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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

ELAINE MARIA DA SILVA DOS SANTOS

DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES:


UM OLHAR PARA AS NARRATIVAS DOS ACADÊMICOS SOBRE O PROCESSO
DE DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Tubarão
2020
ELAINE MARIA DA SILVA DOS SANTOS

DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA E FORMAÇÃO INICIAL PROFESSORES: UM


OLHAR PARA AS NARRATIVAS DOS ACADÊMICOS SOBRE O PROCESSO DE
DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Educação, nível
Mestrado, da Universidade do Sul de
Santa Catarina, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em
Educação.

Orientadora: Profa. Luciane Pandini Simiano, Dra.

Tubarão
2020
Dedico aos presentes e futuros
professores, que nunca haverão de perder
o brilho no olhar...
AGRADECIMENTOS

Retomar memórias, voltar ao passado e reaver vestígios aparentemente


esquecidos foram os principais desafios que o Mestrado me apresentou. Provocações
que me levaram a pesquisar, observar, refletir, registrar, conhecer, reviver e viver
novas experiências, foram caminhos e escolhas que expressaram e marcaram os
encontros.
Hoje, inundo-me de sentimentos que me conduzem a clamar a palavra
GRATIDÃO!
Gratidão a Deus e à espiritualidade amiga, por essa existência, pela proteção
e bons pensamentos. Tenho convicção de que em todos os momentos, na
tranquilidade ou desespero, no cansaço ou alívio, com medo ou certezas, choros ou
risos descontrolados, certamente, sempre estiveram ao meu lado, intuindo e enviando
boas vibrações para que não fraquejasse nesta jornada.
À minha orientadora Luciane Pandini Simiano, pela paciência, pelas conversas,
pelos ensinamentos, pela direção, amizade e parceria.
À professora Leonete Schmidt e ao Professor Adilson De Angelo da Silva, que
qualificaram e deram valiosas contribuições ao trabalho.
Às professoras Letícia Carneiro Aguiar e Tânia Mara Cruz, que ampliaram
meus conhecimentos com suas discussões e reflexões na pós-graduação.
Aos meus colegas de Mestrado, Aleida, Fernando, Mari, Ana Carla, Onileda,
Simone e Glaucia, que me acompanharam, em diferentes momentos, durante o
percurso.
Agradeço à minha família, em especial ao meu esposo, Marcelo, que foi o
grande incentivador e financiador deste projeto. Um companheiro que me ofereceu
incondicionalmente seu amor, suas palavras e principalmente sua inesgotável
paciência. Aos meus filhos Victória, Isadora e Antônio, que sempre me apoiaram e
estiveram ao meu lado, às vezes assustados e resignados com as angústias e
ausências de sua mãe, mas que, mesmo silenciosamente, nos abraços e olhares me
deram coragem para seguir adiante.
Aos meus pais, Francisco e Maria, que oferecem seu amor, sua preocupação
e incentivo. Obrigada, Mãe, por me acompanhar até Tubarão, na ocasião da entrevista
de seleção, em que me acolheu quando não segurei as lágrimas. A minha amada irmã
Kely que sempre me incentivou com sábias palavras: “Só por hoje...Um dia de cada
vez!”
Gratidão aos muitos amigos/familiares queridos, que me seguiram nesta
jornada e incentivaram a continuar meus estudos. Obrigada, Grazi, Lucimare, Méri e
Marinete, amigas/irmãs inesquecíveis que a vida me apresentou e que estão sempre
ao meu lado emprestando seus silêncios, seus incentivos e, quando necessário, seus
puxões de orelha, tão providenciais.
Ao CEI Voo Livre e às grandes professoras que lá passaram, em especial,
Marinete, Adriana, Josiane e Marizângela, meus bons exemplos. O Voo Livre foi o
ninho que me abrigou e que me apresentou a Educação Infantil, o lugar que fez brilhar
meu olhar.
A todos os professores da Educação Infantil, que assumiram verdadeiramente
esta profissão e lutam cotidiana e incansavelmente por uma educação de qualidade.
Gratidão aos alunos do Estágio Supervisionado em Educação Infantil I do
Curso de Pedagogia da UNISUL, por aceitarem o convite, pelo respeito, parceria e
dedicação às propostas oferecidas. Aos CEIs, por disponibilizarem seus espaços à
pesquisa. Obrigada especialmente às crianças e professoras que emprestaram seu
cotidiano ao estágio de docência.
Enfim, faço minhas as palavras de Paulo Freire: “Ninguém caminha sem
aprender a caminhar, sem aprender a fazer o caminho caminhando, refazendo e
retocando o sonho pelo qual se pôs a caminhar.”
GRATIDÃO pela companhia de todos vocês na minha caminhada!
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.
Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender...

(Fernando Pessoa, 1988)


RESUMO

A presente pesquisa tematiza o processo de documentação pedagógica na formação


inicial de professores na Educação Infantil. Apresenta como questão balizadora: quais
as narrativas dos acadêmicos sobre o processo de documentação pedagógica no
estágio orientado supervisionado em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia?
Acompanhou-se o processo de documentar o cotidiano da creche de um grupo
composto por 18 estudantes (2 alunos e 16 alunas), que cursavam a Unidade de
Aprendizagem Estágio em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia da Universidade
do Sul de Santa Catarina - 2019/1, do município de Tubarão, sul do estado de Santa
Catarina. O percurso da pesquisa foi construído no caminho, juntos, pesquisador e
objeto de pesquisa e caracterizou-se, em termos metodológicos, em uma perspectiva
qualitativa, que tem o método como desvio (BENJAMIN, 1986; PANDINI-SIMIANO;
BARBOSA; SILVA, 2018), tomando a estrutura dos estudos de caso como forma de
articular o empírico ao teórico. A pesquisa foi realizada no período de fevereiro a julho
de 2019 e teve como instrumentos metodológicos a observação participante, registros
escritos, fotográficos, as documentações pedagógicas e as cartas escritas pelos
estudantes no final do percurso do estágio. Na análise apostou-se no diálogo entre
diferentes autores e perspectivas, como, por exemplo, Benjamin (1987a, 1987c,1987e
2017), Larrosa (2002, 2018), Rinaldi (2002, 2012), Pandini-Simiano (2010, 2015,
2018), Ostetto (2012b), Tardif (2014), entre outros. Compreendendo a documentação
pedagógica uma peculiar narrativa tecida no encontro entre adultos e crianças, ao
acompanhar o processo de documentar junto a estudantes que atuam em estágio
obrigatório com crianças bem pequenas na rede pública, foi possível conhecer
desafios que envolvem o processo de documentar, tais como a dificuldade em olhar e
escutar as crianças e a diversidade de suas infâncias; a falta de tempo e a dificuldade
em escolher e construir uma postura de autoria nas narrativas tecidas. Mesmo diante
dos desafios, é possível encontrar nas documentações uma imagem de criança
competente e inventiva, que necessita de tempo e espaço potente para viver sua
infância em plenitude. A possibilidade de documentar ao longo do estágio possibilita
a tessitura de um percurso de formação inicial pautado na experiência, no encontro
entre adultos e crianças em contextos educativos. Um convite aos estudantes para
que se reconheçam autores e narradores de sua própria história.

Palavras-chaves: Educação Infantil. Documentação Pedagógica. Formação Inicial.


Estágio. Narrativa.
ABSTRACT

This present research focuses on the pedagogical documentation process in the initial
formation of teachers in Early Childhood Education. It presents as a guiding question:
what are the students' narratives about the process of pedagogical documentation in
the supervised oriented internship in Early Childhood Education I of the Pedagogy
Course? The process of documenting the daily life of a group composed of 18 students
(2 students and 16 schoolgirls), who attended the Learning Unit Internship in Early
Childhood Education I of the Pedagogy Course of the Universidade do Sul de Santa
Catarina - 2019, in the municipality of Tubarão, south of the state of Santa Catarina.
The research path was built along the way, together, researcher and research object
and was characterized, in methodological terms, in a qualitative perspective, which has
the method as a deviation (BENJAMIN, 1986; PANDINI-SIMIANO; BARBOSA; SILVA,
2018 ), taking the structure of the case studies as a way of articulating the empirical to
the theoretical. The research was carried out from February to July 2019 and had as
methodological instruments participant observation, written, photographic records,
pedagogical documentation and letters written by students at the end of the internship
course. In the analysis, there was a commitment to dialogue between different authors
and perspectives, such as, for example, Benjamin (1986, 1987a, 2002), Larrosa (1999,
2017, 2018), Rinaldi (2002), Malaguzzi (1999, 2016), Gandini ( 2002), Pandini-Simiano
(2010, 2015), Pandini-Simiano, Barbosa e Silva (2018), Ostetto (2012a, 2012b, 2017),
Tardif (2014), Pimenta (1997, 2011), Gatti (2002, 2010) , among others. Understanding
the pedagogical documentation as a peculiar narrative woven in the meeting between
adults and children, when following the process of documenting with students who
work in a mandatory internship with very young children in the public network, it was
possible to meet challenges that involve the process of documenting, such as the
difficulty in looking and listening to children and the diversity of their childhoods; the
lack of time and the difficulty in choosing and building a posture of authorship in the
woven narratives. Even in the face of challenges, it is possible to find in the
documentation an image of a competent and inventive child, who needs time and a
powerful space to live his childhood to the full. The possibility of documenting
throughout the internship makes it possible to weave an initial training path based on
experience, in the encounter between adults and children in educational contexts. An
invitation to students to recognize authors and narrators of their own history.

Key words: Early Childhood Education. Pedagogical documentation. Initial formation.


Internship. Narrative.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Traços de um poema antigo ..................................................................... 16


Figura 2 – Fachada do CEI Voo Livre ....................................................................... 17
Figura 3 - Grupo Papagaio - 1992 ............................................................................. 18
Figura 4 - Grupo Papagaio - 1999 ............................................................................. 18
Figura 5 - Grupo Papagaio - 1991 ............................................................................. 19
Figura 6 – Estágio de docência CEI Pinheiros São José/SC - 2007 ......................... 20
Figura 7 – Legião Brasileira de Assistência (LBA) no município de Palhoça - 1980 . 31
Figura 8 – Caixa de memórias da pesquisadora ....................................................... 51
Quadro 1 – Alunos participantes da pesquisa ........................................................... 54
Quadro 2 – Campos de estágio escolhidos e validados pela UNISUL no município de
Tubarão ..................................................................................................................... 57
Figura 9 – Cartazes sobre o estudo de textos ........................................................... 58
Figura 10 – Trabalho de grupo .................................................................................. 58
Figura 11 – Leituras e estudos .................................................................................. 59
Figura 12 – Rosa apresentando suas materialidades ............................................... 61
Figura 13 – Apresentação do memorial .................................................................... 61
Figura 14 – Encontro com memórias ........................................................................ 62
Figura 15 – Materialidades de Carla e Isa ................................................................. 62
Quadro 3 – Grupos, faixa etária e tema das mini-histórias ....................................... 67
Figura 16 – Docências .............................................................................................. 68
Figura 17 – Docências .............................................................................................. 69
Figura 18 – Caixas de memórias............................................................................... 71
Figura 19 – Entrega das caixas de memórias ........................................................... 72
Figura 20 – A escrita de novas cartas ....................................................................... 73
Figura 21 – Confraternização .................................................................................... 74
Figura 22 – Correspondências .................................................................................. 75
Figura 23 – Documentação - Revista Pedagógica 1 ................................................. 85
Figura 24 – Documentação - Revista Pedagógica 1 ................................................. 86
Figura 25 – Documentação – Revista Pedagógica 3 ................................................ 87
Figura 26 – Documentação – Revista Pedagógica 2 ................................................ 95
Figura 27 – Documentação – Revista Pedagógica 2 ................................................ 97
Figura 28 – Fim das palavras .................................................................................. 100
LISTA DE SIGLAS

ANDE – Associação Nacional de Educação


ANFOPE – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais de Educação
ANPEd – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação
CEB – Câmara de Educação Básica
CEI – Centro de Educação Infantil
CFE – Conselho Federal de Educação
CNE – Conselho Nacional de Educação
DCNEI – Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil
FAPESC – Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa
Catarina
FREIGF – Fórum Regional de Educação Infantil da Grande Florianópolis
FUCABEM – Fundação Catarinense do Bem Estar do Menor
GEDIG – Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação da Unisul –
Educação, Infância e Gênero
GT – Grupo de Trabalho
LBA – Legião Brasileira de Assistência
LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
PDI – Plano de Desenvolvimento Institucional
PNE – Plano Nacional de Educação
PPC – Projeto Pedagógico de Curso
PPI – Projeto Pedagógico Institucional
PPP – Projeto Político-Pedagógico
SINAES – Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior
UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina
UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí
SUMÁRIO

1 O ENCONTRO COM CAIXAS ANTIGAS... PRIMEIROS PASSOS ...................... 16


2 O ABRIR DE DIFERENTES CAIXAS... CONCEPÇÕES, CONCEITOS E
HISTÓRIAS ............................................................................................................... 26
2.1 CRIANÇAS E SUAS INFÂNCIAS... ..................................................................... 27
2.2 EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES TEMPOS HISTÓRICOS E FORMAÇÃO
DOCENTE ................................................................................................................. 30
2.3 FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA ....... 35
2.4 UMA CAIXA PRECIOSA... A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA ...................... 42
3 METODOLOGIA DA PESQUISA... POR ONDE E COMO CAMINHAMOS .......... 51
3.1 PASSOS METODOLÓGICOS ............................................................................. 52
3.1.1 As marcas de um primeiro encontro... ......................................................... 55
3.1.2 Segundo encontro: algumas mudanças, primeiros olhares... ................... 57
3.1.3 Terceiro encontro: os filhotes começam a se aventurar... ......................... 59
3.1.4 Diário de encontro – dia 26/03/2019: ... As portas, enfim se abriram!! ...... 60
3.1.5 Os primeiros encontros com os campos de estágio .................................. 63
3.1.6 Construção do Projeto de Prática de Ensino – as primeiras docências: o
difícil gesto de sair do ninho... ............................................................................... 66
3.1.7 Socialização das documentações pedagógicas .......................................... 69
3.1.8 Último encontro... Documentação pedagógica: caixas de presente, cartas,
memórias, narrativas e possibilidades de novas experiências .......................... 70
4 AS ANÁLISES DO PROCESSO DE DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA NO
PERCURSO DO ESTÁGIO: NARRATIVAS, HISTÓRIAS E OLHARES... ............... 75
4.1 AS NARRATIVAS DOS ACADÊMICOS SOBRE OS DESAFIOS ENCONTRADOS
NO PROCESSO DE DOCUMENTAR ....................................................................... 76
4.2 IMAGENS DE CRIANÇA E INFÂNCIA DOS ACADÊMICOS A PARTIR DA
DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA PRODUZIDA NO ESTÁGIO ............................. 82
4.3 (TRANS)FORM(AÇÕES): AS RELAÇÕES ENTRE A DOCUMENTAÇÃO
PEDAGÓGICA E O PROCESSO DA FORMAÇÃO INICIAL ..................................... 89
5 O SILÊNCIO SE FINDA NAS DERRADEIRAS REFLEXÕES... AS CAIXAS
PERMANECEM ABERTAS... ................................................................................. 100
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 105
APÊNDICES ........................................................................................................... 113
APÊNDICE A – Termo de Consentimento de Participação ................................ 114
ANEXOS ................................................................................................................. 115
ANEXO A – Os contextos de Educação Infantil onde os estudantes de Pedagogia
realizaram seus estágios ao longo da pesquisa ................................................ 116
ANEXO B – Cartas dos estudantes do curso de Pedagogia ................................ 117
16

1 O ENCONTRO COM CAIXAS ANTIGAS... PRIMEIROS PASSOS

Figura 1 – Traços de um poema antigo

Fonte: Acervo da pesquisadora, 1990.

Ao abrir minha caixa de memórias, deparo-me com o passado: “Penso, as


coisas são estranhas, tudo é estranho... amamos e depois odiamos. Cai o vento e
depois a chuva. Vem o sol e logo se nubla. Choramos, mas rimos também. Andamos
correndo. Lutamos contra o tempo. Encontramos, mas sem querer nos
desencontramos.” Onde estavam tão singelos versos? Qual poeta rasteiro escreveu?
Encontrei estas palavras registradas em um papel amarelado e aparentemente sem
vida, guardado com outros tantos, no fundo de uma caixa de memórias. Assim, resolvi
ir atrás de narrativas que resgatem fragmentos da história.
Atentei que travava uma luta contra o tempo, contra inquietações... queria
respostas, almejava conhecer, encantar-me, amar. Nessa época lutava com amores
possíveis e impossíveis... Que sofrimento! Palavras antigas, momentos nostálgicos
que resgataram as raízes de uma pessoa desassossegada, intensa, ansiosa. Sou
pedra, como diz o poeta, “pedra, pedra de pedra o que a faz concreta, se não a falta
de regra, de sua forma assimétrica incapaz de linha reta?” (ANTUNES, 2015, p. 37).
Por não ser capaz de seguir sem desvios, conduzi minha história por diversos
caminhos.
17

No resgate do tempo e da história, em 1990, iniciei a trajetória profissional.


Mesmo sem formação, fui contemplada com bolsa de estudos em uma creche1
conveniada com o município de Palhoça. Na época, uma instituição educacional com
precárias condições físicas, estruturais e pedagógicas.
Segui o caminho... pois “caminhar não é tanto ir de um lugar a outro, mas levar
a passear o olhar, e olhar não é senão interpretar o sentido do mundo, ler o mundo”
(LARROSA, 2017, p. 63). Meu olhar se embeveceu ao ser contratada, em 1993, para
ser auxiliar de sala no Centro de Educação Infantil (CEI) Voo Livre (Figura 2). Como
passarinho voei, fiz meu ninho no lugar que interpretei como o melhor do mundo,
permanecendo ali até 1995.

Figura 2 – Fachada do CEI Voo Livre

Fonte: Acervo da autora, 1994.

Para dar continuidade a esse voar, é relevante conhecer uns poucos


fragmentos da história deste lugar onde inicio meu percurso profissional. Ali me
encontro com uma proposta educativa bastante peculiar, que, sob orientação dos
princípios de Celestin Freinet2, essa proposta tinha como base a observação e o

1 A terminologia “creche” utilizada no texto não se refere a corte etário e sim à nomenclatura utilizada
na época no município de Palhoça.
2 Celestin Baptistin Freinet nasceu em 15 de outubro de 1896, nos Alpes marítimos, França. Em uma

aldeia em Bar-sur-Luop com pouco mais de 1.500 habitantes. Em 1920 é nomeado professor e
constrói os próprios princípios de uma ação prática, aproximando escola e aldeia, respeitando
profundamente a criança. Participou da fundação dos ideais da Escola Nova, mas tentou dar um
significado mais profundo à palavra “atividade” que o proposto pela Educação Nova. Fascinava-o a
18

registro do cotidiano educativo. Uma pedagogia pensada como uma atividade


concreta, vivenciada como “técnicas de vida”, segundo suas próprias palavras a
serviço da libertação dos homens (LEGRAND, 2010, p. 15).
O início de funcionamento do CEI Voo Livre se deu em 1º de fevereiro de 1982,
a partir do Ato nº 8.130, de 11 de julho de 1979, que estabelece a abertura e o
funcionamento desta instituição, juntamente com o Centro Educacional Dom Jaime de
Barros Câmara, antigamente denominado Fundação Catarinense do Bem Estar do
Menor (FUCABEM). Tal instituição tinha como proposta abrigar crianças e
adolescentes oriundos dos municípios do estado de Santa Catarina que estavam
sendo atendidos no Educandário 25 de Novembro, antigo abrigo de menores. Esta
instituição fora fundada por Irmãos Maristas e era mantida financeiramente pelo
governo estadual da época; funcionava no bairro da Agronômica em Florianópolis e
em virtude de um incêndio foi destruído, passando sua sede para o município de
Palhoça, no bairro Bela Vista. (CENTRO DE EDUCAÇÃO INFANTIL VOO LIVRE,
2013, p. 08).
O CEI Voo Livre atendia, naquela época, crianças de 0 a 7 anos. Seu nome foi
escolhido com a participação ativa das crianças e grupo de profissionais. A proposta
educativa, baseada nos estudos de Freinet, favorecia a liberdade de escolha e a
participação dos sujeitos. Abaixo, imagens do Grupo Papagaio, do CEI Voo Livre.

Figura 3 – Grupo Papagaio3 - 1992 Figura 4 – Grupo Papagaio – 1999

Fonte: Acervo da pesquisadora, 1992. Fonte: Acervo da pesquisadora, 1999.

ideia do trabalho coletivo, cooperativo. A livre expressão, sobre a qual construiu toda sua obra, foi
por ele investigada desde o seu nascedouro na vida infantil. Freinet buscou técnicas pedagógicas
que pudessem envolver todas as crianças no processo de aprendizagem, respeitando seus direitos
de crescer em liberdade, independentemente das diferenças de caráter, inteligência ou meio social.
(ELIAS,1997).
3 Enquanto o CEI Voo Livre trabalhou na perspectiva da teoria Freinet, as crianças escolhiam o nome

dos grupos e geralmente seguiam com eles até terminarem o período da Educação Infantil. Essas
imagens pertencem à autora que olha para seu acervo. Importante ressaltar que, na época, não
havia a perspectiva de que esses registros fotográficos fossem utilizados em uma pesquisa.
19

Figura 5 – Grupo Papagaio - 1991

Fonte: Acervo da pesquisadora, 1991.

Ao longo do tempo, essa proposta foi se mesclando a outras, e aos poucos se


perdendo, até que findou, com a implementação da Proposta Curricular do Estado de
Santa Catarina de 1998.4
Em 2009, a Educação Infantil estadual passa a ser responsabilidade dos
municípios5 e o CEI Voo Livre torna-se uma instituição municipal, mantida pela
Secretaria de Educação do Município de Palhoça.
Foi tecida com essa experiência profissional que comecei minha formação
inicial. O CEI Voo Livre significou um convite a criar coragem, sair do ninho e alçar
voos. Assim, nesse “entre voos”, cursei o Magistério e terminei o curso no ano de
2004. Em 2010 me formei em Pedagogia na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI)
no município de São José.
Ao buscar pela caixa das memórias de minha formação inicial, silenciei. Assim
como os soldados que voltam da guerra emudecidos, incapazes de narrar
(BENJAMIN, 1987a). Foi difícil colocar palavras.
Meu percurso na formação inicial foi marcado por dificuldades e percalços.
Gagnebin (2018, p. 70) afirma que Proust e Benjamin compartilham a convicção de

4 A Proposta Curricular de Santa Catarina de 1998 refere-se à Educação Infantil como aquela
oferecida em creches e pré-escolas – crianças de 0 a 6 anos. (SANTA CATARINA, 1998).
5 O processo de municipalização, do ponto de vista legal, começa a partir da Constituição de 1988 e

da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/96, mas somente é efetivado em
2010, com a Lei Complementar nº 487/2010, que regulamenta: no “Art. 1º o Poder Executivo
autorizado a promover a municipalização da Educação Infantil da rede pública do Estado, por
intermédio da transferência da responsabilidade administrativa, financeira e operacional para os
municípios onde estas unidades estejam em funcionamento, mediante autorização do Poder
Legislativo Municipal. Art. 2º A municipalização da Educação Infantil se constituirá por meio de
convênio firmado entre o Estado e o município e será considerada efetivada no ano letivo de 2009
ou posterior, se for o caso.” (SANTA CATARINA, 2010). No CEI Voo Livre, nos dias que seguem,
ainda há questões não regulamentadas e finalizadas.
20

que o passado comporta elementos inacabados; e, além disso, que tais elementos
aguardam uma vida posterior, e que somos nós os encarregados de fazê-los reviver.
Como fazer para narrar? Busquei na caixa de fotografias, materialidades,
subjetividades, histórias que podem ser contadas ou recontadas, escritas ou
reescritas. Como mostra a figura 6.

Figura 6 – Estágio de docência CEI Pinheiros São José/SC - 2007

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2007.

Para Benjamin (1987a, p. 198), um narrador é aquele que tem a “faculdade de


intercambiar experiências”, aquele que consegue transitar entre dois mundos, sem
explicar; que fornece oportunidades de diferentes entendimentos, sem
necessariamente entender. Pautada nesse princípio, surgiram as primeiras palavras...
Os estágios obrigatórios em Educação Infantil, do curso de Magistério e
Pedagogia, foram realizados nos Grupos de Trabalho (GTs) em que trabalhava como
professora não habilitada. Como ser estagiária e ao mesmo tempo a professora
regente que não tem formação?6

6 Nos anos da minha formação inicial, entre 1998 e 2010, quanto à legislação da educação e dos
cursos de Magistério e Pedagogia, muito embora tivessem ocorrido avanços, a realidade ainda
estava permeada por limitações e fragilidades. Essa trajetória foi marcada por importantes
mudanças, como: a concepção da educação como direito, em 1988, na Constituição Federal; a
aprovação da Lei nº 9.131, de 24 de novembro de 1995, que regulamentou o Conselho Nacional de
Educação (CNE) e instituiu avaliações periódicas nas instituições e nos cursos superiores; amplo
processo de disputas que demarcaram a aprovação da LDB (Lei nº 9.394/1996); o Plano Nacional
de Educação (PNE) (Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001); a Resolução CNE/Câmara de
Educação Básica (CEB) nº 1/99 e o Parecer CNE/CEB nº 22/98, que regulamentaram as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs). A partir desses marcos, a Educação
Infantil começa a se estruturar. As instituições formadoras, paralelamente, se organizam para
atender às demandas da lei que amparam a formação de professores.
21

O estágio curricular obrigatório realizado no cotidiano do trabalho pouco


favoreceu minha formação inicial. Trabalhar dez horas diárias, estudar no período
noturno, cumprir os estágios sem a presença de um outro professor, desempenhar
papel de mãe e dona de casa dificultaram meu processo de formação, pois cada dia
de prática era uma luta para conseguir conciliar o trabalho, organizar o planejamento
e as propostas para as docências. Adversidades, cansaços e turbulências deixaram
memórias no período da minha formação inicial que não são prazerosas de recordar,
que são difíceis de narrar.
Como se dá a formação com o estágio efetivado em condições tão adversas?
Particularmente, foi necessário querer, exaustivamente, ser professora.
Em 2012 retornei ao CEI Voo Livre como professora efetiva de Educação
Infantil do município de Palhoça. Mais uma vez voltei para o ninho, mas não deixei de
voar... Enquanto professora da rede pública municipal, em 2014 fui convidada a
representar Palhoça na Comissão Executiva Institucional do Fórum Regional de
Educação Infantil da Grande Florianópolis (FREIGF).7
No ano de 2017, um novo convite me conduziu à Secretaria de Educação do
município de Palhoça - Setor de Educação Infantil, com a responsabilidade de integrar
a equipe de profissionais que assessoram, organizam e contribuem com a formação
continuada dos professores da Educação Infantil dos CEIs municipais e instituições
parceiras, somando-se aproximadamente 600 profissionais, entre professores e
diretores.
O trabalho de assessoria nos CEIs, os GTs e cursos oportunizaram-me
conhecer diferentes contextos educativos e trabalhar com a formação dos
professores. Em grandes ou em pequenos grupos, era possível olhar para encantos
e desencantos de profissionais que trazem em suas memórias e narrativas. Como foi
a formação inicial desses professores? Que experiências de formação sustentam suas
práticas? Tais questionamentos eram presentes e levavam-me a querer saber mais...
Em particular, nas formações comecei a questionar algumas concepções dos
professores que reduziam e consideravam as crianças apenas na dimensão biológica,
dissociando-as de sua classe social e cultural. Acredito que não existe uma única

7 FREIGF - um espaço de permanente discussão em que se reafirma a defesa e a garantia da


Educação Infantil pública, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade social como um direito de todas as
crianças de 0 a 6 anos. Desde então participo ativamente das plenárias, seminários e reuniões
extraordinárias realizadas nos municípios que compõem a região da Grande Florianópolis.
22

infância nem uma única forma de ser criança. Fundamento-me, assim, no


reconhecimento da criança como sujeito de direitos, ativo no processo de construção
histórica. Tal perspectiva implica pensar que as concepções dos professores
produzem “uma imagem de criança” (HOYUELOS, 2005) e que essa imagem é
preponderante nas relações educativas que tecemos com elas. A imagem de criança
é, portanto, uma construção histórica e social; é como vemos aquilo que é definido a
partir da maneira como nos relacionamos, como elaboramos nossas expectativas em
relação a elas e ao mundo para elas (RINALDI, 2017, p. 169).
O desafio que nos é colocado é construir um olhar que compreenda a criança
sob uma nova perspectiva. Para tanto, é preciso pensar a formação inicial dos
professores. Como diz Larrosa (2017, p. 66):

Na formação a questão não é aprender algo. A questão não é que, a princípio,


não saibamos algo e, no final, já o saibamos. Não se trata de uma relação
exterior com aquilo que se aprende na qual o aprender deixa o sujeito
imodificado. Aí se trata mais de se constituir de uma determinada maneira.
De uma experiência em que alguém, a princípio, era de uma maneira, ou não
era nada, pura indeterminação, e, ao final, converteu-se em outra coisa, trata-
se de uma relação interior com a matéria de estudo, de uma experiência com
a matéria de estudo, na qual o aprender forma ou transforma o sujeito.

Na formação inicial o estágio é um tempo que proporciona encontros, possibilita


experiências com as crianças, com os professores regentes e com a realidade das
creches. Que histórias podem ser contadas desses encontros? Como construir
narrativas atentas às crianças, aos tempos, espaços, às relações no contexto
educativo?
Assim, encanto-me com uma caixa que abrigava uma preciosa coleção. A
leitura da tese de doutorado “Colecionando pequenos encantamentos... A
documentação pedagógica como uma narrativa peculiar para e com crianças bem
pequenas”, de Luciane Pandini Simiano, apresentou-me um novo olhar para as
narrativas das experiências tecidas no cotidiano educativo pela via da documentação
pedagógica.
No diálogo com a pedagogia italiana e Walter Benjamin, a autora supracitada
compreende que
a documentação pedagógica é uma narrativa peculiar para e com crianças
bem pequenas [...] Entre o visível e o invisível, entre a voz e o silêncio,
emerge a narrativa. No gesto de colher-registrar, agrupar-interpretar, expor-
narrar, o professor é narrador, reconhece, valoriza preciosidades. (PANDINI-
SIMIANO, 2015, p. 124).
23

Sendo a documentação pedagógica uma narrativa peculiar tecida entre adultos


e crianças no contexto educativo (PANDINI-SIMIANO; BARBOSA; SILVA, 2018), e a
Disciplina do Estágio Supervisionado em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia
da UNISUL, no ano de 2019, sustentada por esse processo de documentar, que
relações podemos estabelecer entre a documentação pedagógica e a formação inicial
desses professores?
Sigo meu voo rumo ao município de Tubarão (sul do estado de Santa Catarina)
e ingresso no Mestrado em Educação da Universidade do Sul de Santa Catarina
(UNISUL). O mestrado trouxe desafios, novas propostas, diferentes olhares e
oportunidades de rever percursos e ampliá-los.
A partir das aulas ofertadas no Mestrado, das orientações individuais, do grupo
de pesquisa do Programa de Pós-Graduação da UNISUL – Educação, Infância e
Gênero (GEDIG)8 e da participação no projeto: “A documentação pedagógica no
contexto da Educação Infantil: perspectivas para a docência e formação de
professores”9, fui alinhavando as minhas experiências a outras questões importantes
referentes à formação inicial.
Nesse percurso, surge a presente pesquisa intitulada: “Documentação
pedagógica e formação inicial de professores10: um olhar para as narrativas dos
acadêmicos sobre o processo de documentação pedagógica na Educação
Infantil”.
Como problema de pesquisa, temos: quais as narrativas dos acadêmicos
sobre o processo de documentação pedagógica no estágio orientado
supervisionado em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia?
Estabelecemos como objetivo geral: analisar as narrativas dos acadêmicos
sobre o processo de documentação pedagógica no Estágio Orientado
Supervisionado em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia da UNISUL,
turma 2019/1.

8 No GEDIG, no eixo Infância se discute a documentação pedagógica e formação de professores.


9 O projeto é coordenado pela Profa. Dra. Luciane Pandini Simiano e financiado pela Fundação de
Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC). Tem por objetivo investigar
acerca da documentação pedagógica no contexto da Educação Infantil. O projeto visa, por um lado,
a investigar a documentação como narrativa capaz de sustentar a especificidade da docência com
crianças bem pequenas; de outro lado, pesquisar o processo de documentação como estratégia de
formação de professores a partir de outras racionalidades. Trata-se de uma proposta que carrega
como potência as dimensões ética, política e estética da experiência humana.
10 Optamos por usar o termo “professores”, pois no grupo há dois estudantes homens. Mesmo a

maioria sendo composta por estudantes mulheres, houve a preocupação em abranger todos os
sujeitos da pesquisa.
24

E objetivos específicos:
a) acompanhar a prática do processo de documentação pedagógica junto a
estudantes matriculados na disciplina de Estágio Supervisionado em
Educação Infantil I no Curso de Pedagogia que atuam em estágio obrigatório
com crianças bem pequenas na rede pública municipal de Tubarão;
b) conhecer as narrativas dos acadêmicos sobre os desafios que envolvem o
processo de documentar;
c) identificar as imagens de criança e infância dos acadêmicos por meio da
documentação pedagógica produzida no estágio;
d) estabelecer relações sobre o processo de documentação pedagógica no
percurso de formação inicial a partir das narrativas dos acadêmicos.
Para tanto, desenvolvemos uma pesquisa qualitativa, que toma a estrutura de
um estudo de caso como forma de articular o empírico ao teórico. A pesquisa abrigou
a pesquisadora, que acompanhou e participou da construção, produção e elaboração
das documentações pedagógicas, entrelaçando com os sujeitos, sentimentos,
narrativas e histórias vividas. O lócus da pesquisa é a disciplina de Estágio
Supervisionado11 em Educação Infantil I no Curso de Pedagogia da UNISUL – 2019/1,
que realiza o estágio obrigatório no campo da rede pública municipal de Tubarão,
Santa Catarina. Os sujeitos da pesquisa são uma turma de 18 estudantes (16
mulheres alunas e 2 homens alunos), de faixa etária entre 19 e 39.
O percurso metodológico foi tecido ao longo de 14 encontros na sala de aula
da UNISUL e 8 encontros nos campos de estágio durante o período de 6 meses.12 Os
estudantes experienciaram o processo de documentar ao longo da disciplina. Os
instrumentos utilizados foram: observação participante, formação, registros gráficos e
audiovisuais, as documentações pedagógicas produzidas e as cartas escritas pelos
estudantes no final do percurso do estágio.
Escolher um percurso de pesquisa que tem como via a documentação
pedagógica é um caminho que não é reto, nem direto. Nesse sentido,
compreendemos, com Benjamin (1986), que método é desvio, uma outra
racionalidade do fazer investigativo. “Um método, por certo perigoso, pois nunca se

11 Ementa da disciplina: Documentação Pedagógica: observação, registro, interpretação, narrativa e


planejamento dos contextos e das relações educativas com crianças até 3 anos. Atuação docente.
Elaboração de relatório de estágio - análise crítica das intervenções realizadas no contexto da
Educação Infantil. (UNISUL, 2019).
12 No terceiro capítulo abordaremos com detalhes os encontros citados.
25

pode ter certeza de onde ele pode nos levar, mas pela mesma razão precioso, pois
só a renúncia da segurança do previsível permite ao pensamento atingir a liberdade”
(GAGNEBIN, 2011, p. 88). É o desvio que permite tecer os fios da pesquisa com/no
vivido.
Como estrutura deste trabalho apresento, no capítulo dois, “O abrir de
diferentes caixas... Concepções, conceitos e histórias...”, uma revisão teórica
destacando aspectos relacionados à concepção de criança, infância, Educação
Infantil, formação inicial de professores e documentação pedagógica.
No terceiro capítulo, intitulado “Metodologia da pesquisa... Por onde e como
caminhamos”, apresento o processo de investigação, as trajetórias e as implicações
metodológicas da presente pesquisa.
O quarto capítulo, cujo título é “As análises do processo de documentação
pedagógica no percurso do estágio: narrativas, histórias e olhares”, aborda as
categorias de análise, para, possivelmente, construir outros olhares, percursos e
sentidos. Por fim, o último capítulo apresenta as considerações finais: “O silêncio se
finda nas derradeiras reflexões... As caixas permanecem abertas”, as referências,
os apêndices e os anexos.
26

2 O ABRIR DE DIFERENTES CAIXAS... CONCEPÇÕES, CONCEITOS E


HISTÓRIAS

Caixas. Memórias. Histórias. Vida. O presente capítulo busca abrir caixas que
se encaixam e que nos ajudem a olhar para os conceitos teóricos que sustentam a
presente pesquisa.
Iniciaremos abrindo a caixa intitulada “Crianças e suas infâncias”. Ela contém
fragmentos de textos de Kuhlmann Jr. e Fernandes (2004), Kuhlmann Jr. (1998),
Sarmento e Gouvea (2008), Tardif (2014), Benjamin (1986, 1987a, 1987b, 1987c,
2002), Larrosa (1999, 2017, 2018), Rinaldi (2002), entre outros. Autores de diferentes
campos da História, Sociologia, Filosofia, Antropologia e Pedagogia que possibilitam
o entrelaçamento de diferentes olhares sobre a importância e o surgimento do
conceito de infância.
Em seguida, abriremos a caixa “Educação Infantil: diferentes tempos históricos
e formação docente” e, a partir de Kuhlmann Jr. (1998), Batista (2013), Schmidt,
Schardong e Schafascheck (2012) e De Pieri (2014), buscamos organizar um conjunto
de referenciais teóricos que permitam conhecer um pouco da história da Educação
Infantil.
Na sequência, apresentamos a caixa da “Formação inicial de professores no
curso de Pedagogia”, que visa a abordar essa temática a partir de Ostetto (2012a,
2012b, 2017), Rajobac (2016), Pimenta (1997, 1998, 2011), Gatti (2002, 2006, 2010),
Cerisara et al. (2002) e Kramer (2002).
Por fim, a última caixa trata sobre o conceito de documentação pedagógica:
“Uma caixa preciosa... A documentação pedagógica”. Alvo de diversas interpretações,
buscaremos olhá-lo a partir de Malaguzzi (1999, 2016), Rinaldi (2002), Gandini (2002)
e Pandini-Simiano (2010, 2015, 2018).
Conhecer o interior dessas caixas é fundamental para, quiçá, organizar uma
nova caixa com referencial teórico capaz de contribuir com os estudos sobre este tema
na área.
27

2.1 CRIANÇAS E SUAS INFÂNCIAS...

Havia no nosso jardim um pavilhão abandonado e carcomido. Eu gostava


dele por causa das janelas coloridas. Quando, lá dentro, ia passando a mão
de vidro em vidro, transformava-me; ganhava a cor da paisagem que via na
janela, ora flamejante, ora empoeirada... Sentia-me como quando pintava a
aquarela e as coisas se me abriam assim que eu as acometia numa nuvem
úmida. O mesmo acontecia com as bolas de sabão. Eu viajava dentro delas
pela sala e juntava-me ao jogo de cores das cúpulas até elas se desfazerem.
Olhando para o céu, para uma joia, ou para um livro, perdia-me nas cores.
(BENJAMIN, 2017, p. 108).

As cores da infância... diferentes olhares de criança... memórias que dão


sentido ao passado vivido em múltiplos contextos. Entendendo que a presente
pesquisa busca lançar um olhar para a formação inicial de educadores da infância,
consideramos interessante destacar alguns aspectos sobre os conceitos de infância
e criança ao longo da história.13 Assim é relevante indagar: quem é a criança? O que
significa a infância? Todas as crianças têm infâncias?
Evidencia-se a necessidade de se compreender o conceito de infância não a
partir do estudo da criança, mas a partir da sua condição social, em uma perspectiva
histórica, permitindo entender a infância como construção cultural, que expressa o
modo pelo qual as diferentes sociedades organizam a reprodução de suas condições
materiais e não materiais de vida e de existência (QUINTEIRO, 2000, p. 26).
A história da infância e das condições de ser criança é narrada por quem?
Quem conta essa história são os adultos. E que significados eles imprimem às
crianças e à infância? É possível capturá-los nas narrativas dos adultos?

Podemos compreender a infância como a concepção ou a representação que


os adultos fazem sobre o período inicial da vida, ou como o próprio período
vivido pela criança, o sujeito real que vive essa fase da vida. A história da
infância seria então a história da relação da sociedade, da cultura, dos
adultos, com essa classe de idade, e a história da criança seria a história da
relação das crianças entre si e com os adultos, com a cultura e a sociedade.
Ao se considerar a infância como condição das crianças, caberia perguntar
como elas vivem ou viveram esse período, em diferentes tempos e lugares.
(KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004, p. 15).

13 Cabe ressaltar que tais questões não serão aprofundadas ao longo deste texto. Para
aprofundamento, sugiro os estudos de Batista (2013) e Schmidt, Schardong e Schafascheck
(2012).
28

Historicamente, as pesquisas iconográficas de Ariès (1981) afirmam que na


Idade Média se teve nítida percepção da especificidade da infância. Dessa forma, a
partir de sua obra, surgiram tentativas de universalizar as questões do autor, como
verdade única e absoluta, que evidencia particularmente apenas uma porção da
infância francesa burguesa (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004).
Ariès (1981) demonstra que, até o fim do século XIII, não existiam crianças
caracterizadas por uma expressão particular, e sim homens de tamanho reduzido; a
infância era vista apenas como um espaço de transição entre o nascimento e a idade
em que as crianças, quando miniadultas, ingressavam no meio social. Assim que a
criança deixava os cueiros, ou seja, uma faixa de tecido enrolada em seu corpo, já era
vestida como os adultos de sua sociedade.
A infância começou a ser descoberta no século XIII, mas os sinais de seu
desenvolvimento tornaram-se significativos a partir do fim de século XVI e durante o
século XVII. Segundo Ariès (1981), começa timidamente a surgir um sentimento de
infância, fase em que a criança, devido às suas características físicas, tornava-se
fonte de distração e relaxamento para o adulto, é o sentimento de “paparicação”.
Esse olhar para a linearidade e direcionamento às classes abastadas da
história, presente na pesquisa de Ariès, provoca críticas que indicam fragilidades a
esse modelo evolutivo apresentado pelo autor, como argumenta Jacques Gélis em
seu clássico estudo: “A individualização da criança”:

É difícil acreditar que a um período de indiferenciação com relação à criança


teria sucedido outro durante o qual, com a ajuda do ‘progresso’ e da
‘civilização’, teria prevalecido o interesse. O interesse ou a indiferença com
relação à criança não são realmente a característica desse ou daquele
período da história. As duas atitudes coexistem no seio da mesma sociedade,
uma prevalecendo sobre a outra em determinado momento por motivos
culturais e sociais que nem sempre é fácil distinguir. A indiferenciação
medieval pela criança é uma fábula [...] (GÉLIS, 2009, p. 318).

Os estudos de Kuhlmann Jr. (1998) contestam a tese de Ariès e ressaltam que


a infância e a criança retratadas pelo autor são somente as que pertenciam à classe
burguesa francesa, entretanto é imprescindível considerar todas, inclusive as que
permaneceram à margem da sociedade e invisíveis no retrato da história.
A infância é do indivíduo, e não pode ser generalizada e unificada para que seja
possível definir a criança. É preciso considerar as questões sociais, regionais,
históricas, geográficas e culturais que acarretam particularidades. Ao se falar de
29

historiografia, fala-se de mentalidades, representações que possibilitam as relações


do cotidiano (KUHLMANN JR.; FERNANDES, 2004).
Ao longo dos séculos XIX e XX, multiplicam-se as propostas e as ações
dirigidas às infâncias e às crianças. A ideia de infância pode ou não existir, pode ser
diversa nas diferentes culturas e sociedades. Não há uma única maneira de se pensar
a infância, ela depende dos múltiplos contextos socioculturais em que as crianças
estão inseridas. A infância é a condição de ser criança estabelecida pelas práticas
sociais, históricas e culturais.
Kuhlmann Jr. (1998, p. 31) afirma que a “infância é uma condição da criança.
Um conjunto das experiências vividas por elas em diferentes lugares históricos,
geográficos e sociais”. Dito de outra forma por Larrosa (2017, p. 246), nas palavras
de Hancke: “[...] nada daquilo que está citando constantemente a infância é verdade,
somente o é aquilo que, reencontrando-a, a conta.”
Dessa forma, a infância vem sendo objeto de estudo e observada, nesse
decorrer histórico, de inúmeras formas, por vários autores e entendedores que
pensam em decifrá-la, esgotá-la. Larrosa (2017, p. 231) questiona:

Todos trabalham para reduzir o que existe de desconhecido nas crianças e


para submeter aquilo que nelas ainda existe de selvagem. Então, onde estão
a inquietação, o questionamento e o vazio, se a infância já foi explicada pelos
nossos saberes, submetidas por nossas práticas e capturada por nossas
instituições, e se aquilo que ainda não foi explicado ou submetido já está
medido e assinalado segundo os critérios metódicos de nossa vontade de
saber e de nossa vontade de poder?

Larrosa (2017) nos convida a não pensar a infância como objeto, mas como o
outro. Não como aquilo que olhamos, mas como aquilo que nos olha e nos interpela.
“A alteridade da infância é sua absoluta heterogeneidade em relação a nós e ao nosso
mundo, sua absoluta diferença” (LARROSA, 2017, p. 232).
Sob este olhar da alteridade é preciso conhecer as diferenças, compreender e
aprender com as diferenças, escutando a criança e suas infâncias. Larrosa (2017) diz
que a infância

nunca é o que sabemos, mas, por outro lado, é portadora de uma verdade à
qual devemos nos colocar à disposição de escutar; nunca é aquilo aprendido
pelo nosso poder, mas ao mesmo tempo requer nossa iniciativa; nunca está
no lugar que a ela reservamos, mas devemos abrir um lugar para recebê-la.
Isso é a experiência da criança como um outro: o encontro de uma verdade
que não aceita a medida do nosso saber, com uma demanda de iniciativa que
não aceita a medida do nosso poder, e com uma exigência de hospitalidade
30

que não aceita a medida de nossa casa. A experiência da criança como um


outro é a atenção à presença enigmática da infância. (LARROSA, 2017, p.
232).

Walter Benjamin, em muitos dos seus escritos, como “Rua de mão única:
infância berlinense” (2017), “Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação”
(2002), descreve infâncias vividas, cita personagens e alegorias, os detalhes e suas
possibilidades. No relato de sua infância, fala da “criança desordeira”. Benjamin (2017)
descreve a criança não de maneira inocente, mas a entende inserida em uma classe
social, produzida e produtora de cultura:

As crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho


onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se
irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do
trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer
que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo
das coisas volta exatamente para elas e somente para elas. Neles, estão
menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em
estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais
residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo das coisas, um
pequeno mundo inserido no grande. (BENJAMIN, 2017, p. 57).

No texto acima, Benjamin dá voz à criança como sujeito único, colecionadora,


uma criança criativa, ativa, capaz de fazer escolhas, de olhar pelo avesso. A criança
é competente e forte, tem direitos, direito de ter esperança, de ser valorizada, ouvida
e não ser predefinida como frágil, carente, incapaz (RINALDI, 2012).
Impossível capturar a infância, desvendá-la e classificá-la por completo em
termos restritos da ciência. É necessário ampliar os caminhos e incluir a literatura e a
poesia como indicativos para outro olhar que toma a infância não como objeto de
conhecimento, mas tema da narração (GOUVEA, 2008).
A infância é uma construção histórica social, vivida de formas, condições,
situações e instituições diferentes por todas as crianças. É imprescindível respeitá-la
e percebê-la em suas especificidades. Aconchegá-la em suas diferenças e,
necessariamente, oferecer tempo e escuta do contexto para legitimá-la e incluí-la com
seus valores, sentimentos e direitos.

2.2 EDUCAÇÃO INFANTIL: DIFERENTES TEMPOS HISTÓRICOS E FORMAÇÃO


DOCENTE
31

Passado. Presente. Futuro. Para Benjamin (1987b, p. 224), “[...] O dom de


despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador”.
Ao buscar olhar para a história da Educação Infantil no Brasil, retomamos o passado
em busca de inscrever no presente seu apelo por um futuro diferente. Para tanto,
começamos com a menina Elaine (Figura 7) – aquela que raramente tinha voz – para
que narre suas primeiras experiências na Educação Infantil.

Figura 7 – Legião Brasileira de Assistência (LBA) no município de Palhoça - 1980

Fonte: Acervo da pesquisadora, 1980.

Diariamente, eu e minha irmã caminhávamos inocentemente... A LBA era um


lugar grande, regrado e cercado com grades. Os momentos das refeições
eram os mais temidos. Serviam como prato principal ‘deliciosos’ pés de
galinha com molho de tomates. Obrigatoriamente, todos tinham que comê-
los. Na tentativa de livrar-me dos pés, jogava-os para debaixo da mesa. Mas
eles não desapareciam... A ‘professora’ ao encontrá-los, dirigia um olhar
fulminante e ‘carinhosamente’ me conduzia ao quarto escuro, lugar de
reflexão e penitência. (Pesquisadora).

A história da Educação Infantil se concebe a partir da constituição social,


política e econômica em diferentes tempos, concepções e governos.
Na história há contradições e exclusões, e, como diz Kuhlmann (2000, p. 06),
“somos um povo formado do desterro, em uma história de colonizações, aculturações,
conflitos, genocídios e exploração.”
Somos marcados por lutas, conquistas que foram enraizadas por nossos
antecessores, trazemos memórias, muitas vezes esquecidas pelo tempo, mas que no
32

presente é necessário fazê-las presente, dar visibilidade, fazer justiça à nossa história,
ao nosso passado.
A educação tem uma longa história, se forem consideradas as primeiras
escolas criadas durante o período colonial, entre elas as escolas dos padres da
Companhia de Jesus ou escolas jesuítas (SCHMIDT; SCHARDONG;
SCHAFASCHECK, 2012).
As escolas públicas, fundadas e mantidas pelo Estado, datam do início do
século XIX. A partir da independência política do país, houve a necessidade de se
criar uma opinião homogênea em prol dos interesses do Estado brasileiro. As ideias
propagadas na época indicavam que da instrução dependiam os progressos
civilizadores, materiais e políticos de uma nação (SCHMIDT; SCHARDONG;
SCHAFASCHECK, 2012, p. 135).
Assinala-se que a educação surge como meio civilizador que privilegia uma
minoria considerada favorecida e superior, excluindo claramente uma maioria formada
por negros e brancos pobres, cuja educação para estes era limitada e pautada no
discurso liberal de igualdade.
Na metade do século XX, a educação trazia propostas “modernas” nacionais e
internacionais de retirada das crianças do “anonimato para ser foco sobre o qual se
concentram as mais diversas atenções” (CAMPOS, 2008, p. 175).
Quando a criança deixa o anonimato, a docência emerge necessariamente
para possibilitar a ascensão e a reverência aos cuidados e educação das crianças de
0 a 6 anos, e é marcada social e politicamente com um período de expansão e
transformações econômicas advindas do processo de industrialização e urbanização
(BATISTA, 2013).
As instituições de Educação Infantil tiveram dois ângulos distintos de formação:
de um lado, os jardins de infância e, de outro, as creches, classificados de acordo com
a classe social das crianças e a necessidade da burguesia. Ambas carregavam sua
concepção de educação e o objetivo no qual a estrutura social se delineava de forma
intencional (DE PIERI, 2014).
A LBA desempenhou papel marcante junto às esferas locais, influenciando o
panorama da Educação Infantil a partir de uma concepção preventiva e de educação
da criança pequena. Em outras palavras, uma política que incentivava a instalação de
creches em espaços físicos simples, com infraestrutura precária e a contratação de
profissionais sem qualificação (CONCEIÇÃO, 2013).
33

A prevenção e assistência eram primordiais nas instituições de Educação


Infantil no atendimento às crianças, que eram zeladas e recebiam cuidados
inconsistentes de alimentação e guarda.

As instituições de educação infantil têm origens totalmente distintas da escola


obrigatória, pública, laica e gratuita para todas as crianças de 7 anos. Como
se sabe, as primeiras creches nasceram para atender aos interesses da elite
que pretendeu educar as crianças das camadas populares, já que suas mães
trabalhavam e não eram suas educadoras. Essas instituições surgem como
substitutas das relações domésticas maternas: são religiosas, filantrópicas e,
em tempos de predominância higienista, surgem patologizando a pobreza e
criando o cidadão de segunda classe, inserido no sistema. Portanto, nesse
âmbito, criança era sinônimo de criança pobre. (FARIA, 2005, p. 1.021).

Assim, religião, práticas higienistas e assistencialistas marcaram o início da


Educação Infantil, que fragilmente vem se constituindo e tentando fortalecer suas
especificidades. Nesse contexto, insere-se a docência.
Segundo Batista (2013),

do ponto de vista político e da formação de professores [...] ainda há práticas


que persistem inabaláveis, sem que tenhamos clareza do quanto estão
enraizadas em uma história caracterizada pelo preconceito e exclusão de
crianças e famílias de camadas populares.

Entre o final dos anos 80 e 90, a educação brasileira vive intensas


transformações com a promulgação da Constituição de 1988 e a LDB (Lei nº
9.394/96), que passa a reconhecer, em seu artigo 29, as creches e pré-escolas, para
crianças de 0 a 6 anos, como parte integrante do sistema educacional e primeira etapa
da Educação Básica (BRASIL, 1996).
Com o objetivo de garantir profissionais habilitados e capacitados que atuem
na Educação Infantil, no artigo 62, a LDB estabelece que

a formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível


superior, em curso de licenciatura plena, admitida, como formação mínima
para o exercício do magistério na Educação Infantil, a oferecida em nível
médio, na modalidade normal. A união, o Distrito Federal, os Estados e
Municípios trabalham em regime de colaboração para promover a formação
inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de magistério.
(BRASIL, 1996)

Em 2009, a Resolução nº 5, de 17 de dezembro, fixa as DCNEIs e dispõe, em


seu artigo 4º, que:
34

As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a


criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos
que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua
identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende,
observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza
e a sociedade, produzindo cultura. (BRASIL, 2009a).

As DCNEIs14, de caráter mandatório, é um documento que orienta a formulação


de políticas, formação de professores e demais profissionais da Educação, e também
o planejamento, desenvolvimento e avaliação pelas unidades de seu Projeto Político-
Pedagógico (PPP) e visa a informar às famílias das crianças matriculadas sobre o
trabalho pedagógico desenvolvido nas instituições. (BRASIL, 2009b).
Todas as ações estabelecidas pelas DCNEIs são fundamentadas pelos
princípios éticos, políticos e estéticos. Pilares que, intrinsecamente, sustentam as
práticas e estruturam a Educação Infantil.
As DCNEIs reafirmam que as creches e pré-escolas são todos os
estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de
crianças de zero a cinco anos de idade por meio de profissionais com a formação
específica legalmente determinada, a habilitação para o magistério superior ou médio,
refutando, assim, funções de caráter assistencialista. Trazem, em seu currículo, um
conjunto de práticas fundamentadas nas interações e brincadeiras que não decompõe
o cuidar e o educar e, concomitantemente, busca articular as experiências e os
saberes das crianças aliados aos conhecimentos culturais, artísticos, científicos,
tecnológicos e sociais com o propósito de não fragmentar a criança nas suas
possibilidades de viver experiências. (BRASIL, 2009b).
Cabe ressaltar que o percurso da Educação Infantil foi contemplado por
inúmeras pesquisas, leis e documentos15 que a legitimam e fortalecem. Dessa forma,
a educação infantil vem se estruturando, principiando em sua tenra existência,
debatendo-se contra retrocessos, tentando garantias de direitos, espaços, olhares e
especificidades historicamente construídos.

14 No texto das DCNEIs o termo “documentação pedagógica” não é citado ou evidenciado. A palavra
“documentação” aparece apenas uma vez na página 11, quando o texto traz como título “O
processo de avaliação”, que associa a palavra documentação com observações e dados das
crianças, estes devem acompanhá-las ao longo da trajetória na Educação Infantil e ser entregues
por ocasião da matrícula no Ensino Fundamental para garantir a continuidade dos processos
educativos vividos pela criança (BRASIL, 2009a).
15 Subsídios para credenciamento e funcionamento de instituições de educação infantil. 1998

(BRASIL, 1998); Padrões de infra-estrutura para as instituições de educação infantil e parâmetros


de qualidade para a educação infantil, 2004 (BRASIL, 2004); Política Nacional de Educação
Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação, 2005 (BRASIL, 2005).
35

2.3 FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA

Refletir sobre a formação inicial de professores da Educação Básica implica


pensar sobre o quanto as exigências dessa formação refletem diretamente na
formação do professor que estará atuando na sala de aula em um futuro próximo. A
formação inicial consiste em vivenciar e experimentar o aprendizado teórico-prático.
Nas palavras de Tardif (2014, p. 288), “a formação inicial visa a habituar os alunos –
os futuros professores – à prática profissional dos professores de profissão e a fazer
deles práticos ‘reflexivos’”.
Lançando um breve olhar para a legislação educacional brasileira, observa-se
que, na década de 40, a formação de professores previa uma formação inicial
específica em cada estado brasileiro, onde se estabelecia diferentemente a duração
do curso, as disciplinas que seriam ministradas, as terminologias e as práticas
profissionais de atuação. Essa situação diferenciada e desigual do Ensino Normal nos
estados é corrigida pela Lei Orgânica do Ensino Normal, pelo Decreto-Lei nº 8530/46.
Em 1961, a LDB (Lei nº 4.024/61) não alterou a formação do professor primário
conforme definida na Lei Orgânica, mas acrescenta a possibilidade dos Institutos de
Educação formarem professores para as Escolas Normais. (PIMENTA, 1997).
Após a Lei nº 5.692/71, as “Escolas Normais” passam a ser chamadas de
“Habilitação ao Magistério”. A lei torna o ensino do magistério um curso
profissionalizante, reduzido no conhecido 2º Grau, com até 3 anos de duração, sendo
que o 1º ano era destinado à formação geral. As mudanças que vieram com a lei
efetivaram a Habilitação Magistério, entretanto, como não havia profissionais
habilitados para as vagas existentes, contratavam-se “profissionais” com até o 5º ano
primário, para lecionar nas classes primárias. Esta lei foi um dos instrumentos que a
ditadura militar acionou para refrear os movimentos sociais que demandavam o
acesso ao ensino superior. (PIMENTA, 1997).
O curso de Pedagogia, por sua vez, nos anos 60 forma bacharéis e licenciados.
Com o Parecer do Conselho Federal de Educação (CFE) nº 251/62, o pedagogo passa
a ser um professor para diferentes disciplinas dos então cursos ginasial e normal. O
currículo da Pedagogia compunha-se de disciplinas das genericamente denominadas,
ciências da educação, didática e de administração escolar. O Parecer nº 262/69 aboliu
a distinção entre bacharelado e licenciatura em Pedagogia. (PIMENTA, 1998).
36

O Parecer nº 252, de 1969, definiu a estrutura curricular do curso de Pedagogia


que vigorou até pouco tempo atrás, com a promulgação da LDB de 1996. (PIMENTA,
2011, p. 21).
A Prática de Ensino no currículo de Habilitação Magistério é fundamentada com
o Parecer CFE nº 349/72, e passa a ser entendida como o estágio, que deve ser
realizado nas próprias escolas da comunidade, sob a forma de estágio
supervisionado. Fundamenta-se também a Didática como norteadora da teoria que
fundamentará a prática. Dessa forma, o Estágio é a prática e a Didática é a teoria
prescritiva da prática.
A Fundação Carlos Chagas, a Associação Nacional de Educação (ANDE) e a
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd)
possibilitaram a mobilização dos educadores, o que resultou em dois grandes
movimentos: o de revitalização do Ensino Normal e o de reformulação dos cursos de
Pedagogia, ambos posteriormente (1990) englobados na Associação Nacional pela
Formação dos Profissionais de Educação (ANFOPE). O pressuposto desse
movimento é o reconhecimento de que a escola é uma instituição social cuja função
específica é a produção e difusão do saber historicamente acumulado, como
instrumentalização dos alunos para participarem das lutas sociais mais amplas,
objetivando a necessária transformação da sociedade. (PIMENTA, 1997, p. 58).
Acerca da educação, Pimenta (1998, p. 42) explica:

A educação (objeto de conhecimento) constitui e é constituída pelo homem


(sujeito do conhecimento); é um objeto que se modifica parcialmente quando
se tenta conhecer (Gomez, 1978), do mesmo modo que, à medida que é
conhecida, induz alterações naquele que a conhece (Coelho e Silva, 1991).
Pela investigação o homem transforma a educação, que, por sua vez,
transforma o homem (e o processo de investigação). A educação é móvel (é
prática social histórica), que se transforma pela ação dos homens em relação.
(PIMENTA, 1998, p. 42).

A formação de professores para o Ensino Fundamental e Educação Infantil se


intensifica a partir da promulgação da LDB nº 9.394/96, que postula a formação
desses professores em nível superior, com um prazo de 10 anos para esse ajuste.
(GATTI, 2010).
A LDB apresenta, no título VI, os profissionais da educação e, no artigo 61 -
regulamentado pela Lei nº 12.014/2009 -, consideram-se profissionais da educação
37

escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em
cursos reconhecidos, são:

I – professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na


educação infantil e nos ensinos fundamental e médio;
II – trabalhadores em educação portadores de diploma de pedagogia, com
habilitação em administração, planejamento, supervisão, inspeção e
orientação educacional, bem como com títulos de mestrado ou doutorado nas
mesmas áreas;
III – trabalhadores em educação, portadores de diploma de curso técnico ou
superior em área pedagógica ou afim.
Parágrafo único. A formação dos profissionais da educação, de modo a
atender às especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos
objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica, terá
como fundamentos:
I – a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos
fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho;
II – a associação entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados
e capacitação em serviço;
III – o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições
de ensino e em outras atividades. (NR) (BRASIL, 1996, p. 41).

A LDB de 1996 modificou a Educação Básica e integrou as creches nos


sistemas de ensino, compondo, junto com as pré-escolas, a primeira etapa da
Educação Básica.
O Parecer CNE/CEB nº 20/09 e a Resolução CNE/CEB nº 05/09 definem as
DCNEIs que explicitam em primeiro lugar a identidade da Educação Infantil, condição
indispensável para o estabelecimento de normativas em relação ao currículo e a
outros aspectos envolvidos nas propostas pedagógicas. Apresentam a estrutura legal
e institucional da Educação Infantil. (OLIVEIRA, 2010).
Em cumprimento ao artigo 62 da LDB (Lei nº 9.394/96) são instituídas, por meio
da Resolução nº 02/2015, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial
em Nível Superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para
graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a Formação Continuada.
(BRASIL, 2015).
No artigo 1º § 2º consta que as instituições de ensino superior devem
possibilitar a formação inicial e continuada aos profissionais do magistério, atendendo
às políticas públicas de educação, às Diretrizes Curriculares Nacionais, ao padrão de
qualidade e ao Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES),
manifestando organicidade entre o seu Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI),
seu Projeto Pedagógico Institucional (PPI) e seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC)
38

como expressão de uma política articulada à Educação Básica, suas políticas e


diretrizes.
As diretrizes sinalizam a docência como uma ação educativa e um processo
pedagógico intencional e metódico que envolve conhecimentos específicos,
interdisciplinares e pedagógicos, conceitos, princípios e objetivos da formação que se
desenvolvem na construção e apropriação dos valores éticos, linguísticos, estéticos e
políticos do conhecimento inerentes à sólida formação científica e cultural do
ensinar/aprender, à socialização e construção do conhecimentos e sua inovação, em
diálogo constante entre diferentes visões de mundo (BRASIL, 2015).
A lei determina que os cursos de formação inicial constituir-se-ão com os
núcleos de estudos de formação geral, das áreas específicas e interdisciplinares, e do
campo educacional, seus fundamentos e metodologias; núcleo de aprofundamento e
diversificação de estudos das áreas de atuação profissional, incluindo os conteúdos
específicos e pedagógicos, priorizadas pelo projeto pedagógico das instituições; e o
núcleo de estudos integradores para enriquecimento curricular. (Artigo 12) (BRASIL,
2015).
As diretrizes apresentam, no Capítulo V, art. 13, a estrutura e currículo dos
cursos de formação inicial, afirmando que os cursos terão, no mínimo, 3.200 (três mil
e duzentas) horas de efetivo trabalho acadêmico. Desse montante, os cursos deverão
ter quatrocentas horas de prática como componente curricular, distribuídas ao longo
do processo formativo; duas mil e duzentas horas dedicadas às atividades formativas
estruturadas pelos núcleos; duzentas horas de atividades teórico-práticas de
aprofundamento em áreas específicas de interesse dos estudantes; e mais
quatrocentas horas dedicadas ao estágio supervisionado obrigatório, que é
componente obrigatório da organização curricular das licenciaturas, sendo uma
atividade específica intrinsecamente articulada com a prática e com as demais
atividades de trabalho acadêmico. (BRASIL, 2015)
Gatti (2014) adverte que o número de horas de estágio obrigatório tem como
objetivo proporcionar às estagiárias um contato mais aprofundado com as instituições,
de forma planejada, orientada e acompanhada de um professor-supervisor de estágio.
Infelizmente estudos comprovam imprecisões sobre o que verdadeiramente acontece
na prática.
O estágio dos cursos de formação de professores deve possibilitar que os
futuros profissionais compreendam a complexidade das práticas institucionais. O
39

estágio pode ser eixo da formação de docentes na medida em que se coloque a partir
da análise, da crítica e da proposição de novas maneiras de fazer educação. (GATTI,
2014, p. 41).
De acordo com Pimenta (2002), as pesquisas afirmam tendências
investigativas sobre formação de professoras, valorizam o professor reflexivo, um
profissional em processo contínuo de formação que tem a possibilidade de expor
ideias, mudar práticas, comportamentos sociais, econômicos e políticos que
permeiam a educação.
Um dos papéis da docência é ensinar como contribuição ao processo de
humanização dos indivíduos historicamente situados, assim, espera-se que os cursos
de Pedagogia desenvolvam nos alunos conhecimentos e habilidades, atitudes e
valores que lhes possibilitem, permanentemente, construir seus saberes-fazeres a
partir de práticas sociais, em um processo contínuo de construção de suas identidades
como professores (PIMENTA, 1999, p. 18).
Os estudantes de Pedagogia trazem consigo saberes, marcas, histórias e
experiências que, agregadas aos conhecimentos acadêmicos, constroem a identidade
profissional do futuro professor. A profissão de professor com caráter social deve ser
revista constantemente e reafirmada nas práticas, são as tarefas da formação que
desafiam as teorias.

Os conhecimentos teóricos construídos pela pesquisa em ciências da


educação, em particular os da pedagogia e da didática que são ministradas
nos cursos de formação para o ensino, não concedem ou concedem muito
pouca legitimidade aos saberes dos professores, saberes criados e
mobilizados por meio de seu trabalho. Na formação inicial, os saberes
codificados das ciências da educação e os saberes profissionais são vizinhos,
mas não se interpenetram nem se interpelam mutuamente. (TARDIF, 2000,
p. 18).

O professor carrega marcas de sua própria atividade, e uma boa parte de sua
existência é caracterizada por sua atuação profissional. Com o passar do tempo, aos
seus próprios olhos e aos olhos dos outros vai se tornando um professor com sua
cultura, seu ethos, suas ideias, suas funções, seus interesses. (TARDIF, 2000).
Quando os alunos chegam ao curso de formação inicial, já têm saberes sobre
o que é ser professor. O desafio posto aos cursos de formação inicial é o de colaborar
no processo de passagem dos alunos de seu ver o professor como aluno e o seu ver-
se como professor. Construir sua identidade de professor a partir dos saberes da
40

experiência (produzidos no cotidiano docente) corroborados pelos processos de


reflexão sobre a prática, pesquisa e estudo de novos conhecimentos (PIMENTA,
1999, p. 21).
O processo de formação, de acordo com Larrosa (2017), pode ser visto então
como uma viagem no não planejado, uma experiência vivida em uma viagem aberta
em que pode acontecer qualquer coisa e que não se sabe onde se vai chegar. Implica
voltar para si e estabelecer uma relação interior com a matéria de estudo:

A formação é uma viagem aberta, uma viagem que não pode ser antecipada,
e uma viagem interior, uma viagem na qual alguém se deixa influenciar a si
próprio, se deixa seduzir e solicitar por quem vai ao seu encontro, e na qual
a questão é esse próprio alguém. Por isso, a experiência formativa é uma
chamada que não é transitiva... não suporta o imperativo, não pode nunca
intimidar, não pode pretender dominar aquele que aprende, capturá-lo,
apoderar-se dele. O que essa relação interior produz não pode nunca ser
previsto. (LARROSA, 2017, p. 67).

Na formação, Ostetto (2012b) destaca a importância do encontro com porções


esquecidas do ser, encontrar-se com a sua criança. Como alguém poderá acolher o
outro fora de si se não acolhe o outro interno?
Para elucidar esse encontro, Larrosa (2017) acrescenta que a formação não é
outra coisa senão o resultado de um determinado tipo de relação com um determinado
tipo de palavra, que tem o poder de formar ou transformar. Às vezes para
simplesmente tirar-lhe o espírito de criança, ou dar um novo significado, uma nova
infância para a criança ainda presente. Para tanto o caminho do encontro com essa
criança de espírito requer uma cuidadosa renovação da palavra, ler o mundo de outra
forma, da qual possa surgir um começar plenamente afirmativo “formalmente
selvagem” (LARROSA, 2017, p. 59).
Ao preservar e renovar sua criança interior, a individualidade e a singularidade,
o estagiário não se rende fragilmente aos moldes sociais e culturais, às formas
homogêneas de educar e ser educado. Ele consegue transgredir, não ser submisso e
não reprimir sua subjetividade e a subjetividade do outro.
Pode a educação fazer justiça à singularidade do outro? Rajobac, Bombassaro
e Goergen (2016) salientam a necessidade de se discutirem processos formativos na
perspectiva da aceitação e do reconhecimento do diferente, fato que se apresenta
como uma das grandes tarefas da pedagogia: a alteridade como fundamental para a
formação humana.
41

Diante do exposto, a respeito da formação inicial no curso de Pedagogia, é


ainda pertinente realizar uma breve reflexão sobre a especificidade da formação inicial
de professores da Educação Infantil. Como preparar bem o “primeiro” professor das
crianças pequenas? O que significa formar bem esse professor? Como preparar o
professor para que ele eduque a criança pequena de forma humanizada?
É necessário a construção de um olhar diferenciado sobre as crianças
pequenas, é imprescindível assumir uma postura profissional de observação,
discussão e reflexão sobre os fazeres e modos de ser das crianças, e da sua prática
pedagógica junto a elas (CERISARA et al., 2002).
Esse novo olhar deve ter como princípio metodológico os próprios saberes das
crianças, os saberes das alunas estagiárias, os saberes dos professores das crianças
e dos professores orientadores de estágio. Estes atores, estagiários e professores,
devem estar envolvidos no processo de observação, registro e reflexão acerca do
cotidiano vivido pelas crianças pequenas no espaço da creche. (CERISARA et al.,
2002).
Para tanto, a jornada inicia no estágio, nos primeiros passos, nos primeiros
olhares e segue com uma diversidade de situações por imensos caminhos que são
escolhidos e experienciados ao caminhar.
De acordo com Cerisara et al. (2002), é importante nesse percurso que os
professores das instituições estejam na posição de observadores e investigadores dos
jeitos de ser das crianças neste espaço de educação e cuidado. Os estagiários e
professores, protagonizando como pesquisadores, partilhando suas impressões sobre
a realidade captada, descobrindo diferentes olhares sobre uma mesma situação,
talvez, assim, formulem diferentes proposições para ampliar os repertórios culturais
dos grupos infantis de forma individual e coletiva.
Nesse sentido, é preciso andar pelos lugares em que se dão as práticas
educativas, para reconhecer os espaços concretos das relações entre adultos e
crianças de zero a seis anos. É fundamental ler e conhecer o contexto das instituições
de Educação Infantil, para buscar diálogo, para construir aquela competência
profissional almejada, para garantir, enfim, a qualidade defendida. (OSTETTO, 2012a,
p. 21).
O estágio na formação inicial pode possibilitar reflexões a partir de diferentes
olhares e saberes advindos de encontros entre crianças e adultos cotidianamente.
42

2.4 UMA CAIXA PRECIOSA... A DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA

Era uma vez... um lugar cheio de marcas, em um corredor longo e hediondo,


onde havia um quadro deixado lá há mais de quinze anos. Um quadro
colorido, verdadeiro, feito com lápis preto e giz de cera, desenhado por uma
artista genuína de 5 anos de idade. Certo dia, o expulsaram. A parede perdeu
a ingenuidade e a delicadeza... sua policromia foi substituída por uma pintura
de um autor desconhecido que retrata um copo de leite. (Pesquisadora) 16

Como ir ao encontro do outro ou nos deixarmos ser encontrados? Como a


instituição de Educação Infantil pode oportunizar aos meninos e meninas, ali reunidos
durante parte de sua infância, espaços e tempos que potencializem encontros?
(PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 85). Como a documentação pedagógica se enlaça
nesse tecer?
Para seguir os rastros da história é necessário voltar, rememorar, pois “o
importante para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua
rememoração” (BENJAMIN, 1987d, p. 37). Nessa trama histórica, encontramos
Celestin Freinet, a quem podemos chamar de pioneiro para pensar a prática de
observação e registro que é inerente à pedagogia da infância (MARQUES; ALMEIDA,
2011).
Freinet e sua esposa Élise, entre 1929 e 1935 desenvolveram e aprofundaram
o movimento a que deram início, e propõem a “Pedagogia do Bom Senso”, com uma
metodologia alicerçada em quatro eixos: cooperação, comunicação, afetividade e
documentação. A documentação, é formada por um conjunto de práticas ou técnicas
que fundamentam a proposta da Escola Moderna (ELIAS, 1997).

Freinet deu atenção aos testemunhos individuais dos alunos desejosos de


compartilhar com seus colegas, acontecimentos importantes, daí surgiu o
texto livre, por outro lado, surgiu o jornal escolar, a ser distribuído entre as
famílias, e, sobretudo a correspondência interescolar, pela qual uma escola
comunica a outras o essencial desses testemunhos individuais, escolhidos
de forma democrática e editada de forma coletiva para sua comunicação.
(LEGRAND, 2010, p. 16, grifos do autor).

Essas técnicas evidenciam a importância da efetiva participação e da livre


expressão das crianças na creche, e configuram elementos primordiais para os

16 Este quadro foi desenhado e colorido por uma criança de 5 anos de idade (minha filha) no ano de
2002 no CEI Voo Livre. Foi escolhido pelas crianças e professoras, entre tantos outros, para ser
emoldurado e exposto no hall de entrada do CEI. Em 2018 foi retirado, descartado e trocado por
outro de um autor desconhecido. Felizmente a tela histórica foi resgatada por antigas professoras e
devolvida a quem pertence por direito.
43

registros e a documentação. Sua obra é marcadamente concreta, cheia de vida e


emoções. Sua filosofia se exprime também pelo amor às crianças e pela preocupação
constante por seu desenvolvimento e felicidade, refletidos em um ambiente natural e
livre (LEGRAND, 2010).
Malaguzzi, declaradamente também influenciado pelas ideias de Freinet, dá luz
ao processo de documentação pedagógica17 que surge na região de Emília Romagna,
na Itália, no momento histórico pós-Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto
surgiram tentativas para a (re)construção de escolas para crianças.
Em um vilarejo chamado Villa Cella, próximo da cidade de Reggio Emília,
famílias decidiram construir uma escola para crianças pequenas. Esta foi a primeira
de muitas, inauguradas e coordenadas pelos pais. Como explica Malaguzzi (2016, p.
57):

As pessoas haviam decidido construir e operar uma escola para crianças


pequenas. Essa ideia pareceu-me incrível! Corri até lá em minha bicicleta e
descobri que tudo aquilo era verdade. Encontrei mulheres empenhadas em
recolher e lavar pedaços de tijolos. As pessoas haviam decidido que o
dinheiro para começar a construção viria da venda de um tanque abandonado
de guerra, uns poucos caminhões, e alguns cavalos deixados para trás pelos
alemães em retirada. Em oito meses, a escola e nossa amizade havia
lançado raízes. O que ocorreu em Villa Cella foi apenas a primeira fagulha.

Os professores nessas pequenas escolas eram muito diferentes uns dos


outros, pois tiveram formações distintas, mas seus pensamentos amplos e receptivos
tinham energia inesgotável. Para Malaguzzi (2016, p. 76):

Os professores tem o hábito de questionar suas certezas, devem ser


conscientes e estar disponíveis; devem assumir um estilo crítico em relação
às pesquisas e um conhecimento continuamente atualizado sobre as
crianças, devem manter uma avaliação enriquecida do papel dos pais, e
devem possuir habilidades para falar, ouvir e aprender com estes. Devem
fazer questionamentos constantes sobre seu ensino, devendo deixar para
trás o modo isolado e silencioso de trabalhar que não deixa traços. Ao
contrário devem descobrir modos de comunicar e documentar as
experiências crescentes na escola, devendo preparar um fluxo constante de
informações de qualidade, voltado aos pais, mas também apreciado pelas
crianças e pelos professores. (MALAGUZZI, 2016, p. 76).

17 Loris Malaguzzi foi o primeiro a utilizar o termo documentação pedagógica. No Brasil, o registro de
práticas educativas começa a ter destaque e ser abordado por Freire (1993, 1996), Ostetto (2008) e
Oliveira-Formosinho e Azevedo (2002), apresentando pontos divergentes e convergentes entre si.
44

É importante que os professores aprendam a analisar processos contínuos em


vez de esperar para avaliar resultados finais. Entender as crianças como produtoras
e não consumidoras. Perceber que escutar as crianças é tanto necessário quanto
prático.
É nesse contexto que surge a documentação pedagógica. Tal proposta
considera a importância da escuta, da observação, do registro da interpretação e da
narrativa. (MALAGUZZI, 2016).
Na década de 90, difunde-se internacionalmente a experiência desenvolvida
em Reggio Emilia. A abordagem passa a ser reconhecida pela excelência na
qualidade das experiências educativas proporcionadas à criança, desenvolvidas com
base na denominada “teoria das cem linguagens” elaborada por Malaguzzi em
parceria com educadores, crianças e famílias. (MARQUES; ALMEIDA; 2011).
No Brasil, em 1983 a 1ª edição da obra “A paixão de conhecer o mundo”, de
Madalena Freire, foi um dos primeiros documentos a apresentar explicitamente
experiências de registro. Freire (1993, p. 15) expressa emoção, preocupação e
otimismo, quando compartilha seus registros e relatórios:

Depois de um período de dúvidas, sem saber se deveria ou não publicar estes


relatórios, decidi fazê-lo, fundamentalmente como tentativa de ampliar meu
diálogo com outros educadores [...] nasceu da necessidade que senti de
pensar a minha prática de educadora. Só lamento ter perdido um pequeno
relato de 1970, tempo em que, trabalhando na escolinha de Arte de São
Paulo, comecei minha formação com Ana Mae. Aquele relatório, mesmo
precariamente, retratava minhas inquietações na procura embrionária da
minha prática atual. (FREIRE, 1993, p. 15).

A pedagogia italiana influencia a Pedagogia da Infância, que é constituída por


um conjunto de fundamentos e indicações de ação pedagógica que tem como
referência as crianças e as múltiplas concepções de infância em diferentes espaços
educacionais (BARBOSA, 2010). A criança é sujeito potente no processo educativo e
na relação com outros sujeitos.
O registro de práticas pedagógicas assume importância. Para Freire (1996), o
registro é entendido como ação que descreve a prática e possibilita pensar sobre ela,
e tornar-se um instrumento metodológico do professor no percurso da observação,
reflexão e do planejamento inerentes à ação docente.
45

A adoção dessas novas possibilidades se difundiu em contextos, espaços e


meio social diferentes dos italianos, certamente, tais possibilidades seguiram rumos
desiguais.

A ideia de documentação ganha força no campo da educação infantil,


especialmente a partir do ingresso, em nosso meio, de publicações referentes
a essa experiência italiana. Concepções que, por vezes, foram tomadas de
maneira descontextualizada, ignorando-se as condições subjacentes à
produção da referida documentação, que certamente chama a atenção ao
divulgar a riqueza de espaços, materiais e experiências construídas junto às
crianças. (MARQUES; ALMEIDA; 2011, p. 416).

Nesse percurso histórico seguido por diferentes olhares e possibilidades, no


caminho escolhido, compreende-se nesta pesquisa a documentação pedagógica
como uma narrativa peculiar tecida no encontro entre crianças e adultos no contexto
educativo. (PANDINI-SIMIANO, 2015)
Para a autora, no processo de documentação pedagógica “a escuta é
compreendida como a disponibilidade permanente por parte do sujeito que ouve. Uma
abertura à fala, ao gesto, da alteridade”. Como escutar o que não se ouve, como
escutar aquele que não fala? É importante, segundo Rinaldi (1995 apud OSTETTO,
2012a, p. 61),

que aprendamos a ouvir as múltiplas linguagens que se expressam nos


gestos, nos olhares, no toque, na escolha dos objetos, nas tentativas de
comunicação verbal; linguagem que o ouvido adulto precisa exercitar para
escutá-la, considerando a história de cada uma das crianças.

A escuta precisa ser sensível aos padrões que nos conectam com os outros,
precisa ser aberta para perceber a necessidade de ouvir e ser ouvido, fazendo uso de
todos os sentidos para escutar. Escutar demanda tempo. Quando verdadeiramente
escutamos, entramos no tempo do diálogo e da reflexão interna, um tempo interior
que é composto do presente, mas também do passado e do futuro. O ato de escutar
produz perguntas, emoções, estabelece relações. Escutar não é fácil. Exige uma
profunda consciência e suspensão de julgamentos e preconceitos. Exige abertura à
mudança, ao novo ao desconhecido, a possíveis desconstruções de certezas
(RINALDI, 2012).
Escutar é ser flexível às dúvidas e incertezas, é olhar o outro plenamente,
considerando todas as linguagens todos os sentidos. A capacidade de escutar é uma
qualidade das crianças pequenas, que são as maiores ouvintes do mundo ao seu
46

redor. Elas escutam a vida em todas as suas formas e cores. Escutam os outros e
rapidamente percebem como escutar é essencial para a comunicação. (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 2016).
Com a observação e escuta atenta às crianças, é possível enxergá-las e
conhecê-las. Ao fazê-lo, tornamo-nos capazes de respeitá-las pelo que elas são e
pelo que elas querem dizer. Entretanto, a fim de poder examinar e refletir, é necessário
fazer registros significativos das observações e ações (GANDINI, 2002).
O registro permite recortar preciosidades. “À medida que tomamos o cotidiano
educativo como histórias a serem contadas e partilhadas, compreende-se a
necessidade do registro.” (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 60).
Documentar não significa apenas coletar registros. A documentação é processo
cooperativo que contempla não apenas o levantamento e o recolhimento de dados,
mas, sobretudo, a análise coletiva do observado. Pressupõe a interpretação junto
com outros educadores e crianças (GANDINI; GOLDHABER, 2002 apud OSTETTO,
2012b, p. 30). Após encher a caixa com histórias, memórias e possíveis
experiências... é importante revisitá-las:

Por meio da documentação, o pensamento ou a interpretação do


documentador tornam-se tangível e passível de interpretação. As notas, as
gravações, os slides e as fotografias representam os fragmentos de uma
memória. Cada fragmento é imbuído com a subjetividade do documentador,
mas também fica sujeito à interpretação dos outros, como parte de um
processo coletivo de construção de conhecimento. Nesses fragmentos estão
presentes o passado e o futuro. O resultado é o conhecimento que é
abundante, construído e enriquecido pelas contribuições de muitos.
(EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016, p. 238).

O processo de documentação pedagógica possibilita presenciar o caminhar,


estar presente em cada detalhe, a cada passo sem necessariamente almejar o
resultado final:

Documentar é contar histórias, testemunhar narrativamente a cultura, as


ideias, as diversas formas de pensar das crianças; é inventar tramas, poetizar
os acontecimentos, dar sentido à existência, construir canais de ruptura com
a linguagem ‘escolarizada’, tradicionalmente cinzenta, rígida, enquadrada,
que tantas vezes silencia adultos e crianças. Documentação é autoria, é
criação. (OSTETTO, 2017, p. 30).
47

Narrar histórias, documentá-las, recontá-las, preservá-las. A documentação


pedagógica produz memória para as pessoas que passam naquele lugar muitas horas
de suas vidas:

Com muita frequência, os centros para crianças pequenas parecem ser


lugares impessoais e sem vestígios de história. Por meio da documentação,
podemos oferecer a cada centro uma identidade que faça referência às
pessoas que estiveram envolvidas nele e oferecer aos que a ele chegam um
senso de continuidade. (GANDINI, 2002, p. 158).

Habitantes que deixam marcas e são marcados pelo espaço, pelo tempo e no
registro da história provocam indagações, retrospectivas, diferentes interpretações.
Gagnebin (2014), referindo Walter Benjamin, diz que o atual não confirma as certezas
do hoje. Pelo contrário, o atual, por uma intensiva e repentina ressurgência, abala tais
certezas. O “atual”, nesse sentido enfático, entra em choque, em confronto positivo
com a imagem tácita do presente e da história, instaurando a possibilidade de um
outro porvir (GAGNEBIN, 2014, p. 206).
Dessa forma, diferentes tempos históricos são fatores a se considerar na
constituição da documentação pedagógica. Tanto passado, presente ou futuro podem
enriquecer e constituir uma documentação pois contém experiências e narrativas que
fizeram e fazem parte da história. Como se dá a materialidade dessas narrativas?
Edwards, Gandini e Forman (2002, p. 155-156) elucidam:

A documentação pode ser apresentada de muitas maneiras diferentes,


incluindo painéis, materiais escritos à mão ou digitados, como livros, cartas,
panfletos, e ainda caixas, tecidos, instalações e outros tipos de materiais.
Podem ser apresentadas de todas as maneiras e combinações possíveis.
Uma importante parte da documentação vem diretamente dos trabalhos bi e
tridimensionais das crianças, estejam eles já acabados ou sendo elaborados.
Esse tipo de documentação deve vir acompanhado pelas interpretações do
professor e, quando possível, dos diálogos e pensamentos das crianças.

A imaginação e criatividade são aliadas das diferentes formas de apresentação


da documentação pedagógica. Pandini-Simiano (2015), em sua pesquisa de
doutorado em contexto italiano da Educação Infantil, explica que foi possível encontrar
diferentes formas de documentação:
a) documentação da entrada (conta um pouco da história da instituição, seus
princípios);
48

b) documentação de paredes e tetos (projetos, espaços, relações), com


material diversificado que conta o cotidiano na creche;
c) diário de casa (registros que as famílias fazem a partir de algum objeto ou
personagem enviado para casa);
d) documentação semanal (conta a riqueza da vida coletiva na creche; e-mail
e exposição em sala);
e) diário pessoal (reconstrução da vida da criança na creche) entregue às
famílias e crianças;
f) documentação tridimensional (experiências vividas e expostas);
g) documentação audiovisual (apresentada em geral ao fim de cada ano) para
fortalecer a cultura e a importância da instituição para a criança (PANDINI-
SIMIANO, 2015).
As diferentes documentações pedagógicas utilizam as mais variadas formas de
expressão. Tais materialidades tornam-se um importante instrumento para a
construção de uma imagem de infância, a organização de contextos educativos para
as crianças e a narração de suas experiências nos espaços coletivos de educação.
(PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 71)
A documentação é uma narrativa da experiência que ajuda adultos e
crianças a encontrarem significados naquilo que fazem, não apenas um único
sentido, mas várias possibilidades dele. Consideramos aqui a experiência como o que
acontece conosco que nos marca, que nos toca. É muito mais do que simplesmente
algo que nos acontece, que vivenciamos e que não nos deixa significado. “A
experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se
experimenta, que se prova.” (LARROSA, 2002, p. 27)
Walter Benjamin, em 1933, no ensaio “Experiência e pobreza”, menciona a
impossibilidade de fazermos experiência. O autor realiza uma crítica à modernidade
que, dominada pela técnica, produz barbárie, alienação, acúmulo de informações e
esquecimento do passado:

[...] o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele
a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a
construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. [...]
Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do
patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo
do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’
(BENJAMIN, 1987c, p. 116).
49

Cada vez mais estamos empobrecidos de experiência, e não apenas de uma


forma privada, mas de toda a humanidade. Isto faz com que nos contentemos com
pouco, que construamos com pouco. O autor supracitado ainda afirma, no seu texto
“O Narrador”, que a narração é a forma de intercambiar a experiência e ela está cada
vez mais rara, ou seja, estamos perdendo a faculdade de intercambiar experiências.
Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente
responsável por esse declínio (BENJAMIN, 1987a). Muitas informações são
simultaneamente transmitidas, explicadas, desenhadas, e só têm valor no momento
em que são contadas, no momento em que são novas até o momento seguinte,
quando chegar a próxima informação. A informação “antiga” se perde e perde seu
valor, suas certezas, pois a “construção da vida passa neste momento muito mais pela
força dos fatos do que pelas convicções” (BENJAMIN, 2017, p. 9).
Contrapondo, a arte da narrativa evita explicações, é ela própria, num certo
sentido, uma forma artesanal de comunicação. O extraordinário e o miraculoso são
narrados com maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto
(BENJAMIN, 1987a).
Quando praticamos a arte de narrar, acredita Benjamin (1987a), recuperamos
nossa memória e cultura. Assim, somos reconduzidos à tarefa histórica e cultural de
ser humano, tarefa que se apresenta impossibilitada pela pobreza da nossa
experiência suplantada, na Modernidade, pelo acúmulo de vivências sem sentido.
É necessário superar a individualidade, caminhar mais devagar, e
coletivamente buscar o equilíbrio e a mansidão; “o tédio é o pássaro de sonho que
choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta”.
(BENJAMIN, 1987a, p. 204). É indispensável acalmar e considerar o percurso, talvez,
voltar e resgatar o tempo tão precioso. Lamentavelmente, no contexto educativo,
muitas vezes, seguimos mecânica e apressadamente na correria da rotina e no
descompasso de tantos afazeres. Dessa forma, observar, registrar e narrar são
grandes desafios que peregrinam na contramão da realidade da Educação Infantil.
Larrosa (2002) afirma que as palavras traduzem sentido, geram realidades e,
às vezes, funcionam como fortes mecanismos de subjetivação. É possível crer no
poder das palavras, na força das palavras, acreditar que fazemos coisas com as
palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco.
As reflexões a respeito das experiências e narrativas ampliam nosso olhar na
presente pesquisa para o campo da Educação Infantil. Podemos observar que é
50

fundamental que tanto os professores como as crianças tenham espaço e tempo para
poder se exporem a algo que “passe” a eles e que os afete.
A documentação pedagógica, ao anunciar as vozes dos professores e das
crianças, oferece visibilidade e possibilita espaço e tempo no cotidiano da creche para
que a experiência aconteça.
Pandini-Simiano (2015), em diálogo com a pedagogia italiana e Walter
Benjamin, propõe a documentação pedagógica como uma peculiar narrativa
tecida no encontro entre adultos e crianças. Nas palavras da autora:

A documentação pedagógica se constitui em um entre visível e o invisível,


entre a voz e o silêncio. No gesto de observar, registrar, interpretar e narrar o
professor pode ser um narrador. Atento ao mundo reconhece, valoriza e colhe
preciosidades, as quais se não forem narradas, correm o risco de se
perderem. (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 13).

Nesse sentido, a documentação pedagógica possibilita o intercâmbio de


experiências no contexto educativo. Ela não é um relato fiel da verdade, mas uma
possível interpretação do sentido que a experiência pode ter sido para a criança. “O
narrar está contaminado pela experiência do narrador. [...] A experiência
compartilhada toca, pois antes tocou aquele que partilha. A narrativa é parte do
narrador”. (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 109).
Nas documentações não fica visível apenas o que é aparente, pois não é o
registro uma mera observação, mas é um ato interpretativo em que aquele que
documenta está implicado no ato de documentar. Para Gandini e Dalhberg (2002 apud
ALBUQUERQUE; FELIPE; CORSO, 2017, p. 192),

a documentação pedagógica não é considerada uma mera coleta de dados


realizada de maneira distante, objetiva e descompromissada pelo professor.
A documentação possibilita, tanto às crianças quanto aos educadores, a
construção de memória, registrada em diferentes suportes, e,
consequentemente, a reflexão sobre os processos vividos por ambos; permite
revisitar falas e ações e construir novos significados sobre elas.

Documentar é conceber palavras, é dar visibilidade ao que, muitas vezes,


parece ser invisível aos olhos. É dar sentido às experiências por meio da narrativa...
Ciente de que as reflexões apresentadas não esgotam o que pode ser pensado
e problematizado sobre as questões apresentadas, ao contrário, elas tornam
evidentes os problemas e as dificuldades que estão postas a quem se propõe a
pensar, sigo adiante na intenção de buscar olhar para as narrativas dos acadêmicos
51

sobre o processo de documentação pedagógica na disciplina de Estágio Orientado


Supervisionado em Educação Infantil.

3 METODOLOGIA DA PESQUISA... POR ONDE E COMO CAMINHAMOS

Figura 8 – Caixa de memórias da pesquisadora

Percorrer...

Sei que é longa a trilha, que já percorri milhas...


Com o pouco que andei um dia chegarei lá.
Mas tenho certeza de que andarei muito mais...
(Fragmento guardado pela Pesquisadora, escrito em
12/03/1990)
Fonte: Acervo da pesquisadora, 1990.

Em termos metodológicos, optamos por realizar este trabalho em uma


perspectiva de pesquisa qualitativa, que lida com o universo de significados, das
relações, dos processos e de fenômenos que não podem ser quantificados (MINAYO,
2002). A partir dessa ideia, a presente investigação se propõe como um estudo
exploratório que toma a estrutura dos estudos de caso como forma de articular o
empírico ao teórico; que focaliza um fenômeno particular, mas leva em conta o
contexto e as múltiplas dimensões (ANDRÉ, 2003).
Um percurso construído no caminho, juntos, pesquisador e objeto de pesquisa,
que rompe com um modelo único de pesquisa para todas as ciências, sem deixar o
rigor metodológico da pesquisa. Segundo Gatti (2002, p. 53), o método não é apenas
uma questão de rotina de passos e etapas, de receita, mas de vivência de um
problema, com pertinência e consistência em termos de perspectivas e metas. Assim,
a pesquisa trilha caminhos estruturados e formados ao longo do percurso, com
52

desvios necessários que possibilitam vislumbrar rotas. Na concepção de Benjamin


(1986, p. 50):

Método é desvio. A apresentação como desvio – eis o caráter metodológico


do tratado. Renunciar ao curso ininterrupto da intenção é sua primeira
característica. Incansavelmente, o pensamento começa sempre de novo,
volta minuciosamente à própria coisa. Esse incessante tomar fôlego é a mais
autêntica forma de existência da contemplação.

Fazer-se voltar, aventurar-se, buscar fragmentos, coletar materialidades e


experiências que são encontradas nos desvios. Pandini-Simiano, Barbosa e Silva
(2018) explicam que entender o método como desvio envolve um pensamento
minucioso e hesitante, que sempre volta ao seu objeto por diversos caminhos e
desvios. As autoras aproximam tal perspectiva do que Benjamin chama de
contemplação, ou seja, uma espécie de atenção ao mesmo tempo leve e intensa, a
qual indica um sujeito que saiba se deter admirado, respeitoso, hesitante e talvez
perdido, em que as coisas para se ver se dão lentamente. Um método ao mesmo
tempo perigoso por não dar a certeza de que realmente leva a um lugar, mas pela
mesma razão precioso, pois só a renúncia do previsível permite ao pensamento atingir
a liberdade (GAGNEBIN, 2011).
São muitos os autores que estabelecem o diálogo com Benjamin e tal
perspectiva de pesquisa na área da infância (FANTIN, 2006; KRAMER, 2003;
PANDINI-SIMIANO, 2010; PANDINI-SIMIANO, 2015, entre outros). Dentre eles,
Kramer (2003) afirma a potência de tal diálogo. Nessa direção, buscaremos construir
os movimentos da pesquisa que possibilitem refletir sobre a documentação
pedagógica e formação inicial de professores a partir do olhar para as narrativas dos
acadêmicos sobre o processo de documentação pedagógica na Educação Infantil.

3.1 PASSOS METODOLÓGICOS

A presente pesquisa se dá nos encontros entre sujeitos. Nos diálogos, nas


reflexões e construções artesanais. Transcorre devagar, respeitando tempos e
espaços.
O primeiro passo deu-se com a participação no GEDIG e a inserção no projeto
“A Documentação Pedagógica no Contexto de Educação Infantil: Perspectiva para
Docência e Formação de Professores”, financiado pela FAPESC, tendo como objetivo
53

investigar acerca da documentação pedagógica no contexto da Educação Infantil. O


projeto compreende a documentação pedagógica como uma narrativa tecida com os
fios da experiência no contexto educativo, e considera que as narrativas sustentam a
docência e a formação de professores na Educação Infantil.
Assim, a pesquisa: “Documentação pedagógica e formação inicial de
professores: um olhar para as narrativas dos acadêmicos sobre o processo de
documentação pedagógica” é uma ramificação deste projeto.
Assumimos como questão-problema: quais as narrativas dos acadêmicos
sobre o processo de documentação pedagógica no estágio orientado
supervisionado em Educação Infantil I do curso de Pedagogia?
A partir desse questionamento, a equipe de pesquisa18 elegeu como contexto
de pesquisa a disciplina de Estágio Supervisionado em Educação Infantil do Curso
de Pedagogia da UNISUL – 2019/1.
A concepção de estágio, nesse contexto, articula teoria e prática, é
estabelecida por diferentes atividades acadêmicas no contexto das estratégias
didáticas. Ela ocorre na integração do ensino com a pesquisa e a extensão, no
desenvolvimento de atividades aplicadas em que o estudante precisa intervir em
situações simuladas ou reais, por meio da articulação dos conhecimentos acadêmicos
com o contexto de atuação de estudantes e professores fora do ambiente acadêmico,
e, especialmente, pelos estágios supervisionados. (UNISUL, 2015).
A concepção que dá alicerce para o estágio supervisionado está fundamentada
no princípio da ação-reflexão-ação que norteia este projeto pedagógico, o que exigirá
do estagiário observar, refletir e exercitar o fazer pedagógico a partir desse princípio
epistemológico, no decorrer de todo o processo.
As competências exigidas pelo estágio são: planejar, implementar,
acompanhar e avaliar as atividades e projetos educativos na Educação Básica e nos
espaços não formais de educação. O curso exige como habilidades a serem
trabalhadas:

- Entender a formação profissional vinculada à realidade sociocultural do


campo de ação do profissional educador.
- Articular a ação educativa às dimensões teórico-prática.

18 Esta pesquisa foi realizada por uma equipe de três pesquisadoras: Elaine Maria da Silva dos
Santos (autora desta dissertação), coordenada pela professora Dra. Luciane Pandini Simiano.
Também Jessica Beluco Vitoreti (bolsista Iniciação Científica).
54

- Articular os conhecimentos ensinados com os valores éticos que constituem


a ação do educador.
- Observar e refletir sobre os contextos escolares vivenciados, visando a
solucionar possíveis situações-problema.
- Estabelecer um vínculo profissional entre o estagiário e seu espaço de
atuação.
- Avaliar criticamente sua atuação, como docente em potencial, e o contexto
em que atua.
- Intervir em situações educativas com criatividade e afetividade. Selecionar
metodologias por meio de pressupostos epistemológicos ligados à realidade
social e cultural.
- Elaborar e executar projetos interdisciplinares e práticas investigativas para
desenvolver conteúdos curriculares.
- Identificar as metodologias para pesquisas com crianças. (UNISUL, 2019).

Das horas exigidas, setenta e cinco são destinadas ao estágio supervisionado


de Pedagogia na Educação Infantil I, que apresenta como ementa:

A Documentação Pedagógica: observação, registro, interpretação, narrativa


e planejamento dos contextos e das relações educativas com crianças até 3
anos; a atuação docente; e elaboração de relatório de estágio – análise crítica
das intervenções realizadas no contexto da educação infantil. (UNISUL,
2019).

Os contextos de Educação Infantil onde os estudantes de Pedagogia


realizaram seus estágios ao longo da pesquisa foram: CEI Peixinho Dourado, CEI São
Judas Tadeu e CEI Cantinho da Alegria, instituições públicas localizadas no município
de Tubarão, no estado de Santa Catarina.19
Os sujeitos da pesquisa integram uma turma de 18 estudantes/estagiários
(16 alunas mulheres e 2 alunos homens), de faixa etária entre 19 e 39 anos, que
participam da disciplina de estágio supervisionado. Para nos aproximarmos de fato
desse grupo heterogêneo, é importante conhecer algumas de suas especificidades.
Dessa forma, organizamos o quadro 1, que apresenta algumas particularidades
referentes à idade, trabalho (na área da educação/outra área/ainda não trabalha) e
município em que residem:

Quadro 1 – Alunos participantes da pesquisa (continua)


Nomes Idade Trabalha na Trabalha em Não Município onde
fictícios20 educação. Nº de outra área trabalha reside
horas
Ane 20 Sim. 8h - - Morro da Fumaça

19 No anexo A, encontram-se algumas informações sobre as instituições.


20 Para garantir a confidencialidade dos nomes reais, de acordo com o termo de consentimento
(Apêndice A).
55

Carla 20 - Sim. 10h - Morro da Fumaça


Isa 20 4h - - Laguna
Jô 39 - Sim. 10h - Garopaba
João 24 Sim. 4h - - Tubarão
Bianca 20 Sim. 4h - - Laguna
Elena 20 Sim. 4h - - Jaguaruna
Estela 20 Sim. 4h - - Tubarão
Dani 19 Sim. PIBID - - Jaguaruna
Natália 20 Sim 4h - - Tubarão
Vera 19 - Sim. 9h - Jaguaruna
Clau 20 - Sim. 4h - Treze de Maio
Bia 22 Sim. 8h - - Tubarão
Viviane 20 Sim. 8h - - Tubarão
Adriana 20 Sim. 4h - - Tubarão
Flor 20 Sim. 4h (Aux. - - Laguna
sala)
Rosa 26 Sim. 8h - - Imbituba
Luci 20 Sim. 8h - - Tubarão
Fonte: Elaborado pela pesquisadora, 2019.

Percebe-se que os 18 integrantes do grupo exercem alguma profissão e


desses, apenas 4 alunos não trabalham na área da educação. Todos dividem seu
tempo entre os estudos e o ofício, e se dedicam no mínimo 4 horas diárias ao trabalho.
São jovens trabalhadores que residem, na sua maioria, nos municípios vizinhos a
Tubarão e diariamente viajam para completar sua dupla e, em alguns casos, tripla
jornada.
A pesquisa foi realizada ao longo de seis meses, totalizando 14 encontros na
sala de aula, realizados nas dependências da UNISUL e 8 encontros no campo de
estágio.
Nos encontros e observações compartilhadas, foi possível construir um “diário
dos encontros”21 que nos possibilita descrever detalhadamente os momentos.

3.1.1 As marcas de um primeiro encontro...

Diário de encontro – dia 26/02/2019: Inicia-se mais uma caminhada e a


professora Luciane rapidamente “abre as janelas” da sala e da alma, e divaga sobre

21 Instrumento de registro escrito das observações, reflexões, pensamentos, transcrições e


sentimentos e da pesquisadora.
56

a importância de estar naquele lugar, na disciplina de estágio. A professora


carinhosamente apresentou as novas integrantes do grupo: Jéssica, que já é
conhecida do grupo e que começa a pesquisa de iniciação científica, e, em seguida,
apresentou-me como pesquisadora do Mestrado. Finalizou dizendo que
caminharíamos juntos nesta disciplina, pois teríamos muitas trocas de experiências.
Desconforto, ansiedade, suspeita... ainda estavam na lista de presença, e meu
nome também estava lá. Ao observá-los chegando, encontrei jovens com média de
idade entre dezenove a vinte e tantos anos, que talvez, estavam tão angustiados
quanto eu, naquele lugar, em busca de respostas, experiências e possibilidades.
O incômodo inicial foi se dissipando à medida que as pessoas se
apresentavam, a reta se tornou menos longa e possibilitou-me chegar perto para
interagir. Abri minha caixa de memórias! Iniciei timidamente mostrando uma caixa
fechada que os alunos deveriam tentar adivinhar o que havia dentro.
Disseram que era muito pesada, que estava muito cheia, que não fazia barulho,
que estava justa. Foram muitas as tentativas com diversas sugestões: livros, jogos,
saco de areia, lápis e canetas, penal, material didático. Por fim, após muito suspense,
abri a caixa e apresentei para os alunos “minhas memórias” que estavam guardadas
dentro da caixa.
Em seguida, sugerimos que cada um desse início à construção de sua caixa.
Para tanto, propusemos “um memorial de bebê”22, do tempo específico entre zero a
três anos:

‘[...] Guardaremos na caixa o que tem sentido, aquilo que faz marca.’ O
processo de documentação pedagógica, muitas vezes, é confundido por
algumas pessoas como registros, não é registro. Documentação pedagógica
é um processo em que o registro faz parte. Este processo inicia com a
observação como um olhar sensível, coleta de registros, e após os registros
coletados, são interpretados e se constrói uma narrativa, uma história. Os
bebês têm história e memória, mas como eles ainda não conseguem colocar
palavra, o que fica então? Por isso é fundamental documentar para auxiliar
esse sujeito a significar o mundo. Como o bebê significa o mundo? Pela via
da palavra, pela via da narrativa. Se não tem narrativa não tem história, não
tem sujeito. (Narrativa da Professora Luciane gravada em áudio pela
pesquisadora)

22 Cada aluno confeccionará uma caixa, de qualquer tamanho ou formato, e colocará dentro dela
objetos referentes à sua história no período entre zero a três anos. A partir das materialidades,
deverá fazer uma narrativa de infância, apresentando a criança que foram.
57

O estágio é permeado pelo exercício da reflexão e do fazer pedagógico, por


isso a importância da documentação pedagógica (observar, registrar, interpretar,
refletir e construir narrativas). A prática é um lugar de conhecimento, de pesquisa dos
universos infantis. É extremamente importante conhecer as crianças!!
O estágio pressupõe o cruzamento de vários olhares, ou seja, o olhar do
estagiário com o olhar da instituição, das crianças com o olhar da professora
orientadora, com o olhar das pesquisadoras.
Abaixo, apresentamos os grupos divididos nos campos de estágio (Quadro 2).

Quadro 2 – Campos de estágio escolhidos e validados pela UNISUL no município de


Tubarão
CEI Cantinho da Alegria CEI São Judas Tadeu CEI Peixinho Dourado
Jô e Bianca Elena e Dani João, Luci e Natália
Bia e Viviane Ane e Carla
Estela e Adriana Vera e Clau
Isa e Flor
Fonte: Elaborado pela pesquisadora, 2019.

3.1.2 Segundo encontro: algumas mudanças, primeiros olhares...

Diário de encontro – dia 12/03/2019: No segundo momento... ajustes... ainda


pareço uma estranha no ninho, que observa e tenta se aproximar dos pares. Momento
delicado, em que cada gesto e cada fala são cautelosamente medidos para evitar
assustar “os filhotes” que não parecem confortáveis com minha presença. Recebi
alguns sorrisos tímidos, olhares longínquos... Alguns informes sobre os campos de
estágio e encaminhamentos dos documentos.
Realizamos o estudo do texto “Observação, registro, documentação: nomear e
significar as experiências” (OSTETTO, 2012b, p. 13-32). Cada equipe poderia
registrar com palavras e desenhos o que compreendeu do texto com um cartaz que
foi distribuído a todos.
Trabalho? Não. Brincadeira, livre expressão, movimento. Que maravilha...
esses momentos proporcionados em que é possível retornar à infância, mesmo que
inconscientemente! Permaneci no meu lugar, no canto do ninho. Ensaiei alguns
passos, aproximei-me devagar, lancei elogios, pedi permissão para fotografar e voltei
ao meu lugar seguro.
58

Os estudantes coloriam com segurança as folhas brancas, cada grupo com


suas particularidades: fizeram mapa conceitual, desenhos, colaram adesivos, laços,
fitas, usaram lápis coloridos, ou somente canetas pretas. Foram autores,
protagonistas que registram com delicadeza a experiência a ser narrada,
compartilhada. Como podemos observar na figura a seguir.

Figura 9 – Cartazes sobre o estudo de textos

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

A cada apresentação fazíamos intervenções e estabelecíamos diálogos que


referenciavam o texto, refletindo que registrar a experiência vivida é fundamental, a
partir da análise do contexto educativo para significar e qualificar a prática pedagógica
(Figura 10).

Figura 10 – Trabalho de grupo

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.


59

A dor e o prazer caminham juntos no ato de criar, registrar, escrever; é um


“processo que sabemos, nem sempre é prazeroso” (OSTETTO, 2012b, p. 25). O
professor é autor e narrador que comunica seu fazer educativo fazendo uso da palavra
escrita, como texto vivo, real, pois a palavra escrita é tradução de uma experiência e,
como expressão do vivido, é comunicação e troca.

3.1.3 Terceiro encontro: os filhotes começam a se aventurar...

O terceiro encontro aconteceu no dia 19 de março. No aguardo da chegada,


surgiram as primeiras conversas triviais... tempo necessário para me achegar.
Enfim, esses momentos de regresso são preciosos, pois oportunizam novos
olhares mais individuais, que possivelmente permitem aproximações.
Realizamos o estudo dos textos “Duas reflexões sobre a documentação”, de
Lella Gandini e “Marcas de uma pedagogia tecida nas relações: documentação
pedagógica como narrativa da experiência educativa na creche”, de Luciane Pandini-
Simiano. Como mostra a figura 11.

Figura 11 – Leituras e estudos

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

A partir dos textos os estudantes receberam o desafio de no contexto do


estágio, a partir das observações e registros, produzir mini-histórias23, fazendo uma

23 O conceito das mini-histórias surgiu nos anos 80, em Reggio Emília, quando Malaguzzi convida as
professoras a narrar sobre os percursos de aprendizagem das crianças através de breves relatos
visuais e textuais. Era preciso se fazer valer de recursos evocativos para além da palavra, que
60

sequência fotográfica e narrativa escrita de um momento significativo. Essa pequena


história, posteriormente, fundamentará a justificativa do projeto da docência. Esta será
realizada ao longo do processo do planejamento.
Nas discussões, percebemos a importância de valorizar os detalhes que
poderiam passar despercebidos no cotidiano, pois as “crianças” fazem muitas
perguntas, querem sempre testar e criar coisas, dão outros significados para aquilo
que não tínhamos proposto. É preciso ampliar as vozes, legitimar o conhecimento.

3.1.4 Diário de encontro – dia 26/03/2019: ... As portas, enfim se abriram!!

Apresentação do memorial de bebê! Os primeiros diálogos: “Que caixa linda!!”


“É de papelão!!” Que capricho!! “Será que é para entregar?” Um a um, chegam, com
suas caixas cheias de histórias de bebês e crianças, prontas para serem
compartilhadas, narradas. Recordações da infância que trazem o passado, a sentar
conosco na varanda:

Como uma mãe que aperta ao peito o recém-nascido sem o acordar, assim
a vida trata durante muito tempo a recordação ainda tênue da infância. Nada
alimentou mais a minha do que o olhar sobre os pátios entre cujas varandas
escuras havia uma, ensombrada por toldos no verão, que foi para mim o
berço onde a cidade deitou o seu novo habitante. As cariátides que
suportavam a varanda do andar de cima, poderiam talvez ter deixado por um
momento o seu lugar para cantarem junto desse berço uma canção que, se
na verdade não dizia quase nada do que mais tarde me esperaria, por outro
lado continha a fórmula mágica que levaria a que o ar desses pátios
permanecesse sempre um encantamento para mim. (BENJAMIN, 2017, p.
70).

Descontração, risadas, conversas ao pé do ouvido, indagações, olhares


curiosos... o que será que há nas caixas? Iremos olhar para dentro delas... ouvir as
escritas... as histórias, expor as materialidades, deixar a criança narrar:

[...] Eu tinha uma foto em que eu estou com um biquíni de florzinha que é o
meu xodó, que eu guardo até hoje... olha o estado dele, gente! Daí eu trouxe
uma foto... porque eu nasci um bebê bem grande, bem cabeludo, gordinha...
e uma outra foto... porque eu não podia ver uma moto... tenho uma cicatriz
no meu joelho até hoje queimada porque eu via a moto, saía correndo e subi
na moto e queimou. (Narrativa de Rosa)

mostrassem por meio de sequência de imagens, narrativas visuais suficientemente abertas para a
complexidade que há nos modos que os meninos e as meninas constroem o conhecimento sobre si
e sobre o mundo.
61

Nesse sentido, Rosa expõe suas materialidades (Figura 12).

Figura 12 – Rosa apresentando suas materialidades

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Nesse instante, ao abrir as caixas do memorial de bebê, é oportuno resgatar,


das nossas memórias de infância, experiências possíveis de contar:

[...] Essa é uma das lembranças que marcam a vida da Flor... Ela era uma
bebê alegre, espontânea e carismática. Sua madrinha está sempre presente
em sua vida... fez o vestido que Flor usaria em sua festa de aniversário... este
dia foi muito importante, pois a bebê Flor estava completando seu primeiro
ano de vida... Faz dezenove anos que ele está guardado com muito amor e
carinho. (Narrativa de Flor)

Formamos um grande círculo com as mesas e cadeiras e os alunos colocaram


no centro suas caixas de memórias (Figura 13).

Figura 13 – Apresentação do memorial

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.


62

Foi um momento tão especial... e convidamos a olhar as materialidades que há


no meio da sala (Figura 14).

Figura 14 – Encontro com memórias

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Narrativas se apresentam ao coletivo, evidenciam marcas e (res)significam


histórias. Como mostra o relato de Isa:

Eu trouxe uma vaquinha de pelúcia... tudo começou por acaso... meses se


passaram e chegou o grande dia, bem na chegada da primavera, dia 23 de
setembro de 1999... A mãe não podia amamentar, então ela tinha leite de
cabra que eu adorava, e também tomava chá de camomila e dormia
tranquilamente... Com um ano e meio Isabela ganhou sua vaquinha, que ela
carinhosamente batizou de Mumu... Isabela morava no interior e vivia
rodeada de vacas, cabras e gatos. (Narrativa da Isa)

Na figura a seguir, as materialidades de Carla e Isa.

Figura 15 – Materialidades de Carla e Isa

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.


63

Após as narrativas, rememorações e compartilhamentos, os olhares se


ampliam, se sensibilizam e se entrelaçam. Conforme Benjamin (1987a, p. 201), “o
narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada
pelos outros e incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”.
A experiência proporcionada com as caixas de memórias, ampliaram os laços
do grupo, possibilitaram a empatia, ressignificaram e fortaleceram encontros.

3.1.5 Os primeiros encontros com os campos de estágio

Sair do aconchego e da segurança da sala de aula e entrar pelos portões dos


CEIs para observar as crianças, os espaços, as professoras, a realidade, é mais um
passo à docência. “É necessário observar ações, reações, interações, proposições
não só das crianças, mas também do próprio docente. É preciso ficar atento às
dinâmicas do grupo, às implicações das relações pedagógicas, com um olhar aberto
e sensível.” (OSTETTO, 2017, p. 27)
Nos encontros dos dias 02, 09 e 16 de abril os alunos percorreram os diferentes
campos de estágio e trouxeram as primeiras impressões. O que impactou na
chegada? Como foi a acolhida?
Para Estela, Adriana e Rosa, o CEI Cantinho da Alegria apresenta as mesmas
características observadas há dez anos. Como podemos ver no relato de Estela:

Estudei lá há 10 anos, quando era pequenininha... continua tudo igual, nada


mudou. A organização do espaço... fiquei assustada. Mas fomos bem
acolhidas. Chegamos lá e conversamos com elas para ver qual sala pegar.
Então ela deixou a gente na Creche II. Tivemos acesso ao PPP, foi bem
interessante, a gente descobriu coisas da creche, muito antigas. A acolhida
foi boa! Mas por um lado fiquei triste, pois está tudo igual... achei que por
dentro talvez estivesse diferente, mas nada mudou. (Narrativa de Estela)

Jô e Bianca procuraram olhar para o contexto e observaram rotinas lineares.


Encantaram-se com as crianças e perceberam o quanto é importante sentar e estar
com elas:

Nós também fomos bem acolhidas... nós fomos à tarde e fomos atendidas
pela diretora, nos atendeu bem, só que ela não teve tempo de explicar muita
coisa para nós. A gente chegou, ela já viu a sala. A gente não conseguiu ver
o PPP. Vamos procurar ir mais uma vez no dia 23. Acho que as nossas
observações já ficaram boas pra gente fazer o planejamento. Fomos bem
acolhidas pela professora. Na manhã é uma professora e à tarde é outra. Na
observação procuramos não focar no trabalho da professora e sim nas
64

crianças. Mas é uma coisa que está intrínseca, não tem como a gente
observar as crianças sem observar o que acontece na sala. Por exemplo, o
controle de corpos. Ao longo das conversas uma coisa que me chocou foi que
ela faz planejamento de dois em dois meses junto com outros CEIs. Gente,
eu fiquei triste ao ver as crianças, uma agarrada atrás da blusa da outra para
fazer fila... elas têm que pegar... têm umas que detestam... tem uma
menininha que arruma as cadeirinhas e se esconde embaixo da cadeira,
porque ela não gosta de ir para a fila. As crianças são maravilhosas, a gente
senta e brinca com elas, e elas adoram... porque elas não têm essa interação.
(Narrativa de Jô e Bianca)

A primeira ida a campo é sempre muito impactante, latente. Nati, João e Luci
se encantaram com os bebês que, por consequência, se encantaram com a figura
masculina que o João representa:

O João e a Luci foram primeiro bater as fotos da instituição. Depois eu fui,


porque eu já trabalhei lá por dois anos e meio, e conheço o diretor, as
professoras, aí foi mais fácil da gente conversar e pegar uma sala que eu
visse que dava para fazer umas coisas mais legais. Uma sala maior... porque
a sala que ela ofereceu pra gente foi uma sala bem pequenininha, e como
nós somos em três, eu pensei que iria ficar bem complicado. Então ficamos
com a turma de zero a um ano. É uma sala assim... a professora é bem legal...
é a última sala do corredor, tem um solário que não é usado. Pegamos essa
sala justamente por isso. A gente chegou à sala e a primeira coisa que eu
percebi foi que as coisas ficam tudo no alto, e quase não tem coisas. A
professora, a gente notou que tem ideias, tem interesse... Tem uma menina
haitiana que adorou o João... não sei é porque eles estão acostumados à
figura feminina, que todos eles adoraram o João... eles mexiam nas tranças
dele... (Narrativa de Nati)

Viviane e Bia observaram e se integraram ao grupo de forma ativa. Obtiveram


suas primeiras impressões referentes às interações das crianças:

A gente foi super bem-acolhidas, achamos a professora bem querida... eu já


conhecia a diretora, porque fiz uma entrevista para ser auxiliar de um menino
que tem lá... e foi supertranquilo, a gente chegou, já foi se entrosando com
as crianças, já ajudamos as professoras no que era necessário... as crianças
são muito carinhosas, interagem bastante conosco. Elas brincam bastante no
individual, não são muito de brincar no coletivo. Foi uma experiência bem
legal, eu gostei bastante. (Narrativa de Viviane)

Ane e Carla perceberam a dimensão dos espaços que algumas instituições


oferecem. Para onde olhar? Onde ficar? O que fazer? A acolhida não foi suficiente
para responder a tais questionamentos:

A gente foi ao São Judas, pegamos a creche II, assim, quando a gente
chegou lá, a gente levou um susto. Achamos a fachada da creche muito
estranha pelo espaço... a creche é uma casa, a sala é um cubículo, meu
quarto é maior que ela. A professora não estava e ficamos com a estagiária
65

mesmo. As crianças eram trocadas no chão... quando eu entrei lá eu levei um


choque... poucos brinquedos, poucas oportunidades para brincar. Nós
ficamos super perdidas... (Narrativa de Carla)

Isa e Flor ficaram no mesmo GT que Carla e Ane, só que em períodos opostos.
Com suas observações, viram outro espaço, tiveram outras impressões:

Nós também, é a mesma turminha, só que eles têm os materiais... têm uma
salinha que ficam guardados nesse espaço. Tem um espaço para trocar
fraldas, mas não é usado. As crianças assistiram sempre ao mesmo DVD.
Eles querem sair, tem uma porta de vidro, uma cortina... e eles ficam batendo.
A professora diz: ‘Sai daí!’ Eles ficam perdidos. [sic] (Narrativa de Flor)

A porta de vidro, a cortina e o visível e silencioso interesse das crianças por


esse espaço. E, como se fosse para complementar esse olhar, Benjamin (2002, p.
107-108) narra:

Atrás do cortinado, a própria criança transforma-se em algo ondulado e


branco, converte-se em fantasma. A mesa de jantar, debaixo da qual ela se
pôs de cócoras, a faz transformar-se em ídolo de madeira em um templo onde
as pernas talhadas são as quatro colunas. E atrás de uma porta, ela própria
é porta... o que há de verdade nisso tudo, a criança sabe-o em seu
esconderijo.

O que o cotidiano das creches oferece às crianças? Quais as possibilidades de


transformar uma cortina em um esconderijo, a mesa de jantar em um ídolo de
madeira? Na prática requer problematizar e analisar, sobretudo, a forma como as
crianças são fechadas e isoladas nas instituições educativas, quase sempre
condenadas a um imobilismo e a um sossego solitário diário.
Dani e Elena retratam em sua narrativa:

[...] Nós também... no primeiro dia ficamos perdidos, não conseguíamos


achar... é... me assustei muito com o parque... A sala é uma readaptação de
uma garagem e não é muito pequena. Tem brinquedos, mas é tudo
encaixotado no armário... a televisão fica no alto... a sala é maior que as
outras, mas, também, ela tem mais crianças que as outras. O parque é de
contrapiso. Tinha uma criança com o rosto machucado e a professora disse
que ele havia caído no parque, então aquilo me assustou muito. Eles não
querem brincar no escorregador, eles querem brincar com os pequenos
brinquedos que encontram no parque. O primeiro impacto maior foi o
parque... as crianças não têm como brincar. É tudo muito cronometrado, uma
rotina... todas as vezes que a gente foi era a mesma coisa... comer,
descansar, escovar o dente, fazer alguma coisa para passar o tempo,
parque... eles dormem das 11h até as 14h30min... eles acordam e comem e
depois de uma hora comem de novo...
66

Há, entre a teoria e a prática, um distanciamento que aumenta o desafio da


docência. Não é possível, em poucos dias, mudar uma realidade social, mas é
necessário fazer o melhor possível.
O espaço oferecido nas instituições foi um dos maiores problemas observados,
tanto o espaço físico em sua estrutura macro como micro. A precariedade de
materialidades oferecidas às crianças é evidente.
O que as crianças estão querendo nos dizer quando preferem brincar com os
pequenos brinquedos que encontram no parque? Elas precisam de outras
oportunidades que não somente escorregador. Geralmente são objetos muito simples
que podemos ofertar, mas que fazem a diferença no cotidiano. O que fazer diante
dessa realidade? É necessário seguir, não há tempo de paralisar; diante de situações
difíceis, é importante pensar e decidir o que propor.
Usamos a escuta como principal artifício para o trabalho de orientação e
produção. Após ouvir os relatos que evidenciaram os direcionamentos dos olhares, foi
possível construir em conjunto as breves narrativas.

3.1.6 Construção do Projeto de Prática de Ensino – as primeiras docências: o


difícil gesto de sair do ninho...

No encontro do dia 23 de abril, os grupos apresentaram mini-histórias que


serviram de base para a elaboração do projeto de prática de ensino. A partir das
narrativas, diferentes temas surgiram. Como transformar uma cortina em um objeto
central para o projeto de prática? O que há por trás da cortina? Flor e Isa relatam sua
mini-história:

Uma cortina presente no espaço da sala se torna uma forte aliada nas
brincadeiras de Arthur (1 ano e 5 meses). Ele então raciocina sobre qual
proposição dará à cortina. Enquanto Lucas (1 ano e 11 meses) e Lorenzo (1
ano e 5 meses) também entram na brincadeira, e não se cansam de explorar
a cortina e a porta de vidro que dá acesso à rua. Escondidos atrás da cortina,
é possível identificar sons de risadas, mas para eles a cortina os tele
transporta para um local imaginário, para além das paredes da sala. (Registro
feito por Flor e Isa)

E as casinhas com as quais as crianças tanto brincam... será possível construir


uma? Quais materialidades usar? Jô e Bianca contam a experiência das crianças com
a casinha:
67

A partir das observações, ficou evidente o quanto as crianças gostam e


brincam de casinha, tanto dentro da sala quanto fora dela, no parque: Lucas
teve uma grande ideia, convida seus amigos para irem à sua casa, e sai
correndo indicando o caminho. Os amigos Pietro, Antony, João e Sophia
trocam olhares e correm atrás de Lucas, perguntando: ‘Mas onde é?’ Com
tantos amigos juntos dentro desta casa tão pequena, se empurram um pouco,
enquanto decidem como vão brincar. Lucas P. convida os amigos para irem
buscar baldes, pás e objetos para usarem na ‘casa do parque’. Pietro convida
Léo para ir também. ‘É aqui, ó’, diz Lucas; Pietro diz: ‘Claro, na casinha do
escorrega!’ E todos entram. André e Alice, que estavam do outro lado do
parque, vêm na mesma direção e entram na casa de Lucas. De volta à
casinha, todos equipados, começam a brincadeira, com suas colheres e
formas. (Registro de Jô e Bianca)

E as rotinas, como torná-las mais aconchegantes? É possível reorganizar os


espaços? Como ampliar possibilidades, das crianças viverem experiências na
Educação Infantil? João, Estela e Luci narram a respeito da rotina:

Podemos perceber em nossas observações também que bebês não tinham


muito acesso ao solário. Decidimos abrir a porta do solário e observar como
os bebês interagiam com o local e os acontecimentos foram incríveis, como
podemos ver nos registros a seguir: a professora abriu a porta que dava para
o solário. Todos eles foram pra rua, felizes, explorar aquele ambiente
diferente. Isabela, muito curiosa, avistou um baldinho azul e se aproximou
dele. Dentro desse baldinho tinha uma pedra, ela se sentiu pronta para
descobrir o que era aquilo que acabara de encontrar. Joana, que passou ali
por perto, percebeu o entusiasmo da amiga e engatinhou rapidamente pra
perto de Isabela para descobrir o que era aquele objeto em sua mão. Joana
se inclina para pegar o baldinho e a pedra que estava nele e as duas
começam a disputar aquele objeto tão diferente que nunca fez parte do seu
cotidiano. (Registro escrito por João, Estela e Luci)

Nos encontros dos dias 30/04 e 07/05, os alunos tiveram orientações quanto à
escrita e elaboração dos projetos e planejamentos. Questionamentos foram se
estruturando nos encontros e diálogos, e encontraram possíveis respostas com a
elaboração das propostas de trabalho.
O quadro 3 apresenta o grupo e a faixa etária das crianças assim como o tema
da mini-história.

Quadro 3 – Grupos, faixa etária e tema das mini-histórias (continua)


Grupo/faixa etária das crianças24 Tema da mini-história
Jô e Bianca – Creche III A casa encantada... E nossos pequenos
confeiteiros e cozinheiros!
Bia e Viviane – Creche III Contos, encantos e diversão

24 Berçário, crianças de 3 meses a 1 ano. Creche II, crianças de 1 a 2 anos. Creche III, crianças entre
2 e 3 anos. Creche IV, crianças de 3 a 4 anos.
68

(conclusão)
Grupo/faixa etária das crianças Tema da mini-história
Dani e Elena – Creche IV Bate, ajeita, martela, martela... sem parar: a
criatividade no uso de “ferramentas” e diferentes
materialidades
Adriana, Estela, Rosa – Creche II Criança, natureza em arte: rastros e traços
Luci, Natália, João – Berçário O incrível mundo dos bebês e suas interações
Flor e Isa – Creche II O que tem por de trás da cortina? Uma brincadeira
que vai além do esconde-esconde
Ane e Carla - Creche II Corpo e música: descobrindo habilidades e
possibilidades
Vera e Clau - Creche III Toca, pega, explora: as linguagens e as
experiências das crianças com a natureza
Fonte: Elaborado pela pesquisadora, 2019.

Os planejamentos por projetos foram finalizados, e os estudantes


encaminhados a campo de estágio para realizarem as temidas e esperadas
docências.
Entre os dias 14 e 21 de maio os estudantes assumiram suas docências,
experimentaram a prática, sentiram finalmente a responsabilidade e o peso de ser
professor. Como mostram as figuras 16 e 17:

Figura 16 – Docências

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.


69

Figura 17 – Docências

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

No fim, que é apenas o início de uma longa jornada, os “filhotes” saíram do


ninho e seguiram seus passos. Falaram suas primeiras palavras, deram agradecidos
sorrisos e expressaram gestos de cumplicidade e satisfação.

3.1.7 Socialização das documentações pedagógicas

Os encontros dos dias 04, 11, 18 e 25 de junho foram destinados aos encontros
em pequenos grupos, para dar continuidade ao processo de interpretação e
elaboração da documentação pedagógica. Em consenso, o grupo decidiu elaborar
uma “revista pedagógica” para socializar a documentação. À cada dupla ou trio,
disponibilizamos um espaço com duas laudas que integrarão a revista.
A documentação pedagógica apresenta os acontecimentos, histórias,
fotografias e as narrativas de experiências vividas na prática docente. A esse respeito,
Vecchi (2016, p. 125) afirma:

Toda a documentação – as descrições escritas, as transcrições das palavras


das crianças, as fotografias, as gravações em vídeo – torna-se uma fonte
indispensável de materiais que usamos todos os dias, para sermos capazes
de ‘ler’ e refletir, tanto individual quanto coletivamente, sobre a experiência
que estamos vivendo, sobre o projeto que estamos explorando. Isso nos
permite construir teorias e hipóteses que não são arbitrárias e artificialmente
impostas às crianças.

O processo da documentação pedagógica proporcionou um trabalho coletivo,


fortalecido nos encontros, nas criações, nas interações e discussões. Os registros
70

escritos e fotográficos alimentaram a produção, e as ricas imagens “dificultaram” fazer


escolhas. Como explica Kramer (2002, p. 51):

Cada fotografia está impregnada da realidade à mostra e suas influências


ideológicas, da possibilidade técnica (que muda a cada vez que é
reproduzida, ampliada, copiada, reduzida) e do entrelaçamento das
subjetividades de fotógrafo e contempladores, independentemente de seus
tempos e espaços. Segundo Lopes (1996), a foto mostra sempre o passado
lido aos olhos do presente, já não é o mesmo passado, mas sua leitura
ressignificada.

A partir das ofertas de frases, palavras e materialidades é possível construir


narrativas com veracidade. Importante ressaltar que a documentação pedagógica não
quer ser a realidade, mas uma apresentação possível dela (PANDINI-SIMIANO,
2015). A caixa que abriga as escolhas de cada um está quase repleta de experiências,
narrativas, histórias e encontros que a deixaram mais abastada em possibilidades e
encantamento.

3.1.8 Último encontro... Documentação pedagógica: caixas de presente, cartas,


memórias, narrativas e possibilidades de novas experiências

A nostalgia do último encontro inundou a sala com caixas, cartas,


confraternização e saudade. Ao percorrer os caminhos da pesquisa foi inevitável
participar, abrir a caixa de histórias e contar. “O que é contar uma história? O que é
contar a história? O que isso significa? Serve isso para alguma coisa e, se for o caso,
para quê? Por que essa necessidade, mas, também, tantas vezes, essa incapacidade
de contar?” (GAGNEBIN, 2013, p. 02).
A entrega das caixas... Construímos uma caixa para cada dupla ou trio que
participou do estágio. A sugestão era que essa caixa os acompanhasse nos próximos
estágios e abrigasse pequenos encantamentos, pequenas materialidades que
marcam e se constituem em experiência. Como mostra a figura 18 a seguir.
71

Figura 18 – Caixas de memórias

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Os estudantes no encontro com suas caixas... Elas foram reconhecidas e


encontradas por aqueles a quem pertencem. Uma a uma foram seguindo seus
destinos para narrar a partir do olhar de quem deu sentido a elas. De quem olhou para
as caixas como a criança de Benjamin que:

Ao ler tapa as orelhas; [...] a respiração para no ar dos acontecimentos e


sente na face o sopro de todas as figuras [...] sente-se indescritivelmente
tocada pelos acontecimentos e pelos diálogos, e quando se levanta está
inteiramente coberta da neve que caiu da leitura. (BENJAMIN, 2017, p. 34).

Sensibilidade e encantamento estiveram presentes nos olhares dos


alunos/estagiários, e após o mistério, revelações. Dentro da caixa encontrava-se uma
carta25, “Carta a um jovem professor”, destinada a cada aluno. Pacientemente, ela foi
respondida por seus destinatários. E fora da caixa, do lado avesso, o que é possível
encontrar?
Figura 19 – Entrega das caixas de memórias

25 “Carta a um jovem professor” (Anexo B).


72

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Para Benjamin, o lado avesso é tentador de se olhar, as tramas podem ser


irresistíveis a nós e mais atraentes que os pontos finalizados do lado direito
(BENJAMIN, 2017). As caixas apresentaram, em toda sua superfície e entrelinhas,
registros e narrativas evidenciadas nos encontros. Cada um tem a liberdade de olhar
onde e como desejar.
Como foi a experiência do encontro com as caixas? Que narrativas são
possíveis de compartilhar? Os relatos que seguem apresentam algumas respostas:

Acho que é uma coisa que a gente não esperava... a gente não tá
acostumado. A gente passou bastante trabalho no estágio... e vê que tudo
não foi em vão, que não foi só pra ganhar uma nota. A gente fica mais
contente. Tem mais incentivo para continuar. [sic] (Narrativa Carla)

Alguém também teve um olhar sensível ... assim como a gente teve o cuidado
de ter com as crianças. Aqui é como se a gente fosse as crianças, alguém
tem que cuidar de nós! (Narrativa de Flor)

O pensamento, a singularidade de cada um... tem partes do nosso trabalho


na caixa... além do carinho, um olhar para cada pessoa. Não é uma coisa
como se fosse um só. (Narrativa de Jô)

Tudo o que a gente fez foi valorizado. Foi resgatado memórias que
particularmente eu nem lembrava mais. É tanta correria durante o semestre...
então, tem momentos que com certeza vão ficar na memória. [sic] (Narrativa
de Estela)

Incentivo, olhar sensível, carinho, reconhecimento, alteridade. Palavras que


expressam sentimentos transmitidos nos olhares, nas falas, nos abraços e na iminente
gratidão.
Como exigir um olhar sensível de um professor, quando ele nunca sentiu esse
olhar em sua formação? Por que as experiências estéticas parecem ser tão limitadas
no ensino superior?
73

Resta-nos aproveitar o instante, e usar a arte das palavras para responder ao


remetente. Narrativas. Palavras que se entrelaçam e dão sentido. Cada estudante
escreveu sua carta que conta uma história particular, vivida coletivamente na
disciplina de Estágio Supervisionado em Educação Infantil I (Figura 20).

Figura 20 – A escrita de novas cartas

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Chegamos ao outro lado da ponte com demasiada bagagem. Na trajetória


percorrida encontramos, desencontramos, experiências nos passaram, nossas caixas
se ampliaram e revelaram estudantes, companheiros e futuros professores (Figura
21).
74

Figura 21 - Confraternização

Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

A caixa ficou cheia... transbordando com narrativas, fotos, histórias e


documentações. É preciso escolher o que deixar... e o que levar no caminho. O que
teriam os estudantes a dizer à Educação? O que teriam a dizer sobre a Educação
Infantil, a documentação pedagógica, a formação de professores, sobre nós e sobre
eles mesmos?
Iniciamos o percurso de categorização e análise, realizando um mergulho nos
textos/imagens de modo a contemplar os aspectos que pretendíamos analisar. Como
estratégia de análise, no primeiro momento lemos e classificamos anotações do diário
de bordo, as fotografias, as documentações e as cartas escritas pelos estudantes.
A partir do entrecruzamento de textos/imagens foi possível definir as categorias
que pretendemos analisar. O desafio que se coloca, é, a partir das narrativas dos
estudantes estagiários, mostrar a fecundidade de suas vozes, suas documentações e
de seus pensamentos para nos fazer, quem sabe, pensar a Educação Infantil, a
formação inicial de professores e a nós mesmos de outro lugar.
75

4 AS ANÁLISES DO PROCESSO DE DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA NO


PERCURSO DO ESTÁGIO: NARRATIVAS, HISTÓRIAS E OLHARES...

Figura 22 – Correspondências
De tudo ficaram três coisas...
A certeza de que estamos começando...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que podemos ser interrompidos
antes de terminar...
Façamos da interrupção um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro!

Fernando Sabino, O Encontro Marcado.


Fonte: Acervo da pesquisadora, 2019.

Ao longo do percurso, encontramos e fomos encontrados, e as marcas foram


registradas nas narrativas, nas recordações, nas cartas e fotografias colocadas na
caixa de memórias, que conta as histórias.
O presente capítulo busca apresentar as análises do processo de
documentação pedagógica no percurso do estágio da formação inicial, a partir das
narrativas dos estudantes. Narrativas que foram tecidas nos olhares, nos desafios,
nos encontros/desencontros, nas (trans)formações do processo da documentação
pedagógica.
Vozes, resgatadas do passado inscrito em memórias, guardadas em caixas que
se encaixaram perfeitamente nos encontros, nos registros, nas narrativas
compartilhadas. Assim como nas palavras de Gagnebin (2014, p. 262), a

narração aberta que permite não encerrar a imagem do passado numa única
‘constatação’, mas modificá-la. Assim, permite também a apreensão do
passado pelo presente. Com efeito, se o passado é findo, acontecido
(vergangen), e é, nesse sentido, imutável, ele continua, porém a ter sido
(gewesen), a passar, a perdurar no presente. Esse estatuto ‘enigmático’ do
passado presente dão ao passado uma outra interpretação e o transmitem
(uberliefern).

Os estudantes estagiários tiveram a palavra em tempos em que a palavra é


aniquilada, em um país que teima em olhar somente para a frente. Que deixa seus
76

mortos e seus cidadãos cada vez mais mudos e com menor poder de fala, de
expressão. A memória provocada desencadeia perguntas que levam à busca de
respostas. Nessa procura, os alunos se encontraram, se perderam, se
compreenderam enquanto sujeitos constituídos em um processo histórico social.
Nesse processo, dúvidas, medos, anseios, descobertas e narrativas possíveis foram
tecidos para esse tempo....

4.1 AS NARRATIVAS DOS ACADÊMICOS SOBRE OS DESAFIOS ENCONTRADOS


NO PROCESSO DE DOCUMENTAR

Ao longo do percurso de documentar, os estudantes encontraram desafios,


medos, angústias e incertezas visivelmente percebidos em olhares, suspiros, recuos
e questionamentos: “o que vamos encontrar?” “Para onde vamos olhar?” “Será que
daremos conta?” Entre os limites e possibilidades, por meio de suas narrativas,
expuseram sentimentos. A dificuldade em olhar permeou todo o processo:

No primeiro dia em que fomos observar, pensei: ‘Senhor, o que estou fazendo
aqui!!’ Fiquei muito angustiada. Após o terceiro dia de observação, o meu
olhar começou a mudar sobre esses pequenos. Sim, confesso foi tudo novo,
trabalhava apenas com crianças maiores. Cada dia foi um desafio, até uma
simples troca de fralda. (Trecho da carta de Vera)

O desafio de aprender a olhar é sempre bem-vindo, com ele o respeito se


enlaça e a busca por conhecimento se renova. Olhar para as crianças e a
diversidade de suas infâncias é um desafio.
O ato de olhar não é algo neutro, mas é construído e requer uma aprendizagem.
Ao longo do curso, por meio das Unidades de Aprendizagens relacionadas às
crianças, à infância e à Educação Infantil, os estudantes tiveram a oportunidade de
realizar reflexões teóricas sobre tais temáticas.
77

A entrada do estágio com crianças reais gerou nos estudantes momentos de


tensão e grandes desafios, e ao mesmo tempo uma “possibilidade para que eles
continuem sendo sujeitos críticos da história que o produz” (KRAMER, 2002, p. 46). A
possibilidade de olhar para as crianças verdadeiras possibilitou aos estudantes a
oportunidade de educar seu olhar.
No processo de documentação pedagógica, é primordial ver, ouvir, sentir e
perceber os bebês e as crianças bem pequenas, entretanto esses atos não são
espontâneos. “Precisam ser aprendidos. Nietzsche (2003) sabia disso e afirmou que
a tarefa da educação é ensinar a ver.” (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 59).
Para Novaes (1998), a diferença entre os vários modos de olhar o mundo se
produz pelo envolvimento e a forma de participação daquele que olha. Entra em cena,
então, o sujeito, o dono do olhar, pois nas muitas maneiras de olhar há sempre um
sujeito. Esse sujeito é situado no tempo e no espaço, e seu olhar é construído,
educado, tanto estética quanto politicamente, numa espécie de rede coletiva formada
pela história e pela cultura.
Que olhar é esse? Que sujeito é esse que olha? Novaes (1998) estabelece uma
grande diferença entre ver e olhar. Segundo o autor, aquele que vê é passivo,
desatento, disperso. Aquele que olha é ativo, tenso, alerta inquiridor, imaginativo. Para
aquele que vê, o mundo a ser visto é tomado como algo pronto, algo dado, autônomo.
A visão procura apenas registrá-lo para expô-lo. Para aquele que olha, o mundo é
entendido como mistério, fragmentado, inacabado indeciso. O olhar faz perguntas,
procura sentidos...
Esse modo de olhar foi proposto aos estudantes ao longo do processo de
documentar no estágio. Por isso, a ida a campo provoca em Vera um desafio. No
processo de documentar o olhar é fundamental representar uma experiência de
estranhamento, de alteridade. Encontro com o diferente, com a novidade.
Com indagações e compartilhamentos, os estagiários e estagiárias dividiram
as tensões e incertezas no processo de documentar, sensivelmente transformaram
alguns temores em curiosidade, busca e possibilidades, manifestadas nas cartas de
Elena e Bia:
78

O estágio foi um grande percurso do qual no começo foi tenso, um pouco


assustador até, mas, a cada etapa que íamos concluindo, o olhar ia mudando,
os vínculos tornavam-se mais fortes, mais humanos. Os nossos encontros
em sala sempre foram muito esclarecedores, ricos em conhecimentos e
partilhas, as aulas foram tão diferentes das que costumamos ter. [sic] (Trecho
da carta de Elena)

Desde o início fiquei um pouco receosa com essa questão do ‘estágio’.


Quando me matriculei na matéria fiquei tentando imaginar como seria, e foi
uma coisa única e diferente de tudo. A forma abordada nos encontros foi feita
de maneiras dinâmicas e sempre buscando a interação com todos. (Trecho
da carta de Bia)

O compartilhamento de olhares, o olhar em companhia foi fundamental para


que os alunos se sentissem acolhidos e seguros ao longo da experiência de
documentar. Desde o momento em que abriram as caixas da infância, do memorial
de bebê até a última palavra escrita nas cartas, no derradeiro dia de aula. Olhares
foram compartilhados e ajudaram a superar desafios. De acordo com Ostetto (2012b,
p. 128):

A formação do professor envolve muito mais que uma racionalidade teórico-


técnica, marcada por aprendizagens conceituais e procedimentos
metodológicos. Há no reino da prática pedagógica e da formação de
professores, muito mais que domínio teórico, competência técnica e
compromisso político. Lá estão histórias de vida, crenças, valores,
afetividade, enfim, a subjetividade [...] afirmamos a necessidade premente de
o professor, em seu processo de formação, olhar para si, buscando conhecer-
se; entregar-se ao processo de autoconhecimento.
79

Verdadeiros encontros, oportunidades de olhar e ser olhado. Nesse encontro


foi preciso lutar com as adversidades, ausência de tempo, limitações, excesso de
informações, desesperança. São enfrentamentos da docência. O estágio oferece os
primeiros passos, mostra os compassos, os ritmos, cabe a cada um escolher os seus.
Os alunos e alunas diariamente enfrentaram as eternas dificuldades confrontadas por
um docente em encontrar tempo, em escolher caminhos demarcados ou
simplesmente se aventurar nos desvios, nas incríveis possibilidades que a docência
pode oferecer cotidianamente.
Ostetto (2012b, p. 130) esclarece acerca do estágio:

O estágio é uma experiência demarcada com começo e fim previstos no


calendário acadêmico, no qual as estagiárias estão inseridas em contextos
educativos singulares [...] o exercício de olhar para si mesmo – de descobrir-
se para, então, ver e descobrir o outro – é uma rica possibilidade. Porém é
sempre bom lembrar que, embora essa possibilidade exista para todos, isso
não quer dizer que para todos as coisas se darão da mesma forma. Há de
haver o desejo, vislumbrando o tempo-espaço do estágio como um tempo-
espaço de aprendizagens sutis, que vão além de saber um conteúdo
específico, de conseguir o famigerado ‘domínio de turma’ ou de oferecer
novas atividades para os ‘alunos’.

Seguindo a proposta da disciplina, os alunos conheceram e mergulharam na


documentação pedagógica e se depararam com grandes desafios, encantamentos e
delicadas possibilidades, como retratadas na carta de Natália, que diz: “A
documentação foi difícil, nos exigiu dedicação, tempo, paciência, atenção, olhar
escuta sensível.”
Escuta. Segundo Rinaldi (2012), escuta é parte fundamental no processo de
documentar. Mas como escutar? Como olhar, escutar, sentir e registrar? O que
registrar? Como registrar? Registrar quem?
No cotidiano tudo acontece tão rapidamente. Registrar é um ato difícil e,
sobretudo, exige a necessidade de estar no contexto, estar junto:
80

Nesta unidade eu passei a perceber a importância de cada registro, e a falta


que faz um registro sem os detalhes vivenciados, parece que está ali faltando
um pedaço da nossa história com os pequenos, e no momento de reviver falta
aquela fala da criança que fez daquele momento especial. E acho que esta é
a importância de registrar, reviver nossos momentos, cada detalhe, cada fala,
cada interação. (Trecho da carta de Viviane)

Ouvir o que não é dito com palavras, mas com olhares, gestos, movimentos.
Foi preciso sensibilizar o olhar e a escuta para ir ao encontro das crianças no cotidiano
da Educação Infantil. “Deixar falar aquele que não tem voz e ouvir aquele que não fala
é um desafio instigante” (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 76). Percebe-se a importância
em ter o olhar voltado às crianças, tentando interpretar o que estão dizendo, “seus
olhares demonstram a intenção de se comunicar, sua curiosidade e seu desejo”
(RINALDI, 2002, p. 77).
Esse é um exercício importantíssimo nas observações e registros, porque os
bebês estão em constante movimento, sejam sozinhos, com a professora ou em
grupos. Dessa forma, na hora de observá-los, é necessário escolher algumas cenas,
descrevê-las e ir além da descrição, observando-os e interpretando suas diversas
linguagens. (RINALDI, 2002).
E a falta de tempo foi um dos desafios encontrados pelos alunos/estagiários.
Tempo que, dividido entre o trabalho, a família, as aulas, estudos, estágios e
principalmente o dedicado à documentação pedagógica, deixou marcas e fragmentos
de cansaço e superação, mostradas nos registros: “Eu consegui ultrapassar os
desafios, os que surgiram durante o processo, as coisas que deram errado, as ideias
que o tempo não permitiu que se realizassem.” (Trecho da carta de Jô)
Conforme vimos, todos os estudantes da pesquisa são trabalhadores e
enfrentam uma rotina diária, com carga horária desafiante, que contribui com a falta
de tempo. São alunos de uma tripla jornada e sua formação inicial é o terceiro tempo
dessa rotina adversária. Noite adentro, seguem o longo caminho de volta às suas
casas distantes. Entretanto, eles e elas precisam trabalhar o dia todo para poder pagar
seus estudos na universidade no período noturno. Todo esse empenho diário
dificultou a participação e atenção dos estudantes que, muitas vezes, pareciam
distantes e cansados, entretanto, a turma inteira permanecia insistentemente até o fim
da aula:
81

Ao decorrer da nossa disciplina, acredito que em relação à minha participação


nos encontros, confesso que em alguns momentos meu pensamento estava
em outro lugar, muitas vezes nos deixamos levar por problemas pessoais,
mas dei meu melhor! [sic] (Trecho da carta de Ane)

Tempo. Escolha. Autoria. Desafios que foram vividos e materializados no


processo da documentação pedagógica tecida nos encontros da disciplina de estágio
supervisionado. Natália descreve em um trecho de sua carta que “a dificuldade
principal foi escolher e passar para o papel todo o material coletado, tanto amor
materializado em registros e fotografias que ficou difícil descrever e selecionar.”
A documentação pedagógica é tecida com a marca dos narradores. O narrador
reconhece as preciosidades do cotidiano que, se não forem narradas, correm risco de
se perderem (PANDINI-SIMIANO, 2015). Um dos maiores desafios dessa busca foi
escolher, pois a escolha implica autoria acerca do que escolher. Timidamente, os
alunos colheram as riquezas que encontraram nos encontros. Olhares se
transformaram, dificuldades foram enfrentadas, os medos confrontados e renovados,
o novo foi permitido.
Ao longo dos encontros, no gesto de documentar, o processo torna-se mais
“íntimo” e menos distante, tal como na narrativa do estudante abaixo:

A documentação pedagógica, acredito que a professora compartilhou todos


os conhecimentos pretendidos, um assunto que parecia ser muito difícil, mas,
ao longo das aulas ficou claro, com a prática do estágio se fundamentou mais
ainda, como é importante para nós (futuras professoras), crianças, familiares,
comunidade escolar. Os desafios foram encontrados, mas superados com a
experiência, prática e conhecimentos das professoras que foram inspiração
82

tanto na minha vida pessoal como profissional, sou grata por ter conhecido
vocês, deixaram marcas na minha vida. (Trecho da carta de Bianca)

Larrosa (2018, p. 35) diz que o “ofício do professor é exercido, em um tempo


cíclico, quase camponês”. É um tempo em que tudo volta, retorna, recomeça. Semeia-
se, cuida-se, colhe-se, volta-se a semear, a cuidar, a colher. Em tempos em tempos,
após o inverno a primavera retorna e recomeça-se. (LARROSA, 2018).
Nesse sentido, o processo de documentação pedagógica tecido ao longo do
percurso do estágio curricular obrigatório não foi um tempo de preparação para uma
aprendizagem, uma técnica, ou uma preparação do que pode vir a ser. A
documentação não é um produto para se chegar “depois” a um lugar qualquer. Antes,
é um tempo que valoriza o processo em que o estudante de Pedagogia e o cotidiano
das instituições educativas se enlaçam, se alteram, se misturam. Numa narrativa que
é ao mesmo tempo inserção, ação, relação e presença.

4.2 IMAGENS DE CRIANÇA E INFÂNCIA DOS ACADÊMICOS A PARTIR DA


DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA PRODUZIDA NO ESTÁGIO

Voltar ao passado e procurar a criança oculta, a criança eterna, que ainda está
em formação e que precisa constantemente de cuidados (OSTETTO, 2012b). Esse
foi o caminho escolhido para iniciar o estágio com os estudantes.
Que criança e infância os estudantes/estagiários foram/tiveram? É primordial
saber sobre si, falar de si e ressignificar a própria imagem de criança. Buscar resgatar
narrativas do bebê que foram para poder contar os bebês que irão encontrar no
cotidiano educativo. É necessário resgatar a consciência de si, da sua própria
historicidade. Como diz Gramsci (1978, p. 12):

O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente,


isto é, um ‘conhece-te a ti mesmo’ como produto do processo histórico até
hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem
benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário.

Essa não foi inicialmente uma tarefa fácil para os estudantes. Encontramos
resistência para essa proposta. Era comum ouvir os alunos dizendo: “Como poderia
contar algo que não lembro?” Convidamos os estudantes a buscar encontrar
fragmentos de sua história. Materialidades e narradores que pudessem ajudá-los a
83

resgatar a história dos bebês que foram. No “memorial de bebê” exposto nas aulas,
Carla apresenta sua criança:

No ano de 1999 nascia... Carla, muitos presentes recebe com a sua chegada,
e um deles permanece até hoje... um urso de pelúcia, um personagem de
desenho, o ursinho Pooh, nomeado Tigrão, que ganhou de uma de suas tias
(eu trouxe ele, mas não coube na caixa)... Esses são apenas alguns dos
vários momentos... que são guardados em sua memória, deixando muita
saudade. Eu trouxe bastante fotos, tem o vestido do batizado que está bem
amarelo e a mãe também tinha o cordão umbilical, mas eu não trouxe. A
minha irmã era bem carequinha, custou a nascer cabelo, então minha mãe
conta que quando nasceu um fiozinho dela, ela colocou no pé de mamão,
para ver se ele crescia, e ela é bem cabeluda agora. [sic] (Narrativa de Carla)

Ao resgatar sua criança interior, os alunos/estagiários ressignificaram a própria


imagem que tinham da sua infância e se encontraram em condições de receber, “abrir-
se e realizar o exercício da alteridade, as crianças são outros que o professor precisa
reconhecer como tais” (OSTETTO, 2012b, p. 130).
Ao longo das narrativas encontramos não apenas um bebê frágil, mas um bebê
potente, que sofre, que sorri... As narrativas e as rememorações dos estudantes
possibilitaram tramas que se entrelaçaram nos fios das histórias que narramos uns
aos outros, que lembramos e também esquecemos. (GAGNEBIN, 2013).
Os encontros favoreceram verdadeiras narrativas,

as crianças falaram’, vieram à superfície e possibilitaram reflexões e imersões


às diferentes infâncias. Deixaram-se, sem medo, se perder nos labirintos. Nos
lugares privilegiados da infância, dos quais o adulto se lembra, não são,
portanto, os lugares de uma felicidade inocente e imaculada; pelo contrário,
preenchem a criança de uma certa apreensão, pois são plenos dos mortos
do passado. (GAGNEBIN, 2013, p. 88).

Assim, Flor, em sua carta, narra o resgate de memórias, abre-se para novos
encontros e possibilidades:
84

Ao relatar um pouco dessa experiência, que para mim foi muito significativa,
nossos encontros foram todos de muito aprendizado, onde podemos contar
nossas histórias e também, mesmo que, por pouco tempo, fazer parte da
história de algumas crianças. Nós aprendemos uma prática pedagógica muito
valiosa, que eu como futura pedagoga quero levar para toda a minha carreira.
(Trecho da carta de Flor)

As experiências com o memorial oportunizaram compartilhar encontros


esquecidos, que nas palavras de Nati se evidenciam:

Tivemos a oportunidade de nos sensibilizar ainda mais, conhecer nossos


colegas de sala de maneira individual, sua história e seu íntimo. Também
fomos desafiados a olhar para nós mesmos, nos reconhecer e resgatar
nossas lembranças de pura essência, nossa infância. (Trecho da carta de
Nati)

O resgate de memórias, a sensibilização por conta da infância rememorada,


favoreceu possíveis mudanças e olhares atentos, que foram importantes para os
primeiros encontros com as crianças na creche.
Os alunos/estagiários se depararam com as “desconhecidas” crianças. Esse
encontro é permeado por um estranhamento, que ao mesmo tempo causa fascínio e
a vontade de arriscar-se, de sair dos ninhos e ir ao encontro do novo e do inesperado.
“Um convite a ver os bebês, situação de infans não como falta, mas como força,
potência, capacidade.” (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 79).
É fundamental escutar os bebês, percebê-los e deixá-los falar para possibilitar
diálogos. É necessário compreendê-los como “ser competente em sua inteireza,
capaz de sofisticadas formas de comunicação, mesmo quando bebê, estabelecendo
trocas sociais com coetâneos e adultos através de uma rede complexa de vínculos
afetivos” (FARIA; ROSEMBERG; CAMPOS, 1994, p. 213).
Que imagens de crianças encontraram? Em busca de conhecer um pouco mais
a respeito da imagem de criança dos acadêmicos, buscamos olhar para as
documentações pedagógicas construídas por eles:
85

Figura 23 – Documentação – Revista Pedagógica 1

Fonte: Centro de Documentação Pedagógica/UNISUL 26, 2019.

Olhar verdadeiramente para as crianças/bebês no estágio ajudou os


alunos/estagiários a construir uma imagem de infância. Perceberam crianças/bebês
inventivas, potentes e se preocuparam em oferecer espaços vigorosos para que
exerçam sua autonomia e criatividade.
As crianças são protagonistas ativas e competentes e que dialogam na
interação com outros, e o papel do professor centraliza-se na provocação de
oportunidades e de descobertas (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2016). Nas cartas
os alunos/estagiários evidenciaram olhares atentos:

Ao voltar o olhar exclusivamente para as crianças, suas brincadeiras e


interações, nos deparamos com momentos muito ricos, onde a imaginação e
o faz de conta aparecem a todo momento. (Bia e Viviane)

Em nossas primeiras observações, registramos que os bebês muito


pequenos ficavam o tempo todo no bebê conforto e isso nos incomodava.
Percebemos que até mesmo os mais pequenos sentem a necessidade de
interação. [sic] (João, Luci e Natália)

26 As documentações dos acadêmicos possibilitou construir a Revista de experiências pedagógicas


na Educação Infantil, que foi produzida ao longo do percurso da disciplina de estágio. Os alunos
tinham como desafio criar uma Documentação Pedagógica com as crianças dos campos de estágio
para compor a revista a ser publicada no Centro de Documentação Pedagógica da UNISUL, para
que pudesse ser compartilhada e revisitada.
86

As narrativas e a documentação pedagógica possibilitaram construir e


reconstruir histórias, os olhares se ampliaram e as crianças foram verdadeiramente
vistas, escutadas. Pois o ato de documentar é um processo que ajuda a escutar e
entender as crianças, possibilitando construir experiências (EDWARDS; GANDINI;
FORMAN, 2016).
Ampliar olhares e “(re) conhecer a criança a partir do que ela carrega de novo,
de enigmático, convoca-nos a levantar perguntas, enfrentar interrogações e constatar
a instabilidade do encontro com esses sujeitos. Estrangeiros com infinitas
possibilidades de ser e estar no mundo” (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 71-72).
Na documentação pedagógica é visível o protagonismo das crianças e o quanto
elas foram vistas, como mostram as figuras abaixo:

Figura 24 – Documentação – Revista Pedagógica 1

Fonte: Centro de Documentação Pedagógica/UNISUL, 2019.

As imagens de infâncias apresentadas, talvez, estejam predestinadas, a


antecipar experiências (BENJAMIN, 2017). Dependendo das imagens que
construímos, organizamos práticas e espaços que favorecem as experiências, assim,
as imagens são determinantes nas relações que temos com as crianças.
87

Figura 25 – Documentação – Revista Pedagógica 3

Fonte: Centro de Documentação Pedagógica/UNISUL, 2019.

Os contextos (re)visitados e (re)conhecidos pelos alunos/estagiários


apresentaram diferentes imagens, espaços, crianças, professoras que, aliados às
aulas teóricas, fortaleceram reflexões sobre a complexidade e a simplicidade que
paralelamente alimentam a docência. Como relata Isa em sua carta:
88

Como futura docente, creio que é imprescindível o como olhamos para as


relações, que estas não fiquem despercebidas na correria da rotina. Devemos
sempre exercitar o ato de registrar as crianças e a nós mesmos, como está
sendo nossa prática, será que esta pode melhorar, e é através dessa
interpretação ao nosso registro que vamos alimentando o encantamento pela
educação infantil.

Benjamin, em “Rua de mão única, infância berlinense: 1900”, refere a


importância em deixar marcas e afirma: “Não deixe que nenhum pensamento passe
por você incógnito, e use o seu bloco de notas com o mesmo rigor com que os serviços
oficiais fazem o registro dos estrangeiros” (2017, p. 28).
Seguindo esses preceitos, a partir das observações, dos registros, das
interpretações e compartilhamentos, as crianças foram vistas, percebidas,
narradas.

Nossas crianças... pontos de partida. O melhor! Sem a documentação não


conseguiríamos mostrar as situações significativas, além do nosso olhar,
compartilhando isso. A experiência foi única diferente [...] a cada descoberta,
sorriso, alegria e emoção que encontramos em cada criança, no seu jeito
singular, foi e teve um significado gigante para nós. A troca de experiências.
Obrigada por tudo! (Trecho da carta de Bia)

O encontro entre os alunos/estagiários e as instituições educativas levaram à


construção de narrativas que contam sobre as crianças, o espaço, o brincar, as
materialidades, o contato com natureza e a arte.
89

As narrativas apresentam transformações e ações compartilhadas nas


documentações pedagógicas. No resgate de suas infâncias e no conhecimento de
outras, os alunos/estagiários deram sentido às crianças e suas respectivas infâncias.
Encontraram-se com o passado e trouxeram luz a novos encontros, com
sensibilidade, viram as crianças e as reconheceram como sujeitos de direitos, ativos
e potentes em suas diferenças e particularidades.

4.3 (TRANS)FORM(AÇÕES): AS RELAÇÕES ENTRE A DOCUMENTAÇÃO


PEDAGÓGICA E O PROCESSO DA FORMAÇÃO INICIAL

Olhares se ampliaram, se sensibilizaram, se encantaram. Assim como revelou


Ana em sua carta: “Esta documentação me fez olhar com mais atenção, dar valor às
pequenas coisas que fazem uma diferença, viu?” O processo de documentação
pedagógica possibilitou aprender a olhar, sentir as palavras não ditas, perceber a
alteridade da infância, pois, certamente, “a documentação pedagógica configura-se
como um processo cooperativo que ajuda os professores a escutar as crianças com
quem trabalham” (EDWARDS; GANDINI; FORMAN, 2002, p. 84).
Os alunos/estagiários verdadeiramente viram as crianças, fizeram tentativas de
entendê-las e ouvi-las assim como registra Luci, em sua carta:

O processo de aprender a olhar para as crianças bem pequenas, onde sem


a comunicação, apenas por olhares, gestos e ações foi um grande desafio
que aos poucos, atentos ao que nos mostravam, demonstrando suas
vontades, gostos e preferências, pude interpretá-los. (Trecho da carta de
Luci)

Para Rinaldi (2012), a escuta na perspectiva da documentação pedagógica é


caminho para encontrar o outro,

Aquilo que é realizado não com os ouvidos, mas por meio de todos os
sentidos; em um tempo que não é linear mas cheio de silêncios e pausas;
90

uma escuta aberta às diferenças; que reconheça o valor de outros pontos de


vista; que não produza respostas, mas que formule questões, convoque
interpretações; que não é fácil de ser realizada, mas a premissa para
qualquer relação de aprendizagem (p. 52).

Também, os alunos/estagiários verdadeiramente foram vistos, encontrados por


suas professoras e colegas de sala. Nesse contexto, os encontros possibilitaram
novos encontros, entrelaçados nas experiências resgatadas e expostas por todos os
iguais, respeitados em suas singularidades. As palavras de Luci, registradas em sua
carta, reforçam a afirmação:

Apesar de ser uma pessoa contida, tímida, acredito que apesar de poucas
palavras, os olhares, a troca se fez presente em todos os encontros. A
dinâmica dos encontros com diálogos, troca de experiências, diferentes
vivências acrescentaram positivamente o processo do estágio. (Trecho da
carta de Luci)

Os saberes adquiridos na sua própria história de vida pessoal e escolar, suas


crenças, valores, enfim, uma bagagem captada com conhecimentos anteriores,
representações e com certezas sobre a prática docente, provavelmente, influenciarão
na ação prática, no próprio discurso e na formação de profissionais competentes
(TARDIF, 2014).
No caminhar dos encontros da disciplina de estágio, os alunos/estagiários se
depararam com profusas palavras, ora ditas, ora ouvidas, pensadas, criticadas,
repetidas, enfim, linguagens e olhares, traduzidos em narrativas que deram forma às
documentações pedagógicas.
Larrosa (2002) lembra que as palavras são mais do que simplesmente
palavras, elas revelam, escondem, silenciam e constroem histórias que podem ser
enunciadas e sentidas. Palavras foram narradas e evidenciaram mudanças que
provocaram uma eclosão de sentimentos frente ao processo. Como descreve um
trecho da carta de Viviane:
91

“A experiência deste primeiro estágio da formação foi um turbilhão de emoções,


mesclou-se o medo, o encantamento, a ansiedade, a criatividade, o afeto.” [sic]
Sentimentos que permitiram voz e autoria. A documentação pedagógica
possibilitou a transformação no decorrer do processo de formação. Assim, a formação
é a criação de si, associada ao contexto no qual o sujeito está inserido, de forma
autônoma, criativa e independente em uma multiplicidade de experiências.
(HERMANN, 2018).
Como Dani evidencia em sua carta, “experiências marcantes. Marcas que
lembrarei e refletirei durante e após o curso. Foram muitos os aprendizados que irão
evoluir com o tempo”.
A formação é uma viagem aberta que vai ao encontro dos saberes e em
paralelo, a documentação é uma materialidade que narra essas experiências.
Experiências de vida, compartilhadas. Compartilhamentos que expuseram
sentimentos presentes, muitas vezes resguardados nas bordas das caixas, prontos
para serem vistos e escutados. Os pequenos gestos de empatia, paciência e respeito
trouxeram a gratidão, admiração e o desabrochar de olhares sensíveis à docência.
Adriana, em um trecho de sua carta, expressa naturalmente seu contentamento:

Depois de tanto carinho de vocês duas, não tem como não lembrar desse
estágio tão especial e com certeza das experiências. Com toda a certeza,
isso tudo me fez crescer tanto como ser humano e na minha formação.
Agradeço por tudo feito, pelas experiências compartilhadas, por enaltecer
nossos trabalhos e pelas orientações tão especiais e ter um olhar sensível a
cada um de nós. (Trecho da carta de Adriana)

Os alunos/estagiários apresentaram histórias, deram e tiveram visibilidade. Nas


diferentes situações e desafios apresentados, uniram-se e se ajudaram, teceram
laços e fortaleceram relações, em busca do entendimento e elaboração no
processo de documentação pedagógica, tecidos aos enfrentamentos da formação
inicial. Fato que possibilitou pensar uma docência compartilhada na Educação
Infantil.
92

Nos momentos da formação e docências, diariamente, construímos pontes que


uniram as partes legalmente diferentes, mas que almejavam os mesmos objetivos.
Assim, os alunos demonstraram sentimentos de pertença, de que são importantes e
bem-vindos. Clau apresenta, no fim da carta, suas impressões sobre o processo
vivido, onde “as dinâmicas trazidas foram super importantes pois nos ajudaram a nos
soltar e nos sentimos a vontade, nos familiarizando com esse algo novo, mas que foi
ganhando nossos corações. É gratificante vermos que também fomos importantes e
que vamos deixar lembranças” [sic].
O estágio é um tempo que possibilita aprender, formar e transformar os
sujeitos. Como formar ou transformar o aluno/estagiário, futuro professor narrador?
Viviane demonstra, em sua carta, o quanto esse processo marcou sua trajetória:

A preocupação com o desempenho no percurso da unidade de aprendizagem


foi tanta que não estive ausente uma aula sequer. E todo esse esforço valeu
apena, e como valeu! Aprendi na prática tudo que havia estudado em teoria,
e sabemos que na teoria é tudo sempre mais fácil, né? Mas tudo bem, no fim
deu tudo certo e cada etapa serviu de aprendizado, desde a caixa de
lembranças, até a socialização do estágio. [sic] (Trecho da carta de Viviane)

O novo ganha sentido nas reflexões e compartilhamentos durante a formação


inicial, amparado na teoria e prática do processo de documentação pedagógica. A
documentação é interpretada e utilizada como meio para recordar, refletir (RINALDI,
2012). João confirmou, na sua narrativa, as inúmeras possibilidades de reflexão e
avaliação que a documentação pedagógica proporcionou ao longo do estágio de
docência. Certamente, uma narrativa compartilhada pelos relatos dos narradores.
93

A documentação me levou a olhar novamente para todos os acontecimentos.


Pensar e avaliar tudo nesse percurso. Muitos desafios foram encontrados, já
que esta foi a minha primeira documentação. Acredito que minha participação
nos encontros foi sempre tentando adicionar algo construtivo ao que estava
sendo abordado. E também é claro, muita coisa acontecendo no campo de
estágio, o que me deixava sempre com vontade de compartilhar algo. (Trecho
da carta de João)

A aluna Luci escreveu que “documentar é viver e reviver o acontecido, olhar,


registrar e interpretar o que as crianças bem pequenas nos mostram. É aprender e
reaprender, é criar narrativas, histórias, experiências para e com as crianças”. Para
Rinaldi (2002), a documentação é um processo dialético, amparado em laços afetivos,
e também poético; dá origem ao processo de construção de conhecimento.
A documentação é uma forma de narrativa. “O narrar está contaminado pela
experiência do narrador. A experiência compartilhada toca, pois antes tocou aquele
que partilha. A narrativa é parte do narrador”. (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 109). A
possibilidade de documentar permite que os alunos se reconheçam como
autores e produtores de outras histórias nos contextos educativos.
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem
ser contadas? (BENJAMIN, 1987c, p. 114). A documentação pedagógica tecida nos
encontros possibilitou novos aprendizes e contadores de histórias convictos de que é
possível fazer diferença. Elena, na sua carta, reforça essa afirmativa:

A importância de documentar, de registrar, de olhar, de perceber a criança


que vínhamos discutindo desde o primeiro semestre, foi colocada em prática,
pude ver, perceber, sentir que a diferença é possível de fazer sim, e estes
ensinamentos e conhecimentos caminharão comigo por toda minha
formação. (Trecho da carta de Elena)
94

Os alunos/estagiários narraram, se aventuraram e se fundiram na alquimia que


não engana, não disfarça, não dissimula. Mas que se entrega, se dissolve, se
transforma e se (re)apresenta na documentação pedagógica. Narrativas foram
registradas. Essas dão liberdade ao leitor, pois este é livre para interpretar as
narrativas como e quando quiser, visto que elas conservam suas forças, são
atemporais e podem atingir a qualquer tempo. São tecidas na calmaria,
artesanalmente, como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 1987a)
Documentar, nessa perspectiva, é um processo cooperativo que possibilita a
construção de experiências significativas com e para as crianças. (EDWARDS;
GANDINI; FORMAN, 2002). É possível deixar rastros, marcas que sutilmente, ou não,
farão diferença nos contextos observados e alterados pela prática do estágio de
docência e pelo processo de documentação pedagógica. Dani, em sua carta, reflete
que “as experiências marcantes, marcas que lembrarei e refletirei durante e após o
curso, foram muitos os aprendizados que irão evoluir com o tempo”.
A cada página, histórias foram narradas, recontadas e manifestadas. Os
narradores tiveram a difícil tarefa de escolher o que contar, diante de tamanha riqueza.
A enigmática necessidade de decidir quais imagens escolher, diante de tantas
registradas na euforia do momento, faz perceber as que representam e dão sentido
às falas e silêncios das crianças, seguidamente. É importante guardá-las para que
possam ser redescobertas e compartilhadas.
Benjamin (1987e, p. 94), sensivelmente, diz que:

[...] é necessário encontrar a pequena centelha do acaso, do aqui e agora,


com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar
imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje, em minutos únicos, há
muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando
para trás.

O processo de documentação pedagógica, oportunizou, transformações


que modificaram fragmentos do cotidiano das crianças. Flores, toalhas, vasos,
guardanapos de papel, folhas, tocos, caixas, tintas, madeiras, diferentes
materialidades que expressaram simplicidade, deram diferentes sentidos aos
espaços. Com sensibilidade poética, Pandini-Simiano expressa,

Até onde vai o quintal de nossa infância? A sombra da árvore é imensa o


suficiente para abrigar toda a família. O arco-íris nas asas da borboleta viaja
pela floresta de folhas. Infinitos castelos são erguidos e derrubados no
95

rearranjar constante e diligente das pedrinhas do pátio. A experiência com


espaço o redimensiona, o amplia, filtra e constitui o lugar. (PANDINI-
SIMIANO, 2010, p. 38)

E o tempo. O relógio do tempo foi tenuamente modificado, e seus ponteiros


marcaram novos instantes, permitidos pelo planejamento da docência, pressuposto
pela documentação pedagógica, que tornou o tempo e o ambiente flexíveis. Esses
devem passar por uma modificação frequente pelas crianças e pelos professores a
fim de permanecer atualizado e sensível às suas necessidades de serem
protagonistas na construção de seu conhecimento (EDWARDS; GANDINI; FORMAN,
2016).
O espaço da Educação Infantil é resultado da relação entre os sujeitos (adultos
e crianças) que o animam e transformam e da materialidade dos objetos que o
compõem (PANDINI-SIMIANO, 2010, p. 43). O processo da documentação
pedagógica, o primeiro estágio, e as relações estabelecidas nos encontros ampliaram
e ressignificaram olhares.
Diante de tantas surpresas e encantos, o ato de registrar torna-se penoso e
simultaneamente extraordinário. Implica fazer escolhas, tecer novos enredos,
composições, descrever e compartilhar narrativas, pois “a vida cotidiana precisa ser
traduzida em palavras” (PANDINI-SIMIANO, 2015, p. 108). Dessa forma, a
documentação pedagógica se faz presente.

Figura 26 – Documentação – Revista Pedagógica 2


96

Fonte: Centro de Documentação Pedagógica/UNISUL, 2019.

Autoria demanda escolhas. O que escrever? Que linguagem usar? Segundo


Pandini-Simiano (2018, p. 206), “escolher implica oferecer uma interpretação [...] na
trama documentativa não se limita apenas a juntar fios, mas afirmar uma condição de
autoria”.
Imagens e narrativas revelam as escolhas e os caminhos preferidos, que
exigiram e demandaram sensibilidade para serem encontrados. Adriana narra, em um
trecho de sua carta, que “não imaginava o tão sensível seria essa caminhada. O
quanto o simples pode impactar. O quanto o brilho nos olhos é tão importante para as
crianças” [sic].

Figura 27 – Documentação – Revista Pedagógica 7


97

Fonte: Centro de Documentação Pedagógica/UNISUL, 2019.

A documentação pedagógica possibilita uma experiência formativa não a


partir da reprodução de técnicas, modelos e formas, mas, sim, um autor
produtor de sua própria história com as crianças. Conforme Pandini-Simiano
(2015, p. 106), “a matéria-prima do narrador é a experiência. Seu saber é oriundo da
oralidade, da vida”.
Os alunos/estagiários evidenciaram em seus registros e depoimentos o quanto
a disciplina e a prática da docência foram importantes para a sua formação profissional
e pessoal. Assim como relatam Viviane e Bia: “Estágio é de grande importância para
a nossa formação como pedagogas, pois é como se fosse uma prévia, uma pequena
parte do que será nossa vida como docente.”
A proposta da disciplina tecida com a documentação pedagógica, foi
marcada pela aproximação e diálogo, uma jornada de expansão do “ser
professor”, pressupondo caminhos de autoconhecimento; caminhos na direção da
integração de polos que culturalmente, se desconectaram: cognição e afeto,
razão e emoção, pensamento e intuição (OSTETTO, 2012b, p. 127).
Certamente os antagonismos se dissiparam e os alunos/estagiários foram
reconhecidos em sua completude. A aluna Elena demonstra, em sua carta,
sentimentos que expressam o quanto foi importante a presença constante das
professoras orientadoras e da atenção dirigida a ela durante todo o processo:
98

Enfim, gostaria de agradecer à professora Luciane pela rica oportunidade de


nos apresentar e caminhar conosco neste primeiro estágio, compartilhando
seus ensinamentos, e agradecer a Elaine que sempre foi prestativa e
cuidadosa conosco. Obrigada, sentirei saudades! (Trecho da carta de Elena)

Nos encontros que possibilitaram a documentação pedagógica tecida na


disciplina de Estágio Supervisionado em Educação Infantil com bebês, os
alunos/estagiários afirmaram a autoria, manifestaram encantamentos e certezas,
refletidos nas palavras de Jô: “Esta experiência foi linda, difícil, desafiadora, mas me
mostrou que sigo o caminho que devo estar.” [sic]
Os alunos/estagiários, ao longo de seis meses, enfrentaram seus medos,
angústias, incertezas e falta de tempo; voltaram ao passado e se encontraram; viram
e ouviram as crianças e as reconheceram na sua alteridade como potentes, ativas e
protagonistas; registraram, narraram e compartilharam, arduamente, seguindo os
preceitos da teoria, materializada na prática; trabalharam exaustivamente e se
encantaram pela documentação pedagógica.
Nesse momento, os alunos/estagiários podem ser intitulados autores que
narram e compartilham sua própria obra, a partir da documentação pedagógica.
Afirmaram-se como autores, responsáveis pelo próprio processo de formação. Ao
escrever, permitiram a compreensão do que se passa. No estágio, arriscar-se e ousar
escrever resulta em experiência (OSTETTO, 2012b).
Segue-se em frente, amparados pela incalculável experiência da
documentação pedagógica no enredo do estágio de docência que particularmente
atendeu alunos/estagiários privilegiados com a constante presença das professoras
orientadoras.
Aproxima-se o momento de deixar o passado descansar. Pois uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se nas asas do anjo que carrega as memórias; nesse
instante, ele é impelido irresistivelmente a seguir para o futuro (BENJAMIN, 1987b).
Entretanto, no presente as marcas continuam lá, e a qualquer momento podem ser
resgatadas nas histórias que as caixas abrigam.
Certamente, é hora de interromper. De acordo com Benjamin (2017, p. 28), “um
dos mandamentos da honra literária é o de interromper a escrita apenas quando há
99

que respeitar uma hora marcada (uma refeição, um encontro) ou quando damos o
trabalho por terminado”. Não há término quando falamos de narrativas e
documentação pedagógica, há novos olhares e novas interpretações... As caixas
seguem abertas...
100

5 O SILÊNCIO SE FINDA NAS DERRADEIRAS REFLEXÕES... AS CAIXAS


PERMANECEM ABERTAS...

Figura 28 – Fim das palavras


O silêncio
foi a primeira coisa que existiu
um silêncio que ninguém ouviu
astro pelo céu em movimento
e o som do gelo derretendo
o barulho do cabelo em crescimento
e a música do vento
e a matéria em decomposição
a barriga digerindo o pão
explosão de semente sob o chão
diamante nascendo do carvão
Fonte: Acervo da pesquisadora, 2020.
Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown. 1996

É possível ouvir o som da caneta escrevendo no papel que tranquilamente já


esteve disponível? Um silêncio que traduz o instante único da escrita que reverbera.
Ruído, um movimento, marcas. Vestígios de um tempo que não volta sozinho, retorna
com a reminiscência traduzida em narrativas capazes de ecoar o passado no possível
som das palavras.
Cessa o silêncio deixado pelo término do trabalho e soam as vozes das cartas,
registros, fotografias e marcas colhidas ao longo da pesquisa.
No início desta jornada, fui no fundo da caixa e resgatei algumas memórias da
minha formação inicial. Buscar essas memórias foi doloroso, mas ao mesmo tempo
valioso, pois proporcionou liberdade ao presente que teimava em causar desconforto
ao lembrar da formação inicial, com o estágio efetivado em condições adversas.
Memórias que trouxeram questionamentos sobre a formação inicial. Que
experiências de formação sustentam as práticas? Qual olhar se dirige às infâncias e
crianças? É possível narrar essas experiências? Interrogações que direcionaram a
pesquisa para o entrelaçamento da documentação pedagógica, que é uma narrativa
tecida nos encontros entre crianças e adultos no contexto educativo, e a formação
inicial de professores que possibilita os primeiros encontros com tais questões. A
pesquisa abriga experiências pessoais documentadas e é tradutora de um itinerário
formativo que, na relação com os sujeitos que a compuseram, faz ressoar suas vozes.
101

Após essas rememorações, não se houve mais ruídos e sim estrondos que
vibram e apresentam novamente a principal pergunta deste percurso: quais as
narrativas dos acadêmicos sobre o processo de documentação pedagógica no estágio
orientado supervisionado em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia da UNISUL?
Os alunos/estagiários, no decorrer da pesquisa, revelaram segredos,
entregaram-se ao novo e no percurso deixaram ser encontrados e encontraram o
outro.
A pesquisa possibilitou acompanhar os estudantes/estagiários durante
todo o percurso da disciplina, assim, as marcas de um primeiro encontro foram se
intensificando. Como abrir as janelas e quebrar o incômodo silêncio? Cada dia era um
primeiro encontro que foi se fortalecendo com a ajuda do tempo, das narrativas e das
experiências vividas e compartilhadas.
Compartilhamentos que expuseram sentimentos presentes, muitas vezes
resguardados nas bordas das caixas, prontos para serem vistos e escutados. Os
pequenos gestos de empatia, paciência e respeito trouxeram a gratidão, admiração e
o desabrochar de olhares sensíveis à docência refletidos pela docência dirigida a eles.
Como exigir um olhar sensível de um professor, quando ele nunca sentiu esse olhar
em sua formação? Certamente, olhares afetivos se revelam na reciprocidade,
comprovada nas narrativas e na companhia dos sujeitos da pesquisa.
O movimento constante nos tira a imobilidade, desafia, não existem certezas.
Diante de tantas incertezas surgem as dificuldades e os medos. O que encontrar?
Para onde olhar? Como vencer a falta de tempo e encontrar tempo para
documentar? Olhar para as crianças e a diversidade de suas infâncias é um desafio.
Os alunos/estagiários tiveram a oportunidade de educar o olhar e de diferenciar o ato
de ver e simplesmente olhar. Aquele que vê é passivo. E que aquele que olha é ativo,
tenso, inquiridor e imaginativo. O ato de olhar foi proposto aos estudantes ao longo do
processo de documentar no estágio.
Diariamente enfrentaram as eternas dificuldades confrontadas na docência em
encontrar tempo, em escolher caminhos demarcados ou simplesmente se aventurar
nos desvios. Nas análises das documentações, foi possível encontrar palavras que
evidenciaram os temores sentidos pelos alunos estagiários ao se depararem com a
docência e com a responsabilidade de documentar. Palavras como: preocupação,
desafio, tensão, ansiedade, imprevisto e medo permearam todo o processo de
construção da documentação pedagógica. Dificuldades que foram confidenciadas nas
102

cartas e nas narrativas tecidas ao longo da pesquisa. Os alunos perceberam que não
é fácil e, muitas vezes, não é prazeroso o ato de documentar, pois as adversidades e
rotina diária tornam o processo penoso e cansativo.
Os maiores medos encarados foram: não conseguir tecer a documentação
pedagógica e assumir a docência com os bebês. Como ouvir o que não é dito com
palavras? Como olhar, escutar, sentir e registrar? Questionamentos que encontraram
respostas nas narrativas e nos encontros possibilitados pela docência e pela
documentação pedagógica.
Assim, diante de tantas dificuldades e infortúnios, como a falta de tempo, o
excesso de trabalho e o cansaço, esses não foram suficientes para apagar a
superação enfrentada pelos alunos/estagiários, triunfo evidenciado nas narrativas que
revelaram a autoria, assumida nas escolhas colhidas nos encontros e apresentados
na documentação pedagógica.
Os alunos/estagiários também flertaram com o passado e resgataram
memórias e narrativas de um tempo que não finda, mas se ressignifica. Que criança
e infância os alunos/estagiários tiveram/foram? Os encontros com o passado
possibilitaram novos encontros e novas narrativas com os bebês que encontraram no
estágio. Que imagem de criança e infância os alunos tiveram a partir da
documentação pedagógica? Com resistência e medo todos se expuseram e
narraram histórias pessoais, sentimentos que afloram olhares focados para si, para
os outros alunos e professoras e para as crianças e bebês.
Os alunos/estagiários descobriram, no decorrer do processo de documentação
pedagógica, crianças/bebês protagonistas, inventivas, potentes, que dialogam nos
encontros com outros no contexto educativo. Nas cartas, apresentaram olhares
atentos quando se voltaram exclusivamente para os bebês e crianças e,
simultaneamente, preocuparam-se em oferecer espaços vigorosos para que exerçam
sua autonomia e criatividade.
Com as narrativas que entrelaçaram os fios da experiência, os olhares se
ampliaram e possibilitaram encontrar sua imagem de criança, apresentada na
documentação pedagógica, tecida no percurso da pesquisa. É visível o protagonismo
das crianças e o quanto elas foram vistas como autoras da sua própria história.
Evidenciaram, em suas cartas, os contextos que foram (re)visitados e
(re)conhecidos pelos alunos/estagiários, mostraram diferentes imagens, espaços,
crianças e professoras que, aliados às aulas teóricas, possibilitaram reflexões sobre
103

a complexidade e a simplicidade que paralelamente alimentam a docência. E, a partir


das observações, dos registros, das interpretações e compartilhamentos, as crianças
foram vistas, percebidas, narradas.
O que teriam os estudantes a dizer à Educação? O que teriam a dizer sobre a
Educação Infantil, a documentação pedagógica, a formação de professores, sobre nós
e sobre eles mesmos?
Nesse enredo, é fascinante ser o entregador de cartas, aquele que às vezes lê
as correspondências e se apropria das narrativas, das conversas e materialidades
antes de entregá-las aos destinatários, antes de se aninharem nas caixas.
Ao ler as cartas e registros dos alunos/estagiários “remetentes”, foi oportuno
perceber que no processo do estágio e da documentação pedagógica eles se
sensibilizaram, se encantaram e encantaram, tornaram-se narradores que, com olhar
sensível e escuta de contexto, foram autores e produtores da sua própria história com
os bebês.
Que relações são passíveis de estabelecer sobre o processo de
documentação pedagógica no percurso de formação inicial a partir das
narrativas dos alunos/estagiários? Inerentes mudanças foram percebidas ao longo
do percurso. Com suas narrativas expressaram as transformações que desfrutaram.
Tiveram e deram visibilidade quando apresentaram suas histórias luminosas e cheias
de autoria. Tornaram-se autores reflexivos que, na procura pelos saberes, valorizaram
cada experiência, possivelmente vivida na prática docente e no processo da
documentação pedagógica.
O processo de documentação pedagógica possibilitou uma experiência
formativa não a partir da reprodução de técnicas, modelos e formas, mas, sim, de um
autor produtor de sua própria história com as crianças.
Os alunos/estagiários evidenciaram, em suas narrativas, o quanto a disciplina
e a prática da docência foram importantes para a sua formação profissional e pessoal,
apresentando uma pequena prévia do que é a profissão.
Com a documentação pedagógica os alunos/estagiários afirmaram a autoria,
apresentaram certezas e disposição para confrontar os desafios, dessa forma, eles
seguem seus caminhos, possivelmente fortalecidos e com o esperado brilho no olhar.
Como preparar o professor para que ele eduque a criança pequena de forma
humanizada? Como formar ou transformar o aluno/estagiário, futuro professor
narrador? O que pode tocar ou afetar um futuro professor?
104

O estágio é um tempo que possibilita aprender, formar e transformar os


sujeitos, nesse contexto, o sujeito aluno/estagiário pode ser encontrado e se
encontrar. Essa jornada marcada por encontros certamente aproximou os
alunos/estagiários do “ser professor” e, privilegiadamente, iniciaram seus
percursos na formação, amparados por seus professores e pelo esforço em aprender
a registrar, narrar, compor a documentação pedagógica e compartilhá-la.
A autoria se fez presente nas narrativas e compartilhamentos apresentados
pelos alunos/estagiários na documentação pedagógica, eles foram autores e juízes
do próprio processo de formação. Evidenciaram maturidade, responsabilidade e
desejo de seguir em frente, de tentar fazer diferença e deixar marcas.
Suas caixas se expandiram e continuarão abertas para novas memórias e
histórias... talvez um dia... alguém narre com alegria ou desespero o quanto foi
trabalhosa, porém marcante, a experiência do processo de documentação no primeiro
estágio supervisionado da Educação Infantil.
Felizmente, os questionamentos não cessam, impossível selá-los com
exatidão. Com as incertezas, novas narrativas são escritas e compartilhadas,
alimentando no percurso atemporal a história tão preciosa.
105

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Carmen Silveira Barbosa. Porto Alegre: Penso, 2016. p. 123-134.
113

APÊNDICES
114

APÊNDICE A – Termo de Consentimento de Participação

Prezado Estagiário,

Solicitamos por meio deste, sua colaboração na pesquisa intitulada: Documentação


pedagógica e formação inicial de professoras: o processo de narrar e documentar no
estágio supervisionado em Educação Infantil, que tem por objetivo analisar o processo da
documentação pedagógica na formação inicial, a partir do Estágio Orientado Supervisionado
em Educação Infantil I do Curso de Pedagogia da UNISUL – Tubarão.
O presente estudo será realizado na disciplina de Estágio Supervisionado em
Educação Infantil I, no período de 26/02/2019 a 02/06/2019, nas aulas presenciais (UNISUL)
e estágios de docência com crianças de zero a três anos nos CEIs Cantinho da Alegria, São
Judas Tadeu e CEI Peixinho Dourado (CAIC) da rede municipal de Tubarão. Para a realização
da pesquisa será proposto construir uma documentação pedagógica que será produzida pelas
estagiárias e acompanhada pela pesquisadora ao longo da pesquisa. Para tanto, os encontros
serão registrados por áudio, registro escrito e fotográfico. Você poderá desistir de sua
participação na pesquisa a qualquer momento que achar necessário sem sofrer
qualquer prejuízo ou constrangimento. Destaca-se também que a participação neste
estudo não trará nenhum benefício em dinheiro aos que autorizarem sua participação.
Destacamos que o estudo não causará riscos para o participante. Afirmamos desde já
que todas as informações relacionadas à pesquisa terão a confidencialidade de seu nome.
Os resultados deste estudo poderão ser publicados e/ou apresentados nos meios científicos,
acadêmicos e de pesquisa. Obrigada pela ajuda!

Elaine Maria da Silva dos Santos Prof. Dra. Luciane Pandini Simiano
(Pesquisadora responsável) (Orientadora do estudo)
elaine_1504@hotmail.com Telefone (48) 991338851
(48) 984324210

TERMO DE CONSENTIMENTO

Declaro que fui informado sobre todos os procedimentos da pesquisa: Documentação


pedagógica e formação inicial de professoras: o processo de narrar e documentar no
estágio supervisionado em Educação Infantil e que recebi, de forma clara e objetiva, todas
as explicações pertinentes ao projeto. Eu compreendo que neste estudo os procedimentos
serão realizados com minha colaboração. Declaro que fui informado que a participação no
estudo é voluntária, que posso desistir da participação na pesquisa quando achar necessário,
sem sofrer qualquer tipo de prejuízo ou constrangimento.
Nome por extenso: ______________________________________________
RG: __________________________________________________________

Local e data: ___________________________________________________

Assinatura: ____________________________________________________
115

ANEXOS
116

ANEXO A – Os contextos de Educação Infantil onde os estudantes de


Pedagogia realizaram seus estágios ao longo da pesquisa

CEI São Judas Tadeu: Localiza-se no bairro Dehon, em uma casa alugada.
Atende crianças de 0 a 3 anos e 11 meses, todos em horário integral. A estrutura física
do CEI organiza-se da seguinte forma: cinco salas (creche I, creche II, creche III e
creche IV), das cinco salas 3 possuem banheiros inclusos e 2 compartilham um
banheiro externo, possui cozinha, refeitório, banheiro para os funcionários, depósito,
lavanderia, setor administrativo e uma pequena biblioteca. O espaço externo é
limitado e conta somente com um parque. O PPP do CEI São Judas, foi atualizado
em 2018, tem como principal objetivo proporcionar às crianças, um ambiente de
recreação e educação apropriado, onde podem obter carinho, atenção e cuidados.
CEI Cantinho da Alegria: Está situado no bairro Morrotes na cidade de
Tubarão em Santa Catarina. No PPP, consta, que se trata de uma instituição de rede
pública e atende as creches I, II, III e IV e o pré-escolar I e II, que são compostas por
crianças de 3 meses a 6 anos de idade. A instituição tem seu funcionamento em
período integral (7h15min ás 18h15min). Tem como missão “oferecer formação
integral que favoreça a autonomia, por meio de educação com qualidade e
atendimento aos cuidados essenciais, formando crianças que contribuem para um
mundo melhor, capazes de sonhar, criar, de se expressar, adaptar-se e principalmente
de serem felizes.” Seus valores contam com integridade, desenvolvimento continuo,
ética, honestidade, respeito, solidariedade, credibilidade, clareza das informações na
comunicação entre instituição, crianças e pais.
CEI Peixinho Dourado: Localiza-se no bairro Humaitá de Cima, recebe 179
crianças, desde a creche I ao Pré-escolar. São divididas em uma estrutura de 13 salas,
sendo estas: 2 turmas de Creche I, 3 turmas de Creche II, 4 turmas de Creche III, 3
turmas de Creche IIII e 2 turmas de Pré-escolar divididas entre os dois períodos
(matutino e vespertino). O CEI também dispõe de outros espaços como: cozinha,
refeitório, direção/secretaria, sala dos professores, banheiro para funcionários,
banheiro para as crianças, lavanderia, parque externo, pátio e solário.
117

ANEXO B – Cartas dos estudantes do curso de Pedagogia


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