acontecia que o pai voltava a sair e ia dormir
para a casa dos lagares, morto de fadiga, de
desespero, não querendo mais do que fechar os
olhos e cair num bom sono como se estivesse num
colchão de penas. Estava saciado e feliz com a
amiga, que recordava com gratidão. A gratidão
havia de o levar para ela, um orgulho macho seria
para sempre a sua virtude, mais do que a
fidelidade e o amor do casamento.
Talvez Judite percebesse qualquer coisa. Um dia,
quando o pai saiu, a tropeçar, ela foi levar-lhe
um casaco velho; mas como o visse encolhido, a dar
voltas sobre ele mesmo, duma maneira automática,
como a expulsar um sofrimento imenso,
281
retirou-se. Nunca mais pôde esquecer a figura do
pai, à luz da lâmpada do armazém, que iluminava
pouco até porque estava coberta de sujidade. Era
como uma dança primitiva, destinada a achar alívio
numa grande aflição. O coração de Judite como que
parou. Pareceu-lhe que o cabelo do pai estava
branco, mesmo branco.
Passou esse tempo de desespero, de paixões
cruzadas, com uma loucura qualquer que as crianças
partilhavam. Se a mãe as punha fora de casa,
voltavam, sem fazer barulho, descalçando-se na
varanda e fingindo entreter-se com jogos, se eram
surpreendidas. Fugiam da escola para ir a casa,
cuja chave estava na porta e a mãe desaparecida.
Esperavam. Estrelinha nem as via, metida com os
seus delírios, as suspeitas, a morte no coração.
Bebia; o marido encontrava-a suja, estendida na
cama, sem dar acordo.
- Que fiz eu para este castigo?
- Não me queres. Queres a todas, todas te servem,
grande cão.
- Está bem, tu é que sabes.
- Vejo-te com elas, com as mãos nas pernas delas.
- Olha as pequenas, que são inocentes.
- São mulheres e as mulheres não são inocentes.
Sabem mais do que tu e eu. - Ela ria-se, fazendo
ninho na cama, chamando-o, os olhos marejados de
desejo, sem ver nada senão o homem que lhe fugia.
Ela achava que ele a culpava de alguma coisa, de
não lhe ter dado um filho macho. Quando ia para o
hospital, com a grande barriga que abria as
costuras da bata, ele dizia-lhe:
- Vê lá se me trazes mais loiça rachada.
Queria um rapaz, mas gostava das filhas, encantado
de as ver bonitas e a crescer bem. Estrelinha
Sopa-de-Massa sentia no peito um amor que lhe
fazia a voz estrangulada. Teria
282
amado outro homem como aquele? Achava-o bonito,
desde o primeiro olhar que o achara bonito,
destinado a ser dela. Um dia que encontrou um
vestido largo meio desmanchado, disse:
- É de quando eu estava de barriga...
Já se dizia "estar de bebé", mas ela não fazia
caso dessas merdices, como ela dizia. Para ela um
filho era a barriga crescida, a roupinha que ia
minguando, o primeiro riso, o primeiro dente. Os
sustos, os gritos de aviso, as sapatadas de cólera
breve e o ensino no carregar do sobrolho e no
fingir desamor. "Parir é dor, criar é amor." Todos
entendiam e, pondo a roupa ao sol, as vizinhas
contavam coisas em que eram parceiras, coisas de
mães que se receiam sem que o saibam.
A primeira comunhão: era aos sete anos, para
reforçar os laços da comunidade católica. Era
apenas um dia extra, melhorado, em que as
comungantes se pareciam todas umas com as outras.
Depois é que era vê-las crescer, ganhar formas,
tomar ares de segredos, olhar com desprezo para os
rapazes, fazer recados misteriosos à mãe.
- Que levas aí?
- Eu? Nada.
Não passava duma receita para a farmácia ou
dinheiro miúdo para comprar uma fatia de bola de
carne. Mas Judite fazia-se muda, não dava a
entender senão que tinha muito que contar, se
quisesse. - Se soubesses o que eu sei!
- Que é que tu sabes?
- Não posso contar. -Judite continuou a andar,
orgulhosa do seu segredo. Doía-lhe a barriga, às
vezes pensava que ia cair, apeteciam-lhe coisas
estranhas: beber pelo fundo dum copo, misturar
leite com fruta, ir atrás para dar outra volta a
uma chave, de modo a que ela fique horizontal ao
soalho do quarto. Tudo isso eram sinais,
exigências, sem as quais 283
não sossegava, não dormia, ficava com a sensação
de ter cometido uma falta e de que seria punida
por isso.
Comunhão era a solene. Com um envolvimento sensual
do ritual, com o primeiro vestido sacerdotal em
que se desposa a noção da virtude e da honra
investida. Tudo é claro, simples, inteligente, a
começar pelos atavios, desde os pés às orelhas,
onde algumas recebem as pérolas da apresentação
laica, num baile. Os homens gemiam perante as
despesas; e Maria Rosa mandou chamar Estrelinha
para lhe oferecer por um dia o vestido que Paula
usara. Estrelinha mostrou-se agradecida, mas não
aceitou.
- Espera mais um ano. O pai já disse: um ano e as
coisas vão-se compor.
- Um ano e Judite cresce mais e fica acima da
cabeça das outras todas. Até aos vinte e cinco não
pára de crescer; é dessas, que eu sei. Queres
levar o vestido, ou não? Não sabes o que perdes,
está novinho em folha. Conservei-o em papel de
seda, nem uma mancha.
- O vestido e a touca, se fizer favor.
Maria Rosa pensou que ela nem sequer avaliava o
preço daquele bonito modelo, mais de noiva do que
de comungante. A única coisa que fazia a diferença
era a touca de organdi com fitas que recolhia os
cabelos, como a duma religiosa. Mas Judite não
quis a touca, e sim um véu como o das
companheiras, e luvas de algodão. O pai olhou para
ela, de lado, sem querer dar-lhe atenção.
- A ver se se calam com isso.
- Não está bem arranjada? O terço é de prata.
- A ver se te calas.
Um ano depois, Judite tinha crescido mais, e o
vestido já não lhe poderia servir. Quando se casou
com Martinho encontrou-o numa caixa e teve a mesma
impressão de pertencer
284
à pobreza cujo desprezo não podia ser compensado,
por mais méritos que ela tivesse. Martinho
acariciou-lhe o rosto como se faz a uma criança
amada. Mas uma criança tem esse atributo da
pobreza que a faz alvo de alguma coisa de
grosseiro, como se jamais pudesse ser senão
vinculada a ele. Era por isso que as mulheres
pobres eram facilmente escolhidas e até mais
queridas no casamento: porque o desprezo as punha
ao alcance do desejo, melhor do que se fossem
respeitáveis pela fortuna.
Logo depois do drama, que comoveu toda a
província, as crianças foram entregues a uma
espécie de orfanato para serem educadas até idade
de maior discernimento. A mais nova foi
encaminhada para Branca, para casa de família
chegada. Judite, não. Era uma rapariga alta e com
aqueles olhos violeta que faziam prever coisas
pueris, tão do desejo em que elas adormecem. Maria
Rosa mandou-a trazer a casa e ela ficou oito dias;
depois mais oito e assim se adaptou sem parecer
interessar-se verdadeiramente com o que pudesse
acontecer-lhe. Maria Rosa tratava-a como uma
boneca, vestia-a a seu gosto e, por fim, tinha
Judite vinte anos, disse a Martinho que casasse
com ela. Aí, deu-se o diálogo que já relatei
noutro lugar.
Se o entusiasmo é o recurso da melancolia, Judite
até se prestou a uma lua-de-mel que foi o que
devia ser: uma iniciação à compatibilidade da
razão. Assim, tinham que criar uma família e
ensiná-la a ficarem juntos e juntos morrerem. Mas
não vieram crianças desse encontro, talvez porque
não há um decreto especial para a fecundidade.
É preciso dizer que Maria Rosa teve um mau
relacionamento com a maternidade. Sozinha em
campo, Paula deu em ser uma inimiga de todas as
horas. Ridicularizava-a pela força do ciúme que se
desenvolveu nela como uma infecção. Mesmo
285
depois de já não ter idade para aquelas pequenas
perfídias em que se pratica o mal para estar a par
dos golpes a retribuir durante a vida, Paula ainda
não perdia a ocasião de humilhar a mãe, de a
ofender, se possível, e, sobretudo, de a deixar
insegura e "esvaída". Esvaída em sangue era o que
seria adequado dizer; porque o duelo de duas
pessoas que se amam é como um talhe duma espada
destinado a fazer jorrar o sangue.
O primeiro casamento de Paula (o marido era coxo e
arrastava-se dificilmente, preferindo estar
sentado a mexer-se, pela fraca figura que fazia)
destinou-se a magoar Maria Rosa. Sobretudo, a
hipótese de o fazer partilhar a alegria da beleza,
estava excluída. Ele morreu prematuramente, sendo
o único filho Martinho. Não havia em casa muitos
retratos do pai, excepto do tempo em que ele fora
estudante em Coimbra; mostrava-o pálido,
embrulhado na capa como se fosse uma mortalha, e o
sorriso não bastava para transmitir confiança. Ao
lado de Paula, bonita e cheia de força, com o
gosto pela ginástica desportiva, aquilo parecia o
que era realmente: uma partida indecente.
Como ele se formou só três anos depois do
casamento, viveram todos na mesma casa, quando era
época de férias, o bastante para se odiarem
cordialmente, como se diz. Quando o pai morreu,
dum A.V.C., Paula desapareceu por uma temporada e
foi viajar. Maria Rosa desconfiou de que ela
estivesse grávida outra vez e que quisesse abortar
em paz; era uma rapariga muito decidida e com
pouco juízo, razão por que lhe fez bem o segundo
casamento com um marinheiro que foi seu instrutor
e seu conselheiro em coisas de heranças, que foram
tumultuosas quando o pai Nabasco morreu. O
herdeiro mais favorecido era Martinho. Herdava os
solares em ruínas, e Maria Rosa todo o dinheiro
que pôde encontrar debaixo dos colchões. Porque o
Nabasco escondia as notas nos lugares
286
mais incríveis, dentro dos livros que ninguém lia,
como as Biografias de Plutarco, ou como se chamam.
Era um homem que fazia da imprudência uma forma de
justiça. "Quem cá ficar que se arranje", costumava
dizer. Era um vicioso ponderado que conseguia
parecer de bem com Deus e com o Diabo. Para ele
não havia mulher honesta, bastava o homem querer.
Ainda chegou a conhecer Judite, mas não lhe
prestou atenção porque estava diabético e só
pensava em comer. É provável que com mais
oportunidades ele a descobrisse para um prazer que
concede algum limite à morte. Mas a casa era um
quartel de Inverno, toda a gente se cruzava lá
dentro e havia vigias em todas as portas. Como
encontrar Judite sozinha, disponível, com os
joelhos descobertos, sentada na beira da cama?
Enfiava contas de cores para fazer anéis e não
parecia afectada pela morte da mãe, que lhe
deixara uma espécie de vazio que ela não sabia
preencher. Talvez fosse o momento ideal para a
deitar para trás na cama e a cobrir de beijos,
levantando-lhe as saias com um desejo que ela não
podia reprimir, e que ela recebia como uma
consolação sem conflito algum. Mas era impossível.
A cara, com um sinal carnudo no nariz, aparecia à
porta do quarto. Era a da velha cozinheira, já há
muito retirada das suas obrigações e que se
arvorava em carrasco de toda a gente, encontrando
nisso a sua forma de utilidade e até de promoção.
Com ela não havia armário trancado, sótão
despejado de crianças que iam para lá brincar aos
doentes e doutores, maneiras de descobrir o sexo e
os seus elementos próximos, o prazer e a angústia
do grande segredo. Ela, a cozinheira velha, ainda
que enferma do coração, aparecia por todo o lado,
tornando tudo uma interrompida manobra, abortando
o desejo e caindo de surpresa sobre as
brincadeiras de Paula e fazendo-as parecer o que
realmente eram, insídias do corpo que exigia o seu
preço.
287
- Não sejas tão desconfiada - disse Maria Rosa,
olhando à distância o polido das unhas. - São
crianças.
- Ninguém sabe de que coisas imundas são capazes
as crianças. Não sei como se demora tanto a
crescer e a ter juízo.
Maria Rosa chamava à velha cozinheira a Czarina.
Quando se casou com o Nabasco e entrou naquela
casa que parecia um bivaque abandonado, com a
Ronda a ocupar uma parede e a tapar as manchas de
humidade, lá estava a Czarina, com o ventre duro
como pedra e os olhos como pevides de melancia.
Tinha assistido aos casamentos e aos partos das
mulheres, vira morrer muita gente. - Nada de mais.
Parecem escapar de qualquer coisa e aproveitam a
ocasião de estarmos mais distraídos: ou a almoçar,
ou a mandar as vacas para a cobrição - dizia. O
Nabasco morreu antes dela, o que pareceu causar-
lhe confusão e desalinho nas ideias. Mas com a
morte do Nabasco acabaram-se as vigílias, as
entradas de surpresa nos momentos em que até Paula
estava em perigo. Maria Rosa sabia que o seu leito
era habitado por Paula aos quinze anos, tão bela
que a luz que ela emitia iluminava a casa toda. O
pai coçava-lhe as costas, estando Paula debruçada
sobre a mesa da braseira onde se jogava, depois de
jantar. Os dedos dele eram hábeis para procurar
pequenas saliências na pele, e Paula sentia gozo
naquele catar, arranhar, desprender de crostas
mortas.
- Anda, Paula. São horas de deitar. - A Czarina
aparecia com o grosso avental de cozinha que tinha
um remendo quadrado como um brasão duma bandeira.
- Tão cedo!
O Nabasco calava-se, suspenso, alerta, sem mostras
de ser apanhado na sua pesquisa que lhe trazia à
garganta um soluço de prazer. Esperava qualquer
coisa, a morte da Czarina talvez, tanto mais que
ela sofria do coração e era preciso
288
aplicar-lhe ventosas para que respirasse nas suas
horas de crise. Ventosas, estricnina, receitas que
soavam a mistérios de alquimistas. Mas Paula casou
antes de fazer dezoito anos e saiu de casa no
Inverno, coberta de peles, e até os sapatinhos
suíços eram forrados de pele de rato ou coisa
parecida.
O Nabasco ficou desapontado; passou a ir à cidade
mais demoradamente, e Maria Rosa sofreu o abandono
da sua carne, que era ainda exigente e que se
julgava apetecível.
Não se podia saber se avinda de Judite não
correspondia a uma forma de criar elos entre os
parceiros do amor. A Czarina recebeu-a com
indiferença aparente, mas dedicou ao caso uma
atenção cautelosa. Sabia que o seu cansado coração
já não podia acompanhar a grande ronda que era
necessária naquelas situações. Talvez fosse ela a
única pessoa capaz de descobrir quem era a criança
metida na Ronda como por acaso, munida de poderes
mortais e tão feliz no meio dos homens que se
preparavam para obedecer a uma ordem. Era o desejo
na sua forma irresistível e compulsiva, capaz de
provocar as desordens mais alucinantes, como serão
capazes os bons rapazes da Ronda da Noite. Um
dispara o seu arcabuz, outro faz rufar o seu
tambor. Tudo está preparado para uma ligeira carga
enfeitiçada de sentidos fáceis, mas, de facto,
cheia de enigmas, de horrores, de maldosas faces,
como a do pequeno feiticeiro que acompanha a
alegre Saskia, nessa altura já arrastada para o
seu coval.
A Czarina bem merecia figurar na Ronda, com a sua
cara sardónica e o olho espreitador. Com a entrada
de Judite na casa, que já era outra e depois foi o
Torreão Vermelho, as coisas mudaram de rumo. A
Czarina era praticamente uma moribunda, não podia
percorrer os corredores com as suas chinelas de
pano, sem dar sinal da sua presença nem ao cão de
289
Maria Rosa que dormia no seu cesto, ressonando ou,
nos sonhos, perseguindo os gatos.
Como aconteceu o Nabasco morrer tão
inesperadamente, com o copo na mão, na sua cadeira
de bunho, não foi sequer muito comentado. Ninguém
se lembrou de tirar-lhe o copo da mão senão a
própria Czarina. E quando Horácio Assis, o médico,
chegou, já o Nabasco estava estendido na cama do
casal para ser observado. Os ramos da palmeira, no
jardim, defronte da varanda, moviam-se e a chuva
começava a cair. A presença dum morto não impedia
que a casa fosse achada confortável, um verdadeiro
ninho de amores à margem do sistema conjugal. A
pele de leão com a bocarra aberta, parecia
acolhedora. Mas Maria Rosa recusou-se a continuar
na Casa do Cão por mais tempo, motivo por que
voltou ao solar da Ronda, onde Martinho passava
muito tempo.
- É tempo de encontrarmos lugar para ele - disse
Martinho. Falava do quadro, que parecia ter
crescido na parede da sala de jantar. De facto,
era uma tela enorme, coberta por uma camada de
sujidade que lhe dava a cor nocturna e patética.
De facto, fora pintado para a luz do dia, e nisso
consistia a sua força orientada para um acto
diurno e aliciante. Depois de muitos anos e da
mudança para o Torreão Vermelho, a Ronda
encontrara por fim o seu lugar, se não certo, pelo
menos adequado às suas dimensões. O salão nobre do
Torreão Vermelho, com todas as incongruências de
estilo que o cutileiro tinha adoptado, arte-nova e
restos duma pesada carga político-literária do
século XIX (o famoso retrato de Vitor Hugo estava
nos corredores e invadia até os quartos de
dormir), abrigou a Ronda. Depois ela ainda mudou
para a antecâmara, ao cimo das escadas, onde podia
ser vista por todos os visitantes sem que
significasse uma desconsideração de qualquer
género da família Nabasco.
290
É certo que muitas pessoas, até as mais íntimas da
casa, nunca tinham visto a Ronda da Noite. Por
exemplo, Patrícia Xavier nunca lhe tinha posto a
vista em cima, e morreu sem ter conhecido a tela
que, de resto, era tida por falsa. Porém, Patrícia
sempre se mostrou solidária com a opinião de que a
Ronda merecia ser investigada. Um antigo Nabasco
fora embaixador na Rússia e recebia presentes
valiosos de que ninguém fez caso quando ele se
retirou e se tornou uma espécie de boiardo da
região, falando apenas francês com o seu barbeiro
que era também o seu sangrador. A tigela das
sangrias ainda estava no lavatório de mármore rosa
e, durante muito tempo, ninguém sabia para o que
servia.
A Ronda excedia muito um presente entre parceiros
da diplomacia. Não era possível datar a sua
chegada a Portugal, mas tinha-se adiantado a
hipótese de que teria feito parte da espécie de
saque que a duquesa de Mântua, vice-rainha
deposta, levara consigo na altura da Restauração.
Havia muito de complô naquela história da
emancipação de Castela, e a duquesa não foi
impedida de carregar os tesouros que lhe apeteceu
levar e ganhar as suas terras em perfeita
segurança. A Ronda seria parte desse tesouro, não
como próprio, mas sendo ela a guardiã de muitos
valores que pretendia repartir com a princesa de
Carignan, sua cunhada, tão altaneira e
insuportável como ela. Atribuíram ao feitio da
duquesa, inepta e sem diplomacia, os incidentes de
Lisboa. Cinco anos antes da sublevação de
Portugal, já a duquesa de Mântua era julgada pelos
fidalgos portugueses como criatura desrespeitosa e
impossível de aturar.
A ser verdade que a Ronda viajava na bagagem da
duquesa, sempre lamurienta e queixosa do pouco
dinheiro que recebia da corte, seria ou não a
Ronda, original? Em 1642 foi quando Rembrandt
pintou o seu quadro. Teria pintado outro antes
291
dessa data? Em 1643, a Mântua estava em Madrid, a
pedido da rainha, e a intriga das damas ia selar a
queda de Olivares.
Um dos erros de Filipe III teria sido o rompimento
da trégua com os Holandeses. E se, antes disso,
perante os auspiciosos tratados de matrimónio
entre a infanta Maria e o príncipe de Gales, o
quadro fosse encomendado? Ele transpira uma
graciosa aura de preparativos para algo festivo
que se vai dar. Não é uma ronda, é uma festa.
Chegado a este ponto, Martinho perdeu
completamente contacto com o mundo real e
particularmente o mundo de Judite que se anunciava
tempestuoso. A ideia de a Ronda poder ser outra
coisa muito diferente da companhia do capitão
Cocq, transtornou-o a ponto de lhe provocar um
estado febril e dores musculares. O doutor Horácio
receitou-lhe conforme os seus conhecimentos,
inclinando-se para uma febre reumática, o que o
comprometeu com medicamentos que se revelaram
ineficazes. Dum lado, Maria Rosa com o seu
esquadrão de médicos em franco galope; doutro
lado, a Ronda tornada uma obsessão cada vez mais
ansiosa, parecendo ter um destino que subitamente
pode interromper a respiração do seu estudioso.
Martinho emagreceu até se lhe conhecerem os
malares; tinha uma veia na fonte que se tornara
saliente e que lhe doía.
No dia em que fez uma descoberta que o tornou de
repente mais febril, Judite veio pedir para lhe
falar. Achou-o doente, mas não quis acentuar isso.
Conservara-se direita diante da mesa de trabalho
do marido e os cabelos loiros caíam em massa pelos
ombros.
- Tenho que lhe dizer uma coisa importante -
começou ela. Martinho arredou alguns papéis como
se lhe fizesse lugar, e esperou. - É que o meu pai
sai da prisão daqui a pouco e eu vou viver com
ele.
292
- Não tinha apanhado a pena máxima? Desculpe...
Então está em liberdade não tarda... - Calou-se,
calmo, sem perder de vista os livros abertos e as
notas que tinha tomado. - Acha uma decisão certa?
- Não sei.
- Não sabe e faz as malas como se fosse para as
termas? Não volta mais?
Ele teve a noção absolutamente segura de que
Judite matara a Estrelinha Sopa-de-Massa. Tudo era
duma simplicidade assustadora, mas ele não podia
desviar-se da pequena vivandeira da Ronda da Noite
e da descoberta extraordinária que tinha feito:
que no retrato da mulher do conde-duque de
Olivares se via uma pistola pendurada à cinta por
uma fita de seda. Era um sinal de poder, um poder
doméstico e absoluto que Quevedo louvara em termos
encomiásticos? Inês de Zuniga, sobre o seu vasto
guarda-infante, ou seja, as anquinhas, mostra
claramente a pistola ao alcance da mão. De
qualquer maneira, Martinho teve a ideia, a que não
pôde furtar-se nunca mais, de que a Ronda tivera
duas orientações: primeiro, era uma parada
festiva, duma anedota em que tudo mexe e se
destaca; depois, desaparecido o sentido da Ronda,
talvez o fim das tréguas com a Flandres, erro
reconhecido na história militar e diplomática
espanhola, a tela ficou abandonada. Quando o
riquíssimo capitão Frans Banning Cocq lhe pede que
pinte a sua companhia, Rembrandt não hesita: tira
da sombra do atelier a grande parada, que não
condiz de facto com o teor do tema que lhe foi
apresentado. Por isso foi mal recebido, suscitou
risos e escândalo. A sua glória será póstuma. O
que fez o pintor não foi inventar uma parada
alegre e quase carnavalesca, mas fazer o retrato
do senhor de Purmerland que está prestes a dar ao
jovem Vlaardingen ordem de marcha. Atrás deles
todos os outros mantêm o humor inicial,
293
inclusive a pequena Saskia mascarada e os
energúmenos envolvidos na festa, entre os quais
haveria outras personagens de fábula que dariam
sentido ao enigma da Ronda da Noite. O senhor de
Purmerland, e o seu lugar-tenente encobrem o que
poderia explicar aquele tumulto cheio de improviso
e alegria. São dois quadros: um folião e
desordenado, outro destinado a retratar homens que
não têm nada de improvisado nem de estranho à sua
classe.
Martinho olhou para Judite com uma espécie de
reconhecimento.
- Sente-se, não fique de pé. O seu pai é assim tão
importante?
- Devo-lhe muito - disse Judite, com voz fraca.
Era uma decisão tomada há muito, desde talvez em
que o ouvira uivar de dor, estando a ser
interrogado no armazém onde empoçava o vinho
escuro, como sangue. Ela julgou que era sangue,
quando o levaram.
- Não é sangue, não vês que não é?
Mas para ela aquilo estava assente e significava
um lugar de suplício, imerecido, injusto. Nessa
noite rebentou-lhe o primeiro óvulo no ventre e
ela ficou menstruada. Por muito que se lavasse o
sangue, em postas escuras, não parava. E Judite
achou que ia morrer, o que lhe deu uma certa
esperança, não sabia de quê, não sabia na verdade.
Martinho, ao acordar da surpresa que a mulher lhe
dera, sem parecer fazer mais do que dar a notícia
duma pequena alteração na rotina caseira,
perguntou a ele próprio o seguinte: seria que a
revelação repentina que tivera correspondia à
realidade? "Esta rapariga ficou doida na noite em
que mataram a mãe e está aqui como tal. Tenho que
ficar quieto e deixar que as coisas levem o seu
rumo." Maria Rosa chamou-o e disselhe:
294
- Judite sempre me saiu uma vadia! Não esperava
isto. Etu?
- Eu espero tudo de toda a gente. É como na Ronda,
se me faço entender. Todos preparam a entrada num
papel que pode nunca acontecer. São ligeiros e
felizes na expectativa, mas depois da ordem dada
pelo capitão, não se sabe como agiriam.
- Tu e a tua Ronda que está a tirar-te o juízo
todo! Olha, meu menino, segura Judite e não a
deixes tomar atitudes. As pessoas não foram feitas
para tomar atitudes, mas para resistirem a elas.
- Eu penso que Judite matou a mãe, a tal
Estrelinha Sopa-de-Massa e o pai foi condenado mas
estava inocente.
- E se fosse? Ela não tem nada que tomar uma
atitude e ir servi-lo como o escravo Jau ao
Camões. É tua mulher.
- Antes disso, já tinha doze anos de duradouras
lembranças. O cheiro do pai quando entrava e
despia o colete donde tirava os cigarros e a
navalha, não era para esquecer mais na vida. São
coisas imensas como o mar.
- Não a amas, é o que é.
- Amo-a mas não como coisa minha. Estou a vê-la
como a pequena feiticeira da Ronda, a escapulir-se
daquela barafunda. Nada a pode impedir. Eu não a
posso impedir. Rembrandt não a pôde impedir e
deixou ver como era bonito ela passar por detrás
do capitão Banning Cocq. Podia tê-lo pintado mais
para a esquerda e apagar a pequena criatura da
pistola e do frango à cinta. Mas não quis.
- Só dizes disparates. A Ronda deu-te a volta à
cabeça e não há remédio. - Mexeu-se tão
sacudidamente na cama, alisando a dobra do lençol
e fazendo voar as almofadas por cima dela, que o
cão no seu cesto levantou a cabeça e gemeu como se
receasse um castigo.
295
- Está a assustar o cão - disse Martinho. Não
perdia nunca o sentido das prioridades. De todas
as coisas que mais admirava no mundo, não eram os
gregos nem os egípcios, mas Emily Bronté, tão
apagada, tão desconhecida na manhã fria da sua
charneca. Ela, com a escudela dos cães na mão e os
animais a babujar com as beiças no caldo de
farinha e ossos. Depois ela sentou-se à lareira, e
morreu. Isto sim, é que é ter o sentido das
prioridades. O que nos é pedido segredado ao
ouvido, selado na fronte angélica dos homens.
Martinho disse:
- Não ouvi bem o que Judite estava para ali a
falar. Estava preso a outras coisas. A pistola no
cinto da duquesa de Olivares.
Maria Rosa desistiu de continuar a conversa.
Aquele neto, educado para ser primeiro entre
pares, revelava-se uma pessoa muito perto de ser
doida. Tinha ideias que mais condiziam com
adivinhações do que com qualquer outra coisa.
- Diz à Elisa que me traga o chá.
Elisa já tinha morrido e a Czarina também. Quem
andava pelo Torreão Vermelho, com um pequeno
transmissor no bolso, ou então um telemóvel sempre
cheio de mensagens eram meninas novas que cuidavam
da pele como a imperatriz Popeia. Temiam mais a
celulite do que a febre das aves.
Judite não partiu logo. Como as amantes de longa
duração, tinha acumulado roupas e objectos de
todos os feitios e de improvável utilidade. Como
tinham aparecido aqueles malões de cabina forrados
de cretone às flores, não se podia conjecturar.
Ocupavam os corredores e dia após dia enchiam-se
até às bordas de roupas e adereços, caixas grandes
e pequenas, todas elas com estojos de luvas e
jóias de pechisbeque com que Judite gastava
fortunas. Parecia a partida de Eva Braun de
Berghof, e não uma simples mudança de vida duma
296
burguesa sem importância, como Judite se
qualificava. Pela primeira vez Martinho
compreendia que ela o invejava, deixando na sombra
qualquer afecto que tivesse nascido nos anos de
casados. As mulheres não se dão bem com a
felicidade. Se Martinho a tivesse tratado mal, ela
não se tornaria tão vingativa e sedenta de
qualquer espécie de reparação. Judite não perdia a
ocasião de louvar o bom entendimento conjugal,
fazendo sobressair as virtudes do marido. Mas
seria ela sincera? Não preferia que ele a
desprezasse e a agredisse de qualquer maneira? Um
bom marido sabe que às vezes é propício a relações
saudáveis, de sexo e de tudo o mais, aplicar umas
pequenas punhaladas nas costas da paciente esposa.
Luís XIV ridicularizava as pretensões de nobreza
da sua "rainha" Maintenon; e decerto isso ajudava
a que se entendessem bem na cama, fazendo do amor
um cruzeiro de longa distância.
Mas Martinho, tão correcto, incapaz de humilhar
Judite em privado ou em público, não podia, por
isso mesmo, esperar gratidão dela. Ela punha um
certo gosto de espectáculo ao fazer carregar os
malões escadas abaixo (porque não cabiam no
pequeno ascensor de serviço) e olhava, desde o
varandim do patamar, como se estivesse na amurada
dum barco, e partisse para as índias Orientais, as
operações do carregamento das malas, fardos e uma
infinidade de caixas onde chocalhavam coisas
metálicas, pratas decerto de boudoir ou até
argolas de guardanapos e molduras de retratos.
Judite revelava-se uma mulher de negócios naquilo
de se apoderar de bens que praticamente não lhe
pertenciam.
- Meu Deus - disse Maria Rosa, estupefacta -, ela
levou o meu binóculo de teatro que estava num
saquinho de veludo lilás. Para que quer ela um
binóculo de teatro? Tu fizeste infeliz essa mulher
para que ela ficasse tão avarenta.
297
- Eu? - Martinho estava pouco concentrado na
partida de Judite. Tudo aquilo lhe passava por
cima da cabeça e já se habituara aos malões
abertos e àquele despejar de gavetas como se fosse
o esventrar dum corpo. Ficava para trás um velho
peignoir, o que provocava uma sensação de
desprazer quando mais tarde o descobria.
Entretanto estava todo envolvido com a Ronda,
tendo feito um dossier que, a avaliar pelo número
de páginas, era um verdadeiro roteiro de navegação
do famoso quadro. Não pôde ir além dum tal
Salmanazar Figueiroa, que esteve na Flandres em
data aproximada à celebridade de Rembrandt, e que
poderia ter trazido a Ronda para Portugal, de
maneira a ela cair no tesouro da duquesa de
Mântua. Sôfrega como ela era de honras e de
dinheiro, talvez aceitasse a Ronda como penhor dum
apreço que ela não assegurava devido ao feitio
orgulhoso e inapto. Nesse tempo, talvez a
companhia do capitão Banning Cocq não tivesse
tanto valor e fosse fácil negociá-la, sobretudo
depois do mau recebimento que teve ao ser exposta
ao público.
Tudo isto deixava Martinho Nabasco cada vez mais
perplexo e envolvido com o que considerava uma
tese de doutoramento, a possível duplicação da
Ronda ou o significado primitivo do desfile de
rua, sem a participação das personagens de
primeiro plano. Entretanto Judite ia arrumando a
sua bagagem, que se tornava cada vez mais
volumosa; era vista, sentada no chão, de pernas
cruzadas, como quando jogava o jogo das cinco
pedrinhas com as companheiras de escola, e assim
ia destribuindo retratos e cartas que queria ou
não levar com ela. Podia dizer-se que preparava
uma mudança como quando há uma morte em casa, e só
o cão de Maria Rosa se apercebia de quanto aquilo
era suspeito. Com esforço, saía do seu cesto para
ir fazer sentinela à porta do quarto e depois
voltava a
298
amodorrar, uma orelha pendente da cama dele e
definitivamente desinteressado do mundo. Sofria
duma grave doença do coração e estava proibido de
correr atrás dos gatos e de engordar, ambas as
coisas pesavam mais no seu estado tido por
desesperado.
Maria Rosa tinha dito que só se mantinha a viver
no Torreão Vermelho enquanto o seu cão mexesse a
cauda e a olhasse com os seus grandes olhos
castanhos. Era um spaniel cor de canela, que tinha
o nome aristocrático de Lemy de La Vallée. Ocupava
no coração da sua dona um lugar insubstituível.
Todos sabiam que uma vez morto Lemy de Ia Vallée,
Maria Rosa se mudava para um apartamento em frente
ao mar, e nessa altura Martinho tinha de decidir
levar a Ronda para onde ela coubesse, decerto
outra vez para o solar transmontano donde ela
viera. Era mais do que certo que Martinho não
abandonava o quadro nem a sua decifração.
- Cheguei até aqui, hei-de ir até ao fim - dizia.
O doutor Horácio Assis achava que ele estava
doente do juízo, ainda que admirasse as brilhantes
deduções de que Martinho era capaz. O caso da
pistola à cinta da pequena Saskia era explorado
com suma perspicácia e inteligência. Fora
descobrir que Inês de Zuniga, esposa do primeiro
ministro Olivares, fora pintada por Juan Carreno
de Miranda, bem no estilo de Velasquez e tinha à
cinta, pendente duma fita de seda, uma
"surpreendente" pistola dourada. Era um símbolo de
poder ou de pura afectação em contraste com a
juventude da retratada, no esmerado traje de corte
com delicados laços rosados. Rosa que também se vê
nas mangas e por entre as plumas do penteado.
Embora Inês de Zuniga, condessa de Monterrey, não
tivesse grandes encantos físicos, aos vinte anos,
com alguma deferência do pintor, podia ser
retratada como uma beldade, dando no entanto ao
seu olhar uma
299
expressão de inteligência furtiva. Martinho
apurara que Inês de Zuniga e Velasco participava
com o seu marido e parente, o conde-duque de
Olivares, de 2664 linhas de estirpes reais e 169
de santos. A razão da pistola à cinta resta
insolúvel, o que maravilhava Martinho, pondo-o na
perseguição de porfiadas e contínuas pistas.
Porquê a pequena Saskia, feita vivandeira ou o que
fosse, leva presa à cinta uma pistola e uma
galinha morta?
É possível que a entrada de Maria de Médicis em
Amesterdão (rainha-mãe em França) motivasse os
artistas para glorificarem esse acontecimento. Mas
Martinho pensava que o quadro de Rembrandt não
entrava no número dessas obras de circunstância.
Como outras, na sua vasta galeria de retratos e de
factos de celebração urbana, a Ronda da Noite fica
por relacionar com qualquer encomenda. Rembrandt
não pintava só profissionalmente. Uma parte dos
seus quadros são indecifráveis. Obedecem a um
temperamento agitado que se manifesta sobretudo na
década de 1630-1640.
Esta contínua busca em que, sem dar-se conta,
Martinho mergulhava cada vez mais, fazia com que
tudo o que se passava à sua volta tivesse pouco
relevo e merecesse pouco da sua atenção. Debateu
com Maria Rosa a partida de Judite e manteve-se
sempre numa linha que tocava a irresponsabilidade.
- Achas que ela acaba por pedir o divórcio? -
disse Maria Rosa, nesse dia enroupada e séria, o
que lhe dava um ar de doente.
- Divórcio? Não acredito. É um plano burguês que
não me assenta bem. Dou-lhe o que ela quiser para
viver com conforto, ela e o pai que, ao que
parece, bem o merece.
- Achas que Judite matou a mãe? Imagino como foi.
Com a tesoura de vindimar que a própria Estrelinha
trazia no bolso. Caiu e a Judite apanhou-a. Talvez
não soube o que fez.
300
- Talvez - disse Martinho, distraidamente. Media
com o olhar as dimensões do quarto da avó, uma
verdadeira cripta com janelas que pareciam vitrais
e que ela velara de musselina rosa-claro. Como nos
anos cinquenta do cinema americano, revelador da
vida dos ricos e das suas extravagâncias. Ele
estava a pensar que Rembrandt não podia pintar ali
a Ronda, como não a pintou na sua luxuosa casa;
terá utilizado um alpendre ou um pátio interior.
"Ele tinha o seu lado de doido, não tenho dúvida",
pensou Martinho.
Ouviu à entrada da casa o carro de Judite,
barulhento e rouco. Era um pequeno carro de sport,
amarelo, que ela conduzia com precauções; mas
nesse dia parecia querer demonstrar qualquer coisa
de mais desafiador. Martinho desceu para a
despedida. Os famosos malões de cabina tinham
desaparecido e o corredor do primeiro andar
apresentava o ar ministerial, com um sofá e dois
cadeirões, separados entre si, como se fossem
destinados a visitantes estranhos, de etnias
diferentes, por exemplo: um negro muçulmano e um
sikh de Benares.
Quase não reconheceu Judite. Nem um dos seus
caracóis loiros era visível, escondidos debaixo do
chapéu de abas de couro preto. Tinha um rosto mais
fino e os olhos azuis escuros não se distinguiam
por detrás dos grandes óculos de sol. Martinho
teve o pressentimento de que estava a despedir-se
duma desconhecida. Ela beijou-o repetidamente na
cara e fez notar que ele não se barbeara naquela
manhã.
- Não me parece com boa saúde - disse ela. Talvez
tivesse lágrimas na voz. Ele retribuiu-lhe os
beijos e ao abraçá-la, o chapéu dela caiu para
trás e os cabelos cortados rentes apareceram.
- Onde estão os seus caracóis? Parece que vai
tomar o véu nas carmelitas ou coisa parecida.
301
- Não vou tomar o véu, mas trata-se de professar,
é um pouco isso.
Martinho comoveu-se, de repente; apanhou o chapéu
do chão e entregou-lho, não sem antes sacudir um
pouco a aba. E disse, duma maneira absurda:
- E se fosse uma sátira? - Estava a pensar na
Ronda e nas infinitas avaliações feitas no sentido
de a explicar como alegoria ou como padrão de
festa. Como no quadro da autópsia dum criminoso,
havia um sentido oculto na composição da cena. Era
macabra no seu academismo mas, ao mesmo tempo,
tinha qualquer coisa de hilariante. O corpo
inchado podia de repente explodir e banhar os
doutores de fezes e líquidos infecciosos. Eles não
pareciam preocupados inteiramente com a lição do
professor Tulp, excepto para obedecer a uma
admiração pelo mestre que se pode dizer estar a
retalhar uma luva. É frequente na pintura de
Rembrandt uma nota satírica, possivelmente própria
do artesão que se vê preterido na hierarquia
social porque "trabalha com as próprias mãos".
Abrir e dissecar o cadáver dum criminoso é serviço
mais limpo do que o seu. Quando se casar escolhe
uma mulher que não tenha de corar pelo ofício do
marido. De resto, uma mulher rica. Não esqueçamos
que Rembrandt gosta do dinheiro e se faz pagar
regiamente. É um pintor cru, se não sanguinário, e
tem aquele dom que lhe atribuem de pintar o Cristo
como homem vulgar, descalço, quase sempre tímido e
que parece incorrupto pela sua própria inocência
quanto a uma missão. O que caracteriza Rembrandt é
a sua vontade de poder que o faz tão prodigioso
trabalhador, tão insistente nos retratos dele
próprio. Ele não quer pintar um Deus; o Cristo de
Emaús não passa dum pobre que se senta à mesa com
desconhecidos e que gostaria de não ter que se
revelar. Martinho achava-o maior do
302
que a própria obra e não podia senão fazer dela,
da obra, uma carta de identificação.
A partida de Judite não deixou um grande vazio.
Parecia que a esperavam a qualquer momento e
durante uma semana uma camisa de dormir dela
esteve sempre desdobrada na cama e os seus
chinelos prontos a serem calçados mal ela se
levantasse. Nem sempre os chinelos estavam de
biqueira virada para fora, como exigia o protocolo
da criada de dentro. No tempo de Maria Rosa, ela
era capaz de acordar uma criada às quatro da manhã
para lhe colocar os chinelos correctamente, a
biqueira virada para fora. Tempos esses que ela
não queria que voltassem. Tudo era mais difícil de
gerir e de ter em ordem. Agora ela só queria
meter-se num andar frente ao mar e não sair de lá
para nada. Lemy de la Vallée era um impedimento a
esse projecto; embora estivesse cada vez mais
obeso e efegante, não morria. Tornara-se
irascível, como quase todos os velhos, e mordia as
pessoas por pura antipatia. Até mordia Maria Rosa
de vez em quando, afastando-se em seguida para
retomar o seu lugar no cesto. Foi preciso pôr uma
cancela no cimo das escadas para que ele, ouvindo
no jardim o regougar dos gatos, não se
precipitasse com todo o seu peso, louco de cólera.
Lemy de la Vallée tinha recuperado a memória dos
seus antepassados, caçadores carniceiros. A
ociosidade fizera-lhe crescer o pêlo ao torná-lo
cão de companhia e todo ele era um sedoso manto
dourado que ia perdendo o brilho. Urinava em
qualquer parte e, enquanto o fazia, punha um olhar
de través que parecia desfrutar da sua impunidade.
- Devia abater-se esse cão - dizia Martinho. Não
sabia que era o mesmo se lhe dissessem a ele
mutilar a Ronda para que coubesse no seu quarto.
A sua investigação sobre a Ronda assumira foros de
paixão, ora idílica, ora atormentada. Estava
convencido de que
303
se tratava duma espécie de sátira dedicada à
visita de Maria de Médicis a Amesterdão. "A
banqueira", como lhe chamava a sua rival na cama
real, não podia deixar de render homenagem à
cidade provavelmente mais rica do mundo. Só ali
Rembrandt podia auferir um pagamento tão
exorbitante pelos seus retratos. Nunca se achava
respeitado e admirado como lhe era devido. E o
facto de Maria de Médicis o incluir na sua lista
de pintores que devia honrar, não fosse ela uma
florentina protectora das artes, não o satisfazia.
Sabe que a rainha lhe prefere Rubens e que este a
pinta em estilo de alegoria, cobrindo as paredes
de Versailles a ponto de a igualar às Junos e às
Ceres, duma maneira escandalosamente fútil em toda
a sua ridícula grandeza. O alegórico não é o
estilo de Rembrandt. Os seus retratos são íntimos,
surpreendem um gesto familiar, a entrega dum
bilhete, a explicação dum versículo a uma mulher-
criança, quando o que ela queria era ir à janela
ver passar os arcabuzeiros. Tudo nele é
vingativamente conforme a realidade. As carnes das
suas Susanas no banho não são apetecíveis. São
moles, de ventre muito parido, quase repelentes
sem os seus atavios. Mas outro dos enigmas que se
deparou a Martinho foi o rosto da pequena Saskia.
Estava pintado de maneira pouco anatómica, como a
cara da Maja desnuda, de Goya; o que fazia supor
que havia ali uma sobreposição (como de resto já
foi afirmado antes) e que Rembrandt não quis que o
modelo fosse reconhecido. Ainda que os seus
conhecimentos de anatomia fossem precários, como
se vê pela lição do doutor Tulp, só um olhar muito
penetrante podia encontrar qualquer anomalia na
cabeça da estranha figura de mulher-criança.
Deixou-lhe porém os símbolos que se querem
relacionar com os arcabuzeiros, como as garras
duma ave. E a pistola, perfeitamente indecifrável
se não a formos encontrar no retrato de dona Inês
de Zuñiga, mulher
304
do conde-duque de Olivares. Nesse caso, com a
tendência pelos símbolos exteriores dos espanhóis
da época, a pistola dourada significava um poder
absoluto na corte e propriamente na casa senhorial
de origem. Era este um caminho que Martinho
percorreu durante meses a fio, uma vez que o seu
estudo da Ronda o ocupava como se fosse um tema de
laboratório. O estudo de Georg Simmel sobre
Rembrandt rompeu algumas brumas que até aí
impediam Martinho de obter resultados na sua
busca. Diz Simmel: "Na fisionomia do retrato de
Rembrandt sentimos muito claramente que um curso
vital, unindo o destino ao destino, engendra esta
imagem presente". A mobilidade da vida está
maravilhosamente captada na presença do instante.
Não são só os desenhos de Rembrandt que têm algo
de inacabado. Toda a sua obra tem essa respiração
que se prolonga noutro quadro, o que torna o
simples bosquejo em algo mais do que um movimento
genial da mão sempre em experiência e gozo da sua
arte.
A avó perguntou-lhe, a Martinho, se a atenção
dedicada ao impenetrável conteúdo de um quadro não
o desviava da área humana e não o tornava árido
para o relacionamento com as pessoas. Como com
Judite, que parecia ter-se escapado duma ratoeira
onde, mais tarde ou mais cedo, deixaria a vida. As
notícias que ela prometera mandar tardaram a
chegar. É certo que ela nunca ia traduzir as suas
impressões quanto ao encontro com o pai que achava
uma pessoa do seu meio, com um sabor que fica para
sempre no paladar.
- Nunca tive ilusões a esse respeito - disse Maria
Rosa, que estava a banhar as suas pérolas em água
do mar para lhes conservar o brilho, ao que
julgava.
- Ela nunca disse nada sobre o pai, e acho que até
tinha esquecido o nome dele.
305
- Grande prova de amor é esquecer o nome de quem
se ama - disse Martínho. Judite passara por ele em
diferentes maneiras; luxuosamente vestida ou nua
como Susana no banho. As mulheres de Rembrandt
nunca tinham um ar provocador. Talvez ele
atingisse o âmago do feminino. A mulher talvez ame
tão inteiramente a vida, que isto é algo de
irracional para quem estiver na periferia do amor.
Martinho tinha breves sobressaltos quando pensava
em Judite como um corpo e uma alma. Tinha-os
separado quando (outra vez Simmel) "o objecto e o
sujeito do amor actuam sempre como uma completa
unidade". Disse isto a Maria Rosa, que não lhe
respondeu. Pôs-se a evocar a morte do marido,
pregado na sua cama de hospital, alugada para que
ele beneficiasse do mecanismo de que ela estava
munida. Amara-o em corpo e alma? Recusava-se a
velar por ele toda a noite e queixava-se.
- Não sou capaz. Os mercenários fazem isso melhor
do que eu. Lavam e alimentam o corpo até isso nos
parecer indecência. Eu não seria capaz de separar
o corpo da alma.
Foram tempos duros, tanto mais que, com a morte,
Filipe Nabasco deixava a descoberto uma série de
dívidas e negócios mal parados. A venda de terras,
a revisão de alguns pleitos que acabaram em
acordos ruinosos, mas acabaram (Paula quis a sua
parte sem perdoar um tostão), deram à casa algum
desafogo. Os Nabasco viviam de heranças desde há
séculos; quando estavam mais apertados de
finanças, lá vinha o legado duma tia que nunca
mexera no dote nem no enxoval.
E tudo se equilibrava, como um pião outra vez
atirado, a dormir pela força do lanço. Depois eram
outra vez as hipotecas, os empréstimos a juros de
particulares. Paula não se calava com a sua parte
do pai nunca bem definida e muito menos entregue.
Dava-se uma dessas meadas de família em que todos
ralham e todos têm razão. Terras ao abandono,
306
solares arruinados, jóias, loiças, objectos de
decoração, tudo era avaliado de forma exagerada,
sobretudo se os avaliadores eram comprados,
entrando na conspiração de forças. A inteligência
amesquinhava-se, ganhava autoridade o que menos
contava na pessoa, a cobiça e a fraude. Sobretudo
os filhos de Paula, funcionários públicos de alta
aliança com os sucessivos governos, reclamavam o
melhor da herança impondo os direitos da sua
posição.
Maria Rosa, que teve o desgosto de encontrar Lemy
de la Vallée morto no seu cesto, uma bela manhã,
desentendia-se de tudo.
- Essa gente não me é nada excepto meus herdeiros
- dizia. Lemy de la Vallée fazia-lhe falta, era
"algo que mexe" numa vida cada vez mais solitária.
Também Horácio Assis, médico da casa há muitos
anos, deixava de a visitar porque a saúde dele se
ia deteriorando. Dizia sempre coisas acertadas e
Maria Rosa apropriava-se dos seus aforismos como
se dela fossem. "Entre dois que bem se querem um
que pensa basta", dizia ele. Era ainda bela,
loira, de pele lisa e pernas redondas como as duma
rapariga. Paula não gostava que falassem na fresca
aparência da mãe e atribuía aquilo a nunca ter
feito nada, nem sequer mudado as fraldas dos
filhos. Os cadetes, João e Bernardo, achavam a avó
"gira".
- É pena ser tão rica, senão era melhor pessoa e
nós também - diziam.
Aquilo que o doutor Assis sempre punha em relevo
era que, depois de certa idade, não há filhos, há
herdeiros. Maria Rosa, ao ouvi-lo, tinha um assomo
de garridice e mandava fazer vestidos por atacado,
caríssimos, ainda para mais.
- Aonde vai com esses luxos todos? - perguntava
Paula, a quem ela desfrutava abrindo os seus
armários cheios de coisas esplêndidas.
307
- É sempre bom estar preparada.
Referia-se a quê? A morte? A um casamento? No fim
de contas Judite era mais doce e atenciosa. Por
isso dera-lhe muita roupa, depois de escolher
entre a que não usava. Roupa Chanel, que não era
cópia mas autêntica, com franjinhas e botões
originais. Mas depois que morreu Lemy de la Vallée
que ela passou a chamar pelo nome de pedigree, De
La Vallée du Devens, Maria Rosa mudou muito.
Mandara tirar a cancela do cimo da escada e caiu
até ao patamar em baixo, ficando muito amachucada.
Não que se ferisse a ponto de ter que ser
hospitalizada, mas ganhou o que se pode chamar "a
vergonha da velhice". Vergonha de perder as forças
que tinha por certas e intocáveis.
- Gostava de ter ficado nos meus setenta anos -
dizia. - É uma idade madura, com alguma graça para
os homens, com quem nos reconciliamos. A idade do
corpo e da alma. Nada é visto em separado: o
coração e o ventre descansam no mesmo sentimento,
gratidão e ternura.
Mas quem a compreendia? Esperava que Judite ainda
voltasse atrás e entrasse em casa com os seus baús
cheios de setas e toucados de penas para
distribuir pelos amigos. No fim de contas não
acreditava que ela fosse uma Electra perniciosa,
capaz de matar a mãe por amor pelo pai. Nada
disso. Conhecia-a desde que nascera, era
caladinha, olhava para a gente grande com
assombro, escondia-se atrás da Estrelinha se lhe
falavam. Ela ria-se, pedia desculpa. Era dessas
mulheres que fazem do matrimónio uma estação de
cio ou, melhor, um ofício sagrado. Remendar, mexer
o caldo, esperar o seu homem, são estádios dum
mesmo preceito. Deixam a saia sempre um pouco a
escorregar-lhe pela barriga, às vezes um fio de
sangue desce-lhe pelas pernas e elas sorriam, sem
pressa em mudar o penso de menstruada.
308
Era Santo António quem dizia do púlpito: "Isso
vale tanto como o pano duma menstruada",
depreciando as honras deste mundo. Mas o pano duma
menstruada vale mais do que sei lá o quê.
Estrelinha Sopa-de-Massa sabia isso. E, assim,
deixou que um fio de sangue escorresse à vista de
quem lhe parecia: o taberneiro, gordo e manhoso em
coisas de cama, e que foi o primeiro a acusar o
Farinha de ter matado a mulher e quase jurava a
pés juntos que o tinha visto, não perdia esse
pequeno choque de prazer ao descobrir os sinais de
calor numa criatura como Estrelinha. Embora fiel,
ela gozava sempre dessa impunidade sexual que é
oferecer sem sucumbir. Com a camisola interior
manchada de vinho, suado e peludo, o taberneiro
lançava do seu portal, no cimo da calçada, um
olhar entendido e ávido, de que a mulher dele lhe
pedia contas. E ele, santarrão e fechado nos seus
desejos:
- Tás tola!
- Bem te conheço, anda lá com a tua vida, meu
melro. Quem não te conheça que te compre.
- Tás a brincar comigo; se não, sabes o que te
fazia...
Mas as brigas domésticas não passavam daí. Havia o
freguês para atender, o vinho para servir ao copo,
negro e, ao esbordar, vermelho como o fio de
sangue nas pernas de Estrelinha. Ela voltava para
casa. Tendo ido comprar fósforos, ou três ovos
para a merenda, voltava com um sorriso esquecido
na cara e perdoava às filhas as travessuras da
ocasião. Gostava da vida de casada, do cheiro de
homem em casa; de ver o cinto dele pendurado no
cabide e de tudo que um homem deixa como conversa
sem palavras. Raramente se beijavam, e nunca em
público. Nem se tocavam sequer. Se Estrelinha
queria que alguém lhe arranjasse a gola do
vestido, ou apertasse o fio de ouro, recorria a
uma vizinha, sendo as filhas pequenas. Nunca pedia
ao marido, sabia que ele não lhe prestava esse
favor.
309
Carregar um balde com água, pregar um prego na
parede, acender a máquina de petróleo, sim. Mas
nada de aflorar-lhe a nuca, apertar-lhe a saia com
um alfinete de ama quando ela estava grávida. O
amor não se quer mexido, era talvez o seu lema de
homem.
Um dia mudou, fez-se mais evasivo, levantava-se de
noite para ir fumar para a varanda das traseiras.
Não a olhava nos olhos, mostrava uma ternura pouco
habitual para com Judite, que tinha onze anos.
- Gostas de mim, Dita?
Atava-lhe os cordões do calçado, ela desatava-os
às escondidas para o ver repetir aquilo. Achava a
mãe garrida demais quando se compunha ou então
suja, distraída, com ar de velha, achando gosto em
desprezar-se. O Farinha desbocava-se quando ela
lhe perguntava se tinha outras mulheres. Até
desconfiou da artista de circo que fazia o número
dos cavalinhos, quando o circo esteve na cidade.
Em pequena, ela lembrava-se que era preciso
expulsar o circo que esgotava as economias dos
pobres e os deixava sem uma côdea, tão famintos
eram da luxúria do espectáculo.
- Espectáculo é luxúria? - disse Maria Rosa.
- Se é!
Mas as ideias dele já tinham levado outro rumo e
corriam na feição da Ronda da Noite que cada vez
mais o prendia à terra. A desordem da arte atacava
o princípio da autoridade, que estava a declinar
no ensino oficial, nos laços conjugais, no dogma
religioso. No entanto, Martinho tinha às vezes
alucinações como a de ouvir tocar a campainha da
porta e ir abrir. Deparava-se-lhe Judite, com o
seu chapéu de couro preto molhado pela chuva.
Abraçava-a tão apertadamente que sentia o ar fugir
do peito dela. Era um amor sem razão, um amor por
uma criminosa, sem instrução, sem fortuna alguma.
310
Mas o correr dos dias que passara com ela era
inesquecível, fazia que um elo de corpo e alma se
tivesse soldado com eles. O homem é infeliz
enquanto não troca as leis que orientam a vida
pública e particular pela virtude criadora da
destruição. As suas paixões estavam a ser fixadas
nas coisas passadas, coisas que não tinham algum
poder sobre ele, que ele pode viciar, se quiser
inventar, reconstruir como um puzzle desfeito e
voltado a reunir em todas as suas peças que
ocupariam outro lugar e não o que lhes fora
destinado. Por isso é que a ordem de Banning Cocq
não era obedecida. Atrás dele estava uma turba de
pessoas felizes por lhe desobedecerem e que não
preparavam qualquer cortejo; simplesmente, estavam
a negar-se a cumprir fosse com o que fosse. Um
entusiasmo fresco e cheio de actividade saudava a
destruição da ordem. Assim, as figuras
convencionais dos retratados ficavam tão
destituídas de poder que fora isso que provocara o
riso dos admiradores de Rembrandt; de repente,
acharam-no fora da sua ordem, da sua marcha dos
arcabuzeiros, das suas insígnias e bandeiras. Era
a epopeia duma total destruição. A destruição
necessária e vital em que o homem alimenta a
criação que tem a seu cargo. Porém, destruir como
no caso das guerras, das torturas, das sevícias
brutais sobre os mais fracos, o que ganha um peso
primordial é o prazer sexual. Entendendo isso, é
preciso que outro consumo da destruição seja
efectuado.
Martinho não ignorava que a sua porfiada busca em
volta da Ronda, as suas imperativas razões,
criações suas, se equiparavam a um prazer intenso
que o comovia até às lágrimas; Judite nunca tivera
aquele efeito sobre ele. Enquanto corpo, ela dera-
lhe momentos de entendimento e de felicidade. Mas
desde a hora em que o casamento se foi recortando
dentro duma obrigação devoradora da sensualidade e
do improviso, deu-se a separação. De vez em quando
havia aqueles bruscos
311
apelos, como realidades que pertencessem à
liberdade mesma, tão exigida e tão aparentada com
a destruição. E parecia-lhe ouvir chegar Judite e
o bater da porta do seu carrinho amarelo. Sentia
um frio na espinha.
- Quem tocou? Não vai abrir?
Respondia-lhe uma empregada nova, que trazia o
telemóvel no cinto, e para quem servir burgueses
era uma coisa quase desonrosa. Descia, arrastando
os pés como uma pessoa velha e deformada pelo
reumatismo.
- Não ouvi nada, e tenho bom ouvido.
Não era ninguém; só um gato ou dois, o que sobrava
da quadrilha que Lemy de la Vallée punha em
debandada. O Torreão Vermelho ia-se esvaziando, na
perspectiva da grande mudança que Maria Rosa
preparava pode dizer-se que desde a cama onde
vivia a maior parte do tempo. Por fim, uma queda
até ao primeiro patamar da escada, donde retirou a
cancela destinada ao cão, sem lhe causar danos de
maior, inferiorizou-a mais. Nunca usava o
elevador; tinha medo de ficar presa dentro dele.
Conhecia tudo o que acontecia em casa pelos
cheiros e pelos sons. O peixe a fritar, as sopas a
ferver; mas nunca mais o doce perfume das
compotas, com um laço amargo nas grandes caldeiras
de cobre, como se usava em casa dos pais dela.
Advertia momentos de felicidade pousados como uma
borboleta no fio das recordações. E apeteciam-lhe
os antigos manjares há muito esquecidos, o redenho
encrespado pela alta fritura, coisa que só se
comia em Dezembro quando da matança dos porcos;
sempre dois: um para gasto de casa, outro para o
arranjo da caseira e os "precisos" dos
trabalhadores. Vestia-se mal, um vestido durava
anos e não o espaço duma moda. As tias casadas,
vinte anos depois das bodas, ainda aproveitavam os
vestidos do enxoval para andar por casa.
312
- Quando hei-de ter roupa bonita e tudo o que eu
quero?
A mãe respondia-lhe que havia de ser conforme o
casamento que fizesse: camisas de rendas e
cambraia, se o noivo fosse entendido em luxos e
mulheres de importância. "Que o luxo não se fez
para os pequeninos", rematava. O que ela levou nos
seus malões de casada não se acreditava. Ainda
tinha guardadas peças de linho que nunca foram
talhadas. Era preciso arejar e lavar tudo de vez
em quando, um trabalho louco, pouco compensador
porque o enxoval, o acumular, não era mais um
investimento, era uma gestão duma personalidade em
desaparecimento.
Como a casa ficava vazia, os ecos, as vozes, o
bater de portas, os toques de campainhas tornavam-
se mais acentuados. Era lúgubre o chiar dos
armários, que pareciam gemer o seu abandono. Maria
Rosa queimou papéis, cartas, recibos que davam,
como ela dizia, para encher seis ou mais colchões.
Um dia, deu por finda a sua tarefa e preparou-se
para deixar o Torreão Vermelho. No fim de contas
não levava saudades; tinha poucas recordações do
tempo que lá vivera e fazia-lhe impressão o último
lanço da escada que levava aos quartos das
criadas. De Elisa, particularmente, cujo grito de
apelo, quando estava mais sufocada, lhe era
dirigido. Embora Maria Rosa tirasse os sapatos
para não ser pressentida. A morte prolongada de
Elisa incomodava-a como uma ofensa pessoal.
Levava com ela uma rapariga chamada Josefa, de
cabelo cortado à escovinha e um ar de guarda
prisional. As vezes aparecia com o cabelo pintado
de vermelho e as unhas pretas pareciam carapaças
de insectos. Era, no entanto, boa funcionária,
como ela queria ser chamada.
- Sou a funcionária - respondia, ao telefone.
Correspondia-se pela internet com a família que
estava no Canadá. Todavia, pouco caso fazia da
gente mais próxima, a quem chamava
313
"os de cá". Tinha necessidade duma fantasia
universal que dava vigor aos fenómenos da sua
vida. Maria Rosa gostava dela. "Parece-se comigo"
- dizia. Era difícil de acreditar que Josefa, feia
e com aquela cabeça que parecia ter rolado do
cesto dum patíbulo, tivesse alguma coisa a ver com
a fina e elegantíssima senhora do Torreão
Vermelho.
- Isso explica-se - disse Martinho, num dos seus
momentos de distracção que a Ronda lhe permitia. -
Cada um de nós tem um mínimo que coincide com o
mínimo do outro. O que é feio pode tocar-se com a
nossa aspiração ao feio. Não há fórmulas fixas
para quaisquer fenómenos, eles entretecem-se uns
nos outros.
De repente Maria Rosa não pareceu prestar-lhe
atenção. Um golpe de velhice abateu-se sobre ela
e, sem que houvesse antecedentes que o pudessem
prever, instalou-se a morte à sua cabeceira. A
febre não a deixou mais e, no seu quarto meio
vazio, ela esperou o fim com uma espécie de
indiferença amável. Nada a fazia reagir: nem o sol
nos olhos (porque as cortinas tinham sido
retiradas), nem a comida que dantes teria recusado
por não estar ao seu paladar. Josefa estava
comovida, fazia o seu melhor por a servir bem, mas
não obtinha bons resultados. Era uma rapariga
saudável, que gostava de cantar, o que lhe era
permitido fazer quando estivesse fora de casa. Os
irmãos tinham morrido em tenra idade e os avós
davam-se por felizes com a sua reforma e os
medicamentos pagos pela Assistência. Como se
sentiam livres nas suas poucas necessidades, os
laços profundos de família tinham-se diluído numa
espécie de recordação tribal. Passavam a maior
parte do tempo sentados à porta de casa, com as
mãos abertas nos joelhos e mostrando-se
descontentes mas não infelizes. Josefa tinha feito
o décimo segundo ano, mas depressa esqueceu o que
aprendera e soletrava mais do que lia. Foi um
espanto,
314
quando Maria Rosa morreu, que ela a mencionasse no
testamento, pois era uma empregada nova e sem
vínculos à casa.
- Nem sequer a tratou na doença - disse Paula,
escandalizada ou ciumenta. Maria Rosa não sofrera
de nenhuma doença, excepto de sintomas que não se
puderam enquadrar num diagnóstico mais ou menos
sólido. "Acordou morta", numa manhã de domingo,
como disse Josefa que foi dar a notícia a
Martinho. Este levantou-se, meio aturdido, mas sem
pressas. Barbeou-se e vestiu um fato escuro.
O quarto da avó pareceu-lhe estranhamente
arrumado; mas isso era efeito da retirada dos
móveis e dos reposteiros que varriam o chão e
nunca tinham sido mudados. Um jarrão de flores
secas estava a um canto e Martinho mandou que as
levassem, com medo que as velas lhes pegassem
fogo. Antes disso tratava-se de lavar e vestir
Maria Rosa. Ele sabia que a avó temia os
mercenários, os seus gestos precisos, a sua
habilidade quase marcial. Disse a Josefa:
- Vai buscar uma bacia, a de prata, que está no
hall da entrada.
Ele próprio escolheu o vestido e os sapatos. Ele
quis retirar a aliança, pareceu-lhe que Maria Rosa
resistia. Fez uma pausa e depois puxou-a, sem
olhar, e meteu-a no bolso do peito do casaco.
Quando Josefa voltou com a bacia de prata, viu-a,
na cama, estendida como uma imagem jacente, duma
beleza austera. Não se podia dizer que era uma
mulher mas um ser híbrido, de feições sólidas e
conventuais. O efeito era tal que Martinho recuou
para analisar melhor o bonito vestido preto com
transparências dum cinzento marítimo. "Não lhe
fica bem, vou mudá-lo." Entretanto lavou-lhe os
pés com uma toalha, evitando esfregá-los, como se
ela estivesse viva e se pudesse queixar. Eram pés
grandes, secos; só um pequeno indício de artrose
se percebia no dedo médio, muito chegado
315
ao dedo grande, como na estatuária grega. Calçou-
lhe meias finas, cinzentas; depois, como se
romperam ao calçá-las, foi buscar outras, duma cor
indecisa, de pérola. E, para dizer com elas, um
vestido de grandes pregas que (ele sabia) tinha
como complemento um manto com a gola de chinchila.
"Paula vai-me matar"-pensou ele. Gostou de ver e
acariciar a orelha de Maria Rosa, o pêlo doce ao
toque como nenhum outro. "Vai, querida alma, sem
lágrimas, com sorrisos." Voltou-se para afogar o
pranto na garganta e Josefa pôs-lhe a mão no
braço, familiarmente, o que Martinho achou
irritante. A família veio tão depressa que parcia
combinada para ocupar postos estratégicos numa
operação bélica. Paula trouxe um esquadrão de
espias que se meteu por todos os cantos a fazer o
inventário do que restava. Admirou-se de ver tão
poucos móveis. Alguns eram do tempo do cutileiro,
grandes mesas, sideboards, louceiros que, vazios
das suas loiças, eram como jazigos esventrados. Só
alguns restaurantes e hotéis de luxo se atreveram
a licitar no leilão que Paula organizou.
- E o colar? Espero que não o tenha debaixo da
almofada -gemeu, prevendo a perda daquele emblema
da família, já um pouco desbotado mas que Maria
Rosa continuava a banhar com água do mar. Martinho
tranquilizou-a.
- Ficou para si, minha mãe.
- Onde? Onde está?
Era uma sofreguidão de velha, como a Leonora
Galigai, a favorita de Maria de Médicis; e que, em
perigo de ser massacrada, se apegava às suas jóias
como parte da sua própria carne. Esta ideia
ocorreu a Martinho e ele caiu em si. Seria que a
Ronda entrava no espólio da morta? Nessa noite
faltou ao jantar de família e quando "os cadetes"
o foram chamar correu a grande cortina que
escondia o quadro e fechou-o à chave. Mas ninguém
se mostrou interessado na Ronda da Noite. Estava
316
classificada como uma cópia e as suas dimensões
afastavam qualquer pretendente.
- Se eu pudesse recortar a rapariga do frango,
levava-a para minha casa. Tem um ar pícaro e
endiabrado que diz bem na sala dum homem solteiro
- disse Bernardo que, todos sabiam, vivera em
união de facto com um rapaz de boa gente, pintor
de algum sucesso.
Em três dias o Torreão Vermelho foi saqueado e até
o cesto de Lemy de la Vallée levou caminho. O
quarto de Martinho foi poupado, mas ele preferiu
não dormir mais lá. A avó tinha-se volatilizado.
Segundo os seus desejos, fora cremada e, de
repente, a sua imagem perdeu-se no ar, na espiral
do fogo e no estrondo dos gases, como nas antigas
cerimónias da Inquisição. Martinho fez por não
entender o terrível processo que reduzia a cinzas
uma pessoa tão querida e com tantas graças.
O que sobrava da fortuna dos Nabasco, que fora
grandiosa e tivera períodos de ascensão conjugados
com a escravatura e alianças, subornos,
cumplicidades? Os negreiros contavam-se em
surdina, mas eles lá estavam acenando das varandas
pelos triunfos da liberdade. Os solares dos
Nabasco, que eram cinco ou seis, couberam a
Martinho. Um ou outro, destinados a turismo de
habitação, estavam em parte defendidos de
agressões maiores. Nem todos tinham as proporções
ideais para abrigar a Ronda, que tinha estado
muitos anos nas cavalariças onde cresceram árvores
de grande porte. Uma palmeira, a árvore de Adónis,
subira acima dos telhados. Martinho achou aquilo
um bom presságio.
Mudou-se na Primavera, levando, com todas as
precauções, a Ronda da Noite, que lhe oferecia
todos os dias novos enigmas. Os enigmas eram
propostas festivas no tempo de Alexandre o Grande.
Martinho tinha levado com ele A Vida
317
de Alexandre e, embora não a lesse
continuadamente, folheava-a para tirar dela ideias
encantadoras. E passava o tempo sentado num velho
cadeirão de veludo pelado, a olhar para os seus
próprios dedos entrelaçados. Parecia-se com um
judeu sedentário, daqueles que contam histórias.

CAPÍTULO IX CORPO E ALMA

Dava-se por feliz por não ter, como Dário, rei dos
persas, duzentas pessoas de família à sua volta.
No entanto, a presença de Maria Rosa tornou-se,
durante um período que achou ser o do verdadeiro
luto, muito insistente. Recordava o que lhe tinham
dito, que os ossos não ficam todos calcinados com
a cremação, e isso dava-lhe um sentimento de
compensação, pensando que a ressurreição podia
fazer-se a partir desses despojos.
Por algum tempo, repugnava-lhe entrar nas
cavalariças onde velhas mantas e selas estavam
abandonadas e a Ronda esperava por ele. Mas depois
voltou o hábito de entrar na enigmática maneira de
Rembrandt, naquilo que nele era inabordável e
motivo de assombro sempre renovado. Não era só um
assombro que parte do conhecimento da arte de
pintar; era uma emoção convertida em carne e
predicado dela que era talvez uma qualidade de
partilhar com o mundo inteiro o valor da vida.
Deitava-se cedo, vendo ainda pelas frinchas das
portadas o dia claro. Não lia na cama, mas
variados textos dos livros que tinha lido lhe
acudiam à memória. E saboreava-os, como se
travasse com eles uma conversa desconexa e, no
entanto, profunda em que a personalidade inteira
dele próprio se desenhava.
320
Uma caseira vinha fazer-lhe a comida e os filhos
dela depressa invadiram a casa, a ponto de
Martinho pensar mudar-se mais uma vez. Mas a casa
dos Nabasco, se não era a do crescimento da
família, tinha qualquer coisa que existe nos
quadros de Rembrandt: era a beleza, sem que isso
envolva uma configuração clássica, mas tudo o que
se pode adicionar como suas combinações, tanto o
excitante como a paixão obscura do demoníaco.
Abria uma porta e hesitava em transpor o umbral,
de tal modo o acometia um sentimento de
descoberta, de ir revelar o que ali estava
guardado para ele.
As coisas compuseram-se no dia em que Josefa
apareceu. Como a casa ficava no cimo duma colina e
não havia estrada até lá, ela estava corada da
subida e parecia quase agradável: vermelha como um
pimento, como disse a caseira que lhe abriu a
porta a contragosto, pressentindo que acabava de
ser despejada.
Josefa trazia na cabeça um boné, desses que se
usam para assistir às partidas de futebol, e o seu
aspecto era caricato. "Como pintaria Rembrandt
esta rapariga?" - pensou Martinho quando a viu.
Pintava-a como ela era, descrevendo uma liberdade
assegurada pelo auto-domínio, o que a fazia
realmente parte dum acontecer cósmico. Olhou para
Josefa com simpatia, como se encontrasse alguém da
sua mais íntima relação. Notou que ela tinha a mão
meio aberta estendida para ele. Adiantou-se e
cumprimentou-a.
- Não a esperava, não senhor.
- Não venho incomodar? - Ela pousou o saco de
viagem e olhou em volta, entregue à sua natureza
doméstica que a levava a dar a cada objecto o seu
lugar peculiar.
- Não. Gosto muito de a ver. - E pensou se ela se
chamaria Josefa ou qualquer outra coisa. Ficou com
a mãos entre os joelhos, sentado numa cadeira, a
olhar para ela, como se
321
esperasse uma explicação. Josefa desatou a chorar.
Limpou o rosto com um lenço de papel amarrotado e
não disse nada. Mas era evidente que ela queria
ficar e que viera com essa ideia assente na
cabeça. Era o único elo que Martinho tinha com
Maria Rosa, uma coisa que lhe fazia chegar a vida
desaparecida da avó. Mas o que de facto assegurou
o lugar de Josefa foi o caso de ele a ter
surpreendido na cama, ao abrir por engano a porta
do quarto dela. A impressão que recebeu foi
acompanhada pelo sobressalto de ter cometido uma
indiscrição. Ela, com o braço direito inteiramente
nu e o seio descoberto, tinha uma expressão de
surpresa mas de obediência ao mesmo tempo. Parecia
esperar que Martinho a mandasse fazer qualquer
coisa, como recolher as gamelas dos cães cuja
comida salgada os punha furiosos. Deixava-lhes
água em abundância, o que os fazia cair numa
sonolência pacífica.
Ele recuou um passo sem, no entanto, deixar que a
porta se fechasse. Josefa era assombrosamente
parecida com Hendrickje, a segunda mulher de
Rembrandt, a sua beleza inculta arrastava uma
sensação de conforto e de saciedade. Desde aí, a
sorte de Josefa estava traçada. Ela ia ser a dona
da casa, ia conhecer todas as chaves, todos os
lugares de provisões, até aqueles que eram mais
escondidos, quase subterrâneos. Onde as
salgadeiras respiravam um suor salino; onde as
caixas do azeite forradas de zinco mostravam, ao
abrirem-nas, uma limpidez maciça como se
contivessem âmbar. Josefa entrou na posse de todo
o movimento da casa; das horas, repartidas como os
espaços num quadrante solar. Agradava-lhe ser a
serva, mais do que a patroa. E nunca, na sua
cabeça, se poria a ideia de casar com Martinho ou
fazer com ele vida conjugal. É certo que ele a
procurava às vezes na cama; mas antes de a manhã
clarear já Martinho estava no seu próprio leito,
onde recebia o almoço abundante, o café a fumegar
322
numa tigela vidrada e os pãezinhos frescos em que
a manteiga derretia.
Só ela sabia entender os seus gostos, sabia
alimentá-lo e dar valor à sua solidão. Porque
Martinho, pela primeira vez, conhecia o calor duma
vida que tem a consistência duma devoção. Para
isso, era preciso que ninguém o acompanhasse e
tentasse compreendê-lo. Ou esperasse qualquer
coisa dele, como a partilha dos mesmos lugares e
gostos. O que Josefa tinha de bom era que nada a
rebaixava ou a punha numa situação elevada. Fazia
o seu trabalho e não se preocupava senão com isso
e apenas isso.
Perguntar a Josefa se ela o amava, seria criar uma
textura absurda numa unidade sociológica cujo
sentido se estropiava. E ele sentia como era
confortável viver assim, sem dar explicações dos
seus sentimentos e sem se deter com qualquer
choque de situações.
Lembrava-se de vez em quando de Judite, mas sem
saudade ou remorso. Quando um deles morresse,
tardariam a saber isso; e até a comover-se, sendo
preciso recorrer a imagens antigas, convencionais,
como a do dia do casamento, do qual, o que melhor
retinha, era o chapéu de Maria Rosa, preto com uma
grande flor cor-de-cravo a balançar sobre a aba.
A casa foi ganhando a traça monumental para que
fora criada. No tempo dos barões Nabasco ela não
passara dum solar tradicional, com os três salões
de entrada e as alcovas escuras que defendiam do
frio. A escadaria exterior, talhada num granito
tão grosseiramente como a pedra dum lavadouro,
sofreu alguns retoques. Fora feita para ser usada
por gente que morria cedo, sem artrites e
dificuldades de movimento. Embora Martinho se
lembrasse de ver descer os degraus, um a um, e de
lado, um tio que nunca se casara e bebia a sua
aguardente branca como água da fonte.
323
Uma das salas foi ampliada para receber a Ronda da
Noite. Uma moldura de veludo carmesim fez
desperceber as suas mutilações, e o cão encontrou-
se tapado pelas pregas sumptuosas dum reposteiro.
Podia dizer-se que Martinho criara um altar para o
seu Rembrandt. Pouco iluminado, com um fulgor
interior que estava em acordo com a cena
espontânea e improvisada, o quadro parecia, mais
do que nunca, uma brincadeira maliciosa que tocava
as raias do abuso.
Este livro está prestes a terminar da maneira como
devia ter começado. Pela paisagem. Não havia
paisagem naquele retalho do cemitério visitado no
dia de finados por Maria Rosa e Martinho. Havia
apenas datas, sem nada que desse uma ideia da
organização interna duma vida. Nascimento e morte
era tudo o que ficava disponível; a paisagem, como
a arte, concerta um sentimento de gratidão. Uma
criança não a percebe; uma pessoa grosseira e
inculta quanto à sua personalidade, não a
distingue.
O lugar que Martinho escolheu para se fixar com a
Ronda da Noite, pertencia a uma paisagem. Dizia-se
(ainda que essa recordação não existisse mais e
fosse apenas a prestação conferida a uma lenda)
que a casa e os quintais, pomares e tanques,
lavadouros e minas de água, tinham sido levantados
sobre um cemitério romano. Dois ciprestes
altíssimos faziam ainda sentinela a essa memória
incerta.
Pelo lado da fachada, com as suas dez janelas de
guilhotina, a paisagem era em descida que nada
mais oferecia como acesso senão uma espécie de
barranco bordejado dum lado por oliveiras, e do
outro por uma sebe de amoreiras bravas. Foi por aí
que Josefa subiu, como fazia toda a gente que
encurtava caminho para aldeias mais altas e
desconcertadas na paisagem. Mas, pelo lado Norte,
a entrada principal fora há muito inutilizada
pelos sucessivos Invernos que cavaram barrancos
324
intransitáveis. Diversos planos, no sentido de
restituir ao estradão antigo uma parte da sua
viabilidade, foram abandonados pelos serviços
públicos. O caminho servia apenas a casa dos
Nabasco que, desde longa data, tinham abandonado a
região, deixando a monte o que tinha sido uma
espécie de castro inexpugnável.
Martinho pensou refazer a traça da estrada, mas
não se apressou com o projecto. Gostava desse
abrigo sinistro que o lado Norte tornava mais
arcaico. O portão de ferro foi tudo o que ele
ajustou nos velhos gonzos, tendo que substituir as
lanças da cimeira. Pintou-o de verde, e o reluzir
da tinta nova percebia-se entre a folhagem como um
tremor de luzes fugazes e tristes.
A entrada, imediatamente orientada para o pátio
que era a antecâmara de casa nesse estilo, tinha
um encanto peculiar. Martinho achava-a parecida a
um obscuro fundo à Rembrandt. Hendrickje podia
mergulhar as pernas até ao joelho nas enxurradas
que, desde o Outono, faziam do pátio um lago em
que boiavam ervas e folhas. E logo, atrás dela, os
pesados reposteiros da primeira sala de receber,
às vezes encharcados de água da chuva porque entre
o pátio e a sala só havia alguns curtos degraus em
leque, duma beleza surpreendente. Percebia-se como
a jovem Hendrickje se mostrasse curiosa do seu
prazer, ao arregaçar a camisa para banhar à
vontade as pernas. A carne mole e macilenta
ganhava uma luz fresca debaixo da sombra do pátio.
Martinho, depois da companhia da Ronda, preferia a
do pátio e toda a discreta alma dessa entrada
principal. A capela, o bastante espaçosa para um
par de noivos e o oficiante, era pintada de azul
com estrelas, no que se entendia como abóbada
celeste. Josefa dedicava-lhe, como a todo o resto
da casa à sua guarda, umas horas por semana.
Removia as flores secas, mudava o pano do altar e
deitava um pouco de veneno
325
nas cavernas do bicho da madeira. Tudo isto com um
solidário espírito de limpeza que excedia a sua
capacidade de devoção.
Martinho nunca a vira rezar. "Tanto melhor, não se
distrai com as coisas da alma, o que, nas
mulheres, é uma variante da sedução", pensava. Mas
Josefa também não era do tipo sedutor nem sabia
para que servia levantar os braços para mostrar a
delgada cintura; como via fazer às jornaleiras que
iam levar o almoço aos trabalhadores, descendo a
rampa do caminho, com um balançar das ancas
deveras tentador. Martinho nunca teve a ideia de
selar com Josefa qualquer compromisso; mas um dia,
no abrir da madrugada e porque não dormia, falou-
lhe nisso.
- Isto pode não ser duradouro. Tu és tu e eu sou
eu. As coisas podem mudar.
- Que mudem. Não estou cá para lhe pedir favores.
Deixe-me dormir.
Ele levantou-se e foi para o quarto, meio
desconcertado. Tentou ler um bocado, mas as letras
dançavam-lhe diante dos olhos. "Diabo de
rapariga!" - pensou. "A liberdade é difícil de
consentir nos outros." Mais uma vez a Ronda se
tornou clara para ele: não era convencional em
nada, mas antes retratava um tumulto feliz de
gente entregue à vontade de agir sem que ouvissem
a voz de comando do capitão Banning Cocq. A lei
ficava à margem, abrangia um ritmo de progresso
que a multidão não podia ou não queria acompanhar.
Bastava que a criança luminosa atravessasse a cena
para tudo ficar explicado: ela era a forma
universal, prestes a desaparecer na
individualidade de todos, no que eles tinham de
singular.
Já não estava tão atento à obra cujo significado o
deslumbrara. Ainda que desse à Ronda da Noite um
lugar privilegiado na moldura de veludo carmesim,
não passava tanto
326
tempo na sua companhia. Fingia muitas vezes estar
mergulhado em profunda meditação quando Josefa
batia à porta com uma refeição que ele gostava de
tomar sozinho. Mas até ela se retirar não perdia
nenhum dos seus movimentos que registavam apenas a
ocupação dum dia de trabalho. Humilhava-o que
Josefa não o incluísse nas suas preocupações. Uma
galinha doente ou o vento que se levantava e ia
enrolar a roupa nas cordas, a secar, eram para ela
motivo de maior concentração. Corria a recolher a
roupa ou a medicar a galinha; e Martinho sentia-se
relegado para um plano que não era honroso para
ele.
"Será que compreendemos as mulheres?", pensava.
"Temos um lugar na vida delas e isso é tudo."
Tentou explorar o ciúme dela e excitá-la para
depois não a satisfazer. Josefa ficou apenas
desconfiada. Mas não deixou de cumprir com as suas
obrigações e de o servir pontualmente.
Havia nos arredores algumas casas com raparigas na
idade de casar. Martinho, ainda que não estivesse
livre do vínculo do casamento, era um alvo a
considerar. Foi convidado para jantares, recebeu o
melhor tratamento, quase como se fosse um viúvo
com rendimentos e saudades a gerir. Mas quando
voltava para o solar caía-lhe em cima uma sensação
de desperdício e quase de medo. Seria que tinha
uma alma e essa era um objecto investigável?
Quando se dedicava a detalhar a Ronda em todos os
sentidos, não estaria a averiguar a natureza da
alma?
Um dia, descendo pelo pátio em direcção ao pomar,
viu Josefa inclinada no lavadouro. O facto de ela
não se voltar ao sentir-lhe os passos, incomodou-
o. Mas, ao mesmo tempo, que ela estivesse,
arregaçada, com a água a escorrer-lhe dos
cotovelos, deixava-o a sós com a sua nudez. Era a
alma dela que estava a ser consumida, e não o
corpo, pelos olhos que a
327
averiguavam. Ela sabia. Voltou-se devagar, limpou
um salpico de espuma no rosto e dispensou-lhe um
grande sorriso. Seria amor? Era, em todo o caso,
um acto de salvação.
Lembrou-se de que, quando era pequeno, as pessoas
não se cumprimentavam - davam-se a "salvação".
Entre as primeiras horas da manhã e as Trindades,
que anunciavam o crepúsculo, trocavam "a
salvação". Antes ou depois disso, não se dirigiam
a palavra. Era como se os perigos da alma
apertassem o cerco e ela estivesse mais indefesa.
Não estar fora de casa depois das Trindades era
recomendável. O sorriso de Josefa encheu-o de
alegria.
Porém, no dia seguinte, anunciou-lhe que Judite
não se opunha ao divórcio e que era provável ele
casar-se outra vez. Josefa estava diante dele, com
o avental recolhido em ponta sobre a barriga, como
todas as vezes que ele a chamava e ela não se
achava apresentável. Não disse nada.
- Não dizes nada? - disse Martinho, depois do
silêncio que se tornara difícil.
- Eu? - Ela pareceu tomada de surpresa.
- Estou a falar contigo.
- Comigo?
- Com quem há-de ser?
Em parte não era verdade nada do que Martinho lhe
dizia sobre Judite. Ela continuava a viver com o
pai e nada fazia supor que ia pedir o divórcio.
Estava satisfeita com a mesada que recebia e, como
mulher casada, tinha mais respeito com que
valorizar a sua triste história propícia a mal-
entendidos. As coisas extraordinárias que
acontecem às pessoas vulgares ficam, em geral, no
mais profundo desconhecimento. É preciso que a
relação dum espírito com outro as faça claras à
luz da pequena história. Se não fosse a Ronda e
todas as viagens morais feitas em volta dessa obra
enigmática, Josefa não teria
328
praticamente existido na vida de Martinho Nabasco.
Foi no momento em que entreabriu a porta do quarto
dela, para lhe perguntar qualquer coisa acerca da
rotina doméstica, que ele a inseriu no tempo de
Rembrandt. Desde aí, ao ver o ombro que a camisa
ao escorregar deixava a descoberto, ao ver a sua
expressão de surpresa meio inquieta, Martinho
recebeu-a no seu coração como se fosse a própria
Hendrickje. Desde aí ela entrava na sua vida.
Doutro modo, não passava de alguém que lhe
comunicava impressões externas; o seu cheiro a
fritos nos cabelos quando ela fazia ceboladas de
peixe, não era decerto a melhor dessas impressões.
Mas por detrás da imagem sensível de Josefa, do
seu rosto que não tinha nada de bonito, estava uma
alma que era o material para o conhecimento do
outro. Nunca tinha encontrado uma criatura tão
livre e tão exposta ao mesmo tempo. Era como uma
lagartixa que, ao ser pisada, deixava a cauda e
escapava-se, como se nada tivesse acontecido, para
a fenda do muro. Se havia alguém digno de figurar
na Ronda da Noite era Josefa. Podia ser incluída,
com as mangas arregaçadas e uma galinha morta que
não era o símbolo de nada, mas muito simplesmente
o anúncio dum jantar suculento. Martinho não podia
impedir-se de a provocar.
- É contigo que estou a falar.
- Estou a ouvir.
Mas a atenção dela estava posta em muitas outras
coisas do seu dia-a-dia. A roupa que tinha que
tirar dos arames antes que chovesse; a calda para
o arroz, que era sempre o acepipe preferido desde
que se descobriu a índia. Arroz de forno, com
loureiro seco; arroz de grelos, de feijão, de
hortos, de manteiga, de peixe, de carne, de
simples estrugido de cebola. - Como quer o arroz?
- disse Josefa.
Mandou-a sair. Era uma mulher estúpida ou só capaz
de reagir a coisas solidárias com a sua natureza?
Natureza prática,
329
sem a qual ela flutuaria no vazio. Uma coisa o
maravilhava: a sintonia erótica em que ela estava
com o mundo. Criava um objecto de amor nas
circunstâncias adequadas. E era por isso que
Martinho duvidava de ser o homem da vida dela, mas
o objecto do amor dela, que era uma natureza
erótica e a repartia por todas as realidades
concretas da sua vida.
Não havia maneira de fazer-lhe compreender nada
fora dos conteúdos vitais que eram quatro, como os
dos sáurios de há quinhentos milhões de anos. Eram
comandos cerebrais em que a sensibilidade não
tinha entrada senão por imitação. O seu mundo
reagia admiravelmente àquele regime oposto a
conceitos rígidos fechados, a uma lei, em suma.
Quase tudo o que Martinho lhe dizia soava como
palavras e ele sentia-se completamente à deriva
supondo em Josefa uma completa falta de
necessidade de crescimento interior. E, todavia, a
compreensão de um conteúdo particular, o
nascimento, a morte, era para ela de fácil acesso:
a vida, na sua unidade, enfim. As vezes, tinha
medo dela; do que ele se recompunha, achando que a
falta de cultura de Josefa, a sua completa falta
de aproveitamento escolar que tivera na infância,
era uma prova de inferioridade pronta a ser
declarada pelo Parlamento Europeu como uma espécie
de fatalidade de grupo que uma forma económica de
séculos não conseguira senão viciar cada vez mais.
Quando afinal era o contrário. Em princípio, teria
de admitir que Josefa não tinha carácter. Isso
implica considerações pejorativas, se não
trágicas. Era dotado dos atributos de
sobrevivência, mas a supervivência como sinal duma
estrutura em evolução permanente, não se percebia
nela. Como no quadro de Rembrandt, o que Simmel
notara conforme um pensamento de Goethe (que há
certos fenómenos da humanidade que são errados por
fora e verdadeiros por dentro), a
330
estrutura da Ronda é desproporcionada vista por
fora mas, desde dentro, está conforme. Porque a
própria vida é assim: segundo as entregas dos
conteúdos da existência que o indivíduo faça
movido pelos acontecimentos, por insignificantes
que sejam, tudo parece casual e desproporcionado.
É o que na mulher se chama histeria e
injustificado procedimento. Mas, visto do
interior, este procedimento obedece a uma evolução
contínua, necessária e conforme a sua unidade.
Pelo que Josefa, com a sua obtusa moral e dados
restritos de compreensão das coisas, estava mais
pronta a evoluir correctamente do que um filósofo
aparentemente capaz de perseguir uma forma
universal.
Como não tinha uma educação académica e não estava
impressionado por teorias sobre a lei universal,
Martinho era mais capaz de entender Rembrandt e o
seu modelo, a segunda mulher Hendrickje. É
possível que esta, mais do que Saskia, tivesse o
comportamento interior dum modelo: uma qualidade
individual que vivia e morreria com ela. Não é
causa de reflexão uma coisa dessas; assim, a Ronda
não é igualmente causa de reflexão. Todos os
detalhes estão ali, a posição social, a riqueza, o
lado vulgar e sensual; tudo isso é o impessoal do
homem, e seria um erro conhecê-lo através dessas
diferenças. O capitão Banning Cocq e o seu
ajudante de campo não são apenas os soberbos
dignitários com ambições políticas. Como o porta-
bandeira e a criança que atravessa a multidão, não
são apenas figuras simbólicas e muito menos
satíricas. Há em todas elas um desapego das suas
funções e da sua natureza, que não se entende
senão como felicidade. A lei não as obriga, não as
oprime: são pessoas felizes, indivíduos presentes
no universal que é o comum das suas vidas.
A dada altura Josefa teve um comportamento
estranho. Parecia estar preocupada por alguma
coisa que não se atrevia
331
a confessar, e Martinho, muito cautelosamente,
fez-lhe algumas perguntas. Não afastou a ideia de
ela estar grávida.
- Tens comido o suficiente? E o trabalho que tem
sido demais?
- Não, não. Para o trabalho chego eu. Mas, se quer
saber, eu vou-lhe dizer. - Embora ele introduzisse
no serviço as inovações há muito rotineiras na
casa de Maria Rosa, máquinas de lavar e limpeza,
Josefa preferia ainda lavar o chão da cozinha de
joelhos, pela força do braço. Era assim que ela
estava, de rastos, com a saia recolhida entre as
pernas e tendo ao lado o balde onde mergulhava a
escova. Levantou-se e teve o mesmo gesto de
sempre, de quem enxuga o suor ou um salpico de
espuma com o braço. Era um gesto que pressupunha a
entrada noutro episódio. Martinho, não sem alguma
inquietação, preparou-se para a ouvir. E se fosse
de facto uma criança que ela ia anunciar-lhe?
Quase começou a conversa nesse sentido. Mas Josefa
antecipou-se:
- Pelo que me consta, a sua mulher, a dona Judite,
não volta mais. Estou enganada?
- Não sei dizer, Zefa. Trata das coisas que
entendes e deixa o resto que não te diz respeito.
O que dizia respeito a Josefa era a casa com a sua
grande cozinha lajeada e que mantinha ainda a
lareira tradicional com duas colunas de pedra que
delimitavam a zona do fogo. Além disso, havia o
forno do pão, com a boca enegrecida pelas
labaredas de muito tempo de aquecimento; e havia
também duas grandes masseiras que serviam agora
para arrumo de trastes sem uso, tampas
desirmanadas, utensílios de ferro que não tinham
mais préstimo e que eram mais ou menos objectos de
museu.
De resto, a cozinha, toda ela era um museu. Na
obscuridade estavam as peneiras, os aquecedores
das camas, os ferros
332
de brunir que eram meros pedaços de ferro fundido
e que, mesmo sendo diminutos, pesavam sobre as
pregas, os colarinhos e tudo o que fosse preciso
fazer brilhar como laca. O mundo do trabalho
estava ali bem presente, sem desfalecimento nas
tarefas que se sucediam: lavar e descascar
legumes, cortar a carne com um deleite fundo e
sensual, depenar as aves, abrir-lhes os ventres
com um golpe que lhes expunha os intestinos e o
fígado cuja pétala de fel esverdeada era preciso
extirpar. Josefa era gulosa dos intestinos de
galinha, que, depois de lavados, esvaziados, se
enrolavam num pau fino de salgueiro e eram
guisados como um acepipe. E tam- > bém gostava de
refogar pés de cabrito, que desapareceram do
mercado pela dificuldade que traziam aos
matadouros, sendo considerados subprodutos a moer
para o gado e a juntar às rações de farinhas.
A cozinha era um reino. Não se entrava nela sem
fazer três vénias, como no protocolo dos antigos
papas. A primeira, desde a porta que dava para o
exterior e pela qual tinham acesso todos os
estranhos: pedintes, compradores de vinho e
azeite, alguém que trazia um recado ou pretendia
um favor.
A segunda vénia era para ser feita pelos que
entravam pela porta de serviço, sobre um lanço de
escadas donde se descobriam as capoeiras e os
quartos dos hortelãos ou moços de estrebaria, que
não estavam mais a uso. Em tempos, a casa tivera
baias para seis cavalos, onde agora havia um longo
alpendre e uma arrecadação de tonéis destinados a
serem vendidos.
A terceira vénia era a da porta que dava para o
interior, um corredor estreito em cujas paredes se
podiam adivinhar quadros de Santa Luzia, com o
prato e os olhos no prato; assim como ramos de
oliveira benzida entalados na moldura dos quadros.
Quem chegava a essa porta eram os patrões, as
333
criadas de dentro e um sem número de aderentes à
casa, como as mulheres sem ofício certo que
contavam novidades e comentavam em detalhe a vida
dos lugares, vizinhos ou não. Havia também os
barbeiros dos vivos e dos mortos, os padres, os
doutores, as costureiras cuja máquina se ouvia a
espaços no seu cubículo onde se amontoavam
retalhos, linhas e botões.
Josefa era a prima dona desses sítios, vividos
como nenhuns outros na casa. Enquanto as visitas
de Martinho à sua cama foram regulares, ela teve
ao seu dispor um quarto que não era principal e
dava para uma sala de passagem. Era o quarto do
capelão, com janelinha meio devorada pelos pés de
vinha que cresciam em baixo. Cerca desse quarto
ficava o oratório, uma peça soberba do século
XVIII, que foi vendida à revelia dos herdeiros
ausentes e que Paula qualificava como um roubo. Em
vez do oratório, verde e ouro, havia agora um
armário onde se guardavam lençóis e cobertas de
cama. Mas persistia o cheiro da cera e das
grinaldas dos "anjinhos", as crianças que tinham
morrido na família.
Quando as noites e as sestas de amor se espaçaram
até se tornarem raras, entre Josefa e Martinho,
ela mudou para um cubículo junto da cozinha que se
destinara a despensa e donde ela podia ouvir tudo
o que se passava na área de trabalho. Quem subia e
descia as escadas, quem vinha buscar o leite ou
trazia o pão, e coisas assim. Martinho não gostava
de lá entrar, pelo cheiro que recebia nas narinas,
de velhos untos e conservas caseiras apodrecidas
em vinagre, nas talhas de barro: pimentos,
pepinos, ou azeitonas pretas que reluziam como
olhos de gente.
Todo o objecto de culto não funcionava mais. Na
capela, a pedra de ara tinha sido retirada e o
sacrário não tinha porta; via-se o interior
constelado de estrelas douradas. Apenas a
334
Ronda merecia uma espécie de liturgia, com a sua
moldura de veludo carmesim e os jarrões da China a
fazer-lhe sentinela. A falta doutra devoção,
Josefa dedicava-lhe uma veneração que era cópia da
oração diária que Martinho dedicava ao quadro.
Endireitava o cadeirão posto em frente do capitão
Banning Cocq, no melhor ângulo, para captar as
suas palavras, caso as fosse ouvir. E o olhar da
pequena Saskia, acreditava que se cruzava
voluntariamente com o dele. Travava com ela um
diálogo de grande cortesia e afabilidade e Josefa
várias vezes o vira mexer os lábios e sorrir como
se estivesse a gozar uma conversação. Percebia até
algumas palavras:
- Falou comigo?
- Eu? Não... Vai à tua vida e deixa-me em paz.
Recebeu uma carta de Judite, em vez dos lacónicos
telefonemas, e ela era muito clara: queria
finalmente divorciar-se. Entendeu que ela talvez
estivesse grávida e quisesse regularizar uma
situação menos airosa. Mandou-lhe os papéis que
Judite pedia e não quis entrar em detalhes
fastidiosos. Ficava pois livre para ele próprio
casar e ter filhos, o que lhe parecia uma coisa
como outra qualquer. Havia nas cercanias raparigas
educadas ainda à moda antiga que podiam agradar a
Maria Rosa, se ela estivesse viva. "Mulheres que
gostem de lavar a loiça", como ela dizia. Era, no
seu entender, prova dum espírito franco e de
sensualidade.
As saídas de casa tornaram-se mais frequentes para
Martinho e às vezes colhia uma flor nos caixotes
que Josefa tinha plantado à beira do tanque.
Primeiro, fazia disso um certo segredo, depois não
escondia mais esse gesto de galanteria para uma
mulher que ele "tinha em vista". Com a idade, as
jovens comoviam-no a ponto de as lágrimas lhe
subirem aos olhos.
335
Josefa punha nos seus programas de limpeza um
maior ardor. Lavava as janelas de cima a baixo e
grandes ondas de espuma escorriam das vidraças
como nuvens descidas do céu. Martinho disselhe,
uma noite, depois de jantar:
- Talvez me case.
- Quando?
- Desde que encontre a pessoa certa.
- Não há pessoa certa para isso. Há a pessoa certa
quando se quer um electricista, mas para casar não
há. Convém que não seja de todo pobre nem
demasiado rica.
- Cá temos a Zefa a filosofar! Que tem uma pobre
de mal? E uma rica?
- A pobre é para sempre um poço de inveja; a rica
deita-lhe à cara tudo o que comer e diz: "Sai do
meu bolso..."
O que incomodava Martinho é que ela não
demonstrava ciúme nem tristeza. "Qualquer outra
deixava de comer, é o que as mulheres fazem quando
querem parecer desgostosas". Mas Josefa não
parecia sentir o mínimo desgosto. Martinho
atribuía isso a o sentimento de rivalidade não
fazer parte dos quatro comandos cerebrais.
Uma vez saiu de casa pela manhã e telefonou a
dizer que não vinha almoçar. Josefa achou que o
dia era todo dela e que podia iniciar as limpezas
da Primavera.
"Agora é que vão ser elas" - pensou. E pôs-se a
cantar com todas as forças, coisa que Martinho não
permitia dentro de casa. Ela gostava de cantar no
trabalho no lavadouro, sobre qual os ramos da
nespereira desenhavam sombras movediças; à janela,
sacudindo tapetes como se estivesse a defenestrar
inimigos. Gostava de cantar, e cantava. Não era
uma prova de alegria; mas de força poderosa e
imparável.
Naquele dia a força manifestava-se e ela enchia
consecutivamente baldes que despejava no pátio
fazendo correr a
336
água pelo plano inclinado. Voltando para dentro, o
olhar dela pousou na Ronda que estava no último
salão; e mesmo este tivera que ser provido dum pé
direito mais elevado, sacrificando-se para isso as
mansardas. O fato do lugar-tenente, com as suas
galochas de luxo, causava uma boa impressão. Era
um belo homem, com o bigode loiro e as plumas
brancas no chapéu. "O resto está muito sujo, não
se vê nada" - pensou Josefa. E, num repente,
decidiu-se. Ia lavar a Ronda com os seus
detergentes e esponjas duras. Até o cão não se
sabia de que raça era, tendo escondido a cauda
entre as pernas, assustado pelo rufar do tambor.
Ela preparou-se. Todo o seu material de campanha
foi trazido e Josefa começou a sua limpeza. Até
onde chegava a sua estatura, que não era alta, ela
esfregou, inundou, raspou, até que fios de tinta
começaram a correr. Voltou-se para trás, julgava
ter ouvido passos. Mas era o vento que carregava
nos ramos da nespereira. Já não se intimidava;
cada vez que atacava um figurante da Ronda fazia-o
com mais empenho e atrevimento. O desastre estava
consumado e ela recuou um pouco; só o porta-
bandeira e o jovem do capacete de bombeiro, como
ela dizia, tinham ficado intactos. Saskia tinha
simplesmente desaparecido com a sua galinha à
cinta. Josefa deu uma última demão de água limpa
ao rosto diluído numa mancha mais clara. Sentia
uma espécie de contentamento que lhe fazia bater o
coração com força. Onde estava o ícone de
Martinho, aquilo por que ele se enternecia até às
lágrimas e o fazia estudar até altas horas os
livros que pudessem trazer-lhe informações sobre o
pintor? O seu enigma não podia mais ser
auscultado. O seu efeito tinha desaparecido. A sua
linguagem intuitiva não se ouvia mais. Josefa
admirou-se de ter, em tão pouco tempo, destruído a
unidade dessa extraordinária obra. Estava
encharcada, o frio fazia tiritar. Mas
337
teve discernimento para arrumar os baldes e as
esponjas e voltar a pôr no lugar a cadeira de
Martinho. Agia distraidamente, como se, pondo
ordem nas coisas, tudo voltasse ao que era. E o
capitão Banning Cocq lá estava a dar as suas
ordens, ainda que só fosse a sombra dele.
Quando, já no avançado da noite, Martinho entrou
em casa, viu luz no quarto do capelão. Depois a
luz extinguiu-se e ele pensou que Josefa a tinha
apagado. "Porque mudou ela de quarto?" - pensou.
Mas não estranhou nada, sabendo como ela resolvia
limpar tudo e desalojar as coisas dos seus
lugares, deixando no ar um cheiro de lavanda, de
pinheiro, tão forte que causava náuseas.
Antes de se deitar, como de costume, foi ver a
Ronda. Primeiro achou que as luzes não se tinham
acendido e precisou duns instantes para se adaptar
ao que julgava ser o segundo salão com os retratos
austeros dos Nabasco. Não via a Ronda, mas só uma
figura com uma alta cartola. Era o que restava da
Ronda da Noite. Franziu os olhos e voltou a abri-
los. Um grande grito travou-se-lhe na garganta e
ele caiu quase de bruços, quase sem acordo, o
sangue a latejar-lhe nas fontes. Se tivesse sido
atingido por um disparo, não ficava mais
atordoado. Depois levantou-se e, com toda a força
da sua alma, verificou os estragos. Eram totais, a
Ronda tinha desaparecido; e só o porta-bandeira,
talvez o próprio Rembrandt com uma faixa brilhante
e o chapéu de plumas cinzentas, parecia
apresentável e intacto.
- Josefa! - disse Martinho, entre dentes. Lembrou-
se da luz acesa e a seguir apagada no quarto do
capelão. Precipitou-se para lá, a porta estava
apenas encostada, ele abriu-a, metendo o ombro
nela porque a julgou trancada. Josefa estava
sentada na cama, os pés com as chinelas apenas
seguras pelo dedo grande; parecia ébria e
cantarolava baixinho. Em vez de
338
gritar com ela, de lhe bater até, Martinho foi
tomado duma estranha comiseração
- Estás aí? Que andaste a fazer, sua tola? Parece
que saíste do tanque, como uma bruxa, à meia
noite. - E, como ela não dava mostras de entender
nada, aproximou-se e, com uma ponta da coberta da
cama, pôs-se a enxugar-lhe o cabelo - Vamos, não
tenhas medo, mulher! Não te faço mal. O que
passou, passou...
Como não podia remediar o estado em que ela estava
sem a despir, pôs-se a desapertar-lhe a roupa, o
que, porque estava molhada, era difícil. Josefa
ficou nua e a sua pele pardacenta ganhava aos
poucos calor. Rembrandt não teria ignorado as
pregas do ventre balofo e o punho fechado contra o
sexo. Impassível, Martinho executava como um
enfermeiro a sua tarefa de samaritano. E,
subitamente, veio-lhe à ideia a soma de desgastes
e de violência que tinha sofrido a Ronda da Noite;
mais do que qualquer outro quadro ou obra de arte,
a Ronda da Noite sofrera variadas agressões tanto
físicas como as devidas ao desgaste do tempo e dos
restauros. Cortes devidos às suas dimensões e
destinados a fazer caber o quadro em espaços mais
estreitos, deram à Ronda uma perda que não pode
ser mais recuperada. O facto de Martinho assegurar
que a pretensa cópia em seu poder era de facto um
original, fundava-se na integridade da pintura e
nas suas dimensões conforme o original.
Em 1976 um homem investiu contra o quadro com uma
faca de cozinha e desferiu golpes que tiveram que
ser reparados; assim como houve muitos outros
danos, devidos à fricção de todo o género, da luz,
do calor e da humidade. Borrifada com água e
ácido, a Ronda continuou a ser alvo de ataques que
se atribuíram a doentes mentais. Mas haveria no
suposto doente mental uma lucidez para além da
razão comum? Martinho pensava que sim, depois do
deplorável acto de
339
Josefa cujas consequências julgou não puder
suportar. Mas o estado daquela mulher, os seus
soluços que pareciam um estertor, sobrepôs-se ao
desgosto que ele acabava de sofrer. Não acreditava
que um afã de limpeza levasse Josefa àquela
violência exercida sobre o quadro. Um momento de
loucura não parecia próprio dela, sempre tão cabal
e séria no seu trabalho. Era alguma coisa que ele
pôde desvelar quando a apertou nos braços para a
acalmar. Era a solidão que ela sentia perante a
divinização da obra de arte. Martinho fez com que
ela falasse, ainda que só lhe arrancasse palavras
entrecortadas, mal decifradas por ele que apurava
o ouvido para não perder nenhuma delas.
- O que te deu, mulher? Conta-me, que eu não digo
a ninguém... Conta-me só a mim.
Depois de a ver agasalhada e limpa na cama do
capelão, voltou a interrogá-la. Mas Josefa só
disse que não se lembrava. Quando Martinho voltava
costas, ela chamou-o.
- Eu pensava que gostava mais do quadro do que de
mim. De mim e de tudo que tem de ser amado pelas
pessoas para que possam viver. A vida faz-se com o
amor dos outros.
- Mas que tolice! O que te deu... que ideia a
tua... Estava embaraçado, descontente. Quando se
retirou não passou pelo terceiro salão onde
estavam os restos da Ronda da Noite. Era cedo para
avaliar os estragos que sabia serem irreparáveis.
Fechou, com cuidado, a porta atrás dele e não quis
pensar mais no que tinha sucedido. Um elo de
paixão sem argumentos ligava-o agora substituída
no serviço da mesa por uma rapariga de fora.
Depois as coisas foram-se ajustando a uma
realidade que não excluía o desejo de se
entenderem.
340
O quadro foi desapeado e convertido em retalhos,
depois queimados. Só o porta-bandeira resistiu e
foi emoldurado para ser pendurado sobre o fogão da
primeira sala, a que dava para o pátio e que era a
entrada principal. Depois, como aquilo o
incomodava, relegou o "porta-bandeira", que tinha
sido identificado como sendo o retrato de Jan
Cornelis Visscher, amador de obras de arte, de
música e de livros, foi colocado numa salinha
escura onde havia duas estantes e dois sofás de
veludo verde. O cão, também poupado à esfrega de
Josefa, ainda que indistinto na pintura, mereceu
as atenções de Martinho que o fez, como ele dizia,
"embalsamar" e pôr na parede do corredor, entre
dois cadeirões Luís XIII.
Ainda que todo o desastre se mantivesse em
silêncio, acabou por chegar aos ouvidos de Paula e
dos cadetes, que pediram contas do sucedido. A
ideia que lhes acudiu foi que a Ronda tinha sido
vendida com bom proveito para Martinho e que ele
ensaiara a sua destruição para não a ter que
repartir como herança. A Ronda ficara indivisa,
sendo considerada mais uma mania de Martinho do
que um objecto de valor. E se fosse verdade e ela
valesse alguma coisa? Isto não chegou a cavar um
fosso nas relações de família porque a preguiça se
impôs a todos os outros sentimentos. Martinho
estava tão longe que Bernardo, um dos cadetes, não
lhe chamava parente próximo.
O mais estranho foi que Josefa resolveu ir-se
embora; apresentou-se diante de Martinho depois de
jantar e pediu-lhe que lhe fizesse as contas.
- Que contas? Não te pago todos os meses e até
ficas com alguns trocos das compras, quando calha?
Isto ofendeu muito Josefa, nem ela sabia porquê,
porque era verdade. Mas dava aos pobres esmola do
seu bolso, com o que se sentia equilibrada no
deve-e-haver. Exigiu esmiuçar a
341
dívida de Martinho, que nunca lhe pagara somas
muito atrasadas do terceiro mês; e do subsídio de
férias também não recebera por inteiro o que lhe
era devido. Tudo isso perfazia uma conta calada e
Martinho ficou estupefacto. - Sabes o que tu és?
Uma vigarista de primeira apanha. E as consultas
na clínica privada quando foi preciso?
- Não lhe pedi nada.
Olhou para ela com vontade de lhe saltar ao
pescoço, mas, de repente, achou-se tão farto
daquele diálogo que a dispensou com um gesto. Teve
a noção de que ela não perdoava a ela própria tê-
lo ofendido com a limpeza do quadro; e agora
queria criar um ponto de ataque para sair
honrosamente das suas perplexidades. Nunca mais
tinham abordado aquela terrível noite; mas ela
estava presente como qualquer coisa de injusto,
uma lesão nas suas relações. Ela disse: - Quando
precisar de mim estou ao dispor. Se casar e tiver
filhos eu venho ajudar a criá-los. Posso ainda
ser-lhe útil, nunca se sabe.
Era isso que lhe devia; ser útil era uma ferida
aberta no seu peito. Não pedia mais, mas também
não se satisfazia com as carícias dele que não
eram senão parte dum sentimento de plenitude de
que ela ficava impedida. "Há paixões muito
diferentes que não derivam da sexualidade", pensou
Martinho; porque tinha lido isto nalgum livro, não
sabia onde. E se Rembrandt pintasse como se fosse
conhecedor duma libido que ainda não se
diferenciasse o suficiente e que, por isso, tinha
que manifestar-se pela forma sexual? O que havia
entre ele e Josefa pertencia a essa área
desconhecida, o que fazia que ela não se sentisse
bem com ele; e que ele a amasse, apesar de tudo.
- Que vais fazer para casa? - perguntou. Mas era
como se outra pessoa tivesse perguntado.
- É a minha mãe que está velhota e precisa de mim.
342
- Julguei que a tua mãe tinha morrido. - Não lhe
deu tempo para replicar, e acrescentou: - Fazes
bem. Se eu te chamar, tu voltas?
- Volto, esteja descansado.
Mas percebia-se que ela estava desejosa por
desaparecer, como um rato que encontra uma saída
num labirinto. As pessoas eram assim. Quando
Josefa virou as costas, ele teve um momento de
sofrimento como nunca tivera outro assim. As
lágrimas corriam-lhe pela cara sem que as pudesse
parar. Antes pelo contrário: agradava-lhe que
fossem tão abundantes e sinceras. Como sempre, as
pessoas que mudam o curso da sua vida, ou morrem,
deixam para trás uma série de indícios que fazem
com que a sua presença não se desvaneça durante
algum tempo. De vez em quando Martinho ia
encontrar qualquer coisa que tinha pertencido
exclusivamente a Josefa: um par de chinelos
perdidos debaixo duma cama ou uma peça de roupa
não tão usada que ele não pensasse em devolvê-la.
Mas, retendo-a em casa, criava na sua mente a
ideia de que Josefa ia voltar. Depois, isso foi-se
desvanecendo e já não pensava nela senão com
pequenos desejos de macular a sua recordação pondo
em relevo os seus defeitos.
Agora que a Ronda da Noite deixara de ser o seu
altar de meditação, não via como justificar a sua
permanência ali. Todavia, estava enredado com as
famílias vizinhas, as que tinham filhas casadoiras
e que viam nele um partido muito de considerar. A
força desses interesses munidos de sentimentos
apaixonados em que participavam mães e filhas,
paralisava-o a ponto de querer ceder e acabar
assim a sua vida de visionário: extinguindo-se o
poder da sua neurose, ele não tinha outro caminho
senão submeter-se à via doméstica que lhe era
indicada. No simples gesto da parte duma das suas
prováveis noivas,
343
de lhe passar a saladeira à mesa, havia uma
representação sexual. Era como se ela dissesse: "O
meu ventre está ao teu alcance, basta que aceites
esta taça de alface." Ela não via o instinto
sexual como sendo parcial no feixe dos instintos
que contêm forças impossíveis de clarificar. Mas
um homem era diferente. O seu trajecto na vida, a
soma dos seus interesses profundos, derivam de
fontes eróticas não determinadas apenas pela
sexualidade. Ainda que esta desse um impulso ao
instinto de sobrevivência que se mede com todos os
outros como limite do sentido da própria vida.
Quando se dá uma inflação da sexualidade, a
energia do intelecto sofre um golpe que pode ir
até à alteração da realidade.
Parecia-lhe agora a Martinho que a Ronda da Noite
se apoderava dele (o termo é possessão) como um
símbolo cujo significado fosse o seu próprio
pensamento. A pessoa era iluminada para se
transformar na própria obra de arte. A carga
afectiva contida em Rembrandt e nos seus modelos
resultavam na imagem do mundo com o qual, assim,
Martinho criou uma aproximação. Essa tonalidade
afectiva ia ter importância na relação com as
outras pessoas.
Os seus projectos de casamento não deram
resultado, e Martinho acabou por não ser benvindo
no seio das famílias que o tinham recebido com uma
espécie de histeria da procriação. Quase de
repente, perderam todo o escrúpulo e lançaram
sobre Martinho as calúnias que podiam significar
mais para a sua perda. Em primeiro lugar,
avançando além da suspeita, declararam-no
homossexual. Ele próprio se interrogou sobre isso
e procurou na sua infância indícios duma natureza
que se teria tornado "oculta". Descobriu que, aos
quatro anos, costumava esconder-se debaixo das
fraldas da camilha, ainda em uso em casa dos
Nabasco. Gostava de sentir o cheiro do sexo das
mulheres sentadas à mesa. Era preciso tirá-lo à
344
força do seu esconderijo e, sem alcançarem outro
significado que não fosse o duma brincadeira
teimosa, distraírem-no com guloseimas e jogos.
Martinho, já com dez anos, desenvolveu um horror à
sua própria nudez. Vestia-se voltado para a parede
e fechava-se no quarto à chave enquanto se olhava
com desgosto. Invejava as raparigas porque o sexo
delas não era exposto e não podia assim despertar
qualquer repugnância. Achava mesmo que o culto
pela beleza se destinava a ofuscar um sentimento
de desagrado pelo sexo e o programa doloroso do
nascimento.
Quando Martinho contava quatro anos, teve a
primeira fase que se podia dizer nutritiva, em que
a casa da avó lhe foi revelada. E, com ela, a
Ronda da Noite. A primeira noção que teve da cena,
foi que era real. O tamborileiro estava a tocar no
seu tambor; a menina brincava com alguém que não
se via no quadro. E as personagens principais, o
capitão Banning Cocq e o seu lugar-tenente estavam
numa situação precária; porque, tendo a obra,
pelas suas dimensões, sido apeada até ao chão,
para caber na parede da sala de jantar, como
medida de precaução, foi-lhe posto diante um sofá
de palhinha, desses que eram peças de resistência
nos casarões brasileiros. O belo sofá de jacarandá
ocultava até à cintura as figuras do primeiro
plano, que ficavam trucidadas. Elisa, que não
recebeu de boa vontade o pequeno Martinho, porque
ia alterar-lhe a rotina do seu trabalho, explicava
em termos apocalípticos o que era a Ronda: um
agrupamento de aleijados e pessoas disformes,
agrupados na noite com intenções que não podiam
ser recomendáveis. Para Elisa tratava-se duma
revolução, dum assalto, ou qualquer coisa desse
teor onde Banning Cocq e o seu ajudante de campo
tinham perdido as pernas. E como Martinho rompia a
chorar, aos gritos e em riscos de perder a
respiração, ela dizia-lhe que as pernas deles
voltavam a crescer; para ilustrar
345
o que dizia, afastava o sofá e lá apareciam os
belos cavalheiros no esplendor da sua pose.
Martinho, ao crescer, fez da Ronda a sua leitura
preferida. Quando outras crianças se distraíam com
legos e carrinhos de corda; ou até a banda
desenhada com aventuras dos seus super-heróis,
Martinho só comia diante da Ronda e adormecia com
o dedo espetado na sua direcção, a tentar
decifrar, entender e, por conta própria, criar uma
versão satisfatória. Quando Paula o levava com ela
e o vinha buscar no meio de muitas e aliciantes
promessas, Martinho enfurecia-se e atirava-lhe com
o que tivesse à mão. Paula culpava a mãe desse
desaforo, mas a verdade é que Maria Rosa não
retinha a criança nem mesmo a cativava, ocupada
que andava sempre com os seus chapéus, luxo de
após-guerra e volumosos como um canteiro de
flores. Nesse tempo, Maria Rosa era ainda o
bastante nova para inspirar paixões, facto de que
se admirava porque não estava interessada em jogos
eróticos. Mas até Martinho, aos dez anos, sabia
avaliar o encanto da avó, como se fosse uma
feiticeira, de tal modo excitava a sua fantasia,
abrindo caminhos por onde circulava uma libido nem
sempre luminosa. Aprendia que o amor nasce dessa
torrente maliciosa de que o corpo tem o mapa
espiritual.
Com o segundo casamento de Paula e porque nasceram
João e Bernardo quase só duma vez, a situação de
Martinho esclareceu-se: nunca mais haveria aquela
batalha campal entre ele e a mãe, observada por
Elisa que, com as mãos cruzadas na barriga, só
podia dizer: "isso não se faz", meio divertida com
a ira do pequeno Martinho.
Era a casa da avó que ele temia deixar, ou era a
Ronda que ele não dispensava na sua vida? A
verdade simbólica emanava da Ronda e não da
presença de Paula, inadequada como sua mãe. A
Ronda era, no fim de contas, o seu oratório e a
sua religião;
346
tanto mais que qualquer invocação de fé não
passava, na família Nabasco, senão duma inútil e
vaga petição de princípio.
Em tempos muito antigos, quando Maria Rosa não era
ainda nascida, a fé era ainda referida na igreja
como qualquer coisa que junta comodidade ao dia-a-
dia das pessoas. As cadeirinhas, os genuflexórios
da família, estavam na sombra dos pilares do
transepto. Havia também coxins de veludo vermelho
onde os joelhos doentes podiam arrimar-se. Mas
depois tudo isso foi desaparecendo e só Elisa, por
hábito e efeito da sonolência, à noite, rezava o
terço e tinha à cabeceira uma pequena pia de água-
benta que foi ficando seca e sem uso.
Este livro parece que acaba onde devia ter
começado: a infância de Martinho Nabasco. Mas o
fim justifica o princípio. Sem o pequeno Martinho
de quatro anos, assediado pelo tropel da Ronda a
todas as horas do dia, tendo por imaginária
companheira de surpresas e brincadeiras pensadas a
fada luminosa do quadro.
Entre a avó snobe que não lhe prestava muita
atenção porque ela própria enchia o espaço de
todos os processos emocionais; entre ela e Elisa
que nunca soube ser inimiga ou amiga, ele era
feliz. Porque muita coisa escapava às duas
mulheres, como por exemplo o abuso das criadas
mais novas, pobres raparigas da província cuja
maior aspiração era ganhar para uma gargantilha de
oiro e depois para um volumoso relógio de pulso.
Na realidade, o verdadeiro problema que conduzia a
uma neurose profunda, não era a sexualidade. O
sexo é muitas vezes o desvio de causas que
procedem de muito longe e cujo perigo se tenta
saldar com as contravenções do prazer proibido. Os
governos sabem-no. Por isso estimulam festivamente
o acto sexual, as fantasias que ele reclama, para
347
ocultar dos cidadãos as suas autênticas
preocupações. O que consegue é uma neurose
colateral que vai até ao abandono da personalidade
e da vontade criadora.
Quando Elisa se apercebeu que Martinho era alvo de
atenções pecaminosas das jovens, expôs em público
as suas suspeitas (às vezes nada mais do que
suspeitas), obtendo com isso uma satisfação extra
na sua vida de espia e de delatora. Martinho
ganhou uma imunidade a respeito das mulheres. Como
adolescente não se impressionava com a nudez
delas; e isto dava-lhe uma sensação de poder sobre
as dificuldades e contribuiu para uma concentração
maior nos problemas, charadas, enigmas que se lhe
apresentavam ao correr dos seus dias.
A sua educação não teve nada de formal. Maria Rosa
quis educá-lo como um príncipe. Ou quis torná-lo
disponível para a realidade interior, o mundo dos
espíritos e dos sonhos; dos feiticeiros e dos
demónios. Dos deuses também, ainda que ela os
ignorasse, ficando a sua relação com eles
convertida na espuma das lendas e da ficção melhor
ou pior elaborada. Ela não sabia nada dos deuses,
que sempre tinham guiado os homens através da sua
existência irracional. Fez, sem intenção, de
Martinho um primitivo; daí a atracção dele por
Rembrandt, um mago da selva que nunca se desbrava
completamente no mundo interior. Num tempo em que
a superstição parece completamente desbancada pelo
civilizado, Martinho tinha que precaver-se para
não o tomarem por doido. Ao contrário dos cadetes,
seus irmãos germanos, ele não tomava as ideologias
político-sociais senão como novas apropriações da
mágica que se arroga como medida de salvação. A
prova disso era que muitos governantes tinham as
suas bruxas particulares, que os visitavam
regularmente para incutirem-lhes segurança,
sobretudo quando as epidemias
348 AGUSTINA BESSA-LUÍS
psíquicas se declaravam. Fosse porque debaixo da
frivolidade que temperava a sua tendência aos
excessos Maria Rosa atingia uma realidade
profunda; fosse por snobismo, que ela tinha em
mente ser o seu próprio culto da personalidade,
ela não deu a Martinho uma educação que lhe
favorecesse uma carreira.
A carreira tornou-se a alma da emancipação. A
emancipação em relação à mãe, em suma, que
simbolizava a autoridade e a obrigação de fazer
alguma coisa para corresponder às suas próprias
necessidades. Há povos dotados para a inatividade,
assim como há outros que se satisfazem na
obediência e são adequados à aprendizagem. Os
primeiros são povos condenados à pobreza, uma
pobreza mítica porque pressupõe a carência das
necessidades. Qualquer plano para os enriquecer
tem de falhar porque a inatividade pressupõe um
estado mais invejável do que todo o sucesso
material.
A carreira pode significar competitividade, mas
não se assume como objectivo. A educação de
Martinho teve como resultado um estado interior
cada vez mais vasto. Adiantou-se para dentro de si
próprio. O tempo primitivo era reconhecido em cada
uma das suas caminhadas interiores; o mesmo
acontecia com a província rural em vias de
desaparecimento. Por exemplo, o hábito de quando
se encontrava uma ferradura no caminho, ela devia
ser considerada como um bom presságio. Assim como
pendurar a ferradura à porta de casa, posto que a
ferradura é uma protecção contra os feitiços.
Sobre o portal das antigas cavalariças (onde a
Ronda encontrou abrigo durante algum tempo), lá
estava a ferradura, que Martinho achava
indispensável no seu foro íntimo. Se descesse um
pouco no escalão social, verificava que havia
imediatamente uma linguagem que aparentava as
pessoas muito para além dos laços de família.
Algumas lendas que
349
perduravam no meio urbano, apenas como efeito
romântico na imaginação, não se extinguiam, ainda
que sofressem deturpações. Como aquela de se dizer
que as éguas lusitanas eram fecundadas pelo vento.
É o cavalo que simboliza o vento e, na lenda
alemã, ao vento é atribuída uma lascívia com
efeito sobre as mulheres jovens.
Vestígios do culto do cavalo encontram-se
sobretudo no Ribatejo, cujas danças sapateadas
simbolizam o tropear dos cascos no solo; e é muito
possível que esse exercício de homens fosse
outrora uma invocação de fertilidade de que as
mulheres eram excluídas. Comer carne de cavalo é
ainda visto como uma emergência miserável e o seu
uso não esteve nunca generalizado, posto que o
cavalo é uma figura mítica.
Depois da destruição da Ronda da Noite e passado o
período de luto, todos os projectos de Martinho se
desvaneceram. O seu casamento com uma jovem da
região perdeu toda a viabilidade e ele espaçou as
suas visitas até que ela compreendeu que não
estava mais no caminho de Martinho e que ele não
pensava casar-se. De resto, os papéis do seu
divórcio não chegavam, e ele não tinha qualquer
empenho em apressar o caso. Tanto quanto sabia,
Judite também não tinha em vista mudar de estado.
Limitava-se a cuidar do pai, e as coisas
funcionavam como se ele fosse eterno e não
admitissem qualquer mudança.
Entretanto, o rosto de Judite tinha-se esfumado na
sua memória e só olhando para os retratos que
tinha dela podia aproximar-se da realidade que
tivera na sua vida. O retrato do casamento, a que
Maria Rosa quisera dar alguma ênfase, não lhe
dizia grande coisa. Talvez o que é humano não
esteja tão ligado a nós como se pensa, e por isso
prescindimos do que amamos, tão depressa.
350
Como nas pessoas que se concentram no sentimento
da melancolia, a ideia do seu amor extinto por
Judite recriava-se ainda com o seu
desaparecimento. Podia-se dizer que lhe era mais
grata a memória embelezada pela necessidade de a
honrar, do que tudo o que vivera como casado. Os
mestres, ainda que mais medíocres do que sublimes,
tinham-lhe ensinado a arte de sentir, a mais fácil
de degenerar e de redundar na extravagância. Sem o
notar, viu-se preso de inspirações súbitas e
tentações semelhantes a gostos grotescos.
Rembrandt devia ser como ele, um homem sério, por
exemplo, obediente às leis da cidade; mas que, com
o sucesso e a riqueza, se transformasse num
melancólico que se acha atraído pelo desejo de
vingança iluminado por ofensas e injustiças mais
ou menos reais. Ele próprio, Martinho, quis
dedicar-se à pintura e fazer versos. O facto de se
dizer que Portugal é um país de poetas vem dessa
sombra de melancolia e insucesso que a todos
afecta.
Tendo passado uma geração que ele reconhecia pelas
modas que lhe eram comuns, viu-se incapaz de ver
as mudanças senão com uma ponta de desprezo. Sem a
capitosa presença de Maria Rosa, para quem os
outros faziam parte do encantamento por si
própria, Martinho não era senão um adulto por
convicção e, de facto, um homem tímido a quem a
liberdade assustava.
Amputado da Ronda da Noite, Martinho esteve muito
tempo imóvel e encontrou nisso uma satisfação que
qualquer trabalho ou dedicação por alguma coisa no
mundo não lhe podiam dar. Pensou se as ideias mais
nobres do homem não passavam duma encenação dum
efeito teatral que partia da sua má consciência. O
que estava bem explícito no Jardim do Éden, era
esse compromisso do homem para com Deus: o de
construir um palco gigantesco onde se ia imitar a
criação.
351
O valor cultural duma obra em liberdade torna-se
discutível e até condenável; como ficou provado
com a apresentação da Ronda da Noite aos poderes
de Amesterdão, incluindo os das mulheres que se
apressaram a rir-se de Rembrandt e a humilhá-lo,
tomando a plenitude caótica da obra em questão
como uma silenciosa aversão aos ditos poderes. O
que de facto era.
A arte, na obra de Rembrandt, não pertence à
herança que todos esperavam do seu génio. É uma
captura do acontecimento e não a história dele. É
tanto mais extraordinário esse acontecimento
quanto joga com o que lhe é simultâneo: a nudez de
Susana no banho não ignora o olhar concupiscente
dos velhos embora ela não se aperceba da presença
deles. Tudo o que concorre para um efeito é
simultâneo; e antes de um facto se produzir ele já
concorria para a unidade através de pequenos
acontecimentos auxiliares. No caso da casta
Susana, um arrepio que podia ser atribuído à água
da piscina, denuncia o desejo em que ela participa
porque é motivo dele. O erro é o acompanhante duma
verdade e o que a faz percorrer o seu caminho em
segurança. Porque erramos? Naturalmente porque a
verdade se adianta a nós e ameaça assim a nossa
liberdade. É preciso atrasá-la com o erro, que não
é efeito da estupidez humana, mas uma delinquência
propositada que nos faz ganhar tempo sobre a
verdade.
Muita coisa se escreveu sobre o crime, mas deixou-
se de dizer muita coisa sobre ele. Martinho, ao
dobrar a casa dos sessenta anos, teve a revelação
de que tinha uma personalidade policial.
O extraordinário interesse que o crime desperta,
tanto no aspecto ritual (sacrifício sangrento)
como no carácter de transgressão absoluta, tem um
significado que escapa ao racionalismo
352
habitual. Martinho perguntava a ele próprio o que
tinha movido Maria Rosa a adoptar a órfã de
Estrelinha Sopa-de-Massa. Seria só indulgência e
uma forma de extravagância, o desejo de desafiar a
sua auto-estima, ou outra coisa mais
inconfessável, como o prazer de aplaudir a
singularidade do crime?
Desde a ira de Caim que, de resto, criou a seita
dos caimitas, os que contestavam a preferência de
Deus pelo pacífico Abel, que a psicologia
histórica do erro esteve em causa. A violência foi
consagrada como um processo útil de provar a
aptidão do homem para a relevância dos seus
direitos.
Tudo isto seria muito impopular se Martinho Dias
Nabasco se dedicasse a uma carreira pedagógica, ou
simplesmente a uma convivência normal com as
pessoas do seu tempo. Mas, à parte a tentativa de
não se manter à margem da sociedade, como quando
pensou casar outra vez e gerar filhos (não
esquecia a promessa de Josefa de os criar), ele
não via saída para a sua situação.
Feitas as contas com Paula e os irmãos, os seus
meios não eram abundantes. Paula levara tudo o que
pudera, inclusive a pequena ânfora com as cinzas
de Maria Rosa, do que se arrependeu; porque não
sabia onde pôr o que considerava uma relíquia, mas
não tanto que lhe dedicasse um oratório como os
japoneses aos antepassados. Os cadetes olhavam
para aquilo com indiferença, tanto mais que
estorvava em qualquer parte.
- E se as lançássemos ao mar? - disse João,
puxando as meias brancas até ao joelho, como
sempre fazia quando se sentava. Era um genuíno
cidadão urbano e tudo o que se passava além da
Rotunda do Relógio era a província, ou seja,
território bárbaro. Lisboa acabava no fim da
Avenida das Descobertas. E todas aquelas casas dum
carácter palaciano
353
(dizia-se palacete no antigamente) estavam
adaptadas a fins sociais; a vida de família tinha
sido extinta, um tanto porque a raiz capitalista
não era mais exposta nos indícios de riqueza
francos e pomposos. Paula reagiu com a ideia de
atirar ao mar as cinzas de Maria Rosa. Martinho
viveu a lembrança das férias em Vila do Conde,
coutada da gente da capital, onde o mar era
alteroso e onde às vezes apareciam afogados com
camarões presos nos cabelos. Nunca viu nenhum, mas
essas histórias causavam-lhe arrepios. Lançar ao
mar as cinzas de Maria Rosa parecia-lhe uma
profanação. Optou por fazer-lhe um nicho numa
salinha que tinha sido de costura e agora não
tinha mais utilidade. - Assim está bem - disse
João. A avó era uma imagem descontínua em volta do
tronco da família que ia sofrendo golpes, apagando
as inscrições amorosas. Lendas, ditos de espírito
ou pacóvios, que sedimentavam a memória de grupo,
tinham sido arrumados num canto onde ninguém
passava, como na salinha de costura de Paula. Um
dia, quando João se casasse e tivesse filhas, elas
haviam de lançar gritinhos de júbilo ao descobrir
os vestidos de Maria Rosa, obras de arte com molas
forradas e remates artesanais. "Meu Deus, no que
se perdia o tempo..." - diriam.
Desde o dia em que Martinho, aos quatro anos,
encontrou o seu caminho na Ronda da Noite, como se
fosse a floresta do Pequeno Polegar, a avó passou
a ser a rainha má da história. Aos sete anos
internou-o num colégio de padres onde não sabia o
que fazer senão interrogar-se sobre tão terrível
castigo. Por fim, um dos contínuos, que tinha o ar
dum guarda prisional, aconselhou Maria Rosa a
levar a criança.
- Não se sabe defender e vai apanhar uma doença -
disse. Martinho passou a ter um grande respeito
por todo o tipo de guardas, fossem enfermeiros,
porteiros ou até jardineiros
354
municipais. Achava que eles tinham enormes poderes
e eram capazes de libertar da sua condenação
pessoas como ele. Martinho passou todo o ano
seguinte com pequenas febres que não era possível
detectar. Comia batatas fritas e lia revistas de
banda desenhada. Maria Rosa mostrou-se
compreensiva, tanto mais que o doutor Horácio
Assis e Bento Webster, o poeta, lhe diziam para
ser paciente. Martinho ia abrir as asas e mostrar
o que valia, em qualquer altura.
Aos dez anos sabia muito pouco da matéria do
liceu. Era indolente, não brincava, excepto quando
construía cidades de cartolina às cores. Isto
prometia que ele fosse arquitecto. Quando se
encontra o destino para uma criança parece que
todas as coisas se ajustam e que os bens culturais
positivos foram cumpridos. Mas Martinho era
incapaz do mesmo ritmo de progresso que faz feliz
uma geração sem a fazer cultivada. A política
cultural da sua época fazia parte dum conteúdo
objectivo sem limites; enquanto que a cultura
subjectiva só muito lentamente se aprofundava.
Fosse pelo desinteresse de Maria Rosa, que não via
os efeitos da idade da razão manifestados tão
depressa como ela desejava, a verdade é que
Martinho ficou entregue a si próprio. Tiveram
fracos resultados as lições dos professores
particulares, que acabavam sempre por insinuar a
incapacidade do aluno para aprender. Só quando
apareceu na sua vida um jovem mestre, por quem
Martinho se pode dizer que se apaixonou é que ele
despertou para o estudo e venceu todos os exames
com extrema facilidade. O jovem professor, quando
não teve mais que ensinar, foi dispensado.
Martinho mergulhou num desespero que tratou de
ocultar de toda a gente. A avó era uma eterna
coquete, sem mais alma do que a que lhe davam os
vestidos e o seu desejo de eternidade. De vez em
quando falava dele com orgulho, porque tudo era
matéria
355
para o seu snobismo. Dizia-se oriunda dos Diez de
Espanha e foi ela que inventou a Ronda da Noite
como fazendo parte do tesouro da duquesa de
Mântua; que o deixou ficar para trás nos caminhos
da Estremadura por causa das suas dimensões
exorbitantes.
Quando os Nabasco estavam o que chamavam "bem de
finanças", mudavam-se para a cidade, a pretexto de
irem a banhos para as praias do Molhe ou de
frequentarem gente importante. A beleza de Maria
Rosa abria-lhe as portas e, tendo já a filha
casada segunda vez, ainda despertava paixões. Não
que ela lhes desse motivo, porque a sua melhor
táctica era a duma amizade amorosa, muito em voga
com o flirt. Os costumes, depois da primeira
Guerra Mundial, tinham-se tornado "infanticidas",
como dizia Margô, a cunhada de Maria Rosa. Os
contraceptivos, a higiene íntima, tornavam o acto
amoroso estéril. As famílias numerosas
desapareciam e o filho único melhorava as
condições da vida doméstica. Quando a segunda
Guerra estalou, com o ideal germânico da prole bem
nascida e educada para um conceito de vitória
compreendido como realidade construtiva, encheu o
espaço europeu como uma grande bolha de ar.
Apareceram as refugiadas, que não usavam meias e
tomavam banhos de sol completamente nuas na praia.
Paula tratava de as imitar, mas as restrições
tradicionais da família impunham-lhe um decoro que
era o garante do casamento conveniente.
No solar dos Nabasco não havia vestígios quase de
Maria Rosa. Ela negociava com o marido o pulo para
a cidade e conseguia passar os invernos fora,
algumas vezes até em Paris, que era a sua
metrópole muito querida. Passava por parisiense,
com o seu ar desinibido e elegante. Mas depois de
Paula se casar pela segunda vez e o Nabasco
comprar na Maia a Casa do Cão, as coisas mudaram
radicalmente. Foi quando a Ronda
356
ficou abandonada, com o sofá de palhinha a tolher
as pernas do capitão Banning Cocq. Passaram alguns
anos antes que Martinho desse pela sua falta. Foi
por acaso que se encontrou com a Ronda. O avô
tinha morrido e foi sepultado, no lugar da sua
origem e não no território dos Dias. A grande
pedra do sepulcro abriu-se para ele e foi a última
vez que se abriu. Maria Rosa impressionou-se com
aquela pesada laje sobre uma grelha de ferro
destinada a deixar cair o corpo, conforme se ia
desfazendo, na cova funda. Varrida e limpa, a cova
não apresentava vestígios doutros enterros. O que
faziam aos restos, coveiros ou quem fosse, não se
sabia. Decerto procuravam os dentes de ouro e
mexiam nos ossos como em desperdícios sem valor.
Talvez fossem parar ao lixo, e daí aparecerem
caveiras intactas entre os resíduos fumegantes que
pareciam arder eternamente à beira da estrada.
Quando o avô morreu (ainda não se falava no
casamento com Judite), Martinho fez uma visita à
casa da Ronda. Tratava-se, mais propriamente, de
proceder às obras no jazigo, muito danificado por
infiltrações e o andar do tempo em geral.
O dia apresentava-se tempestuoso e Martinho teve a
ideia de abrigar-se na Ronda, que era perto, na
colina com ares de castro romano. Mas o caminho
estava intransitável. Martinho meteu o carro por
um estradão que acabava alguns metros adiante.
Lembrava-se das trovoadas que se formavam nos
quatro cantos do vale, e preocupou-se. Mas o
portão da Ronda estava à vista, ainda que fechado
e coberto de ferrugem. Só havia maneira de passar
adiante, era saltar por cima da sebe que murava a
entrada; o que Martinho fez, ficando pouco
apresentável e coberto de ramos enegrecidos pela
chuva.
A porta da casa estava encostada, provavelmente
tinha-se perdido a chave.
357
Se havia cães, ele não deu por isso. "Era o que me
faltava", pensou. A água corria, cobrindo-lhe os
sapatos e ele percebeu que estava num lugar seu
conhecido. Martinho sabia que havia um pátio
diante da entrada principal, um pátio musgoso e
empedrado. Um alto cipreste montava guarda à
entrada. Ele entrou. Percorreu os três salões, as
luzes da cidade próxima cintilavam por entre os
fios de chuva. E à luz espaçada dos relâmpagos ele
viu a Ronda. Parecia ter uma iluminação própria,
com a menina vestida de seda, a correr por entre a
companhia do capitão Banning Cocq e do seu lugar-
tenente. Um sentimento à margem da sua cultura, à
margem daquela noite em que a chuva se despenhava
do telhado, apoderou-se dele. Pelas suas
dimensões, o quadro estava arrimado à parede como
se tivesse escorregado; a sua base estendia-se
pelo soalho e parava porque uma trave pregada no
chão o impedia de se estender completamente na
sala. Martinho tinha o capitão junto dos seus pés,
mas não o podia ver graças à escuridão. A única
parte visível era a jovem vivandeira ou fada que
parecia esgueirar-se alegremente para o outro lado
do salão. Parecia ter vida e despedir um olhar
travesso em direcção a Martinho.
A chuva abrandara, mas ele não tinha vontade de
voltar a fazer o caminho de volta. Quem lhe dizia
que não podia haver uma derrocada e o passo estar
impedido? Ou até ele ser apanhado nela, de mistura
com pedras e raízes?
Procurou velas e achou, no lar da cozinha, um
prato que servia de castiçal. Tinha em cima um
bocado de estearina a que ele ateou lume; brilhou
uma luz fumosa e, lentamente, para prevenir os
golpes de vento que apagassem a vela, Martinho
voltou para a sala.
358
Era nessa noite que ele pensava, muitos anos
depois, já quando a Ronda da Noite não existia, e
ele estava sentado diante da porta principal
aberta de par em par. Decorria a canícula em
Julho, e um bafo quente, filtrado pela ramada do
pátio, chegava-lhe ao rosto. Tinha na mão um
enxota-moscas feito de papel de jornal, como se
usava em tempos; de vez em quando Martinho agitava
o ar com ele e o seu pequeno rugido lembrava-lhe
que não estava só. Tinha vestido um fato de linho
que lhe ficava largo; não se lhe viam os pés
debaixo das pernas das calças que arrastavam.
Pensou com uma ternura súbita no quadro que o
acompanhara desde a sua tenra idade, e não sentiu
pena de o ver destruído. Deixara-lhe uma ideia
profética, como se o mundo começasse, desde a sua
obscura pincelada, a conhecer-se melhor. A
companhia do capitão Banning, mau grado a sua
ordem de marcha, divertia-se desobedecendo, porque
"toda a lei é uma injustiça". O desafio estava
lançado pela intuição do artista. Já quando a
segunda Guerra Mundial quis impor uma disciplina
universal, moral, étnica, artística, as coisas
estavam no fim. Não se tinha combatido por paixão
guerreira, por fixação num lugar mental que se
queria eterno; combatia-se cegamente porque todas
as razões estavam em causa e entravam em agonia.
"Se assim for, melhor é" - disse Martinho. A lei
era a consciência de cada um; e ainda que nem em
dez mil anos isso fosse um pressentimento que se
troca na interacção dos homens, mesmo os mais
insignificantes e transitórios, valia a pena
esperar.
O vento cálido, que arrastava a flor do
sabugueiro, entrou pela sala. Era como se a Ronda
chegasse, com o seu porta-bandeira e homens
armados de escopetas; e a pequena fada,
359
vibrante de entusiasmo, se juntasse a eles, para
rir, para provocar, para dizer quanto a terra é
jovem.
Martinho teve uma pneumonia na entrada do Inverno
e não pôde vencer a doença. A enfermeira que vinha
recolher sangue para análises perguntava-lhe
sempre a mesma coisa:
- Então não consegue? Não consegue?
Ele estava convencido que conseguia. Como toda a
gente, aliás.

Porto, 16.07.2006

OBRAS DE AGUSTINA BESSA-LUIS

MUNDO FECHADO, novela, 1948


OS SUPER-HOMENS, romance, 1950
CONTOS IMPOPULARES, contos, 1951-1953, traduzido
para espanhol
A SIBILA, romance, 1954, traduzido para alemão,
francês, espanhol, italiano,
romeno - publicado no Brasil
OS INCURÁVEIS, romance, 1956
A MURALHA, romance, 1957
O SUSTO, romance, 1958
O INSEPARÁVEL, teatro, 1958 (posto em cena)
TERNOS GUERREIROS, romance, 1960
EMBAIXADA A CALÍGULA, viagens, 1961
O MANTO, romance, 1961
O SERMÃO DO FOGO, romance, 1962
AS RELAÇÕES HUMANAS
OS QUATRO RIOS, romance, 1964
A DANÇA DAS ESPADAS, romance, 1965
CANÇÃO DIANTE DE UMA PORTA FECHADA, romance, 1966
A BÍBLIA DOS POBRES HOMENS E MULHERES, romance,
1967
AS CATEGORIAS, romance, 1970
A BRUSCA, contos, 1971,
"A Mãe de um Rio", adaptado para cinema.
SANTO ANTÓNIO, biografia, 1973
AS PESSOAS FELIZES, romance, 1970
CRÓNICA DO CRUZADO OSB, romance, 1976
AS FÚRIAS, romance, 1977, adaptado para teatro e
posto em cena)
FLORBELA ESPANCA, biografia, 1979
CONVERSAÇÕES COM DMITRI E OUTRAS FANTASIAS,
crónicas, 1979
FANNY OWEN, romance, 1979, tradução para francês,
alemão, espanhol -
adaptado para cinema..
O MOSTEIRO, romance, 1980, traduzido para francês.
SEBASTIÃO JOSÉ, biografia do Marquês de Pombal,
1981 - publicado no Brasil
LONGOS DIAS TÊM CEM ANOS, biografia de Vieira da
Silva, 1982
OS MENINOS DE OURO, romance, 1983
ADIVINHAS DE PEDRO E INÊS, história, 1983
UM BICHO DA TERRA, romance, 1984, tradução para
espanhol.
A MONJA DE LISBOA, romance, 1985
A BELA PORTUGUESA, teatro, 1986, posto em cena.
O APOCALIPSE DE ALBRECHT DÚRER, comentário, 1986
CONTOS AMARANTINOS, contos, 1987
DENTES DE RATO, memórias de infância, 1987;
A CORTE DO NORTE, romance, 1987, traduzido em
francês.
PRAZER E GLÓRIA, romance, 1988
AFORISMOS, 1988
EUGÉNIA E SILVINA, romance, 1989
VENTO, AREIA E AMORAS BRAVAS, memórias de
infância, 1990
VALE ABRAÃO, romance, 1991, tradução para francês,
grego e dinamarquês;
adaptado para cinema; publicado no Brasil.
BREVIÁRIO DO BRASIL, viagens, 1991
ESTADOS ERÓTICOS IMEDIATOS DE SÕREN KIERKEGAARD,
teatro,
1992, tradução para dinamarquês.
ORDENS MENORES, romance, 1992
O CONCERTO DOS FLAMENGOS, romance, 1994
AS TERRAS DO RISCO, romance, 1994, tradução para
francês.
ALEGRIA DO MUNDO 1, 1996, escritos dos anos 1965 a
1969
MEMÓRIAS LAURENTINAS, romance, 1996
PARTY, diálogos, 1996, tradução para francês;
adaptado para cinema.
UM CÃO QUE SONHA, romance, 1997, trad. alemão,
dinamarquês e francês.
GARRETT-O EREMITA DO CHIADO, teatro, 1998
O COMUM DOS MORTAIS, romance, 1998
ALEGRIA DO MUNDO II, escritos dos anos 1970 a
1974, 1999
A BELA ADORMECIDA, adaptação a bailado, 1999
A QUINTA ESSÊNCIA, romance, 1999
CONTEMPLAÇÃO CARINHOSA DA ANGÚSTIA, pequenos
ensaios, 2000
O PRINCÍPIO DA INCERTEZA JÓIA DE FAMÍLIA, romance,
2001
A ALMA DOS RICOS, romance, 2002
OS ESPAÇOS EM BRANCO, romance, 2003
AS MENINAS, ilustrações de Paula Rego, 2001
ANTES DO DEGELO, romance, 2004
DOIDOS E AMANTES, romance, 2005
FAMA E SEGREDO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL, ilustração
Luís Miguel Castro, 2006
Composto por Guimarães Editores
em Lisboa
Impresso por
Tipografia Guerra
em Viseu Setembro de 2006
ISBN 972665-513-7 Dep. Legal N.º 245 804/06

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