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Texto 06 Patrícia Melo
Texto 06 Patrícia Melo
Não se sabe, com exatidão, quando Laudelino chegou a Belém do Pará mas é certo
que já estava servindo no Arsenal da Marinha daquela cidade quando, em outubro de 1855,
embarcou no vapor Rio Negro em direção à Província do Amazonas. Laudelino era um dos
africanos livres que, depois de uma jornada indescritível, alcançou os confins do Império.1
Em Manaus, Laudelino foi engajado nas obras públicas provinciais. Era esperado.
Afinal, no curso da década de 1850, a capital da recém-criada província do Amazonas passava
por um processo de expansão urbana; eram pontes, aterros, prédios para a administração
provincial, entre outros empreendimentos. Naturalistas que passavam pela cidade
descreveram o estado de agitação que tomava conta da pequena vila em decorrência da
mudança de seu status político. O inglês Alfred Russell Wallace encontrou dificuldades para
encontrar alojamento porque “(...) as casas estavam todas ocupadas e os aluguéis haviam
subido assustadoramente pois a cidade recebia um contínuo afluxo de estrangeiros e
comerciantes.”2 Não faltaria trabalho para Laudelino durante os anos que se seguiriam...
Mas ele não era o único; Geraldo também veio do Pará em 1860 e, em Manaus,
encontrou vários outros. Dessa vez, eles estão nas páginas dos jornais sendo, freqüentemente,
presos por embriaguez e outras desordens: Teófilo Benedito é um dos mais contumazes, mas
ainda se pode enumerar Domingos, Teodoro e Simão, nomes que revelam novas faces
5 “ Ora, para a identificação das espécies amazônicas que deviam ser colhidas na floresta, o negro africano não era a mão-
de-obra indicada. Essa devia ser solicitada aos contingentes da brugrada local(...). Daí o descaso pela contribuição
africana que não fazia falta.” Cf. Reis, Artur C. F. Tempo e Vida na Amazônia. Manaus: Ed. Governo do Estado, 1965, p.
147-148..
6 Pereira, Manuel Nunes. “A introdução do Negro na Amazônia”. Boletim Geográfico, n.º 77, 1949, pp. 509-515; Salles,
Vicente . O Negro no Pará. Rio de Janeiro: FGV/UFPA, 1971; Vergolino-Henry, Anaíza e Figueiredo, Arthur Napoleão.
A presença africana na Amazônia colonial: uma notícia histórica. Belém: APP/SECULT, 1990;. MacLachlan, Colin M.
“African Slave Trade and Economic Development in Amazonia, 1700-1800” in Toplin, Robert B. Slavery and Race
Relations in Latin America. Westport, Connecticut/ London, England: Grenwood Press, 19, p. 112-145; Acevedo- Marin.
Rosa Du Travail Esclave au Travail Libre: Le Para sous le regime colonial et sous l’empire ( XVIIe – XIXe siècles)
Doctorat de Troisième Cycle – Paris, 1985; Funes, Eurípedes. Nasci nas matas, nunca tive senhor: História e memória
dos mocambos do Baixo Amazonas. Tese de Doutorado – USP, São Paulo, 1995; Gomes, Flávio. A Hidra e os Pântanos,
Op. Cit.; Bezerra Neto, José Maia. Escravidão negra no Pará, séculos XVII – XIX. Belém: Paka- Tatu, 2001. É
importante considerar os trabalhos realizados por Edna Castro e Rosa Acevedo-Marin com relação às comunidades
quilombolas do Pará. Ver, em especial, Negros do Trombetas: Belém: CEJUP/UFPA:NAEA, 1998 e o CD-Rom
Quilombolas do Pará: mapeamento de povoados negros rurais. Belém,Ed. NAEA - UFPA, 2005.
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permitiram a emergência de uma sociedade na qual índios e africanos de diferentes
procedências se misturaram intensamente, fazendo surgir “(...) mais precocemente uma
sociedade multicultural e miscigenada que é a característica essencial da sociedade brasileira
do pós 1888.”7
Também é importante destacar, como já fez Rafael Chambouleyron, que “a idéia de
que a relação plantations/escravidão africana e a experiência do nordeste açucareiro
representam um modelo ideal, dificulta a compreensão da experiência do Estado do Maranhão
no século XVII. (...) O problema de considerar a Amazônia como região periférica é pensá-la
como ' incompleta' ou como 'fracassada' quando era apenas diferente.”8
7 Bezerra Neto, J. M. Escravidão negra no Pará, séculos XVII- XIX, op. cit., p. 9.
8 Chambouleyron, Rafael. “Suspiros por um escravo de Angola. Discursos sobre a mão-de-obra africana na Amazônia
seiscentista” Humanitas. Belém: UFPA, vol. 20, nº. 1/2, 2004, p. 99-111.
9 Florentino, Manolo. Em Costas Negras. SP: Companhia das Letras, 1997, pp. 78–100. Os dados dos inventários estão em
Sampaio, Patricia. Espelhos Partidos, op. cit
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escravos para o Rio de Janeiro. 10
Entender a presença de escravos no Grão-Pará significa buscar as formas de sua
inserção nessa sociedade. Circular em Belém ou Manaus significava encontrar nas ruas
carregadores africanos, vendedoras de açaí, mucamas e criados, forros negociando suas
produções de tabaco, artigos de latão e cobre, chapéus de palha, oferecendo seus serviços de
sapateiro, carpinteiro e ourives, folgando nas festas do Espírito Santo, de Nossa Senhora de
Nazaré ou ainda, membros da Irmandade do Rosário. 11
Escravos foram utilizados em outras tarefas como a construção de fortalezas,
condução de embarcações para o Mato Grosso, no cultivo da cana, arroz, tabaco, mandioca,
milho, nas fazendas de criação de gado e cavalos do Marajó. Também eram artesãos, tecelões
de chapéus de palha, de redes de algodão e maqueiras. Foram apanhadores de açaí,
pescadores, padeiros, trabalhadores do porto, serventes de obras públicas, calafates,
carpinteiros, pedreiros, ferreiros, vendedores de tabaco, garapa e frutas, lavadeiras, vendeiras,
cozinheiras, que sabem “coser, lavar, engomar, cozinhar e também ganhar na rua”.
Eram muitos. Ou, ao menos, o suficiente para não poder serem ignorados. Os dados
demonstram o caráter multiétnico da capital colonial da Amazônia Portuguesa; a maioria de
sua população era não-branca.12
População de Belém: Quadro % comparativo
Ano/ Livres Escravos
Condiçã Brancos Pretos, Índios e
o Mestiços
1787 38% 11% 51 %
1792 51% 13% 36 %
1822 45 % 9% 46 %
1849 75% 25%
Fonte: Cf. Sampaio, P. Espelhos Partidos, op. cit..Os dados de 1849 registram apenas a condição jurídica.
10 Carreira, A. Op. cit. , p. 100; Vergolino-Henry , A .& Figueiredo, N. Op. cit. p. 50.e Florentino, M. op. Cit. , pp. 80-81.
11 Registra-se a existência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos já em 1727. As informações
sobre as atividades de escravos e negros livres foram recolhidas nos viajantes. Cf. Henry Bates. Um naturalista no rio
Amazonas, pp.12, 25, 45-46; Alfred R. Wallace. Viagem pelos rios Amazonas e Negro, pp. 20, 27, 33, 67-68, 82 e Spix e
Martius, Viagem ao Brasil (1817-1820), op. cit., p. 26 e 29.
12 Salles, V. Op. cit. pp. 317-327.
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Observando os números relativos à Capitania do Rio Negro ( os “sertões”) para os
anos de 1775 a 1795, a preponderância dos índios é incontestável deixando claro que a
presença escrava poderia carregar outros significados. Evidentemente, não constituíam a base
da força de trabalho dos sertões, mas estavam presentes demarcando fronteiras diferenciadas
em um mundo onde era possível ser propriedade de outrem.
Quanto às estruturas de produção na segunda metade do XVIII, Ciro Cardoso
verificou o crescimento de um setor produtivo baseado no uso da mão-de-obra escrava e
também índia, conformado em grandes propriedades agrícolas. A ascensão desse setor é
visível nas áreas de ocupação mais antigas como os arredores de Belém (Acará, Moju e
Capim) - zona tradicional de lavoura canavieira com a predominância de engenhos reais - e
também produtora de produtos para exportação, especialmente, o arroz, fumo e cacau. Esse
perfil estendeu-se ainda a parte da Ilha de Marajó, alcançando a calha do rio Tocantins sendo
a Vila de Cametá, localizada nesse rio, um bom exemplo desse processo de expansão. No
caso do Rio Negro, esse quadro é diferente; suas produções mais rentáveis estão vinculadas
aos produtos da floresta, entre eles, salsa, urucu, cacau, piaçava, óleos vegetais e outros. A
produção de alimentos para abastecimento da capitania era realizada nas pequenas
propriedades, marcadas pela presença heterogênea de camponeses (brancos, índios e
mestiços) e também nas vilas pombalinas nas roças do Comum.
Não há o que negar acerca da importância da presença da escravidão africana no Pará
colonial, possibilitando inclusive uma certa “redistribuição” das hierarquias e das próprias
fronteiras para delimitação das desigualdades sociais. A propriedade escrava constituía-se,
sem dúvida, em um indicador poderoso nessa direção. Seguramente uma parcela da população
indígena aldeada, exercitando as prerrogativas de seus cargos e postos, pôde ter acesso à
propriedade de almas. Daí decorre mais que uma nuance: a questão da liberdade. Se os índios
podiam ser engajados em formas de trabalho compulsório, no limite, eram legalmente livres
ao contrário dos negros. A propriedade escrava demarcava outro limite no final do século
XVIII: a legislação complementar à Carta Régia de 1798 estabelecia que, entre aqueles que
poderiam isentar-se do alistamento compulsório nos corpos militares de serviço, estavam os
que fossem proprietários de escravos. 13
A possibilidade de escapar do recrutamento e do trabalho forçado era viabilizada pela
propriedade de homens e estabelecimentos minimamente rentáveis. Excluídos do
recrutamento, a propriedade ainda podia garantir o acesso (ou a permanência) nas milícias,
13 Cf. BNRJ – I, 32, 16, 41 – Instrucção Circular sobre a formatura de novos corpos de milícias.
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forças móveis que podiam ser deslocadas para reforçar as tropas permanentes. Ser
proprietário significava garantir sua própria liberdade, assegurar sua mobilidade espacial com
menores restrições e ainda o acesso a postos militares que lhes garantiam outras honrarias e
prerrogativas.14
“Índios, Mestiços e Pretos que não forem escravos...”: o mundo do trabalho “livre” no o
Pará provincial
14 Sobre o funcionamento das milícias, ver Sampaio, Patricia. “ Caminhos possíveis: as armas e a República” in Espelhos
Partidos, op. cit.
15 Cf. Sampaio, P. e Santos, M. “ Legislação indigenista das províncias do Pará e Amazonas: uma compilação (
1838-1889)” in Sampaio, P. & Erthal, R. Rastros da Memória. Manaus: EDUA/CNPq, 2006, pp. 284-285.
16 Fuller, C. “Vossa Senhoria não manda em casa alheia”: disputas em torno da implantação dos Corpos de
Trabalhadores na Província do Pará, p. 173 ( texto inédito)
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castas”.17
A despeito do inquestionável impacto da Cabanagem nas interpretações sobre o Pará,
parece importante considerar o caminho fecundo proposto por Cláudia Fuller para uma leitura
mais ampla quanto à natureza dos Corpos de Trabalhadores. De início, a autora procura
vincular o processo verificado no Pará a uma situação histórica mais abrangente e aponta para
a emergência de várias experiências similares sendo conduzidas em outras províncias
imperiais. Partindo da análise de trabalhos sobre a Bahia e Pernambuco, Fuller acredita que “é
possível associar as Companhias não apenas a um contexto provincial, mas também a uma
preocupação existente dentre as elites nacionais com os rumos de um Brasil já independente e
que procurava se definir como uma nação 'civilizada'.”18
No processo de implantação dos Corpos, muitos optaram pela deserção sistemática,
enquanto outros reagiram, com violência, ao recrutamento. Entretanto, pouco mais de dois
anos depois, foi publicado um conjunto de isenções ao recrutamento. Estavam dispensados os
que tivessem menos de quatorze e mais de cinquenta anos; os oficiais e aprendizes de ofícios;
os feitores de fazendas e os filhos únicos com família a seu cargo. Logo após a publicação das
isenções, reduziram-se os contingentes e as reclamações dos comandantes porque, excetuados
os desertores, todas as outras dispensas estavam amparadas pela lei. Fuller chama a atenção
para as múltiplas possibilidades de leitura desse processo. De um lado, pode-se tomar como
válida a idéia de que população passou a manejar as isenções em seu benefício; de outro, os
próprios comandantes poderiam ter sido lenientes nesses julgamentos de tal sorte a manter os
trabalhadores em seus distritos, disponíveis para atender demandas locais.19
Outros caminhos, porém, estavam abertos nesse mundo do trabalho “livre” no Pará e
os Corpos de Trabalhadores não eram a única instituição a drenar homens pelo recrutamento.
Existia ainda o Batalhão de Polícia da Província, o Arsenal da Marinha, o Arsenal da Guerra,
a Armada Imperial e, a partir de 1855, para os menores de 14 anos, a Escola de Aprendizes da
Marinha. A concorrência era, realmente, feroz.
Porém, essa miríade de redes de recrutamento compulsório também pode ser lida não
apenas como a expressão da força do estado provincial, disciplinando suas gentes de cor,
embora muito ainda seja necessário dizer sobre esses processos no Pará. Afinal, são centenas
de encaminhamentos de homens adultos e adolescentes para um desses destinos, sem contar
17 Ver, em especial, Moreira Neto, C. A Índios da Amazônia: de maioria a minoria. Petrópolis: Vozes, 1988.
18 Fuller, C. op. cit., p. 179.
19 Fuller, C. Op. cit. p. 188.
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os mapas de recrutas, vindos de todas as vilas e povoações do Pará e do Amazonas.20
Contudo, um pouco mais de atenção à extensa documentação do Arquivo Público do
Pará revela que, mesmo sujeitos ao recrutamento, ainda havia a possibilidade de escolher que
destino tomar. Fuller registra que era comum a circulação de indivíduos entre os corpos de
trabalhadores e os batalhões policiais. Em outras ocasiões, cabe admirar a habilidade de
determinados sujeitos em burlar muitas armadilhas do recrutamento; esse é o caso de
Domingos Agostinho, que tentava se apresentar (de novo) como recruta para o Exército em
1866, conjuntura aguda de recrutamento para o esforço de guerra contra o Paraguai. Também
podia tentar se alistar no Batalhão de Artilharia da Guarda Nacional o que sinalizava para uma
larga experiência de armas. O secretário de Polícia, João Caetano Lisboa, cumpria seu papel,
razoavelmente informado sobre os possíveis movimentos de Agostinho e reclamava
providências ao presidente da província, o Barão de Arary: Caso ele aparecesse, tentando se
alistar como recruta, que fosse imediatamente preso: era um réu, fugitivo da polícia. 21
23 Ver. Sampaio, Patricia. Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias sociais em Manaus, seculo XIX. Manaus: EDUA,
1997.
24 Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial do Amazonas em 08 de julho de 1856 pelo presidente da
província Dr. João Pedro Dias Vieira, RPPAm, v.I, p.475, Anexos 5 e 6.
25 Relatórios da Presidência da Província do Amazonas de 05 de setembro de 1866; de 04 de abril de 1869; de
25 de março de 1871.
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e Serinhaém e estavam cedidos à Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas para a
colônia da empresa em Itacoatiara. Os que estavam na capital, envolvidos com a reconstrução
da igreja matriz, não foram poupados: afirmava o presidente da província que eram “ rixosos,
ébrios e madraços”.26 Preguiçosos
Quase uma década depois, a reputação dos africanos livres não parecia ser das
melhores. Adolfo Albuquerque registrou, mais uma vez, que eles eram dados à embriaguês e
isso os tornava “ turbulentos” e “ rixosos”. Mais do que isso, não hesitavam em sacrificar seus
salários ao vício! Porém, mesmo a avaliação enviesada do presidente deixa entrever outras
formas de enraizamento: “Os poucos, que não estão nesse caso, possuem habitação própria e
pequena lavoura nas circunvizinhanças da cidade.”27
Porém, não eram apenas os africanos, os “ ébrios, turbulentos e rixosos”. Também os
índios recrutados para o trabalho na capital recebiam epítetos similares. Afinal, como diziam
os viajantes: Em Manaus, “todos mandriam...” De modo geral, além da atávica preguiça dos
locais, uma reclamação recorrente entre administradores provinciais dizia respeito à carência
de mão-de-obra especializada. Isso significava, na prática, que o treinamento era feito “em
serviço”. Em 1855, os africanos livres, junto com outros 19 índios estavam “ se aperfeiçoando
nos oficios de pedreiro, carpina e oleiro”.Os resultados não tardam a aparecer: em 1857,
Manoel Miranda assegura que a construção da ponte do Espírito Santo foi “excelente escola
para os operários da Província, uma grande parte dos quais se acha hoje habilitada para
trabalhos importantes.28