Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Procura do conceito
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
DRUMOND DE ANDRADE, C. Procura da poesia.
1
Conceitos
10
Voltemos, entrementes, ao âmbito dos saberes científicos, já
com o fito de nos aproximarmos de uma compreensão mais bem
delimitada sobre o que são os conceitos. Os saberes científicos que
se apoiam em uma ossatura matemática podem reduzir os termos
que expressam os seus conceitos a uma fórmula, um algarismo, um
símbolo! Mas, para boa parte das disciplinas – e em especial para
as ciências humanas –, os conceitos são mesmo construídos a partir
de palavras, ou de um grupo mínimo de palavras. “Ideologia” ou
“divisão de trabalho”. “Velocidade” ou “longa duração”. “Estado”
ou “sociedade civil”. “População” ou “densidade demográfica”3.
Vamos considerar, para o nosso caso, que os conceitos são,
via de regra, constituídos por palavras ou expressões verbais. Não
obstante, nem todas as palavras, é preciso deixar claro desde já,
são necessariamente conceitos. O que diferencia então o concei-
to – esta palavra ou grupo de palavras muito singular – da simples
palavra, da palavra que não é um conceito? Antes de responder,
enveredemos por outra questão que nos ajudará a compreender
isso melhor: Para que servem os conceitos?
conjunto de traços e cores dispostas em uma tela que, a muitos, parecerão consti-
tuir a representação de um cachimbo.
3. Ingetraut Dahlberg (1998, p. 101-107), filósofa alemã e cientista da informação,
acrescenta que – para que se possa dizer que estamos mais propriamente diante
de um conceito – é preciso identificar necessariamente em torno da expressão
considerada três dimensões: referente, termo e características. As “característi-
cas” correspondem às propriedades atribuídas ao “referente”, que por sua vez é
uma unidade de pensamento através da qual se torna possível falar (pensar) em
“pássaro”, conceitualmente, para além dos pássaros específicos que existem efe-
tivamente na realidade observável, estes sim singularizados, cada um diferente
do outro. “Termo”, por fim, corresponde à palavra ou grupo de palavras que está
sendo utilizada para designar o conceito (a expressão verbal “pássaro”, p. ex.).
11
2
A vontade de conceito
4. Podemos definir a “vontade de conceito” como o impulso que, nos seres hu-
manos, agrega-se à simples “vontade de nomear” – levando a examinar, planejar
e instrumentalizar as implicações dos nomes de modo a atender a demanda de
representar, organizar e dar um sentido ao mundo que seja compatível com aquilo
que é apreendido através de meios diversos. Estas duas instâncias – a vontade de
“nomear” e a vontade de, aprofundando-se nas relações internas e externas do
nome, “conceituar” – são aspectos humanos bem característicos.
de abordarmos mais especificamente o caso das ciências humanas.
O interesse, neste momento, é avaliar, mais propriamente, o quão
imprescindível foi o papel dos conceitos na própria formação das
ciências – ou de uma ciência mais específica como a Astronomia5.
Uma indagação, neste momento, será especialmente pertinen-
te. Será possível, sem a intermediação de conceitos, ter-se efeti-
vamente uma “ciência” – no sentido para esta palavra que herda-
mos das mais antigas civilizações através de uma bem-sucedida
sistematização de saberes que, entre outras contribuições históricas
importantes, passa por aquela empreendida pelos antigos filósofos
gregos? Recuemos para um instante na história da humanidade,
certamente imaginário, em que ainda não existiam astrônomos.
Os homens pré-históricos, e mesmo os seres humanos que vi-
veram na alvorada das primeiras civilizações, tinham sobre si um
céu que lhes deve ter parecido demasiado caótico, assombroso, ou
mesmo terrível em certas ocasiões. Dele sobrevinham raios mor-
tíferos precedidos pelo rugido dos relâmpagos. De lá podiam cair
grandes pedras capazes de causar destruição. Mas era também do
céu que vinham a luz do sol e das estrelas, o ar que se respira, a
água fertilizadora da chuva, a possibilidade da vida.
Sentado à noite em um planalto – numa época e lugar no qual
os horizontes eram bem mais vastos do que aqueles que hoje se
oferecem aos habitantes das cidades – um indivíduo podia decerto
13
enxergar uma grande variedade de fenômenos e de acontecimen-
tos. Pedras ou bolas de fogo atravessavam eventualmente o céu
sobre sua cabeça, menos ou mais rapidamente. Pequenos focos
de luz cintilavam na madrugada escura, emitindo luz permanen-
temente. Outros simplesmente não piscavam, como se apenas re-
fletissem a luz recebida. Uma grande esfera branca, misteriosa e
lenta, demarcava com seu paciente e suave arco a sua insistente
presença todas as noites.
Alguns dos objetos cintilantes estavam mais próximos dos
outros, e pareciam formar pequenos conjuntos, agrupamentos –
curiosos desenhos no céu. Certos fenômenos, como a passagem
aparentemente retilínea de pedras ou bolas de fogo na distância
celeste, anunciavam-se como eventos únicos. Enquanto isso, ou-
tros fenômenos pareciam se repetir ciclicamente. O Sol e a Lua,
por exemplo, confirmavam seu ciclo diário, ditando um ritmo que
se repetia sempre. A variedade de fenômenos era imensa. O céu,
para os primeiros homens que o observaram – e particularmente
para os que antes de todos tentaram examiná-lo de modo mais
sistemático –, deve ter parecido um caos.
Foi para organizar o céu – para torná-lo mais familiar e com-
preensível, mais apreensível e assimilável, e, eventualmente, mais
previsível – que surgiram os primeiros conceitos da Astronomia.
Foi, aliás, a intenção de superar efetivamente uma visão caótica
do céu – extraindo daí consequências práticas para a própria vida
humana – o que fez nascer mais propriamente a Astronomia. Os
conceitos referentes aos mais variados fenômenos celestes, dessa
maneira, são inerentes à origem dessa ciência. Eles surgiram por-
que os homens precisaram deles. Não se tratava apenas de nomear
as coisas, hábito já antigo entre os seres humanos quando davam
curso aos seus processos de comunicação, mas de compreender
com maior precisão as características de cada fenômeno ou obje-
to – de forma muito bem-delineada – e, ato contínuo, de agrupar
os casos específicos em categorias maiores, as quais deveriam ser
elaboradas tendo em vista todas as suas implicações e possibilida-
des de relações e contrastes umas com as outras.
14
Uma vez que existiam vários astros que pareciam cintilar per-
manentemente de modo a quebrar a escuridão da noite, e já que
havia outros que pareciam apenas refletir a luz dos primeiros, era
possível pensar em pelo menos dois grupos importantes de objetos
celestes conforme o tipo de luminosidade, ativa ou passiva, que
possuíam. Ao mesmo tempo, já se observava desde a Antiguidade
mais recuada que havia objetos cuja posição variava em relação a
outros, os quais, desta perspectiva, pareciam fixos (precisamente
aqueles que pareciam cintilar na distância sideral).
Surgiram muitos tateamentos filosóficos para tentar com-
preender racionalmente os comportamentos desses dois tipos de
objetos celestes, bem como muitas explicações rudimentares e va-
riadas construções míticas para assimilar a sua presença sobre o
mundo dos seres humanos, e não faltou certamente imaginação
aos pensadores antigos para a elaboração das mais singulares cos-
mologias. Para nossos propósitos, contudo, não precisamos nos
deter nessa variedade de perspectivas, uma vez que nosso objetivo
aqui é apenas o de construir uma base interessante de perguntas
e proposições com vistas a aprofundar uma reflexão sobre o que
leva os seres humanos à criação de conceitos. Voltemos, portanto,
à nossa narrativa sobre a percepção de objetos aparentemente fi-
xos e francamente móveis no céu.
Os gregos antigos passaram a utilizar um termo específico
para designar esses objetos celestes que modificam a sua posi-
ção em relação aos pontos cintilantes e fixos. A palavra “errante”
(planeta) foi por eles adotada para essa classe de objetos. Para
a nossa discussão sobre a utilidade das formulações conceituais,
o que importa é que “estrela”6 e “planeta” surgiram desde cedo
como dois conceitos, já de si bastante operacionais, que permiti-
15
ram aos astrônomos das épocas subsequentes agrupar de um lado
os astros que possuíam luz própria e que regiam grandes sistemas
em torno de si, e, de outro lado, situar aqueles que não apenas
careciam de luz, como também giravam em torno dos primeiros7.
Com os conceitos de estrela e de planeta, os astrônomos tanto
se tornaram capazes de comparar os astros que participavam do
mesmo atributo – a emissão ou não de luminosidade própria –
como também se tornaram capazes de confrontar as duas modali-
dades de astros entre si. Com esta simples operação conceitual, os
gestos de “contrastar” e “comparar” – e, portanto, de diferenciar
e de prever comportamentos em comum – tornava-se agora possí-
vel. Com a operação que conceitua estrelas e planetas, anuncia-se
também a possibilidade de examinar as formas de interação possí-
veis entre os dois tipos de objetos celestes8.
De igual maneira, era preciso nomear, para tentar compreendê-
-las, as impressionantes bolas de fogo – as quais depois se verifi-
cou que não eram bem bolas de fogo, mas sim núcleos de poeira e
gelo que, devido aos efeitos da radiação e dos ventos solares sobre
a sua materialidade e o seu movimento, terminavam por exibir
aos observadores humanos vistosas caudas ígneas. “Cometas” foi
o conceito criado pelos primeiros astrônomos para agregar em
um único grupo todos os corpos celestes que partilhassem destas
16
características9, distinguindo-os em seguida dos “asteroides”, cor-
pos rochosos e metálicos (bem menores do que um planeta) que já
apresentavam órbitas mais definidas em torno do Sol. Da perspec-
tiva humana cotidiana, esses asteroides podiam parecer grandes
pedras que vazavam o céu de um lado a outro, sobretudo quando
comparados com outros fragmentos rochosos bem menores, os
quais logo foram chamados de meteoros e meteoritos.
Os astrônomos criaram ainda outros conceitos, para agrupar
conjuntos de objetos celestes. A constelação, agrupamento de estre-
las, ou a galáxia, vasto agrupamento de constelações, ou os sistemas
solares – agrupamentos sistêmicos de uma estrela com os planetas
que em torno dela orbitam – permitiram organizar ainda mais o an-
tes caótico espaço sideral. As modalidades de movimento que um
astro desenhava em torno de outro ou de si mesmo deram origem a
novos conceitos, como o de rotação e translação. Estes ajudavam
a identificar comportamentos que alguns tipos de astros possuíam
em comum, ou todos eles em alguma escala, ao mesmo tempo em
que inúmeros outros fenômenos foram conceituados, como os raios
cósmicos, buracos negros, nebulosas, e tantos outros.
O céu, enfim, examinado à luz de conceitos diversos, orga-
nizava-se. Podia agora ser criteriosamente estudado, analisado,
compreendido, avaliado em alguns dos seus efeitos sobre a Terra.
A Lua, por exemplo, produzia marés. As relações do Planeta Terra
com o Sol – e a sua interação com os movimentos de rotação ou
translação – regia o ciclo das estações, a sucessão de dias e noites.
Essas e inúmeras outras relações, de menor ou de maior utilida-
de para as atividades mais imediatas da vida, tornavam-se agora
perceptíveis a partir das lentes dos conceitos. E tudo isso tinha o
17
seu valor prático, dotava os homens de novos poderes. Dominar
os céus, através dos conceitos, era de certo modo postular algum
domínio sobre a Terra10.
Guardemo-nos, contudo, de aceitar os conceitos como da-
dos11. Estamos aqui diante de criações humanas, de elaborações
e reelaborações teóricas cuja razão de ser reside precisamente na
possibilidade de os colocarmos e os recolocarmos em permanen-
te discussão. Além disso, se alguns conceitos afloram a partir da
atenta observação, outros são mais diretamente produzidos pela
imaginação, sem que haja qualquer primazia hierárquica na dis-
tinção entre estas duas operações – a de inventar a partir de uma
observação sistemática, e a de imaginar a partir de um esforço
puramente criador12. Não obstante, acrescento que a vontade de
18
conceito, ao menos na ciência, parece sempre visar à realidade,
mesmo que sem assegurar a possibilidade de apreendê-la total ou
parcialmente; ou, em uma metade lógica dos casos, mesmo que
sem ter sequer a pretensão efetiva de apreender a realidade tal
como ela é (o que não impede de visá-la).
Passemos, em seguida, a outra esfera de observação da ciên-
cia: o mundo humano, com seus fenômenos sociais acontecendo
por toda a parte. Consideremos a figura de um historiador que exa-
mina o passado, tentando perceber algo do que foi a vida humana
nos diversos períodos que o precederam, e através de fontes as
mais diversas – os resíduos, indícios e textos que lhe chegam do
fundo das eras como fontes prontas a lhe mostrar fragmentaria-
mente uma ordem inteiramente outra de fenômenos. Isolemos
um tipo de fenômeno a ser estudado para facilitar o nosso traba-
lho: a violência.
19
3
Conceitos no mundo humano
21
outro tipo, por ser externo: aquele que se dá quando duas so-
ciedades diferenciadas confrontam-se violentamente, sob certas
condições. O conceito de “guerra” atende à compreensão desse
tipo de violência coletiva. As “guerras” diferenciam-se bem, por
exemplo, das “revoluções”, movimento que ocorre internamente
a uma mesma sociedade.
Conceitos como os que acima evocamos ajudam a organizar
melhor o vasto painel de violência coletiva de que temos notí-
cia desde os inícios da história, ou mesmo da “pré-história” (se
aceitarmos este último conceito, aliás). Sem conceitos como o de
“guerra”, “revolução”, “revolta”, “golpe de Estado”, “motins”,
“badernas”, os historiadores dificilmente poderiam realizar ade-
quadamente o seu trabalho. Eles estariam tão perdidos na sua prá-
tica de perscrutar o passado e a grande aventura humana quanto
os observadores do céu noturno que não dispusessem de concei-
tos para diferenciar os astros entre si, as suas possibilidades de
agrupamentos, suas semelhanças e diferenças, seus movimentos
e possibilidades de interação. Os historiadores precisam, visce-
ralmente, dos conceitos. O mesmo se pode dizer dos geógrafos,
linguistas, sociólogos, antropólogos, economistas, psicólogos, e
outros cientistas humanos.
Se tomarmos quaisquer outros eixos de análise, poderemos
dobrar ou multiplicar nossa impressão sobre a enorme importância
dos conceitos para as análises sociológicas, antropológicas e his-
tóricas. Consideremos, por exemplo, as formas de governo. Desde
que se instauraram os modos coletivos de vida humana, e antes
mesmo do período histórico iniciado pelas grandes civilizações,
os seres humanos foram muito criativos em estabelecer modos de
dominação e modalidades bem diferenciadas de governo.
Em certa sociedade vemos um governo centrado na figura de
um único homem, o qual recebeu por linhagem e herança o pri-
vilégio de comandar a vida da população de um país. Em outras
sociedades, observamos formas de governo nas quais são renova-
dos periodicamente os governantes que se responsabilizam pelo
comando político, mediante processos de escolha bem regrados
e definidos que envolvem toda a população ou apenas parte dela.
22
Em uma terceira sociedade, percebemos que o governante, talvez
apoiado em um pequeno grupo, apossou-se do poder contra a von-
tade geral.
Mais acolá, o governo dá-se explicitamente a partir de grupos
que detém o poder econômico, e em outro lugar-tempo acrescen-
ta-se a essa forma de domínio a manutenção de pequenos exér-
citos privados que são eficientes em assegurar o controle das co-
munidades por grandes fazendeiros que partilham o poder local.
Estendendo o olhar para mais além, no tempo e no espaço, o histo-
riador encontra o poder tomado e dominado por uma junta militar
que suspende o direito social de escolha dos governantes e outros
direitos políticos. Em alguns casos de governos repressivos assim
impostos, o poder instituído parece invadir efetivamente todas as
esferas da vida privada, conseguindo controlar de fato a vida de
cada indivíduo nos seus mínimos detalhes e estabelecendo uma
cultura do medo, na qual todos devem se vigiar uns aos outros.
Esses e inúmeros outros casos que poderiam ser aventados
exemplificam uma grande diversidade de formas possíveis de go-
verno ou de domínio político do homem sobre o homem. Nova-
mente teríamos o caos se não existissem certos conceitos para or-
ganizar os espaços políticos a serem analisados – como “realeza”,
“tirania”, “democracia”, “oligarquia”, “coronelismo”, “ditadura”.
“totalitarismo”. Os conceitos, enfim, ajudam os historiadores e
cientistas sociais a organizarem o céu (ou o inferno) que preten-
dem examinar.
23
4
Distinção entre simples palavras
e conceitos
13. Finnegans Wake (JOYCE, 1939, livro 2, episódio 4). James Joyce, escritor
irlandês cuja obra máxima foi o romance Ulisses (1922), era um hábil criador e
recriador de palavras.
25
um fenômeno não propriamente novo, mas que não era até então
considerado ou beneficiado por uma maior atenção na vida coti-
diana. Por exemplo, o conceito de “sensação térmica” somente se
popularizou após a Segunda Grande Guerra com a derrota alemã
diante do rigoroso inverno russo, e a partir daí começou a ser ado-
tada pelos serviços meteorológicos. Até então, o simples conceito
de “temperatura” atendia perfeitamente aos níveis de exigên-
cia de medição do tempo e de divulgação nos jornais impressos e
nos noticiários de rádio.
Com esses exemplos, quero ressaltar que os cientistas podem
utilizar como termos para a elaboração de conceitos tanto pala-
vras novas, criadas ou rearranjadas de alguma maneira por eles,
como também expressões que já se encontram em plena circula-
ção na vida habitual14. Nesse ponto, será oportuno abordar mais
diretamente a questão sobre o que distingue o conceito de uma
palavra comum.
O conceito pode ser entendido, de modo mais geral, como
a bem-delineada ideia que é evocada a partir de uma palavra ou
expressão verbal que passa, desde então, a ser operacionalizada
sistematicamente no interior de certo campo de saber ou de práti-
cas específicas. Desse modo, a operacionalidade no interior de um
certo campo de estudos é característica de um conceito, qualquer
que ele seja. Embora o conceito possa se valer de uma palavra
comum, empregada na vida cotidiana para fins corriqueiros e coti-
dianos, é preciso compreender que há uma diferença muito grande
entre o conceito e as palavras comuns, empregadas nas conversas
diárias e sem pretensões científicas ou filosóficas. Os conceitos
14. Assim, na sua monumental obra sobre A filosofia dos gregos em seu desenvol-
vimento histórico (1844-1852), já observava Eduard Zeller (1814-1908) que, nos
primórdios do pensamento filosófico, os conceitos estavam intimamente ligados
a expressões da língua comum. Os primeiros filósofos gregos, e isso con-
tinuou a ocorrer depois, valiam-se com muita frequência da chamada “abstra-
ção metafórica”, a qual consistia no deslocamento de palavras materiais da vida
comum para um contexto abstrato/filosófico. Ao mesmo tempo – agora para a
invenção de novas palavras – também se recorria à justaposição de elementos já
existentes (palavras separadas formando novas palavras).
26
que circulam nos diversos campos de saber sempre implicam dis-
cussões entre os seus praticantes, comportando escolhas deriva-
das de demandas específicas15. Eles movimentam ou possibilitam
perspectivas teóricas, e reaparecem com frequência nos trabalhos
produzidos pelos pesquisadores e pensadores do campo passando
a integrar certo repertório conceitual. Os conceitos são pontos de
apoio sistemáticos para um tipo de conhecimento a ser produzido,
no interior de um campo específico de reflexões.
Não obstante, é impossível asseverar que certa expressão cons-
tituirá sempre um conceito, e uma outra será sempre uma “palavra
comum”, nesse caso tende a ser compreendida como uma mera
unidade de comunicação, e não ainda como uma unidade de conhe-
cimento, como é o caso dos conceitos16. A palavra comum em um
certo texto ou contexto, pode se converter em um conceito impor-
tante ao ser deslocada para um outro universo de observações. E a
palavra conceitual que surpreendemos no seio de uma argumenta-
ção filosófica ou de uma exposição científica, pode se apresentar
como uma palavra comum no contexto da vida cotidiana.
Tomemos a palavra “cadeira”. Esta palavra faz parte do voca-
bulário de toda gente, e a utilizamos inúmeras vezes todos os dias.
Habitualmente, ela não é um conceito. Um historiador, ao descre-
ver uma cena histórica que se passe no interior de um gabinete
político no qual se trama uma conspiração militar, poderá utilizar a
15. “Podemos admitir que cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua vez
indica um conteúdo. No entanto, nem todos os sentidos atribuídos às palavras eu
consideraria relevantes do ponto de vista da escrita de uma história dos concei-
tos. Quando do planejamento para a realização da pesquisa empírica visando a
produção do Dicionário dos Conceitos, foram criteriosamente selecionadas as pa-
lavras cujos sentidos interessavam: a saber, conceitos para cuja formulação seria
necessário um certo nível de teorização e cujo entendimento também é reflexivo”
(KOSELLECK, 1992, p. 135).
16. Vale lembrar que não é um consenso, no âmbito dos estudos de metodologia,
esse entendimento do conceito como algo que se apresenta como uma “unidade
de conhecimento produzido”. De fato, o conceito pode, de modo diversificado, ser
alternadamente discutido como unidade de pensamento, unidade de conhecimento
e unidade de comunicação. Para Nicola Abbagnano, p. ex., a função mais essen-
cial do conceito é a mesma da linguagem, isto é, a comunicação (ABBAGNANO,
1999, p. 164).
27
expressão “golpe de Estado” (um conceito) e se valer, para descre-
ver os acontecimentos que ali se desenrolam, da palavra “cadeira”
e de muitas outras. Fica claro que “golpe de Estado” está sendo
utilizado como conceito – no caso para designar uma modalidade
de tomada do poder político – e que cadeira é apenas uma palavra
comum, que não necessita de maior discussão e a qual não desem-
penha qualquer papel especial na operacionalização da análise a
ser empreendida.
O mesmo não se pode dizer de “golpe de Estado”, pois se o
cientista político que analisa o acontecimento usar esta expressão,
ou se preferir a noção de “revolução”, estará alterando totalmente
a análise a ser empreendida. Uma revolução é algo muito diferente
de um mero golpe de Estado, de uma quartelada, de uma contrarre-
volução, ou de outros fenômenos igualmente específicos. Os con-
ceitos sempre geram discussão. Eles interferem, alteram ou mesmo
constituem as próprias análises empreendidas. Concomitantemen-
te, apresentam um sentido mais definido a ser considerado, ou um
sentido definido diante de outros possíveis, pois mais adiante ve-
remos que os conceitos podem guardar para si certa polissemia17.
Sem maior discussão, compreende-se que “golpe de Estado”,
“revolução” e “contrarrevolução” são conceitos, mas que “cadei-
ra” é apenas uma palavra comum, ao menos no interior dos estu-
dos de história ou sociologia. Contudo, suponhamos que passamos
a outro ambiente de práticas: a marcenaria – um campo que pode
ser definido como aquele que mobiliza o trabalho de transformar
madeira em um objeto útil ou decorativo. Para o marceneiro, ou
para os fabricantes de móveis de modo mais geral, a “cadeira”
desempenhará efetivamente a função de um conceito. Para o fabri-
cante de móveis, no seu diálogo com os outros especialistas atuan-
tes no seu campo, “cadeira” é obviamente um conceito central,
17. A função instrumental dos nomes (incluindo as designações das palavras co-
muns) – seja como unidade de comunicação ou como recurso para favorecer uma
melhor compreensão do mundo – já aparece no diálogo Crátilo, de Platão, onde
Sócrates chega a comparar os nomes a ferramentas ou instrumentos (2011, p. 43)
[388-b]. Por outro lado, logo veremos que os conceitos aprimoram ao limite a
função de favorecer a compreensão do mundo.
28
que deverá ser distinguido dos conceitos de “sofá”, “poltrona”,
“banco”, entre outros. O que traz a uma palavra o status de concei-
to, em muitos casos, é o campo no qual ela se encontra. Mesmo a
temática de estudo específica dentro de um campo pode conclamar
a que uma palavra seja configurada como conceito. Podemos ima-
ginar um arqueólogo ou historiador da cultura material que precise
se valer da palavra “cadeira” como conceito mais específico.
As palavras podem se transformar em conceitos também no
seio de perspectivas teóricas específicas. “Angústia” é uma pa-
lavra que habitualmente empregamos na vida comum, cotidiana.
Quando a pronunciamos em nossa vida diária, não pensamos nela
como “conceito”. Contudo, no interior de alguns dos ambientes
teóricos da filosofia ou da psicologia, “angústia” desempenha efe-
tivamente a função de um conceito central.
O conceito de “angústia” é fundacional, por exemplo, para
um dos paradigmas mais conhecidos da filosofia contemporânea:
o existencialismo. Para esse campo de reflexões filosóficas, o que
caracteriza o homem, acima de todas as coisas, é o fato de que ele
é o único animal cuja vida se baseia fundamentalmente na angús-
tia. Não é possível compreender a especificidade da aventura hu-
mana sem decifrar as suas angústias, ou, mais propriamente, a sua
angústia principal, a que lhe define a vida e que o faz se distinguir
de todos os animais. Para todo e qualquer filósofo existencialista,
“angústia” é o conceito central a ser considerado em uma análise
da vida humana. O conceito de “angústia” ocupa, dessa forma,
uma posição fundadora para esse paradigma. O que pode distin-
guir um filósofo existencialista do outro é o que deve ser conside-
rado como a angústia central do homem, mas todos os filósofos
existencialistas certamente concordarão em situar no centro de
suas análises o conceito de angústia. A angústia não pode ser com-
preendida, senão, como um conceito-chave, sem o qual se desfaz
a perspectiva existencialista.
Kierkegaard (1813-1855) – filósofo dinamarquês que prenun-
cia a perspectiva existencialista – já situava em uma posição cen-
tral de suas preocupações filosóficas a definição de uma angústia
específica, que era a “relação torturante entre a dúvida e a fé”18.
29
Em Heidegger (1889-1976), filósofo alemão já situado no seio do
movimento existencialista em si mesmo, a angústia central é trazi-
da pela “consciência de finitude”, à qual não pode escapar nenhum
ser humano19. Já para o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-
1980), por fim, teremos como angústia existencialista a insustentá-
vel “consciência de liberdade” – (“o homem está condenado a ser
livre”)20 – ou o irrenunciável poder (dever) de escolha (“o homem
nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”)21.
O exemplo mostra que uma palavra que desempenha um papel
perfeitamente comum na linguagem cotidiana, ou também em ou-
tros campos de saber, pode ocupar uma posição conceitual impres-
cindível no interior de um determinado paradigma teórico ligado a
outra disciplina. O historiador – a não ser o que esteja examinando
objetos psico-históricos mais específicos como O grande medo de
1789, ou a História do medo no Ocidente22 – tratará habitualmente
a palavra “angústia” como uma palavra comum. Mas para o filó-
sofo existencialista ela será sempre um conceito.
Não existe, enfim, uma linha definitiva separando os conceitos
das palavras comuns. Para que tenhamos um conceito, demanda-
-se que ele seja central em determinada análise ou campo de
estudos, que ele seja necessariamente objeto de discussão entre os
praticantes do campo ou entre os especialistas que trabalham com a
mesma temática, que seja operacional, repertoriado, recorrente no
vocabulário problematizado do campo em questão. Para que uma
palavra ou expressão verbal se torne efetivamente um conceito, é
preciso que ela ultrapasse a mera condição de “unidade de comu-
nicação” e se converta também em “unidade de conhecimento”.
30
Além disso, essa palavra conceptualizante deve possuir outras ca-
racterísticas típicas dos conceitos, entre as quais a de apresentar
um relevante potencial de generalização e a de desempenhar certas
funções específicas na elaboração do saber científico ou filosófico23.
Por fim, conforme veremos a certa altura deste ensaio, os
conceitos também se caracterizam por mobilizar dentro de si uma
certa dinâmica de conteúdos. Nas suas porosidades internas os
conceitos trazem pontes para outros conceitos, além de abrigarem
na sua estrutura interna componentes que também são conceituais
e que estabelecem relações específicas uns com os outros. Pode-
mos compará-los, os conceitos, a acordes complexos que integram
dentro de si notas musicais bem articuladas umas às outras. Dialó-
gicos por dentro – através de uma rede articulada de sentidos que
se interligam – e dialógicos por fora, através de uma grande rique-
za de possibilidades de articulações com outros conceitos vizinhos
ou distantes, os conceitos são os pontos móveis sobre os quais se
apoiam as linguagens científicas24.
23. Há exigências colocadas à palavra conceitual que são ainda mais enfáticas nas
ciências sociais e humanas: “Todo conceito se prende a uma palavra, mas nem
toda palavra é um conceito social e político. Conceitos sociais e políticos contêm
uma exigência concreta de generalização, ao mesmo tempo em que são sempre
polissêmicos” (KOSELLECK, 2006, p. 108).
24. A própria origem etimológica da palavra “conceito” autoriza a possibilidade
de se compreender os conceitos de acordo com a perspectiva complexa que aqui
propomos, uma vez que o vocábulo remete ao verbo latino concipere (conceber),
o qual significa simultaneamente “conter completamente” e “formar dentro de si”
[o mesmo que ocorre com o acorde]. Ao lado disso, a ideia de que o conceito é ne-
cessariamente uma abstração (uma “coisa formada na mente”), autoriza também
outros sentidos para a expressão, tal como o de “juízo sobre algo”. Pode-se ter
um certo conceito sobre a moda; ou duas pessoas podem ter conceitos diferentes
sobre algum assunto ou aspecto. Por fim, conceber também abriga o sentido de
“trazer à luz” (e não apenas no que concerne ao processo biológico do parto). O
conceito (o “concebido”), de acordo com este último feixe de sentidos, é aquilo
que foi “trazido à luz”. Esta última é a acepção na qual investe Hegel, ao dar a
entender que a formação de conceitos insere-se em um processo no qual o Ser
emerge como essência, e a essência emerge como conceito (1817, v. 83) [2012,
p. 169-170]. Destarte, é na primeira acepção que investiremos: o conceito como
palavra complexa dotada de certas singularidades e funções com vistas à produção
do conhecimento científico e filosófico.
31
Parte III
A formulação conceitual
98
Todos esses fenômenos têm em comum com a revolu-
ção o fato de que foram concretizados através da vio-
lência, e essa é a razão pela qual eles são, com tanta
frequência, confundidos com ela. Mas a violência não é
mais adequada para descrever o fenômeno das revolu-
ções do que a mudança; somente onde ocorrer mudança,
no sentido de um novo princípio, onde a violência for
utilizada para constituir uma forma de governo com-
pletamente diferente, para dar origem à formação de
um novo corpo político, onde a libertação da opressão
almeje, pelo menos, a constituição da liberdade, é que
podemos falar de revolução.
Compreensão
o Liber
edid d ad
- suc e
m
Be Instit
to uiçã
len o do
i o n o
V
Mud
vo
o
lí tic anç
as
po so
Rupt
ci o
to ura
ci
en
So
po
is
vim
l
íti
Mo
ca
Extensão
Revolução
Francesa outras...
Revolução Revolução
Americana Russa
99
A compreensão do conceito de revolução iniciada pela perspec-
tiva de Hannah Arendt, se quiséssemos lhe acrescentar alguns to-
ques finais, poderia buscar outras notas, para muito além do que foi
diretamente proposto pela autora. Sabe-se, por exemplo, que as re-
voluções – as que serão efetivamente lembradas pela história – tor-
nam-se via de regra emblemáticas. Esse potencial inspirador, essa
notável capacidade de se tornar um emblema e de despertar ou ins-
pirar outras revoluções em outros tempos e lugares, parece também
acompanhar algumas das principais revoluções conhecidas ao longo
da história, senão todas. Por que não acrescentar esse potencial em-
blematizador à compreensão do acorde conceitual de “revolução”?
A Revolução Francesa (1789), por muitos chamada simples-
mente de “a Revolução”, tornou-se modelar para inúmeras ou-
tras, e inspirou de alguma maneira todo o espírito revolucionário
através de diversas revoltas ocorridas no século XIX e além. O
mesmo ocorreria com a Revolução Russa (1917), inspiração fun-
dadora para as revoluções socialistas, e com a Revolução Cubana
(1959), emblema principal evocado por inúmeros revolucionários
latino-americanos. A Revolução Mexicana de 1910 – a despeito
de seus desdobramentos e acomodações políticas posteriores, e da
sua estranha e mesmo destoante institucionalização através de um
Partido Revolucionário Institucional (PRI) que já pouco tem de
revolucionário86 – tornou-se apesar disso um forte modelo para
movimentos revolucionários no México. O neozapatismo, em
1994, levantou-se evocando a inspiração histórica do grande líder
da Revolução Mexicana de 1910, Emiliano Zapata (1879-1919),
cuja figura foi sintomaticamente trazida do fundo da história para
inspirar um inédito e moderno movimento revolucionário, às por-
tas do século XXI87.
86. O Partido da Revolução foi instituído no México a partir de 1929, com o nome
de Partido Nacional Revolucionário – depois mudando para Partido da Revolu-
ção Mexicana (1938) e, por fim, para Partido Revolucionário Institucional
(1946) – terminando por se tornar hegemônico até o ano 2000 através de su-
cessivas vitórias eleitorais.
87. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que começara a se or-
ganizar desde 1983 no estado mexicano de Chiapas, faz a sua primeira aparição
revolucionária com o levante de primeiro de janeiro de 1994.
100
Esse extraordinário potencial mobilizador, ou essa capacidade
de se espraiar como um emblema e de se converter em um incon-
tornável monumento para as gerações futuras – ao lado da profun-
da sensação produzida nos seus próprios contemporâneos de que
ali não se tinha uma mera revolta, mas sim uma revolução com
todas as suas letras – não seria ainda uma derradeira nota a ser
acrescentada à compreensão do acorde conceitual de revolução?
Podemos lembrar os comentários de Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1991) sobre esse impressionante aspecto das revoluções:
Tudo seria vão porque o sofrimento é eterno, e as revo-
luções não sobrevivem à sua vitória? Mas o sucesso de
uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas
vibrações, nos enlaces, nas aberturas que deu aos ho-
mens nos momentos em que se fazia, e que compõem
em si um monumento sempre em devir, como esses tú-
mulos aos quais cada novo viajante acrescenta uma pe-
dra. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste
nos novos liames que instaura entre os homens, mesmo
se esses não duram mais que sua matéria em fusão e
dão lugar rapidamente à divisão, à traição88.
101
17
Revolução ou golpe de Estado?
Um estranho jogo conceitual no
Brasil-ditadura
103
estabelecimento e manutenção desse regime94. De modo geral, de-
pendendo de como é desenvolvida a análise historiográfica que uti-
liza essa designação, a sociedade civil como um todo pode ser nesse
caso retratada a partir de um papel que a vitimiza. Se nomeamos
esse regime ditatorial como uma “ditadura civil militar”, tal como
propõem alguns historiadores em obras mais recentes, chamamos
atenção para a coparticipação de setores da sociedade civil no apoio
a este regime, ou mesmo de amplos setores populares95. Deixa-se de
vitimizar mais enfaticamente a sociedade civil e passa-se a enfatizar
uma parcela de responsabilidade social desta pelos acontecimentos,
ou de parte dela96. Se, por fim, a este regime ditatorial denomina-
mos “ditadura empresarial-militar”, especificamos mais o setor das
elites que teria apoiado a ação militar de instalação do regime, e que
continuou contribuindo para a sua manutenção.
Além disso, considerado um termo ou outro para o conceito
que se adequaria ao período do regime militar, discute-se também
o período de duração da mesma. Do tradicional recorte 1964-1985,
passa-se à possibilidade de discutir extensões do final do regime
para 1989 (já que foi nesse ano que ocorreu efetivamente a primei-
ra eleição direta para presidente), e também há estranhas propostas
de recortar o período ditatorial brasileiro adiando o seu princípio
(deslocando-o para o recrudescimento do regime em 1968, p. ex.),
ou antecipando o seu final (1979).
É interessante observar que o conceito de ditadura também
tem a sua historicidade, beneficiando-se de sentidos distintos em
94. Esta designação apoia-se no fato de que os militares brasileiros ocuparam não
somente a presidência da República, como também os ministérios, cargos centrais
nos órgãos de administração direta e indireta, estatais, e assim por diante, contro-
lando ainda uma grande rede de informações que tinha no topo o SNI.
95. É habitual a menção às marchas da família com Deus e pela liberdade, que
mobilizaram milhões de pessoas no apoio à ação golpista (19 de março de 1964 e
em 2 de abril, esta última já comemorando o triunfo do golpe).
96. Por outro lado, discute-se se, neste caso, concomitantemente à atribuição de
uma responsabilidade política da sociedade civil pelo golpe, também não vê em
parte diminuída a responsabilidade dos militares pelo golpe e pela manutenção
do regime.
104
momentos e sociedades diversas. No antigo Império Romano, por
exemplo, a sociedade em crise – através de manifestações popu-
lares mais expressivas ou de grupos políticos – poderia conclamar
um ditador a assumir o poder por um certo período (seis me-
ses, p. ex.). Percebe-se que, nesse caso, o conceito de “ditador”
aproxima-se um pouco do que hoje entenderíamos como um “in-
terventor”. O dictator, no sentido que lhe atribuíam os romanos,
era o mais alto magistrado extraordinário, habitualmente nomeado
em situações de perigo externo ou interno, como registram os
livros que constituem a obra Desde a fundação da cidade, de
Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.). Além disso, o conceito romano
distingue-se claramente da compreensão conceitual possível nas
modernas sociedades democráticas, uma vez que a ditadura era
então uma magistratura legal, prevista nas leis romanas como ins-
trumento excepcional de governo97.
Para lembrar um caso de confluência entre dois conceitos, a his-
tória das ideias conhece também a formulação conceitual da “Ditadu-
ra do proletariado”, através de certas obras de Marx, Lenin e outros
autores marxistas e não marxistas98 – sendo essa uma ditadura que
deveria ser imposta por uma revolução proletária como forma de
assegurar a transição para a sociedade sem classes. Aqui, os concei-
tos de revolução e ditadura encontram-se, como uma possibilidade.
105
18
Perversões conceituais
O curioso conceito de “ditabranda”
99. O golpe militar liderado por Primo de Rivera ocorreu em 1923, com a sus-
pensão da constituição, dissolução do parlamento e implantação de uma ditadura,
à frente do governo ditatorial, o General Damaso Berenguer y
Fusté (1873-1953) seguiu governando por decretos, sob o contex-
to da queda da bolsa de valores de Nova York em 1929 e de uma
série de revoltas populares que eclodiam na Espanha diante da
crise econômica que se instalara e dos anseios dos espanhóis de
reconquistarem maior liberdade política. Parte das medidas ado-
tadas por Primo de Rivera, o ditador anterior, foram derrogadas
por Damaso Berenguer, sob um governo que almejava trabalhar
melhor uma imagem de governos ditatoriais militares que já vinha
se desgastando com seu antecessor, o que levara à substituição de
Rivera. Berenguer, todavia, só ocupou o posto de presidente entre
1930 e 1931, quando se estabeleceu a efêmera Segunda República
Espanhola, com eleições diretas. Surgiu, na própria época de Be-
renguer, o curioso e paradoxal conceito de “dictablanda” (em por-
tuguês “ditabranda”). O dado mais paradoxal é que a “ditabranda”
de Berenguer terminou por atingir um maior índice de execuções
políticas do que a própria ditadura que a antecedeu.
O conceito de “ditabranda” estendeu seus usos para contex-
tos posteriores, em países diversos. Trata-se de um conceito que
se revelou por vezes oportuno para governos ditatoriais que não
queriam arcar com o peso do conceito de “ditadura”. Não é a
toa que foi o general-ditador do Chile, Augusto Pinochet (1915-
2006), quem o importou pela primeira vez para a América Lati-
na, dez anos depois de já ter consolidado o seu governo ditatorial
em 1973, após derrubar o governo socialista democraticamente
eleito de Salvador Allende (1908-1973)100. A palavra também foi
utilizada por correligionários e apoiantes do general-ditador ar-
gentino Juan Carlos Ongania Carballo (1914-1995), que instala a
ditadura argentina em 1966 e se faz ditador dessa data até junho
que teve a aquiescência do rei espanhol Afonso III, o qual terminaria deposto,
mas só em 1931, com a instalação da Segunda República Espanhola e a eleição
do primeiro presidente, Niceto Zamora (1877-1949). Esta duraria pouco, pois em
1933 instala-se a Guerra Civil Espanhola, que seria mais tarde vencida por Franco
e seus correligionários, levando à ditadura franquista.
100. Em uma entrevista em setembro de 1983, Pinochet teria declarado, sobre o
seu governo: “Esta não é uma ditadura, é uma dictablanda”.
107
de 1970, quando foi deposto por um novo “golpe de Estado” co-
mandado por Alejandro Lanusse (1918-1966), o qual perpetua o
regime ditatorial, apenas com trocas de atores a testa do poder
político. É interessante lembrar ainda que o estranho conceito de
“ditabranda” também foi utilizado pejorativamente para detratar
governos eleitos democraticamente (e não apenas para amenizar
as ditaduras). Tal foi o caso do uso do conceito de dictablanda por
detratores do primeiro governo argentino de Juan Domingo Perón,
entre os anos de 1946 e 1955. A polêmica conceitual foi trazida
para o Brasil em um editorial do jornal Folha de S. Paulo, de 17
de fevereiro de 2009, que mencionou mais uma vez o conceito de
“ditabranda” com o intuito de argumentar que a ditadura brasileira
de 1964 teria sido mais amena do que outras ditaduras sul-ameri-
canas do período101.
À parte o exemplo da criação do conceito de “ditabranda” que
aqui trouxemos apenas a propósito de lembrar a possibilidade das
surpreendentes alterações conceituais que podem emergir de
determinados contextos históricos – por vezes à maneira de inver-
sões e mesmo de perversões inesperadas – seguiremos no próximo
capítulo com a discussão do exemplo do conceito de revolução,
agora com o fito de examinar outra questão que aparece no uso de
conceitos: a da mobilização de uma rede conceitual que ajuda a
lhe constituir os sentidos.
108
19
Redes articuladas de conceitos
Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros
conceitos, não somente em sua história, mas
em seu devir ou suas conexões presentes. Cada
conceito tem componentes que podem ser, por sua
vez, tomados como conceitos.
DELEUZE & GUATTARI. O que é filosofia?
102. Ou, como observam Deleuze e Guattari: “Um conceito não exige somente
um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma
encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes” (1992,
p. 26).
Arendt com a noção de “liberdade” que aparece registrada na ver-
são de bolso de 1975 do Dicionário Aurélio:
Liberdade. 1) Faculdade de cada um se decidir ou agir
segundo a própria determinação. 2) Estado ou condi-
ção do homem livre.
110
Ainda com relação ao esforço de elaborar a “compreensão”
de um conceito, já destacamos que um conceito mais amplo pode
ir sendo desdobrado em sucessivas divisões conceituais. Assim,
retomando o conceito mais amplo de “revolução”, delineado de
acordo com a “compreensão” proposta por Hannah Arendt, po-
deria ser o caso de se construir uma nova divisão conceitual, que
cindisse a classe maior das revoluções em “revoluções burguesas”
e “revoluções socialistas”.
Por um lado todas as revoluções (de acordo com Hannah
Arendt) possuem em comum certas características – como a mu-
dança política brusca e violenta, a consecução ou o projeto de uma
transformação social efetiva, a presença da ideia de “liberdade po-
lítica” para além da mera “libertação”, e a convicção de um “novo
começo” por parte dos atores sociais. Esse conjunto de atributos
independe de essas revoluções serem “revoluções burguesas” ou
“revoluções socialistas”.
Por outro lado, no que se refere à participação ou ao tipo de
participação de determinados atores ou classes sociais no pro-
cesso de luta, e também ao seu resultado ou intenções em termos
da organização social alcançada ou a alcançar, podem começar a
ser entrevistas as diferenças entre as “revoluções burguesas” (con-
duzidas pelas classes enquadradas dentro da burguesia e almejan-
do uma sociedade fundada na propriedade privada individual e na
expansão capitalista) e as “revoluções socialistas”, conduzidas por
lideranças operárias ou camponesas e motivadas pela possibilida-
de da dissolução das formas de propriedade típicas da sociedade
burguesa (isto é, considerando-se a conceituação de “revolução
socialista” habitualmente proposta pelo marxismo).
Seria possível continuar conduzindo desdobramentos concei-
tuais como esses. Cindir, por exemplo, a classificação das “revolu-
ções socialistas” entre aquelas que tiveram uma participação mais
ativa do proletariado (como a Revolução Russa) e as que tiveram
uma participação mais ativa do campesinato (como a Revolução
Chinesa). Estaríamos desse modo elaborando “compreensões”
mais amplas e “extensões” mais restritas que se desdobrariam nos
novos conceitos de “revolução socialista proletária” e “revolução
111
socialista camponesa”. Cada um desses desdobramentos concei-
tuais passa a se restringir a um número menor de casos que, em
contrapartida, seriam compreendidos de maneira mais rica.
Chega um momento, entrementes, em que a operação de am-
pliar a “compreensão” de um conceito e de reduzir a sua “exten-
são”, ou de desdobrar um conceito mais amplo em novas subdi-
visões conceituais, atinge os seus limites. Conforme já assinalei,
nesse momento saímos do plano generalizador de “revolução”,
para entrar no plano particularizador de cada revolução específica.
Se a Revolução Chinesa e a Revolução Albanesa podem ser carac-
terizadas como “revoluções socialistas camponesas”, o evento da
“Grande Marcha” foi uma especificidade histórica da Revolução
Chinesa. Descrever os vários processos e eventos inerentes a esse
acontecimento único e irrepetível que foi a Revolução Chinesa
já não é mais da esfera da conceituação. Não se pode conceituar
a Revolução Chinesa; pode-se enumerar as suas características,
descrever aspectos essenciais do seu desenrolar histórico, e assim
por diante. Descrições e definições não conceituais também são
necessárias aos estudos históricos e sociológicos, mas são de outra
natureza que não a das operações da conceitualização.
112
20
Buscando a medida adequada
entre a compreensão e a
extensão de um conceito
104. “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião,
pelo que se queira. Eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo
começam a produzir os seus meios de vida, um passo condicionado pela sua or-
ganização corporal. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem
indiretamente a sua vida material mesma” (MARX & ENGELS, 1989, p. 57).
114
de vida transformando os materiais que a natureza oferece, e não
apenas coletando-os105.
Esses tateamentos em busca de uma definição mais ajustada
mostram as imprecisões que os estudiosos devem enfrentar dian-
te da aventura de conceituar e de definir, bem como de ajustar a
compreensão dos conceitos à extensão formada pelos casos possí-
veis de sua aplicação. Temos ali o conceito de “revolução”, cuja
compreensão vai sendo insistentemente assaltada e torturada pelas
hordas de militares golpistas, para que na extensão dela desdobra-
da caibam em boas letras os mais sinistros movimentos dos quais
secretamente se envergonham, em parte devido às inconvenientes
pressões exercidas por um outro conceito, o de “democracia”. E
acolá temos Plutão, banido de uma confraria de planetas na qual
já se acomodava há cinco milênios, de modo a se evitar que outros
quatro pequenos planetas recém-descobertos – alguns dos quais
com suas órbitas demasiado complexas e perturbadoras – pudes-
sem entrar ruidosamente pelas janelas da extensão de um conceito
no qual já repousava placidamente um modelo bem organizado de
sistema solar.
115
21
A permanente reelaboração dos
conceitos e o seu polissemismo
possível
Uma lição, ainda, pode ser colhida dos exemplos até aqui
discutidos: nenhum conceito é definitivo, sendo sempre possível
redefini-lo. Se Hannah Arendt definiu “revolução” a partir do seu
caráter originário de movimento social, enriquecendo a compreen-
são dessa formulação conceitual e concomitantemente operando
sucessivos recortes na sua extensão, o mesmo conceito pode
adquirir um enfoque bem diferente, mas igualmente válido, como
aquele proposto por Krzystof Pomian (n. 1934):
Efetivamente, qualquer revolução não é mais que a
perturbação de uma estrutura e o advento de uma nova
estrutura. Considerada neste sentido, a palavra “revo-
lução” perde o seu halo ideológico. Já não designa uma
transformação global da sociedade, uma espécie de
renovação geral que relega para a sua insignificância
toda a história precedente, uma espécie de ano zero a
partir do qual o mundo passa a ser radicalmente dife-
rente do que era. Uma revolução já não é concebida
como uma mutação, se não violenta e espetacular, pelo
menos dramática; ela é, muitas vezes, silenciosa e im-
perceptível, mesmo para aqueles que a fazem; é o caso
da Revolução Agrícola ou da Revolução Demográfica.
Nem sequer é sempre muito rápida, acontece que se
alongue por vários séculos. Assim (como o demons-
tram François Furet e Mona Ozouf), uma estrutura
cultural caracterizada pela alfabetização irrestrita foi
substituída por outra, a da alfabetização generalizada,
no decurso de um processo que, na França, durou cerca
de trezentos anos (POMIAN. História estrutural)106.
117
Cada uma dessas aberturas ou redirecionamentos na extensão
do conceito de revolução associa-se, necessariamente, a redefini-
ções no conjunto de notas que devem constituir a sua compreensão
ou o seu acorde conceitual.
A alternativa de associar o conceito de “revolução” a toda e
qualquer substituição radical e mais ou menos rápida de estruturas,
para muito além dos aspectos exclusivamente políticos e sociais,
não foi evidentemente uma novidade introduzida pela perspectiva
dos Annales, uma vez que foi Gordon Childe (1892-1957), um
arqueólogo e historiador marxista nascido na Austrália, o primeiro
pesquisador a se referir mais claramente a uma “revolução agríco-
la” (talvez o primeiro uso transversal do conceito de revolução).
Esta – ou ao menos a primeira das revoluções agrícolas – teria
sido a também chamada “revolução neolítica”, ocorrida em par-
tes diversas do planeta entre 10000 e 8000 a.C.109 A Revolução
Agrícola corresponderia a essa transição crucial que demarcou a
ultrapassagem de um mundo paleolítico estritamente baseado no
nomadismo e atravessado por uma cultura apropriativa em relação
à natureza – uma estrutura que, de resto, havia caracterizado a
vida humana por mais de dois milhões de anos, desde os tempos
do homo habilis – e que subitamente trouxe o surpreendente aflo-
ramento de um novo mundo baseado no sedentarismo e nas possi-
bilidades de planejar o cultivo e domesticar os animais.
tulo de um dos seus livros (1936), referindo-se na segunda parte da obra a uma
revolução na sexualidade que teria acompanhado a Revolução Russa desde seus
primórdios, mas terminando por abortar definitivamente com o desenrolar do to-
talitarismo stalinista, sobretudo a partir do final dos anos de 1920 (REICH, 1969,
p. 102-174).
109. O espraiamento global da Revolução Agrícola, ou a sua eclosão em um
número maior de lugares, teria mesmo abrangido um período mais dilatado, de
10000 a 4000 a.C. Enquanto isso, nem bem a Revolução Agrícola já tinha comple-
tado a afirmação irreversível de seu espalhamento pelo globo terrestre, e mesmo
um pouco antes desse termo, uma nova melodia já se iniciava na grande sinfonia
da história da humanidade. A Revolução Urbana, com transformações ainda mais
surpreendentes, inicia-se no século V a.C. no Crescente Fértil do Oriente Médio,
e depois a vemos na China, Índia e Egito.
118
Podemos nos perguntar, se ainda considerarmos a rapidez do
processo como um elemento fundamental para a compreensão do
conceito de revolução, como poderia merecer esse nome um pro-
cesso que demora cerca de dois mil anos para se alastrar efetiva-
mente por toda a humanidade. Contudo, se estendermos o olhar de
acordo com uma perspectiva mais longa, facilmente perceberemos
que dois mil anos constituem uma duração efetivamente muito cur-
ta diante de um período muito mais largo de dois milhões de anos.
A relatividade das noções de “rapidez” ou “lentidão” seria o
passe para explicar a adequação de chamarmos de “revolução” a
um processo de dois mil anos devidamente enquadrado por uma
pré-história de longuíssima duração, da mesma forma que logo
teríamos uma segunda revolução importante na história da huma-
nidade – a “Revolução Urbana” – demarcadora da igualmente sur-
preendente passagem da última fase da pré-história para o mundo
histórico das cidades, da escrita, da divisão multifuncional do tra-
balho, da metalurgia, da roda e das primeiras civilizações110. De
fato, o tempo é relativo. Uma revolução que, irrefreável como uma
onda, desenrolou-se pelo mundo por dois mil anos até dominar
definitivamente toda a paisagem planetária com suas aldeias agrí-
colas, e outra que levou um tempo não muito menor para instalar
um número significativo de cidades em boa parte das regiões ha-
bitadas, podem ser consideradas tão “rápidas” como a Revolução
Digital que, em tempos recentes, somente precisou de duas déca-
das para revolucionar o mundo da comunicação e da informação,
instituindo a sociedade digital.
Acerca da multiplicação de sentidos possíveis para um mes-
mo conceito – ou da formação de diferentes acordes conceituais
abrigados sob o mesmo termo – pode-se dar que o polissemismo
esteja presente até mesmo em um único autor, mas referindo-se
a situações diversas. Em Marx ou Engels, por exemplo, ocorre
que às vezes – como em A ideologia alemã (1845) – a expres-
são “revolução” apareça relacionada com o salto de um modo de
110. Também o conceito de “revolução urbana” foi proposto pela primeira vez por
Gordon Childe. Cf. Childe, 1950, p. 3-17.
119
produção para o seguinte111. Nesse sentido, portanto, o conceito
também pode incorporar potencialmente fenômenos como a “Re-
volução Agrícola” ou a “Revolução Urbana”, de maneira similar
ao enfoque proposto por Gordon Childe e que aparece de uma
nova maneira em Pomian. Marx e Engels, entrementes, também
empregam a expressão “revolução” no seu sentido mais propria-
mente político, referindo-se a movimentos sociais específicos – o
que implica um enfoque mais próximo do proposto por Hannah
Arendt, embora bem mais flexível (ou “extenso”)112. Por fim, há
ainda momentos em que – ultrapassando o uso da designação
“revolução social” estritamente usada para processos históricos e
políticos mais pontuais e específicos (a Revolução Francesa de
1789, p. ex.) – Marx ou Engels discorrem sobre “revoluções bur-
guesas” de mais longo termo, as quais abarcariam, através de um
encadeamento mais extenso que comporta grandes avanços e pe-
quenos recuos, vários episódios revolucionários mais específicos.
Dessa maneira, deveria ser rebaixada do status conceitual de “re-
volução”, e recompreendida como um “episódio revolucionário”,
a Revolução Francesa propriamente dita – aqui entendida como
aquele acontecimento explosivo que se inicia em 1789 e prosse-
gue até a Primeira República (1791), para mais tarde se dissolver
no diretório (1795) e no período napoleônico (1799). Essa peque-
na década revolucionária mais não seria do que um dos diversos
episódios cruciais que fariam parte de um processo de oitenta anos
correspondente a uma revolução burguesa francesa mais extensa,
a qual somente se consolida em 1870113.
120
Passando a outro componente conceitual, seria possível ain-
da rediscutir a nota “violência”, bastante presente na maioria dos
acordes conceituais de revolução que têm sido elaborados por au-
tores diversos. Seria a “violência” um aspecto inerente a todo e
qualquer processo revolucionário? Discute-se que, mesmo com
relação às revoluções transversais, como por exemplo a Revolu-
ção Industrial, existe sempre uma certa violência implicada. Para a
instalação generalizada de indústrias, existe expropriação de terras
que deixa atrás de si milhares de despossuídos, bem como migra-
ções de mão de obra que certamente violentam a vida dos traba-
lhadores já adaptados à situação anterior, e mesmo a violência do
desemprego, implicada pela formação de um grande exército de
mão de obra excedente que deve viver à míngua para favorecer o
barateamento da força de trabalho. De maneira análoga, se pensar-
mos nas profundas transformações pertinentes à Revolução Agrí-
cola, pode-se argumentar que a instalação pioneira da agricultura
no período neolítico deve ter deixado atrás de si os seus desajusta-
dos e reprimidos, tanto no que se refere a indivíduos coletores que
não se tenham se adaptado ao novo modo de vida como no que se
refere às possíveis disputas territoriais demandadas pela transfor-
mação do solo em espaços agrícolas.
De acordo com essas perspectivas acerca da Revolução In-
dustrial ou da Revolução Agrícola, a violência poderia ser pen-
sada como um item recorrente, ainda que de maneira encoberta
em muitos casos, mesmo nas revoluções transversais. Podemos
lembrar a sarcástica metáfora de Thomas Morus (1478-1535), em
Utopia (1516)114, ao se referir às radicais mudanças que começa-
vam a se impor com o desenvolvimento da economia da lã na In-
glaterra de sua época – um processo no qual a substituição de áreas
de cultivo por passagens para carneiros desalojava os camponeses
das áreas rurais e os obrigava a mudar para as cidades, violentando
seus modos de vida:
121
[Os carneiros], esses animais tão dóceis e tão sóbrios
em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vo-
razes e ferozes que devoram mesmo os homens e des-
povoam os campos, as casas, as aldeias.
122
seus extraordinários benefícios para a vida humana, traz em sua
gloriosa história os filhos da talidomida116.
Reconhecido isso, permanece ainda a pergunta: A violência
será necessariamente uma condição incontornável para todas as
revoluções, e por todo o sempre? Seria possível atingir, ou ao me-
nos imaginar, uma revolução pacífica? Com relação às revoluções
definíveis como “movimentos sociais”, a experiência do Chile – à
qual Peter Winn chamou de Revolução Chilena117 – parece tra-
zer o interessante exemplo de uma revolução socialista alcançada
através da vitória eleitoral. A experiência inaugurada pelo gover-
no socialista de Salvador Allende (1908-1973), como se sabe, foi
depois interrompida pela ditadura militar instaurada por Pinochet
entre 1973 e 1990, no seio da série repetida de golpes militares
promovidos ou estimulados pelos Estados Unidos contra as repú-
blicas latino-americanas.
A experiência chilena, de todo modo, faz hoje parte da his-
tória revolucionária do socialismo. No mesmo âmbito de práti-
cas históricas e de reflexões que têm tateado o mundo político em
busca de uma revolução não violenta, podemos lembrar também
a experiência e as propostas anarco-pacifistas encaminhadas por
Mahatma Gandhi (1869-1948), as quais foram conduzidas através
de um persistente movimento de luta pela independência contra
a Inglaterra. A revolução pacifista de Gandhi, por outro lado, não
deixou em nenhum momento de ser contraponteada por violências
de todos os tipos em embates que envolveram hindus, muçulma-
nos, ingleses e outros atores coletivos118.
123
Ainda sobre a variedade de possíveis elaborações conceituais,
lembro que dois autores podem chegar a uma “compreensão” mais
ou menos próxima e, no entanto, diferirem significativamente na
sua concepção concernente à “extensão” do conceito, uma vez que
discordem em relação a quais casos observáveis se enquadrariam
no conceito proposto. Assim, o cientista político italiano Gianfran-
co Pasquino (n. 1942), ao ser encarregado de elaborar o verbete
“revolução” para o Dicionário de Política coordenado por Norbert
Bobbio (1909-2004)119, terminou por chegar a uma compreensão
deste conceito bastante compatível com a de Hannah Arendt, uma
vez que nela combina os aspectos do movimento social, violência,
intenção de promover efetivamente mudanças profundas nas rela-
ções sociais, além do sentimento do novo120. No entanto, no exame
dos casos empíricos – isto é, na avaliação de que processos histó-
ricos daí se enquadrariam na categoria “revolução” – discorda da
afirmação de que a Revolução Americana tenha sido efetivamente
uma revolução, preferindo enxergá-la como uma “subespécie da
guerra de libertação nacional”121. Por outro lado, já admite que
a Revolução Francesa teria de fato introduzido uma mudança no
conceito de “revolução”, passando-se à fé na possibilidade da cria-
ção de uma ordem nova. Assim, apesar de uma “compreensão”
relativamente próxima ou compatível de um mesmo conceito, os
dois autores divergem no que se refere ao ajuste dos casos concre-
tos à “extensão” atribuída a este conceito.
Pode-se criticar, em muitas formulações conceituais, a arbitra-
riedade proposta por um autor para a “extensão” de um conceito,
depois de ele mesmo ter empreendido uma determinada delimita-
ção da sua compreensão. Já mencionei anteriormente a regra da
124
conversibilidade: a definição deve ser conversível ao definido122.
Também podem ser criticados os casos em que a compreensão do
conceito é construída de cima para baixo, como mero constructo
ideal, sem considerar a experiência da vida e as situações concre-
tas que deveriam inspirá-la, ou uma análise honesta da totalidade
de casos que podem dar ou não sustentação à formulação concei-
tual proposta. Em muitos casos, o conceito é construído apenas na
mente, e depois se tenta forçar os casos concretos a caberem
na sua compreensão forjada idealmente. Ou então são deixados
de fora alguns casos em detrimento de outros, sem muito critério
(novamente uma desatenção à regra da conversibilidade). É essa a
crítica que o historiador Eric Hobsbawm, em sua obra Revolucio-
nários (1973), dirige contra a formulação de Hannah Arendt para
o conceito de “revolução”:
A primeira dificuldade encontrada em Hannah Arendt
pelo historiador ou sociólogo dedicado ao estudo das
revoluções é um certo matiz metafísico e normativo do
seu pensamento, que se combina com um antiquado
idealismo filosófico, às vezes plenamente explícito. Ela
não considera suas revoluções tal qual ocorrem, mas
constrói ela própria um tipo ideal, definindo seu tema
de estudo em função deste e excluindo o que não se coa-
duna com suas especificações. Podemos observar, de
passagem, que ela exclui tudo que não esteja situado na
zona clássica da Europa Ocidental ou do Atlântico Nor-
te, pois seu livro não contém nem mesmo uma referên-
cia superficial – os exemplos surgem à mente – à China
ou a Cuba; nem poderia ter feito certas afirmações se
não tivesse refletido o mínimo sobre aqueles casos123.
122. Uma definição deve valer para todos os sujeitos e objetos que se incluem
ou se pretende incluir no âmbito de aplicação da coisa definida (a extensão do
conceito), e tão somente para esses sujeitos e objetos. Vale dizer, não pode haver
distoância entre a compreensão e a extensão de um conceito, pois esses polos de-
vem ser ajustáveis, afinados um ao outro. Mutuamente conversíveis.
123. Neste ponto, Hobsbawm insere uma nota de pé de página citando uma
passagem de Hannah Arendt: “P. ex.: ‘as revoluções sempre parecem triunfar
com surpreendente facilidade em uma etapa inicial’”. [depois disso, prossegue
Hobsbawm] “Na China? Em Cuba? No Vietnã? Na Iugoslávia do tempo da
Guerra?” (HOBSBAWM, 2015, p. 261).
125
A afinação entre compreensão e extensão, bem como a har-
monização das notas que constituem a compreensão com os traços
que podem de fato ser encontrados para o fenômeno analisado nos
casos que emergem da experiência e da vida – sem exclusões in-
justificadas – é uma questão de primeiro plano para uma adequada
formulação conceitual.
Esses exemplos, entre tantos outros que poderiam ser referi-
dos, são suficientes para mostrar que, ao procurar precisar os con-
ceitos que irá utilizar, o estudioso ou pesquisador pode ter diante
de si uma gama relativamente ampla de alternativas. É essa va-
riedade de possibilidades – verdadeira luta de sentidos diversos
que se estabelece no interior de uma única palavra – o que torna
desejável uma delimitação bastante clara do uso ou dos usos que
o autor pretende atribuir a uma determinada expressão-chave de
seu trabalho.
126
22
Mais um acorde conceitual
de revolução
128
Compreensão
Poten
terno cial
e n to in em
ble
lo ram Exten má
Af sivi ti c
o da d o
do nov
ncia Inten e
nsciê sida
de
Co ical
a rad Libe
ç
an Construção rda
ud de
M (nova)
Viol
ê nci
Desconstrução ra a
uptu
Destruição
R
Persis
ssual tênc
proce ia s
ez ign
apid ifi
ca
R tiv
a
Revolução Revolução
Francesa Agrícola
Extensão
Revolução
Mexicana
Revolução
Revolução Urbana
Russa
Revolução
Revolução Outras... Industrial
Chinesa
Revoluções Revolução
Revolução Digital
Cubana artísticas
Revoluções
científicas
Revoluções
comportamentais
129
que igualmente transformadoras, em geral parecem lentas, gra-
duais, progressivas (ou regressivas, se estivermos diante das in-
voluções). Exemplo clássico é a evolução das espécies animais e
vegetais, ou a própria evolução do corpo humano.
Além da rapidez processual, para que se tenha uma revolução
é preciso que seja identificável uma “persistência significativa”
[2]. Uma revolução político-social que é logo debelada, não era
uma revolução – ou não chegou a se converter em uma revo-
lução – mas constituiu, sim, uma revolta, rebelião, conjuração ou
inconfidência. Vamos supor, para já nos referirmos a um exemplo
de revolução transversal, que a Revolução Industrial pudesse ter
sido interrompida pelo efêmero movimento luddista, que foi uma
rebelião contra a mecanização do trabalho proporcionada pelo pro-
cesso de industrialização124. Caso tal situação possa ser imaginada,
a Revolução Industrial teria sido efêmera e logo retroagido, e hoje
não passaria de um caminho não percorrido na história. Não nos
referiríamos a ela, hoje, como uma “revolução”. Uma revolução,
já consolidada, precisa se estabelecer durante um período signi-
ficativo para ser digna desse nome. Se esse período significativo
deve ser o de alguns anos ou décadas, para o caso dos movimen-
tos sociais, ou de décadas ou séculos, para o caso das revoluções
transversais, essa é uma questão a ser meditada para cada caso.
Geralmente esse período significativo no qual persiste uma re-
volução (ou os seus resultados) torna-se um fator importante para
que a revolução deixe suas marcas para a posteridade. A Revolu-
ção Russa (1917) a deixou, assim como a Revolução Mexicana
(1910), para não falar da Revolução Francesa (1879), marco inicial
das revoluções modernas125. Quanto às revoluções transversais que
124. O luddismo eclode na Inglaterra em 1811, e tem seu nome derivado de Nedd
Ludd, um personagem que passa a ser evocado como símbolo do movimento de des-
truição das máquinas e cujo nome costumava aparecer nos manifestos dos luddistas.
125. Infelizmente, a revolução anarquista, ou a quase-revolução anarquista que
recobriu grandes regiões da Espanha durante a Guerra Civil Espanhola (1936-
1939), não apresentou essa persistência significativa, de modo que não é lembrada
habitualmente como uma revolução, apesar das mudanças radicais que persistiram
por algum tempo em termos de coletivização, autogestão.
130
abrem novas eras na história humana em geral, essas parecem per-
durar sequencialmente e entram umas por dentro das outras, como
se estivéssemos diante de uma grande polifonia de processos his-
tóricos. Nesses casos, uma revolução não parece cancelar a outra
(não se substitui à outra) e sim a incorpora. Assim, pelo menos, pa-
rece ter acontecido com relação às grandes revoluções transversais
até hoje conhecidas.
A melodia iniciada pela Revolução Agrícola seguiu adiante
quando começou a ressoar a melodia da Revolução Urbana, e as
duas prosseguem quando a elas se junta a ruidosa melodia inau-
gurada pela Revolução Industrial. Mais recentemente, assoma-se
à história humana esse novo contracanto que é o da Revolução
Digital. Essas melodias podem se interromper um dia. Uma guerra
atômica poderia acabar com elas e devolver a humanidade à Idade
da Pedra. Ou seria possível imaginar o silenciamento de uma ou
outra das melodias que hoje caminham juntas. O homem poderia
deixar de viver em cidades, encerrando a melodia iniciada com a
Revolução Urbana, ou um novo luddismo poderia impor o aban-
dono radical do industrialismo. De todo modo, cada uma dessas
grandes revoluções transversais já está na história.
As revoluções – sejam os movimentos sociais revolucioná-
rios, sejam as revoluções transversais, também produzem ne-
cessariamente “rupturas” [3]. Com elas, uma certa sociedade, ou
o mundo inteiro, assume uma nova face. Uma ruptura, por outro
lado, pode ser decomposta em dois movimentos – duas notas que
mantém uma íntima relação intervalar. Poderíamos dizer que as
revoluções comportam necessariamente “destruição” e “constru-
ção do novo”126.
Com relação ao primeiro gesto – o que se dirige à destruição
ou dissolução de uma situação preexistente – já discutimos a re-
corrência da “violência” nas revoluções mais conhecidas, sejam os
movimentos sociais ou as revoluções transversais. Mas também já
126. E não a “reconstrução”, o que implicaria construir de novo o que foi des-
truído, ou tampouco a “renovação”, que equivaleria a fazer com que algo fique
novamente novo.
131
nos perguntamos se a violência sempre seria necessária às revo-
luções, ou se seria possível conceber uma revolução que descons-
truísse o mundo anterior pacificamente ou sem provocar maiores
lesões ou situações traumáticas.
Gostaria de encontrar uma expressão mais abrangente que
abarcasse três possibilidades distintas, as quais costumam apare-
cer nas revoluções de modo combinado ou não necessariamente
todas juntas: a presença de violência, a destruição, e a descons-
trução (que é uma destruição mais sutil, sem violência). Como
não encontro tal palavra, e considerando que todos os exemplos
históricos até hoje conhecidos de revolução comportaram algum
índice e manifestações de “violência”, vou considerar que esse é
um componente de acorde conceitual de “revolução” [4]. Isso po-
derá mudar um dia.
Podemos considerar que as revoluções geram violência por
duas vias. Uma vez que as revoluções são momentos em que se
defrontam radicalmente o antigo e o novo, ocorre violência tanto
por parte das forças conservadoras ou reacionárias que se empe-
nham em conservar a todo o custo as coisas como já estavam,
como por parte daqueles que se esforçam para empurrar a linha do
horizonte em direção ao novo mundo que se enuncia. Em um belo
poema sobre a violência, já dizia Bertold Brecht, referindo-se me-
taforicamente ao movimento revolucionário em direção ao novo:
Do rio que a tudo arrasta
Dizem que é violento
Mas ninguém chama de violentas
As margens que o comprimem
BRECHT, B. Da violência.
132
que toda uma era está se substituindo à outra. Como já foi aventa-
do, uma sociedade não passa impunemente do mundo coletor ao
planeta agrícola, ou daí para o mundo das civilizações anco-
radas nas cidades. Quando as máquinas irrompem na Europa
do novo regime com o cenário da sociedade industrial, há inú-
meros desadaptados, cooptados e violentados, há insatisfeitos
à esquerda e à direita, acima e abaixo. Há desapropriação e
fome. Há carneiros devorando homens. A Revolução Digital,
se admitirmos o conceito, deixa atrás de si gerações de analfa-
betos virtuais. Para muitos, cada um desses processos é doloroso,
incômodo, às vezes aterrorizante.
Desse modo, pode-se perceber que a violência é recorrente
tanto nas revoluções transversais como nos movimentos sociais,
e parece se articular a um movimento em direção ao novo. Esse
aspecto estabelece uma ligação (um intervalo) entre a violência
e a instituição do novo. Existe, por outro lado, uma violência ne-
gativa, que oprime o já oprimido, sem contar as violências que se
abatem desnecessariamente sobre as vidas individuais de muitos.
A violência das revoluções (ou que emerge nas revoluções) só
adquire seu sentido positivo quando é necessária e faz uma me-
diação entre o velho a ser destruído e o novo a ser construído.
Musicalmente falando, temos aqui uma tríade: destruição, violên-
cia, construção. A violência, ao se ver mergulhada nessa tríade, e
ao adquirir um novo sentido através dela, é a violência das águas
do rio que corre para realizar o seu destino. Mas há também a
violência petrificada das margens e a violência circunstancial dos
galhos que se entrechocam ao serem carregados pela impetuosi-
dade dos acontecimentos. Entretanto, essas não fazem parte do
nosso acorde.
O passo seguinte – mas na verdade simultâneo – é a com-
preensão de que, ao estabelecer uma construção nova, as revo-
luções implicam necessariamente mudanças radicais [5]. A des-
truição (ou desconstrução) e a construção do novo (a mudança
radical) dão-se as mãos para produzir uma ruptura. A mera des-
truição, sem a concomitante construção do novo, não permitiria
que se falasse em revolução. A mudança radical, ademais, vem
133
acompanhada nas revoluções de uma “consciência do novo” [6] e
de um ato coletivo de liberdade [7] que institui esse novo. Já fala-
mos desses dois fatores, e também do coroamento final do acorde,
que é aquele “potencial emblemático” [8] que transforma todas as
revoluções em inspirações para as gerações posteriores e para os
tempos futuros.
As revoluções, ademais, são sempre intensas, e têm a capaci-
dade de cindir as sociedades em relação a elas, de modo que em
alguns indivíduos provocam o entusiasmo, e em outros o pânico ou
a rejeição extremada [9]. Mesmo o filósofo alemão Immanuel Kant
(1724-1804), que de maneira geral sustentava uma posição conser-
vadora em relação a um “direito de resistência” do povo aos gover-
nos instituídos, não deixou de se dobrar a um forte entusiasmo em
relação à Revolução Francesa127. Há algo nas revoluções que pro-
voca adesões (em maior quantidade) ou rejeições, tanto nos atores
internos quanto nos observadores externos. Diante dos autênticos
processos revolucionários, as posições neutras parecem se redu-
zir significativamente. Mais tarde, as mesmas revoluções que um
dia provocaram entusiasmo ou repulsa nos seus contemporâneos,
continuará a dividir os olhares que a examinam de algum lugar no
seu futuro histórico. As revoluções, definitivamente, são intensas e
produzem recepções intensas. Essa nota articula-se, no acorde, ao
potencial emblemático de toda revolução que um dia será lembrada
como tal. A “intensidade” e o “potencial emblemático” constituem
juntos um expressivo “intervalo” do acorde conceitual de “revolu-
ção”, de acordo com a perspectiva que aqui proponho.
Uma nota adicional faz aqui a sua entrada em cena, ao lado
da já discutida intensidade revolucionária. O intensivo, nas revo-
luções, interage sempre com o extensivo. Dito de outro modo, as
134
revoluções sempre apresentam uma expressiva “extensividade”
[10]. Com isso, quero dizer que as revoluções – sejam os movi-
mentos sociais, sejam as revoluções transversais – precisam apre-
sentar um impacto e um fazer-se extensivos, relativos a uma par-
cela realmente ampla da população, para que de fato possam ser
chamadas legitimamente de revoluções.
Nas revoluções, o sujeito – aquele que as encaminha e que
as assimila efetivamente – é necessariamente um extenso sujeito
coletivo. Daí se diz que as revoluções são efetivamente populares.
Isso diferencia as revoluções sociais, mais uma vez, dos “golpes
de Estado”. As ações realmente decisórias e decisivas relacionadas
à instituição e montagem dos golpes de Estado costumam circular
apenas no seio de um grupo relativamente reduzido de pessoas,
as quais controlam as forças armadas e certas posições políticas e
econômicas. Um ator coletivo nada extenso, ou uma pequena con-
figuração de atores, está sempre por trás dos golpes de Estado –
ainda que, para muito além desse pequeno grupo que se impõe pela
força, seja inevitável que o nefasto efeito do tal golpe termine por
afetar generalizadamente a vida de uma sociedade. Nos processos
realmente revolucionários, ao contrário, não se vai além do mero
golpe ou da tomada de poder circunstancial a não ser que o ator
coletivo extenso esteja realmente atuando.
Quero dar o exemplo das revoluções transversais, com relação
às quais essa extensividade nem sempre é imediatamente evidente.
A recente Revolução Digital não se iniciou propriamente quan-
do a tecnologia digital avançou extraordinariamente nem quando
foram criados os sistemas que preconizaram a internet, mas que
então se mantiveram circunscritos aos usos militares e científicos
mais restritos (fins dos anos de 1960). A verdadeira Revolução
Digital se iniciou nos anos de 1990, quando a rede mundial de
computadores foi apropriada pelo grande ator coletivo: quando a
população mais ampla passou a se beneficiar dos novos meios de
comunicação, das novas linguagens e dos novos usos da tecnolo-
gia. A Revolução Digital ocorreu quando a sociedade se tornou di-
gital, assim como a Revolução Agrícola se instituiu efetivamente
quando a agricultura se espalhou generalizadamente pelo mundo,
135
quando se estabeleceu um movimento impetuoso e irreversível
nessa direção inédita.
Pode-se acrescentar, por fim, que as revoluções são sempre
processos internos [11], desenvolvidos no seio das sociedades es-
pecíficas como resposta a determinadas demandas (no caso das
revoluções nacionais), ou que afloram no âmbito mais amplo da
vida humana (para o caso das revoluções transversais). As revo-
luções não podem ser trazidas de fora. Elas são sempre internas,
vêm do âmago do mundo que subitamente se vê revolucionado.
Esse, para tomar de empréstimo mais uma metáfora musical, é o
seu “harmônico” oculto: a nota secreta que se esconde sutilmente
no coração de toda revolução128.
As revoluções não podem ser concedidas, devem ser conquis-
tadas. O grau e a modalidade de envolvimento de cada um dos di-
versos grupos sociais em relação às revoluções que eles vivenciam
ou vivenciaram (neste último caso através de uma memória que
não cessa de ser reconstruída) parece conferir a cada revolução
uma cor própria. A revolução não pode ser imposta, ela não cai
sobre uma sociedade ou sobre o mundo humano como um raio
vindo de qualquer céu, ou oferecido por algum deus. Pode uma
revolução inspirar uma outra ou muitas outras, mas elas necessa-
riamente devem aflorar mais uma vez no seio das sociedades que
as engendrarão.
128. Os harmônicos podem ser entendidos como sons que se escondem dentro
dos sons. Acusticamente falando, qualquer som emitido isoladamente por um ins-
trumento, como uma nota musical da escala de dó maior, p. ex., corresponde na
verdade a um complexo emaranhado de ondas sonoras, embora o ouvinte humano
só perceba como “altura” a onda mais grave (de frequência mais baixa). Embora
não possam ser percebidos pelo ouvido comum sob a forma de notas musicais,
os harmônicos contribuem decisivamente para a definição do timbre de um ins-
trumento. O mesmo dó-3 pode ser tocado por um piano, por um clarinete, ou por
um violino, mas serão percebidos como sons de qualidades (timbres) diferentes.
136