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Georges Lapassade

M a rc o A u ré lio L u z

O Segredo
da
Macumba

Paz e Terra
Nota Sobre Os Autores

G eorges L apassade:

nascido em França em 10 de maio de 1924, agrégé da


Universidade de Paris, professor de sociologia na
Universidade de Paris, A utor das seguintes obras:
L ’Entreé dans la vie, Les recherches institutionelles,
Procès de l ’université, Le livre fou, L ’arpenteur e Clefs
pour la sociologie (publicado pela Editora Civilização
Brasileira sob o títu lo Chaves da Sociologia).

M arco A urélio L u z :

nascido em 1944 no Rio de Janeiro, bacharel em D ireito


e Filosofia pela U .F .R .J ., professor da Escola de Co­
municação da U .F .R .J ., professor do Depto. de Comu­
nicação da UFF, Co-autor do livro Epistémologie e
teoria das ciências (publicado pela Editora Vozes).
Sumário

Abertura

I — O Segredo da Macumba x i
II — O Candomblé e a Quimbanda x ii
III — A Dança dos Exus xv
IV — A C ultura Negra e a Psicanálise xix
V — A C ontracultura xxi
VI — O Quilombo de Palmares: Macumba e
— Mocambo x x iii

Prim eira Parte — O R itu al da Meia-Noite

I —
A In stitu içã o 5
II —
O Transe 9
III —
A Consulta 17
IV —
A Quimbanda 18
V — O Retorno do Recalcado 23
VI — Breve Descrição de Três Centros 27
VTI — A Formação do Simbolismo Social 33
vm — A Trom ba e a Macumba 37
Notas 46

Segunda Parte — Umbanda Contra Quimbanda

I — A L u ta de um Desejo 51
I I — a Umbanda Como Institu ição Social 55
1— Proposição Metodológica 55
2 — As Entidades da Macumba 57
3 — Sócio-Análise do A lta r 63
4 — A H ierarquia no Terreiro 75
5 — Comunicação da Dominação 82
III — Terreiro de Macumba 88
Notas 96
A b e rtu r a

I — O SE GREDO D A MA C UMBA

À h is tó ria do n e gro b ra s ile iro é a h is tó ria de su a


lu t a de lib e rta ç ã o , os q uilo m b o s do s é culo X V II, as re
volta s m a lê s do s é culo X I X .
A M a cu m b a c o n ta e sta h is tó ria , como os n e gros do
Q uilo m b o de P a lm are s fo ra m d errota dos p ela s “ f a la n
ges” dos ín d io s ch e fia dos p o r D om ingos Jorg e V e lho, C a
p itã o de C a m po, C a pitã o d a M a ta , “ O xóssi” .
A Q u im b a n d a e x prim e se mpre o desejo to t a l de
lib e rta ç ã o , o sonho de u m a R e p ú blic a n e gra — a lib e r
ta ç ã o do hom e m o p rim id o e escra vo será to t a l ou in e
xiste n te .
P or o u tro la d o a U m b a nd a co n ta a h is tó ria d a re
pressão s a n gre n ta deste desejo, is to é, a submissã o a
“ O x a lá ” s e n h or do c é u e d a t e rra , o re i de P o rtu g a l e seu
a p a ra to c o lo n ia l de repressão.
Os a utore s d e ste liv ro propõ e m u m a nov a le itu r a
dos c u lto s a fro-bra s ile iro s . U m a le itu r a e la bora d a a p a r
t ir das id é ia s de M a rx , F re u d e W . R e ich sobre a in s ti
tu iç ã o re lig io s a , e a ssim se d is tin g u e m das a bord a g e ns a

xi
que estamos a costum a dos, o p a te rn a lis m o e tnográ fico ou
a “ re cup era çã o c a tó lic a ” .
E sta a bord a g e m te óric a m a t e ria lis t a n ã o significa
o despre zo p e la m a cum b a , m as ao c o n trá rio , n a lu ta em
que se opõem u m b a n d a c o n tra q uim b a n d a , em todos os
períodos d a h is tó ria , os e s p írito s q uim b a nd e iros: Exus,
pre tos v elhos da q u im b a n d a , ca boclos d a quimbanda
ch efia dos p or P a n te ra -n e gra , P o m b a -G ira que represen
t a o desejo louco, a lib e rta ç ã o d a s e xu a lid a d e , são sem
pre os h eróis d a lib e rd a d e , qu e e x prim e os sonhos dos
hom ens o prim id o s em su a lu t a p e la lib e rta ç ã o .
N este liv ro te n ta m o s d e m o n s tra r que o aspecto
m a is ric o e m a is im p o rt a n t e d a m a c u m b a é a quimban
d a — a q u im b a n d a dos E xu s n ã o é u m a m a gia diabóli
ca, m a s u m rit u a l de lib e rta ç ã o .
E ste liv ro sobre a m a c u m b a n ã o pre te nd e chegar
a conclusões d e fin itiv a s . A o c o n trá rio , ele fo i escrito
p a ra d e fe nd er a q u im b a n d a do m o v im e n to que se tem
f e ito p a ra d e s tru í-la e ta m b é m p a ra a b rir campo para
a lg u n s pro ble m a s e com e ç ar a d e fin i-lo s . Escrevemos
p a ra a le rt a r a o p in iã o p ú b lic a e m e sm o p a ra provoca,
la . P ro cura m o s e sta b e le c er u m a ro tu r a com todas as
(le itu ra s ) id é ia s d o m in a n te s sobre a m a cum b a .

I I — O C AMD O MBLÉ E A Q UIMB A N D A

Desde 1900, nas prim e ira s publicações de Nina Ro


drigues, o candomblé da B a hia fo i sempre amplamente
estudado. Este se torn o u conhecido e a dquiriu um près-
tígio incontestável. No B ra s il o “ sta tus” cultural do
candomblé é m u ito sup erior ao da macumba. Esta valo
rização do candomblé fe ita p or sociólogos brasileiros e
estrangeiros no B ra s il fo i um fa to positivo.
Nos séculos a nteriore s, os ritu a is dos escravos do
H a iti ou da B a hia eram desprezados e subjugados como
uma fe itiç a ria , perseguidos. H oje em dia, ao contrário,
• •

X ll
são respeitados, são a dm itidos como um a re lig iã o . Se
fa la agora do candom blé, mas não se fa la da q uim b a n
da, que c o n tin u a a a m e drontar, como a ntig a m e nte o
vudu.
A e xalta çã o do candom blé nagô da B a hia teve co
mo conseqüência p o sitiv a a “ re a bilita ç ã o” da c u ltu ra
negra. A conseqüência n e g a tiv a é que a m acum ba apa
rece, agora, como disse re ce nte m e nte um sociólogo fra n
cês, como um “ c u lto degenerado” — um m a u ca ndom
blé de c a te goria in fe rio r.
E sta h ie ra rq u ia que colocou o candom blé no cum e
das re ligiõ e s a fro-bra sile ira s, e a m acum ba em um n iv e l
in fe rio r, nã o pode m ais ser a ceita . Os dois c u lto s não
são desiguais, m as são sim plesm ente difere nte s.
P rim e ira m e nte p or sim ples ra z ão de orig e m .
O ca ndom blé m a is conhecido, e o m e lh or estudado,
o m ais e sp e ta cular e o m ais tu rís tic tf, é o candom blé
nagô, de orig e m sudanesa. E ste candom blé e n co ntra
tam bém suas raíz es a fric a n a s ao n orte do E qu a dor. A í
se celebram os deuses da n a ture z a , os orix á s.
A m a cum b a do R io é de orig e m b a n tu . O c u lto en
c o ntra assim suas inspira çõ e s orig in a is ao S u l do E qua
dor.
E m A n g ola , nã o se cele bra m os orix á s que são “ deu
ses da n a tu re z a ” , celebram-se os antepassados, os a n
ce strais m orto s. N o B ra s il os a nc e stra is são os pre tos
velhos, os caboclos, os orix á s (sa ntos c a tólicos bra ncos)
e os exus e pom b a -gira s (os negros re volta d o s).
T emos e ntã o duas re lig iõ e s bem div erg e nte s.
N a tura lm e n te , e xiste m combinações, e m pré stim os
de um a e de o u tra : a m a cum b a b a n tu to m a e m pre sta do
do ca ndom blé os nom es dos orix á s, o nom e de E xu, m as
p a ra fa z e r u m uso d ife re n te . In v e rs a m e nte se e n c o n tra
n a B a hia , em c e rto s ca ndom blé s em um a posição secun
d á ria , o c u lto dos caboclos.
A m a cum b a e n c o n tro u no ca ndom blé a fig u ra de
E xu. M as se o nom e p erm a n e ce , o lu g a r de E xu n a m a
cum ba é to ta lm e n te d ife re n te de seu lu g a r no c a ndom
blé.
É p orta n to falso de se a cre d ita r que a m a cum b a é
um candomblé empobrecido e degenerado, d im in u íd o e
tra fic a d o . Não é absolutam ente “ c ie n tífic o ” se estabe
le cer um a escala de valores p a ra d e cid ir o qu e é “ p u ro ”
ou ao c o n trá rio “ im p uro” .
P or detrás desta a titu d e a dota d a p o r c e rto s soció
logas, existe a id é ia que o m ais p uro , é o qu e p e rm a n e
ce m ais fie l à Á fric a . — N este caso se v ia ja rá c o n tin u a
m e nte e ntre a B a hia e a Á fric a p a ra p ro v a r, e p ro v a r,
aind a , e in d e finid a m e nte , in te rm in a v e lm e n te , qu e o
candomblé veio da Á fric a , o que to d o m u n d o sabe ago
ra , e já h á m u ito te m p o .. .
Um a c u ltu ra n e gra da Á fric a n ã o é u m a c u ltu r a n e
gra no e xílio . A v a riá v e l fu n d a m e n ta l, a q u i é a e scra
vidão. O candom blé da B a h ia n ã o é o c a n d o m blé da
Á fric a . É um candom blé que “ to m o u e m pre sta d o” à
Á fric a um sistem a lin g ü ís tic o e ritu a l, m a s o co nte ú d o
fo i profund a m e nte tra n sform a d o p rim e ira m e n te p e la s
m istura s de nações escraviz adas.
É preciso a cabar com o c u lto d a Á fric a , d a s “ o ri
gens a fric a n a s” , com esta devoção a fric a n is ta . D eve
mos ao c o n trá rio m a rc a r a ro tu ra com a Á fric a , a fir
m a r e d e m onstrar a e sp e cialid a d e , a o rig in a lid a d e do
n e gro bra sile iro .
A prim e ira diferença com a Á fric a é e vid e nte m e n
te a deportação.
Mas uma segunda difere nç a: ig u a lm e nte fu n d a m e n
ta l intervém em seguida com o d e s e nvolvim e nto, no
Brasil, de um a sociedade c a p ita lis ta , e a cons e guinte
desigualdade region al deste d e se nvolvim e nto.
A B ahia é m ais próxim a , a in d a hoje , de seu pas
sado pré-c a pitalista que o R io e São P a ulo. U m a re lig iã o
da nature z a e da estabilidade cósmica pode c o n tin u a r
a se desenvolver em um a cidade que se e sta biliz e , e que
pode e ncontrar agora seu d e se nvolvim e nto e conôm ico
origin a l como fonte de exploração tu rís tic a do e x o tis
mo que exerce sobre o B ra sil e sobre o m u n d o .

xiv
No R io e em S ão P a ulo, ao c o n trá rio , os negros h a
bita nte s das fa v e la s são fre qü e nte m e nte pro le tá rio s e
m argin a is. E a q ui, ao c o n trá rio do que n a B a h ia , eles
são m in oria s.
A condiçã o do n e gro e d a c u ltu ra n e gra n ã o é abso
luta m e nte a m esm a n a B a h ia , no R io e em São P a ulo.
As difere nç a s e n tre o ca ndom blé e a m a cum b a e xprim e m
também, as dife re n ç a s qu e e n c o n tra m suas raíz es no
ritm o de d e s e n volvim e nto das forç a s pro d u tiv a s e das
relações de pro d u ç ã o d a form a ç ã o socia l.
A ssim com o é pre ciso “ lib e rt a r” o e studo do c a n
domblé d e sta re fe rê n c ia c o n tín u a à A fric a é pre ciso
também lib e rt a r o e studo d a m a cum b a dessas com p a
rações com o c a ndom blé .
É pre ciso d iz e r qu e a m a cum b a é um fa to c u ltu r a l,
específico e o rig in a l. E o im p o rta n te a q u i n ã o é só le m
bra r A n g ola e o c u lto a fric a n o dos a nte passados. É ao
c o n trá rio , de m o s tra r com o neste esquem a o rig in a l, a l
gum a coisa de m u ito d ife re n te , e de m u ito novo fo i p ro
duzido no B ra s il: é o c u lto dos h e ró is d a h is tó ria e d a
re volta , os ca boclos, e os pre to s v e lhos qu e são com
os E xus os e le m e ntos e ssenciais d a m a cum b a .

m — A DAN Ç A DOS EXUS

O personagem c e n tra l de nosso liv ro , é E xu. O ob


je tivo do liv ro , como vim os é de m o stra r que a Q uim
banda é o aspecto m ais im p orta n te d a M acum ba.
Ao mesmo te m po, d em onstram os que o s e ntido da
Q uimbanda está escondido, é segredo. A lingu a g e m da
macumba é um a lin g u a g e m in d ire ta .
No in te rio r d a m a cum b a estão presentes tod a s as
aspirações lib e rtá ria s de um a d e te rm in a d a form a ç ã o
socia l.
E la conta a h is tó ria da lu t a de lib erta ç ã o dos de
sejos políticos-socia is — Q uim b a nd a — e de sua repres
são — U m b a nd a .
E xu e P o m b a -G ira são os sím bolos de um a propo
sição lib e rtá ria , e n q u a n to os chefes d a “ lin h a branca”
O gum , São Jorg e , O x a lá , S a gra do C oração, X angô, São
J erônim o, O xóssi, São S e b a stiã o, e as V irg e ns, são sím
bolos de re pre ssã o.

A L in h a N e gra

A Q uim b a nd a , possui sete lin h a s p a ra e nfre nta r a


U m banda (a lin h a bra n c a ). As sete lin h a s da Q uim
banda e seus chefes são:

L IN H A C HE F E
I ,

1 Alm as O m u lu
2 C em itério João C a v e ira
3 M a le i E xu R e i (das e n cru z ilh a
das)
4 N agô G erere
5 M ossorubi K a m rio lo a
6 C aboclos quim b a nd e iros P a nte ra N egra
7 L in h a M ista E xu das C a m pin a s (ou
E xu dos R ios)

E ssas lin h a s , e x p o sta s p o r H u m b e rto B ra g a , U m


b a n d a e Q uim b a n d a e p o r R o g e r B a s tid e , A s R e ligiõ e s
A fric a n a s n o B r a s il, a in d a p re c is a m d e v e rific a ç ã o , isto
é, com o são p ra tic a d a s n o s t e rr e iro s .
E le nos in d ic a qu e E x u n ã o é o m e s tre ú n ic o e ab
s o lu to do t e rr e iro de Q u im b a n d a , m a s é e le qu e e ncon
tra m o s m a is fre q u e n te m e n te , é o m a is c o n h e cid o e po
p u la r com suas m u lh e re s P o m b a - G ira e M a ria P a d ilh a .
E xiste a in d a n a Q u im b a n d a e n tã o , os “ c a boclos
q u im b a n d e iro s” e ta m b é m os “ p re to s v e lhos* q u im b a n
d eiros. Se os E xu s re pre s e n ta m os h e ró is d a re v o lta
P a lm a rin a esses ín d io s e esses e scra vos fo r a m aqueles

xvi
qu e lu t a v a m la d o a la d o p e lo Q u ilo m b o , os p rim e ir o s
n a s m a ta s , os s e g u n d o s n a s e n z a la , in c e n tiv a n d o e
a p o ia n d o a in s u rr e iç ã o .

— Umbanda C o n tra Q uim b a nd a

A divisã o e oposição e n tre o ca ndom blé v a loriz a d o


pelos sociólogos e p e lo turis m o , e a m a cum b a c o n si
derada como m ais b a ix a e v u lg a r é um a oposição se
cund ária .
A oposição p rin c ip a l é a divis ã o no in te rio r d a “ m a
cum ba’ e a Q uim b a n d a . É a lu ta , a g u e rra e n tre os
dois ritu a is . É a repressão e a d e struiç ã o c u ltu r a l d a
Q uim banda em nom e da U m b a nd a .
Nos livro s e nas re vista s populare s sobre a U m b a n
da, descreve-se a q uim b a n d a como o lu g a r do m a le fíc io ,
da m a gia n e gra . Is to a liá s p e rm ite aos u m b a n d ista s
g a nh ar com seu tra b a lh o : eles cobrarã o d in h e iro p a ra
desfa zer os tra b a lh o s do m a l dos q u im b a n d e iro s .
P or d e trá s dessas e stória s, p or d e trá s d e sta id e o lo
gia, e xiste a re produç ã o do que se d iz ia n o s é culo p a s
sado tam bém p a ra d e sig n a r o c o n ju n to dos ritu a is n e
gros (o vudu, o c a ndom blé , e tc___). R e conh e ce m os
aqui os argum e ntos dos m is sio n á rio s colo niz a d ore s d a
Á fric a : p a ra eles tod a s as re lig iõ e s n e gra s e ra m a p e n a s
a base da fe itiç a ria .
O ra, a id é ia de fe itiç a ria vem d a E uro p a . E c a d a
vez que um a re lig iã o d o m in a u m a o u tra , a re lig iã o do
min a d a é a pre s e nta d a como f e itiç a ria e fe tic h is m o .
H oje em dia , os u m b a n d ista s bra n co s, e m e sm o e n
tre eles, a lguns pre to s, re to m a m c o n tra a Q u im b a n d a ,
as acusações que se fe z o u tro ra c o n tra to d o s os rito s
africa nos e a fro-b ra s ile iro s (c o n tra a m a cu m b a , e ta m
bém c o n tra o c a ndom blé , o v u d u , e a re lig iã o m u ç u l
m a n a) .
A re v is ta “ M iro n g a ” de a gosto de 1972, n o s u b títu lo
“ E xu” in c it a os m é diu n s a ch a m a re m a p o líc ia ca so
h a ja b a gunça nos te rre iro s :
“ R ecentem ente n u m t e rre iro n a Ilh a do G o v e rn a
dor, fre qü e nta do p or pessoas de to d a classe s o c ia l h o u
ve distúrbio s dessa n a ture z a ” (p a la vrõ e s, c a ch a ç a , e tc .).
‘‘A gora sou obrig a do a a c o n s e lh a r: q u a n d o p re s e n
ciarem ta is fatos, n a v o lta se fa ç a m a c o m p a n h a r de
pessoas credenciadas n a c ú p u la e a pre s e n te m q u e ix a
à polícia co ntra t a l te rre iro . A p o líc ia v a i in t e r v ir , e
isso reverte em nosso pro v e ito , p orq u e esses f a to s des
m oraliz a m a nossa r e lig iã o !”
Assim os um b a ndista s se a lia m a g ora a p o líc ia p a ra
re prim ire m a Q uim b a nd a . A M a c u m b a p e rs e g u id a p e lo
E stado colonia lista , hoje é p ers e guid a e fis c a liz a d a p e la s
própria s federações “ u m b a n d ista s” .
Neste liv ro a n a lis a m os ao n ív e l d o r it u a l, com o
essas fiscaliz ações ju s tific a m as re la çõ e s d e d o m in a ç ã o
no in t e rio r do pró prio te rre iro , e n tre o B a b a lo rix á , a
Ia lo rix á e os m é diuns e c a m bon e s.
Toda a re gula m e nta ç ã o do te m p lo d e U m b a n d a vis a
estabelecer um com ple xo de re gra s b u ro c r á tic a s qu e
tem por fim a submissão dos h ie ra rq u ic a m e n t e in f e rio
res aos hierarquic a m e nte su p e riore s n o in t e r io r d a o r
ganiz ação. E tra ta-s e da org a n iz a ç ã o d a d o m in a ç ã o
através da b urocra cia .
Por o utro lado essa org a niz a ç ã o p o s s u i u m a e xpre s
são ideológica que fa la d a “ bo a o rd e m ” , d a o b e d iê n cia
e da submissão, como v a lore s a s ere m pre s e rv a d o s e
a dquiridos por todos que q uis e re m s u b ir n a e sc a la m a
te ria l — na h ie ra rq u ia do t e rr e iro — e e s p iritu a l — n a
hierarquia das e ntid a d e s.
Neste momento a expressão social sim bólic a de
Umbanda, a lei de O xalá, o bem, o sup erior, o puro e,
a bagunça dos Exus, o m al, o in fe rio r, o im puro, se
adaptam às leis do ce ntro e aos com porta m e ntos so
ciais exigidos.
Desvendamos que a semiologia do ritu a l umbandis-
ta, as guias, roupas, lugares ocupados d ura nte as giras,
cerimônias de bater cabeça etc., com unica m um a rela
ção específica de dominação, o que G erard A lth a b e de
finiu como “ comunicação da dominação” , que sustenta

xviii
o “ sta tus” do B abalaô e da Ia lo rix á e tod a a hie ra rq u ia
a u to ritá ria de um te mplo umb andista .
Os padres da Igre ja C atólica , hoje, fazem pesquisas
sobre a U mbanda. A lguns te nta m re v a loriz ar na opi
niã o públic a c a tólic a o culto dos orixás. T odavia, esses
padres são m u ito m ais “ discretos” e silenciosos quando
são interrog a dos sobre a quim b a nd a — Eles também
acompanham a segregação c u ltu ra l: — a umbanda?
sim, de acordo, mas a quimb a nd a é o dia bo.
A q ui também neste livro fazemos um a inversão
ra d ic a l. Com e fe ito preferimos o “ diabo” e, procuramos
m o stra r que a quim b a nd a é positiv a , que seu v a lor so
cia l, c u ltu ra l, e a rtístico , é bem sup erior ao ritu a l da
umbanda.
N a quim b a nd a os negros fala m , simbolicam ente de
todas as lib erta çõ e s: a lib erta çã o dos escravos, c erta
m e nte , mas também a lib erta ç ã o dos negros e nqu a nto
negros; e a ind a a lib erta ç ã o de Eros, do amor louco.
E xu e P omba-G ira, p ara nós é Eros. É também D io-
nísios, o deus grego dos escravos e das mulheres, o deus
dos dominados que lu ta m por sua lib erta ç ã o, contra
A poio, deus dos Senhores, deus da “ Umbanda grega” .

IV — A C U LT U R A N E G R A E A P SIC A N Á LIS E

A tra v é s de A rtu r Ramos, a Psicanálise no B ra sil


p e rm itiu as le itura s de alguns m itos de candomblé.
T ambém nos servimos dos conceitos de F re ud p ara re a
liz arm os a le itu ra d a simbologia e do im a gin á rio da
m acumba.
T od a via , h á um aspecto que ameaça os psic a n alis
tas. É que como rito de possessão a m acumba é ta m
bém tera pia , e um a tera pia de im ensa riqu e z a té cnica
e a ind a um a te ra p ia popular.
A ssim o tra ns e , a expressão corporal, a dança, a
possessão, os tra b a lhos de e fic á cia simbólica, a consul-

xix
t a e tc ., ofere cem um a riqu e z a de form a s de expressão
p s íq u ic a s que d eix a m p ara trá s as form a s in s titu c io
n a is u tiliz a d a s p ela te ra p ia a n a lític a , o d iv ã e a pa
la vra .
P ara fa la rm o s dessa ameaça d a m a cum b a como
id e olo gia n e gra e p ro le tá ria devemos m o stra r os aspec
tos escandalosos com que se reveste p a ra a sociedade
bra nc a burguesa e cultiv a d a . R elatare m os a qui, um
e ncontro com um grupo de p sic a n a lista s e psicodram a-
tista s do R io:
U m a tard e fomos com A n to n io S erra ao ce ntro de
estudos antropológicos que form a segundo a ortodoxia
fre u dia n a os psicólogos clínico s.
E lá nos propusem os de fu n d a r n a q u e le C e ntro,
onde um a boa p a rte da casa e stá d e socup a d a , com Ze-
z in h o , o n e gro ch efe de um te rre iro d a fa v e la de S anta
M a rta , um te rre iro de q u im b a n d a . U m a ve z explicado
que m u ito s e stud a nte s p a rtic ip a ria m do te rre iro e que
a m a cum b a como rito de possessão se c o n s titu i num a
te ra p ia p o p u la r, d ia n te d e sta pro p o sta , os psic a n alista s
dissera m que pod eria m um d ia v is it a r “ seu 7 da lir a ” .
M as nós propusem os de in s titu ir um c e n tro de macum
ba, lá , d e n tro da casa deles ao la d o d a s ala de psico-
dra m a .
E sta proposta d e stru ía to do o e d ifíc io fre udia no.
F o i A n to n io S erra quem a n a liso u e sta situ a ç ã o anali
sa dora: A dife re n ç a de id e ologia de classe era ta l que a
la n g u e da psic a n ális e c u ltiv a d a se s e n tiu bastante
am e açada p e la la ngu e p ro le tá ria da m a cum ba.
— O que s eria de um K le in ia n o ortodoxo se rece
besse E xu — E u a ind a p re firo a psic a n á lis e , ah, ah, ah...
As reações dos p sic a n a lista s era m o sintom a da
am e aça da “ c u ltu ra n e gra” sobre a “ c u ltu ra branca”.
E sta recusa e este p â nico do gru p o de psic a n a lista s
se to rn a a in d a m ais intere ss a nte , n a m edida que eles
se diz em , a p a rtir de F re ud, e sp e cialista s do estudo da
s e xu a lid a d e .
O ra o te m a c e n tra l da m acum ba, da quim b a nd a ,
é pre cisa m e nte o sexo, o processo p rim á rio : é o sexo
lig a d o ao p o lític o p e la m e dia ç ã o d a e s cra vid ã o e d a
n e g ritu d e .
N o c e n tro de m a c u m b a h á o p ro je to de lib e rt a ç ã o
s e xu a l, a a firm a ç ã o do se xo liv r e , a b i-s e x u a lid a d e ( E x u
te m du a s ca b e ç a s) a d ra m a tiz a ç ã o de to d o s os d e se
jos hom oss e xu a is e h e te ro ss e xu a is.
A m a c u m b a co m o f a to a n a lis a d o r, e s ta n o it e n o
R io, fo i o “ g r ilo ” dos p s ic a n a lis t a s .

V — A C O N T R A C ULT U R A
*

A m acumba não é som ente um a contra psic a n á lis e .


Não é som ente a in s titu iç ã o que se re
cusa a colh ê-la . T ambém a Ig re ja C a tólic a e sta b ele cid a .
E aind a a b uro cra cia e s tu d a n til (h o s til) ao n e o-tro p i-
calismo e sua u tiliz a ç ã o q uim b a nd e ira nos a ntig o s lu
gares m ilita n te s da univ ersid a d e .
A m acum ba é re je ita d a p or tod a s as in s titu iç õ e s
porque ela é e sp e cifica m e nte um a c o n tra -in s titu iç ã o e
uma c o n tra c u ltu ra que e xprim e um a contra-socie d a d e .

— “ Seu S ete” n a T V

A id a do Seu S ete d a L ir a à te le vis ã o, c u jo c a v a lo


ou m édium é D on a C a cild a , que possui u m dos c e ntro s
de U m banda m a is co n corrid o s do R io, provoco u as
maiores repercussões. A T V , como in s titu iç ã o so cia l d a
inform ação, pro c ura ta m b é m a re pro d u ç ã o d a c u ltu ra
dominante n a form a ç ã o so cia l, m a nte n d o os v a lore s,
divulg a ndo as re gra s de c o n d u ta e de edubação. N a T V ,
o E xu co nta m in o u to d a u m a ca m a d a da p o p ula ç ã o de
telespectadores com a sua pre se nça , que é u m a p e lo à
sexualidade, à lib e rd a d e de m o vim e nto s e emoções que
estão contidos de u m a fo rm a d o e n tia . T em os ta m b é m a
desrepressão n u m a fo rm a d o e n tia e já qu e e la n ã o é
p e rm itid a , se m a nife sta através de um a form a incons
cie nte : a h iste ria .
Algum as autoridades se re ferira m ao acontecimen
to como desencadeador de um processo irreversível que
te ria inv a dido as residências e nelas projeta do a sub-
c u ltu ra . Devemos c o rrig ir: se os orixás representam o
bem e o E xu o m al, o E xu não representou a força de
um a subcultura , mas sim de um a co ntra cultura . Por
o utro lado, as curas de E xu fora m vistas como uma
promoção da ch arla ta nic e e se re ivindicou que a Ciên
cia não fosse relegada a segundo pla no. Sem querer
defender a qui a C iência ou os mecanismos de cura
através do discurso religioso, podemos pre ve nir desde
já com um a citação de W . R eich que “ a ciência de
hoje rara m e nte merece este nome” e que o problema
da cura através do sim bólico fo i colocado pela Antro
pologia depois que Lévi-Strauss estudou este fenômeno,
a que chamou “ eficá cia sim bólica” . Podemos dizer que
o problem a do psicossomatismo não fo i explicado teori
camente de um a form a s a tisfa tória . Neste sentido, a
C iência ta te ia nas orientações “ biologiz antes” ou “ es
p iritu a lis ta s ” , que não conseguirão e xplic ar os fenôme
nos que se colocam de um a form a que só mesmo a Psi
canálise poderá talve z d a r um a resposta científica. Isto
é, de como o corpo pode se c o n s titu ir num a linguagem
do psíquico. Se nos re ferim os ao problem a da abstinên
cia sexual como causadora das neuroses, podemos aqui
acrescentar que não e xiste n e nhum outro que pro
voque m aiores distúrbios emocionais do que ela. Assim,
os efeitos psicossom áticos de ta is procedimentos ainda
não fora m devidam ente tocados e esclarecidos pela
chamada “ ciência o fic ia l” .
Podemos nos re fe rir à indica çã o de Reich na rela
ção a bstin ê ncia-obe diência-autoridade-hierarquia, neces
sárias ao funcion a m e nto de um a form ação social auto
ritá ria .
A q u im b a n d a é a c o n tr a c u ltu r a n e g ra n o B r a s il

A noção de c o n tra c u ltura fo i form a d a n a C a lifó r


nia nos anos de 60, p ara designar um a re volta c o n tra o
A m e ric a n W a y o f lif e . A “ civiliz a ç ã o” da fá bric a e do
dólar. É um a “ c u ltu ra ” co ntra esta “ c u ltu ra ’, esta
“ civiliz a ç ã o” estabelecida e dom in a nte .
Mas pode-se a bra ng er esta id é ia a todas as form a
ções sociais dividid a s em classes onde as id eologias que
favorecem os interesses das classes dom in a nte s são con
testadas pelas id eologias que favorecem os interesses
das classes dom in a d a s. Assim nas form ações sociais es
cravistas grega e rom a n a o c u lto de D ionísios ou de
Baco era já um a c o n tra c u ltura .
E xiste c o n tra c u ltu ra n a quim b a nd a qu a ndo se
corre as cortin a s dia nte do a lta r dos orix á s. E n tã o
começa a c o n tra c u ltu ra da provocação se xu al, da g íria
e dos palavrões, d a cachaça, dos ch a ruto s etc. (A
contra lingu a g e m ocupa um lu g a r essencial em tod a s
as c o n tra c u ltu ra s .. . ) .
É pre ciso le m bra r ta m bém do m om e nto ond e no
B ra sil a c o n tra c u ltu ra é larg a m e nte um p ro d u to de
im porta ç ã o: O B ra s il te m sua c o n tra c u ltu ra , m u ito
ric a , ta n to a quim b a n d a p a ra as classes p o p ula re s
qu a nto o M a n ife sto A n tro p o fá g ic o (1928) ou o tro p i-
calismo.

V I — O Q UIL O M B O D E P ALM A R E S — M A C U M B A
E M O C AMB O

E nfim , propomos um a le itu ra da m acumba, um a


interpretação, que u tiliz a larg a m e nte M a rx e F re ud.
U tiliz amos dois prin cípio s fund a m e nta is de M a rx e de
Freud, que são:
1 — A sociedade está fund a d a sobre a lu t a de cla s
ses, sobre o antagonism o e o c o n flito . As id e ologia s, as
“ c u ltu ra s ” , se d e s e n volv e re m n o in t e rio r d e sta s c o n tra
dições e as e x p rim e m .
2 — M a s e sta e xpre ss ã o é d e fo rm a d a , h á se m p
re c a lc a m e nto e p o r c o n s e q ü ê n cia d e form a ç ã o d a p r i
m e ira m e nsa g em e, com o d iz F re u d , e la b ora ç ã o s e cun
d á ria .
A p lic a n d o esses d ois p rin c íp io s fu n d a m e n ta is à
m a cum b a , com e ça m os a d e s c o b rir q u e e la c o n ta , n u m a
lin g u a g e m s im b ó lic a , a lo n g a lu t a dos e scra vos (de
P a lm are s n o s é culo X I I e dos M a lé s n o s é culo X I X ) .
O Q uilo m b o de P a lm a re s e su a re pre ss ã o e is a h is
tó ria que c o n ta o r it u a l d a m a c u m b a .
D evemos desde já d e m o n s tra r q u e a p a la v ra m a
cum b a é u m d e slo c a m e nto d a p a la v ra m u c a m b o , is to
é, casa de q u ilo m b o s .
P a ra F re u d todos os casos a n a lis a d o s condu z e m a
“ c oin cid ê n cia s” n o tá v e is . E le e x p lic a qu e to d o esque
cim e n to e cons e qü e nte s u b s titu iç ã o , o c u lta u m com
ple xo pe sso al. “ Q u a n d o a n a lis o os ca sos d e e squ e ci
m e nto de nom e s, o c orrid o s e m m im p ró p rio , d e scubro
quase re g u la rm e n te qu e o n o m e o c u lto te m q u a lq u e r
re la ç ã o com u m te m a qu e m e d iz re s p e ito e qu e e stá
a pto a pro vo c a r em m im emoções fo rte s , p o r vezes dolo
rosas” .
A p a la vra m a cum b a p o ssui e m s i u m s e n tid o que
não te m a p a re n te m e n te n e n h u m a lig a ç ã o com a r e li
gião u m b a n d ista . A v ers ã o “ o fic ia l” é de qu e m a cum b a
s ig n ific a ria u m in s tru m e n to , qu e p o r su a ve z n ã o pos
sui ta m b é m n e n h u m a lig a ç ã o com os in s tru m e n to s usa
dos no ritu a l u m b a n d is ta .
O te rm o m a c u m b e iro , n o m o rro , te m u m a co n ota
ção de e x a lta ç ã o, de e lo gio . N a u m b a n d a bra n c a os t e r
mos m a cum b a e m a c u m b e iro tê m u m a co n ota ç ã o p e jo
ra tiv a . Os b a b a lorix á s d a s u m b a n d a s do a s fa lto p ro
cura m re s s a lta r a d e n o m in a ç ã o de T e m p lo ou C e n tro
U m b a ndista , e de a ss e g ura r qu e o n om e m a cu m b a é
“ a bsurdo” e p e jo r a tiv o ... A p a la v ra m a c u m b a possui
um sig n ific a d o d e sconh e cido, is to é, e squ e cido, o u a in
da re prim id o . A p a r tir de F re u d sabemos qu e to d o es-
qu e cim e nto é um a “ notá v e l coincid ê ncia’', efeito da
atu a çã o d a c e nsura . Q u al seria então o significado
o c u lto que a p a la vra m acum ba s u b stitu i e que é capaz
de evocar emoções forte s, p or vezes dolorosas?
O desejo dos negros p a lm arinos, era de fazer nos
P alm ares, um a re p ú b lic a negra, a fric a n a , recordar a
Á fric a , e stabelecer as bases re ais da A ngola janga, A n
gola p e qu e n a .
Nos P alm are s, os negros vivia m nos mucambos, so
nh a va m com a Á fric a e cultu a v a m o e spírito dos seus
antepassados a fric a n o s . H oje em dia nas macumbas do
m orro, as g ira s dos pre to-v e lhos recordam a Á fric a e
c u ltu a m seus antepassados, a ntigos escravos, velhos
a fric a n o s .
T od a via , a m a cum b a representa o lu g a r desses pre
to-velhos n a form a ç ã o colo nia l escravagista bra sileira ,
e re cord a as a titu d e s que devem a dotar na vida e no
te rre iro , is to é, obediência a O xalá . A macumba repre
senta e ntã o todas as relações dos escravos com as de
m ais classes e frações de classe da form ação a u toritá ria
colo nia l e scra v a gista . R epresenta aind a o exercício
dessas relações, a lu ta de classes, no seu im a gin ário,
a lu ta e ntre a le i da U mbanda e a re volta Q uimbanda.
Podemos diz er que a m acumba recorda de m aneira
censurada a situ a ç ã o da A ngola ja ng a e sua epopéia.
E nfim , um desejo e um a d e rrota que devem para sem
pre e star “ esquecidos” , e apenas lembrados alusiva
m ente, sem que possam d e sp ertar a dor, e possam su-
blim a d a m e nte re a liz a r esse desejo na gira da Q uimban
da. É assim que a p a la vra m -a -c-u-m -k a ocupa o lug ar
da p a la vra m-o-c-a-m-b-o, as casas onde moravam os
quilom bola s.
A p a la vra m acum ba desloca p ara algo in d e finid o
ou sem relação com o ritu a l (in stru m e nto m a cum b a),o
perigo de um a possível associação com algo que p u
desse “ provocar emoções forte s, por vezes dolorosas” .
Este é o c a rá te r de defesa deste deslocam ento, que re
calca um re torn o ao que está la te nte no hn a gin ário

XXV
U mbandista, a “ dista nte” e esquecida Angola janga, a
epopéia de P almares.
Mas a macumba também “ conta” outra coisa, e si
m ulta n e a m e nte: a situação do negro favelado, do ne
gro bra sileiro hoje. — Porque esse negro brasileiro está
somente parcialm ente libertado e ele sabe, ele perma
nece num a posição social infe rior e dominado.
E é por isso que nos disse E xu-M angueira, “ a um
banda é a servidão, para nós a quimbanda, é a liber
dade” .
Nossa interpretação da macumba, certamente, não
agradará a todos os sociólogos, quer franceses ou brasi
leiros especialistas do candomblé da B a h ia ...
Eles são m uito “ prudentes” , acumulam os “ fatos” .
Mas não dizem o que significa o discurso recalcado da
m a cumb a .
O sociólogo do candomblé se fund a num a atitude
religiosa em que toma as religiões por fatos absolutos,
significações em si mesmo, isto é, em sua própria pro
blem ática.
Ora, respeitar os cultos, para nós, não significa
proibição de compreendê-los.
Nossa interpretação questiona, contesta, interpela
e desafia todo sociólogo empirista — positivista dos
ritos afro-brasileiros. Nós tomamos posição aqui con
tra a escola empirista que recusa a le itura interpreta-
tiv a dos fatos religiosos. Não tomamos as idéias como
fatos, mas os fatos como idéias. C ontra as proposições
metodológicas empiristas afirm amos a validade de
nossa leitura , e começamos neste livro a pra tic á-la .
Por outro lado, tomamos p a rtid o Tia lu ta que se
tra va neste momento entre a Umbanda e a Q uimban
da. Nós tomamos p artido da Q uimbanda contra a Um
banda e incorporamos E xu nos terreiros quimbandeiros.
Nossa análise da macumba e de seu segredo nos
fez descobrir que a quimbanda não é “ o m a l” , o “ ritu a l
que m ata” . A quimbanda é ao contrário o ritu a l que
deseja lib ertar os homens.

xxvi
É o ritu a l que diz sim bolica m e nte que o hom em
aind a não é livre , e que ele deve tra b a lh a r p ara sua
to ta l lib e rta ç ã o .

R io, s e xta -fe ira , 13 de o utu bro de 1972.

G eorges Lapassade.

M arco A u ré lio L u z .
V I — B R E V E D E S C RIÇ Ã O D E T R Ê S C E N T R O S

1 — O T e m plo U m b a ndista d a R u a S. C le m e nte

A e n tra d a um corre dor e um a p rim e ira p o rta à


d ire ita : o e s critó rio d a dire ç ã o . E m fre n te , a se creta
ria . C a m inh a-se p o r um corre dor la d e a do p or peque
nas capelas d edicad as a O m u lu , P omba G ira , V e lho
P edro... um a cria ç ã o que n ã o p erte nc e c erta m e nte a este
te m plo. A c a p e lin h a de O m ulu é a m a is b o n ita , com
su a decoração de r á fia e de p a lh a ; O m ulu é cob erto de
m a nch a s v erm e lh a s. N o n ic h o em fre n te , im a g e ns re
pre s e nta ndo esqueletos, a ind a E xu , e um pu n h o p la n
ta d o no ch ã o com b ilh e tin h o s atra vessados p or um a
la n ç a . Se o d ire to r do te m plo é fe itic e iro ? E le se de
fe nd e e e x p lic a que n ã o se tr a t a de q u im b a n d a . . . E n
tre ta n to estão e scritos nos bilh e te s nom es de pessoas
que fiz e ra m m a l a a lgu é m ; e a lgu é m q u e r re trib u ir-lh e s
o m a l: os in im ig o s , cujos nom es estão traspassados p ela
la nç a , vão m o rre r sob o e fe ito d a m a gia n e gra .
Chega-se e n fim à gra nd e s a la . E sta é d ecora da co
m o um a ig re ja : à d ire ita os bancos das m ulh e re s e à
esquerda os dos hom e ns. U m a b a rre ira separa a assis
tê n c ia do lu g a r do c u lto . P or ocasião das consulta s, um
og a n se posta à e n tra d a , e n tre o povo e o lu g a r do c u lto .
E le ch a m a um núm ero, conform e a ordem das fic h a s
com pra d a s com a nte ce d ê ncia , n a s e cre ta ria . D ura n te
v ária s hora s, cada n o ite de q u in ta -fe ira , consulta m -s e
as divind a d e s que desceram no te m p lo .
No corre dor de e n tra d a , a dire ç ã o a fix o u um “ pro
gra m a ” . A p rim e ira sem ana p erte nc e aos caboclos, de
pois sucessivam ente, nas o utra s q u in ta s-fe ira s : “ a mesa
do orie n te ” (2a. s e m a n a), os P re to-V e lhos (3a. sem a-

27
n a ) ) e fin a lm e n te os E xus, que descem n a ú ltim a q u in
ta -fe ira do m ês. N o m esmo qu a dro indic a-s e , d ia n te do
nom e de cada m é dium a e ntid a d e com qu e m ele tra b a
lh a . A ssim , n a p rim e ira q u in ta -fe ira , cada m é diu m re
ceberá c ertos C aboclos do re p e rtó rio de m a cum b a . N o
dia dos E xus, cada um será ca valo do seu E x u . H á um a
h ie ra rq u ia e n tre os E xus. O m a is a lto , h ie ra rq u ic a m e n
te será reservado ao d ire to r do te m p lo . O pro gra m a é
um qu a dro em duas colun a s: a v e rtic a l in d ic a o pro
gra m a das sessões do m ês. As colun a s h oriz o n ta is cor
respondem à lis ta dos m é diu n s. A ssim , os p a p éis são
d e fin id o s . D iría m os que cinco peças estão m arca d a s no
re p e rtó rio do mês, com um a re pre se nta çã o se m a n a l, às
q u in ta s-fe ira s . Os te m a s das cinco peças são os cabo
clos, os pre to-v e lhos, os e sp írito s do orie n te , as “ c ria n
ças” e os E xu s. E ste é o siste m a a dota do p elo te m p lo .
M as, ao la do, em o utro s ce ntros, os E xus serão re c e bi
dos às s e xta s-fe ira s, depois de m e ia-noite , depois que os
pre to-v e lhos tiv e re m sido recebidos até m e ia-noite . No
T e m plo d a ru a S. C le m e nte o u tra s a tivid a d e s são pre
vista s p a ra as salas do p rim e iro a n d a r. Essas salas a ind a
e stavam em construç ã o qu a ndo passei p e lo R io .

O d ire to r do T e m plo, D r. N ilo , que é ta m b é m S u


m o-sa cerdote, a n u n cia que nas salas do p rim e iro a n d a r
será p ra tic a d a “ a lta m a g ia ” . N um a s a la som bria co
lo c ara m u m c a ix ã o v a z io: no te m po d a in icia ç ã o o neó
fit o d o rm irá nesse c a ix ã o — segundo o D r. N ilo , ele
fa rá e ntã o a e xp e riê ncia d a m orte e d a re ssurre iç ã o.
Nos arre dore s do T e m plo se pode v er a p o lícia , g u a r
d a ndo postos de g a solin a , as grand es lo ja s, sup erm er
cados e agências b a n c á ria s . . . A n o ite , g u a rd a s-n o tur
nos passeiam, assoviando, vig ia n d o a cid a d e . É como
se a p o líc ia velasse p or um a sociedade selvagem, sem
pre a um passo da explosão. Essa obsessão da agressão

28
e da vio lê n cia g e n eraliz a d a s embebe os rito s desse T e m
plo e de todos os outros c e n tro s . E la im põ e , p or tod a
p a rte , a im a g e m d o m in a n te d a m o rte . Essa a n g ú stia
d ifu n d id a p o r to d a p a rte , em tod a s as escalas sociais,
e stá pre se nte n a im a g e m que se e m pre sta a E xu e a
A b a lu a é . E la se m is tu ra ao que re sta da le m bra nç a s
a fric a n a s nesses c u lto s da doença e do in fe rn o .
A Á fric a , depois a re lig iã o c a tó lic a , o e s p iritis m o de
A lla n K a rd e c forn e c era m um siste m a de cre nça , de r i
tos e de sím bolos que p e rm ite m à sociedade m od ern a ,
presa da obsessão de violê n cia , de se d a r um a re pre s e n
ta çã o m ís tic a de si m esm a e de e x p rim ir seu dila c e ra -
m e n to . O conh e cim e nto do siste m a n ã o é s u ficie n te p a
ra d e m o n stra r como a um b a nd a , que n ã o e stá d ire ta
m e nte e ng a ja d a no c o n flito p o lític o do B ra sil, e xprim e
e n tre ta n to esse c o n flito , te n ta esquecê-lo, m as n ã o o
consegue. N a tra n q ü ilid a d e m e la n cólic a da B a hia , o
rit o n e gro está, c e rta m e nte , m a is pró xim o de um a c e rta
Á fric a , n a tu ra lm e n te com to d a a dife re n ç a im p lic a d a
p ela d e porta çã o, p e la e scravid ão, p e la m is tu ra de d ife
re nte s sociedades a fric a n a s . M as no R io e em S . P a ulo,
n a s fa vela s, no m e io dos ra to s e do lix o , todos os de
sempregados vindos do Nodeste e n c o n tra m nos ritu a is
da um b a nd a o lu g a r da p a la vra socia l que lh es diz m u i
to m a is do que os m é diu ns e sacerdotes pre te nd e m d i
z er. A m a cum b a do R io é o sonho, ou a nte s o pesadelo
de um a sociedade dila c e ra d a ” 18.
Sobre o a lt a r da ru a S . C le m e nte h á im a g e ns de
O rix á s: O x a lá , X a ngô, O gum , Ie m a n já , Cosme e D a-
m iã o .. . Sob o a lta r, um a q u á rio com ta rta ru g a s viv a s
e Ie m a n já . N as paredes, p in tu ra s e reproduçõ e s dos
ín dio s e pre to-v e lho s.
C omo em todos os o utros a lta re s, em outros lug are s,
a p a rte supre m a do a lta r é re serva d a aos O rix á s. M as,
e m b aixo, ao n ív e l do a qu á rio e em o u tro a sse nta m e nto,

29
podem-se ver as m ora d a s dos caboclos, pre to-v e lho s e
E xus. J á me re fe ri a isso: a distin ç ã o c ris tã e n tre C éu e
In fe rn o provocou um a loc a liz a ç ã o tã o sim b ólic a dos ín
dios e pre to-v e lhos, que estão como qu e no in fe rn o da
sociedade. F o i necessário e xpuls á-los p a ra as regiões
despovoadas, necessário e scra viz á-los p a ra c o n s tru ir a
sociedade co lo n ia l, da q u a l o c a to licis m o e ra a re lig iã o
o fic ia l. O s O rix á s, com sua a p a rê ncia c a tó lic a , re pre
s e nta m a re lig iã o dos n egros dom esticados, ao passo que
aqueles que são sempre celebrados n a m a cum b a : os ín
dios, pre to-v e lhos e E xus, co n stitu e m a p a rte dos in fe
riore s e re je ita d o s dessa sociedade. Os O rix á s se m is
tu ra m , às vezes, de m a n e ira m u ito com ple x a a essas
e ntid a d e s d a te rra . M as no R io, fo i o c u lto dos caboclos,
pre to-v e lhos e E xus, que tro u x e consigo os O rix á s .

O D r. N ilo se p ro s tra d ia n te do a lta r. R e cita o


P ai-Nosso e a A v e -M a ria . E m s e guid a e nto a os p rim e i
ros c a ntos do ritu a l, os pontos c a nta do s. Os trê s ta m
bores m arc a m o seu a p e lo d irig id o às e ntid a d e s do es
p a ço. As e ntid a d e s vêm e com eça o tra n s e : tre m ore s
em todo o corpo, e, em seguid a , a e n tra d a de cada mé
d iu m , m u ito ra pid a m e nte em seu p a p e l. Se se tr a t a de
um a c ele bra çã o de caboclos, provid e ncia m -s e ch a ru to s
e p a ra a lg u n s m é diu ns u m cocar de p e n a s. Se fo r um a
n o ite de pre to-v e lhos, tra z e m-se ca chim bos, fu m o e b e n
g alas (pois os pre to-v e lhos a nd a m curv a dos, a lqu e bra
dos p e lo peso dos anos e p e la f a d ig a ). P a ra os E xus
tra z e m ca ch a ça .

2 — D on a Rosa, n a F a v e la de S a nta M a rta

N o te rre iro de D o n a R osa a sessão com eçava depois


de m e ia -n o ite . E la ch a m a os E xus, v o lta d a p a ra a pe
qu e n a p o rta de e n tra d a . Nessa h ora os adolescentes da

30
fa v e la sobem pelas ru e la s em dire ç ã o ao te rre iro , e n
tra m , c irc u la m um pouco p or e n tre a p e quena m u lti
dão presente, sa em, to rn a m a v o lta r. B usca m a v e n tu
ra . . . sobretudo, busca m tu ris ta s ! A q u i acabam-se as
b a rre ira s: n in g u é m vende e n tra d a à p o rta p a ra que se
possa c o n s u lta r. Q u a ndo se v is ita o te rre iro de D on a
Rosa é que se pode e nte nd er o sig n ific a d o do T e m plo
da ru a S . C le m e nte : um e sforço bem sucedido de do
m e stic a r e d o m in a r a nova re lig iã o , d a ndo-lh e um
qu a dro s e m e lh a nte ao da Ig re ja C a tólic a , com re g u la
m e ntos, proibiçõ e s, e n tra d a espe cial, reservada p a ra os
m é diuns, s e cre taria , dire ç ã o org a niz a d a e a u to rit á ria .
O T e m plo d a ru a S . C le m e nte é, c erta m e nte , a form a
d a um b a nd a do fu tu ro . N o R io está in ic ia d o o proces
so siste m á tico de d e sfa v e la m e nto, com a tra n s fe rê n cia
de favela dos p a ra os sub úrbio s. Nos m orros, de onde
eles serão e xpulsos, s urg irã o gra nd e s hoté is e e difício s
luxuosos. N a p e rife ria do R io, e ncontrar-s e-ã o, e ntã o,
te m plos um b a n dista s, d is trib u íd o s p o r b a irro s .. . T a l
vez abram-se te m plos de um b a n d a nos pró prio s e d ifí
cios d a Ig re ja C a tó lic a , se os p a dre s c a tólicos n ã o t i
verem e n co ntra d o um a form a de “ re conversã o” e de
u n ific a ç ã o das diversa s m a nife sta çõ e s re ligios a s a tu a l
m e nte presentes no B ra sil. E n tã o um novo p ú b lic o pas
sará a fre q ü e n ta r as ig re ja s .

3 — N o T e rre iro de A lcid e s, n a F a v e la d a R o cinh a

A lcid e s, d a F a v e la d a R o cinh a , recebe E x u M a n


g u e ira . É um a v aria ç ã o d a um b a nd a com m u ita s in o v a
ções, u m pouco m a is de te a tro , um pouco m a is de “ m u
s ic -h a ll” , conform e o gosto de seu d irig e n te (os m é
d iu n s não e sta va m de a cordo com que ele recebesse v i
sita n te s hippie s, m as o d ire to r a firm a com to d a a con
vicçã o que E x u M a n g u e ira é o P a i dos hippie s) 19.

31
Q u a ndo E xu M a n g u e ira se a pre s e ntou, e d ura n te
a con sulta , ele contou com o tin h a sido m orto , qu a ndo
a in d a era adolescente, m ostra nd o, no m eio de te r
re iro um re tra to seu, que se d iria desenhado p or Leo-
n o r...

—. N ota s de d iá rio :

N u m a n o ite de 11 de o u tu bro , o b a rra c ã o de E xu


M a n g u e ira é tra n s form a d o como que n u m p a lá cio re a l.
E xu M a n g u e ira está assentado em seu tro n o , com sua
ca p a p re ta e v e rm e lh a . A o seu la do, o jov e m a to r B e l-
lo n z i re pre s e nta o p a p e l de S alom é . P a ra os p a rtic i
p a nte s (c a v a los) é o filh o do R ei E xu , que acaba de
ser e scolhido. E xu acab a de d e scobrir que B e llo n z i é
filh o de O gum . Q u a ndo E xu se le v a n ta , B e llo n z i enche
a ta ç a de p ra ta do re i com cacha ça e a d is trib u i e ntre
todos os p a rtic ip a n te s . E le se assenta no tro n o do R ei.
Do o u tro la do, ju n to ao a lta r, a R a in h a (a m u lh e r de A l-
cid e s-E xu) im p e rc e p tiv e lm e n te assume um a funç ã o sa
c e rd o ta l m a is discre ta . P e rto de m im , um ra p a z que se
d iz m é diu m irá , d e n tro de a lguns m in u to s , desencade ar
um v erd a d e iro dra m a , qu a ndo o R e i a m e a çar m a tá -lo
com sua la nç a . C o nta ra m -nos depois que o ra p a z é “ um
m a u c a rá te r” , bebe, roub a , não re sp e ita sua m ã e ...
é um conte sta dor e E xu deve p u n i-lo . Q ua ndo o R ei
am e aça o filh o com m u ita violê n cia , a R a in h a vem
a c a lm á -lo. Os o u tro s, a tore s-m é diuns, to m a m um a po-
a c a lm á -lo. os outros, a tore s-m é diuns, to m a m um a posi
ção de coro a n tig o , a titu d e s , faces, e tc . . . C ole tiv a m e n
te pedem ao R e i que este c o n trole sua cólera , que lh es
parece p erigosa. O R ei d e ix a , im e dia ta m e nte , o ra p a z . Se
ele n ã o o tivesse fe ito , a R a in h a e o coro c a n ta ria m
cançeõs m á gic a s p a ra dissu a di-lo.

32
E m s e guid a o R e i a pre s e nta B e llo n z i a seu povo e à
su a c orte . F a la d a bele z a de seu filh o e m o s tra suas
p uls e ira s hippie s. O R e i d iz qu e a m a os hip pie s porqu e
eles são o re e n c o n tro e ntre a In g la te rra e a Á fric a e que
E x u ta m b é m é um h ip p y 20. É su a m a n e ira m u ito es
p o ntâ n e a e sim b ólic a de diz e r que a “ v e rd a d e ira ” m a
cum b a , is to é, a q uim b a nd a é um a c o n tra c u ltu ra .
P ara ele a q uim b a nd a é um a form a de c o n tra c u l
tu r a . A lcid e s só a m a re a lm e nte a quim b a nd a , c o n for
m e ele p ró p rio nos confessou; e se ele a in d a p ra tic a a
um b a nd a , p a ra ele a dom e stica çã o da quim b a nd a , é por
que a sociedade b ra s ile ira e xige dele um a t a l dis sim u la
ção.
P or v o lta das trê s hora s da m a drug a d a um a g a
ro ta n e gra (trê s anos de id a d e , v e stid a com um a ca
m isola bra n c a e com um tu rb a n te n a cabeça) d a nç a so
z in h a no c e n tro do te rre iro . C omo os dem ais ela bebe
cachaça e fu m a c h a ru to s . E m s e guid a ela d a nça com
E xu, que a to m a nos bra ços. E x u v o lta a seu tro n o ,
cedido a in d a h á pouco a B e llo n z i. D e re p e nte ele tom a
um a a titu d e com o se a g a ro ta fosse sua p ró p ria f ilh a . . .
A fe sta c o n tin u o u com sua in te n sid a d e “ d ia b ó lic a ” até
o nascer do sol.

V II — A F O R M A Ç Ã O D O S IM B O LIS M O S O C IA L

A um b a nd a é o n a scim e nto de u m a re lig iã o , como


observou R. B a stid e . E la nos p e rm ite a n a lis a r como
n u m la b o ra tó rio a c o n s titu iç ã o de um siste m a de sím
bolos em um a sociedade, n u m gru p o ou classe so cia l.
Q u a ndo o n e gro adere ao c a tolicism o , ele assum e u m
siste m a sim b ólico já c o n s titu íd o : m as qu a ndo ele in
v e n ta o ca ndom blé bra sile iro ou a um b a nd a , ele c ria
um novo siste m a de sím bolos.

33
1 — O im a g in á rio socia l

O im a g in á rio socia l está n a base do que p e rm ite


essa c o n stituiç ã o , im p lic a n d o a cre nç a re ligio s a ao seu
n ív e l m a is g e n eraliz a do. Essa cre nça a d m ite a possibi
lid a d e de um campo in vis ív e l, de seres nocivos e a tu a n
tes, c u ja e xistê n cia in v is ív e l é re conh e cid a pelos que
aderem a essa a firm a ç ã o “ a p rio ri” . T a is seres e xiste n
te s-in visív e is são os sig n ific a n te s d a im a gin a ç ã o so
c ia l e pressupõem um im a g in á rio socia l c e n tra l que fa
bric a , ou in v e n ta esses deuses.
A p a rtir d a í, um novo sim bolism o se c o n s titu i, n a
e n cru z ilh a d a de v á rio s siste m a s de im a g e ns, de v á ria s
id e ologia s (re ligiõ e s a fric a n a s , e s p iritis m o , m a çon a ria ,
c a to lic is m o .. . )

2 — U m novo código

O siste m a sim b ólico é, ao m esmo te m po, um código


que p e rm ite perceb er os a conte cim e ntos que se pro d u
z irã o no in t e rio r do ritu a l.
P or e x e m plo: um a jov e m m é diu m sofre um a cris e
de c a ra cte rístic a s h isté ric a s , no m eio de um ritu a l de
E xu s. E la chora , pede esm ola p or seus filh o s que es
tã o com fo m e . . . Diz-se e ntã o que e la não se d e ixou
to m a r a té o fim por P omba G ira , m as fo i possuída p or
um a “ a lm a p e n a d a” de a lgu é m (a filh a d a don a do
te rre iro ) m o rta h á q u a tro meses. A m ã e da m o rta d i
rá m a is ta rd e que a m é diu m m e n tiu , e que os que in
te rp re ta ra m o fa to ta m b é m m e n tira m , pois um a “ a lm a
p e n a d a” n ã o pode descer apenas q u a tro meses depois

34
de sua m orte . N ã o h á porqu e se e sp a nta r d ia n te dessa
m e n tira : os E xus m e nte m m u ito fre q u e nte m e nte .
A ssim , o siste m a p e rm ite in te rp re ta r a cris e , re cus ar
a in te rpre ta ç ã o e p erm a n e c er, contu d o , d e n tro do có
dig o .
(D a m esm a form a , um a vez, n o te rre iro d a R o ci
nh a , os tra ns e s dos hippie s do L iv in g T h e a te r fora m
in te rpre ta d o s como “ in te rfe rê n cia s dos e spíritos do c a n
dom blé” , que n ã o são a d m itid o s n a m a cum b a , m as que
nessa n o ite forç a ra m a p o rt a .)
Nesse siste m a tu d o te m u m a e xplic a ç ã o. Podemos
com p ará-lo a u m siste m a d e lira n te . M as podemos ta m
bém com p ará-lo a um sistem a se m e lh a nte à psic a n á lis e
(os O rix á s de F re u d são as divind a d e s e personagens
gregos: E ros, T h a n a tos, É dipo, e tc .).

3 — O Progresso d a U m b a nd a e o d e clín io d a Q uim


b a nd a

O progre sso d a um b a nd a é fa vore cido p elo n a cio


n a lism o b ra s ile iro . E la é, m a is ou m enos dire ta m e n te ,
suste nta d a pelos dirig e n te s p o lític o s . E n fim , a lguns te ó
logos c a tólicos, p or e xe m plo V a ld e li, da PU C do R io,
cheg am a p e ns ar e a diz e r que, com e fe ito , a um b a nd a
pode d e fin ir u m “ c a to licis m o” qu e corresponde m e lh or
à c u ltu r a bra sile ira , que o c a to licis m o im p orta d o d a E u-
ro ra , in te le c tu a liz a d o dem ais e que não re s is tiu ao sin-
cre tism o dos c u lto s a fric a n o s (conform e um m e ca nism o
de sin cre tiz a ç ã o a n á logo ao que deu orig e m ao v u d u
h a itia n o ) 21.
A condiçã o desse re conh e cim e nto e dessa ascensão
d a um b a nd a é, n a tura lm e n te , o a b a ndono da q uim b a n
da, ou, ao m enos, a sua dom e stica çã o.
O -processo já e stá m u ito ava nça do. C om o fim da
c u ltu r a das fa v e la s ele ir á a té o f im . O ritu a l v erm e lho
e n e gro dos E xus será, n a c erta , apenas um a le m bra n-

35
ça, ao passo que a um b a nd a se to m a rá a re lig iã o n a cio
n a l, n a m e did a em que se in te g ra r à c u ltu ra . S erá en
tã o esquecido que a m a cum b a fo i, em suas orig e ns a
c o n tra c u ltu ra em m e io ao c a tolicis m o dos bra ncos*

4 — O povo e os in te le c tu a is bra sile iros

E n tre o povo, in clu siv e e ntre os bra ncos, a im p o r


tâ n c ia da m a cum b a é re conh e cid a . O m esmo se dig a
q u a n to à admissão de um a c e rta e fic á c ia . . . O povo
bra sile iro , p or razões h istóric a s está m u ito m a is p ró x i
mo da m a cum b a que do c a tolicis m o que, como já in d i
qu e i, é reservado, de fa to , à burgu e sia bra n c a . (S abe
mos que ta m b é m n a E urop a e xiste um tip o de c ris tia
nism o p o p u la r, que d á m u ita im p o rtâ n c ia aos S antos,
e tc . e que esse c a to licis m o , bem d is ta n te do c a to lic is
m o dos padres e teólogos, te m sua im pre ns a , suas re vis
ta s e b a z are s. . . )
E n tre os in te le c tu a is a situ a ç ã o é m a is com plic a d a .
A te n d ê n cia g era l s eria de re je ita r a m a cum b a ou antes
de in g n orá -la , de v ê-la como um fe nôm e no m a rg in a l,
consid era do em term os “ m a rxis ta s” com o “ ópio do povo” .

5 — U m proble m a p o lític o

Tocamos a q u i o proble m a p o lític o e id e ológico. E m


seu c o n ju n to , os in te le c tu a is bra ncos do B ra s il não dão
ao a ssunto a im p o rtâ n c ia d e vid a .
P a ra d e scobrir essa im p o rtâ n c ia é pre ciso passar
p e la a n á lis e sim b ólic a do siste m a; é pre ciso a d m itir que
os sím bolos sociais são deform a dos p e la re je iç ã o h is tó
ric a e p e la repressão; é pre ciso a n a lis a r o fe nôm e no re-

36
C e rim ô n ia de “ b a te r cab eça’’ — T e m p lo U m b a n d ist a d a R u a S ão C le m e nte
“ . . . b a t e r ca beça aos pés d o B a b a lo rix á . . . ”
E xu re v o lt a d o , d e rrot a d o , aos pés de O gum de l e i e a ind a O xóssi (S ã o S e b a stiã o)
" . . . Ê e le o Z u m b i, p ara m im o a d v ers á rio im p la c á v e l do deus da g u e rra d a Umb a nc
O gum o S ão Jorg e , qu e nos c a ndom blé s d a B a h ia é O xóssi” . , .
lig io s o como u m a lin g u a g e m im a g in á ria e sim b ó lic a que
possui sua ló g ic a in te rn a , em lu g a r de re p e tir in d e fin i
d a m e nte e de m odo f á c il d e m ais que a “ re lig iã o é um
ó p io” .

V IU — A TR OMBA E A MAC UMBA

Pode-se co m p a ra r o lu g a r s o cia l d a m a cum b a n a


sociedade b ra s ile ira ao que ocup a m c ertos rito s n a a tu a l
sociedade a fric a n a , p or e xe m plo a tro m b a 2'2.
A p rim e ira v is ta , o lu g a r de ambas as re ligiõ e s é
pro fu n d a m e n te d ife re n te . P arece que a oposição e n tre
a tro m b a e a m a cum b a é to t a l:

1. e n q u a n to a m a cum b a , p e lo m enos a tu a lm e n te ,
viv e em boa v iz in h a n ç a com o c a to licis m o bra
s ile iro , a tro m b a se opõe à re lig iã o c a tó lic a .
C omo observa A lth a b e : “ p a ra os h a b ita n te s das
a ld e ia s do M a d a g a sc ar a tro m b a é como que a
negação do cris tia n is m o ” ;
2 . um a se gund a observação se coloca n a e sfera po
lític a : no B ra s il a m a cum b a é m a is fa c ilm e n te
a c e ita p e lo pod er p o lític o que a Ig re ja C a tólic a ,
d a q u a l um a p a rte consid erá v e l do cle ro e dos
fié is se coloca n a oposição ao re gim e . Se a m a
cum b a nos p arece in d ic a r um sonho c o le tiv o de
pod er n e gro, is to n ã o u ltra p a s s a o n ív e l d a in
te rpre ta ç ã o sim b ó lic a . E m sua co n d u ta e x p lí
c it a , os sacerdotes de um b a n d a a p are cem h oje
m u ito m a is com o agentes in d ire to s d a in te g ra
ção socia l e p o lític a , ch e g a ndo m esmo a a fix a r
c arta z e s de prop a g a nd a e le ito ra l nos lu g are s de
c u lto . A tro m b a , pelo c o n trá rio , nasceu do con
te x to d a re v o lta m a lg a x e c o n tra o coloniz a dor
fra nc ê s, em 1947. E la re c ru ta seus in icia d o s e n-

37
tre a pop ula ç ã o ru r a l que esteve e ng a ja d a no
c e n tro d a re v o lta . É u m m o vim e n to p o lític o ,
em sua s ig n ific a ç ã o im e d ia ta , com o fo ra m os
m ovim e ntos a fric a n o s de lib e rta ç ã o que se a poia
ra m n as re ligiõ e s a fric a n a s (d a m esm a form a
o vu d u h a itia n o esteve o rig in a lm e n te lig a d o ao
m o vim e nto de lib e rta ç ã o n a c io n a l) ;
3. e n fim , a tro m b a c o nte sta a e s tru tu ra tra d ic io
n a l de p a te rn id a d e , a h ie ra rq u ia e tá ria , e os
s u b s titu i p o r um a com unid a d e “ de sup era çã o”
d e n tro d a a ld e ia . A U m b a nd a , ao c o n trá rio
re sp e ita essa e s tru tu ra : a org a niz a ç ã o fo rte
m e nte h ie ra rq u iz a d a de suas c o n fra ria s re fle te
as e s tru tu ra s a u to ritá ria s d a ord e m socia l e xis
te n te . Os v a lore s sociais pre z ados pelos sacerdo
te s são a p ró p ria c o nform id a d e à ord e m e sta
b ele cid a , à f a m ília , ao re sp e ito p e lo m a is v e lho e
p e la tra d iç ã o . (E u v i u m ch e fe de te rre iro cen
s u ra r se v era m e nte u m a jo v e m m é diu m que t i
n h a b a tom nos lá b io s: e la era e m pre g a d a em
u m e s critó rio e v in h a d ire ta m e n te do tra b a lh o
p a ra a sessão n a f a v e la ).

A ssim , os dois rito s n e gros p are ce m situ a r-s e em dois


e xtre m os de um a lin h a : a tro m b a s eria o e x e m plo típ ic o
de u m a re lig iã o c o n te s ta tá ria , e n q u a n to que a m a cum b a
a p are ce como u m m o vim e n to de in te g ra ç ã o .
A re a lid a d e , poré m , é bem m a is co m p lic a d a . T e n
t e i m o s tra r que a dom e stic a ç ã o d a m a cum b a se fa z a tra
vés d a um b a nd a , re lig iã o n a cio n a l e m form a ç ã o . Esse
te rm o , dom e stic a ç ã o d a m a cum b a , fo i m esmo espon
ta n e a m e n te e m pregado, d u ra n te um a conv ers a com um
ch e fe de te rre iro m a is conscie nte do processo — era o
ch efe qu e d e fin ia a q u im b a n d a com o c o n tra c u ltu ra e
d iz ia que E x u M a n g u e ira e ra o fu n d a d o r dos h ip p ie s.
A q u im b a n d a é u m a c o n tra c u ltu ra re p rim id a . A
u m b a n d a é, ao c o n trá rio , u m a fo rm a e dulcora d a , bem
c o m p orta d a , filtr a d a , d a c u ltu r a a fro -b ra s ile ira 28.

38
C om a re je iç ã o e a repressão tu d o se passa ao n ív e l
do im a g in á rio sim b ó lic o e do sim b olism o s o cia l. A re
pressão do desejo d a c ole tivid a d e n e gra produ z , assim,
nm d e sloc a m e nto p o lític o n a dire ç ã o do in conscie nte .

G era lm e nte consid era m-se as “ d anças de possessão”


como um pro ble m a fo lc ló ric o . N ã o se vê s u ficie n te m e n
te , ao m enos se nos lim ita rm o s aos estudos clá ssicos,
su a sig n ific a ç ã o p o lític a e socia l, porqu e n ã o se qu ere m
a n a lis a r os n ív e is im a g in á rio s e sim bólico s do siste m a
p o lític o .
E n tre ta n to , com tra b a lh o s com o os de L a n te m a ri
e de A lth a b e , com eça a s u rg ir um a e voluç ã o. Descobre-se
um a possibilid a d e de u m a “ a n tro p o lo g ia p o lític a ” que
m o s tra ria a s ig n ific a ç ã o p ro fu n d a desses fe nôm e nos re
ligiosos .
É nece ssário ir m a is long e a in d a .
C om o co n c e ito de c o n tra c u ltu ra , c o n tr a -in s titu i
ções, contra-so cie d a d e . . . esses rito s a p are cem sob um a
nov a lu z . A q uim b a n d a , essa c o n tra c u ltu ra em v erm e
lh o e n e gro pode d e sv e lar u m siste m a socia l d a m esm a
fo rm a que a c o n tra c u ltu ra dos jov e ns desvela o s e n ti
do de nossas in s titu iç õ e s 24.
P a ra com pre e nd er o lu g a r d a m a cum b a n a socie
dad e b ra s ile ira é necessário, a nte s de m a is n a d a , u t i
liz a r o conc e ito de c o n tra c u ltu ra .
A m a cum b a , a re lig iã o do tra n s e n e gro, das com u
nid a d e s fa v ela d a s, é um a o u tra c u ltu r a no m eio d a c u l
tu r a o fic ia l, que é a c u ltu ra bra n c a , burgu e s a e c a tó
lic a d a E uro p a .
E n cora ja n d o o d e s e nvolvim e nto d a um b a nd a , em
conse qü ê ncia o d e s a p are cim e nto da q uim b a nd a , o “ po
d er bra n c o” no B ra s ü te n ta fa z e r e n tra r em sua c u ltu ra
essa c o n tra c u ltu ra n e gra que n ã o pode ser e lim in a d a 2®,
in te gra n d o-a n a ch a m a d a c u ltu r a m e stiç a d a e dom e sti
c a d a . É a tra d u ç ã o sim b ólic a do e sforço fe ito p a ra in -

39
te g ra r o pro le ta ria d o e os a ntig o s escravos ao siste m a
c a p ita lis ta do O cid e nte .

c o n c lu s ã o : A m issa n e gra ou a m iss a dos negros?

G o sta ria de, com o conclusã o, re to m a r a lguns pon


tos d ese nvolvidos n e ste a rtig o , re sum indo-os e s itu a n
do-os n u m a te o ria de a n á lis e so cia l.
O tra n s e em sua fo rm a “ selva g e m” , e spontâ n e a e
in d iv id u a l, é um a c o n d u ta c orp ora l a in d a n ã o in s c rita
n um a ord e m sim b ó lic a . E ssa in s criç ã o se fa rá p e la m e
dia çã o de grupos re ligiosos que o in s titu c io n a liz e m , m o-
d ific a n d o -o .
Q u a ndo o tra n s e se in s titu c io n a liz a , torn a-s e um a
co n d u ta sim bólic a e c o le tiv a : o possuído dese m p enhará
e ntã o o p a p e l de um deus, de qu e m ele será o “ c a v a lo” .
E le é possuído p elo deus, a in s titu iç ã o é u m código, um a
lin g u a g e m que d á co erê ncia a tu d o , a p a rtir da q u a l t u
do se in te rp re ta .
Nossa descrição se pre nd e até a q u i ao n ív e l do u n i
v e rs a l. Nesse n ív e l todos os rito s de possessão tê m a
m esm a e s tru tu ra , que é a m esm a dos rito s de passa
g e m t(!. D e m odo m a is g era l, todos os rito s são ig u a is
em suas form a s m a is a b stra ta s .
O r it o é um a lin g u a g e m , o tra n s e é ig u a lm e n te um a
lig u a g e m .
A m a cum b a no R io , a tro m b a em M a d a g a scar, a
d a nç a de possessão dos a ntig o s escravos n e gros do M a gh
re b são sin a is secretos, a in d a visív e is, d a lig a ç ã o e n tre
o tra n s e e a re v o lta .
M as essa lig a ç ã o será d e stru íd a p e la in s titu c io n a li
zação, que dom e stic a rá o tra n s e . E is como se f a rá essa
dom e stic a ç ã o.
O tra n s e é, a nte s de m a is n a d a , um fe nôm e no p si
cossom ático, que coloca em ação possibilid a d e s de ex-

40
pressão in s crita s no corpo (qu e pod e m se m a n ife s ta r
ta m b é m no son a m bulism o, n a hipnos e ou n a h is t e ria ).
P ara e x p lic a r o que se passa a esse n ív e l, s eria necessá
rio e x p lic a r a conversã o (F R E U D ) dos dados psíquicos
inconscie nte s em d in â m ic a c orp ora l.
O que se passa d ura n te o tra n s e s erá “ e squ ecido” ao
d e sp ertar (os que im ita m o tra n s e sim u la m o d e sp ertar
com os olhos arre g a la dos: “ ô i, bom d ia , vocês estão p or
aí? com o v ã o?. . . ) .
A ru p tu ra p s íq uic a e n tre o tra n s e e o estado de v i
g ília fo i c e rta m e n te re forç a d a e n tre os escravos d e por
ta dos, p e la e xp e riê ncia h is tó ric a e c u ltu r a l de um corte
e n tre a situ a ç ã o n a t e rr a n a ta l e a nov a situ a ç ã o de es
cra vid ã o . A lo n g a via g e m dos n e gre iros era como a tr a
vessia de u m rio de e squ e cim e nto.
N o e x ílio , o tra n s e p e rm itir á u m a a boliçã o do re a l
e um a via g e m de v o lta à A fric a . É como o re to rn o sonh a
do, fa n tá s tic o , à te rra n a t a l. O tra n s e é o tra n s p o rte
m á gico d a . a lm a do escravo à t e rr a dos a n c e stra is, a
a boliç ã o d a consciê ncia . A p erd a d a consciê ncia é ta m
bém, p o r a lg u m te m po, o e squ e cim e nto do s o frim e n to
e do e x ílio .
A ssim , a ru p tu r a p síq uic a p e rm ite ao escravo abo
l ir a e xp e riê ncia d a ru p tu ra c u ltu r a l e h is tó ric a d a de
porta ç ã o, d a diá spora n e gra no m u n d o e scra v a gista .
Isso provoc a a passagem do tra n s e à possessão, is
to é, à ca p a cid a d e de dese m p e nh ar p a p éis litú rg ic o s dos
deuses a fric a n o s . Nesse psicodra m a o in d iv íd u o se to rn a
re a lm e n te u m o u tro : dá-se com isso aos deuses a fric a
nos a po ssibilid a d e de descerem e m t e rr a e s tra n g e ira .
E se dá ta m b é m ao gru p o de escravos que p a rtic ip a da
c e rim ô n ia , ou qu e sim ple sm e nte a assiste, a o p o rtu n id a
de de fa z e r essa via g e m im a g in á ria de v o lta à te rra
n a t a l —• essa p e re grin a ç ã o sim b ólic a à t e rra dos deuses
n e gros.
A té c n ic a a fric a n a do tra n s e recebe, assim , em t e r
ra s de e x ílio , u m a e la bora çã o c u ltu r a l e h is tó ric a que
a c e ntuo u o c a rá te r de ru p tu ra e n tre os dois estados p sí
quicos: o e sta do de v ig ília e o e sta do de tra ns e . Esse é

41
o re s ulta d o de u m a nov a situ a ç ã o c u ltu r a l em que o
f a to essencial n ã o é o fa to de ser n e gro m as o f a to de
ser escravo, de ser c a tivo .

O que é m a rc a n te nesses rito s de possessão, é o


m om e nto de a s s u m ir o p a p e l. Após a p rim e ira descarg a
no corpo do “ c a v a lo” , o deus ou e ntid a d e , “ desce” . O
corpo se subm ete a re pre s e n ta r u m p a p e l d ivin o , lit ú r-
gic o . E o corpo pode re a liz a r essa fu n ç ã o porqu e fo i
p a ra isso pre p a ra d o d u ra n te a in icia ç ã o do m é d iu m .
A lg u é m pode torn a r-s e in ic ia d o a tra v é s de um a
a pre ndiz a g e m d e fin id a como d e s e nvolvim e nto de u m a
ca p a cid a d e que só se m a n ife s ta rá se fo r a ssum id a aos
cuid a dos de u m a in s titu iç ã o . A o fim dessa in icia ç ã o o
in ic ia d o será capa z de a ssum ir os p a p é is dos deuses es
colhidos, p a ra os qu a is ele s e rvirá de “ c a v a lo” .
A in icia ç ã o é u m processo de a pre ndiz a g e m que p e r
m ite a passagem do tra n s e selvagem e s o litá rio à possibi
lid a d e de ser “ c a v a lo” dos deuses, n a s c erim ônia s de
possessão. E is o p rin c íp io u n iv e rs a l. Podemos re e ncon
tr á -lo em todos os lu g a re s em que a d a n ç a de possessão
te n h a um lu g a r re conh e cido n a c u ltu ra , com seus fié is ,
seus in icia d o s , seus grupos e in s titu iç õ e s .

A g ora a lgum a s p a la vra s sobre os rito s de posses


são 27. N a e s tru tu ra de todo rito de possessão podem-se
d is tin g u ir trê s m om e ntos: 1) a separa ção; 2) a re pre
s e nta çã o de u m p a p e l; 3) a v o lta ao p ro fa n o .
A separação é u m a ru p tu ra com o m u n d o pro fa n o ;
o m om e nto sa gra do é o d a re pre s e nta ç ã o dos p a p éis
litú rg ic o s ; o re to rn o à v id a p ro fa n a s ig n ific a , p or fim ,
a p a rtid a dos deuses, que d e ix a m seus c a v a los.
O m o vim e n to do tra n s e in s titu íd o obedece à se
g u in te e s tru tu ra :

42
1 — nos prim e iro s te m pos os in icia n d o s pro grid e m
m u ito le n ta m e n te em dire ç ã o à ru p tu ra , a tra v é s de c a n
tos, orações e inovações d irig id a s aos deuses.
O p rim e iro choqu e do tra n s e s ig n ific a a ru p tu ra ; é
e ntã o que o m é diu m (filh o ou filh a de S a nto) v a i re
v e stir-s e de seu p a p e l e re ce b er os a trib u to s a ele in e
re nte s (o m a ch a do de X a ngô, a espada de O g u m . . .
É o m om e nto d a ru p tu ra , s e guido im e d ia ta m e n te da
c e rim ô n ia s a gra d a . Ò in ic ia d o tra n sform a -s e em um
O u tro . E le se to rn a u m “ c a v a lo dos deuses” .
2 — a s e gund a fase pode d u ra r m u ita s hora s
(m esmo m u ito s dia s) com a lte rn â n c ia s . D u ra n te to d a a
seqü ência o possuído é d e s titu íd o de seu ser p ro fa n o . O
lu g a r do c u lto , a té e ntã o pro fa n o , torn a -s e um lu g a r
sa gra do ond e se d e s e nrola a d ra m a tu rg ia s a gra d a (se
esse m om e nto a pre s e nta aspectos te a tra is é ju s ta m e n te
porqu e o te a tro é o rig in á rio do rito . O te a tro n asce u do
tra n s e r it u a l) .
3 — e n fim , a te rc e ira e ú ltim a fase, os deuses d e i
x a m os lu g are s onde tin h a m “ d e scido” . C a nta m-s e as
desp edidas. O s possuídos v o lta m progre ssiv a m e nte (se
ja em p ú b lic o , com o n a m a cum b a , s e ja “ nos b a stid ore s”
como no c a ndom blé) ao seu e sta do pro fa n o , c a d a um
se gundo seu ritm o p ró p rio . R e e ncontra m os a m esm a
seqü ência n a te ra p ia d a possessão.

O do e nte d ito “ possesso” p a ss ará pelas m esm as fa


ses : a e n tra d a em tra n s e , a d a nç a te ra p ê u tic a e, fin a l
m e nte , a lib e rta ç ã o , is to é, o fim do tra n s e selva g e m .
Esse rito c a tá rtic o é, ao m esmo te m po, u m rit o de passa
gem e u m r it o de possessão.
P assando p e la s fases de in icia ç ã o , o “ possesso” se
to m a um in ic ia d o . A te ra p ia é a passagem do tra n s e
a p a re nte m e nte p a toló gic o ao tra n s e litú rg ic o . S endo a
“ doe nça” de fa to um a vocação re lig io s a a in d a n ã o re a
liz a d a . Essa vocação se re a liz a a tra v é s de um a c o le tiv i
dade in s titu c io n a liz a d a , a c o n fra ria , que é a ú n ic a in s-

43
tâ n c ia a pod er a sse gurar e a u to riz a r a e n tra d a no tra n s e
ritu a l, a passagem d a “ doença” à sublim a ç ã o — que os
in icia d o s d e fin e m com o acesso a u m a fu n ç ã o re ligio s a
p e la e n tra d a ritu a liz a d a no gru p o .
Esses trê s m om e ntos do rito de possessão corre spon
dem aos trê s m om e ntos do rito de -passagem, d e scritos
em 1907 p or A . v a n G ennep. P oderíam os m esmo diz er
que o ritu a l da m a cum b a , a ssim como fo i a q u i d e scrito,
se d e se nrola e x a ta m e nte em sua fo rm a e s tru tu ra l, como
um a m iss a .

Sob a v aria ç ã o das c u ltu ra s e dos fin s visados pelos


rito s , e ncontra-s e em to d a p a rte u m a e s tru tu ra de r i
tu a l que é sempre a m esm a . O rito , seja de passagem
seja de possessão, é in s titu íd o p a ra a ju d a r o in d iv íd u o
e a cole tivid a d e a m u d a r, a se m u d a r, ou a in d a a assu
m ir situ a çõ e s cósmicas e socia is. O rit o p e rm ite dom i
n a r a m ud a nç a “ selva g e m” im pre vis ív e l, p e rm ite con
tro lá -la re pro d u z in d o su a le i. P or essa sim ula ç ã o de
um a ord e m que a té e n tã o nos escapava, o rito surge
como u m in s tru m e n to m á gico. É a m a gia que in s titu
cio n a liz a as co n d uta s. A in s titu iç ã o ritu a l d a m a gia é,
assim, um a resposta à desordem qu e e xiste , porqu e exis
te um não-sa ber, porqu e e xiste a in d a a lgo que escapa
ao siste m a .
O rito é um a p rá tic a social, u m a rra n jo siste m á tico
de sím bolos e de p rá tic a s re ligio s a s (ou m esmo m á g i
cas) que supõem um im a g in á rio socia l c e n tra l, que p er
m ite in v e n ta r os sistem as m ito ló g ic o s e te ológicos.

O rit o pode ser expressão do desejo do re p rim id o .


C omo já vim os, o rito in s titu c io n a liz a d o da posses
são consiste em d e sviar o tra n s e selvagem, dom e stic a n
do-o, fa z e ndo-o e n tra r num a ord e m pre vista , h ie ra rq u i
z ada, que re produ z as relações sociais e xiste n te s. E xis
te , assim , um s e n tid o re p rim id o nesses rito s .

44
A sociedade se fu n d a sem pre n o c o n flito , n a re pre s
são do s e n tid o . As in s titu iç õ e s são as cadeias dessa re
pressão. U m a a n á lis e da m a cum b a im p lic a nece ssaria
m e nte n a e xplora ç ã o dessa repressão, ao m esmo te m po
p s ic a n a lític a e p o lític a .
F in a liz a n d o , fa ço um a ú ltim a observação no que
se re fe re à h o m olo gia e s tru tu ra l e n tre os rito s dos sa
cra m e ntos c a tólico s (b a tism o, m issa , c o n firm a ç ã o ...)
e a m a cum b a .
Isso não s ig n ific a que a m a cum b a copiou a m iss a .
P elo c o n trá rio , isso qu er apenas diz e r que tod a s as re
ligiõ e s obedecem a um a e s tru tu ra (consid ero a m issa,
a oração, e tc . , como in s titu iç õ e s d e n tro d a in s titu iç ã o ),
a le is e s tru tu ra is a n á log a s.
P or isso, o tra b a lh o fe ito n o B ra s il p or c ertos c a tó
licos sobre a te olo gia d a m a cum b a (a salvação das a l
m as n a um b a nd a , e s e m elh a nte s) é n e ce ssaria m e nte in
com ple to qu a ndo n ã o le v a em c o n ta a e s tru tu ra lit ú r-
gic a dos rito s de um b a nd a . E xiste m , p or o u tro la do, tr a
b alhos de teólogos sobre a e s tru tu ra dos rito s c a tólicos,
consid era ndo-os como rito s de passagem.
O proble m a é de um a rito lo g ia g e ra l das re ligiõ e s
que não pode ser s u b s titu íd o n e m p e la te olo gia n e m pe
la s te oria s dos id e ólogos. Essa rito lo g ia é o que ch a m a
mos de a n á lis e in s titu c io n a l das re ligiõ e s.

45
Notas

1 A metade da população das favelas do R io (no to ta l, cerca de


um m ilhão de habitantes) é negra. Quase todos os negros do R io
m oram em favelas.

2 H á variações ligadas à h istó ria política e religiosa. N a Bahia, S.


Jorge é Oxóssi; no R io, Oxóssi é Santo A ntô nio .

3 O 7 é núm ero mágico em m uitas civilizações. Encontra-se m uito


freqüentem ente no vocabulário de umbanda, por exem plo Exu-Sete-
Encruzilhadas.

4 Ponto cantado: canto ritu a l. Ponto riscado: desenho ritu a l.

5 N o candom blé da Bahia, ao contrário, a língua do culto é à base


de dialetos africanos.

6 M ich el L e iris, no que se refere ao culto etíope dos Z ar, em La


possession et ses aspects théâtraux chez les éthiopiens du Congar.
C f. tam bém A . M étraux, para o vudu haitiano.

7 Essa v itó ria de A poio sobre D ionisio , fo i a tomada do poder


ideológico pelos homens livres, no tem po em que o deus do transe
era celebrado pelos escravos e pelas mulheres, por todos os grupos
dominados da Cidade. Existe em todo lugar uma ligação secreta entre
o transe e a revolta dos homens dominados.

8 ... e em outros lugares. M as aqui se trata da macumba do R io.

9 Emprego o term o na acepção da psicanálise, onde ele significa que


o c o n flito psíquico se traduz na linguagem do corpo.

46
10 R . Bastide propos interpretações bem próxim as sobre o candom­
blé da Bahia.

11 Isto não é possível em todos os centros de m acum ba. U m rapaz


que recebe Pomba G ira terá im ediatam ente um com portam ento de
bicha (s ic .), como se diz no R io : m uito efem inado e provocante. Por
isso, certos diretores de centros, nas favelas, não aceitam médiuns
“ bichas” .

12 C f. L e iris, La possession etc . . . op. c it., pág. 32, L e iris evoca o que
ele chama de “ caráter institucional da possessão” . C f. A M etraux,
Le voudou haitien, Paris, 1958.

13 C f. J . Stoetzel, La psychologie sociale, Paris, Plon.

14 V er R . Bastide, Les réligions africaines au Brésil.

15 Textos traduzidos por Pierre Verger, in Notes sur le culte des


O risa et Vodun, IF A N , D akar, 1957.

16 Devo essas inform ações detalhadas a Edison C arneiro, a quem


agradeço pela ajuda. O equivalente haitiano ao culto dos Exus é o
culto dos petro. Sobre Legba, petro, Baron Samedi, etc., cf. A . M é­
traux, Le voudou haitien.

17 O tema da m orte é igualm ente dom inante no ritu a l dos Eguns,


na ilh a de Itaparica (S a lv a d o r).

18 Eu v iv i esse pesadelo com meus próprios fantasmas, que não


são os mesmos do povo b ra sile iro . Eles refletem a macumba deles
e a m inha.

19 Ë uma m aneira sim bólica de dizer que a macumba é um a form a


de contracultura, assim como o m ovim ento hippy.

20 Já me re fe ri ao “ discurso de A lcides” sobre Exu M angueira e


os hippies. Para ser mais exato devo dizer que B ellonzi é um ator
que se ligou ao L iv in g Theater, no R io . O que escrevo aqui são
anotações de visitas que fiz a centros e terreiros, com Julian Beck e
o grupo do L iv in g Theater, durante os meses de setembro, outubro e
novem bro de 1970, no R io .

21 C f. R . Bastide, Les réligions africaines au B résil, in fin e , N ais-


sance d’une religion nationale.

22 A trom ba é descrita por G érard A lthabe em, Opression et libe­


ration dans l’im aginaire, les communautés villageoises de la côte du

47
Madagascar, Paris, M aspero, 1969. (F o i publicada um a recensão da
mesma obra por Rene Lourau em L'hom m e et la société, n. 17, ju lh o -
setembro, 1970.

23 A lguns dos fundadores do m ovim ento tropicalista brasileiro, no-


tadamente Caetano Veloso e G ilb e rto G il, perceberam bem o cará­
ter a n ticu ltu ra l da macumba em suas origens, e utilizara m esses as­
pectos em suas composições. Atualm ente, contudo, a música populat
em moda está m uito mais submissa ao m odelo am ericano. E não se
deve dar uma im portância exagerada ao fato de T ony Tornado ter
declarado publicam ente durante o Festival Internacional da Canção
Popular, no R io, em outubro de 1970, após sua vo lta dos E U A , que
ele é “ um m uçulm ano negro” .
A música tropicalista dos anos 67-68 estava mais próxim a da
m acum ba. Mas não parece que ela tenha chegado ao ponto de re
levar e de a firm a r a oposição, para nós essencial, entre o ritu a l dos
Exus (a quim banda do R io ) e sua domesticação.

24 Fato sig n ifica tivo : a base m usical da contracultura atual (a m ú­


sica pop) vem do transe e da dança africana de possessão, através
do jazz.

25 Em outros lugares ela já fo i elim inada: no M aghreb, por exem­


plo, onde os negros são m in oritários. Mas em Paris, por exem plo, a
“ cu ltu ra árabe” (cafés, confeitarias, etc.) é um a form a de contra­
cultura .

26 C f. a obra clássica de A . van Gennep, Les rites de passage,


Paris, 1907.
A aproxim ação que faço aqui é fe ita de outra m aneira por Luc
de H EU SC H in Porquoi l’épouser}, Paris, N F R , 1971, 2? parte. Re­
ligions.

27 Resumo aqui um liv ro em preparação sobre os ritos de pos­


sessão.

48
1

Segunda Parte

Umbanda Contra Quimbanda

Por MARCO AURLIO LUZ


Como vimos ele é ajudado na sua lu ta contra a
Quim banda, e na defesa da le i de Oxalá, por Oxóssi,
(São Sebastião, Sto. A ntônio e São Benedito, e até mes­
m o pelos Exus “ batizados” .
Um ponto de Exu revela:

“ Ele é Capitão da encruzilhada


Ele é ordenança de Ogum
Sua divisa quem lhe deu fo i Sto. A ntônio
Sua coroa quem lhe deu fo i O m ulu”

Sto. A ntônio e São Benedito “ seguram ” os Exus e


os Preto-Velhos. Poder-se-ia dizer que m antêm a ordem
entre os Exus e entre os Preto-Velhos, para que os Exus
não venham a tra n sfo rm a r os Preto-Velhos em Q uitn-
bandeiros. Para que os Preto-Velhos escravos não se re­
voltem contra a le i de Oxalá, contra a ordem colonial, e
sejam submissos ao senhor absoluto. Que não invadam ,
sem licença, o a lta r e o terreiro, Casa Grande de Oxa­
lá, e se m antenham na sua senzala. Diz o ponto can­
tado de Vovó M a ria Conga:

M aria Conga ela vem da B ahia


Perguntou onde é seu Gongá
V im aqui pra tra b a lh a r
Com licença de Pai O xalá
V im aqui pra tra b a lh a r
Com licença de Ogum Beira M a r. . .

Da mesma form a o Exu só pode realizar sua Q uim ­


banda clandestinam ente quando as cortinas estão fe­
chadas, e sua casa, está fora do te rre iro . Seu acesso
ao a lta r está anulado pela atuação de São Benedito e
de Sto. A ntônio, que asseguram o dom ínio de pai Ogum.
Se algum Q uim bandeiro tenta escapar da vig ilâ n ­
cia de São Benedito (P ai Tomás) e Santo A ntônio, se

66
internando na m ata, cabe ao capitão da m ata, Oxóssi,
e seus caboclos estabelecerem na m ata a ordem de
Ogum e a defesa da le i de Oxalá. Cabe aqui um a ilu s ­
tração de dois pontos de Oxóssi:

1 — Quem chegou nesse Gongá


Saravando seus irm ãos (bis)
Na força de Oxalá ele é um capitão
Ele é um capitão (bis)
Nas m atas da Jurem a ele é capitão
2 — Oxalá m andou
E já m andou buscar
Os caboclos da Jurem a lá na Jurem á
Seu O xalá é re i do m undo in te iro
M andou ordem pra Jurem a
M andar seus capangueiros
M andai, m andai m inha cabocla Jurem a
Com seus guerreiros
Esta é a ordem suprema,
O xalá mandou.
Santo A n tô n io tra n c o , e São Benedito preto,
substituem e representam os feitores, que eram em
geral m ulatos que exerciam o aparato repressivo do
Estado, na form ação colonial escravagista brasileira.
Vigiando e castigando m antinham em funcionam ento o
processo produtivo e reproduziam as relações sociais de
produção. As relações entre o senhor branco que extor­
quia a força de trab alh o escrava, e o escravo preto que
era coagido a fornecê-la.
Se algum escravo fu g ia para a m ata, era trabalho
para o capitão do m ato. Aquele que punha seus conhe­
cim entos de combate na m ata a serviço dos senhores.
Em geral, os índios ou m ulatos ou mesmo negros, “ Exus
batizados” .
Na Umbanda, S. Sebastião, Capitão de Oxalá, e os
caboclos, índios, substituem e representam o lu gar so-

67
cia i dos capitães-do-mato, os que defendem a le i de Oxa­
lá, contra os inim igos das matas.
Por sinal que nas ofensivas dos senhores contra os
quilombos, quando havia tenaz resistência, eram con­
tratados pelo re i comandantes para atuarem como ca­
pitães-do-m ato, acostumados à vida do sertão. Foi o caso
de Domingos Jorge Velho, chamado no P iauí para in i­
ciar um a m archa sobre Palmares.
Em seu liv ro "O Q uilom bo dos Palm ares” Edison
C arneiro relata várias passagens em que esclarece a par­
ticipação dos bandeirantes na lu ta contra a “ república”
negra de Palmares. Assim se refere:
“ ...E r a u n â n im e ... o elogio aos paulistas quanto
às suas qualidades de combatentes no sertão brasilei­
ro. Bento S urrei Cam ilo, procurador do Mestre de Cam­
po no Reino, não deixava de explorar esse ponto, nos
seus requerim entos à Sua Majestade, referindo-se aos
paulistas como “ gente m ais experiente e versada nessa
espécie de guerra irre g u la r, em a qual os cabos m ais pe­
rito s na disciplina regular não enxergam nada, e só
acham nela o desdouro de suas m ais luzidas e heróicas
façanhas, já antes adquiridas.”
Também o Procurador da Fazenda Real acreditava
na eficiência dos paulistas.
“ Por várias vezes tenho d ito que os paulistas são a
m elhor, ou a única defesa, que têm os povos do B rasil
contra os inim igos do sertão; pois só eles são costuma­
dos a penetrá-lo, passando fomes, sedes, e m uitos outros
contrastes, a todas as outras pessoas totalm ente insu­
portáveis” . . .®
Num a carta datada do O iteiro do B arriga, de 15 de
ju lh o de 1964 — já depois de liquidado o ú ltim o reduto
de Palmares — do Macaco — Domingos Jorge Velho cha­
mava as suas tropas de “ umas agregações” e declarava
que a sua “ m ilícia era diferente do E xército regular, ta l
como era conhecido em todo m undo, acrescentando que,

68
Neste a lta r de um te rre iro no in te rio r de S. P aulo, os preto-velhos ocupam um lugar
separado no a lta r
" l olga nêgo
llranco não vem cá
Sc v ié /O diabo há de le vá /F o lg a Parente/C abôco não é gente"
. tivesse como que gravado no seu sim bolism o social as relações sociais da form ação
colonial escravagista, e o seu exercício (lu ta de classes) representado num a form a censurada
__ --- ----
! !_
o
sem os seus índios oroazes e cupinharões, a destruição
dos Palmares te ria sido impossível” .10
Revela Édison Carneiro que o Mestre de Campo, Do­
mingos Jorge Velho, “ em épocas diferentes, computava
os seus homens, ora em 800 índios e 150 brancos, ora em
m il homens de arco, 200 espingardas e 84 brancos, que
os d irigia m e cabeavam.” 11
Se arriscarm os o uso de um a noção indicativa, ain­
da sem demonstração teórica, poderíamos dizer que
Oxóssi e sua falange dos caboclos estão ligados a este
episódio gravado no “ inconsciente histórico” (cena p ri­
m itiva ) .
A im portância da “ República negra dos Palmares”
como acontecim ento capaz de fic a r gravado no “ incons­
ciente histórico” ou aspecto im aginário da ideologia, é
ilustrado pelo auto dos Quilombos, estudados por A rth u r
Ramos12. Pela im portância que possui o tema para nós,
reproduziremos algumas páginas sobre este assunto:
“ Um auto de sobrevivência histórica, não da A fri­
ca, mas da própria h istó ria dos negros no Brasil, é o
dos quilombos que se festejava em Alagoas, relem bran­
do o feito de Palmares. O fato é interessante, pois nos
m ostra um flagrante exemplo da gênese e desenvolvi­
m ento das canções de gesta e dram atização de feitos he­
róicos, que passaram ao inconsciente popular. É prová­
vel que em outros pontos do Brasil, onde houve a form a­
ção de repúblicas negras, o inconsciente coletivo tenha
guardado sobrevivências em autos análogos.
Parece-me, porém, que o caso m ais típico é o de
Alagoas, ta l a im portância histórica do m aior dos q u i­
lombos negros, o de Palmares. Tão dilatado fo i o período
das lutas (quase setenta anos), tão im portantes foram
as expedições e combates, que as populações alagoanas
das imediações da serra da B arriga e dos vales do Paraí­
ba e M undaú até hoje guardam a lembrança, nos autos
folclóricos.
No brinquedo dos quilombos a que eu assisti, em
pequeno, na cidade do P ila r (Alagoas), havia a cena

69
in ic ia l das danças das negros, com m uitos cânticos, de
que guardei os seguintes:

Folga nêgo
Branco não vem cá
Se vié
O diabo há de levá
Folga nêgo
Branco não vem cá
Se ele vié
Pau há de levá
Folga parente
Cabôco não é gente

Esta prim eira parte do brinquedo consistia num a


passeata pelas ruas da cidade, fin d a a qual começava o
auto propriam ente dito. Era o acampamento. Havia dois
ranchos: o dos negros e dos caboclos. Cada rancho t i­
nha o seu rei, embaixadores, espias, vassalos. Surgia uma
série de peripécias — e de in trig a s, espionagens, etc.,
que tinham por fim o cerco do rancho dos negros e rou­
bo da rainha. Os caboclos iniciavam , então, os assaltos.
Havia lutas e recuos, onde cantavam :

Dá-lhe toré
Dá-lhe toré
Faca de ponta
Não m ata m uié

Por fim , o rancho dos negros era tomado e rouba­


da a rainha. Os negros ficavam presos e choravam em a l­
tos brados. Saiam os caboclos a vender os negros, a fim
de libertá-los e entregar-lhes a rainha.
Ora, não precisa grande esforço de interpretação,
para concluirm os que o auto alagoano dos quilombos
representa uma sobrevivência histórica da república dos
Palmares. No auto, poderemos até um certo ponto re-

70
compor a vida dos negros confederados no quilom bo cé­
lebre, cuja h istória ainda não fo i suficientem ente escri­
ta. Os versos in iciais do auto:

Folga nêgo
Branco não vem cá

estão a exprim ir o sentim ento de liberdade que os es­


cravos fugidos dos engenhos, os calhambolas, entoa­
vam na segurança da sua cidadela. Lá, dentro dos seus
dez ou doze mucambos, em que estava subdividida a Re­
pública, eles podiam brincar, folga à vontade: “ branco
não vem cá” .
Mas o sentim ento de segurança foi-se desfazendo
logo às prim eiras investidas dos brancos. E os negros pal-
m arinos procuravam fortifica r-se. O local — encosta
das serras da B arriga e da Jussára — fa cilita va a sua
defesa. Construíram três linhas de defesa de paus-a-pi-
que e armaram-se o quanto puderam. É o que o auto
quer fig u ra r, na cena do acampamento. Os cânticos la n ­
çam então o desafio:

Se vié
O diabo há de levá
Se vié
Pau há de levá

Para se m anterem na sua im provisada república,


os negros tinham de recorrer ao saque e à pilhagem , nas
aldeias circunvizinhas dos índios, e nas populações dos
vales do Paraíba e do M undaú, que foram obrigadas a
contem porizar com aquele estado de coisas. Isso o rig i­
nou, naturalm ente, represálias por parte dos indígenas,
os últim os Caetés existentes. A lu ta principal, porém, e
o ódio dos negros contra os caboclos, provêm da expe­
dição organizada pelo governador da Capitania, D. Pe­
dro de Almeida, e da qual faziam parte soldados, índios
pardos da ordenança, pretos de Henrique Dias. Prova-

71
velmente os negros palm arinos deram a denominação
desprezível de caboclos aos seus inim igos perseguido­
res, o que ficou sobrevivente nos versos:

Folga parente
Caboclo não é gente

Qualquer membro da expedição tin h a o d ireito de


posse sobre o que tomasse aos palm arinos, e os negros
capturados seriam revendidos aos seus respectivos se­
nhores, ou a qualquer outro pretendente, no caso de não
fic a r provada a legitim idade da posse. O auto popular
rememora tais fatos no inconsciente coletivo: o rancho
dos caboclos, as suas danças, os cânticos:

Dá-lhe toré
Dá-lhe toré

as lutas pela captura, com suas tricas, espionagens e


traições e o cerco fin a l com o aprisionam ento e venda
dos negros.
Tudo isso ficou esquecido1*, apenas sobrevivente no
inconsciente folclórico. Nenhum dos negros a quem ouvi
tin h a a menor noção das lutas históricas dos Palmares.
Eles ignoravam por completo a significação do auto dos
quilombos. Ou procuravam uma explicação qualquer,
mas sem a menor ligação com a epopéia palm arina.
É perfeitam ente compreensível então, que a ma­
cumba, igualm ente de procedência bantu, tivesse como
que gravado no seu simbolismo social as relações sociais
da formação colonial escravagista, e o exercício, dessas
relações (lu ta de classes) representado num a form a cen­
surado e deformada no seu im aginário e no seu ritu a l14.
Sabemos, através de A rth u r Ramos, que a origem
da Umbanda, estaria nos cultos aos antepassados e deu­
ses lares, praticados pelos povos bantus, tendo porém
um deus supremo, Nzambi ou Zâmbi.
No seu liv ro “ O negro brasileiro” , A. Ramos15 de­
nunciava a escassez dos estudos sobre a cu ltu ra bantu e

72
criticava Nina Rodrigues, por te r se apegado apenas ao
tema negro-religioso gêge-nagô, que vez por outra com­
prom etia seus estudos sobre os afro-brasileiros.
“ As únicas referências, e incidentais, a termos re li­
giosos de origem bantu, que encontrei em toda obra de
N ina Rodrigues, estão no seu ensaio sobre o quilom bo
dos Palmares, onde encontramos identificadas as expres­
sões, Zambi, Oane, lom ba, Gana Zona, Ganga Zum ­
b a ...”
Dizia ainda A. Ramos, que sobre a religião bantu,
apenas Luciano G allet, sem ser especialmente etnógrafo,
anotou no seu ensaio çobre “ O Negro na Música Brasi­
le ira ” q u e ... “ a sessão de fe itiç a ria chama-se de m a­
cumba, e aí invocam seus santos: Ganga-Zumba, Can-
jira-M ungongo, Cubango, Sinhá-Renga, Lingongo e ou­
tros” .16
Ê interessante observar que Ganga-Zumba fo i an­
tes de Zum bi, o re i dos Palmares. Como antepassado, es­
p írito , Ganga-Zumba era invocado nos terreiros de ma­
cumba.
Ê ainda nos terreiros de macumba, que Zum bi é
compreendido como espírito mau, segundo Ladislau Ba­
ta lh a “ poderosos agentes sobrenaturais difíceis de apla­
car, e tc ...” 1T
No seu liv ro O Q uilom bo dos Palm ares, Édison
Carneiro18 indica que “ ...é provável que esse nome de
Zum bi fosse um títu lo ou um apelido, talvez mesmo sim ­
plificação de um nome m aior, com a significação de
“ deus da guerra” que lhe empresta um documento da
época” .
É interessante observar que o Zum bi durante a guer­
ra dos palm arinos, também se revestiu de um caráter
mágico, e é ainda Édison Carneiro que com enta: “ ...o
governador Caetano de Melo e Castro, tendo recebido
dos Palmares a cabeça do Zum bi, mandou-a espetar num
poste, “ no lugar mais público” do Recife, entre outras
coisas para “ atem orizar” os negros, que consideravam
im o rta l o chefe do quilombo.

73
Segundo o Pe. Boaventura Kloppenburg, Zum bi
significa “ Chefe, Rei” .19
E para A rth u r Ramos o Zum bi chegou até nós ge­
rando uma grande confusão com o Z â m b i... Na crença
popular do B rasil o Zum bi é um fantasm a que vagueia
altas horas da noite. Tornou-se aqui uma entidade inde­
term inada, sem form a e sem culto, identificando-se com
a m ultidão das almas penadas, fantasmas, espíritos er­
rantes das crendices populares. Na Am érica C entral, no
H a iti, a prim eira e única “ república” negra das Am éri­
cas, existe a crença do Zombie. Acreditam os “ negros
haitianos que o Zombie é verdadeiramente um ressus­
citado dos m ortos” .20 Assim Zombie anda, movimenta-se
e come “ manger Zombie” , dizem os negros do H a iti e à
noite levam aos túm ulos fa rta provisão de alim entos.
Certa vez no terre iro de D. M aria Batuque na fave­
la Santa M arta, ela se referiu aos Exus como Zumbis.
Logo que lhe fiz uma observação em torno deste sinô­
nim o ela me disse que um padre que a visitava vez por
outra com objetivo de convertê-la ao catolicism o, é que
dava esta designação aos Exus. . .
Parece-me então que, na favela, o m aior recalca­
mento das macumbas,21 talvez não sejam as revoltas
dos muçulmanos malês mas uma alusão ao recalcado à
república” de Palmares, a Angola janga, pequena An­
gola.22
Se por um lado os Exus só trabalham com o a lta r
dos orixás fechados, se a Quimbanda só se realiza con­
tra a Umbanda, por outro lado há uma alm a penada,
sem culto, que vagueia pelas altas horas da noite (note-
se que a Quimbanda só começa depois de m eia-noite)
que é um “ deus da guerra” um chefe, um rei, que está
penando e que ainda não ressuscitou aqui, que jam ais
pode entrar no te rre iro e está esquecido no cérim onial.
É ele o Zum bi, para m im o adversário im placável do
deus da guerra da Umbanda, Ogum, o S. Jorge, que nos
candomblés da Bahia é Oxóssi.
Posso dizer agora que a Umbanda se assemelha a
um sonho, isto é a linguagem mais característica do

74
Inconsciente. Um sistema de m itos, símbolos e represen­
tações im aginárias que é na verdade a linguagem de
um a formação social. Acredito que a sócio-análise do a l­
ta r que empreendemos fo i um esforço no sentido de ca­
racterizar o que em outras ocasiões,28 (a p a rtir dos pres­
supostos de Althusser sobre ideologia) denominamos “ as­
pectos inconscientes da ideologia” .

4 — A h ie ra rq u ia no te rre iro

Um terreiro de Umbanda — o lugar dos membros


— A Direção A d m inistra tiva e a Chefia E spiritual.

Qualquer terre iro Um bandista, para ser registrado,


possuir autorização de funcionam ento, precisa ser filia ­
do a uma federação ou confederação Umbandista. Para
tanto, ele precisa te r uma d ire to ria form alizada, que se­
ja responsável diante da lei, dos trib u n a is e da polícia,
por tudo aquilo que ocorrer no terreiro.
Uma d iretoria é form ada dos seguintes cargos em
ordem descendente: Presidente, Vice-Presidente, 1<? Se­
cretário, 2<? Secretário, Tesoureiro e Conselho fiscal.
A D ire toria deverá adm inistrar e proteger o “ Cen­
tro ” . Na m aior parte das vezes esta hierarquia burocráti­
ca transpõe-se para o ritu a l onde em geral temos:
Chefe dirigente, subchefe, a u xilia r, passista e médium
em desenvolvimento. Da apostila “ Iniciação para Mé­
diuns” , do Tem plo Um bandista da Legião E sp iritu a lis­
ta de Assistência Social, transcrevemos:
“ O Chefe d irig e n te ou chefe espiriutal é a entidade má­
xim a no terreiro. Ê a que dirige todos os trabalhos, não
sendo possível nenhum procedim ento sem sua autoriza­
ção. É o elemento que conhece todas as magias do culto.
E nfim o líder supremo do terreiro.
Babá do te rre iro é a pessoa que comanda o ritu a l e tam ­
bém conhece todas as magias do culto. Faz parte da
Chefia.

75
Mãe Pequena é a segunda pessoa depois da chefia do
terreiro.
Subchefe é o a u x ilia r direto do Chefe E sp iritual e da
Babá do Terreiro. Sua função é tom ar conta da organi­
zação dos trabalhos, encam inhar os filh o s que vêm pe­
la prim eira vez ao te rre iro e não sabem as Entidades que
estão presentes. O Subchefe conduz ou indica os filhos
para as entidades.
A u x ilia r é o médium que já trabalha com sua entidade,
prestando caridade dentro do terreiro. Serve para toda
sorte de trabalho, como seja: passes, correntes, descar­
ga, etc.
Passista é o médium que só pode dar passes, pois se está
iniciando no ritu a l, ainda na fase de desenvolvimento.”
Fazem parte ainda da hierarquia do ritu a l os ogans
e os cambonos.
“ O Ogan de T erreiro é o elemento que cuida dos pon­
tos de chegada das entidades. Canta os pontos e dirige
os cambonos, dando-lhes as instruções necessárias para
o encaminham ento dos filhos e do público que vai se
consultar com as Entidades. Incumbe-se ainda da be­
bida do terreiro.
O Ogan de atabaque é o elemento encarregado de bater
o atabaque...
Que é um cambono? Ê a pessoa que atende às en­
tidades que vêm ao te rre iro para prestar caridade. O
cambono é escolhido pelo chefe do terreiro. Aprende a
linguagem da Entidade, gozando assim de sua confiança.
O cambono deve, acim a de tudo, ser um a pessoa de
bons costumes, deve conhecer bem a Entidade e seus
apetrechos de trabalho e preferências como sejam: cha­
rutos, cachimbos, fum o, pembas, vinho, etc.
O cambono, enfim , é a pessoa de confiança da En­
tidade, verifica os presentes, que o filh o que vem buscar
a caridade, ocasionalmente, traz à E n tid a d e ...
O cambono deve bater cabeça pedindo proteção e
em sinal de agradecimento por te r sido escolhido pela
Entidade e pela Chefia do terreiro. Este agradecimen­
to é fe ito no Gongá ou nos pés da Entidade.

76
0 cambono não deve dar “ passividade” nos dias de
trabalho. Seu papel é atender à Entidade que vem tra ­
balhar em terra.
Para ser cambono é preciso ser escolhido pelo Quia,
ou pela Chefia do terreiro, usando o cambono um a
guia dada pela Entidade ou pelo Chefe do te rre iro ” . . .
Em relação ao ritu a l o com portam ento dos médiuns
assim se processará:
" . . . A hierarquia é a base para a boa organização
do terreiro e para isto deve e xistir nos médiuns o respei­
to. entre si e para com a Chefia do terreiro, como mes­
tre e in s tru to r que é. Têm de ser obedecidas as leis e os
estatutos do te rre iro e a ordem para chegada e subida
das Entidades, nunca se dando passividade para passar
à frente do colega mais graduado. Assim como deve
e xistir um comandante para conduzir um navio, tam ­
bém existe no te rre iro um Chefe, para conduzir e orien­
ta r os filhos de fé.” (Apostila)
A hierarquia no “ Templo Um bandista da Rua S.
Clemente é prescrita ainda através dos regulamentos,
dos mandamentos e dos preceitos gerais da le i de Um­
banda” . Transcreveremos agora o "Regulam ento do Ter­
reiro” :
“ Cabe aos m édiuns:
1 — Comparecer nos dias de obrigações e festas nos
dias estabelecidos para esta cerim ônia pelo seu Baba-
laô e Ialorixá .
2 — Bater cabeça aos pés do Babalaô e Ia lo rix á e
salvar o anjo de guarda dos demais.
3 — A judar a mãe pequena e pai pequeno em tudo
que se fizer necessário durante as ocasiões especiais,
cum prindo as ordens recebidas.
4 — A judar a cantar para os guias conforme apren­
deu bem como dançar corretam ente para os mesmos
contribuindo para a alegria e esplendor do toque.
5 — Procurar te r sua roupa lim pa, a fim de se
apresentar vestido corretamente.

77
6 — Concorrer na medida de suas posses com o
que se fizer necessário para o perfeito funcionam ento do
terreiro.
7 — M anter atitude digna e correta dentro e fora
do terreiro, evitando bebidas alcóolicas ou palavras e ges­
tos desrespeitosos para com seus irmãos, assistentes ou
orixás presentes.
8 — Não comer comidas pesadas nos dias de gira,
nem adulterar de quarta-feira para quinta-feira, bem
como nos dias de obrigação.
9 — Respeitar e fazer respeitar as saudações dos
orixás em geral, ou guias, e ainda do Babalaô ou Ia lo ri­
xá, além do seu próprio.
10 — Ter fé e confiança nos seus Guias e Orixás,
gosto e satisfação em cum prir os preceitos e obrigações
da lei, alegria no progresso da religião.
11 — Não com partilhar de outros terreiros quer em
obrigações ou festejos sem prévia autorização do seu
Babalaô ou Ialorixá.
12 — Dentro do seu próprio terre iro deverá cum­
p rir os preceitos recebidos dos seus iniciadores sem in ­
correr em falhas, recebendo festivam ente a visita dos
mesmos homenageando-os e prestigiando-os dentro do
ritu a l, bem como destinando-lhe sempre o lugar de re­
levo a que têm direito , como seus superiores.
13 — Ter paciência com todos, m anter a calma, es­
tim u la r a união sincera com seus irmãos, respeitar e
a u xilia r o próxim o no que se lig a r às suas necessida­
des m ateriais e espirituais.
14 — T ra ta r com cordialidade, amabilidade e gen­
tileza aos visitantes, evitando com habilidade e calma,
qualquer abuso dos mesmos, dentro do terreiro.
15 — Não fazer aos nossos irmãos o que não dese­
jamos que a nós seja feito.
16 — Não cobiçar de form a algum a o que perten­
ce aos outros.

78
17 — Não fazer trabalhos, sejam quais forem, por
sua livre vontade sem a presença da Chefia.”
Os cambonos têm preceitos especiais, relativos a sua
atividade no tem plo; no Templo Um bandista da R. São
Clemente são os seguintes:
“ Compete ao Cambono: ver o bloco de papel e ver
se está em ordem o m aterial do G uia (Entidade) que vai
cam bonar.
Compete ao Cambono: ver as coisas do Guia, antes
de incorporar, depois não pode mais sair do terreiro.
Compete ao Cambono: Aguardar na porta do te r­
re iro a chamada da ficha, pelo fiscal e levar para o
G uia o filh o .
Compete ao Cambono: Quando cair o filh o do pú­
blico, cobrir com uma toalha ou com sua baiana, quando
fo r m ulher, para o assistente não fica r descomposto.
Compete ao Cambono: Não deixar o G uia levar o
assistente aos guias chefes, em dia de gira, m arcar para
2a-feira para conversar com a chefia.
Compete ao Cambono: Quando precisar m arcar
consulta, para os Guias Chefes o cambono pode m arcar
num papel e depois entregar à Chefia depois da gira,
para m arcar no caderno da consulta especial.
Compete ao Cambono: Não sair da gira, para fum ar
lá fora, sair só em caso de extrem a necessidade.
Compete ao Cambono: Se fo r escalado não sair
cedo.
Compete ao Cambono: Não deixar o médium do
terreiro consultar em dia de g ira .”
Convém esclarecer a im portância do procedimento
dos Cambonos em relação às consultas. As entidades
vêm na terra para dar consultas. Procurar resolver os
problemas, angústias e sofrimentos dos “ filhos de fé” .
Cada consulta em dia de gira custa Cr$ 2,00. As con­
sultas especiais, e principalm ente da entidade de Ve­
lho Pedro (preto-velho quim bandeiro) que atende às
2as.-feiras, cujo “ cavalo ou aparelho” é o Chefe do te r­
reiro, varia dependendo do “ trabalho” d e ... Cr$ 15,00
até Cr$ 100,00. O “ Velho Pedro” atende por semana

79
uma média de 15 pessoas, e o babalorixá nos disse que
sua agenda está tomada já para vários m eses... O preço
cobrado visa a “ selecionar as consultas do Velho Pedro
pois se assim não fosse ele trabalharia a semana in ­
te ira ” . ..
Todos aqueles filiados ao Templo devem observar
os “ Mandamentos da Lei de Umbanda” .

19 — Não faças ao próxim o o que não queres que


te façam
29 — Não cobices o alheio
39 — Socorrer os necessitados sem perguntas
49 — Respeite todas as religiões porque vêm de Deus
59 — Não critiques o que não entendes
69 — Cumpre tua missão mesmo com sacrifício
79 — Defende-te dos malvados e resiste ao m al.

Para que todas essas ordenações, regulamentos, pre­


ceitos, mandamentos, sejam obedecidos, as autoridades
umbandistas recorrem ao exercício da dominação, que
se refere mais especificamente a com unicação da dom i­
nação que abordaremos adiante, e a algumas punições.
Essas punições podem ser realizadas ao nível sim-
bólico, ou ao nível das atividades no terreiro.
A suspensão de freqüentar o te rre iro e a expulsão
aplicados pela Chefia, são castigos que se combinam ao
“ tombo” , à perda de mediunidade aplicados pelos Quias
e Orixás que pode resultar no rebaixamento do médium
e pode chegar até mesmo ao “ fechamento da cabeça” ,
isto é, não ter mais qualidades para receber espíritos.
Transcrevemos aqui uma passagem da revista A
Cam inho da Luz sobre este assunto. No n9 7, no Con­
sultório E spiritual, temos:
“ P — O senhor acha admissível que dentro de um
terreiro, aonde deve existir a caridade e o amor ao pró­
ximo, possa existir elementos inescrupulosos, inclusive
dentro do corpo m ediúnico, falando m al, deturpando,
m entindo, tentando prejudicar o BABALORIXÁ ou

80
IA LO R IX A . Qual a atitude que esses últim os devem
tomar?
R — Infelizm ente existem e não são poucos. Já me
referi, uma vez, nesta Revista que pela vida, m uitas
vezes os BABALORIXÁS e IALO RIXÁS, sofrem decep­
ções tremendas, vindas de pessoas, médiuns, a quem
dedicam todo o esforço e carinho. Quantos se esquecem
de que quando vieram procurar auxílio nos Centros, se
encontravam doentes, obcecados, perturbados, m ania-
cos, inclusive desequilibrados m entaim ente e foram aco­
lhidos, ajudados, recuperando o equilíbrio m ental e fí­
sico, pelos BABALORIXÁS ou IALORIXÁS? Quantos
destes mesmos, após terem sido preparados conveniente­
mente, quando “ prontos” , começam a “ inventar” me-
diunicam ente, tornam-se sonsos, hipócritas, invejosos?
Quantos desejam, inclusive, in te rv ir na vida p a rticu la r
dos seus Chefes, lançando discórdia, m entiras, tentando
inclusive quebrar a harm onia de um lar? Quantos in ­
clusive desejam, “ m edir forças” ou desafiar todos os
preceitos que lhes ajudaram? E nfim , seria uma série in ­
term inável.
Quanto a atitude que deva ser tomada pelos BABA­
LORIXÁS ou IALO RIXÁS, penso que em prim eiro lugar
deve-se entregar às entidades, pois estas saberão ju lg a r
e decidir; posteriorm ente, “ expulsá-los” , no momento
conveniente, sem antes, porém, aplicar-lhe um “ tombo”
bem dado e trazer à tona os seus “ ricos predicados” , tão
falsamente escondidos sob uma pudica m o ra l.”
No Templo da rua S. Clemente existe um “ Conse­
lho Sacerdotal” form ado por médiuns de seis estrelas.
Qualquer problema ou desobediência dos médiuns é ju l­
gado no Conselho. Usa-se para tanto uma ficha preta
e uma verm elha. A prim eira significa expulsão, a se­
gunda suspensão de quinze, trin ta ou mais dias. O
julgam ento processa-se com a presença do acusado, e o
Babalaô e Ia lo rixá do Centro só são chamados a in te r-

81
I . A LU TA DE UM DESEJO

Sobre a categoria de In s titu iç ã o S ocial —


Sobre o conceito de Aparelho ideológico de Estado.

No campo da ciência da h istó ria , os estudos das Ins­


tituições sociais ou aparelhos ideológicos de Estado estão
situados na problem ática da ideologia, como estru tura
social. A ideologia se caracteriza por procurar ajustar
o funcionam ento de um a form ação social, perm itindo
sua eternização. Esse é o efeito da ideologia que se ca­
racteriza, de um lado, pelo sistema de idéias que pro­
porciona aos homens (agentes sociais) a representação
de seu universo, do mundo, a representação sim bólica
de suas relações no processo produtivo e na sociedade
como um todo. Representação im aginária que não é
simplesmente sonho, no sentido que esta palavra possui
fora da psicanálise, pois ela possui relação com o real

SI
v ir em caso de “ m inerva” . Essas penas causam enorme
hum ilhação m oral para os médiuns, que se tentarem
“ correr gira” , freqüentar outros terreiros durante a pe­
na, terão seus sofrimentos agravados.
O Babalaô explicou que o castigo realizado pela en­
tidade significa que uma vez o médium incorporado pe­
lo G uia que deseja castigá-lo, este a tira seu corpo con­
tra as paredes e no chão, dando-lhe assim verdadeiras
surras. Nestes casos o Babalaô como Chefe do terreiro
canta pontos para incentivar a entidade a castigá-lo com
a m aior firm eza: “ É só caindo que se aprende” . ..
Em geral os castigos se referem ao não cum prim en­
to dos preceitos estabelecidos pelo Tem plo. Essas trans­
gressões são observáveis ao nível da comunicação da do­
minação 24 que institucionaliza num código de signos o
comportamento a ser cum prido.

5 — A Comunicação da dom inação — Sistem a de


atitudes e vassalagem.

As atitudes da obediência, fidelidade e submissão


dos médiuns, para com os hierarquicam ente superiores
se exteriorizam de várias maneiras no ritu a l da Umban­
da Dranca.
Como toda ideologia, é através da interpelação dos
“ indivíduos” em sujeitos, e de sua submissão ao Sujei­
to, e, entre os próprios sujeitos, e finalm ente o reconhe­
cim ento do sujeito por ele próprio, e ainda, da garantia
absoluta que tudo é bem assim, que a Umbanda se es­
tru tu ra .
O “ indivíduo” passa a e xistir como membro in te ­
grante do Terreiro Um bandista quando “ faz sua Cabe­
ça” . É o que se denomina no candomblé de “ dia de
dar o nome” . Recebendo seu O rixá de frente, seu O ri­
xá de cabeça, o indivíduo passa a ser sujeito para a ins­
titu içã o e se reconhece na submissão ao O rixá que será
o dono de seu destino, o Sujeito. A p a rtir de então ele

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reconhecerá os outros membros da instituição, os de­
mais sujeitos hierarquicam ente situados, e se reconhe­
cerá como um deles, ocupando o seu lugar hierárquico.
Neste nível in stitu cio n a l e nestas referências espelhares,
o indivíduo se reconhece e reconhece que tudo é bem
assim, na ‘‘vontade de Oxalá” .
Assim o “ dia de dar o nome” , dia em que o médium
“ raspa a cabeça” é o dia em que começa a e xistir para
a in stituição.
A p a rtir daí começa a u su fru ir de sua situação e a
cum prir com suas obrigações e seus deveres. P rin cipa l­
mente aceitar e obedecer a regulamentação do terreiro.
No dia em que se torna um filh o de fé o médium
passa a possuir deveres em relação a seu pai e sua mãe de
santo, ao BABALO RIXÁ e à IALO R IXÁ.
É como filh o que deve se relacionar com seus che­
fes de terreiro e como irm ão que deve se relacionar com
os demais médiuns.
É diante desta “ fa m ília um bandista” que se exer­
cita, ao nível dos preceitos e regulamentações, o que de­
nominamos de estru tura psíquica de vassalo.
Da apostila “ Iniciação para médiuns” extraím os:
“ Qual o procedimento e deveres do médium?
R — O m édium deve ser uma pessoa dotada de bons
sentimentos e bons costumes. Deve levar uma vida pres­
tando caridade ao m áximo, amando seus semelhantes.
Não deve ser vaidoso, nem dentro nem fora do terreiro
e deve ser carinhoso para com os animais. Toda entida­
de é boa, seja ela um hum ilde Preto Velho ou o mais
bravo Exu, dependendo do filh o que com ela trabalhar.
Se o filh o é bom e caridoso, estas entidades só poderão
v ir para trab alh ar pelo bem e p ra tica r a caridade.”
Bom e caridoso, significa submisso e obediente à
hierarquia sacerdotal, à le i e aos preceitos do terreiro
que se exprim e:
a) Através da chegada e saída das entidades na
gira:

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“ ...A entidade que deve baixar prim eiro é a do
guia-chefe, seguindo-se as demais, na ordem hierárqui­
ca:

Descida Subida

Chefe dirigente 1 5 M édium em


Subchefe 2 desenvolvimento
A u xilia r S 4 Passista
Passista 4 3 A u x ilia r
Médium em 2 Subchefe
desenvolvimento 5 1 Chefe dirigente

b) Pela cerim ônia de “ bater cabeça” :


Na mesma ordem se sucede a cerim ônia de “ bater
cabeça” , dem onstrar sua submissão à vontade de Oxalá
e do O rixá de frente, e em seguida dem onstrar obediên­
cia e reconhecimento à Chefia do terreiro, .. .“ bater ca­
beça aos pés do Babalaô e Ia lo rixá e salvar os anjos da
guarda dos demais” . . . isto é, cum prim entar os irmãos,
demais filhos de fé.
Também “ o cambono deve bater cabeça pedindo
proteção e em sinal de agradecimento por ter sido esco­
lhido pela Entidade e pela Chefia do Terreiro” .
No terreiro o Babalorixá e a Ia lo rixá possuem um
lugar específico, “ sentados em frente ao altar, enquan­
to os médiuns, em pé, fazem dois corredores laterais” .
Chegada sua vez ele se dirige para bater cabeça e aguar­
da no seu lugar a vez da chegada de sua entidade.
c) Além do lugar ocupado e da ordem hierárquica
de receber entidades e bater cabeça, a comunicação de
dominação ainda se caracteriza pelo uso das guias (co­
lares) e pela vestimenta.
É ainda da apostila de “ Iniciação de M édiuns” que
transcrevemos :
“ Como se usam as guias?
R — O Tatá chefe m áxim o do terreiro, usa as guias
de todos os orixás, cruzadas da esquerda para a direita
e da d ire ita para a esquerda, no peito e nas costas.

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A Sacerdotisa usa as guias no pescoço, correspon­
dentes a seu anjo da guarda.
O Ogan C alofé usa todas as guias, menos de Oxalá
G uian e O xalá A lu fa n (Chefe) cruzadas a tiracolo, da
esquerda para a direita .
A Mãe Pequena usa as guias como o Ogan Calofé,
porém an com prido e usa também pulseiras de p rata cor­
respondentes a seu anjo de guarda.
O Ogan de te rre iro usa as guias de seu anjo da guar­
da e de Exu, da d ire ita para a esquerda. Poide usar as
guias dos outros, o rixá s.
O Ogan de atabaque usa as guias de seu anjo de
guarda e do O rixá p roteto r do te rre iro , da d ire ita para
a esquerda.
A Iabá (cozinheira) usa as guias de todos os orixás
menos a de O xalá, de seu anjo da guarda e as de Pom­
ba G ira . Num só colar usa as cores de todos os orixás,
ficando ao todo com três guias.
O Cambono C alofé usa as guias de seu anjo da guar­
da, a de Exu e a do O rixá p roteto r do te rre iro a tiracolo.
O Cambono de Ebó (pessoa que faz os despachos
para o te rre iro ) usa as guias do anjo da guarda, de Pom­
ba G ira e de Exu. As cores são: um a preta, outra verme­
lh a e preta e a o u tra de seu anjo da guarda.
O F ilh o ou F ilh a de Santo usa a guia de seu anjo
da guarda simples, que recebeu ao fazer a in icia çã o .”
d) Também as vestim entas caracterizam um sig­
no da dominação. Diz a apostila: “ As roupas do ritu a l
devem ser tratadas com todo carinh o. Não deve ser le­
vada ju n to com as roupas comuns e nunca se deve usá-la
fora dos trabalhos do C entro.
As m édiuns devem usar baianas pois ficam mais
compostas, principalm ente as m édiuns em desenvolvi­
m ento.
Todos os m édiuns devem usar suas divisas com o
grau de evolução e sp iritu a l.
. . . O uniform e do terre iro deve ser lim po e passa­
do, com emblemas e divisas.

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O m édium em desenvolvimento deve usar um a es­
tre la : o passista duas estrelas, o m édium a u xilia r, três
estrelas, os Subchefes, seis estrelas e os Chefes sete es­
trelas” .
O Babalaô certa vez nos ilu stro u o fucionam ento do
Centro Um bandista como um “ q u a rte l” , onde os sinais
significassem sempre uma indicação da obediência à or­
dem e à autoridade hierarquicam ente superior.
e) “ Todo m édium deve se apresentar no Centro
para tra b a lh a r devidamente uniform izado, preparado
com seu banho de descarga e com um a concentração
de bons pensamentos, durante o d ia ” .
A preparação do m édium no dia de trab alh o o b ri­
ga-o a um exercício de abstenção sexual e de obediên­
cia. Ter um dia voltado apenas para os “ bons pensa­
m entos” sig nifica um exercício de reconhecim ento da
le i de umbanda, da le i de Oxalá e da m oral cristã con­
servadora que desemboca na g ira onde o bom com por­
tam ento é cobrado.
No Tem plo da Rua S. Clemente, o Babalaô “ anota”
todas as irregularidades praticadas pelos m édiuns e pos­
teriorm ente com unica ao Conselho Sacerdotal para ju l­
gam ento. Certa vez ele nos contou que um a médium
ao invés de se resguardar no dia de g ira estava “ se es­
fregando com o nam orado na p o rta do Centro” . Na
hora da g ira a sua entidade, Abaluaiê, aplicou-lhe um
severo castigo, pois ela não tin h a observado as determ i­
nações, exigidas, a “ concentração de bons pensamentos” .
Além do castigo da entidaue ela iria responder por seu
com portam ento no Conselho Sacerdotal. . .
f) . . . “ É proibido no te rre iro de Pai Francisco e
Vovó C atarina (entidades do Babalaô e de Ia lo rix á ), ofe­
recer presentes em encruzilhadas sem a devida a u to ri­
zação da Chefia do te rre iro ...
. . . É proibido a qualquer m édium de qualquer ca­
tegoria, dar consulta em casa, como também de com­
parecer a casa de m édium do terre iro que estiver dando
consulta assim ” . . .

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Deste modo a Chefia visa a colocar sobre seu to ta l
controle o com portam ento do m édium , e com isso garan­
t ir os privilégios de Chefia. Não só ao nível do “ status”
de autoridade, poder de mando, mas u s u fru ir das me­
lhores consultas e dos “ trabalhos” m ais “ pesados” . Isto
significa, das consultas e dos trabalhos mais onerosos. . .
“ O Velho Pedro já atendeu até um alto d ire to r da
Brahm a que sempre dem onstra seu agradecim ento” . . .
Ao nível sim bólico, o com portam ento do m édium é
controlado através da “ le i do reto m o” , “ tudo que fize­
res de m al neste m undo aqui mesmo pagarás” . O m al
é a desobediência aos preceitos do Centro e aos m an­
damentos da le i de Umbanda, preceitos in stituciona is
que m aterializam o poder de Oxalá, que, para a tenda
espírita “ Caboclo M irim ” , é o m édium suprem o...
Podemos dizer então que por comunicação da dom i­
nação entendemos esta série de signos trocados entre os
“ sujeitos” pertencentes ao Aparelho Ideológico de Esta­
do religioso um bandista. Esta troca de signos, esta prá­
tic a de com unicação está regulada e inserida no seio da
existência m a te ria l de um Aparelho ideológico de Es­
tado. São os atos m ateriais inseridos nas práticas ma­
te ria is reguladas pelos ritu a is m ateriais os responsáveis
pelo com portam ento e pelo “ modo de pensar” , crença
ou fé, do “ su je ito ” . Como diz Pascal, “ coloca-te de joe­
lhos, m urm ura a prece com os lábios e acreditarás” *5.
É, portanto, o exercício das atividades in s titu c io ­
nais, as práticas regulam entadas exercidas nos Apare­
lhos ideológicos de Estado, que m aterializam “ a visão
do m undo” “ dos que têm fé” , isto é, são essas práticas
in stitu cio n a is que caracterizam a m aterialidade da ideo­
lo gia . São essas práticas que asseguram a reprodução
das relações sociais a u to ritá ria s e hierárquicas, que pro­
curam assegurar ao nível da lu ta de classes, no caso da
form ação social brasileira, o statu s da dominação da
burguesia branca sobre o proletariado negro e m estiço.
É então no seio do próprio Aparelho ideológico de Esta­
do que se exercitam as relações de produção, isto é, a
lu ta de classe. Desde a obediência ou a desobediência

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imediata do filho de fé ao Pai de Santo ou à Mãe de
Santo, até a existência dos terreiros dóceis às orienta­
ções das cúpulas dirigentes Umbandistas ou dos clan­
destinos de Quimbanda que se negam a obedecer as re­
gulamentações das Federações e as limitações impostas
pelo Aparelho de Estado jurídico-político (legislação, po­
lícia, tribunais e prisões).

I I I — UM TERREIRO DE MACUMBA — QUIMBANDA


COMTRA UMBANDA

O terreiro de macumba se caracteriza, a p a rtir


de sua própria arquitetura, o barraco de favela, como
prolongamento da moradia de seu dirigente. Em geral
a base dos médiuns de um terreiro de morro é a fam í­
lia . A mãe de santo e o pai de santo são de fato a mãe
e o pai dos principais médiuns e os demais são paren­
tes ou amigos próximos. A característica da macumba
é então a comunidade, a fam ília negra e mestiça. As
crianças pequenas estão sempre presentes durante as
giras, exceto as de Exu. A macumba no morro, e p rin ­
cipalmente durante as giras de Exu, se constitui num
verdadeiro ponto de encontro da comunidade da favela.
A li dançam, cantam, comem juntos médiuns, assistên­
cia e espírito dos m ortos. v
São os espíritos dos africanos, dos antigos escravos,
dos índios e dos escravos revoltados, Exus. Eles devem
ser agradados e respeitados, sob pena de “ derrubarem”
o terreiro. O babalorixá ou a babá no morro têm que
m ostrar aos Exus, o respeito e amor pela Quimbanda,
ao mesmo tempo que têm que demonstrar aos orixás o
respeito e a obediência às leis de Umbanda. Assim, tudo
tem que ser feito diante dos Exus, e como se a li não pre­
dominassem os orixás fecha-se a cortina do a lta r. As­
sim, tudo tem que ser feito diante dos Orixás, e como
se a li não houvessem Exus, põe-se sua casa fora do ter­
reiro e fechada durante a gira dos orixás.
Se a macumba de morro quer existir dentro da le­
galidade, filia d a às federações e confederações Umban-

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distas, ela deverá combater a Quimbanda, pois o ter­
reiro de Quimbanda só existe na clandestinidade. Es­
ta atitude de extrema ambigüidade, entre combater as
origens africanas e aderir às “ doutrinações” espíritas,
ou de se manter fie l às origens, mas de pagar o preço
de uma macumba m arginal, é a angústia porque passam
os dirigentes negros e mestiços das macumbas de morro.
Esta lu ta contra a Quimbanda possui dois níveis
distintos, que estão combinados de uma maneira deter­
minada. Um que se caracteriza pela representação so­
cial, e outro pelo cómportamento social e institucional.
Por sua vez, convém ficar claro que esta luta de classes
na ideologia se combina com a luta de classes no po­
lítico e no econômico. A luta entre o “ proletariado”
negro e a “ burguesia” branca. Senão vejamos: no pla­
no da representação social a ideologia kardecista (es­
piritism o francês, europeu, racionalizante, etnocêntri-
co) propõe a doutrina do “ continuum ” . Isto é, que atra­
vés das m últiplas encarnações do espírito este vai evo­
luindo, de forma a cada vez alcançar estágios mais
elevados de espiritualidade, abandonando a m ateriali­
dade. As proposições do espiritismo, indica-nos Cândi­
do Procópio Ferreira de Camargo26, são todas “ aplicadas
no sentido de valorização máxima de vivência religiosa
de feitio internalizado e ético de desconsideração pelas
formas materiais do culto, especialmente aquelas que
im plicam no uso de álcool e fumo, símbolos de “ atra­
so” e dependência da m atéria” . Acredita-se então, que
através da doutrinação dos médiuns e dos espíritos, es­
tes se elevarão da terra para faixas mais elevadas do
espaço. Assim o Exu passará através do “ continuum ” ,
para caboclo ou preto-velho, e chegará até mesmo a
O rixá. A tendência, nesta ideologia espírita-umbandis-
ta, é então de se acabar com os Exus e com a gira da
Quimbanda 27.
Observa Cândido Procópio que “ essa apreciação va-
lorativa do espiritismo kardecista, assumindo o aspecto
da doutrina espírita da evolução, não deixa de expri­
m ir os valores predominantes da cultura paulista, que

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enxerga com maus olhos o que considera: “ essas prá­
ticas supersticiosas do baixo espiritismo, próprias para
os negros ignorantes” 28.
Pela expressão “ cultura paulistana” devemos enten­
der, ideologia da classe dominante da formação social
de S. Paulo, que deste modo, a p a rtir desta represen­
tação social, indica através do ritu a l um comportamento
social a ser adotado pelos médiuns e prescrito pelos ter­
reiros.
É ainda Cândido Procópio quem afirm a: “ desta for­
ma, os valores dominantes da cultura, também expres­
sos na visão espírita que foi integrada ao “ continuum ”
atuam no sentido de diminuição da riqueza ritualística
e da ênfase mágica dos “ terreiros” de Umbanda. Con­
figuram-se assim modalidades de organização de “ ter­
reiro” que, embora acompanhando a estrutura e dinâ­
mica geral que descrevemos, vão aos poucos perdendo
as complicações rituais e se aproximando da austerida­
de kardecísta” 20.
Isto significa o abandono da riqueza do ritu a l emo­
cional africano em nome da austeridade “ racional” eu­
ropéia, isto é, repressão emocional e abstinência sexual.
Já nos referimos à eficácia da repressão sexual, emo­
cional, na formação da estrutura psíquica do vassalo,
necessária ao funcionamento das instituições autoritá­
rias e hierárquicas.
Neste ponto a ideologia da evolução mais uma vez
se revela. Evoluir, significa procurar se igualar ao bran­
co, burguês ou pequeno-burguês, isto é, “ novamente a
doutrina da evolução (e sua escala de valores) serve de
instrum ento ideológico de adaptação da tradição a fri­
cana para uma prática religiosa mais em harmonia
com o estilo de vida urbano e racional. Podemos dizer
que “ urbano e racional” são proposições da classe ideo­
logicamente dominante, isto é, a burguesia.
O movimento espírita na Umbanda, propõe concre­
tamente transformações no ritu a l da macumba, para
que seja proporcionada então a sua “ evolução” . De um

90
modo geral as medidas pretendidas para essas trans­
formações são:

1) Exclusão de bebidas alcoólicas, especialmente da


pinga, apesar de ser apreciada por “ Preto-Ve­
lhos” e “ Caboclos” .
2) Exclusão de charutos e cachimbos.
3) Transformação da roupagem sacral feminina,
que perde os requintes da dispendiosa tradição
baiana, passando a se constituir em práticos e
higiênicos aventais brancos.
4) Exclusão dos atabaques, muitas vezes sob pres­
são dos vizinhos e da polícia, em nome do sos­
sego público.'
5) Simplificação do culto, das defumações e dos
cumprimentos ao altar. Exclusão da “ pemba” .
6) Exclusão do altar de Exu, que vem a desapare­
cer, não sendo mais homenageado.
7) Incentivo ao uso do tênis, em substituição à tra ­
dição de dançar descalço” 80.

Podemos então, agora, nos referir ao plano do com­


portamento social.
No seu livro As religiões africanas no Brasil. Ro­
ger Bastide se refere às ideologias dos negros sobre sua
situação social na formação brasileira a p a rtir de 1945,
como se caracterizando por “ uma valorização do negro
que não visa, todavia, a demonstrar a originalidade de
uma civilização, mas a provar a capacidade da to ta l as­
similação do negro à civilização do branco” 81.
É dentro desta orientação que o negro brasileiro
encontra o maior orgulho e satisfação de ver no futebol
o seu herói por excelência, Pelé. Foi ele que através do
futebol abandonou as origens, negra e proletária, e
“ evoluiu” tornando-se negro e burguês. Não se pode
simplesmente acusar Pelé de ter traído em seu compor­
tamento suas origens, posto ser ele apenas o suporte
da ideologia da evolução social que envolve a massa
dos negros proletários brasileiros. Essa ideologia que diz

91
que a Africa é um lugar de selvagens, bárbaros e atra­
sados, impulsiona o negro para esquecer seu passado
e evoluir para uma situação “ civilizada” , “ educada” e
“ racional” , . .
Quando surgiu o espiritismo no Brasil, praticado
pelos brancos, o “ homem de cor se sentia de então em
diante justificado ao marchar segundo a linha de sua
antiga civilização” . . . entretanto, os brancos não se dei­
xaram enganar, razão porque designaram (a macum­
ba) . . . este últim o extrato do espiritismo brasileiro com
a expressão pejorativa de "baixo espiritismo” . Assegu­
ra-nos ainda Roger Bastide q u e ... “ sem dúvida esse
“ baixo espiritismo” , ao desenvolver-se (evoluir) não per­
manecerá adstrito à classe dos homens de cor; os bran­
cos nele igressarão e frequentemente se tornarão seus
chefes. Nem por isso os negros e os mulatos deixarão
de constituir a grande maioria de seus adeptos. E isso
porque, em conjunto, a estratificação das classes sociais
corresponde, com pouca diferença, à estratificação das
cores” 83•
De um modo geral, esta é a contradição ao nível do
comportamento social im plícito na reformulação do r i­
tual da macumba. Até onde se admitem alterações do
ritu a l que ao mesmo tempo permitam a preservação das
atitudes da ideologia religiosa africana?
O negro aceitou de um modo geral as proposições
moralizadoras do espiritismo visando sua ascensão so­
cial na formação brasileira. Todavia, estas proposições
acarretam a total dominação do branco na direção do
novo culto.
A. Fontenelle reconhece que a causa das transfor­
mações das religiões africanas deve ser procurada na
vontade do negro em modelar-se pelo branco:
“ Quimbanda dá continuação à firm e vontade de
manter as antigas tradições africanas, enquanto Um­
banda, ao contrário, procura romper com o caráter não
civilizado dessas práticas, o que se deve a influência do
homem branco, demasiado instruído para adm iti-las” 8a.

92
Para o branco pequeno-burguês o dilema se apre­
senta então da seguinte maneira: ou imjpõe a auste­
ridade e perde o público, tomando-se então a Umban­
da mais um culto esotérico, ou adota e aceita algumas
características africanas e mantém-se na atividade dou­
trin á ria .
Para o negro proletário a situação também se apre­
senta de forma contraditória. Ou aceita o referendum
da classe dominante à “ sua” religião, e o preço é o es­
quecimento de suas características de origem, ou man­
tém-se na defesa dessas origens e torna-se um Quim-
bandeiro.
Se praticando a Umbanda espírita, o negro torna-
se “ bom” aos olhos dos brancos, praticando a Quim­
banda africana torna-se um negro “ mau” . “ Ora, o que
é o negro mau senão a imagem do negro quilom bola...
enquanto o bom negro, personificado em Pai João (Pre­
to-Velho), representa o escravo conformado, submisso
— ou, como se diz nos Estados Unidos, o negro que, em
vez de reivindicar, conhece o seu lugar como um ani­
mal doméstico” 8*.
Esse é o dilema que o negro macumbeiro terá que
enfrentar brevemente. Este o dilema, que é um dilema
vivido em vários níveis sociais, e que aqui está situado ao
nível da luta de classe ideológica religiosa. Trata-se da
lu ta religiosa entre a Umbanda oficial e a Quimbanda
clandestina.
Essa luta religiosa possui um efeito político carac­
terístico. Pode-se dizer que hoje a Umbanda é capaz
de eleger três ou quatro deputados na Guanabara. Es­
ses deputados fazem parte de uma cúpula de dirigen­
tes, que procura controlar a massa dos Umbandistas.
Todos eles têm lugar de destaque na formação social do
Rio de Janeiro. São eles radialistas, médicos, m ilita ­
res, etc., que propugnam por uma unificação do culto,
pela elaboração de uma bíblia umbandista, e até mesmo
por um papa, que pudesse promover o controle de to ­
dos os terreiros, fechando ou suspendendo todos aqueles
que cometessem irregularidades, isto é, que não agissem

93
de acordo com a nova bíblia Umbanda-espiritista. Hoje
em dia as várias Federações e Confederações espíritas
lutam pela hegemonia do controle dos terreiros. As
Federações, Confederações hoje em dia substituem a po­
lícia na fiscalização do funcionamento desses centros. E
também já conseguem exercer influência política na mas­
sa Umbandista afirmando que “ A Umbanda unida é a
Umbanda forte” e que o modo de fortalecer a Umbanda é
seus adeptos votarem nos deputados indicados por elas.
Assim as aspirações religiosas são capitalizadas politica­
mente pela cúpula pequeno-burguesa branca, que pro­
cura institucionalizar politicamente sua dominação re­
ligiosa.
É então através da reprodução das relações sociais,
isto, é, relações de dominação político-ideológica da bur­
guesia branca, sobre o proletariado negro, que está ga­
rantida em certo nível a reprodução das relações eco­
nômicas de produção. Podemos dizer que a Umbanda
como Aparelho ideológico de Estado religioso visa, em
últim a instância, colaborar na reprodução das relações
de produção. Isto se dá na medida em que o exercício
de comunicação da dominação existente nos templos
Umbandistas é análogo ao das unidades econômicas
(fábricas, fazendas, serviços, etc.). As unidades econô­
micas são Aparelhos ideológicos de Estado econômicos
que possuem o exercício da comunicação da dominação
através de sua dinâmica da organização autoritária ins­
titucional, expresso na divisão social do trabalho, na
hierarquia da empresa, nos regulamentos e na legisla­
ção trabalhista. Foi um chefe de terreiro de macumba
quem se referiu ao Templo Umbandista da Rua S. Cle­
mente como “ uma empresa” . . .
Enfim , podemos dizer que a encruzilhada em que
se situa o terreiro de macumba de morro é semelhante
à que encontrou o samba de morro, de favela. Ou se
constitui num núcleo de resistência às regulamentações
autoritárias que desfavorecem a reprodução das rela­
ções de produção ou se constitui numa forma de exer­
cício dessas relações de dominação autoritárias que fa-

94
vorecem a reprodução das relações de produção predo­
minantemente capitalistas. 38. Nesta encruzilhada, on­
de ainda o reino é de Exu, é perm itido ao negro sonhar
com a Africa, isto é, lugar onde os negros são livres, se
autodeterminam. Assim, enquanto no Templo Umban­
dista do asfalto, os Exus são “ batizados” ou estão no
caminho da evolução kardecista, os preto-velhos estão
na senzala carregando sua cruz, no terreiro de macumba
onde os Exus ainda predominam, os negros podem so­
nhar 36 com sua liberdade, os preto-velhos têm lugar
no altar e vovó M aria Conga ainda é a rainha.

Rio, 13 de fevereiro de 1972

95
Notas

1 Devemos ressalvar que os Aparelhos ideológicos de Estado se


situando ao nível das relações sociais de produção, sofrem o efeito
de seu exercício, luta de classes, em seu próprio seio. Assim, a
ideologia religiosa proletária possui uma contradição com a ideologia
religiosa burguesa. Como veremos adiante, a Umbanda, como Apa­
relho ideológico de Estado religioso, se encontra dividida. Há um
conflito latente entre as Umbandas do asfalto e a macumba de mor­
ro. Entre as Confederações Espíritas e doutrinárias e a Quimbanda
clandestina. Esta contradição possui formas específicas de presença,
seja no ritual, seja nas representações, seja na organização do Ter­
reiro, seja nos comportamentos a serem adotados, etc.

2 Ver M .A . Luz, “ A sabedoria evolucionista de M . McLuhan” ,


em Tempo Brasileiro, n . 23/24, e Cabral Bezerra — Ciência e His­
tória — em Epistem ologia e Teoria da Ciência — Vozes.

3 Ë digna de ser’ mencionada a preocupação epistemológica de A rthur


Ramos quanto às possibilidades de compreensão da estrutura ideo­
lógica em que vivem os negros brasileiros. Seu livro “ O Negro
brasileiro” encerra-se com estas palavras: “ Não estamos ainda em
grau de compreender a psyché coletiva do brasileiro. Com o estudo
das formas atrasadas de suas religiões, consegue-se apenas descobrir
uma ponta do véu. Mas é preciso descer mais, muito mais. E es­
crever a história do Brasil, não essa das biografias e dos episódios
políticos, história automática e estereotipada, sem ligação com a massa
étnica, mas esta outra, mais exata, mais científica, das peripécias e
transformações do seu inconsciente folclórico” .

4 Foi Edison Carneiro quem nos esclareceu sobre a influência que


o índio da Umbanda e dos candomblés de Caboclo sofreu a partir
do movimento literário indianista. O índio manifesto da Umbanda
é o índio representado pela ideologia que envolveu o movimento de

96
independência do Brasil, e as representações literárias de José de Alen­
car e Gonçalves Dias. São inúmeros os caboclos de nomes Ubira-
jara, Peri, etc, Como caboclos da independência, de grande impor­
tância na umbanda, figuram Araribóia em N iterói e o caboclo Pena
Branca em Salvador. Podemos acreditar que tanto para o negro bra­
sileiro quando para o branco brasileiro, o índio representou em de­
terminado momento, um desejo, o da independência da autonomia de
um povo. Este é o caráter manifesto dos caboclos. Adiante veremos
sua significação latente.

5 M anuel M ota e M a ria A m élia Luz nos alertaram que antes das
restrições ao trá fico de escravos e da abolição da escravatura, era
impossível ao escravo te r acesso aos aparelhos ideológicos de Es­
tado. A fa m ília e a religião existiam para os brancos colonizadores.
A força de trabalho escrava era extorquida somente através dos apa­
relhos repressivos de Estado, representados pelos feitores, que acom­
panhavam grupos de escravos no trabalho, armados e com chicote,
e pelo Capitão-do-m ato que perseguia os escravos que fugiam . Os
castigos hum ilhantes e a to rtu ra m antinham a reprodução das relações
de produção. Não existia a fa m ília para os escravos que viviam
amontoados nas senzalas, e o índice de reprodução era m uito baixo.
A reprodução m aterial da força de trabalho escrava era garantida
pelo trá fic o . Era mais em conta com prar um novo escravo vindo da
Á frica , do que cria r escravos no B rasil.

6 N o caso dos filh o s não serem submissos à lei de Oxalá, as mães


misericordiosas podem-se tornar mães terríveis, castradoras, como Iansã.
lemanjá, mãe sereia, representa a tentação do incesto.

7 Sobre “ Pai Tomismo” ver G. Lapassade.

8 Termo vindo diretamente das relações econômicas vividas ideolo­


gicamente pelos médiuns fora do terreiro, é usado no caso, para ca­
racterizar a relação dos Exus com Santo A ntônio. Ouvimos também
muitos médiuns e babalorixás, afirm arem que “ os Exus são empregados
de Ogum. Por isso não podem gostar de Ogum.”

9 Edison Carneiro — O Q uilom bo dos Palm ares, pág. 107 — Ed.


Civilização Brasileira — 1966.

10 Idem, pág. 104.

11 Ibidem , pág. 94.

12 A rth u r Ramos — “ O Folclore Negro do Brasil” — págs. 68, 69,

70, Ed. C ivilização Brasileira — 1935.

13 Sobre esquecimento, ver nota 21.

97
14 Certa feita o babalorixá de um Templo Umbandista na rua S.
Clemente, nos disse em seu escritório que seu caboclo de frente Tu-
pinambá tinha estado no Palmares. Ao lado do quadro pintado de
Tupinambá, estava uma gravura de Debret — “ O capitão-do-mato” . ..

15 A rth u r Ramos — “ O Negro Brasileiro” pág. 76 — Ed. C iv ili­


zação Brasileira 1934.

16 Luciano G allet ob. cit. pág. 58 apud A . Ramos — idem pág. 77.

17 Ladislau Batalha, “ Costumes Angolenses” — Lisboa 1890 apud


A rthur Ramos, ob. cit.

18 Edison Carneiro ob. cit.

19 D r. Boaventura Kloppenburg — "A Umbanda no Brasil” , pág. 258


— Ed. Vozes, 1961.

20 A rth u r Ramos, ob. cit. pág. 86.

21 Para Freud todos os casos analisados conduzem a “ coincidências”


notáveis. No seu liv ro , Psicologia da Vida C otidiana, Ed. Zahar,
3^ edição, pág. 32, explica que todo esquecimento e conseqüente subs­
tituiçã o, oculta um com plexo pessoal. “ Quando analiso os casos de
esquecimento de nomes, ocorridos em mim próprio, descubro quase
regularmente que o nome oculto tem qualquer relação com um tema
que me diz respeito e que está apto a provocar em mim emoções
fortes, por vezes dolorosas” .
A palavra macumba possui em si um sentido que não tem apa­
rentemente nenhuma ligação com a religião umbandista. A versão
“ o ficia l” é de que macumba significaria um instrumento, que por
sua vez não possui também nenhuma ligação com os instrumentos
usados no ritu a l umbandista.
Como observou Lapassade, o termo m acum beiro, no morro, tem
uma conotação de exaltação, de elogio. Na umbanda branca os ter­
mos macumba e m acum beiro têm uma conotação pejorativa. Os ba­
balorixás das umbandas do asfalto procuram ressaltar a denominação
de Templo ou Centro Umbandista, e de assegurar que o nome ma­
cumba é "absurdo” e pejorativo. . . A palavra macumba possui um
significado desconhecido, isto é, esquecido, ou ainda reprim ido. A
p a rtir de Freud sabemos que todo esquecimento é uma “ notável coin­
cidência” , efeito da atuação da censura. Qual seria então o signifi­
cado oculto que a palavra macumba substitui, que é capaz de evocar
emoções fortes, por vezes dolorosas?
O desejo dos negros palmarinos, era de fazer nos Palmares uma
república negra, africana, recordar a Á frica, estabelecer as bases reais
da Angola janga, Angola pequena.

98
Nos Palmares, os negros viviam nos mucambos, sonhavam com
a Á frica e cultuavam o espírito dos seus antepassados africanos. Hoje
em dia nas macumbas do morro, as giras dos preto-velhos recordam
a Á frica e cultuam seus antepassados, antigos escravos, velhos a fri­
canos.
Todavia, a macumba representa o lugar desses preto-velhos na
formação colonial escravagista brasileira, e recorda as atitudes que
devem adotar na vida e no terreiro, isto é, obediência a Oxalá. A
macumba representa então todas as relações dos escravos com as de­
mais classes e frações de classe da formação autoritária colonial es­
cravagista. Representa ainda o exercício dessas relações, a luta de
classes, no seu imaginário, a luta entre a le i da Umbanda e a revolta
Quimbanda.
Podemos dizer que a macumba recorda de maneira censurada a
situação da Angola janga e sua epopéia. Enfim , um desejo e uma
derrota que devem para sempre estar “ esquecidos’*, e apenas lem­
brados alusivamente, sem que possam despertar a dor, e possam su-
blimadamente realizar esse desejo na gira da Quimbanda. Ê assim
que a palavra m -a-c-u-m-b-a ocupa o lugar da palavra m -u -c -a -m -b -o ,
as casas onde moravam os quilombolas.
A palavra macumba desloca para algo indefinido ou sem relação
com o ritu a l (instrumento macumba), o perigo de uma possível as­
sociação com algo que pudesse “ provocar emoções fortes, por vezes
dolorosas” . Este é o caráter de defesa deste deslocamento, que re­
calca um retorno ao que está latente no imaginário Umbandista, a
“ distante" e esquecida Angola janga, a epopéia de Palmares.

22 Edison Carneiro, ob. cit. pág. 33, esclarece que "Domingos Jorge
Velho contava que os escravos “ tinham já tomado tanto o barlavento
a seus senhores” que lhes ficara o hábito de dizer que poderia haver
novamente Angola janga — A pequena Angola que era o quilom ­
bo” . . . “ Os mocambos dos Palmares eram um constante estímulo para
os escravos das redondezas” . . .

23 M .A . Luz — ob. cit. pág. 107, e “ Semiologia e Teoria das Ideo­


logias” , in Revista Vozes, n. 10 — 1871, pág. 9.

24 O conceito em estado prático de comunicação da dominação, fo i


utilizado por Gerard Althabe, Opression e Libération dans l’Im agi­
naire, nos estudos sobre a eficácia ideológica da cobrança de impostos
às tribos de Madagascar. Pagar o imposto além de ser uma prática
econômica se reveste de uma comunicação de aceitação da dominação
de um poder central sobre elas.

25 Ver, Louis Althusser, “ Idéologie et Appareils Idéologiques d’Etat,


pág. 35, in La Pensée, n. 151.

99
26 Cândido Procópio Ferreira de Camargo — Kardecism o e Um ­
banda — Pioneira Editora — 1961 — S. Paulo — pág. 49.

27 Podemos dizer que as principais características da Quimbanda são:


1) Ê um “ terreiro” destinado propriamente para trabalhos de ma­
gia negra.
2) Ausência de valores morais “ brancos” , ou pelo menos sua gran­
de atenuação.
3) Eficácia mágica superior.
Hoje em dia os terreiros de Umbanda têm ainda de adm itir a
Quimbanda devido à grande popularidade desta últim a. Já nos refe­
rimos às inúmeras precauções doutrinárias, para que os umbandistas
espiritistas possam trabalhar com o Exu. Mas apesar disso a gira dos
Exus se constitui numa contradição presente na Umbanda. A entidade
mais procurada para consultas no Templo Umbandista da R . São
Clemente, é o Velho Pedro, preto-velho quimbandeiro que trabalha
com sete Exus e só faz magia negra. Apesar de ser contra a Quim­
banda, o seu “ cavalo” o babalorixá deste terreiro tem que se sujeitar
a isso, sob pena de perder seu maior público.
Sua estratégia então fo i de introduzir a gira de Oriente, que não
existe nos terreiros de macumba, e se caracteriza por não ter ata­
baques nem dança. As músicas de fundo são sacras, tocadas na v i­
tro la . Os médiuns sentam-se numa mesa e dão passes. Ê a p a rtir
desta gira "racional” , que o Templo Umbandista procurará doutrinar
seu público, d irigi-lo para a “ evolução” que sepultará com o tempo
definitivamente a gira da Quimbanda.

28 Cândido Procópio Ferreira de Camargo — ob. cit. pág. 49.

29 Idem.

30 Ibidem, pág. 50.

31 Roger Bastide — As Religiões A fricanas no B rasil — Editora


Pioneira — 1971 — S. Paulo, pág. 426 — Segundo Volume.

32 Idem, pág. 435.

33 A . Fontenelle — “ O Espiritismo no Conceito das Religiões e a


lei de Umbanda” , pág. 81— apud Roger Bastide, ob. cit. pág. 456.

34 Roger Bastide — ob. cit. pág. 437.

35 O carnaval e o samba de m orro pouco a pouco foram se tornando


instituições controladas. Hoje em dia sabemos que às escolas de sam­
ba muitas vezes são dóceis aos programas da Secretaria de Turismo
que as subvencionam e muitos dos sambas-enredo já não cantam mais
as epopéias dos negros brasileiros, mas enaltecem os programas go-

100
vemamentais. Apesar de tudo, o carnaval, festa de emoção e li­
berdade em quatro dias, ainda é a festa máxima dos Exus. Nesta
época os terreiros estão fechados, os preto-velhos estão livres, os
orixás não descem à terra, e Oxalá, Jesus Cristo, o senhor branco,
é que até à quaresma estará carregando a sua cruz.

36 Empregamos o termo sonho, com o valor teórico que possui na


psicanálise, isto é, como conceito científico. Para Freud o sonho se
caracteriza como uma atividade psíquica capaz de permitir a realiza­
ção do princípio do prazer (energia da libido) de uma forma su­
blimada. O sonho realiza a libido no imaginário, (satisfação alucina­
tória) na medida em que a censura (forma de atuação do princípio
de realidade) impede sua realização real. O desejo se “ realiza” mais
livremente através do sonho porque o indivíduo não está agindo no
real, pois dorme. A mesma mecânica do sonho se daria com as
neuroses obsessivas onde as realizações simbólicas, imaginárias, feti-
chistas (sublimadas) do desejo assumem uma forma doentia — Um
prazer com grande parte de desprazer que acaba dividindo a perso­
nalidade (ego) do indivíduo. — Neste sentido toda realização subli­
mada de um desejo não é capaz de realmente descarregar completa-
mente a libido, trazendo angústias e divisões da personalidade que
poderão cada vez mais afastar o indivíduo do real — aumentando
a fantasia e se despregando do real confundindo imaginário com real
e assim afastando magicamente a presença e a atuação do princípio
de realidade.
Em relação à Umbanda podemos utilizar a analogia efetuada por
Catherine Backes no seu esquema de Ideologia e Inconsciente — (Le
Centenaire du Capital — Mouton):

Origem
Pai morto
Esquecimento

Romance familiar
Romance histórico-social

Mito coletivo Individual Fantasma


Delírio coletivo Religião Neurose obsessiva Delírio in-
(sonho) (sonho) dividual

Devemos ressaltar que a cena primitiva é sempre já imaginária


e sua leitura social só se toma possível através da análise institucional.

101
e esta relação é que vai caracterizar a representação so­
cial, o sistema de idéia. Este sistema de idéias possui
uma linguaguem, uma representação im aginária, que
se caracteriza por ocultar ou inverter as situações reais.
Assim, a representação social Ideológica esconde o que
é inacessível aos agentes que participam de determina­
do processo social produtivo, isto é, as relações sociais
de produção.
Toda representação social visa, por outro lado, ga­
ra n tir um comportamento social através de um sistema
de atitudes. Este sistema de atitudes, em determinadas
formações sociais, se baseia na necessidade da obediên­
cia à autoridade. Nas formações sociais hierárquicas, a
autorlade é condição básica do comportamento social
e a obediência é a condição de existência desta autorida­
de. Algumas teses, principalmente de W ilhelm Reich,
tentam localizar a possibilidade da existência de uma
hierarquia de autoridade social, através da repressão
sexual. Assim, a repressão sexual proporcionaria a exis­
tência de uma estrutura psíquica nas massas, favore­
cendo, na linguaguem de W. Reich, um comportamento
de vassalo e a integração com as regras de conduta ne*
cessárias ao funcionamento hierárquico autoritário da
formação social e das Instituições autoritárias. Algumas
instituições sociais historicamente determinadas preci­
sam, na sua própria estrutura, do funcionamento hie­
rárquico autoritário. Este funcionamento, segundo as
indicações de Reich, teria relação com a abstinência se­
xual, já que a repressão sexual fa cilita ria a obediência
à autoridade patriarcal ou paternal.
Dentre os Aparelhos “ ideológicos” de Estado (AIE)
que em nossa formação social procuram im prim ir de­
terminado comportamento social deve-se ressaltar o
AIE fam iliar, o AIE escolar, o AIE religioso, o AIE cul­
tural, o AIE jurídico, etc.
A instituição social fam iliar, ou aparelho “ ideológi­
co” de Estado fam iliar constitui-se como instrumento de
educação pelo qual tem que passar, quase sem exceção,

52
todo membro de determinada sociedade, a p a rtir do p ri­
meiro sopro de vida.
Não se tra ta somente de ser esta instituição um su­
porte m aterial de representações sociais conservadoras,
individualistas e egoístas em nossa formação social, mas
também um lugar onde se pratica as condutas de autori­
dade e obediência em função de uma proibição — a abs­
tinência sexual. Na “ Introdução à Psicanálise” p. 174
(Payot), Freud assim se refere aos sentimentos de hos­
tilidade em relação à figura do pai, " . . . se nós procura­
mos a raiz de ta l hostilidade em relação a figura do pai
retornando até a infância, nós nos lembraremos que ela
reside no medo que nos inspira o pai, o qual começa des­
de m uito cedo a refrear a atividade sexual do menino e
continua a lhe im por obstáculos, por razões sociais, até
mesmo após a puberdade” .
Na “ Revolução Sexual” p. I l l (Zahar), W. Reich
assim se refere — “ . . . à inibição sexual que resulta das
relações com os pais, se adicionam sentimentos de culpa
e ódio desmedidos que se armazenaram nas crianças na
situação fam iliar durante anos... Se o ódio permanecer
consciente, poderá se transform ar em força impulsora
revolucionária individual poderosa, tornar-se-á motor da
libertação do laço fam iliar e poderá transferir-se com fa­
cilidade para metas racionais da luta contra aquelas si­
tuações que originaram ta l ódio” . . . genericamente, à
“ sociedade autoritária” . “ ...Se o ódio, entretanto é re­
prim ido, dele se desenvolvem impulsos opostos à fid e li­
dade conjugal e à obediência in fa n til, que certamente
tornam-se pesos de chumbo quando por motivos racio­
nais se opta por movimentos sociais libertários. Encon­
tra-se então aquele tipo que pode até ser favorável à
completa liberdade, mas deixa m inistrar aos seus filhos
ensino de religião e ele próprio não renuncia a Igreja,
apesar de ser contrário às suas convicções, justamente
porque “ não pode fazer uma coisa dessas com seus velhos
pais” .
Observam-se então, laivos de hesitação e tergiversa­
ção, indecisão, dependência em relação à fam ília, etc.

53
A estrutura de vassalo, se caracteriza então como
resultado do exercício de uma proibição iniciada na in ­
fância e que se repete por toda uma vida. O exercício
da proibição, que tem por base a repressão sexual, é o
solo da estrutura psíquica de vassalo que é “ uma com­
binação de impotência sexual, indefensabilidade, neces­
sidade de apoio, ânsias de liderança, temor da autori­
dade, medo da vida e misticismo” . “ É caracterizada pe­
la rebeldia e vassalagem ao mesmo tempo” . Podemos
dizer então que o exercício da proibição institucional
autoritária faz com que o indivíduo se sinta sempre com
medo da “ vida” (prática social) e da autoridade, e des­
te modo se estabelece eternamente (repetidamente) o
poder de domínio do “ hierarquicamente superior” .
Como Aparelho “ Ideológico” de Estado religioso,
que estudaremos neste ensaio, a Umbanda procura re­
produzir as relações sociais de uma formação social au­
to ritá ria . No plano da representação social, se por um
lado o Exu e a Quimbanda representam como veremos
adiante uma reação libertária, esta reação não vai além
da lança e das patas do cavalo de Ogum, cavaleiro má­
ximo da Umbanda que defende a autoridade absoluta de
Oxalá. Oxalá que é o Pai de todos os filhos de fé, e cuja
cantiga triste assevera e assegura a obediência a autori­
dade e o medo da “ vida” :

“ Oxalá meu Pai


Tem pena de nós tem dó
Se a volta do mundo é grande
Seu poder inda é maió” . ..

No plano do comportamento social a Umbanda pos­


sui uma regulamentação autoritária que instituciona­
liza uma hierarquia se traduzindo na direção do Tem­
plo Umbandista e na orientação do culto em geral pelos
pais e mães de santo que, como veremos, propõe o exer­
cício de um sistema de atitudes a ser adotado pelos mé­
diuns filhos de santo.1

54
Por instituição social, entendemos então, os apare­
lhos ideológicos de Estado que visam assegurar as rela­
ções de produção (formas de extorsão do sobretraba-
lho) numa determinada formação social. Ao lado dos
aparelhos de Estado (Tribunais, prisões, força pública,
etc.) que têm uma eficácia mais repressiva do que ideo­
lógica, existem os aparelhos ideológicos do Estado (fa­
m ilia r, escolar, religioso, etc.) que têm uma eficácia
mais ideológica (persuasiva) que repressiva devido a sua
combinação com uma representação social.
Cada aparelho ideológico de Estado, ao mesmo tem­
po que possui sua função social, procura se reproduzir
e se estrutura, portanto, com um corpo de regras que
visa atender a essas duas perspectivas. É esse corpo de
regras e seu exercício que efetivamente caracteriza a ba­
se m aterial do comportamento social e se combina com
determinada representação social que tem por efeito a
formação de uma “ estrutura psíquica de vassalo” nos
agentes sociais.

I I . A UMBANDA COMO INSTITUIÇÃO SOCIAL

(Aparelho Ideológico de Estado)

1 — Proposição metodológica

Podemos então situar a Umbanda neste contexto


teórico, como instituição social numa formação social
historicam ente determinada: Brasil, 1971. Vamos tra ta r
da Umbanda hoje.
Em geral os estudos sobre a Umbanda estão situa­
dos dentro de concepções evolucionistas da H istória2,
que procuram a origem do culto umbandista para se
chegar ao conhecimento de seu funcionamento. Esse

55
m aterial de análise, além de dar margem a inümerós en­
ganos, por ser unicamente um levantamento empírico,
será sempre incapaz de ter um efeito de conhecimento,
oferecendo no máximo dados de reconhecimento,
Além da literatura umbandista, os estudos sobre a
Umbanda estão hoje relegados a alguns estudiosos ca­
tólicos, que procuram entender a religião umbandista,
sua popularidade e a alguns estudos de etnólogos brasi­
leiros, que se preocuparam em dar uma abordagem da
origem (evolucionista), uma abordagem “ sociologizan-
te” ou mesmo uma análise na qual o uso da psicanáli­
se fica restrito aos mitos, principalmente relacionados
aos mitos do candoblé e não da Umbanda3.
Pode-se dizer que as religiões dos negros no Brasil
pertencem a nações diferentes. Na Bahia há concentra­
ção do candomblé e as nações ali representadas são as
nagô, gêge e angola. Numa versão brasileira do candom­
blé há o candomblé de caboclos, que por sinal é o de
maior número de participantes. Seus adeptos já estão
fora da tradição cultural africana. Os candomblés tra ­
dicionais, por outro lado, se constituem em verdadeiros
guetos negros que buscam uma reconstituição do seu
ritu a l e dos seus mitos com idas e vindas de seus adep­
tos à Nigéria. De maneira geral, pode-se dizer que os
candomblés da Bahia são de origem sudanesa. Já a “ ma­
cumba” ou Umbanda que existe em maior concentra­
ção no Rio e São Paulo é de origem bantu e está rela­
cionada com o culto dos antepassados. Este é o levan­
tamento de m aterial etnográfico necessário para estudo
etnológico. Assim sendo, ele é necessário como maté­
ria-prim a para o estudo da cultura negra no Brasil, pa­
ra o estudo de uma região da ideologia da formação so­
cial brasileira, e o que se tem a lam entar é o pouco in ­
teresse social que hoje possuem estes estudos, que estão
silenciados de um modo geral.
Vamos procurar, com o m aterial que expusemos aci­
ma, fazer a análise da religião umbandista, sem proce­
der a levantamento ou reconstituição histórica no sen­
tido evolucionista.

56
Como instituição social, a Umbanda procura, por
um lado, reproduzir numa representação simbólica a
hierarquia social, e por outro lado, em seu ritu a l, repro­
duzir o exercício de obediência à autoridade, ambos as­
pectos necessários ao funcionam ento da formação so­
cial. Isso fica indicado quando pensamos que esta repre­
sentação do culto umbandista procede da formação so­
cial escravagista no Brasil. Na verdade a Umbanda,
como religião, é um retrato da formação social brasilei­
ra num plano im aginário, com suas leis próprias de
ocultação e inversão das classes sociais que se estabele­
ceram no Brasil, numa formação quase sempre con-
fituosa.

2 — Sobre a representação social — exposição do a lta r —


As entidades da Macumba

a. A Umbanda dos Orixás

A Umbanda se situa no plano simbólico, numa p ri­


meira forma, com a presença na parte mais alta de seu
altar dos orixás (entidades do candomblé), que na ver­
dade se caracterizam pela representação e condensação,
numa linguagem freudiana, com os santos católicos. As
imagens são dos santos católicos, santos brancos e eu­
ropeus que estão presentes. No alto, Oxalá (C risto), pro­
tegido mais embaixo por Ogum (São Jorge), armado
com seu cavalo, lança, dominando o dragão. Ao lado da
ordem e do respeito de São Jorge, Ogum, temos as cari­
dosas Nossas Senhoras, sempre dispostas a recompen­
sar aqueles que devotam obediência e carinho para Oxa­
lá Pai. É o caso de mamãe Nanã Buruquê, Santana, de
Oxum que é Nossa Senhora da Conceição, de Iansã que
é Santa Bárbara e Iem anjá que é Nossa Senhora da Gló­
ria. Outros orixás estão presentes, como Xangô que pos­
sui uma conotação bem mais fálica no candomblé, com
característica mais africana. Xangô na Umbanda é o

57
legislador, representa a lei e a justiça de Oxalá a ser
defendida e m antida por todos os orixás e seus represen­
tantes. Xangô é representado por São Pedro e por São
Jerônimo. De grande im portância é ainda Oxóssi, São
Sebastião, que é o chefe da falange dos caboclos. É ca­
racterizado como o capitão da m ata onde defende a lei
de Oxalá. Existem ainda outros santos católicos, como
São Miguel Arcanjo, Anjo Gabriel, Anjo Rafael, Santo
Antônio e São Benedito, etc., que ocupam, numa escala
ascendente, um lugar no a lta r umbandista.
Na parte mais baixa, ou em outro altar, estão as
entidades hierarquicamente inferiores: os Caboclos e
Preto-Velhos. Os Caboclos se caracterizam por uma re­
presentação dos índios e possuem um poder espiritual
de cura relacionado com sua sabedoria selvagem, pela
combinação das ervas medicinais e pela capacidade de
combater os flagelos da vida. Os Caboclos são sempre
representados de m aneira v iril. Existem vários Cabo­
clos que possuem força extra (pois são “ cruzados” ) e
que trabalham também na linha de Exu, na linha da
Quimbanda, que analisaremos depois. Os Caboclos, na
sua imagem v iril, representam o desejo da força de uma
formação social que subsistiu apesar dos diversos cho­
ques que até hoje ocorrem com a chamada “ civilização
branca” . Os índios conseguiram m anter a independên­
cia de sua formação social em funcionamento, apesar
das constantes tentativas de assimilação e conquista da
formação social “ branca” 4.
Os Preto-Velhos representam um velho escravo que
adquiriu uma sabedoria que garante a possibilidade de
tra n sita r entre a casa grande e a senzala. Os Preto-Ve­
lhos, em geral, nos seus pontos (cantigas), pedem li­
cença aos orixás para entrarem no terreiro, para traba­
lharem dedicando suas mandingas ou seus segredos pa­
ra melhorarem os sofrimentos. Geralmente consolam ou
fazem caridade, sob a orientação dos orixás. Estão sem­
pre vigilantes na defesa do bem e aconselhando a pra­
ticá-lo. Com isso são recompensados com a boa vontade
dos orixás. Existem, no entanto, Preto-Velhos quim-

5S
bandeiras e sua imagem em geral é de peito nu, e não
estão acocorados numa posição alquebrada como os Pre­
to-Velhos da linha da Umbanda. Estes usam roupas e se
apresentam numa posição de resignação. Os quimban-
deiros, que também são cruzados com Exu, são represen­
tados da mesma maneira que o Caboclo e fazem tanto
o bem quanto o mal (em geral fazem mais o mal do
que o bem).
A Umbanda procura então a prática do bem, sob o
controle dos Orixás. No alto, Oxalá defendido por Ogum,
com sua lança dominando o dragão da maldade. A m al­
dade é a Quimbanda, o reino dos Exus, que não se en­
contram presentes no altar. Seu lugar é fora do terrei­
ro, seu lugar de domínio e poder é outro. Sua casa fica
fora do terreiro, seu poder aparentemente escapa ao
reino de Oxalá. A Quimbanda se caracteriza por ser o
reino dos Exus, que dentro da tradição do candomblé,
se caracterizam como emissários entre os orixás e os
homens, como uma espécie de moleque de recados. Uma
vez recebido seu despacho no início da semana e se con­
tentando com ele, o Exu vai embora e não aparece mais
durante as sessões a não ser para ajudar, no caso de es­
ta r m uito satisfeito com a oferenda recebida. Na Um­
banda, o Exu possui um caráter de condensação m uito
maior com o demônio católico. Oxalá, condensado com o
Pai Eterno, se opõe radicalmente ao Exu condensado
com o demônio revoltado.

b. A Quimbanda dos Exus

Durante as giras de Exu, que são as mais concorri­


das no culto umbandista, durante as sessões de Quim­
banda, fecham-se os altares onde estão os orixás bran­
cos e o Exu passa a ser dono da gira, rei do terreiro.
Por um momento, Exu representa a bagunça — como
já disse um representante da Umbanda — representa a
licenciosidade, a sexualidade. A dança e o teatro simbo­
lizam os desejos de libertação sexual e social. Enquanto

59
os orixás e Oxalá propõem a lei e a caridade, Exu pro­
põe a diluição das regras, da ordem e a entrega total
aos desejos emocionais e à sexualidade (numa forma
simbólica). Os Exus e as Pombas Giras (m ulher de sete
Exus) são consultados para indicarem caminhos de rea­
lização sexual nas relações de casamento, de namoro
ou de amizade pelas pessoas que freqüentam o rito um-
bandista.
Numa mesma ideologia dominante, como é o caso
da Umbanda, existem elementos contraditórios, como
o caráter de Exu. O Exu vai sofrer então uma terrível
campanha por parte dos umbandistas que defendem
uma Umbanda branca, integrada e sujeita às leis das
confederações e aos bons costumes previstos nas consti­
tuições políticas, e portanto, como toda instituição so­
cial visando proporcionar a reconstituição permanente
do processo produtivo e colaborar na sua manutenção.
Assim, Exu sofre a pressão da ideologia dominante e, em
certos rituais, umbandistas tentam dominá-lo. É uma
tentativa de que ele seja controlado pelo guia de fren­
te dos médiuns. O orixá dá licença para que Exu traba­
lhe e para que ele ponha sua força em benefício do bem,
da caridade, enfim do orixá. Ele passa de um transgres­
sor a colaborador da ordem com a sua energia.
Os Exus chamados “ batizados” procuram dentro do
código umbandista, desfazer o trabalho dos Exus pa­
gãos, que baixam nos terreiros quimbandeiros e provo­
cam o mal. Praticar o mal significa imediatamente, na
linguagem simbólica dos Exus, o fim da abstinência se­
xual e a luta contra esta repressão sexual. Através das
indicações de Reich, segundo as quais a obediência à
autoridade está sustentada no exercício da abstinência
sexual, o Exu se torna, com efeito, um elemento subver­
sivo. Toda a literatura umbandista ligada às confedera­
ções, que procuram vigiar e estabelecer a ordem do cul­
to, tenta esvaziar as características de Exu. Isto pode
ser feito de várias maneiras, como a inclusão do Exu
“ batizado” que procura trabalhar para benefício dos
orixás.

fíO
Transcreveremos aqui um trecho da revista “ A Ca­
minho da Luz” , n<? 1, que se refere aos Exus, e caracte­
riza a concepção que eles têm na Umbanda branca:
— “ Apesar de todo carinho, apesar de toda a admi­
ração que tenho pelos Exus e Pombas Giras, não posso
considerar Exu um Orixá. Orixá, é vibração, é uma En­
tidade das Altas Camadas Espirituais, que nunca teve
forma, corpo humano.
Exu. teve corpo, encarnou e busca a sua elevação
espiritual.
Aproveitando o ensejo da pergunta, quero aqui ex­
plicar o porque da minha admiração pelos Exus.
Já é tempo de acabarmos com esta história, de que
Exu é o mal, e a perturbação: nada disso! São, na ver­
dade, espíritos de pouca luz, mas que através do traba­
lho que vêm realizando, vêm alcançando progresso. Sou
favorável ao Exu “ batizado” , ao Exu controlado nelo
Guia Chefe. Não aceito o Exu “ pagão” , o que representa,
este sim, a maldade. Mas, quando falo em Exu e Pomba
Gira, me refiro naturalmente àquela Entidade que, em­
bora não tenha aquele modo agradável de falar, traba­
lha para o bem, desmanchando trabalhos, amarrações,
etc., feitas pelo kiumbas ou exus pagãos. O Exu que en­
tendo, é aquele que incorpora no cavalo, com a devida
permissão do Guia Chefe deste cavalo, vindo portanto
em paz, sem manifestações ruidosas, sem palavrões ou
gestos obscenos. Friso mais uma vez que, sou virtu a l-
mente contra quaisquer manifestações que signifiquem
“ bagunça” . Admiro também as Pombas Giras, que tam­
bém as vejo do mesmo modo acima enunciado; quantas
Pombas Giras, coitadas, levam a fama sem proveito.
Quantas moças, namoram à vontade, fazem o que que­
rem e depois alegam: “ quando a Pomba Gira encosta,
fico assim. . . ” Nada disso, elas nada influenciam de
mal no comportamento dos médiuns; é apenas uma des­
culpa, de m uita gente, para tentar justifica r um pro­
cedimento irregular.
É preciso ficar bem claro, que o Exu é a defesa do
médium: pobre do médium que não tiver a sua defesa.

61
Suponhamos o seguinte exemplo: existe uma briga, de
maus elementos: você não vai chamar um cidadão po­
lido, fino, de alta cultura, para separar ta l briga; natu­
ralmente, você irá procurar uma pessoa, mais ou me­
nos com as mesmas características dos litigantes, po­
rém que esteja do seu lado, para ir lá tentar a paz. Na­
turalmente ele usará da mesma linguagem, dos mes­
mos artifícios, etc.
De uma certa forma, assim também é na espiritua­
lidade. Em uma demanda pesada, em que funcione a
magia negra, etc., uma Entidade de elevada faixa espiri­
tual. não descerá para inte rfe rir; ela mandará, logica­
mente com o seu apoio, uma Entidade mais terra-a-ter­
ra, no caso o Exu ou a Pomba Gira, para resolver o pro­
blema.
Outro prisma que é preciso ser observado é o se­
guinte: certos e numerosos médiuns, felizmente não tão
comuns da Umbanda, mais abundantes em outro setor,
são vaidosos e só querem receber Entidades de Grande
Luz. O seu Guia é sempre o melhor, e não admitem em
hipótese alguma que se fale em Exu, quanto mais, per­
m itir a sua incorporação. Pobres coitados; esquecem que
é através da incorporação e conseqüentemente a prática
do bem, que esses Espíritos alcançam a elevação espi­
ritu a l. Se nenhum médium trabalhasse com Exu ou
Pomba Gira, como essas Entidades alcançariam progres­
so? O saudoso ZÉ ARIGÓ, que através do Dr. Fritz, pra­
ticava as maiores operações, também entregava seu cor.-
po a uma Entidade de relativa espiritualidade: o anão
Papudo. Assim, amigos, pensamos ter esclarecido e de­
finido o nosso pensamento sobre o assunto” .
Nas chamadas Umbandas brancas, nas que traba­
lham em casas de tijolo , freqüentadas pela pequena bur­
guesia, o Exu aparece somente uma vez por mês no ter­
reiro. Os outros dias são dedicados aos Caboclos, Preto-
Velhos, Crianças, Oriente, o que mostra uma influência
maior do espiritismo do que da tradição da macumba.
Na Umbanda de morro ou “ macumba” , o Exu se
constitui na principal gira e é homenageado quase sem-

62
pre aos sábados de madrugada. É hábito que o Exu, co­
mo símbolo da sexualidade liberta, esteja colocado nu­
ma forma teatral, simbólica e im aginária na Quimban­
da. Portanto, suas relações sexuais são apenas colocadas
simbolicamente, como uma alusão a um desejo de uma
camada social que teve suas relações fam iliares destruí­
das por uma necessidade do funcionamento da relação
de casamento autoritário patriarcal européia, que exigiu
a abstinência sexual e a fidelidade conjugal como con­
dições essenciais da constituição fam iliar e exigindo
através da repressão moral-religiosa e legal um compor­
tamento sexual determinado.8
Como não só os negros no Brasil sofrem pressões
sociais e imediatamente o efeito da abstinência sexual, a
pequena burguesia branca aceita de certa forma os ape­
los da sexualidade proposta por Exu, numa forma m ui­
to mais censurada. Por isso, o Exu na Umbanda branca,
de “ classe média” , é sempre perm itido com a presença
e a censura dos orixás. O altar se fecha pela metade ou
não se fecha — o Exu trabalha sob o controle dos o ri­
xás. A religião umbandista, como uma instituição social
que procura garantir o funcionamento da formação so­
cial, procura neutralizar a Quimbanda.

3. Sobre o retom o ao reprimido — Sócio-análise do altar

Procuramos através da exposição da combinação


manifesta dos elementos do altar, indicar a linguagem
im aginária da instituição umbandista.
Devemos advertir que a noção usual ideológica de
“ sincretismo” , pouco pode nos esclarecer sobre as enti­
dades e suas relações. Procuraremos então através do
uso dos conceitos de substituição, representação e con­
densação retirados da psicanálise analisar essas relações.
Se de um lado os “ orixás” que se apresentam na
umbanda mantêm algumas características do candom­
blé representando forças da natureza, de outro lado es­
ses orixás se combinam, ou se condensam com os santos

63
hierarquizados católicos que representam a lei do Cristo,
isto é, da Igreja (ordem branca colonial).
Assim Ogum, orixá do ferro e da guerra, está con­
densado com S. Jorge, santo m ilita r católico defensor da
lei de Cristo. Assim Xangô, orixá do raio e da pedrei­
ra, está condensado com S. Pedro ou S. Jerônimo, le­
gisladores e institucionalizadores da lei do Cristo. Assim
Oxóssi, deus das matas e da caça está condensado com
S. Sebastião santo m ilita r defensor da lei do Cristo.
Podemos dizer que cada orixá, coloca sua força na­
tu ra l a serviço da lei do Cristo, isto é, da ordem colonial-
escravagista. Essa é a característica da condensação,
uma combinação determinada: um grupo de entidades
que defendem a lei de Oxalá, Cristo, cada um com sua
força natural e com suas qualidades.
Nesta mesma situação se encontram as orixás das
águas. Oxum, orixá do rio. Oxum, se condensa com N.
S. da Conceição; Iansã, orixá dos ventos e das tempes­
tades, se condensa com Santa Bárbara; Iemanjá, orixá
do mar, condensada com N. S. da Glória. A água, símbo­
lo de um retorno ao útero, ao sono, ao acalanto, se apre­
senta com as imagens da mãe do Cristo. Na Umbanda,
Nanã Buruguê e Oxum são as nossas mães misericor­
diosas.8
Um dos pontos cantados de abertura na Umbanda
afirm a:

Oxalá é nosso pai


Iemanjá é nossa mãe...

Aqui começa a representação Umbandísta. Oxalá


condensado com Jesus é Deus. Pai eterno. Iemanjá ou
Nanã condensada com Nossa Senhora, é a mãe eterna.
Veremos adiante que esta representação encontra
sua correspondente real imediata nas regras de condu­
ta proposta e exercidas no terreiro, onde o pai de santo,
“ Babalorixá” , e a mãe de santo “ Ialorixá” , exercem as
atitudes de autoridade, compreensão, consolo e miseri-

64
córdia e tentação, para com os “ filhos de santo” , ou
médiuns, filiados ao terreiro que exercem as atitudes
de obediência, elaldade e submissão para com os Pais
hierarquicamente superiores.
Convém ainda ressaltar a presença dos santos ca­
tólicos que auxiliam a defesa da lei e do reino de Oxalá,
tais como os anjos de Guarda, São Gabriel, São Rafael,
São Miguel, e mais próximo da formação colonial escra-
vagista brasileira, Sto. Antônio e São Benedito. Se Ogum,
o santo guerreiro, é o defensor máximo da lei da Um­
banda, Oxóssi, São Sebastião, Sto Antônio e São Bene­
dito são seus imediatos. São Sebastião, Oxóssi, na Um­
banda, é o capitão da mata, chefe da falange dos ca­
boclos que trabalham na e pela lei de Oxalá. São Bene­
dito é em muitos terreiros tido como chefe da falange
dos preto-velhos, é um negro, porém santo, isto é, a ser­
viço da lei dos orixás brancos, um preto porém de “ alma
branca” , como Pai Tomás.7 Finalmente Sto. Antônio é
tido como o “ patrão” dos Exus.8 Uma letra de um pon­
to diz que “ Sto. Antônio é o m aior” . .. isto é, ele é o
preposto de Ogum, na lida e na lu ta imediata contra os
Exus. Nos terreiros de Umbanda é quem “ segura” a por­
teira, é a prim eira sentinela da defesa de Oxalá.
Uma gira de Quimbanda só se faz num terreiro de
macumba, com o altar fechado, a altas horas da noite
e com a vigilância de Sto. Antônio e a autorização de
pai Ogum. O ponto cantado de abertura da Quimbanda
afirm a:
O sino da capela faz belém, blém, blom (bis)
Deu meia-noite o galo já cantou
“ Seu Sete Encruza” (pode ser qualquer nome de
Exu) que é o dono da gira
Dono da gira que Ogum mandou.
Pai Ogum é o representante máximo de Oxalá e os
pontos de abertura de uma gira menciona:
“ Dá licença pai Ogum
Hoje viemos lhe saldar”
No Rio, São Jorge, Ogum, é o santo padroeiro da Po­
lícia M ilita r...

65
“ Saravá E x ú !

A quimbanda é a festa da liberdade. Nos r i­


tuais da grande noite todos os desejos se ma­
nifestam.
Quilombo: mocambo, macumba. A macumba:
cachaça, fumo, pomba-gira, linguagem p a rti­
da, deformada, contra-cultura nas palavras,
na expressão simbolizada de um desejo liber­
tado, o sexo.
Pomba-gira, a mulher dos 7 Exús. Jamais ta l­
vez a força do desejo, a libertação da vida, te­
nha encontrado, para representá-los, uma f i­
gura tão bela.
A meia-noite, quando se fecha a cortina do
altar dos orixás, desmoronam-se os interditos
do pensamento apolineano, e Dionisios — Exú
explode a sua luz escura (o que nada tem a
ver com o “ M al” ou com a magia negra, pois
a quimbanda não é isso).
E viva a Pomba-gira! e viva, Saravá Exú!”
(G .L .)

M ais u m L ançamento de Categoria de


PAZ E TERRA.

Preço: Cr$ 15,00

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