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Sumário

Parte I – Procura do conceito, 7


1 Conceitos, 9
2 A vontade de conceito, 12
3 Conceitos no mundo humano, 20
4 Distinção entre simples palavras e conceitos, 24

Parte II – Conceitos e produção de conhecimento, 33


5 Seis funções dos conceitos no processo de produção do
conhecimento, 35
6 Os conceitos e seu potencial de generalização, 41
7 Constructos, 43
8 Conceitos agrupadores e conceitos transversais, 45
9 Relações diversas entre os conceitos, 48
10 Sobre a polissemia e a historicidade dos conceitos, 52
11 A polissemia conceitual nas ciências humanas, 56
12 A historicidade dos conceitos nas ciências humanas, 61
13 Outros instrumentos teóricos para além dos conceitos, 66
14 Extensão e compreensão de um conceito, 72
15 O conceito como acorde, 83

Parte III – A formulação conceitual, 95


16 Um exemplo específico: o conceito de “revolução” em
Hannah Arendt, 97
17 Revolução ou golpe de Estado? – Um estranho jogo
conceitual no Brasil-ditadura, 102
18 Perversões conceituais – O curioso conceito de
“ditabranda”, 106
19 Redes articuladas de conceitos, 109
20 Buscando a medida adequada entre a compreensão e a
extensão de um conceito, 113
21 A permanente reelaboração dos conceitos e o seu
polissemismo possível, 116
22 Mais um acorde conceitual de revolução, 127

Parte IV – Os conceitos na História, 137


23 Singularidades da História – Um texto desdobrado sobre si
mesmo, 139
24 Dois níveis de conceitos, 144
25 De onde vêm os conceitos da História?, 151
26 Primeira ordem de anacronismos: os conceitos de hoje
aplicados a ontem, 160
27 Potencial generalizador diacrônico, 164
28 Potencial generalizador sincrônico, 172
29 Segunda ordem de anacronismos: de ontem para hoje, 177
30 Um estudo sobre o anacronismo: o Rabelais, de Lucien
Febvre, 180
31 Escravidão e liberdade: variações nas relações entre os dois
conceitos, 183
32 Paralisia conceitual, 187
Referências, 193
Índice onomástico, 201
Índice remissivo, 203
Parte I

Procura do conceito

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
DRUMOND DE ANDRADE, C. Procura da poesia.
1
Conceitos

Conceitos. Todas as ciências os têm. Aquelas que se arvoram


de maior cientificidade os ostentam, por vezes em linguagem obs-
cura ou emplumada, em outros casos através de um discurso claro
e cristalino, que nem por isso deixa de ser conceitual. Ao lado das
ciências mais duras, os campos de conhecimento que aceitam dis-
cutir o seu estatuto – por exemplo: a possibilidade ou não de sua
cientificidade – também demandam conceitos. Mesmo os campos
de saber e de práticas que ainda se debatem acirradamente na luta
por se verem reconhecidos no panteão das ciências, ou os que nun-
ca tiveram tal pretensão, valem-se de conceitos.
O uso dos conceitos derrama-se, de igual maneira, por inúmeras
práticas que não apenas as da ciência. Há conceitos utilizados pelos
praticantes de magia, por aqueles que elaboram saberes místicos,
ou por todos os que professam religiões. Estas últimas costumam
acomodar os seus pecados e virtudes, os seus mandamentos ou as
suas hierarquias sobrenaturais a uma rede conceitual que se aprende
quase sem querer – lendo os livros sagrados, ouvindo sermões, par-
ticipando de rituais – sem que o leitor-praticante nem mesmo se dê
conta de que foram criadas as mais diversas categorias e conceitos
para acomodar a sua fé e organizar os seus anjos e os seus demônios.
Os advogados – particularmente quando não têm a seu favor
as evidências, ou independente disso – podem ganhar e perder suas
causas enredando os adversários em intrincados jogos conceituais,
ou se deixando enredar por inesperados conceitos, e não são raros
os homens e mulheres que já foram presos por causa deles. Os con-
ceitos podem celebrar a paz. Mas muitas guerras, internas ou ex-
ternas, já foram travadas com impressionante crueldade em nome
de conceitos: populações inteiras de hereges foram condenadas à
fogueira por causa desse ou daquele conceito de santidade ou de
Divina Trindade, e soldados de países beligerantes já se entremata-
ram bradando furiosamente o conceito de “democracia”.
Para falar de algo mais ameno, as Artes – que ora parecem
afrontar os saberes científicos, e ora com esses interagem – tam-
bém costumam lidar criativamente com os seus conceitos, embora
nem sempre se ocupem ou manifestem a preocupação de explici-
tá-los. Mas há mesmo uma arte conceitual, é bom lembrar, na qual
o objeto artístico é praticamente reduzido ou desdobrado em puro
conceito1. Enquanto isso, há criações artísticas que se deleitam na
afronta de todo o conceito: “Isto não é um cachimbo”.

René Magritte. Isto não é um cachimbo (1929).


Óleo sobre tela, 63,5x93,98cm
Los Angeles County Museum of Arte2

1. Refiro-me à corrente que se desenvolve nos anos de 1960. Na arte conceitual, o


conceito tem primazia sobre o produto de arte acabado (o qual pode nem mesmo
existir). Neste espírito, Joseph Kosuth (n. 1945) idealizou a obra Uma e três cadei-
ras (1969), na qual são colocadas lado a lado uma cadeira (um objeto), uma foto-
grafia desta, e uma definição de dicionário para “cadeira”, em uma folha de papel.
2. A tela – a mais famosa da série A traição das imagens (1928-1929) – explora
um aparente nonsense ao colocar o expectador ocidental diante de uma imagem
que dificilmente não lhe pareceria um cachimbo, ainda que acompanhada de uma
legenda que afirma o contrário: “Isto não é um cachimbo”. A complexidade da
proposição está em que a afirmação não expressa na verdade um contrassenso,
mas sim uma obviedade. A imagem não é de fato um cachimbo, mas apenas um

10
Voltemos, entrementes, ao âmbito dos saberes científicos, já
com o fito de nos aproximarmos de uma compreensão mais bem
delimitada sobre o que são os conceitos. Os saberes científicos que
se apoiam em uma ossatura matemática podem reduzir os termos
que expressam os seus conceitos a uma fórmula, um algarismo, um
símbolo! Mas, para boa parte das disciplinas – e em especial para
as ciências humanas –, os conceitos são mesmo construídos a partir
de palavras, ou de um grupo mínimo de palavras. “Ideologia” ou
“divisão de trabalho”. “Velocidade” ou “longa duração”. “Estado”
ou “sociedade civil”. “População” ou “densidade demográfica”3.
Vamos considerar, para o nosso caso, que os conceitos são,
via de regra, constituídos por palavras ou expressões verbais. Não
obstante, nem todas as palavras, é preciso deixar claro desde já,
são necessariamente conceitos. O que diferencia então o concei-
to – esta palavra ou grupo de palavras muito singular – da simples
palavra, da palavra que não é um conceito? Antes de responder,
enveredemos por outra questão que nos ajudará a compreender
isso melhor: Para que servem os conceitos?

conjunto de traços e cores dispostas em uma tela que, a muitos, parecerão consti-
tuir a representação de um cachimbo.
3. Ingetraut Dahlberg (1998, p. 101-107), filósofa alemã e cientista da informação,
acrescenta que – para que se possa dizer que estamos mais propriamente diante
de um conceito – é preciso identificar necessariamente em torno da expressão
considerada três dimensões: referente, termo e características. As “característi-
cas” correspondem às propriedades atribuídas ao “referente”, que por sua vez é
uma unidade de pensamento através da qual se torna possível falar (pensar) em
“pássaro”, conceitualmente, para além dos pássaros específicos que existem efe-
tivamente na realidade observável, estes sim singularizados, cada um diferente
do outro. “Termo”, por fim, corresponde à palavra ou grupo de palavras que está
sendo utilizada para designar o conceito (a expressão verbal “pássaro”, p. ex.).

11
2
A vontade de conceito

A narrativa reflexiva que eu elaboro a seguir é francamente


imaginária; não tem valor histórico mais específico, e tampouco
traz consigo qualquer pretensão de dizer que foi exatamente assim
que as coisas aconteceram. Trata-se apenas de um recurso didá-
tico-filosófico para iniciarmos uma reflexão sobre a necessidade
de conceitos, principalmente para as ciências e para a filosofia,
mas também para a vida comum. Queremos nos perguntar, sim-
plesmente, para que servem os conceitos. Por que não podemos
prescindir deles, sobretudo quando buscamos constituir um campo
de saber? O que os conceitos, e a elaboração conceitual das ideias
e palavras, asseguram àqueles que os instrumentalizam? Que ins-
tâncias os conceitos agregam à linguagem mais comum, e o que
eles têm a oferecer às intenções humanas de apreender os diversos
fenômenos com maior precisão, ou pelo menos com maior sensa-
ção de precisão? Por que, enfim, surgiu na humanidade a vontade
ou a necessidade de conceituar, ou, em meus próprios termos, por
que aflorou nos seres humanos essa “vontade de conceito”, essa
compulsão quase tão irresistível quanto a própria vontade de no-
mear? Iniciemos a caminhada4.
Diz-se que a Astronomia é a mais antiga das ciências. Pode-
remos nos servir dela como um patamar de reflexão inicial, antes

4. Podemos definir a “vontade de conceito” como o impulso que, nos seres hu-
manos, agrega-se à simples “vontade de nomear” – levando a examinar, planejar
e instrumentalizar as implicações dos nomes de modo a atender a demanda de
representar, organizar e dar um sentido ao mundo que seja compatível com aquilo
que é apreendido através de meios diversos. Estas duas instâncias – a vontade de
“nomear” e a vontade de, aprofundando-se nas relações internas e externas do
nome, “conceituar” – são aspectos humanos bem característicos.
de abordarmos mais especificamente o caso das ciências humanas.
O interesse, neste momento, é avaliar, mais propriamente, o quão
imprescindível foi o papel dos conceitos na própria formação das
ciências – ou de uma ciência mais específica como a Astronomia5.
Uma indagação, neste momento, será especialmente pertinen-
te. Será possível, sem a intermediação de conceitos, ter-se efeti-
vamente uma “ciência” – no sentido para esta palavra que herda-
mos das mais antigas civilizações através de uma bem-sucedida
sistematização de saberes que, entre outras contribuições históricas
importantes, passa por aquela empreendida pelos antigos filósofos
gregos? Recuemos para um instante na história da humanidade,
certamente imaginário, em que ainda não existiam astrônomos.
Os homens pré-históricos, e mesmo os seres humanos que vi-
veram na alvorada das primeiras civilizações, tinham sobre si um
céu que lhes deve ter parecido demasiado caótico, assombroso, ou
mesmo terrível em certas ocasiões. Dele sobrevinham raios mor-
tíferos precedidos pelo rugido dos relâmpagos. De lá podiam cair
grandes pedras capazes de causar destruição. Mas era também do
céu que vinham a luz do sol e das estrelas, o ar que se respira, a
água fertilizadora da chuva, a possibilidade da vida.
Sentado à noite em um planalto – numa época e lugar no qual
os horizontes eram bem mais vastos do que aqueles que hoje se
oferecem aos habitantes das cidades – um indivíduo podia decerto

5. A possibilidade de utilizar o céu e seus pontos de referência como “mapas” na-


turais de orientação para a própria locomoção no espaço terrestre, como “calendá-
rio” para racionalizar e subdividir grandes períodos de tempo, ou como “relógio”
para as atividades diárias – sem contar o fascínio e assombro que o céu sempre
despertou nos homens como limite incontornável da mobilidade humana e como
instigante espaço de mistérios aparentemente insondáveis – fez da Astronomia o
primeiro campo de saber com motivações científicas. Por outro lado, a Astrono-
mia nasceu no mesmo momento que sua quase gêmea, a Astrologia, por vezes
se confundindo com ela até a separação definitiva. Esses dois campos de saber
tiveram destinos diferenciados, embora lidem com muitos conceitos básicos em
comum. De sua parte, alguns praticantes da Astrologia lutam até hoje para que ela
seja reconhecida como uma forma científica de saber.

13
enxergar uma grande variedade de fenômenos e de acontecimen-
tos. Pedras ou bolas de fogo atravessavam eventualmente o céu
sobre sua cabeça, menos ou mais rapidamente. Pequenos focos
de luz cintilavam na madrugada escura, emitindo luz permanen-
temente. Outros simplesmente não piscavam, como se apenas re-
fletissem a luz recebida. Uma grande esfera branca, misteriosa e
lenta, demarcava com seu paciente e suave arco a sua insistente
presença todas as noites.
Alguns dos objetos cintilantes estavam mais próximos dos
outros, e pareciam formar pequenos conjuntos, agrupamentos –
curiosos desenhos no céu. Certos fenômenos, como a passagem
aparentemente retilínea de pedras ou bolas de fogo na distância
celeste, anunciavam-se como eventos únicos. Enquanto isso, ou-
tros fenômenos pareciam se repetir ciclicamente. O Sol e a Lua,
por exemplo, confirmavam seu ciclo diário, ditando um ritmo que
se repetia sempre. A variedade de fenômenos era imensa. O céu,
para os primeiros homens que o observaram – e particularmente
para os que antes de todos tentaram examiná-lo de modo mais
sistemático –, deve ter parecido um caos.
Foi para organizar o céu – para torná-lo mais familiar e com-
preensível, mais apreensível e assimilável, e, eventualmente, mais
previsível – que surgiram os primeiros conceitos da Astronomia.
Foi, aliás, a intenção de superar efetivamente uma visão caótica
do céu – extraindo daí consequências práticas para a própria vida
humana – o que fez nascer mais propriamente a Astronomia. Os
conceitos referentes aos mais variados fenômenos celestes, dessa
maneira, são inerentes à origem dessa ciência. Eles surgiram por-
que os homens precisaram deles. Não se tratava apenas de nomear
as coisas, hábito já antigo entre os seres humanos quando davam
curso aos seus processos de comunicação, mas de compreender
com maior precisão as características de cada fenômeno ou obje-
to – de forma muito bem-delineada – e, ato contínuo, de agrupar
os casos específicos em categorias maiores, as quais deveriam ser
elaboradas tendo em vista todas as suas implicações e possibilida-
des de relações e contrastes umas com as outras.

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Uma vez que existiam vários astros que pareciam cintilar per-
manentemente de modo a quebrar a escuridão da noite, e já que
havia outros que pareciam apenas refletir a luz dos primeiros, era
possível pensar em pelo menos dois grupos importantes de objetos
celestes conforme o tipo de luminosidade, ativa ou passiva, que
possuíam. Ao mesmo tempo, já se observava desde a Antiguidade
mais recuada que havia objetos cuja posição variava em relação a
outros, os quais, desta perspectiva, pareciam fixos (precisamente
aqueles que pareciam cintilar na distância sideral).
Surgiram muitos tateamentos filosóficos para tentar com-
preender racionalmente os comportamentos desses dois tipos de
objetos celestes, bem como muitas explicações rudimentares e va-
riadas construções míticas para assimilar a sua presença sobre o
mundo dos seres humanos, e não faltou certamente imaginação
aos pensadores antigos para a elaboração das mais singulares cos-
mologias. Para nossos propósitos, contudo, não precisamos nos
deter nessa variedade de perspectivas, uma vez que nosso objetivo
aqui é apenas o de construir uma base interessante de perguntas
e proposições com vistas a aprofundar uma reflexão sobre o que
leva os seres humanos à criação de conceitos. Voltemos, portanto,
à nossa narrativa sobre a percepção de objetos aparentemente fi-
xos e francamente móveis no céu.
Os gregos antigos passaram a utilizar um termo específico
para designar esses objetos celestes que modificam a sua posi-
ção em relação aos pontos cintilantes e fixos. A palavra “errante”
(planeta) foi por eles adotada para essa classe de objetos. Para
a nossa discussão sobre a utilidade das formulações conceituais,
o que importa é que “estrela”6 e “planeta” surgiram desde cedo
como dois conceitos, já de si bastante operacionais, que permiti-

6. A palavra grega aster, reassimilada depois pelo vocabulário latino, origina-se da


raiz indo-europeia ster, que significava “espalhar”. Os romanos também utiliza-
ram stella e sidum, todas repercutindo em línguas latinas como o português atra-
vés de palavras diversas. “Constelação” (con + stella), astro (derivação de aster) e
sideral (oriunda de siderum), são alguns desses vocábulos. Em “considerar” temos
uma ressonância astrológica da ideia de levar em conta as estrelas cuja influência
interfere em uma situação a ser examinada.

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ram aos astrônomos das épocas subsequentes agrupar de um lado
os astros que possuíam luz própria e que regiam grandes sistemas
em torno de si, e, de outro lado, situar aqueles que não apenas
careciam de luz, como também giravam em torno dos primeiros7.
Com os conceitos de estrela e de planeta, os astrônomos tanto
se tornaram capazes de comparar os astros que participavam do
mesmo atributo – a emissão ou não de luminosidade própria –
como também se tornaram capazes de confrontar as duas modali-
dades de astros entre si. Com esta simples operação conceitual, os
gestos de “contrastar” e “comparar” – e, portanto, de diferenciar
e de prever comportamentos em comum – tornava-se agora possí-
vel. Com a operação que conceitua estrelas e planetas, anuncia-se
também a possibilidade de examinar as formas de interação possí-
veis entre os dois tipos de objetos celestes8.
De igual maneira, era preciso nomear, para tentar compreendê-
-las, as impressionantes bolas de fogo – as quais depois se verifi-
cou que não eram bem bolas de fogo, mas sim núcleos de poeira e
gelo que, devido aos efeitos da radiação e dos ventos solares sobre
a sua materialidade e o seu movimento, terminavam por exibir
aos observadores humanos vistosas caudas ígneas. “Cometas” foi
o conceito criado pelos primeiros astrônomos para agregar em
um único grupo todos os corpos celestes que partilhassem destas

7. Tal como já mencionei nesta narrativa sobre a “vontade de conceito”, tomei


aqui a liberdade de sintetizar a história, unindo momentos de um grande processo
de produção conceitual. Na verdade, os astrônomos da Antiguidade, como Ptolo-
meu (100-170 d.C.), ainda imaginavam que os planetas [do nosso sistema solar]
giravam em torno da Terra. A ideia de que os planetas giravam talvez em torno do
Sol, ainda que sugerida em diversas oportunidades, somente se tornou evidência
incontornável nos meios europeus com a invenção do telescópio, no século XVII.
De todo modo, já se percebia desde tempos muito antigos que, enquanto as estre-
las pareciam pontos fixos, os planetas desenvolviam um movimento perceptível
em relação ao mapa estelar. Mais tarde, com potentes telescópios, tornou-se possí-
vel estender a observação para muito além, compreendendo-se que o conceito de
planetas é generalizável para outros sistemas estelares.
8. Os conceitos de “sistema solar” ou de “sistema estelar”, p. ex., surgem como
um novo constructo possível no momento em que vinculamos, à delimitação do
conceito de planeta, a característica de girar em torno de uma estrela.

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características9, distinguindo-os em seguida dos “asteroides”, cor-
pos rochosos e metálicos (bem menores do que um planeta) que já
apresentavam órbitas mais definidas em torno do Sol. Da perspec-
tiva humana cotidiana, esses asteroides podiam parecer grandes
pedras que vazavam o céu de um lado a outro, sobretudo quando
comparados com outros fragmentos rochosos bem menores, os
quais logo foram chamados de meteoros e meteoritos.
Os astrônomos criaram ainda outros conceitos, para agrupar
conjuntos de objetos celestes. A constelação, agrupamento de estre-
las, ou a galáxia, vasto agrupamento de constelações, ou os sistemas
solares – agrupamentos sistêmicos de uma estrela com os planetas
que em torno dela orbitam – permitiram organizar ainda mais o an-
tes caótico espaço sideral. As modalidades de movimento que um
astro desenhava em torno de outro ou de si mesmo deram origem a
novos conceitos, como o de rotação e translação. Estes ajudavam
a identificar comportamentos que alguns tipos de astros possuíam
em comum, ou todos eles em alguma escala, ao mesmo tempo em
que inúmeros outros fenômenos foram conceituados, como os raios
cósmicos, buracos negros, nebulosas, e tantos outros.
O céu, enfim, examinado à luz de conceitos diversos, orga-
nizava-se. Podia agora ser criteriosamente estudado, analisado,
compreendido, avaliado em alguns dos seus efeitos sobre a Terra.
A Lua, por exemplo, produzia marés. As relações do Planeta Terra
com o Sol – e a sua interação com os movimentos de rotação ou
translação – regia o ciclo das estações, a sucessão de dias e noites.
Essas e inúmeras outras relações, de menor ou de maior utilida-
de para as atividades mais imediatas da vida, tornavam-se agora
perceptíveis a partir das lentes dos conceitos. E tudo isso tinha o

9. Novamente estamos aqui apenas simplificando, de modo a atender aos nossos


objetivos de exemplificação. A operação de construção dos conceitos – seja para
o caso dos cometas, seja para os outros corpos celestes – não se deu de uma única
vez. Há uma história, por vezes longa, envolvida na construção e aprimoramento
de um conceito. Aristóteles, p. ex., utilizou a palavra kometes – derivada de komé
(cabeleira) – para descrever esses astros que lhe pareceram “estrelas com cabelei-
ras”. Somente mais tarde, com a invenção do telescópio e já na Modernidade, a
composição do núcleo de gelo, pedra e poeira, típica dos cometas, pôde ser escla-
recida – passando esses aspectos a fazerem parte da definição de cometa.

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seu valor prático, dotava os homens de novos poderes. Dominar
os céus, através dos conceitos, era de certo modo postular algum
domínio sobre a Terra10.
Guardemo-nos, contudo, de aceitar os conceitos como da-
dos11. Estamos aqui diante de criações humanas, de elaborações
e reelaborações teóricas cuja razão de ser reside precisamente na
possibilidade de os colocarmos e os recolocarmos em permanen-
te discussão. Além disso, se alguns conceitos afloram a partir da
atenta observação, outros são mais diretamente produzidos pela
imaginação, sem que haja qualquer primazia hierárquica na dis-
tinção entre estas duas operações – a de inventar a partir de uma
observação sistemática, e a de imaginar a partir de um esforço
puramente criador12. Não obstante, acrescento que a vontade de

10. A observação astronômica, a ciência e as operações conceituais, evidente-


mente não constituíram os únicos modos de organizar o céu e outros aspectos da
realidade. Podemos entender a Mitologia, p. ex., como outra forma de organizar
os fenômenos percebidos, a qual foi igualmente importante para as civilizações
antigas. Em seu estudo sobre a Imagem do mundo desde os tempos antigos, Arkan
Simaan e Joelle Fontaine registram o seguinte comentário: “Para os babilônicos o
mundo é obra dos deuses. A trajetória do Sol? É Shamash, jovem deus barbudo, de
rosto emoldurado por raios ondulados, que se levanta a leste, entre as montanhas;
ele atravessa o céu sobre seu cavalo e prossegue, à noite, uma viagem subterrânea
para voltar a levantar-se a leste, na manhã seguinte. Um eclipse? É o jovem deus-
-Lua, assaltado pelos sete demônios [...]” (SIMAAN & FONTAINE, 2003, p. 20).
11. “Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não
há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados, ou antes criados,
e não seriam nada sem a assinatura daqueles que o criam” (DELEUZE & GUAT-
TARI, 1992, p. 11).
12. Uma das mais respeitadas teorias atuais sobre o modo como se constitui o
universo é a Teoria das Cordas. Sua elegância na explicação acerca da estrutura
fundamental do universo, e sua capacidade de conectar partes dispersas do conhe-
cimento sobre o mundo físico, e mesmo campos até então não comunicantes da
Física como a teoria gravitacional e a mecânica quântica, constituem a principal
razão desse sucesso. Contudo, rigorosamente não há quaisquer evidências que
possam comprovar essa teoria, que se organiza em torno do conceito das “cor-
das” – o qual se baseia na ideia de que as partículas fundamentais da matéria e
da energia seriam produzidas por pequenos filamentos (cordas) em sua vibração
específica. O conceito das “cordas”, inspirado na música, foi trazido à Física por
um movimento criativo de inspiração intelectual, e não através de um trabalho de
sistemática observação.

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conceito, ao menos na ciência, parece sempre visar à realidade,
mesmo que sem assegurar a possibilidade de apreendê-la total ou
parcialmente; ou, em uma metade lógica dos casos, mesmo que
sem ter sequer a pretensão efetiva de apreender a realidade tal
como ela é (o que não impede de visá-la).
Passemos, em seguida, a outra esfera de observação da ciên-
cia: o mundo humano, com seus fenômenos sociais acontecendo
por toda a parte. Consideremos a figura de um historiador que exa-
mina o passado, tentando perceber algo do que foi a vida humana
nos diversos períodos que o precederam, e através de fontes as
mais diversas – os resíduos, indícios e textos que lhe chegam do
fundo das eras como fontes prontas a lhe mostrar fragmentaria-
mente uma ordem inteiramente outra de fenômenos. Isolemos
um tipo de fenômeno a ser estudado para facilitar o nosso traba-
lho: a violência.

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3
Conceitos no mundo humano

Desde sempre, houve e tem havido muita violência no mundo


humano. Se estendermos um olhar de grave seriedade para a his-
tória até hoje decorrida – e supondo-se que haja a possibilidade
imaginária de um vislumbre de tal magnitude – iremos encontrar
muitas formas de violência ao examinarmos o imenso conjunto de
ações humanas e movimentos sociais, de acontecimentos e pro-
cessos, de relações de dominação e subjugação entre os homens, de
agressões e resistências entre os indivíduos e grupos de indivíduos.
Esse vasto universo de ações violentas, individuais e coletivas
que atravessam a história constituiria também um caos para um
observador humano – tão incompreensível como o céu caótico se-
ria para um observador desavisado de antes da prática da astrono-
mia, ou ao menos do estabelecimento de uma certa sistematização
de um saber sobre os céus.
Ao olhar para o passado histórico, podemos assistir a inúme-
ros confrontos entre grandes massas de populações. Povos lutam
contra povos. Civilizações se confrontam. Impérios investem fu-
riosamente contra os territórios até então conquistados por outros
impérios. Tudo isso não se dá sem que seja praticada uma infini-
dade de atos de violência. Por outro lado, no seio de uma mesma
população, também existem as lutas intestinas. Um coletivo de
trabalhadores se rebela contra o seu patrão. Um grupo de mari-
nheiros se insurge contra o comandante do navio. Uma multi-
dão de homens e mulheres famintos saqueiam um supermercado.
Bandoleiros assaltam uma caravana e encontram resistência dos
guarda-costas contratados para defendê-la. Revoltas locais de vá-
rios tipos afloram em meio a uma inesperada conjunção de crise
econômica e crise política. Em escala bem maior, certos grupos
de indivíduos – “grupos sociais” bem articulados, e com objetivos
bem definidos de transformar a sociedade – confrontam-se contra
outros em processos violentos que se dão no seio de uma mesma
e única sociedade. Mais acolá, são duas sociedades distintas que,
novamente, se defrontam.
Os estudos sobre a violência através da história seriam tão
caóticos como o estudo não sistematizado da infinidade de astros e
de fenômenos celestes, caso os historiadores não tivessem a mes-
ma capacidade que tiveram os astrônomos de criar conceitos. Para
o caso dos marinheiros que se revoltaram contra o comandante dos
navios – e ocorreram inúmeros casos desses ao longo da história –
os homens comuns, os juristas, os militares, os historiadores, cria-
ram o conceito de “motim”. À violência desorganizada praticada
por grupos de arruaceiros, chamaram de “baderna”. Mas já a um
movimento violento mais organizado, o qual visava a objetivos
mais definidos e apresentava uma determinada direção nas suas
ações – e o qual derivava, além de tudo, de uma reação contra
uma situação de crise qualquer – chamaram de revolta. Para os ca-
sos em que uma parte da sociedade se revolta, e disso resulta uma
transformação social bem mais profunda e definitiva – inclusive
dando aos seus agentes a forte impressão de que algo de efetiva-
mente novo se estabeleceu a partir daquele movimento – passou-se
a atribuir a designação de “revolução”.
“Motim”, “revolta”, “revolução” são conceitos, os quais se
referem a confrontos sociais violentos que se estabelecem no seio
de um certo sistema social: um país, uma cidade, ou mesmo uma
pequena e hierárquica comunidade provisoriamente existente no
interior de um navio que singra os mares. Cada um desses tipos de
movimentos violentos, todos designando processos internos a uma
mesma sociedade, diferencia-se dos demais, e por isso demandou
para si uma designação especial. Ou, mais propriamente falando,
essas variadas modalidades de fenômenos sociais precisaram ser
compreendidas na sua especificidade através de um “conceito”.
Por outro lado, todas essas espécies de fenômenos sociais às
quais nos referimos no parágrafo anterior distinguem-se de um

21
outro tipo, por ser externo: aquele que se dá quando duas so-
ciedades diferenciadas confrontam-se violentamente, sob certas
condições. O conceito de “guerra” atende à compreensão desse
tipo de violência coletiva. As “guerras” diferenciam-se bem, por
exemplo, das “revoluções”, movimento que ocorre internamente
a uma mesma sociedade.
Conceitos como os que acima evocamos ajudam a organizar
melhor o vasto painel de violência coletiva de que temos notí-
cia desde os inícios da história, ou mesmo da “pré-história” (se
aceitarmos este último conceito, aliás). Sem conceitos como o de
“guerra”, “revolução”, “revolta”, “golpe de Estado”, “motins”,
“badernas”, os historiadores dificilmente poderiam realizar ade-
quadamente o seu trabalho. Eles estariam tão perdidos na sua prá-
tica de perscrutar o passado e a grande aventura humana quanto
os observadores do céu noturno que não dispusessem de concei-
tos para diferenciar os astros entre si, as suas possibilidades de
agrupamentos, suas semelhanças e diferenças, seus movimentos
e possibilidades de interação. Os historiadores precisam, visce-
ralmente, dos conceitos. O mesmo se pode dizer dos geógrafos,
linguistas, sociólogos, antropólogos, economistas, psicólogos, e
outros cientistas humanos.
Se tomarmos quaisquer outros eixos de análise, poderemos
dobrar ou multiplicar nossa impressão sobre a enorme importância
dos conceitos para as análises sociológicas, antropológicas e his-
tóricas. Consideremos, por exemplo, as formas de governo. Desde
que se instauraram os modos coletivos de vida humana, e antes
mesmo do período histórico iniciado pelas grandes civilizações,
os seres humanos foram muito criativos em estabelecer modos de
dominação e modalidades bem diferenciadas de governo.
Em certa sociedade vemos um governo centrado na figura de
um único homem, o qual recebeu por linhagem e herança o pri-
vilégio de comandar a vida da população de um país. Em outras
sociedades, observamos formas de governo nas quais são renova-
dos periodicamente os governantes que se responsabilizam pelo
comando político, mediante processos de escolha bem regrados
e definidos que envolvem toda a população ou apenas parte dela.

22
Em uma terceira sociedade, percebemos que o governante, talvez
apoiado em um pequeno grupo, apossou-se do poder contra a von-
tade geral.
Mais acolá, o governo dá-se explicitamente a partir de grupos
que detém o poder econômico, e em outro lugar-tempo acrescen-
ta-se a essa forma de domínio a manutenção de pequenos exér-
citos privados que são eficientes em assegurar o controle das co-
munidades por grandes fazendeiros que partilham o poder local.
Estendendo o olhar para mais além, no tempo e no espaço, o histo-
riador encontra o poder tomado e dominado por uma junta militar
que suspende o direito social de escolha dos governantes e outros
direitos políticos. Em alguns casos de governos repressivos assim
impostos, o poder instituído parece invadir efetivamente todas as
esferas da vida privada, conseguindo controlar de fato a vida de
cada indivíduo nos seus mínimos detalhes e estabelecendo uma
cultura do medo, na qual todos devem se vigiar uns aos outros.
Esses e inúmeros outros casos que poderiam ser aventados
exemplificam uma grande diversidade de formas possíveis de go-
verno ou de domínio político do homem sobre o homem. Nova-
mente teríamos o caos se não existissem certos conceitos para or-
ganizar os espaços políticos a serem analisados – como “realeza”,
“tirania”, “democracia”, “oligarquia”, “coronelismo”, “ditadura”.
“totalitarismo”. Os conceitos, enfim, ajudam os historiadores e
cientistas sociais a organizarem o céu (ou o inferno) que preten-
dem examinar.

23
4
Distinção entre simples palavras
e conceitos

Na argumentação até aqui desenvolvida, talvez tenhamos


deixado a impressão de que – nas ciências – procede-se de um
só golpe para organizar conceitualmente a abóbada celeste ou a
vastidão histórica que, de outra maneira, pareceriam caóticos.
Obviamente que a construção de um patrimônio conceitual não
se dá de uma única vez, mas sim ao longo de uma história que
envolve os inúmeros pensadores e praticantes de um determinado
campo de estudos. Ao mesmo tempo, os cientistas nem sempre
criam as palavras, ou expressões verbais, que servirão de termos
para os conceitos dos quais necessitam com vistas a perscrutar
um determinado campo de fenômenos relativos à vasta e caótica
realidade que constitui o campo de observação de sua disciplina.
Em ocasiões diversas é o grande ator coletivo formado pelas
pessoas comuns quem cria o material que servirá de base para os
conceitos, sob a forma de palavras que são utilizadas para o enten-
dimento da própria vida, e os cientistas das várias áreas de estudo
só precisam se apropriar dessas palavras para dotá-las de um senti-
do mais específico em seus campos de saber. Dito de outra forma,
existe uma língua viva da qual os cientistas podem se valer nos
seus esforços de conceituar e de escolher as palavras que funcio-
narão como conceitos-chave para suas disciplinas, de modo mais
geral, ou para suas perspectivas teóricas, de modo mais específico.
Os reis, por exemplo, foram assim denominados muito an-
tes que os filósofos, historiadores e cientistas sociais precisassem
conceituar “realeza” ou “monarquia”, em seus estudos específicos,
como uma forma singular de governo que se pode contrastar com
“tirania”, “ditadura”, “democracia”, e muitas outras formas políti-
cas. As guerras já eram assim denominadas antes que precisassem
ser estudadas. Distingui-las das revoluções não foi apenas uma ne-
cessidade dos cientistas políticos e historiadores, mas também dos
políticos, dos generais, das instituições policiais, dos homens que
se revoltavam contra um poder instituído, daqueles que sofriam os
seus efeitos.
As palavras comuns, da própria vida, podem ser utilizadas
como conceitos – ou serem conclamadas por um campo de estudos
a desempenharem o papel de conceitos mais bem-definidos. Em
diversas ocasiões, por outro lado, os cientistas precisam criar lite-
ralmente os conceitos, ou as expressões que os designam, porque
os termos mais adequados não existem ainda na linguagem co-
mum. “Densidade demográfica”, por exemplo, foi o conceito que
se precisou criar quando surgiu a necessidade de avaliar a quan-
tidade de população que habita determinado espaço. A expressão,
possivelmente, não havia sido empregada ainda fora do universo
dos estudos populacionais. “Quark” – palavra retirada aleatoria-
mente de um livro de James Joyce (1882-1941)13 – foi aprovei-
tada pelo físico estadunidense Murray Gell-Mann (n. 1929) para
nomear um tipo de partícula subatômica descoberta ou deduzida
em 1963.
Evidentemente que, nesse como em outros casos, a descoberta
ou percepção de um fenômeno que não estava previsto no reper-
tório da língua requereu a invenção de uma nova palavra. Nesses
casos, o pensador pode se valer de “neologismos” (a criação de
uma palavra nova) ou de “arcaísmos” (a recuperação de uma pala-
vra antiga, já esquecida), ou ainda recorrer a uma palavra monta-
da etimologicamente. É também possível que a demanda por um
novo conceito – o qual necessite de uma expressão verbal ainda
não utilizada – conclame os praticantes de um campo a designar

13. Finnegans Wake (JOYCE, 1939, livro 2, episódio 4). James Joyce, escritor
irlandês cuja obra máxima foi o romance Ulisses (1922), era um hábil criador e
recriador de palavras.

25
um fenômeno não propriamente novo, mas que não era até então
considerado ou beneficiado por uma maior atenção na vida coti-
diana. Por exemplo, o conceito de “sensação térmica” somente se
popularizou após a Segunda Grande Guerra com a derrota alemã
diante do rigoroso inverno russo, e a partir daí começou a ser ado-
tada pelos serviços meteorológicos. Até então, o simples conceito
de “temperatura” atendia perfeitamente aos níveis de exigên-
cia de medição do tempo e de divulgação nos jornais impressos e
nos noticiários de rádio.
Com esses exemplos, quero ressaltar que os cientistas podem
utilizar como termos para a elaboração de conceitos tanto pala-
vras novas, criadas ou rearranjadas de alguma maneira por eles,
como também expressões que já se encontram em plena circula-
ção na vida habitual14. Nesse ponto, será oportuno abordar mais
diretamente a questão sobre o que distingue o conceito de uma
palavra comum.
O conceito pode ser entendido, de modo mais geral, como
a bem-delineada ideia que é evocada a partir de uma palavra ou
expressão verbal que passa, desde então, a ser operacionalizada
sistematicamente no interior de certo campo de saber ou de práti-
cas específicas. Desse modo, a operacionalidade no interior de um
certo campo de estudos é característica de um conceito, qualquer
que ele seja. Embora o conceito possa se valer de uma palavra
comum, empregada na vida cotidiana para fins corriqueiros e coti-
dianos, é preciso compreender que há uma diferença muito grande
entre o conceito e as palavras comuns, empregadas nas conversas
diárias e sem pretensões científicas ou filosóficas. Os conceitos

14. Assim, na sua monumental obra sobre A filosofia dos gregos em seu desenvol-
vimento histórico (1844-1852), já observava Eduard Zeller (1814-1908) que, nos
primórdios do pensamento filosófico, os conceitos estavam intimamente ligados
a expressões da língua comum. Os primeiros filósofos gregos, e isso con-
tinuou a ocorrer depois, valiam-se com muita frequência da chamada “abstra-
ção metafórica”, a qual consistia no deslocamento de palavras materiais da vida
comum para um contexto abstrato/filosófico. Ao mesmo tempo – agora para a
invenção de novas palavras – também se recorria à justaposição de elementos já
existentes (palavras separadas formando novas palavras).

26
que circulam nos diversos campos de saber sempre implicam dis-
cussões entre os seus praticantes, comportando escolhas deriva-
das de demandas específicas15. Eles movimentam ou possibilitam
perspectivas teóricas, e reaparecem com frequência nos trabalhos
produzidos pelos pesquisadores e pensadores do campo passando
a integrar certo repertório conceitual. Os conceitos são pontos de
apoio sistemáticos para um tipo de conhecimento a ser produzido,
no interior de um campo específico de reflexões.
Não obstante, é impossível asseverar que certa expressão cons-
tituirá sempre um conceito, e uma outra será sempre uma “palavra
comum”, nesse caso tende a ser compreendida como uma mera
unidade de comunicação, e não ainda como uma unidade de conhe-
cimento, como é o caso dos conceitos16. A palavra comum em um
certo texto ou contexto, pode se converter em um conceito impor-
tante ao ser deslocada para um outro universo de observações. E a
palavra conceitual que surpreendemos no seio de uma argumenta-
ção filosófica ou de uma exposição científica, pode se apresentar
como uma palavra comum no contexto da vida cotidiana.
Tomemos a palavra “cadeira”. Esta palavra faz parte do voca-
bulário de toda gente, e a utilizamos inúmeras vezes todos os dias.
Habitualmente, ela não é um conceito. Um historiador, ao descre-
ver uma cena histórica que se passe no interior de um gabinete
político no qual se trama uma conspiração militar, poderá utilizar a

15. “Podemos admitir que cada palavra remete-nos a um sentido, que por sua vez
indica um conteúdo. No entanto, nem todos os sentidos atribuídos às palavras eu
consideraria relevantes do ponto de vista da escrita de uma história dos concei-
tos. Quando do planejamento para a realização da pesquisa empírica visando a
produção do Dicionário dos Conceitos, foram criteriosamente selecionadas as pa-
lavras cujos sentidos interessavam: a saber, conceitos para cuja formulação seria
necessário um certo nível de teorização e cujo entendimento também é reflexivo”
(KOSELLECK, 1992, p. 135).
16. Vale lembrar que não é um consenso, no âmbito dos estudos de metodologia,
esse entendimento do conceito como algo que se apresenta como uma “unidade
de conhecimento produzido”. De fato, o conceito pode, de modo diversificado, ser
alternadamente discutido como unidade de pensamento, unidade de conhecimento
e unidade de comunicação. Para Nicola Abbagnano, p. ex., a função mais essen-
cial do conceito é a mesma da linguagem, isto é, a comunicação (ABBAGNANO,
1999, p. 164).

27
expressão “golpe de Estado” (um conceito) e se valer, para descre-
ver os acontecimentos que ali se desenrolam, da palavra “cadeira”
e de muitas outras. Fica claro que “golpe de Estado” está sendo
utilizado como conceito – no caso para designar uma modalidade
de tomada do poder político – e que cadeira é apenas uma palavra
comum, que não necessita de maior discussão e a qual não desem-
penha qualquer papel especial na operacionalização da análise a
ser empreendida.
O mesmo não se pode dizer de “golpe de Estado”, pois se o
cientista político que analisa o acontecimento usar esta expressão,
ou se preferir a noção de “revolução”, estará alterando totalmente
a análise a ser empreendida. Uma revolução é algo muito diferente
de um mero golpe de Estado, de uma quartelada, de uma contrarre-
volução, ou de outros fenômenos igualmente específicos. Os con-
ceitos sempre geram discussão. Eles interferem, alteram ou mesmo
constituem as próprias análises empreendidas. Concomitantemen-
te, apresentam um sentido mais definido a ser considerado, ou um
sentido definido diante de outros possíveis, pois mais adiante ve-
remos que os conceitos podem guardar para si certa polissemia17.
Sem maior discussão, compreende-se que “golpe de Estado”,
“revolução” e “contrarrevolução” são conceitos, mas que “cadei-
ra” é apenas uma palavra comum, ao menos no interior dos estu-
dos de história ou sociologia. Contudo, suponhamos que passamos
a outro ambiente de práticas: a marcenaria – um campo que pode
ser definido como aquele que mobiliza o trabalho de transformar
madeira em um objeto útil ou decorativo. Para o marceneiro, ou
para os fabricantes de móveis de modo mais geral, a “cadeira”
desempenhará efetivamente a função de um conceito. Para o fabri-
cante de móveis, no seu diálogo com os outros especialistas atuan-
tes no seu campo, “cadeira” é obviamente um conceito central,

17. A função instrumental dos nomes (incluindo as designações das palavras co-
muns) – seja como unidade de comunicação ou como recurso para favorecer uma
melhor compreensão do mundo – já aparece no diálogo Crátilo, de Platão, onde
Sócrates chega a comparar os nomes a ferramentas ou instrumentos (2011, p. 43)
[388-b]. Por outro lado, logo veremos que os conceitos aprimoram ao limite a
função de favorecer a compreensão do mundo.

28
que deverá ser distinguido dos conceitos de “sofá”, “poltrona”,
“banco”, entre outros. O que traz a uma palavra o status de concei-
to, em muitos casos, é o campo no qual ela se encontra. Mesmo a
temática de estudo específica dentro de um campo pode conclamar
a que uma palavra seja configurada como conceito. Podemos ima-
ginar um arqueólogo ou historiador da cultura material que precise
se valer da palavra “cadeira” como conceito mais específico.
As palavras podem se transformar em conceitos também no
seio de perspectivas teóricas específicas. “Angústia” é uma pa-
lavra que habitualmente empregamos na vida comum, cotidiana.
Quando a pronunciamos em nossa vida diária, não pensamos nela
como “conceito”. Contudo, no interior de alguns dos ambientes
teóricos da filosofia ou da psicologia, “angústia” desempenha efe-
tivamente a função de um conceito central.
O conceito de “angústia” é fundacional, por exemplo, para
um dos paradigmas mais conhecidos da filosofia contemporânea:
o existencialismo. Para esse campo de reflexões filosóficas, o que
caracteriza o homem, acima de todas as coisas, é o fato de que ele
é o único animal cuja vida se baseia fundamentalmente na angús-
tia. Não é possível compreender a especificidade da aventura hu-
mana sem decifrar as suas angústias, ou, mais propriamente, a sua
angústia principal, a que lhe define a vida e que o faz se distinguir
de todos os animais. Para todo e qualquer filósofo existencialista,
“angústia” é o conceito central a ser considerado em uma análise
da vida humana. O conceito de “angústia” ocupa, dessa forma,
uma posição fundadora para esse paradigma. O que pode distin-
guir um filósofo existencialista do outro é o que deve ser conside-
rado como a angústia central do homem, mas todos os filósofos
existencialistas certamente concordarão em situar no centro de
suas análises o conceito de angústia. A angústia não pode ser com-
preendida, senão, como um conceito-chave, sem o qual se desfaz
a perspectiva existencialista.
Kierkegaard (1813-1855) – filósofo dinamarquês que prenun-
cia a perspectiva existencialista – já situava em uma posição cen-
tral de suas preocupações filosóficas a definição de uma angústia
específica, que era a “relação torturante entre a dúvida e a fé”18.

18. Huisman, 2001, p. 42.

29
Em Heidegger (1889-1976), filósofo alemão já situado no seio do
movimento existencialista em si mesmo, a angústia central é trazi-
da pela “consciência de finitude”, à qual não pode escapar nenhum
ser humano19. Já para o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-
1980), por fim, teremos como angústia existencialista a insustentá-
vel “consciência de liberdade” – (“o homem está condenado a ser
livre”)20 – ou o irrenunciável poder (dever) de escolha (“o homem
nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”)21.
O exemplo mostra que uma palavra que desempenha um papel
perfeitamente comum na linguagem cotidiana, ou também em ou-
tros campos de saber, pode ocupar uma posição conceitual impres-
cindível no interior de um determinado paradigma teórico ligado a
outra disciplina. O historiador – a não ser o que esteja examinando
objetos psico-históricos mais específicos como O grande medo de
1789, ou a História do medo no Ocidente22 – tratará habitualmente
a palavra “angústia” como uma palavra comum. Mas para o filó-
sofo existencialista ela será sempre um conceito.
Não existe, enfim, uma linha definitiva separando os conceitos
das palavras comuns. Para que tenhamos um conceito, demanda-
-se que ele seja central em determinada análise ou campo de
estudos, que ele seja necessariamente objeto de discussão entre os
praticantes do campo ou entre os especialistas que trabalham com a
mesma temática, que seja operacional, repertoriado, recorrente no
vocabulário problematizado do campo em questão. Para que uma
palavra ou expressão verbal se torne efetivamente um conceito, é
preciso que ela ultrapasse a mera condição de “unidade de comu-
nicação” e se converta também em “unidade de conhecimento”.

19. Heidegger, 1935.


20. O sentido desta frase, registrada por Sartre em O ser e o nada (1943), é o de
que “ninguém é livre para deixar de ser livre”. A liberdade, portanto, aqui também
se abre como porta de entrada para uma possibilidade de angústia.
21. Dirá Jean-Paul Sartre em O existencialismo é um humanismo (1946): “A es-
colha é possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não escolher.
Eu posso sempre escolher, mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim
mesmo estarei escolhendo” (SARTRE, 1978, p. 254).
22. Lefebvre, 1932; Delumeau, 1978.

30
Além disso, essa palavra conceptualizante deve possuir outras ca-
racterísticas típicas dos conceitos, entre as quais a de apresentar
um relevante potencial de generalização e a de desempenhar certas
funções específicas na elaboração do saber científico ou filosófico23.
Por fim, conforme veremos a certa altura deste ensaio, os
conceitos também se caracterizam por mobilizar dentro de si uma
certa dinâmica de conteúdos. Nas suas porosidades internas os
conceitos trazem pontes para outros conceitos, além de abrigarem
na sua estrutura interna componentes que também são conceituais
e que estabelecem relações específicas uns com os outros. Pode-
mos compará-los, os conceitos, a acordes complexos que integram
dentro de si notas musicais bem articuladas umas às outras. Dialó-
gicos por dentro – através de uma rede articulada de sentidos que
se interligam – e dialógicos por fora, através de uma grande rique-
za de possibilidades de articulações com outros conceitos vizinhos
ou distantes, os conceitos são os pontos móveis sobre os quais se
apoiam as linguagens científicas24.

23. Há exigências colocadas à palavra conceitual que são ainda mais enfáticas nas
ciências sociais e humanas: “Todo conceito se prende a uma palavra, mas nem
toda palavra é um conceito social e político. Conceitos sociais e políticos contêm
uma exigência concreta de generalização, ao mesmo tempo em que são sempre
polissêmicos” (KOSELLECK, 2006, p. 108).
24. A própria origem etimológica da palavra “conceito” autoriza a possibilidade
de se compreender os conceitos de acordo com a perspectiva complexa que aqui
propomos, uma vez que o vocábulo remete ao verbo latino concipere (conceber),
o qual significa simultaneamente “conter completamente” e “formar dentro de si”
[o mesmo que ocorre com o acorde]. Ao lado disso, a ideia de que o conceito é ne-
cessariamente uma abstração (uma “coisa formada na mente”), autoriza também
outros sentidos para a expressão, tal como o de “juízo sobre algo”. Pode-se ter
um certo conceito sobre a moda; ou duas pessoas podem ter conceitos diferentes
sobre algum assunto ou aspecto. Por fim, conceber também abriga o sentido de
“trazer à luz” (e não apenas no que concerne ao processo biológico do parto). O
conceito (o “concebido”), de acordo com este último feixe de sentidos, é aquilo
que foi “trazido à luz”. Esta última é a acepção na qual investe Hegel, ao dar a
entender que a formação de conceitos insere-se em um processo no qual o Ser
emerge como essência, e a essência emerge como conceito (1817, v. 83) [2012,
p. 169-170]. Destarte, é na primeira acepção que investiremos: o conceito como
palavra complexa dotada de certas singularidades e funções com vistas à produção
do conhecimento científico e filosófico.

31
Parte III

A formulação conceitual

Do rio que a tudo arrasta


Dizem que é violento
Mas ninguém chama de violentas
As margens que o comprimem.
BRECHT, B. Da violência.
16
Um exemplo específico: o
conceito de “revolução” em
Hannah Arendt

Hannah Arendt (1906-1975), em seu livro Da revolução


(1963), combina alguns elementos essenciais para construir a
“compreensão” do seu acorde conceitual de “revolução”. Para a
autora, em primeiro lugar o conceito moderno de revolução “está
inextricavelmente ligado à noção de que o curso da História co-
meça subitamente de um novo rumo, de que uma História inteira-
mente nova, uma História nunca antes narrada está para se desen-
rolar”83. Atores e espectadores dos movimentos revolucionários a
partir do século XVIII, passariam a ter uma consciência ou uma
convicção muito clara de que algo novo estava acontecendo. É
essa consciência do novo, da ruptura com o anterior, o que a autora
considera essencial no moderno conceito de “revolução”.
Com essa nota característica essencial incorporada à “com-
preensão” do que chama de moderno conceito de revolução, Han-
nah Arendt separa as autênticas revoluções, posteriores aos dois
marcos modernos das revoluções “Francesa” e “Americana”, de
insurreições ou revoluções no sentido antigo, nas quais os homens
pensavam nos seus movimentos políticos como restauradores de
uma ordem natural que havia sido interrompida, e não como algo
que visava à instituição do “novo”84. Percebe-se que, com essa

83. Arendt, 1998, p. 23.


84. Para ilustrar isso, Arendt destaca um exemplo: “a Revolução Gloriosa, o acon-
tecimento em que, muito paradoxalmente, o termo encontrou guarida definitiva
na linguagem histórica e política, não foi entendida, de forma alguma, como re-
volução, mas como uma reintegração do poder monárquico à sua antiga glória e
honradez” (1998, p. 34). Hobsbawm critica esta posição (2015, p. 261).
ampliação do conjunto de notas que fariam parte da “compreen-
são” de “revolução”, produziu-se inversamente uma restrição da
“extensão” deste conceito, com exclusão de diversos movimentos
sociais da designação proposta.
Prosseguindo na ampliação da “compreensão” do seu acor-
de conceitual de “revolução”, Arendt acrescenta que essa sempre
envolve o desejo de obtenção da “liberdade”, noção incorporada
dentro da definição de revolução e que a autora distingue muito
claramente da noção de “libertação”. Enquanto a “liberdade” é
conceituada em torno de uma opção política de vida (implican-
do participação das coisas públicas, ou em admissão ao mundo
político), a “libertação” implica meramente à ideia de ser livre da
opressão. É o que ocorre, por exemplo, quando se livra um povo
de uma tirania intolerável, mas sem modificar-lhe fundamental-
mente as condições sociais e políticas. Assim, embora a “liber-
tação” possa ser condição prévia da “liberdade”, não conduziria
necessariamente a ela. A noção moderna de “liberdade”, pensada
como direito inalienável do homem, diferia inclusive da antiga no-
ção de “liberdade” proposta pelo mundo antigo, relativa “à gama
mais ou menos livre de atividades não políticas que certo corpo
político permite e garante àqueles que o constituem”.
Podemos ver, assim, que o conceito de revolução proposto por
Hannah Arendt combina dois elementos essenciais, para além da
mera mudança política matizada pela violência social, e mesmo
da modificação na estrutura social. Devem estar presentes necessa-
riamente a ideia de “liberdade”, desde que na moderna acepção
já discutida, e a convicção dos próprios atores sociais de que o
ato revolucionário instaura um “novo começo”. Ampliada a “com-
preensão” do conceito para essa combinação de notas caracterís-
ticas (mudança política, violência, transformação social efetiva,
liberdade política, convicção de um “novo começo”), a “extensão”
de revolução passa a se referir exclusivamente a certos movimen-
tos políticos e sociais85:

85. Arendt, 1998, p. 28.

98
Todos esses fenômenos têm em comum com a revolu-
ção o fato de que foram concretizados através da vio-
lência, e essa é a razão pela qual eles são, com tanta
frequência, confundidos com ela. Mas a violência não é
mais adequada para descrever o fenômeno das revolu-
ções do que a mudança; somente onde ocorrer mudança,
no sentido de um novo princípio, onde a violência for
utilizada para constituir uma forma de governo com-
pletamente diferente, para dar origem à formação de
um novo corpo político, onde a libertação da opressão
almeje, pelo menos, a constituição da liberdade, é que
podemos falar de revolução.

Compreensão

o Liber
edid d ad
- suc e
m
Be Instit
to uiçã
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i o n o
V

Mud
vo
o
lí tic anç
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po so
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to ura
ci

en
So

po
is
vim

l
íti
Mo

ca

Extensão
Revolução
Francesa outras...

Revolução Revolução
Americana Russa

99
A compreensão do conceito de revolução iniciada pela perspec-
tiva de Hannah Arendt, se quiséssemos lhe acrescentar alguns to-
ques finais, poderia buscar outras notas, para muito além do que foi
diretamente proposto pela autora. Sabe-se, por exemplo, que as re-
voluções – as que serão efetivamente lembradas pela história – tor-
nam-se via de regra emblemáticas. Esse potencial inspirador, essa
notável capacidade de se tornar um emblema e de despertar ou ins-
pirar outras revoluções em outros tempos e lugares, parece também
acompanhar algumas das principais revoluções conhecidas ao longo
da história, senão todas. Por que não acrescentar esse potencial em-
blematizador à compreensão do acorde conceitual de “revolução”?
A Revolução Francesa (1789), por muitos chamada simples-
mente de “a Revolução”, tornou-se modelar para inúmeras ou-
tras, e inspirou de alguma maneira todo o espírito revolucionário
através de diversas revoltas ocorridas no século XIX e além. O
mesmo ocorreria com a Revolução Russa (1917), inspiração fun-
dadora para as revoluções socialistas, e com a Revolução Cubana
(1959), emblema principal evocado por inúmeros revolucionários
latino-americanos. A Revolução Mexicana de 1910 – a despeito
de seus desdobramentos e acomodações políticas posteriores, e da
sua estranha e mesmo destoante institucionalização através de um
Partido Revolucionário Institucional (PRI) que já pouco tem de
revolucionário86 – tornou-se apesar disso um forte modelo para
movimentos revolucionários no México. O neozapatismo, em
1994, levantou-se evocando a inspiração histórica do grande líder
da Revolução Mexicana de 1910, Emiliano Zapata (1879-1919),
cuja figura foi sintomaticamente trazida do fundo da história para
inspirar um inédito e moderno movimento revolucionário, às por-
tas do século XXI87.

86. O Partido da Revolução foi instituído no México a partir de 1929, com o nome
de Partido Nacional Revolucionário – depois mudando para Partido da Revolu-
ção Mexicana (1938) e, por fim, para Partido Revolucionário Institucional
(1946) – terminando por se tornar hegemônico até o ano 2000 através de su-
cessivas vitórias eleitorais.
87. O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), que começara a se or-
ganizar desde 1983 no estado mexicano de Chiapas, faz a sua primeira aparição
revolucionária com o levante de primeiro de janeiro de 1994.

100
Esse extraordinário potencial mobilizador, ou essa capacidade
de se espraiar como um emblema e de se converter em um incon-
tornável monumento para as gerações futuras – ao lado da profun-
da sensação produzida nos seus próprios contemporâneos de que
ali não se tinha uma mera revolta, mas sim uma revolução com
todas as suas letras – não seria ainda uma derradeira nota a ser
acrescentada à compreensão do acorde conceitual de revolução?
Podemos lembrar os comentários de Gilles Deleuze e Félix Guattari
(1991) sobre esse impressionante aspecto das revoluções:
Tudo seria vão porque o sofrimento é eterno, e as revo-
luções não sobrevivem à sua vitória? Mas o sucesso de
uma revolução só reside nela mesma, precisamente nas
vibrações, nos enlaces, nas aberturas que deu aos ho-
mens nos momentos em que se fazia, e que compõem
em si um monumento sempre em devir, como esses tú-
mulos aos quais cada novo viajante acrescenta uma pe-
dra. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste
nos novos liames que instaura entre os homens, mesmo
se esses não duram mais que sua matéria em fusão e
dão lugar rapidamente à divisão, à traição88.

88. Deleuze e Guattari, 1992, p. 209.

101
17
Revolução ou golpe de Estado?
Um estranho jogo conceitual no
Brasil-ditadura

Percebe-se, através do exemplo atrás discutido, que a con-


ceituação científica deve ser muito mais rica e precisa do que a
conceituação cotidiana. O conceito de “revolução” proposto por
Hannah Arendt mostra-se muito mais aprumado, ao propor um
enriquecimento da sua “compreensão” e uma redução da sua “ex-
tensão”, do que o conceito banalizado proposto por um dicioná-
rio comum. Assim, em uma antiga edição de bolso do Dicionário
Aurélio89 – um dicionário muito utilizado no Brasil pelo grande
público – pode-se ler no verbete “revolução” que essa é uma “re-
belião armada; revolta; sublevação”. Um tal conceito, com tama-
nha redução da sua “compreensão”, mostra-se extensivo a um tal
número de movimentos sociais, ou mesmo de golpes de Estado,
ações criminosas e privadas, insurreições espontâneas e badernas,
que muito pouco se poderia fazer com ele em termos de instru-
mentalização sociológica e historiográfica90.

89. Ferreira, 1975.


90. Na versão completa, o Aurélio acrescenta outras definições possíveis, para
além dessa que coincide com a sua segunda definição proposta. A número 4 é
praticamente tão extensa quanto a segunda (“qualquer transformação violenta da
forma de um governo”). Mas pelo menos a 3ª definição aproxima-se do âmbito
sociológico ao mencionar a transformação social para além da mudança política
(“transformação radical e, por via de regra, violenta, de uma estrutura políti-
ca, econômica e social”). [FERREIRA, 1975].
Foi com uma “compreensão” assim reduzida do conceito de
“revolução” que a ditadura militar de 1964, no Brasil, procurou
afastar de si o estigma de que ali se tinha nada mais nada menos do
que um “golpe militar” direcionado para a conservação de antigos
privilégios e para o abortamento de um movimento social e de um
afloramento da consciência política que começava a se fortalecer.
Admitidas essas características, o golpe de 1964 encaixa-se mais
na noção de “contrarrevolução”, ou pelo menos de “golpe de Es-
tado”, do que qualquer outra coisa91.
Um curioso livro intitulado Golpe de Estado: um manual prá-
tico – criticado e ironizado por Eric Hobsbawm em uma resenha
de 1968 – não oculta um traço essencial dos golpes de Estado, que
se refere diretamente àqueles que o perpetram. “Quem são eles”?
Pertencem, obviamente, a um grupo muito restrito, uma vez que
“os golpes são obra das forças armadas e, praticamente, de nin-
guém mais”92.
Não há praticamente discordância, entre historiadores especia-
lizados no tema, com relação ao fato de que esse período da Histó-
ria do Brasil deve ser abrigado sob o signo da ditadura93. O que se
discute muito hoje, para o caso desse longo e sombrio episódio, é o
qualificativo que se deve agregar à palavra ditadura. Se a nomeamos
“ditadura militar”, chamamos atenção para o papel dos militares no

91. Com relação ao conceito de golpe de Estado, observa Gianfranco Pasquino:


“A revolução se distingue do golpe de Estado, porque este se configura apenas
como uma tentativa de substituição das autoridades políticas existentes dentro do
quadro institucional, sem nada ou quase nada mudar dos mecanismos políticos e
socioeconômicos. Além disso, enquanto a rebelião ou a revolta é essencialmente
um movimento popular, o golpe de Estado é tipicamente levado a efeito por es-
casso número de homens já pertencentes à elite, sendo, por conseguinte, de caráter
cimeiro” (PASQUINO, 2000, p. 1.121).
92. Hobsbawm, 2015, p. 250 (sobre LUTTWACK, 1968).
93. Ditadura pode ser definida como um regime governamental no qual todos os
poderes políticos estão concentrados em um indivíduo, grupo ou partido, que não
foram objeto de escolha da população dominada. O conceito, portanto, refere-se
a um regime. Já “golpe de Estado” se refere mais propriamente ao acontecimento
histórico, ao que ocorreu para se levar esta ditadura ao poder.

103
estabelecimento e manutenção desse regime94. De modo geral, de-
pendendo de como é desenvolvida a análise historiográfica que uti-
liza essa designação, a sociedade civil como um todo pode ser nesse
caso retratada a partir de um papel que a vitimiza. Se nomeamos
esse regime ditatorial como uma “ditadura civil militar”, tal como
propõem alguns historiadores em obras mais recentes, chamamos
atenção para a coparticipação de setores da sociedade civil no apoio
a este regime, ou mesmo de amplos setores populares95. Deixa-se de
vitimizar mais enfaticamente a sociedade civil e passa-se a enfatizar
uma parcela de responsabilidade social desta pelos acontecimentos,
ou de parte dela96. Se, por fim, a este regime ditatorial denomina-
mos “ditadura empresarial-militar”, especificamos mais o setor das
elites que teria apoiado a ação militar de instalação do regime, e que
continuou contribuindo para a sua manutenção.
Além disso, considerado um termo ou outro para o conceito
que se adequaria ao período do regime militar, discute-se também
o período de duração da mesma. Do tradicional recorte 1964-1985,
passa-se à possibilidade de discutir extensões do final do regime
para 1989 (já que foi nesse ano que ocorreu efetivamente a primei-
ra eleição direta para presidente), e também há estranhas propostas
de recortar o período ditatorial brasileiro adiando o seu princípio
(deslocando-o para o recrudescimento do regime em 1968, p. ex.),
ou antecipando o seu final (1979).
É interessante observar que o conceito de ditadura também
tem a sua historicidade, beneficiando-se de sentidos distintos em

94. Esta designação apoia-se no fato de que os militares brasileiros ocuparam não
somente a presidência da República, como também os ministérios, cargos centrais
nos órgãos de administração direta e indireta, estatais, e assim por diante, contro-
lando ainda uma grande rede de informações que tinha no topo o SNI.
95. É habitual a menção às marchas da família com Deus e pela liberdade, que
mobilizaram milhões de pessoas no apoio à ação golpista (19 de março de 1964 e
em 2 de abril, esta última já comemorando o triunfo do golpe).
96. Por outro lado, discute-se se, neste caso, concomitantemente à atribuição de
uma responsabilidade política da sociedade civil pelo golpe, também não vê em
parte diminuída a responsabilidade dos militares pelo golpe e pela manutenção
do regime.

104
momentos e sociedades diversas. No antigo Império Romano, por
exemplo, a sociedade em crise – através de manifestações popu-
lares mais expressivas ou de grupos políticos – poderia conclamar
um ditador a assumir o poder por um certo período (seis me-
ses, p. ex.). Percebe-se que, nesse caso, o conceito de “ditador”
aproxima-se um pouco do que hoje entenderíamos como um “in-
terventor”. O dictator, no sentido que lhe atribuíam os romanos,
era o mais alto magistrado extraordinário, habitualmente nomeado
em situações de perigo externo ou interno, como registram os
livros que constituem a obra Desde a fundação da cidade, de
Tito Lívio (59 a.C.-17 d.C.). Além disso, o conceito romano
distingue-se claramente da compreensão conceitual possível nas
modernas sociedades democráticas, uma vez que a ditadura era
então uma magistratura legal, prevista nas leis romanas como ins-
trumento excepcional de governo97.
Para lembrar um caso de confluência entre dois conceitos, a his-
tória das ideias conhece também a formulação conceitual da “Ditadu-
ra do proletariado”, através de certas obras de Marx, Lenin e outros
autores marxistas e não marxistas98 – sendo essa uma ditadura que
deveria ser imposta por uma revolução proletária como forma de
assegurar a transição para a sociedade sem classes. Aqui, os concei-
tos de revolução e ditadura encontram-se, como uma possibilidade.

97. Os séculos II e I a.C. oferecem-nos os exemplos mais típicos, com as ditaduras


de Caio Mario (157 a.C.-86 a.C.) e Sula (138 a.C.-78 a.C.). Finalmente, o poder
ditatorial conquistado por Julio César (100 a.C.-44 a.C.) em 48 a.C. estabelece o
exemplo mais conhecido.
98. O conceito foi originalmente proposto, em 1848, por Louis Auguste Blanqui
(1805-1881). Em 1° de janeiro de 1852, aparece em um artigo de Jospeh Weideme-
yer para o jornal Turn-Zeitung intitulado “Ditadura do proletariado”. Marx men-
ciona o conceito pela primeira vez, nesse mesmo ano, em uma carta em resposta ao
próprio Weidemeyer. Em Engels, o conceito aparece uma primeira vez em A ques-
tão da habitação (1872). Enquanto isso, Marx o utiliza na Crítica ao Programa de
Gotha (1875). No século XX, a partir de Lenin e de outros, o conceito segue sua
história. V.I. Lenin (1870-1924), p. ex., publica em 12 de abril de 1905, no Jornal
Vperiod (n. 14), um artigo intitulado: “A Ditadura democrática revolucionária do
proletariado e do campesinato”. Dessa forma, agora são as noções de “ditadura”
e de “democracia”, além de “revolução”, que confluem para um único conceito.

105
18
Perversões conceituais
O curioso conceito de “ditabranda”

Conforme já mencionamos anteriormente, a criação de con-


ceitos, quando os que já existem não se mostram perfeitamente
adequados para aprofundar certos aspectos de um estudo, apresen-
ta-se como uma possibilidade para o pesquisador ou para aqueles
que refletem sobre determinado problema científico ou social.
A discussão do capítulo anterior sobre as redefinições de “re-
volução” e seu contraste com o conceito de “golpe de Estado” –
bem como a exemplificação sobre o período da ditadura militar no
Brasil (1964-1985) – levam-nos à possibilidade de exemplificar
um curioso caso de criação de conceitos, embora o mesmo não
tenha florescido sob o signo de uma maior responsabilidade cientí-
fica. De passagem, veremos que novos conceitos – e aqui estamos
nos referindo mais especificamente ao o uso de novas palavras
para expressar novas formulações conceituais – podem ocorrer
tanto nos ambientes científicos e acadêmicos, como na vida co-
mum, nos meios políticos e nos ambientes populares. O exem-
plo de criação conceitual que vamos discutir surgiu, nos meios
populares e políticos, na Espanha dos anos de 1930, e depois o
neologismo passou a ser instrumentalizado por grupos políticos da
mesma época, sendo mais tarde exportado para outros contextos
políticos e históricos.
A Espanha já vivia uma ditadura em 1930, sob o governo do
General Primo de Rivera (1870-1930)99. Ao substituí-lo nesse ano

99. O golpe militar liderado por Primo de Rivera ocorreu em 1923, com a sus-
pensão da constituição, dissolução do parlamento e implantação de uma ditadura,
à frente do governo ditatorial, o General Damaso Berenguer y
Fusté (1873-1953) seguiu governando por decretos, sob o contex-
to da queda da bolsa de valores de Nova York em 1929 e de uma
série de revoltas populares que eclodiam na Espanha diante da
crise econômica que se instalara e dos anseios dos espanhóis de
reconquistarem maior liberdade política. Parte das medidas ado-
tadas por Primo de Rivera, o ditador anterior, foram derrogadas
por Damaso Berenguer, sob um governo que almejava trabalhar
melhor uma imagem de governos ditatoriais militares que já vinha
se desgastando com seu antecessor, o que levara à substituição de
Rivera. Berenguer, todavia, só ocupou o posto de presidente entre
1930 e 1931, quando se estabeleceu a efêmera Segunda República
Espanhola, com eleições diretas. Surgiu, na própria época de Be-
renguer, o curioso e paradoxal conceito de “dictablanda” (em por-
tuguês “ditabranda”). O dado mais paradoxal é que a “ditabranda”
de Berenguer terminou por atingir um maior índice de execuções
políticas do que a própria ditadura que a antecedeu.
O conceito de “ditabranda” estendeu seus usos para contex-
tos posteriores, em países diversos. Trata-se de um conceito que
se revelou por vezes oportuno para governos ditatoriais que não
queriam arcar com o peso do conceito de “ditadura”. Não é a
toa que foi o general-ditador do Chile, Augusto Pinochet (1915-
2006), quem o importou pela primeira vez para a América Lati-
na, dez anos depois de já ter consolidado o seu governo ditatorial
em 1973, após derrubar o governo socialista democraticamente
eleito de Salvador Allende (1908-1973)100. A palavra também foi
utilizada por correligionários e apoiantes do general-ditador ar-
gentino Juan Carlos Ongania Carballo (1914-1995), que instala a
ditadura argentina em 1966 e se faz ditador dessa data até junho

que teve a aquiescência do rei espanhol Afonso III, o qual terminaria deposto,
mas só em 1931, com a instalação da Segunda República Espanhola e a eleição
do primeiro presidente, Niceto Zamora (1877-1949). Esta duraria pouco, pois em
1933 instala-se a Guerra Civil Espanhola, que seria mais tarde vencida por Franco
e seus correligionários, levando à ditadura franquista.
100. Em uma entrevista em setembro de 1983, Pinochet teria declarado, sobre o
seu governo: “Esta não é uma ditadura, é uma dictablanda”.

107
de 1970, quando foi deposto por um novo “golpe de Estado” co-
mandado por Alejandro Lanusse (1918-1966), o qual perpetua o
regime ditatorial, apenas com trocas de atores a testa do poder
político. É interessante lembrar ainda que o estranho conceito de
“ditabranda” também foi utilizado pejorativamente para detratar
governos eleitos democraticamente (e não apenas para amenizar
as ditaduras). Tal foi o caso do uso do conceito de dictablanda por
detratores do primeiro governo argentino de Juan Domingo Perón,
entre os anos de 1946 e 1955. A polêmica conceitual foi trazida
para o Brasil em um editorial do jornal Folha de S. Paulo, de 17
de fevereiro de 2009, que mencionou mais uma vez o conceito de
“ditabranda” com o intuito de argumentar que a ditadura brasileira
de 1964 teria sido mais amena do que outras ditaduras sul-ameri-
canas do período101.
À parte o exemplo da criação do conceito de “ditabranda” que
aqui trouxemos apenas a propósito de lembrar a possibilidade das
surpreendentes alterações conceituais que podem emergir de
determinados contextos históricos – por vezes à maneira de inver-
sões e mesmo de perversões inesperadas – seguiremos no próximo
capítulo com a discussão do exemplo do conceito de revolução,
agora com o fito de examinar outra questão que aparece no uso de
conceitos: a da mobilização de uma rede conceitual que ajuda a
lhe constituir os sentidos.

101. O objetivo central do editorial, intitulado “Limites a Chaves”, era na verdade


criticar o que o editor do jornal percebe como um “endurecimento” do Governo
Chaves na Venezuela de 2009. A escolha infeliz da expressão “ditabranda” para
designar comparativamente a ditadura militar brasileira de 1964, todavia, gerou
uma série de respostas e contrarrespostas do público leitor, também expressa em
cartas publicadas ao jornal.

108
19
Redes articuladas de conceitos
Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros
conceitos, não somente em sua história, mas
em seu devir ou suas conexões presentes. Cada
conceito tem componentes que podem ser, por sua
vez, tomados como conceitos.
DELEUZE & GUATTARI. O que é filosofia?

O exemplo clássico mais atrás discutido (o conceito de “revo-


lução” conforme proposto por Hannah Arendt), permite-nos per-
ceber que a elaboração de uma definição de conceito pode levar
concomitantemente a uma necessidade de especificação de novos
conceitos, bem como requerer novas definições como desdobra-
mentos102. Assim, uma vez que a autora inclui como elemento
inerente ao conceito de “revolução” a ideia de “liberdade”, preo-
cupa-se em definir com muita precisão o que está entendendo por
“liberdade”, já que não se trata aqui da noção vulgar de liberdade.
Desse modo, opõe este conceito ao de “libertação”, também defi-
nido com precisão, além de apresentá-los dentro de um percurso
histórico onde se examina a passagem da antiga noção de liber-
dade a uma noção já moderna. Também não faltam as referências
teóricas e históricas pontuando um e outro caso.
Para confirmar ainda uma vez a diferença de qualidade entre a
conceituação científica e a conceituação vulgar, basta comparar o
conceito altamente elaborado de “liberdade política” em Hannah

102. Ou, como observam Deleuze e Guattari: “Um conceito não exige somente
um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes, mas uma
encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes” (1992,
p. 26).
Arendt com a noção de “liberdade” que aparece registrada na ver-
são de bolso de 1975 do Dicionário Aurélio:
Liberdade. 1) Faculdade de cada um se decidir ou agir
segundo a própria determinação. 2) Estado ou condi-
ção do homem livre.

Já nem será necessário lembrar que na definição “2” o dicio-


nário comete a inadequação lógica de definir uma palavra por ela
mesma, dizendo que “liberdade é o estado ou condição do homem
livre” (definição que não acrescenta nada), e que na definição “1”
(“faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a sua própria
determinação”) uma mesma sequência de palavras poderia se
adaptar à ideia de “tirania” enquanto modo de governar (o tirano
também “age e decide segundo a sua própria determinação”, parti-
cularmente sem consultar bases políticas e sociais).
Assim, para tornar mais científica a segunda definição de li-
berdade (já que a primeira não tem salvação), seria necessário
acrescentar mais elementos, ampliando a sua compreensão e dimi-
nuindo a sua extensão. Está bem, “liberdade é a faculdade de cada
um se decidir ou agir segundo a sua própria determinação”; mas
com respeito a que tipo de ações, observando que tipos de limites
no que se refere ao confronto com a liberdade do outro? Fazendo
acompanhar as decisões e ações de que tipo de consciência? Não
seria necessário nuançar também esse último aspecto para distin-
guir o homem livre do homem louco (que por vezes tem a sua li-
berdade encerrada dentro das paredes de um hospício exatamente
porque “decide e age segundo a sua própria determinação”)? Ou
seria o caso de dizer que “a liberdade é a faculdade socialmente
restringida de decidir ou agir segundo a sua própria determina-
ção”?103 Como se vê, para tornar um conceito utilizável em um tra-
balho científico, é preciso lhe dar um tratamento mais elaborado.

103. Na verdade, a versão completa do Dicionário Aurélio acrescenta, para além


da definição proposta pela versão de bolso, pelo menos uma definição mais sofis-
ticada (a de número 2), onde se diz que liberdade é “o poder de agir, no seio de
uma sociedade organizada segundo a própria determinação, dentro dos limites
impostos por normas definidas” (FERREIRA, 1975).

110
Ainda com relação ao esforço de elaborar a “compreensão”
de um conceito, já destacamos que um conceito mais amplo pode
ir sendo desdobrado em sucessivas divisões conceituais. Assim,
retomando o conceito mais amplo de “revolução”, delineado de
acordo com a “compreensão” proposta por Hannah Arendt, po-
deria ser o caso de se construir uma nova divisão conceitual, que
cindisse a classe maior das revoluções em “revoluções burguesas”
e “revoluções socialistas”.
Por um lado todas as revoluções (de acordo com Hannah
Arendt) possuem em comum certas características – como a mu-
dança política brusca e violenta, a consecução ou o projeto de uma
transformação social efetiva, a presença da ideia de “liberdade po-
lítica” para além da mera “libertação”, e a convicção de um “novo
começo” por parte dos atores sociais. Esse conjunto de atributos
independe de essas revoluções serem “revoluções burguesas” ou
“revoluções socialistas”.
Por outro lado, no que se refere à participação ou ao tipo de
participação de determinados atores ou classes sociais no pro-
cesso de luta, e também ao seu resultado ou intenções em termos
da organização social alcançada ou a alcançar, podem começar a
ser entrevistas as diferenças entre as “revoluções burguesas” (con-
duzidas pelas classes enquadradas dentro da burguesia e almejan-
do uma sociedade fundada na propriedade privada individual e na
expansão capitalista) e as “revoluções socialistas”, conduzidas por
lideranças operárias ou camponesas e motivadas pela possibilida-
de da dissolução das formas de propriedade típicas da sociedade
burguesa (isto é, considerando-se a conceituação de “revolução
socialista” habitualmente proposta pelo marxismo).
Seria possível continuar conduzindo desdobramentos concei-
tuais como esses. Cindir, por exemplo, a classificação das “revolu-
ções socialistas” entre aquelas que tiveram uma participação mais
ativa do proletariado (como a Revolução Russa) e as que tiveram
uma participação mais ativa do campesinato (como a Revolução
Chinesa). Estaríamos desse modo elaborando “compreensões”
mais amplas e “extensões” mais restritas que se desdobrariam nos
novos conceitos de “revolução socialista proletária” e “revolução

111
socialista camponesa”. Cada um desses desdobramentos concei-
tuais passa a se restringir a um número menor de casos que, em
contrapartida, seriam compreendidos de maneira mais rica.
Chega um momento, entrementes, em que a operação de am-
pliar a “compreensão” de um conceito e de reduzir a sua “exten-
são”, ou de desdobrar um conceito mais amplo em novas subdi-
visões conceituais, atinge os seus limites. Conforme já assinalei,
nesse momento saímos do plano generalizador de “revolução”,
para entrar no plano particularizador de cada revolução específica.
Se a Revolução Chinesa e a Revolução Albanesa podem ser carac-
terizadas como “revoluções socialistas camponesas”, o evento da
“Grande Marcha” foi uma especificidade histórica da Revolução
Chinesa. Descrever os vários processos e eventos inerentes a esse
acontecimento único e irrepetível que foi a Revolução Chinesa
já não é mais da esfera da conceituação. Não se pode conceituar
a Revolução Chinesa; pode-se enumerar as suas características,
descrever aspectos essenciais do seu desenrolar histórico, e assim
por diante. Descrições e definições não conceituais também são
necessárias aos estudos históricos e sociológicos, mas são de outra
natureza que não a das operações da conceitualização.

112
20
Buscando a medida adequada
entre a compreensão e a
extensão de um conceito

Um ensinamento pode ser extraído dos exemplos anteriores.


Em boa parte dos casos, a definição proposta para um conceito não
deve ser nem excessivamente ampla e complexa, nem demasiado
estreita e simplista, existindo uma medida mais ou menos adequa-
da que o autor deve se esforçar por atingir. Definir “revolução”
de maneira demasiado estreita, incorporando às suas caracterís-
ticas apenas a tomada do poder e fazendo-a significar “qualquer
movimento social armado”, seria tão problemático quanto definir
“revolução” de maneira extremamente carregada de característi-
cas, a tal ponto que dentro dessa designação só coubesse um único
exemplo histórico de revolução. Tais procedimentos são inúteis
do ponto de vista científico. Para que um conceito que se refere a
apenas um objeto ou processo singularizado, que é o que ocorre
nesse último caso, e para que um conceito no qual todos os obje-
tos terminam por caber? Em uma situação, ao se referir a um só
caso, o conceito perde todo o seu potencial de generalização e de
funcionar como um instrumento para comparar objetos distintos.
Na outra situação, ao se aplicar a todos os casos, a generalização
é inócua, e também não há mais objetos a comparar e contrastar
entre si, ou singularidades a identificar. A extensão total derivada
de uma compreensão abaixo do mínimo é uma extensão inútil.
Podemos lembrar um exemplo já proposto anteriormente. “Ho-
mem” (“ser humano”) não pode ser definido simplesmente como
um “mamífero bípede”, já que existem inúmeros outros animais
que são mamíferos bípedes mas que não são homens; também não
pode ser definido como “um animal que habita cidades construídas
por ele mesmo”, já que existem homens que vivem no campo e não
em cidades, sem falar nas sociedades humanas que não investiram
na urbanização (como os povos indígenas brasileiros ou os abo-
rígines australianos). Nesse último caso a “expressão definidora”
redundou em uma extensão demasiado estreita (mais estreita do
que seria adequado), notando-se ainda que a compreensão do con-
ceito incluía uma característica que não é de modo algum essencial
ao gênero humano, mas apenas eventual (a urbanidade). Já no pri-
meiro caso (“o homem é um mamífero bípede”), a “expressão
definidora” resultou em uma extensão mais ampla do que seria
necessário, mencionando apenas uma combinação de duas carac-
terísticas que não pertencem exclusivamente ao gênero “homem”
(mamífero bípede).
Conforme já se disse, quem sabe se a definição do “homem”
como “construtor de cidades” não poderia ser melhorada atribuin-
do-se uma maior amplitude ao aspecto faber (construtor) regis-
trado na “expressão definidora” proposta? O homem seria então
definido como “um animal que constrói” (não apenas cidades, mas
também ocas como os indígenas, e também ferramentas, armas,
utensílios). Ou, na mesma linha, poder-se-ia tentar uma definição
adaptada daquela que foi proposta por Marx e Engels: “O homem
é o único animal capaz de produzir as suas próprias condições
materiais de existência”104. Essa definição, se por um lado registra
a inserção do homem no mundo animal, por outro lado procura
diferenciá-lo como animal capaz de produzir inventivamente as
suas próprias condições de vida, interferindo na natureza. Mas en-
tão sempre surgiria alguém para dizer que o pássaro joão-de-barro
também constrói o seu ninho, ou um castor a sua represa, de modo
que seria preciso acrescentar que o homem produz os seus meios

104. “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião,
pelo que se queira. Eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo
começam a produzir os seus meios de vida, um passo condicionado pela sua or-
ganização corporal. Ao produzirem os seus meios de vida, os homens produzem
indiretamente a sua vida material mesma” (MARX & ENGELS, 1989, p. 57).

114
de vida transformando os materiais que a natureza oferece, e não
apenas coletando-os105.
Esses tateamentos em busca de uma definição mais ajustada
mostram as imprecisões que os estudiosos devem enfrentar dian-
te da aventura de conceituar e de definir, bem como de ajustar a
compreensão dos conceitos à extensão formada pelos casos possí-
veis de sua aplicação. Temos ali o conceito de “revolução”, cuja
compreensão vai sendo insistentemente assaltada e torturada pelas
hordas de militares golpistas, para que na extensão dela desdobra-
da caibam em boas letras os mais sinistros movimentos dos quais
secretamente se envergonham, em parte devido às inconvenientes
pressões exercidas por um outro conceito, o de “democracia”. E
acolá temos Plutão, banido de uma confraria de planetas na qual
já se acomodava há cinco milênios, de modo a se evitar que outros
quatro pequenos planetas recém-descobertos – alguns dos quais
com suas órbitas demasiado complexas e perturbadoras – pudes-
sem entrar ruidosamente pelas janelas da extensão de um conceito
no qual já repousava placidamente um modelo bem organizado de
sistema solar.

105. Mesmo quando os homens organizam-se em comunidades de coletores, cos-


tumam utilizar-se, para a coleta, de utensílios por eles mesmos fabricados, e não
simplesmente encontrados na natureza.

115
21
A permanente reelaboração dos
conceitos e o seu polissemismo
possível

Uma lição, ainda, pode ser colhida dos exemplos até aqui
discutidos: nenhum conceito é definitivo, sendo sempre possível
redefini-lo. Se Hannah Arendt definiu “revolução” a partir do seu
caráter originário de movimento social, enriquecendo a compreen-
são dessa formulação conceitual e concomitantemente operando
sucessivos recortes na sua extensão, o mesmo conceito pode
adquirir um enfoque bem diferente, mas igualmente válido, como
aquele proposto por Krzystof Pomian (n. 1934):
Efetivamente, qualquer revolução não é mais que a
perturbação de uma estrutura e o advento de uma nova
estrutura. Considerada neste sentido, a palavra “revo-
lução” perde o seu halo ideológico. Já não designa uma
transformação global da sociedade, uma espécie de
renovação geral que relega para a sua insignificância
toda a história precedente, uma espécie de ano zero a
partir do qual o mundo passa a ser radicalmente dife-
rente do que era. Uma revolução já não é concebida
como uma mutação, se não violenta e espetacular, pelo
menos dramática; ela é, muitas vezes, silenciosa e im-
perceptível, mesmo para aqueles que a fazem; é o caso
da Revolução Agrícola ou da Revolução Demográfica.
Nem sequer é sempre muito rápida, acontece que se
alongue por vários séculos. Assim (como o demons-
tram François Furet e Mona Ozouf), uma estrutura
cultural caracterizada pela alfabetização irrestrita foi
substituída por outra, a da alfabetização generalizada,
no decurso de um processo que, na França, durou cerca
de trezentos anos (POMIAN. História estrutural)106.

“Revolução”, segundo a “compreensão” proposta por Pomian,


já não é necessariamente uma mudança brusca (“acontece que se
alongue por vários séculos”) ou sequer violenta (“ela é muitas ve-
zes silenciosa e imperceptível”). Tampouco é concebida como um
novo começo (“essa espécie de ano zero a partir do qual o mundo
passa a ser radicalmente diferente do que era”). Por outro lado,
implica necessariamente a passagem de uma “estrutura” a outra.
Dessa forma, associada ao conceito de “estrutura” tal como foi
proposto pelos historiadores dos Annales107, “revolução” passa a
ter a sua “extensão” aplicável a uma série de outros fenômenos
para além dos movimentos políticos, como a “Revolução Agríco-
la” ou a “Revolução Demográfica”.
Novas possibilidades surgem com a utilização da palavra “re-
volução”; não mais somente como um “conceito agrupador”, capaz
de reunir em uma única categoria as revoluções político-sociais
específicas (as revoluções Francesa, Russa, Chinesa e outras), mas
também como um “conceito transversal” que – agregado a certos
adjetivos – pode cortar ou tangenciar a realidade humana mais
ampla em fenômenos variados como a Revolução Agrícola, Re-
volução Urbana, Revolução Industrial ou Revolução Digital, cada
um dos quais inaugurando novas épocas ou eras na história da hu-
manidade. Depois disso, surgem ainda as formulações conceituais
que falam em revoluções artísticas, científicas, comportamentais,
entre outras, agora como referência a movimentos que foram bem-
sucedidos em transformar globalmente a arte, ciência, literatura,
costumes, comportamento ou sexualidade108.

106. Pomian, 1990, p. 206 [original: 1978].


107. [1] Braudel, 1958, p. 49-50. [2] Chaunu e Chaunu, 1955-1960.
108. Fala-se conceitualmente, p. ex., em uma “Revolução Sexual”. Com frequên-
cia a expressão é utilizada para se referir à radical mudança nos comportamentos
sexuais e amorosos que aflora em diversos países ocidentais, ao menos em alguns
setores da sociedade, entre as décadas de 1960 e de 1970. Wilhelm Reich (1897-
1957), por outro lado, já havia utilizado a expressão Revolução Sexual como tí-

117
Cada uma dessas aberturas ou redirecionamentos na extensão
do conceito de revolução associa-se, necessariamente, a redefini-
ções no conjunto de notas que devem constituir a sua compreensão
ou o seu acorde conceitual.
A alternativa de associar o conceito de “revolução” a toda e
qualquer substituição radical e mais ou menos rápida de estruturas,
para muito além dos aspectos exclusivamente políticos e sociais,
não foi evidentemente uma novidade introduzida pela perspectiva
dos Annales, uma vez que foi Gordon Childe (1892-1957), um
arqueólogo e historiador marxista nascido na Austrália, o primeiro
pesquisador a se referir mais claramente a uma “revolução agríco-
la” (talvez o primeiro uso transversal do conceito de revolução).
Esta – ou ao menos a primeira das revoluções agrícolas – teria
sido a também chamada “revolução neolítica”, ocorrida em par-
tes diversas do planeta entre 10000 e 8000 a.C.109 A Revolução
Agrícola corresponderia a essa transição crucial que demarcou a
ultrapassagem de um mundo paleolítico estritamente baseado no
nomadismo e atravessado por uma cultura apropriativa em relação
à natureza – uma estrutura que, de resto, havia caracterizado a
vida humana por mais de dois milhões de anos, desde os tempos
do homo habilis – e que subitamente trouxe o surpreendente aflo-
ramento de um novo mundo baseado no sedentarismo e nas possi-
bilidades de planejar o cultivo e domesticar os animais.

tulo de um dos seus livros (1936), referindo-se na segunda parte da obra a uma
revolução na sexualidade que teria acompanhado a Revolução Russa desde seus
primórdios, mas terminando por abortar definitivamente com o desenrolar do to-
talitarismo stalinista, sobretudo a partir do final dos anos de 1920 (REICH, 1969,
p. 102-174).
109. O espraiamento global da Revolução Agrícola, ou a sua eclosão em um
número maior de lugares, teria mesmo abrangido um período mais dilatado, de
10000 a 4000 a.C. Enquanto isso, nem bem a Revolução Agrícola já tinha comple-
tado a afirmação irreversível de seu espalhamento pelo globo terrestre, e mesmo
um pouco antes desse termo, uma nova melodia já se iniciava na grande sinfonia
da história da humanidade. A Revolução Urbana, com transformações ainda mais
surpreendentes, inicia-se no século V a.C. no Crescente Fértil do Oriente Médio,
e depois a vemos na China, Índia e Egito.

118
Podemos nos perguntar, se ainda considerarmos a rapidez do
processo como um elemento fundamental para a compreensão do
conceito de revolução, como poderia merecer esse nome um pro-
cesso que demora cerca de dois mil anos para se alastrar efetiva-
mente por toda a humanidade. Contudo, se estendermos o olhar de
acordo com uma perspectiva mais longa, facilmente perceberemos
que dois mil anos constituem uma duração efetivamente muito cur-
ta diante de um período muito mais largo de dois milhões de anos.
A relatividade das noções de “rapidez” ou “lentidão” seria o
passe para explicar a adequação de chamarmos de “revolução” a
um processo de dois mil anos devidamente enquadrado por uma
pré-história de longuíssima duração, da mesma forma que logo
teríamos uma segunda revolução importante na história da huma-
nidade – a “Revolução Urbana” – demarcadora da igualmente sur-
preendente passagem da última fase da pré-história para o mundo
histórico das cidades, da escrita, da divisão multifuncional do tra-
balho, da metalurgia, da roda e das primeiras civilizações110. De
fato, o tempo é relativo. Uma revolução que, irrefreável como uma
onda, desenrolou-se pelo mundo por dois mil anos até dominar
definitivamente toda a paisagem planetária com suas aldeias agrí-
colas, e outra que levou um tempo não muito menor para instalar
um número significativo de cidades em boa parte das regiões ha-
bitadas, podem ser consideradas tão “rápidas” como a Revolução
Digital que, em tempos recentes, somente precisou de duas déca-
das para revolucionar o mundo da comunicação e da informação,
instituindo a sociedade digital.
Acerca da multiplicação de sentidos possíveis para um mes-
mo conceito – ou da formação de diferentes acordes conceituais
abrigados sob o mesmo termo – pode-se dar que o polissemismo
esteja presente até mesmo em um único autor, mas referindo-se
a situações diversas. Em Marx ou Engels, por exemplo, ocorre
que às vezes – como em A ideologia alemã (1845) – a expres-
são “revolução” apareça relacionada com o salto de um modo de

110. Também o conceito de “revolução urbana” foi proposto pela primeira vez por
Gordon Childe. Cf. Childe, 1950, p. 3-17.

119
produção para o seguinte111. Nesse sentido, portanto, o conceito
também pode incorporar potencialmente fenômenos como a “Re-
volução Agrícola” ou a “Revolução Urbana”, de maneira similar
ao enfoque proposto por Gordon Childe e que aparece de uma
nova maneira em Pomian. Marx e Engels, entrementes, também
empregam a expressão “revolução” no seu sentido mais propria-
mente político, referindo-se a movimentos sociais específicos – o
que implica um enfoque mais próximo do proposto por Hannah
Arendt, embora bem mais flexível (ou “extenso”)112. Por fim, há
ainda momentos em que – ultrapassando o uso da designação
“revolução social” estritamente usada para processos históricos e
políticos mais pontuais e específicos (a Revolução Francesa de
1789, p. ex.) – Marx ou Engels discorrem sobre “revoluções bur-
guesas” de mais longo termo, as quais abarcariam, através de um
encadeamento mais extenso que comporta grandes avanços e pe-
quenos recuos, vários episódios revolucionários mais específicos.
Dessa maneira, deveria ser rebaixada do status conceitual de “re-
volução”, e recompreendida como um “episódio revolucionário”,
a Revolução Francesa propriamente dita – aqui entendida como
aquele acontecimento explosivo que se inicia em 1789 e prosse-
gue até a Primeira República (1791), para mais tarde se dissolver
no diretório (1795) e no período napoleônico (1799). Essa peque-
na década revolucionária mais não seria do que um dos diversos
episódios cruciais que fariam parte de um processo de oitenta anos
correspondente a uma revolução burguesa francesa mais extensa,
a qual somente se consolida em 1870113.

111. A ideia de “revolução” como substituição de um modo de produção por outro,


se tornou típica do marxismo economicista da Segunda Internacional. O texto fun-
damental de Marx que autoriza este uso conceitual é o “Prefácio” da Contribuição
à crítica da economia política, de 1859.
112. Assim, movimentos sociais que não seriam considerados como “revoluções”
por Arendt, como alguns movimentos sociais do século XVI, são referidos como
tais por Marx e Engels, na verdade mais com o sentido de “processos ou movimen-
tos revolucionários” do que como “revoluções” que se estabelecem definitivamente.
113. Em certa passagem de Maquiavel, a política e o Estado moderno (1932-
1934), Antonio Gramsci (1976, p. 46) adota essa mesma perspectiva sobre as re-
voluções burguesas de longo prazo, evocando precisamente o exemplo de uma
revolução francesa estendida.

120
Passando a outro componente conceitual, seria possível ain-
da rediscutir a nota “violência”, bastante presente na maioria dos
acordes conceituais de revolução que têm sido elaborados por au-
tores diversos. Seria a “violência” um aspecto inerente a todo e
qualquer processo revolucionário? Discute-se que, mesmo com
relação às revoluções transversais, como por exemplo a Revolu-
ção Industrial, existe sempre uma certa violência implicada. Para a
instalação generalizada de indústrias, existe expropriação de terras
que deixa atrás de si milhares de despossuídos, bem como migra-
ções de mão de obra que certamente violentam a vida dos traba-
lhadores já adaptados à situação anterior, e mesmo a violência do
desemprego, implicada pela formação de um grande exército de
mão de obra excedente que deve viver à míngua para favorecer o
barateamento da força de trabalho. De maneira análoga, se pensar-
mos nas profundas transformações pertinentes à Revolução Agrí-
cola, pode-se argumentar que a instalação pioneira da agricultura
no período neolítico deve ter deixado atrás de si os seus desajusta-
dos e reprimidos, tanto no que se refere a indivíduos coletores que
não se tenham se adaptado ao novo modo de vida como no que se
refere às possíveis disputas territoriais demandadas pela transfor-
mação do solo em espaços agrícolas.
De acordo com essas perspectivas acerca da Revolução In-
dustrial ou da Revolução Agrícola, a violência poderia ser pen-
sada como um item recorrente, ainda que de maneira encoberta
em muitos casos, mesmo nas revoluções transversais. Podemos
lembrar a sarcástica metáfora de Thomas Morus (1478-1535), em
Utopia (1516)114, ao se referir às radicais mudanças que começa-
vam a se impor com o desenvolvimento da economia da lã na In-
glaterra de sua época – um processo no qual a substituição de áreas
de cultivo por passagens para carneiros desalojava os camponeses
das áreas rurais e os obrigava a mudar para as cidades, violentando
seus modos de vida:

114. Morus, 1980 [original: 1516].

121
[Os carneiros], esses animais tão dóceis e tão sóbrios
em qualquer outra parte, são entre vós de tal sorte vo-
razes e ferozes que devoram mesmo os homens e des-
povoam os campos, as casas, as aldeias.

Sim, as revoluções, mesmo as transversais (e não apenas as


que constituem movimentos sociais ou políticos específicos), com-
portam a possibilidade de muitas formas de violência115. Talvez
apenas com a bela exceção das “revoluções artísticas” – as quais
no máximo hão de violentar os gostos e estéticas tradicionais –
as revoluções transversais não deixam de ser como destruidores
tsunamis. Ao afetar a humanidade como um todo, boa parte das
revoluções transversais não apenas permitem, como na verdade
obrigam a que a maior parte dos diversos grupos humanos atra-
vessem os portais que demarcam o surgimento de novas eras. Se
há ganhos, há sempre uma perda e pequenas ou grandes violências
também nas mais benéficas das revoluções transversais.
As revoluções científicas trazem o melhor exemplo. Não se
passa impune do mundo newtoniano ao universo da relatividade,
dos labirintos quânticos, do desvendamento do átomo. Os extraor-
dinários progressos da física nuclear – que talvez salvem a espécie
humana daqui a muitos anos ao permitir viagens espaciais que nos
permitirão sobreviver à própria vida útil do planeta – carregam na
sua história as suas manchas japonesas. A medicina, coroada com

115. A chamada Revolução Comercial, p. ex., em um período que atravessa a


Idade Média a partir do século XII e se estende através da Idade Moderna até
chegar ao século XVIII, também deixou seus rastros de violência e de escravidão.
O mesmo se pode dizer do período manufatureiro. Sobre o período da acumula-
ção primitiva, que prepara a instalação do modo de produção capitalista, assim
se refere Karl Marx ao discutir a violência que se abate tão intensamente sobre
os grupos sociais que deveriam oferecer seus braços para a futura constituição
de uma força de trabalho de novo tipo: “Os pais da atual classe operária foram
duramente castigados por terem sido reduzidos ao estado de vagabundos e pobres.
A legislação os tratou como criminosos voluntários, supondo que dependia de
seu livre-arbítrio o continuar trabalhando como no passado e como se não tivesse
sobrevindo nenhuma mudança em sua condição de existência” (MARX, 2004,
p. 47) [original: 1867].

122
seus extraordinários benefícios para a vida humana, traz em sua
gloriosa história os filhos da talidomida116.
Reconhecido isso, permanece ainda a pergunta: A violência
será necessariamente uma condição incontornável para todas as
revoluções, e por todo o sempre? Seria possível atingir, ou ao me-
nos imaginar, uma revolução pacífica? Com relação às revoluções
definíveis como “movimentos sociais”, a experiência do Chile – à
qual Peter Winn chamou de Revolução Chilena117 – parece tra-
zer o interessante exemplo de uma revolução socialista alcançada
através da vitória eleitoral. A experiência inaugurada pelo gover-
no socialista de Salvador Allende (1908-1973), como se sabe, foi
depois interrompida pela ditadura militar instaurada por Pinochet
entre 1973 e 1990, no seio da série repetida de golpes militares
promovidos ou estimulados pelos Estados Unidos contra as repú-
blicas latino-americanas.
A experiência chilena, de todo modo, faz hoje parte da his-
tória revolucionária do socialismo. No mesmo âmbito de práti-
cas históricas e de reflexões que têm tateado o mundo político em
busca de uma revolução não violenta, podemos lembrar também
a experiência e as propostas anarco-pacifistas encaminhadas por
Mahatma Gandhi (1869-1948), as quais foram conduzidas através
de um persistente movimento de luta pela independência contra
a Inglaterra. A revolução pacifista de Gandhi, por outro lado, não
deixou em nenhum momento de ser contraponteada por violências
de todos os tipos em embates que envolveram hindus, muçulma-
nos, ingleses e outros atores coletivos118.

116. A talidomida foi um medicamento sedativo desenvolvido na Alemanha em


1954, e cuja comercialização, a partir de 1957, terminou por provocar efeitos ines-
perados em muitos processos de gravidez, gerando milhares de casos de focomelia
(aproximação ou encurtamento dos membros junto ao tronco do feto). O efeito
só foi identificado em 1961, provocando a retirada imediata do medicamento no
mercado mundial.
117. Ou, ainda, “a via chilena para o socialismo” (1986).
118. Ademais, em diversas oportunidades Gandhi utilizou a greve de fome como
recurso para converter a violência – seja a violência dos ingleses contra os india-
nos, seja a violência dos indianos de diferentes religiões e castas uns contra os
outros. Ironicamente, a greve de fome também não deixa de ser uma violência
contra o próprio corpo.

123
Ainda sobre a variedade de possíveis elaborações conceituais,
lembro que dois autores podem chegar a uma “compreensão” mais
ou menos próxima e, no entanto, diferirem significativamente na
sua concepção concernente à “extensão” do conceito, uma vez que
discordem em relação a quais casos observáveis se enquadrariam
no conceito proposto. Assim, o cientista político italiano Gianfran-
co Pasquino (n. 1942), ao ser encarregado de elaborar o verbete
“revolução” para o Dicionário de Política coordenado por Norbert
Bobbio (1909-2004)119, terminou por chegar a uma compreensão
deste conceito bastante compatível com a de Hannah Arendt, uma
vez que nela combina os aspectos do movimento social, violência,
intenção de promover efetivamente mudanças profundas nas rela-
ções sociais, além do sentimento do novo120. No entanto, no exame
dos casos empíricos – isto é, na avaliação de que processos histó-
ricos daí se enquadrariam na categoria “revolução” – discorda da
afirmação de que a Revolução Americana tenha sido efetivamente
uma revolução, preferindo enxergá-la como uma “subespécie da
guerra de libertação nacional”121. Por outro lado, já admite que
a Revolução Francesa teria de fato introduzido uma mudança no
conceito de “revolução”, passando-se à fé na possibilidade da cria-
ção de uma ordem nova. Assim, apesar de uma “compreensão”
relativamente próxima ou compatível de um mesmo conceito, os
dois autores divergem no que se refere ao ajuste dos casos concre-
tos à “extensão” atribuída a este conceito.
Pode-se criticar, em muitas formulações conceituais, a arbitra-
riedade proposta por um autor para a “extensão” de um conceito,
depois de ele mesmo ter empreendido uma determinada delimita-
ção da sua compreensão. Já mencionei anteriormente a regra da

119. Pasquino, 2000, p. 1.121.


120. Além disso, incorpora implicitamente o fator da “liberdade” no mesmo sen-
tido compreendido por Arendt ao distinguir a revolução da mera luta de liberta-
ção (PASQUINO, 2000, p. 1.125). Por outro lado, Pasquino distende um pouco
mais a “compreensão” do seu acorde conceitual ao se referir à revolução como
uma “tentativa” de mudanças, e não como movimentos sociais necessariamente
bem-sucedidos. A esse respeito, menciona o subconceito de “revolução frus-
trada”. Já Arendt refere-se exclusivamente a movimentos sociais bem-sucedidos
quando busca exemplos de revoluções.
121. Pasquino, 2000, p. 1.125.

124
conversibilidade: a definição deve ser conversível ao definido122.
Também podem ser criticados os casos em que a compreensão do
conceito é construída de cima para baixo, como mero constructo
ideal, sem considerar a experiência da vida e as situações concre-
tas que deveriam inspirá-la, ou uma análise honesta da totalidade
de casos que podem dar ou não sustentação à formulação concei-
tual proposta. Em muitos casos, o conceito é construído apenas na
mente, e depois se tenta forçar os casos concretos a caberem
na sua compreensão forjada idealmente. Ou então são deixados
de fora alguns casos em detrimento de outros, sem muito critério
(novamente uma desatenção à regra da conversibilidade). É essa a
crítica que o historiador Eric Hobsbawm, em sua obra Revolucio-
nários (1973), dirige contra a formulação de Hannah Arendt para
o conceito de “revolução”:
A primeira dificuldade encontrada em Hannah Arendt
pelo historiador ou sociólogo dedicado ao estudo das
revoluções é um certo matiz metafísico e normativo do
seu pensamento, que se combina com um antiquado
idealismo filosófico, às vezes plenamente explícito. Ela
não considera suas revoluções tal qual ocorrem, mas
constrói ela própria um tipo ideal, definindo seu tema
de estudo em função deste e excluindo o que não se coa-
duna com suas especificações. Podemos observar, de
passagem, que ela exclui tudo que não esteja situado na
zona clássica da Europa Ocidental ou do Atlântico Nor-
te, pois seu livro não contém nem mesmo uma referên-
cia superficial – os exemplos surgem à mente – à China
ou a Cuba; nem poderia ter feito certas afirmações se
não tivesse refletido o mínimo sobre aqueles casos123.

122. Uma definição deve valer para todos os sujeitos e objetos que se incluem
ou se pretende incluir no âmbito de aplicação da coisa definida (a extensão do
conceito), e tão somente para esses sujeitos e objetos. Vale dizer, não pode haver
distoância entre a compreensão e a extensão de um conceito, pois esses polos de-
vem ser ajustáveis, afinados um ao outro. Mutuamente conversíveis.
123. Neste ponto, Hobsbawm insere uma nota de pé de página citando uma
passagem de Hannah Arendt: “P. ex.: ‘as revoluções sempre parecem triunfar
com surpreendente facilidade em uma etapa inicial’”. [depois disso, prossegue
Hobsbawm] “Na China? Em Cuba? No Vietnã? Na Iugoslávia do tempo da
Guerra?” (HOBSBAWM, 2015, p. 261).

125
A afinação entre compreensão e extensão, bem como a har-
monização das notas que constituem a compreensão com os traços
que podem de fato ser encontrados para o fenômeno analisado nos
casos que emergem da experiência e da vida – sem exclusões in-
justificadas – é uma questão de primeiro plano para uma adequada
formulação conceitual.
Esses exemplos, entre tantos outros que poderiam ser referi-
dos, são suficientes para mostrar que, ao procurar precisar os con-
ceitos que irá utilizar, o estudioso ou pesquisador pode ter diante
de si uma gama relativamente ampla de alternativas. É essa va-
riedade de possibilidades – verdadeira luta de sentidos diversos
que se estabelece no interior de uma única palavra – o que torna
desejável uma delimitação bastante clara do uso ou dos usos que
o autor pretende atribuir a uma determinada expressão-chave de
seu trabalho.

126
22
Mais um acorde conceitual
de revolução

Quero finalizar esta parte com a elaboração de mais um acor-


de conceitual de revolução, ou com algumas adaptações nas com-
preensões anteriores com vistas a um escopo mais amplo. Penso
na possibilidade de encontrar uma compreensão para esse con-
ceito que implique uma extensão que abarque tanto aos exemplos
conhecidos de “revoluções político-sociais” (movimentos sociais
como a Revolução Francesa, Revolução Russa, Revolução Cuba-
na, e muitas outras), como também os exemplos de “revoluções
transversais” – sendo estas últimas definíveis como aquelas que
se referem à humanidade como um todo, e não apenas a socieda-
des específicas enquadradas no âmbito territorial de certos paí-
ses. Dentre as revoluções transversais, conforme já foi pontuado
anteriormente, destacam-se em primeiro plano aquelas grandes
revoluções transversais cuja eclosão e consolidação demarcaram
novas eras na história da humanidade: a Revolução Agrícola, Re-
volução Urbana, Revolução Industrial, Revolução Digital. O que
virá ainda? A “Revolução Estrelar”, que lançará a humanidade na
aventura cósmica, a partir da possibilidade técnica da viagem a
outros mundos, e que nesse movimento instituirá um modelo ra-
dicalmente novo para a vida humana? A Revolução Recriadora,
uma espécie de “revolução revolutiva” através da qual os seres
humanos não mais apenas interferirão na natureza, mas mesmo
a recriarão através da manipulação genética? Que novos eventos
nos alçarão a novos patamares revolucionários? A robótica avan-
çada, as viagens através do tempo, o teletransporte?
Entrementes, não de menos importância e de resto também
incluíveis entre as revoluções transversais, teríamos ainda as re-
voluções que se referem mais propriamente a campos específicos
da atividade humana: a arte, a ciência, o comportamento (o sexo,
p. ex., ou a relação entre os gêneros). Poderíamos falar, assim, nas
revoluções artísticas, nas revoluções científicas, na Revolução Se-
xual, como também se fala por vezes em uma revolução comercial
ocorrida no entremeado da fase final da Idade Média e da primeira
fase da Idade Moderna.
Pensemos em todo esse grande conjunto de revoluções, à prin-
cípio cindido em duas metades: o eixo agrupador das revoluções
relacionadas aos movimentos sociais, e o eixo correspondente às
revoluções transversais. O que une, em termos de notas que possam
compor uma compreensão conceitual, a todas essas revoluções?
Que acorde podemos propor, com base no que vimos até aqui?
Em primeiro lugar as revoluções apresentam, em todos os
casos, uma grande e surpreendente “rapidez processual” [1]. As
revoluções correspondem a processos que se desenvolvem muito
rapidamente em relação a um certo padrão ou ritmo preexisten-
te. Conforme já vimos, a rapidez precisa ser compreendida como
um componente relativo ao enquadramento que se tem em vista.
A década que, em um piscar de olhos da história, estabeleceu a
Revolução Digital (anos de 1990) foi de certa forma tão rápida na
sua capacidade transformadora como os quatro ágeis milênios de
Revolução Agrícola que mudaram a face de um modelo de mundo
pré-histórico que já perdurava há dois milhões de anos de existên-
cia humana ou proto-humana. A “rapidez processual” é típica tan-
to dos movimentos sociais que podem efetivamente ser chamados
de revolucionários, como das revoluções transversais que têm mu-
dado em diversas oportunidade, a face de todo o mundo humano.
Sobre a extraordinária rapidez com que ocorrem as revolu-
ções, pode-se acrescentar ainda que ela faz com que os movimen-
tos e processos revolucionários pareçam verdadeiros “saltos” aos
olhos dos seus contemporâneos, ou mesmo aos historiadores que
as examinam retroativamente. Nesse aspecto em particular, as re-
voluções contrapõem-se às evoluções, pois essas últimas, ainda

128
Compreensão

Poten
terno cial
e n to in em
ble
lo ram Exten má
Af sivi ti c
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ncia Inten e
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Destruição
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ca
R tiv

a
Revolução Revolução
Francesa Agrícola
Extensão
Revolução
Mexicana
Revolução
Revolução Urbana
Russa
Revolução
Revolução Outras... Industrial
Chinesa
Revoluções Revolução
Revolução Digital
Cubana artísticas

Revoluções
científicas

Revoluções
comportamentais

129
que igualmente transformadoras, em geral parecem lentas, gra-
duais, progressivas (ou regressivas, se estivermos diante das in-
voluções). Exemplo clássico é a evolução das espécies animais e
vegetais, ou a própria evolução do corpo humano.
Além da rapidez processual, para que se tenha uma revolução
é preciso que seja identificável uma “persistência significativa”
[2]. Uma revolução político-social que é logo debelada, não era
uma revolução – ou não chegou a se converter em uma revo-
lução – mas constituiu, sim, uma revolta, rebelião, conjuração ou
inconfidência. Vamos supor, para já nos referirmos a um exemplo
de revolução transversal, que a Revolução Industrial pudesse ter
sido interrompida pelo efêmero movimento luddista, que foi uma
rebelião contra a mecanização do trabalho proporcionada pelo pro-
cesso de industrialização124. Caso tal situação possa ser imaginada,
a Revolução Industrial teria sido efêmera e logo retroagido, e hoje
não passaria de um caminho não percorrido na história. Não nos
referiríamos a ela, hoje, como uma “revolução”. Uma revolução,
já consolidada, precisa se estabelecer durante um período signi-
ficativo para ser digna desse nome. Se esse período significativo
deve ser o de alguns anos ou décadas, para o caso dos movimen-
tos sociais, ou de décadas ou séculos, para o caso das revoluções
transversais, essa é uma questão a ser meditada para cada caso.
Geralmente esse período significativo no qual persiste uma re-
volução (ou os seus resultados) torna-se um fator importante para
que a revolução deixe suas marcas para a posteridade. A Revolu-
ção Russa (1917) a deixou, assim como a Revolução Mexicana
(1910), para não falar da Revolução Francesa (1879), marco inicial
das revoluções modernas125. Quanto às revoluções transversais que

124. O luddismo eclode na Inglaterra em 1811, e tem seu nome derivado de Nedd
Ludd, um personagem que passa a ser evocado como símbolo do movimento de des-
truição das máquinas e cujo nome costumava aparecer nos manifestos dos luddistas.
125. Infelizmente, a revolução anarquista, ou a quase-revolução anarquista que
recobriu grandes regiões da Espanha durante a Guerra Civil Espanhola (1936-
1939), não apresentou essa persistência significativa, de modo que não é lembrada
habitualmente como uma revolução, apesar das mudanças radicais que persistiram
por algum tempo em termos de coletivização, autogestão.

130
abrem novas eras na história humana em geral, essas parecem per-
durar sequencialmente e entram umas por dentro das outras, como
se estivéssemos diante de uma grande polifonia de processos his-
tóricos. Nesses casos, uma revolução não parece cancelar a outra
(não se substitui à outra) e sim a incorpora. Assim, pelo menos, pa-
rece ter acontecido com relação às grandes revoluções transversais
até hoje conhecidas.
A melodia iniciada pela Revolução Agrícola seguiu adiante
quando começou a ressoar a melodia da Revolução Urbana, e as
duas prosseguem quando a elas se junta a ruidosa melodia inau-
gurada pela Revolução Industrial. Mais recentemente, assoma-se
à história humana esse novo contracanto que é o da Revolução
Digital. Essas melodias podem se interromper um dia. Uma guerra
atômica poderia acabar com elas e devolver a humanidade à Idade
da Pedra. Ou seria possível imaginar o silenciamento de uma ou
outra das melodias que hoje caminham juntas. O homem poderia
deixar de viver em cidades, encerrando a melodia iniciada com a
Revolução Urbana, ou um novo luddismo poderia impor o aban-
dono radical do industrialismo. De todo modo, cada uma dessas
grandes revoluções transversais já está na história.
As revoluções – sejam os movimentos sociais revolucioná-
rios, sejam as revoluções transversais, também produzem ne-
cessariamente “rupturas” [3]. Com elas, uma certa sociedade, ou
o mundo inteiro, assume uma nova face. Uma ruptura, por outro
lado, pode ser decomposta em dois movimentos – duas notas que
mantém uma íntima relação intervalar. Poderíamos dizer que as
revoluções comportam necessariamente “destruição” e “constru-
ção do novo”126.
Com relação ao primeiro gesto – o que se dirige à destruição
ou dissolução de uma situação preexistente – já discutimos a re-
corrência da “violência” nas revoluções mais conhecidas, sejam os
movimentos sociais ou as revoluções transversais. Mas também já

126. E não a “reconstrução”, o que implicaria construir de novo o que foi des-
truído, ou tampouco a “renovação”, que equivaleria a fazer com que algo fique
novamente novo.

131
nos perguntamos se a violência sempre seria necessária às revo-
luções, ou se seria possível conceber uma revolução que descons-
truísse o mundo anterior pacificamente ou sem provocar maiores
lesões ou situações traumáticas.
Gostaria de encontrar uma expressão mais abrangente que
abarcasse três possibilidades distintas, as quais costumam apare-
cer nas revoluções de modo combinado ou não necessariamente
todas juntas: a presença de violência, a destruição, e a descons-
trução (que é uma destruição mais sutil, sem violência). Como
não encontro tal palavra, e considerando que todos os exemplos
históricos até hoje conhecidos de revolução comportaram algum
índice e manifestações de “violência”, vou considerar que esse é
um componente de acorde conceitual de “revolução” [4]. Isso po-
derá mudar um dia.
Podemos considerar que as revoluções geram violência por
duas vias. Uma vez que as revoluções são momentos em que se
defrontam radicalmente o antigo e o novo, ocorre violência tanto
por parte das forças conservadoras ou reacionárias que se empe-
nham em conservar a todo o custo as coisas como já estavam,
como por parte daqueles que se esforçam para empurrar a linha do
horizonte em direção ao novo mundo que se enuncia. Em um belo
poema sobre a violência, já dizia Bertold Brecht, referindo-se me-
taforicamente ao movimento revolucionário em direção ao novo:
Do rio que a tudo arrasta
Dizem que é violento
Mas ninguém chama de violentas
As margens que o comprimem
BRECHT, B. Da violência.

A recorrência de violência nas revoluções pode ser entendi-


da, em sua complexidade dual, se considerarmos que há violência
tanto das margens que desejam conter o rio como das águas que,
impetuosas, impulsionam-se para frente de modo a realizar o seu
destino. Como já se discutiu, a violência não aparece apenas nas
revoluções que se referem a movimentos sociais, mas também
nas revoluções transversais que mudam radicalmente os modos
de vida, a ponto de se impor, nos casos clássicos, a impressão de

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que toda uma era está se substituindo à outra. Como já foi aventa-
do, uma sociedade não passa impunemente do mundo coletor ao
planeta agrícola, ou daí para o mundo das civilizações anco-
radas nas cidades. Quando as máquinas irrompem na Europa
do novo regime com o cenário da sociedade industrial, há inú-
meros desadaptados, cooptados e violentados, há insatisfeitos
à esquerda e à direita, acima e abaixo. Há desapropriação e
fome. Há carneiros devorando homens. A Revolução Digital,
se admitirmos o conceito, deixa atrás de si gerações de analfa-
betos virtuais. Para muitos, cada um desses processos é doloroso,
incômodo, às vezes aterrorizante.
Desse modo, pode-se perceber que a violência é recorrente
tanto nas revoluções transversais como nos movimentos sociais,
e parece se articular a um movimento em direção ao novo. Esse
aspecto estabelece uma ligação (um intervalo) entre a violência
e a instituição do novo. Existe, por outro lado, uma violência ne-
gativa, que oprime o já oprimido, sem contar as violências que se
abatem desnecessariamente sobre as vidas individuais de muitos.
A violência das revoluções (ou que emerge nas revoluções) só
adquire seu sentido positivo quando é necessária e faz uma me-
diação entre o velho a ser destruído e o novo a ser construído.
Musicalmente falando, temos aqui uma tríade: destruição, violên-
cia, construção. A violência, ao se ver mergulhada nessa tríade, e
ao adquirir um novo sentido através dela, é a violência das águas
do rio que corre para realizar o seu destino. Mas há também a
violência petrificada das margens e a violência circunstancial dos
galhos que se entrechocam ao serem carregados pela impetuosi-
dade dos acontecimentos. Entretanto, essas não fazem parte do
nosso acorde.
O passo seguinte – mas na verdade simultâneo – é a com-
preensão de que, ao estabelecer uma construção nova, as revo-
luções implicam necessariamente mudanças radicais [5]. A des-
truição (ou desconstrução) e a construção do novo (a mudança
radical) dão-se as mãos para produzir uma ruptura. A mera des-
truição, sem a concomitante construção do novo, não permitiria
que se falasse em revolução. A mudança radical, ademais, vem

133
acompanhada nas revoluções de uma “consciência do novo” [6] e
de um ato coletivo de liberdade [7] que institui esse novo. Já fala-
mos desses dois fatores, e também do coroamento final do acorde,
que é aquele “potencial emblemático” [8] que transforma todas as
revoluções em inspirações para as gerações posteriores e para os
tempos futuros.
As revoluções, ademais, são sempre intensas, e têm a capaci-
dade de cindir as sociedades em relação a elas, de modo que em
alguns indivíduos provocam o entusiasmo, e em outros o pânico ou
a rejeição extremada [9]. Mesmo o filósofo alemão Immanuel Kant
(1724-1804), que de maneira geral sustentava uma posição conser-
vadora em relação a um “direito de resistência” do povo aos gover-
nos instituídos, não deixou de se dobrar a um forte entusiasmo em
relação à Revolução Francesa127. Há algo nas revoluções que pro-
voca adesões (em maior quantidade) ou rejeições, tanto nos atores
internos quanto nos observadores externos. Diante dos autênticos
processos revolucionários, as posições neutras parecem se redu-
zir significativamente. Mais tarde, as mesmas revoluções que um
dia provocaram entusiasmo ou repulsa nos seus contemporâneos,
continuará a dividir os olhares que a examinam de algum lugar no
seu futuro histórico. As revoluções, definitivamente, são intensas e
produzem recepções intensas. Essa nota articula-se, no acorde, ao
potencial emblemático de toda revolução que um dia será lembrada
como tal. A “intensidade” e o “potencial emblemático” constituem
juntos um expressivo “intervalo” do acorde conceitual de “revolu-
ção”, de acordo com a perspectiva que aqui proponho.
Uma nota adicional faz aqui a sua entrada em cena, ao lado
da já discutida intensidade revolucionária. O intensivo, nas revo-
luções, interage sempre com o extensivo. Dito de outro modo, as

127. “[Esta revolução] encontra no espírito de todos os espectadores (que não


estão eles mesmos envolvidos no jogo) uma simpatia de aspirações que beira o en-
tusiasmo – cuja manifestação seria mesmo perigosa – a qual não poderia ter outra
causa que não uma disposição moral do gênero humano” (KANT, 1963, p. 101)
[original: 1798]. De modo geral, a Revolução Francesa despertou entusiasmo nos
intelectuais alemães que foram seus contemporâneos, embora também tenha ocorrido
um certo recuo dessa posição diante dos acontecimentos relativos ao terror.

134
revoluções sempre apresentam uma expressiva “extensividade”
[10]. Com isso, quero dizer que as revoluções – sejam os movi-
mentos sociais, sejam as revoluções transversais – precisam apre-
sentar um impacto e um fazer-se extensivos, relativos a uma par-
cela realmente ampla da população, para que de fato possam ser
chamadas legitimamente de revoluções.
Nas revoluções, o sujeito – aquele que as encaminha e que
as assimila efetivamente – é necessariamente um extenso sujeito
coletivo. Daí se diz que as revoluções são efetivamente populares.
Isso diferencia as revoluções sociais, mais uma vez, dos “golpes
de Estado”. As ações realmente decisórias e decisivas relacionadas
à instituição e montagem dos golpes de Estado costumam circular
apenas no seio de um grupo relativamente reduzido de pessoas,
as quais controlam as forças armadas e certas posições políticas e
econômicas. Um ator coletivo nada extenso, ou uma pequena con-
figuração de atores, está sempre por trás dos golpes de Estado –
ainda que, para muito além desse pequeno grupo que se impõe pela
força, seja inevitável que o nefasto efeito do tal golpe termine por
afetar generalizadamente a vida de uma sociedade. Nos processos
realmente revolucionários, ao contrário, não se vai além do mero
golpe ou da tomada de poder circunstancial a não ser que o ator
coletivo extenso esteja realmente atuando.
Quero dar o exemplo das revoluções transversais, com relação
às quais essa extensividade nem sempre é imediatamente evidente.
A recente Revolução Digital não se iniciou propriamente quan-
do a tecnologia digital avançou extraordinariamente nem quando
foram criados os sistemas que preconizaram a internet, mas que
então se mantiveram circunscritos aos usos militares e científicos
mais restritos (fins dos anos de 1960). A verdadeira Revolução
Digital se iniciou nos anos de 1990, quando a rede mundial de
computadores foi apropriada pelo grande ator coletivo: quando a
população mais ampla passou a se beneficiar dos novos meios de
comunicação, das novas linguagens e dos novos usos da tecnolo-
gia. A Revolução Digital ocorreu quando a sociedade se tornou di-
gital, assim como a Revolução Agrícola se instituiu efetivamente
quando a agricultura se espalhou generalizadamente pelo mundo,

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quando se estabeleceu um movimento impetuoso e irreversível
nessa direção inédita.
Pode-se acrescentar, por fim, que as revoluções são sempre
processos internos [11], desenvolvidos no seio das sociedades es-
pecíficas como resposta a determinadas demandas (no caso das
revoluções nacionais), ou que afloram no âmbito mais amplo da
vida humana (para o caso das revoluções transversais). As revo-
luções não podem ser trazidas de fora. Elas são sempre internas,
vêm do âmago do mundo que subitamente se vê revolucionado.
Esse, para tomar de empréstimo mais uma metáfora musical, é o
seu “harmônico” oculto: a nota secreta que se esconde sutilmente
no coração de toda revolução128.
As revoluções não podem ser concedidas, devem ser conquis-
tadas. O grau e a modalidade de envolvimento de cada um dos di-
versos grupos sociais em relação às revoluções que eles vivenciam
ou vivenciaram (neste último caso através de uma memória que
não cessa de ser reconstruída) parece conferir a cada revolução
uma cor própria. A revolução não pode ser imposta, ela não cai
sobre uma sociedade ou sobre o mundo humano como um raio
vindo de qualquer céu, ou oferecido por algum deus. Pode uma
revolução inspirar uma outra ou muitas outras, mas elas necessa-
riamente devem aflorar mais uma vez no seio das sociedades que
as engendrarão.

128. Os harmônicos podem ser entendidos como sons que se escondem dentro
dos sons. Acusticamente falando, qualquer som emitido isoladamente por um ins-
trumento, como uma nota musical da escala de dó maior, p. ex., corresponde na
verdade a um complexo emaranhado de ondas sonoras, embora o ouvinte humano
só perceba como “altura” a onda mais grave (de frequência mais baixa). Embora
não possam ser percebidos pelo ouvido comum sob a forma de notas musicais,
os harmônicos contribuem decisivamente para a definição do timbre de um ins-
trumento. O mesmo dó-3 pode ser tocado por um piano, por um clarinete, ou por
um violino, mas serão percebidos como sons de qualidades (timbres) diferentes.

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