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MICHELE DE OLIVEIRA ROLIM

A CONTRIBUIÇÃO DA DANÇA DO VENTRE PARA


O DESENVOLVIMENTO DA AUTOESTIMA FEMININA

São Leopoldo, maio 2002


MICHELE DE OLIVEIRA ROLIM

A CONTRIBUIÇÃO DA DANÇA DO VENTRE PARA


O DESENVOLVIMENTO DA AUTOESTIMA FEMININA

Trabalho de Conclusão do Curso de Educação Física


Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Centro de Ciências Humanas

Professor Orientador:

São Leopoldo, maio de 2002


O Mundo é feito por diversos tipos de mulheres:

Mulheres que curam com a


força do seu amor...
que aliviam dores com a sua compaixão...

Mulheres que cantam o que a gente sente...

Mulheres que escrevem o


que a gente sente...

Mulheres glamourosas...

Mulheres maravilhosas...

Mulheres que nos fazem rir...

Mulheres batalhadoras...

Mulheres talentosas.
O Mundo também é feito por outros tipos
de mulheres, nem tão conhecidas ou
famosas:

Mulheres que deixam


para trás tudo o que têm,
em busca de uma vida
nova...

Mulheres que, todos os dias, encontram-se


diante de um novo começo...

Mulheres que sofrem


diante das injustiças...

Mulheres que sofrem diante de


perdas inexplicáveis...

Mães
amorosas...
5

Mulheres que se submetem a duras regras...

Mulheres que se perguntam


qual será o seu destino...

Mulheres que têm escritos na face


todos os dias de sua vida.

TODAS, mulheres especiais...


Todas, mulheres tão bonitas quanto qualquer estrela,
porque lutam todos os dias para fazer do Mundo um
lugar melhor para se viver.

(VALEDELEHI 2002; INFONET, 2002)


Agradecimentos

Aos meus amados pais, pelo patrocínio, que considero muito mais que
um apoio financeiro, e à minha querida irmã;

À minha querida avó Diva, mesmo não estando mais presente, continuo
sentindo sua energia;

Ao meu amor Cassiano pela paciência e dedicação;

À Márcia, uma grande amiga que me incentivou muito;

Às alunas de dança do ventre, em especial àquelas que me


acompanharam desde o início, pela inspiração em desenvolver este trabalho;

À Fernanda e à Renata, minhas primeiras alunas, com quem também


aprendi a dar aulas, com muito afeto e amizade;

Ao Professor Paulo Gaiger, pela sua orientação e pelas muitas críticas


construtivas.
RESUMO

Na atualidade, a imagem que se faz do corpo tem sofrido várias


influências: da sociedade, da mídia, da cultura. Na mulher, em especial, o
estereótipo do corpo bonito, de acordo com os padrões de beleza atuais,
influencia sobremaneira a imagem que tem de seu corpo e a sua autoestima.

Neste contexto, propõe-se a prática de uma atividade física que valorize e


respeite as características de cada mulher; que ofereça, ao mesmo tempo,
bem-estar físico e mental e que não a submeta a padrões de beleza
estabelecidos.

A dança do ventre, como proposta de atividade física, vem ao encontro da


possibilidade de desenvolver a autoestima da mulher, através do
autoconhecimento.
SUMÁRIO

RESUMO..............................................................................................................6

SUMÁRIO.............................................................................................................7

LISTA DE FIGURAS............................................................................................9

INTRODUÇÃO....................................................................................................10

1 OBJETO DE ESTUDO....................................................................................12
1.1 Delimitação do Tema................................................................................12
1.2 Justificativa................................................................................................12
1.3 Problema da Pesquisa..............................................................................13
1.4 Objetivos...................................................................................................13
1.4.1 Objetivo Geral.................................................................................13
1.4.2 Objetivos Específicos.....................................................................13
1.5 Metodologia...............................................................................................14

2 REFERENCIAL TEÓRICO..............................................................................15
2.1 O Corpo.....................................................................................................15
2.1.1 Conceitos e interpretações sobre o corpo......................................15
2.1.2 Os diferentes perfis corporais construídos historicamente............17
2.1.3 Consciência corporal......................................................................20
2.1.4 O Corpo e o ser social....................................................................22
2.2 O Feminino................................................................................................25
2.2.1 O Feminino através da história.......................................................27
9

2.2.1.1 A mulher no século XX.......................................................28


2.2.2 O feminino como sinônimo de belo: o estereótipo feminino..........31
2.2.3 A Construção sócio-cultural do feminino........................................36
2.3 Autoestima e a Mulher..............................................................................40
2.3.1 Autoestima......................................................................................40
2.3.2 O corpo feminino e a autoestima....................................................43
2.4 A Dança do Ventre....................................................................................45
2.4.1 O Ventre..........................................................................................47
2.4.2 Origens mitológicas da representação do ventre na dança...........48
2.4.3 Aspectos históricos da dança do ventre.........................................50
2.4.3.1 No Egito..............................................................................50
2.4.3.2 Na Antiga Grécia e Macedônia..........................................52
2.4.3.3 O vestígio cigano na dança do ventre................................53
2.4.3.4 A dança vem para o ocidente.............................................56
2.4.4 A dança do ventre como manifestação cultural e folclórica...........57
2.4.5 Benefícios da dança do ventre.......................................................67

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................74
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: PINTURA EM CAVERNA REPRESENTANDO A DANÇA.............47


Figura 2: Estátua de Astarte...............................................................................48
Figura 3: Pintura representando uma sacerdotiza.............................................50
Figura 4: Estátua da Deusa Ísis.........................................................................50
Figura 5: Egipcios tocando e dançando na rua..................................................51
Figura 6: Imagem de Santa Sara, dos ciganos ou Kali, dos Indus....................56
Figura 7: Apresentação de Dança do Ventre em local público..........................57
Figura 8: Dança do Candelabro.........................................................................59
Figura 9: Dança da Espada................................................................................61
Figura 10: Dança do Pandeiro............................................................................64
Figura 11: Dança do Véu....................................................................................65
Figura 12: Dança com Snujs..............................................................................66
INTRODUÇÃO

A iniciativa de se realizar um estudo sobre a contribuição da dança do


ventre para a autoestima feminina passa por aspectos sociais, profissionais e
pessoais, relacionados a um contexto atual, onde as pessoas vivem sob uma
visão dualista do ser humano, o que dificulta, cada vez mais, a livre expressão.

Neste contexto, verificar-se-á se a dança do ventre poderá desenvolver a


autoestima, oferecendo melhor autoconhecimento corporal, mais leveza nos
movimentos, interligando corpo e mente, que geralmente são vistos separados,
buscando a superação do bloqueio psicológico e estético. Quando se fala em
desenvolvimento da autoestima, refere-se àquela que vai sendo construída
pelas relações sociais, e é através dessas relações que a mulher começa a
sofrer influências de nossa sociedade que dita padrões de comportamento e
beleza incompatíveis com a natureza de grande parte das mulheres. A busca
desses padrões sem levar em consideração a beleza natural e individual de
cada mulher pode desencadear um processo de inferiorização.

As atribulações da vida atual não oportunizam espaços para as pessoas


trabalharem seu corpo, sua expressão de maneira saudável e prazerosa, pois
para ela o corpo é visto apenas como uma ferramenta de trabalho que deve
produzir muito, como por exemplo, nas grandes fábricas, que não atendem às
necessidades corporais de seus funcionários, passando por cima dos seus
limites físicos e psicológicos.
12

Deste modo, a educação física não deve se deixar conduzir por padrões
de moda e beleza que não priorizam a saúde e bem-estar. Os educadores
físicos devem levar em consideração as condições e possibilidades do ser
humano.

Por trabalhar com dança do ventre há cinco anos, a possibilidade de


desenvolver este estudo traz muitas perspectivas no sentido de oportunizar
uma atividade física direcionada a esses aspectos, pois é uma dança
extremamente feminina, que valoriza o corpo feminino, sem qualquer
preconceito de idade, formas etc. É uma dança que busca o que há de mais
belo na mulher, sem sujeitá-la a padrões determinados. Através das aulas
ministradas, nota-se que elas se sentem mais descontraídas do que em outros
tipos de aula de dança que já tive a oportunidade de participar, que usam
técnicas coreográficas. Pelo contrário, a dança do ventre poderá propiciar o
afloramento da feminilidade, através do auto-conhecimento.

Enfim, este trabalho procura fazer uma ligação entre o corpo, a


feminilidade e a dança do ventre. Na busca pelo desenvolvimento da
autoestima da mulher, leva-se em conta que o ser humano não pode ser
dualista, que o corpo feminino não pode ser separado da sua subjetividade e
que a dança do ventre, por respeitar essas características, constitui-se numa
proposta viável de atividade física, momentos de prazer, descontração e enlevo
espiritual. Além disso, a dança do ventre traz consigo toda uma cultura
mitológica e histórica, carregada de simbolismo e valores diferentes da cultura
ocidental, possibilitando uma outra visão sobre como podemos viver, como
pensar e o que os outros pensam sobre corpo e mente.
1 OBJETO DE ESTUDO

1.1 Delimitação do Tema

A contribuição da dança do ventre para o desenvolvimento da autoestima


feminina, verificada através das observações na vivência prática, embasada
em referencial teórico sobre o tema.

1.2 Justificativa

Atualmente, a mulher vive num mundo onde os padrões sociais e de


beleza estão, muitas vezes, além das suas possibilidades. Além disso, o papel
que a mulher vem exercendo na sociedade não possibilita que ela tenha um
espaço para trabalhar a sua corporeidade, de maneira que atenda às suas
necessidades, ou mesmo que possa praticar uma atividade física prazerosa e
saudável.

O que está em alta, são as academias que visam muito a estética, onde
as pessoas sujeitam-se a atividades, geralmente, desgastantes, tendo em vista
as tensões que passam durante um dia de trabalho. Boa parte dessas
atividades tem uma visão dualista, onde somente o corpo biológico é
trabalhado, sem visar o bem-estar mental.

A dança do ventre vem ao encontro dessas necessidades de praticar uma


atividade, que, ao mesmo tempo, trabalhe corpo e mente, desenvolvendo um
14

ambiente propício para o aumento da autoestima, valorizando a beleza única


de cada mulher, sem comparações com qualquer padrão de beleza.

Esta dança é uma arte milenar, que destaca a feminilidade de cada


mulher e traz inúmeros benefícios que vão desde os aspectos físicos até os
emocionais, sem preconceitos de idade, tipo físico e beleza. Esses benefícios
são determinantes na construção de uma autoestima positiva, tornando-se a
mulher mais segura e confiante.

Desta forma, justifica-se o desenvolvimento deste trabalho, no intuito de


desenvolver uma prática, no caso, a dança do ventre, como proposta para
desenvolver a autoestima feminina.

1.3 Problema da Pesquisa

Como a dança do ventre pode contribuir para o desenvolvimento da


autoestima feminina?

1.4 Objetivos

1.4.1 Objetivo Geral

 Verificar a contribuição da dança, em especial da dança do ventre, no


desenvolvimento da autoestima feminina.

1.4.2 Objetivos Específicos

 Levantar os fatores que influenciam a autoestima feminina:


interpretações sobre corpo e corporeidade, consciência corporal, meio social e
trabalho;

 Conhecer o universo feminino e a construção da sua identidade;


15

 Repensar a educação física como instrumento de libertação corporal e


consequente aumento da autoestima feminina;

 Fazer um estudo sobre a dança do ventre.

1.5 Metodologia

Optou-se pela pesquisa documental, com análise qualitativa de conteúdo,


seguindo as orientações de Bardin (apud GODOY, 1995).

A pesquisa documental amplia o campo de investigação porque possibilita


investigação em materiais diversificados, mesmo os que ainda não receberam
qualquer tratamento analítico (GIL, 1999). Este tipo de pesquisa se justifica
pelo fato de que, sendo a dança do ventre uma cultura popular, o assunto pode
ser encontrado em formas diversificadas, mas nem sempre em conteúdo
bibliográfico.

Contudo, utilizou-se também o trabalho de consulta à biblioteca de forma


bastante intensa, pois é justamente na biblioteca que se processa a maior parte
da coleta dos dados (GIL, 1999).

Os conteúdos serão analisados comparando-se o material bibliográfico e


documentos coletados com as experiências adquiridas sobre o assunto e
observações feitas em sala de aula.
2 REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 O CORPO

2.1.1 Conceitos e interpretações sobre o corpo

“O corpo é a morada da alma.”

O pensamento acima, considerando os estudos sobre o corpo, a seguir,


pressupõe muito mais do que, a princípio, expressa. Se buscarmos o conceito
da palavra, corpo é uma porção de matéria que forma um todo único e distinto,
é aquilo que constitui e fundamenta a essência de alguma coisa (LUFT, 1993).

Segundo Sant’anna (1997) é impossível aprende-lo de uma única vez,


compreendê-lo em uma única linha. Seu conhecimento é interminável tanto
quanto são diversificadas as bases culturais que, da medicina à religião,
passando pela filosofia e pela antropologia, o constituem e o transformam.

Lugar da biologia, das expressões psicológicas, dos receios e fantasmas


culturais, o corpo é uma palavra polissêmica, uma realidade multifacetada e,
sobretudo, um objeto histórico. “Cada sociedade tem seu corpo, assim como
ela tem sua língua.” E do mesmo modo que a língua, o corpo está submetido à
questão social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa (SANT’ANNA, 1997).
17

Sobre a visão da autora, acrescente-se, procurando a amplitude do seu


significado, como cada uma das ciências interpreta a relação corpo e ser
social:

Para a filosofia, o corpo não é apenas um aparelho orgânico, mas um


aparelho lingüístico. “O corpo é o inconsciente visível”, afirma Reich, citado em
Leloup (1998). É o nosso texto mais concreto, nossa mensagem mais
primordial, a escritura de argila que somos. É também o templo onde outros
corpos mais sutis se abrigam. O corpo sente, toca, fala, comunga.

Na interpretação da antropologia, no corpo estão refletidos os diversos


tipos de cultura que moldam a maneira de ser das pessoas, devido a fatores
como a moda, o esporte, a religião, os costumes. Neste sentido, Vargas (1998)
ressalta que esta estrutura músculo-esquelética dotada de alma, psiquismo,
emoções e mente que denominamos corpo, é o depósito de todas as
experiências e vivências pessoais ao longo da existência do homem no mundo.
Ele é o somatório e a expressão da história de cada ser humano, bem como do
grupo social. Bertazzo (1998), diz que ao longo da evolução da espécie toma-
se consciência e aprende-se os mais variados e complexos movimentos
corporais. O corpo passa a se expressar, criar, relacionar-se, sofrer, reprimir-
se, vibrar e movimentar-se.

Os movimentos voluntários são constantemente e fortemente realizados


em decorrência de uma motivação, de um desejo, somados a inteligência e a
dinâmica própria. Os gestos são inevitavelmente carregados de psiquismo, isto
é, os movimentos realizados habitualmente têm sempre um clima emocional
atrás de si. Move-se em decorrência de algum desejo, impulsiona-se por tal ou
qual motivação, e a raiz deste fenômeno está em razões primordiais de
sobrevivência da espécie e na sua procura por prazer.
18

Já a psicologia é capaz de interpretar, através das expressões corporais,


os sentimentos das pessoas. Neste contexto, o corpo proporciona tanto
informações como modos de atividades e comportamentos que permitem que o
organismo em constante evolução formule experiências e as registre, mesmo
em períodos de inconsciência (BRITO, 1996). O psíquico humano mantém
latentes as informações e experiências adquiridas para, ao longo da vida,
transformar-se em linguagem consciente do corpo físico.

Na visão da sociologia, o comportamento das pessoas é determinado


pela sociedade em que vivem. As pessoas tentam adaptar-se ao meio, que
influencia a sua forma de viver e relacionar-se. Bertherat (1985) salienta que
desde os primeiros meses de vida o ser humano está reagindo às pressões
familiares, sociais, morais e, aos poucos, seu corpo harmonioso, feliz e
dinâmico é substituído por um corpo que é estranho, o qual aceita com
dificuldade ou até mesmo rejeita. Para assumir o corpo é preciso conscientizar-
se da programação cultural e social de seu passado.

A criança percebe e se expressa primeiramente através de seu corpo, por


meio deste ela desenvolve a primeira forma de comunicação com o outro ser
da mesma espécie. E através dele soma vivências e desenvolve a linguagem,
tributária das aquisições motoras (AUCOUTURIER e LAPIERRE, 1984). Neste
sentido, a educação proporciona ao ser humano, desde a infância à terceira
idade, informação suficiente para expressar-se, viver em perfeita harmonia com
a sociedade e, principalmente, consigo mesmo, tornando o indivíduo seguro
em suas decisões e objetivos. A educação física, em especial, precisa
compreender, construir conhecimentos sobre a essência cultural das diferentes
linguagens que se manifestam através do corpo (BRUHNS, 1992, apud
ROMERO, 1995, p. 17).

2.1.2 Os diferentes perfis corporais construídos historicamente


19

“A reflexão sobre o corpo/movimento remete-nos ao processo


histórico que a produz, como fenômeno cultural, bem como às
relações de poder e ao confronto de interesses que ocorrem na
sociedade e que irão influenciar em seu significado” (SIEBERT, in:
ROMERO, 1995, p. 16).

No decurso da sua história, o homem fez uso do seu corpo e o esculpiu


nas mais variadas formas no intuito de garantir sua existência na terra e
preservar sua história. Atualmente, a tecnologia e a ciência tentam desviar seu
significado, ao mesmo tempo em que conceitos e valores mudam com a
mesma rapidez que os produtos de consumo mudam nas prateleiras. Nesse
contexto, o resgate da identidade corporal produzida e transmitida de geração
em geração se faz de extrema importância.

Em cada época da história, o perfil corporal do homem é definido de


acordo com os valores, as exigências, interesses e projetos da classe
dominante. Revendo a interpretação do corpo feita pela sociologia, verifica-se
que o corpo sofre as pressões provocadas pelo meio social em que está
inserido. Historicamente, verificar-se-á claramente como essas pressões
refletem no perfil corporal, conforme extraído de Romero (1995, p. 17-21).

Na idade antiga da Grécia, o corpo do atleta olímpico era tão valorizado


que chegava a atingir o status de deus. Os jogos olímpicos serviam como
coesão cultural, onde somente às camadas mais abastadas da população se
permitia cultuar o belo. Já as camadas mais pobres eram preparadas para
atividades técnicas e, principalmente, para as guerras.

Verifica-se, em uma mesma época, dois corpos diferentes, o belo e o útil.


Com a dominação do mundo antigo pelos romanos, este perfil de beleza
corporal sofre uma desvalorização, evidenciando-se mais a resistência às
guerras e invasões ocorridas na época.

A influência da igreja, durante a idade média, proíbe toda e qualquer


preocupação com o corpo. Os preceitos religiosos colocavam a alma em
oposição ao corpo, como forma de desprezo pelas questões materiais em
favorecimento dos senhores feudais.
20

No renascimento acontece a redescoberta do corpo como parte da


natureza e, assim sendo, possível de ser estudado cientificamente. O corpo é
liberado e aparece em obras dos principais artistas da época.

Já a Revolução Industrial transforma este perfil de corpo, que passa a ser


pensado não mais como vida e expressividade, mas como uma engrenagem
previsível e controlável. De significativo e completo, o corpo torna-se
fragmentado e abstrato.

De todas as fases da história, a industrialização do trabalho foi a que mais


significativamente afastou o homem da sua idéia de corpo e do que ele
verdadeiramente representa. O homem deixou de usar as mãos para criar sua
obra para colocá-las a serviço do capitalismo. A grande racionalização das
atividades econômicas provocou tão intensa impossibilidade de o homem ser
autônomo, de ser livre para determinar pessoalmente sua vida, que acabou por
sujeitar-se ao aparelho tecnicista como forma de intensificar a produtividade no
trabalho.

Bertherat (1985) vem confirmar esta constatação, quando afirma que:

“A reflexão sobre o sentido do humano começa a questionar


profundamente o mundo do trabalho. O trabalho lucrativo parece ter
embrutecido o homem. A ambição tornou-se a religião do homem do
trabalho. A sociedade industrial reduziu o trabalhador a um anônimo
no meio da multidão de trabalhadores e completamente desvinculado
do resultado final de sua obra. A identidade do trabalhador ficou
escondida atrás da gravata, do avental ou do macacão. Trabalhar
voltou a ser um pesadelo para o homem. Qual o sentido do trabalho?
O homem é um inventor ou uma máquina, pior, uma pequena
engrenagem?”
21

O trabalho deixou de ser uma atividade em que o homem se realiza, mas


uma ação mecânica em função de outras perspectivas de produção, de lucro.
Ao invés de ser um espaço onde o homem se expressa, desenvolve sua
criatividade, não passa de um processo de desumanização, pois o que importa
não é a realização profissional, mas o lucro que proporciona. E o corpo, neste
contexto, torna-se uma simples ferramenta de trabalho que deve produzir sem
descansar, relaxar e sem ter um espaço onde possa expressar sua
corporeidade, emudecendo, sem manifestar qualquer desejo, dor ou vontade.

Todo esse processo histórico provocou a “deserotização do corpo” ou,


como explica Couto (in: ROMERO, 1995, p. 56-70) o adestramento das
expressões corporais, reduzidas ao mecanicismo, sendo-lhe amputadas todas
as formas de prazer. Contudo, verifica-se na atualidade, a procura do resgate
do corpo erótico como forma de se rebelar contra a dominação e a monotonia
de um corpo treinado só para obedecer a ordens. A expressão erótica do corpo
confunde-se, muitas vezes, com valores morais, padrões de beleza e
determinação de necessidades impostas pela indústria e pela mídia, criando
uma falsa noção de liberdade corporal. Contudo, diz a autora que o corpo
erótico é o corpo livre das determinações impostas, um corpo que busca seu
próprio caminho em direção à plenitude e unidade do ser, aceitando-se e
considerando-se belo porque é saudável, inteligente e criativo, capaz de
determinar seu próprio perfil.

2.1.3 Consciência corporal

Partindo do fato de que o ser humano é um ser multidimensional, é


necessário especificar o que é consciência. Segundo Luft (1993), consciência é
o conhecimento ou percepção do que se passa em nós. Faculdade que tem a
razão de julgar os próprios atos. Voz secreta da alma.
22

A consciência do corpo, para Vargas (1998), é o reconhecimento


consciente das estruturas representativas, simbólicas e semióticas que servem
de base à ação. É a noção de imagem do corpo e dos meios de ação que
estabelecem, como a memória, a formação do esquema corporal. Este é o
intérprete ativo ou passivo da imagem do corpo.

A consciência do corpo é uma composição de experiências passadas e


presentes e da percepção do indivíduo dessas experiências. Visto que seja
baseado na experiência, o conhecimento corporal é um conceito em constante
mudança. A imagem do corpo de um adulto é substancialmente diferente
daquela que se sustentava quando criança e, sem dúvida, mudará à medida
que o processo de envelhecimento prosseguir.

Os veículos de manifestação da consciência vão do organismo físico


denso - o corpo humano - passam pelos corpos cósmicos - corpo energético e
corpo emocional - até o corpo mental, o mais sutil dos corpos. Embora sejam
corpos interpenetrantes que coexistem e coabitam o mesmo espaço, cada um
tem sua existência individual (BRITO, 1996).

Segundo Bertherat (1985), tomar consciência do próprio corpo é ter


acesso ao ser inteiro. Pois corpo e espírito, psíquico e físico, e até força e
fraqueza, representam não a dualidade do ser, mas sua unidade.

O que no ser normal chamamos de fragmentação das percepções


corporais, pode tornar-se patológico. Não só o doente não tem consciência do
corpo como unidade, como lugar preciso e homogêneo, mas ainda percebe as
partes do corpo como seccionadas, fisicamente separadas uma das outras
(BERTHERAT, 1985).
23

Para compensar a incapacidade de sentir o próprio corpo, alguns


recorrem à imitação. Eis porque há estereótipos de gestos esportivos, que são
a mera imitação mais ou menos parecida de determinado campeão. Trata-se,
nesse caso, do adestramento do corpo e não da tomada de consciência de
movimentos que o próprio indivíduo teria encontrado e amadurecido através do
uso, tanto do cérebro, quanto dos músculos (BERTHERAT, 1985).

Ter consciência do corpo significa algo primordial, que simplesmente


existe e que é, em última instância, a realidade; algo que é manifesto em todos
os seres vivos e em tudo que os cerca. É o princípio conectivo na rede cósmica
como atributo primário e ulterior da existência.

Na medida que naufragam velhos sistemas e velhas ideologias, surge um


alerta e uma convocação para o despertar de uma consciência global que vem
provocando um movimento de renovação. Movimento este que se encontra em
curso na base da atual revolução epistemológica, científica, educacional e
cultural.

Paralelamente ao movimento em favor de uma nova visão do mundo,


procura-se substituir paradigmas ultrapassados pela ciência, propondo
soluções efetivas para sair da crise de fragmentação.

A consciência corporal pode ser vista como a relação entre o corpo e o


processo cognitivo, como crenças, valores e atitudes. Pode, também, ser
entendida como fundamento da alma, espírito, individualidade, princípio de
entendimento e psique. Assim sendo, toda experiência vivida por uma pessoa
afeta seu corpo e é registrada na sua mente (BRITO, 1996).

Para Gaiger (2000), a consciência corporal é capaz de levar o indivíduo


ao reconhecimento das limitações e capacidades, redimensionando os graus
de tolerância e compreensão do outro a partir das interações. É o outro ser que
nos leva ao conhecimento da própria corporeidade.
24

Segundo Santin (1987), é necessário superar a mitologia, as filosofias


cristã e moderna e o paradigma antropológico ainda vigentes e assumir a idéia
de ser corpo, repensar a idéia de corporeidade do homem a partir do próprio
homem, e isto significa provocar mudanças significativas, não só na imagem do
homem, mas também na ordem social e política. Assim sendo, cabe rebuscar
sobre o corpo e o ser social, sobre como o corpo está sendo visto e tratado
social e politicamente.

2.1.4 O Corpo e o ser social

Atualmente, uma das maiores preocupações do homem em relação ao


corpo é o estereótipo criado pela indústria da moda e da beleza e massificado
pela mídia. O homem abandona seu próprio corpo para assumir outro que não
é seu. Assim, se angustia, se renega e passa a ser infeliz consigo mesmo até
que atinja aquele modelo imposto.

Neste momento, é importante que se conscientize que o corpo não se


resume tão-somente a instrumento das pressões e ditames sociais, mas é o
templo sagrado que abriga a espiritualidade, a história, as emoções do homem
através da sua passagem pela vida.

Partindo das idéias de Bertherat (1985), procura-se fazer uma análise de


como o homem se sente em relação a este paradoxo entre o seu corpo
verdadeiro e o ideal imposto.
25

Em primeiro lugar, é importante que se aprenda a ouvir a voz interna do


próprio corpo, as vozes silenciosas da corporeidade, desenvolvendo uma
sensibilidade capaz de perceber suas necessidades naturais, para que se
mantenha o bem-estar e a saúde sem agredi-lo. Com essa conscientização,
pode ser possível escolher o que é melhor para manter o corpo em forma. Com
atividades físicas prazerosas, as pessoas se expressam alegremente e têm o
corpo em comunhão com o espírito, respeitam os seus limites, procurando
atender suas reais necessidades de saúde e bem-estar, considerando a
estética uma conseqüência das primeiras e não o objetivo principal. Desta
forma o equilíbrio entre o corpo e o ser social se tornará possível.

É necessário, também, olhar para o próprio corpo antes de pensar em


manter ou atingir uma forma que nunca se teve ou compará-lo com um modelo
de corpo que nada tem em comum com esse que se está vendo. É muito mais
benéfico e enriquecedor procurar melhorar a forma que o corpo possui, do que
tentar transformá-lo em um padrão imposto. A imagem corporal se elabora
progressivamente, uma vez construída, permanece ao longo de toda a vida,
independente das modificações que possam ocorrer. Por isso a aptidão de
perceber o próprio corpo é tão importante. A comparação do corpo com um
padrão que dificilmente será atingido pode gerar uma idéia errônea sobre si
próprio, provocando o que Reich (apud BERTHERAT, 1985) chama de couraça
ou tensões musculares que servem como bloqueio para a ansiedade, a raiva
ou excitação sexual, refletindo no corpo as manifestações psicológicas da
pessoa.

As manifestações culturais podem ser consideradas, também, um


determinante na expressão corporal e, no contexto atual onde a massificação
dos gestos, posturas, atitudes, formas de vestir, dançar, de praticar atividades
físicas, tanto podem auxiliar como provocar conflitos entre o corpo e o ser
social.

Para Siebert (in: ROMERO, 1995, p. 34-35):


26

É a cultura, pois, que vai determinar a maneira como o corpo


vai se expressar, por isso é preciso que se compreenda o
“sentido/significado” que têm essas práticas corporais para a
comunidade que as vive. Sendo assim, cada povo vai expressar
diferentes formas de movimentar os corpos, porque se expressa,
diferentemente, como cultura.

O corpo, carregado de história, de memória e capaz de interagir com as


diversas culturas, é forçado a assumir atitudes que lhe são impostas pela mídia
e pela globalização e que, nem sempre, são familiares à sua herança cultural.
Esquecem que é no respeito à diversidade e pluralidade cultural que se
enriquece esta herança. Assumindo uma cultura onde o bonito é ser “igual”,
perde a identidade e o valor da sua expressividade cultural. “A expressividade
do gesto humano possui uma intenção simbólica e, nesse sentido, adquire uma
dimensão valorativa. E, só assim, o homem torna-se sujeito de seus atos e
dono de uma identidade” (SIEBERT, in: ROMERO, 1995, p. 34-35). Significa
que, ao expressar-se livremente, o corpo revela toda a sua cultura, toda a sua
história, a sua arte e interage com outros que também tem a sua. Ao assumir
uma cultura massificada e disseminada indiscriminadamente, todo esse
tesouro cultural construído através das gerações pode se perder e criar,
também, o conflito entre o corpo e o ser social. Por isso, reforça a autora, “é
preciso reconhecer e fazer ver que existem outras simbolizações além
daquelas que se manifestam na estrutura existente”.

Outra pressão provocada pelas imposições sociais é a sacralização do


corpo em relação ao trabalho. Na visão de Marx (apud GRANDO, 1996) a
sociedade capitalista não vê no corpo a sua beleza particular, mas o seu valor
econômico. Daí a necessidade de os mecanismos do poder atuarem na
construção de um corpo a partir de padrões estéticos, morais, de saúde, de
inteligência, considerados normais em relação àquele corpo “pobre por
herança”.
27

A grande maioria dos trabalhadores não tem consciência que são sujeitos
desta determinação. Sentem-se como parte deste processo e, com isso,
perdem a própria identidade, assumindo seu papel na sociedade capitalista que
usa a despersonalização do seu corpo como uma ferramenta de trabalho que
deverá obedecer a regras. O corpo do trabalhador é exercitado, treinado,
disciplinado e inspecionado, devendo corresponder a valores impostos pela
sociedade. É moldado de acordo com os interesses e valores da ideologia
dominante.

Assim, o trabalhador, orientado pelo instinto de liberdade, mas bloqueado


pelos mecanismos manipuladores do processo de produção capitalista, acaba
por recorrer à forma física como símbolo de saúde, beleza e liberdade,
componentes que não identifica no seu corpo sofrido pela opressão. Mas, a
maioria dos trabalhadores que recorre à atividade física acaba se defrontando
com mais uma busca incansável por um modelo de corpo inatingível, pois a
educação física praticada também serve, muitas vezes, como mecanismo para
reafirmação dos interesses dominantes. Trabalha o corpo através de uma visão
totalmente dualista, onde o corpo e mente não possuem qualquer relação.

As mulheres, neste contexto, são dualistas e divididas entre a mulher


social e a mulher espiritual. A mulher social é concreta, existe para ela.
Enquanto a mulher espiritual é subjetiva, é aquela mulher que existe dentro
dela, mas que não sai, fica trancada por seus medos, pela sua própria
condição social. Quando ela ultrapassa essa barreira e consegue externar a
sua subjetividade, ela viverá em plena totalidade. Pois expressará o que
realmente pensa sem divisões entre corpo e mente. Seu corpo expressará
seus sentimentos, pois o corpo é gesto, gesto que pensa e sente.

2.2 O feminino

Diz a lenda que o Senhor, após criar o homem e não tendo


mais nada sólido para construir a mulher, tomou um punhado de
ingredientes delicados e contraditórios, tais como timidez e ousadia,
ciúme e ternura, paixão e ódio, paciência e ansiedade, alegria e
tristeza, e assim fez a mulher (TROBISCH, 2002).
28

Este trecho seria capaz de resumir o estereótipo de mulher construído


através e a partir dos eventos históricos, sociais e religiosos ocorridos em sua
história? E durante a sua passagem pela vida, quais são os efeitos deste
estereótipo sobre a mulher?

Estas perguntas têm sua razão, pois representam a subjetividade do


mundo feminino, onde todos esses ingredientes, como diz o autor, tão
delicados e contraditórios, convivem ainda com pressões sociais,
responsabilidades históricas, conceitos de moral, tradições e preceitos
religiosos. Como pode a mulher ser imparcial e permanecer insensível à
imagem que dela é feita?

Segue Trobisch relatando a lenda indiana sobre a criação da mulher,


sobre a idéia que o homem faz da companheira que o Criador deu a ele:

Senhor, a criatura que você me deu faz a minha vida infeliz. Ela
fala sem cessar e me atormenta de tal maneira que nem tenho tempo
para descansar. Ela insiste em que lhe dê atenção o dia inteiro, e
assim, as minhas horas são desperdiçadas. Ela chora por qualquer
motivo. Facilmente fica emburrada e fica às vezes muito tempo
ociosa. Vim devolvê-la porque não posso viver com ela (TROBISCH,
2002).

Segundo a lenda, mas também para a sociedade, é difícil para o homem


conviver com um ser tão complexo, sensível às pressões externas e, ao
mesmo tempo, interativo com o seu ambiente como a mulher. Contudo, a
mulher representa, assim como o homem, o equilíbrio entre a razão e a
emoção. Porém, o homem assume o papel que a cultura lhe impõe de forte e
insensível, mais racional e menos emotivo. Neste sentido, homem e mulher
completariam o dueto masculino/feminino sem o qual a vida seria impossível.

Senhor, minha vida tem sido tão vazia desde que eu trouxe
aquela criatura de volta. Eu sempre penso nela; em como ela
dançava e cantava, como era graciosa, como me olhava, como
conversava comigo e como se achegava a mim. Ela era agradável de
se ver e de se acariciar. Eu gostava de ouvi-la rir e chorar
(TROBISCH, 2002).
29

Cabe lembrar que as lendas e mitos são criados para explicar uma
situação ou uma condição. Neste texto, a lenda é carregada de interpretações
sobre a existência da mulher, o senso de propriedade do homem sobre ela e a
coerção do homem sobre as atitudes femininas. E a clarificação desta imagem
do feminino é o objetivo deste capítulo, onde serão abordados os aspectos
históricos do feminino, o estereótipo do corpo belo e a construção sócio-cultural
do feminino.

2.2.1 O feminino através da história

A busca da identidade feminina sempre esteve presente na história da


mulher. Desde a mitologia grega, em versos e crenças, a ambigüidade, a
subjetividade e a expressividade do feminino são tão marcantes quanto a
repressão e a coerção por que passaram as mulheres através da história.

A condição da mulher grega fez com que se criassem figuras mitológicas


do ideal feminino como forma de se opor à repressão social. Assim, conforme
Brandão (1989), na mitologia grega, Helena representava o eterno feminino, a
simbolização da mulher como deusa e heroína. Em contrapartida, e ao mesmo
tempo confirmando a sua ambigüidade, Pandora representava a mulher
leviana, maldita e causadora de todos os males do mundo. Afrodite, a deusa do
amor e da beleza completa a imagem multifacetada da mulher grega.

Por influência do povo egípcio, a mulher passou a gozar de certa


consideração. Na mitologia egípcia, a mulher possui uma outra imagem,
conforme Furlani (1992). A imagem de Isis representa a Grande Mãe Terra, a
integradora. É considerada a iniciadora, a que tem o segredo da vida, da morte
e da ressurreição (ressurreição de Osíris, seu irmão e esposo), a fecundidade e
a transformação. Contudo, as mulheres “mortais” eram severamente tratadas e
discriminadas.
30

Com a ascensão do cristianismo, o feminino é valorizado em uma visão


de submissão aos preceitos cristãos. Apesar de ocupar um lugar secundário na
sociedade da época, a mulher passou a ser vista na figura da Virgem Maria.
Mas a imagem da mãe resignada, mulher obstinada e imaculada de Maria era
cobrada às demais mulheres, e qualquer deslize era visto como pecado grave.
O Cristianismo trouxe também personagens como Joana D´arc, a mulher
guerreira, obstinada e masculinizada. Por esses atributos, sofreu as punições
da inquisição.

Com a Inquisição, surge a figura da feiticeira, uma mulher demoníaca, na


visão da igreja. Ao mesmo tempo que a feiticeira representava, para o povo
oprimido e incapaz de expressar-se livremente, o fascínio, o encantamento, a
sedução reprimida pela censura individual e coletiva, o seu castigo era uma
forma da igreja amedrontar o povo e mantê-lo submisso.

Com o aparecimento da modernidade, a igreja encontra na mulher,


segundo Furlani (1992), uma vítima em quem colocar a culpa por todas as
maleficências do ser humano. As revoluções Francesa e Industrial, no final do
século XVII, trouxeram à mulher o encargo de cuidar da família sozinha, em
uma sociedade transfigurada, enquanto o homem passou a trabalhar 12 a 14
horas por dia. Àquelas que iniciaram sua vida como operárias - o que não lhes
era permitido, até então -, não cabiam os mesmos direitos dos operários
homens. As inadequadas condições de trabalho e a transformação da sua vida,
da sua família, do seu parceiro levaram a mulher a “colocar o seu coração no
bolso”, para suportar todas essas pressões da modernidade.

Não se pode omitir, aqui, um dos acontecimentos mais marcantes para a


história da mulher: o motivo pelo qual se comemora, no dia 08 de março, o Dia
Internacional da Mulher. Data em que centenas de mulheres morreram em uma
manifestação de protesto contra as condições precárias de trabalho.

2.2.1.1 A Mulher no século XX


31

As conquistas da mulher ao longo da história vêm acontecendo de forma


muito lenta, principalmente no Brasil. Basta verificar-se alguns dados para
constatar o quanto a mulher foi cerceada ao longo da sua história, motivo pelo
qual suas conquistas são tão comemoradas:

A mulher brasileira teve acesso à educação formal há pouco


mais de 120 anos. Há apenas 60 anos pode votar. E há 13 conseguiu
ter reconhecida pela Constituição a igualdade plena de seus direitos e
deveres em relação aos homens (VEJA, dez./2001, p. 82).

Nas primeiras décadas do século XX as mulheres começaram a mudar


os costumes, valores de uma época extremamente conservadora. Época em
que o espaço urbano estava se estruturando, juntamente com mudanças
sociais, políticas e econômicas. As cidades começaram a ser povoadas por
vários tipos humanos, imigrantes, ex-escravos e representantes da elite que se
mudaram do campo para a cidade.

Com esses fatores preponderantes mudando a sociedade, o aumento da


produção fez com que o homem passasse mais tempo no trabalho e tornou-se
imprescindível que a mulher assegurasse a unidade da família. Para tanto, era
preciso que as mulheres continuassem submissas e subordinadas a uma
sociedade cujo comando estava sob a tutela dos homens. A forma mais
ideológica e reacionária era incutir que o casamento e a manutenção da
família, a casa e as prendas domésticas era o único papel reservado às
mulheres (MALUF e MOTT, apud SEVCENKO, 1997, p. 373).

As mulheres eram responsáveis pela "honra familiar" (MALUF e MOTT,


apud SEVCENKO, 1997, p. 381). Quando as mulheres não respeitavam a
moral e os bons costumes, esse comportamento era transferido ao homem,
perdendo este o respeito da sociedade. O casamento era tratado como uma
das instituições mais sérias, firmes e seguras e essencial à paz social. As
relações fora do casamento eram infinitamente censuradas e condenadas.
32

Existiam normas para que as esposas agissem com perfeição no


casamento. Era chamado de “Decálogo da Esposa”, e instituía às mulheres
amar seu esposo, admirá-lo, ser submissa a ele, mesmo que fossem
abandonadas o acolheriam novamente em seu lar, que deveriam cuidar da
casa com primor e higiene e que os filhos estivessem sempre limpos e
educados. Todos esses ajustes e concessões eram para o bem do casamento.

Diante de todo esse controle social, ideológico e cultural, as mulheres,


através de publicações da época, como as revistas femininas, lançavam
mudanças no pensar sobre o casamento, a família, a educação e os costumes.
A busca da cidadania, votar e ser votada, juntamente com a chegada de uma
"modernidade" que brotava nas cidades principalmente na classe burguesa.

Essa modernidade era bastante controlada, nada que afetasse a ordem


social familiar. As moças da época elogiavam o perfil de um bom marido: “O
ideal para uma moça deve ser um marido rico e feio” (MALUF e MOTT, 1997,
apud SEVCENKO, p. 397). Ou seja, o marido teria que lhes proporcionar uma
vida tranqüila nos moldes estabelecidos pela sociedade. Ao mesmo tempo que
reivindicavam liberdade, direitos, ainda se submetiam ao esquema de dona-de-
casa dedicada ao marido.

Logo após a Primeira Guerra Mundial, sobretudo na Europa e nos


Estados Unidos, as mulheres tiveram um acesso maior ao espaço público que
até então era reservado somente aos homens. Com as crescentes
reivindicações, foram alcançando algumas profissões que se caracterizaram
como sendo exclusivamente femininas. Somente poderiam ocupar as vagas
que fossem parecidas com as atribuições femininas, como: "professora,
enfermeira, datilógrafa, taquígrafa, secretária, telefonista, operárias de indústria
têxtil e de confecções alimentares" (MALUF e MOTT, apud SEVCENKO, 1997,
p. 403).
33

Surge, mais adiante, o movimento feminista, em diversos países do


mundo e, no Brasil, em meados da década de 70, durante a ditadura militar. O
movimento funcionava como um laço de solidariedade entre mulheres advindas
de espaços diversos (VEJA, dez./2001, p. 48). Nesse momento, as mulheres
começam a advogar o direito de cada uma à vivência da própria sexualidade e
do próprio corpo (DEPPE, 2002).

Apesar dessas mudanças na sociedade, as mulheres ainda estão muito


restritas ao lar, ao trabalho social, caseiro, produtoras e reprodutoras da ordem
social estabelecida. As mulheres são essencialmente exploradas por essa
tradição da sociedade do ser dona-de-casa.

Com a crescente urbanização e a transformação nos valores e costumes,


a importância e o sentido da educação passa a ser um assunto também
feminino: Sem instrução e com o tipo de educação colocado até então, o que
poderia ser da mulher moderna? Sem dúvida, a desinformação e falta de
escolaridade era um empecilho aos avanços femininos e não condizia com a
atualidade. O aumento da escolaridade só vai deslanchar com o
desenvolvimento industrial e urbano, e vai dar acesso às mulheres a algumas
profissões e ao seu espaço.

A dispersão feminina além das fronteiras das mesas de secretária, das


lousas das salas de aula e dos ambulatórios de enfermagem ainda é muito
recente. Porém, nesta nova passagem de século, o mundo anda apostando
mais nos valores femininos, com todos os adjetivos que o sexo carrega: frágil,
sensível, delicada, às vezes contraditória e ambígua (VEJA, dez./2001, p. 66).

A individualidade da mulher não é transcendental, espiritual, mas sim


histórica, concreta. Não foram reconhecidas, e sim, ignoradas quando
participaram do desenvolvimento de fatos mitológicos e históricos. Foram
movidas por paixões, desejos, ódios, desesperos e humilhações. Foi
transpondo muitos obstáculos e desafios que conseguiram mostrar sua
participação e contribuição histórica para a sociedade.
34

2.2.2 O feminino como sinônimo de belo: o estereótipo feminino

O estereótipo é uma espécie de clichê mental coletivo,


carregado de tradições, de saudosismo, de aspirações insatisfeitas
que crêem exprimir-se racionalmente em um julgamento de conjunto.
Trata-se, contudo, de um julgamento irracional que não se funda
sobre a totalidade dos fatos que podemos observar (SIMON, 1976, p.
33).

Cada cultura, cada época, cada sociedade impõe à mulher, de forma


implícita, uma imagem dela mesma, um estereótipo. Neste modelo são
colocados todas as tradições, os ideais e conceitos de um corpo “bonito de se
ver”. As mulheres se colocam, erroneamente, diante de uma tarefa difícil, e que
supera as possibilidades de muitas, a de enquadrar-se ou rebelar-se aos
padrões a elas designados.

Neste contexto, a arte poética tem servido ao homem, quase sempre,


para retratar muito mais um ideal de beleza feminina do que realmente a
mulher como ela é. Assim, através da poesia e da literatura, é possível
diagnosticar o tipo ideal feminino que a sociedade tem adotado através dos
tempos, sem considerar que nem sempre - e nem todas as mulheres -
correspondem a esse estereótipo.

Podemos determinar com alguma facilidade que tipo de mulher


corresponde ao lirismo suavemente erótico de um Ronsard, a
visionária grandiloqüência de um Walt Whitmon, a sonoridade perfeita
de um Camões e de um Petrarco; podemos deduzir a mulher que
seria o ideal de um Verlaine e de um Paul Eduard (DANTAS, 1976, p.
425).

Jamais será sabido, no entanto, se essa idealização tinha algum ponto de


contato com a mulher real. São poucos os casos em que a mulher, esta real,
de corpo e alma, pôde ser visualizada através da poesia.
35

Há, entretanto, na literatura brasileira, um poema em que, pela primeira


vez, surge dos versos uma mulher completa, matéria e espírito; uma mulher
moderna, uma mulher eterna. Em “Receita de Mulher”, Vinícius de Moraes,
considerado o “poeta máximo da mulher brasileira”, elabora uma fórmula
mágica, cheia de ironia sobre o estereótipo do belo, na qual todas as mulheres
se encontram, senão por inteiro, pelo menos aqui e ali:

As muito feias que me perdoem, mas beleza e fundamental.


É preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso.
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de "haute couture” em
tudo isso (ou então, que a mulher se socialize elegantemente em
azul, como na Republica Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível.
É preciso que tudo isso seja belo.
É preciso que súbito, tenha-se a impressão de ver uma garça
apenas pousada e que um rosto adquira, de vez em quando, essa cor
só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e
desabroche no olhar dos homens.
É preciso, e absolutamente preciso, que seja tudo belo e
inesperado.
É preciso que umas pálpebras cerradas lembrem um verso de
Eduard e que se acaricie nuns braços alguma coisa além de carne:
que se toque como no âmbar de uma tarde.
Ah, deixai-me dizer-vos que é preciso que a mulher que ali
está como a corola ante o pássaro seja bela ou tenha pelo menos um
rosto que lembre um templo, e seja leve como um resto de nuvem:
mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas.
Nádegas é importantíssimo. Olhos, então nem se fala, que
olhem com certa maldade inocente.
Uma boca fresca (nunca úmida!) e também de extrema
pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas
pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma
mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes. Indispensável
que haja uma hipótese de barrigudinha e, em seguida,
a mulher se alteie em cálice, e que seus seios sejam uma
expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca.
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de
cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um
certo volume de coxas e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e
cobertas de suavíssima penugem.
No entanto, sensível à caricia em sentido contrario.
É aconselhável, na axila uma doce relva com aroma próprio
apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis, sem duvida, os pescoços longos,de forma que a
cabeça dê, por vezes, a impressão de nada ter a ver com o corpo, e a
mulher não lembre flores sem mistério.
Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos.
36

A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na


face.
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma
temperatura nunca inferior
A 37* centígrados, podendo eventualmente provocar
queimaduras do primeiro grau.
Os olhos, que sejam de preferência grandes,e de rotação pelo
menos tão lenta quanto a da terra; e que se coloquem sempre para lá
de um invisível muro de paixão que é preciso ultrapassar.
Que a mulher seja, em princípio, alta.
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se fechar os
olhos, ao abri-los ela não mais estará presente com seu sorriso e
suas tramas.
Que ela surja, não venha; parta, não vá.
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente
e nos fazer beber o fel da dúvida.
Oh, sobretudo, que ela não perca nunca, não importa em que
mundo, não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
de pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma, transforme-se
em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre o
impossível perfume; e destile sempre o embriagante mel; e cante
sempre o inaudível canto da sua combustão; e não deixe de ser
nunca a eterna dançarina do efêmero; e em sua incalculável
imperfeição, constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a
criação inumerável (MORAES, 2002).1

Em uma tentativa de interpretação, poder-se-ia dizer que, neste poema, o


autor procurou descrever todos os tipos de mulher, com suas imperfeições e
sutilezas, inserindo todas, e cada uma, em um tipo de beleza que não é único
nem externo, estereotipado, mas particular e único de cada uma das mulheres
que ele descreve. Entretanto, a realidade é que a mulher sofre muito com as
mudanças de conceito de estética. A cada época, ela deve seguir as normas
citadas pela sociedade, como se seu corpo fosse uma variável:

As formas de problematizar as aparências, os modos de


conceber e de produzir o embelezamento, não cessam de ser
modificados. Compreender essas mudanças implica perceber a
coerência das representações que, ao longo do tempo, acentuam a
repulsa pelas aparências consideradas feias. Nesse sentido, o
embelezamento feminino tem uma história. Da medicina ao esporte,
passando pela higiene e pela moda, esta história é heterogênea,
pouco explorada, embora ela trate de uma preocupação ao mesmo
tempo antiga e contemporânea (SANT´ANNA, 1997 p. 121).

1
O grifo é meu, para salientar pontos que se considera importantes para a idéia que se
está transmitindo.
37

“Dá-me a gordura que te darei a formosura”, diziam as avós. Era a época


em que a felicidade e até o sucesso pessoal podiam ser medidos pela
corpulência. Gordura era sinônimo de riqueza, e a magreza era também sinal
de pobreza e doença. A Olympia de Manet, as madonas italianas, a famosa
Gioconda, eram símbolos de beleza da época. A própria Vênus de Milo que,
hoje vestida, seria recusada como manequim, era padrão de beleza invejado e
imitado. Bustos opulentos, formas roliças, carnações exuberantes eram
cantadas em prosa e verso e objeto de inveja de todas as mulheres. Era esse o
supremo objetivo a ser atingido se quisesse ser imortalizada em quadros,
estátuas e versos, ou simplesmente amada e admirada (DANTAS, 1976).

A insistência em associar a feminilidade à beleza não é nova. A


idéia de que a beleza está para o feminino assim como a força está
para o masculino, atravessa os séculos e as culturas (SANT´ANNA,
1997, p. 121).

As belezas rechonchudas de Rubens, as louras e ruivas opulentas de


Renoir, hoje em dia estariam se submetendo a rigorosos regimes para
emagrecer, pois o que constituía o seu charme e um de seus trunfos mais
poderosos na vida e no amor, seria, apenas, segundo os cânones atuais,
obesidade. Estes valores, desde a época da “opulência corporal”, estavam e
continuam invertidos. A feminilidade não deve estar associada a padrões de
beleza, pois cada mulher tem a sua beleza, única, singular, valorizando e
respeitando a sua forma.
38

Voltando a Vinícius de Moraes, que “em sua incalculável imperfeição”, a


mulher “constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação”, pode-se
dizer que há, em certas mulheres, um encanto mais secreto e mais invencível
do que a beleza, o que o tempo não afeta. Os franceses deram a esse encanto
indefinível o nome de “charme”. A moda, às vezes, tende a dar a todas as
mulheres o mesmo corpo, a impor os mesmos cânones de beleza, aos quais
certas mulheres sempre escapam através de sua personalidade, seus gestos,
suas atitudes, mesmo certas qualidades que, em outras, seriam defeitos. Não
se trata da beleza dos traços, mas da beleza que envolve a mulher como um
todo, a feminilidade que transcende dela, que ilumina o seu rosto, cada gesto
delicado de suas mãos, até mesmo no olhar, a beleza interna refletindo no
corpo.

Cabe explicar, ainda, a diferença entre belo e bonito. O belo vai além do
bonito, além de traços perfeitos, além de padrões de beleza. O belo é
carregado da personalidade, da beleza interior, do estilo próprio de cada
pessoa, enquanto que o bonito limita-se apenas a um padrão de beleza fria,
externa.

Mas, nos tempos atuais, a moda universal favorece justamente essa


individualização da personalidade de cada uma, dentro do maior ecleticismo.
Significa que, atualmente, cada mulher usa o que lhe convém. Mesmo assim, a
maioria das mulheres não consegue ter um estilo próprio, usam o que está na
moda mesmo que não combine com seu estilo. Usam somente porque está na
moda, não fazendo ligação nenhuma com seu jeito de ser. Na verdade, este
“jeito de ser” já é um retrato manipulado pela sociedade e, mesmo que a
mulher procure ser original nos seus usos e costumes em relação a sua
aparência, dificilmente estará sendo ela mesma.

2.2.3 A Construção sócio-cultural do feminino


39

E, no entanto, ali estava, a poucos passos, sua forma feminina.


Que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela (...). Tento
imaginar em sua dolorosa nudez, já envolta em seu espaço próprio,
perdida em suas cogitações próprias. Um ser desligado pelo limite
existente entre todas as coisas criadas (MORAES, 2002).

Mais uma vez recorrendo ao poeta, neste trecho do “Soneto da


Separação” Vinícius de Moraes fala de uma mulher reprimida, “um ser
desligado” de si própria “pelo limite existente entre todas as coisas criadas”.
São as pressões, as imagens, as coerções sociais sobre a mulher que a fazem
ser como é. Para elucidar como isso ocorre, neste capítulo procurar-se-á
abordar quais são os fatores que influenciam na construção da imagem
feminina.

Chagas (in: ROMERO, 1995, p. 127) salienta quão complexa é essa


construção, no seguinte parágrafo:

O feminino não é, ele está, e em estando, irrompe no real como


vivência e experiência, e não como essência. É como marca que se
forja na luta pela potência da vida vencer a morte imposta o cotidiano
de uma sociedade desigual, no seio de uma construção social
inacabada, plural, esfacelada no concreto das desilusões diárias, na
descrença das promessas da razão branca, masculina e eurocêntrica
pautada nos moldes do mesmo, que nos ensina a pensar com o
cérebro, entendido nos limites do orgânico e imutável, a valorizar a
vida a partir do outro, a negar a alteridade em virtude do comum. É na
ambigüidade desses processos que se criam possibilidades de vida
intensa, não inteira, para as mulheres.

Iniciando-se pela mais primordial de todas as coisas, a natureza, pode-se


dizer que a mulher tem seu corpo indissociavelmente ligado à sua função
biológica – que a humanidade tratou de transformá-la em função social –, a
maternidade. E foi assim durante toda a sua história na terra: Ísis (a grande
mãe Terra), a Virgem Maria (mãe de Jesus), e assim por diante. Entretanto, o
homem foi tratando de atribuir a si próprio uma condição que equivalesse, e
porque não superasse, a da mulher. Então, assumiu o poder sobre esse ser tão
suscetível à natureza.
40

A diferenciação biológica entre os sexos fez da mulher,


existencialmente, a parte mais fraca, sendo que a atividade masculina
‘criando valores, constituiu a própria existência como valor, venceu as
forças confusas da vida, subjugou a natureza da mulher’ (BRUHNS,
in: ROMERO, 1995, p. 73).

Essa “função social” só viu algum recesso com a evolução das


sociedades e o acesso da mulher aos meios de informação, ao trabalho e aos
bens de consumo, à diversificação das atividades femininas, permitindo que a
mulher optasse ou não pela maternidade. Pergunta-se, porém, por que, em
pleno século XXI, com todo o acesso à informação e à medicina, aos meios
contraceptivos, mulheres pobres têm tantos filhos?

A resposta está, novamente, na questão biológica: assim como todos os


animais, a preservação da espécie só está garantida na sobrevivência dos
descendentes. Assim, quanto maior o risco em que vivem, mais essas
mulheres, instintivamente, terão filhos na tentativa de garantirem a
sobrevivência2, confirmando a forte ligação entre a mulher e a sua natureza
biológica.

Mas, a maravilhosa dádiva de trazer filhos à vida tornou-se um grande


pesar para muitas mulheres, principalmente àquelas que conflitam com as
condições sociais, sejam elas favoráveis ou não. A mulher que trabalha não
pode ter filhos, mesmo querendo-os, porque já assumiu um compromisso
social com o trabalho, com seu estilo de vida. A mulher que pretende manter-se
bonita receia ter filhos pela perspectiva de perder suas formas com a gravidez.
A mulher pobre não poderia tê-los, mas os têm porque é a única coisa que lhes
resta.

Diante dessas pressões, a mulher passa a ver a sociedade “como um


drama, num resíduo de relações, desejos e idéias” (DAMATTA, apud BRUHNS,
in: ROMERO, 1995, p. 74).

2
Esta informação foi retirada de uma reportagem sobre “Antropologia dos Centros
Urbanos”, TV Cultura, 1995.
41

Assim, a mulher procura um outro significado para sua existência, além


de mãe e esposa devotada. Desta forma, ultimamente, ela tem transgredido
valores impostos e opressões, através de atitudes, muitas vezes,
contraditórias. Por isso, criou imagens destorcidas de si própria, usando,
muitas vezes, a única arma que possui: o corpo. “São a razão do desejo que
movimenta tudo contra a lei e a ordem, pois é no pecado e na transgressão
que concebemos a mudança e a transformação radical, e aqui está uma
imagem de mulher” (BRUHNS, in: ROMERO, 1995, p. 76). Como confirma,
também, Vasconcellos (1996):

Uma forma de desvalorização da mulher por nossa cultura


encontra-se na ênfase dada à aparência física em detrimento de sua
capacidade intelectual. Basta ser bonita para ter um lugar assegurado
dentro da sociedade, que a modeliza como sendo aquele ente que
não precisa ser culto, nem inteligente, e até mesmo, em alguns
casos, estes predicados assustam o homem.

Tais juízos de valor remetem, sobre as mulheres, a idéia de uma


construção cheia de segundas intenções, amarrando-as na condição de meros
objetos sexuais a que foram historicamente reduzidas. Assim, a mulher
antintelectual, objeto sexual é mais uma das imagens construídas sócio-
culturalmente, tomando-se como exemplo o mito Marilyn Monroe:

Impudica, Marilyn? Ela podia mostrar tudo, nós só víamos o


que esperávamos ver. Exposta completamente nua em milhares de
exemplares, ela ficava invisível aos nossos olhos. Com a curva suave
das nádegas, ela mostrava as costas torturadas; com os seios de
menina, ela mostrava as costelas erguidas como quando se prende a
respiração ou as lágrimas. Mais claro do que com palavras, ela nos
deixava ver o seu íntimo. Mas os milhões de olhos nela pousados não
corriam o risco de descobrir um único de seus segredos; não corriam
o risco de se interessar nem um instante pela mulher que ela era. Não
podiam. Não haviam sido programados para ver isso (BERTHERAT,
1985, p. 176).
42

Marilyn Monroe representa o ícone da mulher que vive em conflito com


seu “status social” adquirido através da imagem destorcida que ela própria
criou. Queria ser famosa, maravilhosa e assim o conseguiu porque tinha um
corpo belo para os padrões de beleza da época e às custas de um
comportamento postural que sacrificava seu corpo. Mas não suportava as
pressões que decorriam de sua maneira de ser. Criou uma imagem para o
público que não condizia com o seu íntimo, assim, vivia em constante
sofrimento, tanto que acabou suicidando-se.

Entretanto, em tempos mais recentes, a mulher se defronta com outras


imagens:

A mulher sente vocação para tornar-se ou fazer-se conhecida


como um ser válido em si por uma qualificação, por uma competência
pessoal, expressas em uma atividade que não esteja ligada ao sexo:
quer ser apreciada em uma tarefa pessoal que seja trabalho seu
enquanto ser humano, e não enquanto mulher atraente ou mãe
devotada (SIMON, 1976, p. 172).

A mulher moderna optou pelo trabalho, pela vida fora do lar e do


casamento. Para tanto, abandonou sua natureza feminina e assumiu, para si,
valores e objetivos de uma sociedade que, ao mesmo tempo que a acolhe,
negligencia a sua natureza. Não se pode, aqui, confundir natureza feminina
com o papel que ela possa exercer – seja no lar ou profissionalmente. A
natureza feminina a que se refere diz respeito aos seus valores mais íntimos.

Entre esses valores negligenciados está a subjetividade, os sentimentos,


reações e intuição femininas. Essas poderosas armas faziam com que a
mulher fosse capaz de resolver problemas naturalmente, ouvindo sua voz
interna. Mas hoje, “assuntos de mulher” como a criação dos filhos, por
exemplo, são tratados mecanicamente, através de técnicas e conceitos
externos que não levam em consideração o seu “feeling”, a sua voz interna.

Essas mudanças têm produzido para a mulher um inevitável


conflito interno entre a necessidade de expressar-se através do
trabalho, como um homem faz, e a necessidade interior de viver de
acordo com sua própria natureza feminina (HARDING, 1985, p. 36).
43

A negligência do aspecto interior ou subjetivo da vida tem levado as


mulheres a certa falsificação de seus valores existenciais. O conflito entre o
exterior e o interior é, geralmente, devastador para as mulheres. Na tentativa
de se igualarem aos predicativos masculinos, na corrida pelo seu espaço no
trabalho, pela sua carreira, correm o risco de criarem uma nova farsa, a da
caricatura de homem que às vezes julga ser uma “mulher moderna” (LUFT, in:
VEJA, dez./2001, p. 61).

As mulheres precisam reconhecer que o ponto fraco desta relação está


na falta de subjetivação. Significa que as próprias mulheres não se deixam
enxergar como sujeitos, se contentam em desempenhar os papéis
fundamentais para a manutenção da sociedade moderna. Deixam-se
influenciar pelo mero embate psicológico da sociedade conservadora, que é a
admiração pela beleza sexual e até vulgar, da plástica perfeita, que é
transmitida pelos veículos mais importantes da mídia, a televisão, os jornais e
as revistas, que são formadores da ideologia do consumismo e da ideologia
política.

Contudo, existem outras formas, que não estas, que podem libertar a
mulher desta imagem estereotipada, que não faz parte da sua própria imagem.
Uma dessas formas é a dança do ventre, proposta neste estudo. A dança do
ventre possibilita à mulher desenvolver sua autoestima, tornando-se mais
segura e menos vulnerável a essas imagens criadas pela sociedade. Como
será observado no próximo item, a autoestima na mulher sofre influências das
imagens criadas a partir dessas pressões sociais e a dança do ventre pode ser
um meio de praticar seu auto-conhecimento.

2.3 AUTOESTIMA E A MULHER

2.3.1 Autoestima
44

Autoestima é, numa definição simplificada, o que a pessoa sente em


relação a si mesma. Quando positiva, significa que ela se tem em boa conta,
acredita que os outros gostam dela e confia em sua habilidade de lidar com
desafios. Quando negativa, acha que não merece o amor de ninguém porque
não sabe fazer nada direito, refletindo numa personalidade introvertida ou
agressiva (VEIGA, 2000, p. 71).

Para Branden (1993) a autoestima tem dois componentes: o sentimento


de competência pessoal e o sentimento de valor pessoal. Neste sentido,
autoestima é a soma de auto-confiança com auto-respeito. Está diretamente
ligada à capacidade de lidar com os desafios da vida e o direito de ser feliz,
respeitando e defendendo os próprios interesses e necessidades.

O autor relaciona ainda alguns fatores que determinam a baixa


autoestima, como sentir-se incapaz de amar e de agir diante de tudo,
sentimento de inferioridade, falta de amor próprio e de auto-confiança e
insegurança.

Quando a pessoa desenvolve uma autoestima positiva, ela fica mais


confiante de si mesma, competente e mais merecedora de tudo o que deseja,
sem se comparar aos padrões impostos pela sociedade, seja no estilo de vida,
de vestimenta, de profissão ou de religião. Com a capacidade de saber
escolher o que é melhor para si mesma sem sofrer influências, mesmo que
suas escolhas não estejam de acordo com as regras e padrões da sociedade,
mas conforme seu próprio julgamento.

Assim, podemos dizer que a autoestima serve como protetora


do nosso ego ante as necessidades impostas pela sociedade e os
estímulos que o ambiente cria como desencadeadores de formas
essenciais valorativas de ações (BECKER, apud ADAD, 1991, p.
109).

Só existe autoestima quando uma pessoa vive de acordo com suas


idéias, sem ofender o código de valores que ela construiu ao longo da vida.
Não é possível alguém gostar de si mesmo, ter um bom juízo de si, se estiver
agindo em desacordo com seus princípios, lembra Gikovate (2001).
45

Branden (1993) salienta a importância do auto-conhecimento como forma


de construir uma imagem própria que favoreça uma vida plena.

Importante diferenciar auto-conceito de auto-conhecimento. Auto-conceito


se refere ao conjunto de idéias e atitudes que se possui a respeito de si
mesmo, derivado de experiências pessoais que conduzem a pessoa a
conceitos sobre o tipo de pessoa que imagina ser (HAMACHEK, apud HADAD,
1991).

Muitas vezes, esse auto-conceito está contaminado por experiências


negativas por que a pessoa passa desde a infância até a vida adulta. Por um
motivo ou outro, a não superação desses traumas atinge a autoestima, tendo
como conseqüência um auto-conceito deturpado. A partir do momento em que
o indivíduo desenvolve uma maior habilidade para olhar para dentro de si
mesmo, passa a intuir melhor sobre as coisas. Diz Weil (apud OLIVEIRA, 1998,
p. 11):

Quando a intuição não é contaminada pelas fantasias, desejos


ou apegos, o indivíduo tem acesso a uma gama de informações muito
maior sobre ele e o mundo. Entra em contato com uma nova forma de
saber que o conduz à realização própria, pois está frente ao
conhecimento puro, podendo então experimentar o que chamamos de
felicidade!

Neste sentido, o auto-conhecimento é o caminho para a construção da


autoestima. Desenvolver autoestima significa aprofundar-se na consciência de
si próprio. Tão importante quanto a superação de padrões impostos é a
superação da auto-imagem para uma consciência livre das contaminações
desses padrões.

Weil (apud OLIVEIRA, 1998) reforça esta idéia ao dizer que “desenvolver
a autoestima significa nos aprofundarmos na consciência de quem somos”.
46

Por isso é tão importante o auto-conhecimento, pois ele será o


responsável pelas reações diante de acontecimentos que possam nos afetar.
Uma pessoa que desenvolve auto-conhecimento, tem sua autoestima elevada
e se torna mais segura aos acontecimentos da vida. Assim, explica Branden
(1993, p. 9):

Nossas reações aos acontecimentos do cotidiano são


determinadas por quem e pelo que pensamos que somos. Os dramas
da nossa vida são reflexo das visões mais íntimas que temos de nós
mesmos. (...) É a também a chave para entendermos a nós mesmos
e aos outros.

Isto vem confirmar a importância das experiências vividas. Assim como


elas podem levar a um auto-conceito errôneo, por outro lado, as experiências
como práticas de auto-conhecimento proporcionam crescimento pessoal,
mesmo não sendo experiências positivas. Quando a pessoa tem essa
segurança, sabe tirar proveito de suas experiências em qualquer situação.

2.3.2 O corpo feminino e a autoestima

A sociedade vive em meio de uma revolução do corpo. A imagem corporal


pode ser vista como a relação entre o corpo de uma pessoa e os processos
cognitivos como crenças, valores e atitudes conforme citam Volkwein &
McConatha (apud BECKER, 1999). Deste ponto de vista, a imagem corporal
pode ser definida como uma representação interna, mental, ou auto-esquema
da aparência física de uma pessoa.
47

As pessoas aprendem a avaliar seus corpos através da sua interação


com o ambiente. Assim, sua auto-imagem é desenvolvida e reavaliada
continuamente durante a vida inteira. Na verdade, a imagem corporal é uma
entidade multifacetada que abrange as dimensões física, psicológica e social,
de acordo com Volkwein & McConatha (apud BECKER, 1999). Muito cedo, a
mulher desenvolve um esquema corporal ou estrutura cognitiva através da
percepção de como seus corpos são estruturados. Pelo reforço dado através
da mídia de corpos atraentes, não é surpresa que uma parte de nossa
sociedade se lance na busca de uma aparência física idealizada. A exposição
de modelos de corpos bonitos tem determinado, nas últimas décadas, uma
compulsão à buscar uma anatomia ideal, principalmente entre as mulheres,
aumentando os transtornos de alimentação como a anorexia nervosa e a
bulimia, conforme explica com Nagel & Jones (apud BECKER, 1999).

Esse processo tem um impacto negativo sobre a auto-imagem das


mulheres que se sentem obrigadas a ter um corpo magro, atrativo, em forma e
jovem. E uma imagem corporal negativa pode determinar o aparecimento de
baixa autoestima e depressão, ou seja, sofrimento. Podemos observar fatores
culturais e sociais que afetam o desenvolvimento da imagem corporal do ser
humano e suas conseqüências na busca de aptidão nas academias de
ginástica.

O fenômeno do fitness é uma produção das sociedades industrializadas,


já que a maior parte das pessoas que participam em academias vem da classe
média para cima. Há um incremento da focalização no corpo (sexualidade,
atratividade, etc) e uma preocupação sobre ele (saúde). A mulher tem tido uma
participação muito maior do que o homem nas academias, e no esporte o
homem tem predominado. De outro lado, o corpo não é mais necessário para o
processo de produção, desde a evolução do processo tecnológico e da
racionalização do trabalho no mundo. Assim, a mudança mundial no que tange
à busca da forma física pode ser um investimento importante para a melhora
da imagem corporal do ser humano.
48

Um dos conceitos da terapia psicomotora é que a estima corporal


influencia a autoestima. Isso significa que sentir-se bem com o seu próprio
corpo produzirá um efeito geral de bem-estar. Deste ponto de vista a estima
corporal e a autoestima estão relacionados. Presume-se, entretanto, que a
autoestima poderia ser diferente em função de vários domínios: o físico, o
escolar, e o social. Este modelo trata o domínio específico da autoestima como
competência, conforme citam Marsch & Shavelson (apud BECKER, 1999).

De acordo com Becker (1999), o maior avanço da teoria da autoestima foi


a aceitação da multidimensionalidade. Os sujeitos podem ter diferentes
percepções deles em aspectos isolados de suas vidas. A autoestima consiste
em diferentes domínios que são diferenciados de acordo com a evolução da
idade. Um desses domínios é a competência física percebida. Significa que
uma pessoa pode sentir-se bem com seu corpo tanto aos 30 anos como aos
50, da mesma forma, reconhecendo-o em seu tempo.

Estes são alguns estudos sobre o tema autoestima. O corpo, na verdade,


é uma fonte inesgotável para investigações. As referências expressadas aqui
buscam, de modo geral, chamar a atenção para a necessidade de se tratar
melhor o corpo para aperfeiçoar a nossa área emocional no que diz respeito à
autoestima e conseqüentemente proporcionar uma melhor qualidade de vida.

Sendo assim, a dança do ventre pode ser uma das maneiras de se


melhorar a autoestima feminina, pois ela proporciona a liberdade e criação dos
movimentos, conforme as possibilidades da pessoa. Este tipo de dança não
dita regras nem padrões, apesar de ter seus movimentos próprios. Nela, a
pessoa pode expressar-se livremente, conforme sua personalidade, sem ter
que ajustar-se à regras ou técnicas que tratam as pessoas como se fossem ou
deixassem de ser de “tal” maneira, por padrões de beleza ou por modismos.
49

A dança do ventre vem resgatar, desta forma, o que há de mais belo em


cada mulher, valorizando a expressão única de cada uma, pois a dança do
ventre é uma dança que provém dos movimentos naturais do corpo feminino,
enfatizando as áreas da fertilidade, como quadris, seios e o próprio ventre e
região pélvica. São movimentos que exaltam a força biológica do corpo, não
construídos tecnicamente, mas sim instintivamente, por isso respeitam as leis
da natureza, não traumatizando o corpo, mas despertando-o, não
uniformizando-o, mas criando, não colocando defeitos, mas apreciando-o,
gostando, valorizando e mostrando toda a sua verdadeira beleza, sem rótulos
criados pela sociedade.

2.4 A dança do ventre

A proposta de praticar atividades físicas como forma de melhorar a


autoestima da mulher faz refletir no tipo de atividade a ser sugerida, já que,
como observado na bibliografia até este momento exposta, existe um pré-
conceito sobre as finalidades das academias e sobre o ideal de corpo.

No contraponto desta realidade, busca-se, na dança do ventre, uma


atividade que contemple bem-estar físico e mental, prazer, descontração, além
de proporcionar acesso a uma cultura que não se resume a uma dança.

Falar da dança do ventre é falar de uma arte milenar que destaca a


feminilidade de cada mulher e traz inúmeros benefícios que vão desde
aspectos físicos até os emocionais e espirituais. Este tipo de dança
proporciona elevação da autoestima à mulher, fortalecendo-a e gerando
significativas transformações em quem a pratica (LOPES, 2001).
50

A dança do ventre como proposta para contribuir com a autoestima


feminina necessita de um estudo elaborado, abstraído dos modismos e
estereótipos que se faz da dança. Abordar as principais características da
dança, sua origem, seus benefícios, a roupa e os acessórios, a música e seus
instrumentos, além de depoimentos importantíssimos de quem pratica a dança
não tem como objetivo aproveitar a oportunidade de a dança do ventre estar
presente na mídia, mas o estudo de um comportamento humano que surgiu
muito antes dela, em uma cultura milenar que adentrou o ocidente e o século
XX preservando seus valores. São esses valores tão esquecidos na sociedade
atual que se procura resgatar através da dança.

Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, a mulher descobriu


novos caminhos que a leva à sua interioridade. Assim, em lugar de buscar
causas, explicações às suas feridas e sofrimentos, nascidas, muitas vezes da
falta de amor, a mulher procura, antes de tudo, amar a sua alma, assim como
ela é (CORBETT, 1990). A dança do ventre vem ao encontro desta busca, ao
valorizar a expressão corporal livre de preconceitos, respeitando a natureza
feminina como símbolo da fertilidade, a feminilidade, como expressão dos
sentimentos de quem a pratica.

Para entender toda a carga psíquica e cultural que carrega a dança,


assim como os motivos pelos quais a dança do ventre pode desenvolver a
autoestima feminina, é preciso voltar a um tempo histórico onde ela se originou,
um tempo tão remoto como a história da humanidade. São esses aspectos
históricos, culturais e comportamentais da dança do ventre que serão
abordados, a seguir.

2.4.1 O Ventre
51

O ventre é o símbolo da matriz original, da mãe, assim como a caverna. A


imagem do ventre inspira proteção e calor materno. É no ventre que se
assentam os órgãos das funções gástricas que produzem a digestão dos
alimentos, e por esta localização ele é comparado ao laboratório alquímico. Os
alquimistas diziam que é preciso alimentar o filho filosófico no ventre de sua
mãe. O calor do ventre facilita as transformações, mas é preciso que tenha
para cada um e a cada momento de sua evolução o grau e a intensidade
adequados (SABONGI, 1991).

A presença do ventre na dança pode ser notada através da história, na


arte, na literatura e na mitologia. Nas esculturas e em pinturas de cavernas pré-
históricas, tem-se o testemunho mútuo da existência e da importância do
ventre no mundo antigo. Em diversos locais do mundo e, principalmente no
círculo mediterrâneo, são encontradas manifestações perpetuadas pela arte,
que demonstram a importância do movimento da região ventral e da região
pélvica nas danças que cultuavam a fertilidade (SABONGI, 1991).

Figura 1: Pintura em caverna representando a dança

2.4.2 Origens mitológicas da representação do ventre na dança

Desde épocas primitivas, homens e mulheres, crianças e velhos


dançavam imitando os animais e os elementos da natureza que os cercavam.
Com o tempo, passaram a acreditar que, ao dançar, eram capazes de atrair
boas caças, chuva, sol; a dança passou a ter um conteúdo simbólico e o
homem passou a acreditar em algo mais, além da matéria.
52

Na mitologia, o conceito de Deus era feminino, associado a uma grande


mãe. Desta forma, a veneração a divindades femininas era parte integrante das
tradições sagradas mais antigas. Nesses rituais, as danças simbolizavam a
origem da vida, através de movimentos ondulatórios rítmicos do ventre. Esses
rituais de fertilidade, que não se restringiam somente às mulheres, mas
também à terra e à caça, constituíram os primeiros indícios de uma dança do
ventre na história (SABONGI, 2001).

Observa-se que em todas as culturas, a figura da grande mãe, a guardiã


do ventre, a deusa da fertilidade, do amor e da sexualidade está sempre
presente. É cultuada através da dança em formas e nomes diferentes: Ísis no
Egito, Ártemis na Grécia, a madona negra Kali na Índia e Sara para os ciganos
europeus. Corbett (1990) cita, ainda, Astarte em Israel, Inana na Suméria e
Istar ou Har na Babilônia.

Figura 2: Estátua de Astarte

Segundo Corbett (1990), todas essas divindades eram reverenciadas pelo


amor e pela paixão através da dança, quando a natureza sexual do homem e
da mulher e sua atitude religiosa eram inseparáveis. O culto à Grande Mãe, ou
Mãe Terra e a sua bênção favorecia a reprodução de colheitas, de crianças e
da vida animal.
53

A sexualidade, nesses rituais, tratava-se de um ato honroso e respeitoso,


que agradava tanto ao divino quanto ao mortal. A veneração à grande mãe era
realizada pelas sacerdotisas em rituais de dança que muito se assemelham à
dança do ventre que conhecemos, numa combinação de harmonia entre seu
corpo e seu espírito, consciente de si própria e de seus objetivos:

Á medida que a prostituta sagrada avança pela porta aberta,


ela começa a dançar ao som de música de flauta, pandeiro e
címbalos. Seus gestos, sua expressão facial e os movimentos de seu
corpo flexível, tudo fala de maneira a dar boas vindas à paixão. Não
há falsa modéstia em relação a seu corpo, e quando dança, os
contornos de sua forma feminina revelam-se sob sua túnica cor de
açafrão quase transparente. Seus movimentos são graciosos, e ela
tem plena consciência de sua beleza. Está cheia de amor, e quando
dança sua paixão cresce. Em seu êxtase esquece toda a repressão e
entrega-se à deusa e ao estranho (Corbett, 1990, p. 27).

As mulheres sacerdotizas dessas divindades são denominadas, pela


autora, como “prostitutas sagradas” pelo incrível dom de gerar e fazer gerar a
vida cedido pela Grande Mãe, pelo seu inesgotável amor a todos os homens e
mulheres sem separação entre sexualidade e espiritualidade.

Eram freqüentemente conhecidas por Amáveis ou Graças, uma


vez que se referem à combinação única de beleza e bondade
chamada charis (latim caritas), mais tarde traduzido por “caridade”.
Na verdade, era como a karuna hindu, combinação de amor-de-mãe,
ternura, conforto, percepção mística e sexo (WALKER, apud
COBERTT, 1990, p. 43).

Este culto à fertilidade, à graça divina de gerar pertencente ao sexo


feminino faz parte da própria origem da consciência de seu corpo, da energia
que ele possui, de que nada ocorre mecanicamente, e de que tudo acontece
pela energia emanada de sua espiritualidade. A dança do ventre surge como
forma de expressar esses sentimentos, através de movimentos naturais, que
acentuam os movimentos que expressam força, suavidade, fluindo por todo o
corpo, o ritmo biológico, frenético e impulsionante que a dança do ventre
expressa.
54

Figura 3: Pintura representando uma sacerdotisa

2.4.3 Aspectos históricos da dança do ventre

2.4.3.1 No Egito

Segundo Lopes (2001) uma das hipóteses mais prováveis da origem da


dança do ventre teria sido no Egito, há aproximadamente 150 a.C. e que era
praticada por sacerdotisas em rituais que homenageavam a deusa Ísis, deusa
da fertilidade.

Figura 4: Estátua da Deusa Ísis

A dança era realizada por sacerdotisas treinadas desde meninas para


servirem como "canal da Deusa" nos rituais religiosos.
55

Nos rituais antigos eram oferecidas flores de lótus, incensos, essências,


frutas e água. Enquanto os sacerdotes preparavam a cerimônia, as
sacerdotisas eram as responsáveis pela abertura de um canal para o plano
espiritual através do cântico e da dança, para que a energia divina se
manifestasse. Sem a presença delas, nenhum ritual poderia realizar-se.
Cantavam e dançavam, envoltas por um véu e, ao retirá-lo, demonstravam que
o mistério do universo seria revelado.

A princípio, a dança do ventre era realizada somente em templos, mas


com o passar do tempo começou a fazer parte de grandes solenidades
públicas nos palácios, o que fez com que ela se popularizasse.

A arte teve grande crescimento na VXIII Dinastia, na qual Akhenaton quis


retratar a vida e não somente a vida após a morte como seus antepassados.
Assim, o rei foi retratado em festas no palácio com diversos artistas
contratados, inclusive com dançarinas populares, pois naquele momento da
história do Egito, os cultos a outros deuses estavam proibidos. As sacerdotisas
teriam novamente o papel como mensageiras de Hathor, com seu sucessor e
filho Tutancamon.

Os ensinamentos da dança e do ritual foram transmitidos de geração a


geração até a queda do império egípcio, quando perdeu o seu conteúdo
original e recebeu influências de outros povos.

Figura 5: Egípcios tocando e dançando na rua

2.4.3.2 Na Antiga Grécia e Macedônia


56

Em Khan el Khalili (2001a), cita-se que os gregos, assim como muitos


outros povos, utilizaram ao longo de sua história rituais religiosos que sempre
incluíram a dança. Os ritos de Dionísio (ou Baco) são os mais comentados e
estudados, mas havia diversas outras divindades honradas dessa maneira,
especialmente aquelas ligadas à fertilidade.

No templo à deusa Artemis, no sul da Grécia, grupos de mulheres


cantavam e dançavam para honrá-la. Em Esparta, meninas e jovens
veneravam Artemis e dançavam freneticamente, usando apenas um tecido leve
sobre o corpo, que era normalmente sua roupa de baixo.

Outros deuses como Hécate, deusa das artes mágicas com poderes
sobre a morte e Pan, o deus da natureza também eram venerados em rituais
dançantes e noturnos. A adoração a Afrodite, deusa do amor e da fertilidade na
Ilha de Chipre, os ritos dedicados a Deméter e Perséfone são exemplos da
presença marcante da dança em todos aspectos da vida dos antepassados
gregos.

Muitos desses cultos gregos vieram da Syria Phugya e da Ásia Menor.


Esses ritos eram caracterizados por danças noturnas frenéticas acompanhadas
por instrumentos como flautas e castanholas de metal e de madeira.

Pouco se sabe sobre os ritos de Cabiri, onde Filipe da Macedônia, pai de


Alexandre, o Grande, encontrou sua esposa, Olímpia. Sabe-se que eram ritos
noturnos e que apresentavam excessos dionisíacos. Era um culto muito antigo,
fenício em sua origem, e com raízes na adoração à natureza. O misterioso
ritual era conduzido à luz de tochas e as dançarinas enrolavam serpentes em
seu corpo.
57

Olímpia era a princesa do Épiro, região considerada exterior à Grécia mas


que também foi habitada por gregos. Donona era o principal centro religioso do
país, sede do famoso oráculo de Zeus. Olímpia cresceu familiarizada com o
misticismo dos cultos do norte e do oeste do mundo Grego. Era sacerdotisa de
Dionísio e liderava seus seguidores durante os rituais. As serpentes,
respeitadas por seu simbolismo, faziam parte dos ritos e o manejo delas era
parte integrante das festividades. Um exemplo disso é o costume folclórico
relativo aos antigos ritos de fertilidade que sobreviveram até os nossos tempos,
antes da Segunda Guerra Mundial.

As cortesãs gregas costumavam se apresentar com roupas muito curtas


ou por vezes inteiramente nuas, dançando ao som de flautas. Conhecidas por
sua suavidade e sensualidade ao dançar, usavam os quadris executando
rotações e o abdome, em oscilações lascivas.

A semelhança dessas antigas danças gregas com a atual dança do ventre


faz supor que a dança do ventre dos dias de hoje seja a representação atual do
que um dia foi sua predecessora.

2.4.3.3 O vestígio cigano na dança do ventre

Em Khan el Khalili (2001) vê-se que, nos povoados egípcios, a dançarina


profissional é conhecida como ghazya (plural ghawazee). Embora no princípio
as ghawazee fossem ciganas, a palavra está mais relacionada ao termo
dançarina do que aos ciganos ou a alguma tribo em especial.

Na Índia, terra natal de muitas tribos ciganas que compartilhavam a


mesma linguagem comum na Romênia e baseada no hindi, ainda há tribos de
baixa casta que não têm lugar na sociedade e continuam a levar uma vida
nômade no nordeste do país.
58

A deusa indiana Kali (madona negra) é a mesma que os ciganos


europeus chamam de Sara. Diz-se que as primeiras tribos de ciganos deixaram
a Índia no século V d.C., em busca de trabalho e procurando melhores
condições de vida. Algumas dessas tribos rumaram para o Egito e as filhas
eram encorajadas pelos pais a se tornarem artistas, atividade bem recebida e
que não sofria sanções dentro da estrutura de vida cigana.

A emigração dos ciganos indianos espalhou-se em diversas rotas, pelo


Afeganistão e Pérsia, dividindo-se na costa do Mediterrâneo. Discute-se muito
acerca de suas rotas de entrada. Ainda hoje, encontram-se ciganos no oásis de
Fayyun, no delta do Nilo, que não falam árabe nem obedecem às leis
islâmicas.

Por ter uma estrutura de vida diametralmente oposta às regras sociais


mais comuns, sempre foram hostilizados em todos os países por onde
passaram. Por centenas de anos, têm ganho a vida como artistas de rua e não
há nada escrito sobre eles. Tudo é passado de geração para geração através
da música, do canto e da dança.

A dança sofreu diversas transformações durante a história, mas dada sua


importância como fonte de entretenimento e sensibilidade, sempre permaneceu
viva, de alguma forma, burlando os preconceitos e mudando de aspecto para
garantir a sobrevivência.

Assim, a dança clássica foi separada das manifestações populares,


regulamentada e particularmente executada. De outro lado, havia a dança
popular, apresentada pelos artistas profissionais.

A dança tradicional foi sempre levada avante pelos grupos minoritários


mais pobres e essa humilde associação foi em parte responsável pela
categoria de dança "indigna", sendo a atividade rechaçada, muitas vezes, pela
sociedade. Pela sua natureza, a dança é uma atividade que aguça os sentidos
e diminui as inibições, portanto não digna de cidadãos sóbrios, ansiosos por
manter sua dignidade e autocontrole.
59

Apesar das reservas do povo, a dança permaneceu como meio


indispensável de animação nas festas particulares. Viajando por todos os
lugares e mesclando-se aos costumes locais, as formas de dança se modificam
ao sabor da região onde são executados os movimentos. Apesar dessa
diversidade, alguns elementos se mantêm e aparecem similares em diversas
partes do mundo, como se fossem uma só.

Braços sinuosos e o deslizar da cabeça, de um lado a outro, são


movimentos comuns na dança indiana, persa, turca e árabe. O elaborado
desenho com os dedos, tão característico da dança indiana, também aparece
no Marrocos e na Algéria.

Na Andaluzia, Espanha, encontra-se o flamenco, que é uma combinação


da dança cigana espanhola com forte influência oriental. O trabalho dos pés,
altamente elaborado, relembra a dança indiana. Em algumas formas de
flamenco, a semelhança com a dança árabe é bastante perceptível.

Os ciganos não foram os únicos responsáveis pela disseminação da


dança, apesar de terem desempenhado um importante papel. Mulheres, que
viajaram com invasores coloniais também fizeram isso de país em país. As
tropas romanas espalharam-se pelo Mediterrâneo, no Egito, na Arábia, na
África do Norte e na Europa. Apesar de suas reservas com relação à dança,
apreciavam-na como diversão e importavam dançarinas da Síria para diverti-
los.

Dentro da estrutura artística existiam duas categorias distintas: as


dançarinas populares, que ganhavam a vida dançando, conhecidas pelo nome
de "ghazya", e as cantoras poetizas e musicistas, conhecidas como awalim
(singular almeh) ou "mulher erudita" e faziam parte de uma sociedade mais
elitizada.
60

Desprezando as convenções, as dançarinas tornaram-se a principal


expressão pública da alegria, sensualidade e beleza. Em muitos países do
Antigo Oriente, acreditava-se que a dançarina trazia boa sorte. Eram sempre
chamadas para comemorações públicas e particulares, pois aumentavam as
festividades.

As "chickhat" marroquinas, que atuam em companhias teatrais e viajam


de um lugar para outro, são conhecidas como "mulheres que não querem que
os homens lhes digam o que fazer". Como dançarinas, não lhes é negado o
matrimônio e as recompensas de uma família e, às vezes, elas até se tornam
responsáveis pelo sustento de seus parentes homens. É uma interessante
inversão da ordem natural em sua sociedade, em que as mulheres
muçulmanas são confinadas à casa, tendo no homem o seu sustento, de forma
a serem protegidas das realidades severas e de um mundo cruel.

Consideradas as opções, as dançarinas são afortunadas de certa forma.


Não são obrigadas a seguir todas as regras da sociedade. Seu trabalho lhes dá
mobilidade social e independência e, embora sua posição possa ser
ambivalente, essa mesma condição pode ser um tipo de liberdade.

Figura 6: Imagem de Santa Sara, dos ciganos ou Kali, deusa indiana

2.4.3.4 A dança vem para o ocidente


61

Segundo Sabongi (2001) a dança conhecida no ocidente como dança do


ventre é chamada em árabe de "Raqs Sharqui" (dança do oriente). O termo em
francês "danse du ventre" foi traduzido para dança do ventre, nome pelo qual
hoje a dança é atualmente conhecida. 

Foi vista na Europa pela primeira vez na Mostra Mundial de Paris em


1889, para onde foram trazidos diversos artistas de rua algerianos para se
apresentar na mostra.  Entre eles havia alguns dançarinos que estavam
apropriadamente vestidos com costumes típicos.  Este espetáculo interessou
ao "American Sol Bloom", que os levou, em 1893, para a Exibição Mundial de
Chicado, nos Estados Unidos. Uma das dançarinas que vieram para a exibição
ficou na América, e mais tarde tornou-se a conhecida dançarina "Little Egypt"
(SABONGI, 2001). 

No Brasil, no início dos anos 70, alguns restaurantes árabes como


Semíramis, Bier Maza e Porta Aberta possuíam apresentações de dança do
ventre como atração para seu público freqüentador, em sua maioria, pessoas
da colônia árabe. O aumento da procura pela dança do ventre deve-se, em
grande parte, pela divulgação da cultura árabe em lugares públicos, como o
exemplo da Khan el Khalili, casa de chá com temática Árabe, que apresenta,
desde 1983, a dança do ventre como opção de entretenimento aos seus
clientes (SABONGI, 2001). 

Figura 7: Apresentação de Dança do Ventre em local público

2.4.4 A dança do ventre como manifestação cultural e folclórica


62

Vindas das mais remotas regiões do mundo, as danças folclóricas contam


histórias e enlevam os pensamentos. Música, canto e dança nascem da vida
diária das atividades humanas que, repetidas dia a dia, tomam forma
transformando-se em músicas, poemas e movimentos. O rico folclore que
povoa a cultura do Oriente Médio tem na dança do ventre um veículo que
atravessou fronteiras e séculos. As danças citadas em Khan el Khalili (2001)
oferecem um leve esboço do que se pode encontrar ao tentar descobrir esse
mundo.

O que faz dessas danças válidas como estudo é notar que existe uma
meta que parece ser comum a todas elas: entrar numa espécie de transe
durante sua execução, mesmo que este não seja o objetivo inicial. A dança
mais pertinente a essa discussão é a guedra. Como outras danças folclóricas,
o uso da repetição e o constante envolvimento da música e também dos
movimentos criam um efeito hipnótico entre dançarinos e espectador.
Geralmente, o dançarino alcança um nível de estímulo e envolvimento que
pode levá-lo à total exaustão. O colapso abrupto no final da guedra é, também,
característico de danças antigas marroquinas.

Dentre as mais conhecidas, algumas pelas manifestações folclóricas e


outras pelo seu simbolismo, citam-se:

Guedra

Ritual de transe do "povo azul" do deserto do Saara, que se estende


desde a Mauritânia até o Marrocos, todo o caminho até o Egito. Traçam
místicos símbolos, espalhando fogo, abençoando todos os presentes em
espírito e em realidade. É combinada com a dança de noivado de Tissint.
63

O que torna extraordinária uma apresentação de guedra é o trabalho de


mãos, especialmente, de dedos. Cada articulação se move com um padrão
cadenciado em movimento sincopados de ombros e tórax, que seguem as
batidas rítmicas do instrumento de percussão, enquanto a cabeça balança
lateralmente e os cabelos, adornados com todos os tipos de conchas e contas
aumentam a beleza do quadro. Com a intensificação do ritmo, a dançarina
cresce e se torna ofegante, a face parece tensa e contorcida, os olhos se
fecha, todo seu ser parece, de repente, estar tomado por um feitiço. Exausta
pelo esforço físico e emocional da dança, ela deixa o círculo mágico e outra
toma o seu lugar.

Schikhatt

Originalmente apresentada nas festas antes do casamento por uma


"sheikha ou seu grupo de shikhatt", primeiro para o banquete das mulheres e,
depois, para o grupo dos homens. Esta dança é, hoje em dia, uma diversão
comum em casa, para as mulheres marroquinas.

Raks Al Assaya (dança da bengala)

Mostra a natureza da dançarina, o equilíbrio, o charme, destacando seu


trabalho de quadril e fazendo uma paródia em relação à combativa dança
masculina chamada "tahtib".

Raks El Shemadan (dança do dandelabro)

Dança tradicional egípcia, comum nos casamentos, a dançarina lidera o


cortejo dos noivos, com um candelabro aceso equilibrado na cabeça para
iluminar o caminho do feliz casal, na entrada na nova e feliz vida juntos.
64

Figura 8: Dança do Candelabro

Raks Al Senniyya (dança marroquina da bandeja de chá)

Apresentada tanto por homens quanto por mulheres, mostra a destreza e


a habilidade de equilibrar uma bandeja de chá sobre a cabeça e dançar ao
mesmo tempo.

Dança das Espadas

Gravuras antigas nas paredes mostram quadros de danças descrevendo


o que se supõe ser antigas danças egípcias. Uma delas lembra muito um
exercício de esgrima (luta com espadas). Ela ainda existe no campo e nas
comunidades urbanas onde os veteranos ensinam aos mais novos como
representar a bravura, a virilidade e o orgulho de ser homem e guerreiro em
uma alegre dança com bastões.

Dança Núbia

No extremo sul do Egito, a Núbia compartilha com o Nilo e se estende


deserto a dentro. O sol, tão quente naquela parte do Egito, queima a pele dos
núbios. Ao anoitecer, artistas se vestem com o traje tradicional, dançam e
cantam. A roupa e a dança desses artistas refletem o clima e as condições de
vida da Núbia.

Raks Al Nash'at (dança saudita feminina)


65

O propósito dessa dança para as mulheres é mostrar seus gloriosos


cabelos, graciosos passos deslizantes e vestidos ricamente bordados (thobeal
nasha'at) usados somente para esta dança que, usualmente, é apresentada
em casamentos.

Dabke

Dança tradicional do Líbano, é apresentada por todo o país por


dançarinos que usam roupa tradicional montanhesa. O tema da dança sempre
está ligado a vida cotidiana nas areias.

Fella/Fellaha

No estilo saidi ou estilo do Alto Egito para uma canção de Metkal


Kenaqwi. Um jovem rapaz que procura amor corteja uma jovem, mas seu
coração é instável. Chocadas por seu comportamento num primeiro momento,
as mulheres dão a ele apenas doces e o deixam sozinho.

Sagala

Originalmente da Líbia, esta dança foi encontrada no Egito,


principalmente, em Mersa Mafruh. Quando apresentada de forma autêntica,
apenas uma mulher, cuja roupa cobre-lhe completamente, (chamados
keffaleen). Nesta dança os homens não dançam, com exceção de um, que é
escolhido dente os presentes pela Haggabla.

Dança da Espada (feminina)


66

Bailarinas modernas se apresentam com espadas, usando-as para


demonstrar equilíbrio e destreza no manuseio. Eva Lernick, bailarina
profissional que viaja regularmente ao Egito e Turquia, conta uma história
interessante sobre a dança com espada:

Havia um tempo na história egípcia em que as bailarinas eram vendidas


como escravas nas cortes ou como propriedade dos ricos. Algumas se
adaptavam muito bem, mas outras procuravam demonstrar sua independência
de forma muito especial. Costumavam dançar com espadas usadas em
batalhas. Não simulavam lutar nem disputar, mas delicadamente equilibravam
a espada na cabeça dançando destemidas, expressando-se livremente debaixo
da espada, como forma de manifestar a liberdade do seu espírito, apesar da
escravidão.

Figura 9: Dança da Espada

A Milaya a Laff (a dança do xale enrolado da Alexandria)

A milaya é um tipo de véu oriental que ganhou popularidade no Egito nas


décadas de 30 e 40. A milaya egípcia é muito pesada e é geralmente usada
dobrada durante a dança. Os movimentos de quadril também são pesados,
ainda que graciosos e saltitantes.
67

Seu maior atrativo é que, apesar de esconder o corpo, por ser escuro e
pesado é ao mesmo tempo revelador, pois o tecido é enrolado bem apertado
em redor do corpo. Apesar de ter origem nos trajes humildes dos vilarejos, por
ser inspirado nos xales usados pelos gregos de Alexandria, a milaya tornou-se
item muito popular no Egito.

Um acompanhamento tradicional desse traje é a borrka, um véu tricotado


para o rosto, com amplos buracos que acrescentam mistério ao rosto em vez
cobri-lo, no sentido tradicional do Islã. Um símbolo de beleza oriental, as
mulheres mais ricas usavam esses véus de rosto, freqüentemente em conjunto
com a milaya lef ou xale. Em tempo passados, as mulheres do Cairo
costumavam se enrolar com xales de lã sobre os ombros, quando o clima
estava mais frio. Mais tarde, esse símbolo de riqueza e beleza feminina,
proveniente de Alexandria, tornou-se um acessório fundamental para uma das
danças femininas mais populares dessa cidade portuária.

Apesar de dançar profissionalmente não ser considerado "certo", as


mulheres encontravam uma maneira de realçar suas danças nas ocasiões
festivas e comemorações. Começavam a dançar lentamente com a milaya lef,
usando o gesto de se enrolar com parte da dança. O véu enrolado apertado e
justo ao corpo mostrava as curvas do quadril e da cintura. Assim, o véu era
utilizado para criar um tipo de dança provocante, ainda que totalmente coberta.
O progressivo enrolar e desenrolar do xale, jogando-o ora nos braços, ora nos
ombros, se tornou a base para uma dança folclórica de Alexandria, que fala da
vida dos pescadores. Antes dos homens irem para o mar, as mulheres
dançavam de brincadeira no cais - uma dança na qual elas bailam de saltos
dos tamancos (sheb-sheb) juntos, andavam rebolando os quadris de forma
provocante, lançando os pescadores com gestos simulados.
68

As mulheres de aldeia do Egito já tinham iniciado essa tradição séculos


antes, quando um simples lenço para ombros ou quadril era usado para
enfeitar as danças nas festas familiares para mulheres ou nos encontros
exclusivamente femininos. Na verdade, desde os tempos mais antigos, o lenço
ou véu tem sido parte integrante da dança oriental. A dança com milaya
representa a dança misteriosa mais usada para o flerte. No Oriente Médio, faz
parte integral do baladi (ritmo) egípcio.

Dança da samaritana ou dança do jarro

É também conhecida como dança do rio Nilo. Era executada em


cerimônias presididas pelos faraós à beira do rio Nilo, para pedir ao rio que
inundasse as terras em suas margens, possibilitando as plantações e as boas
colheitas.

A dança do jarro pode ser, também, uma dança folclórica. Neste caso, a
bailarina representa a rotina das beduínas: caminha de sua tenda até o oásis,
onde descansa, conversa com as outras mulheres da tribo, refresca-se, busca
água em seu jarro e retorna à sua tenda.

Dança da serpente

Praticamente em todas as mitologias, a serpente aparece como símbolo


de energia e consciência imortais. A serpente foi cultuada pelas grandes
religiões pré-cristãs, como emblema solar e principalmente associada ao culto
lunar – mais antigo e ligado à grande Deusa.
69

Para os hindus, a serpente é também utilizada para representar o


sustentáculo ondulante do deus Vishnu, assim como o fogo, pois o rastejar
desse animal assemelha-se à maneira como o fogo se propaga. No Egito,
registra-se o culto à deusa serpente que curava todas as doenças humanas.
Esculpida na coroa dos faraós, a serpente naja era a divindade que os
protegia. Na Grécia, a serpente era apresentada como consorte da deusa
cretense da agricultura, ou simplesmente da grande deusa Deméter. O culto à
serpente pode ser observado, ainda, na África, Indonésia, Melanésia, Austrália,
Polinésia, Índia e Turquia. Na cultura de todos esses povos, verifica-se danças
simbolizando a serpente. Também no Oriente Médio danças tribais utilizavam
serpentes.

Para o cristianismo, a serpente tem representação negativa, ligada à


tentação, sedução e perfídia, mas na cabala judaica, representada por duas
serpentes nas cores preta e branca, os princípios passivo e ativo simbolizam as
relações pacíficas entre os povos. Atualmente, a dança do ventre com a
serpente foi popularizada, principalmente nos Estados Unidos.

Dança do pandeiro

Era sempre feita com o sentido da comemoração, da alegria e da festa.

Figura 10: Dança do Pandeiro

Dança dos véus


70

A história da dança dos véus se perde no tempo. Há registros desta


dança somente antes dos antigos períodos Grego e Romano no Norte da
África, voltando à tona apenas no final do século XIX.

Dançar com véus tem invocado, alternadamente, a imagem de modéstia


genuína assim como erotismo acentuado pela nudez. Originalmente,
representavam os movimentos flutuantes das divindades. Antigamente, as
danças com véus podiam ser divididas em duas categorias: a dança dos lenços
e a dança do xale. A dança dos lenços utilizava um ou dois lenços, um em
cada mão, que era agitado no ar, rodado, enrolado ou trançado.

Algumas dessas danças são apresentadas até hoje na Algéria, Marrocos


e Tunísia. Também no Azerbaijão mulheres usam lenços e echarpes em sua
dança para lhes acentuar a beleza. As dançarinas ciganas da Turquia, as
cengis, dançavam com a ponta do lenço da cabeça preso aos dentes, numa
mímica sobre as relações amorosas, fingindo ser uma tímida virgem. Na
Rússia, as danças ciganas também utilizavam chales, assim como na
Espanha, as dançarinas de flamenco usam seus mantons.

A dança do véu como conhecemos hoje entrou para as apresentações


teatrais de dança oriental a partir de 1940, popularizada nos Estados Unidos
através de filmes e produções teatrais.

Figura 11: Dança do Véu


71

Dança do punhal ou da adaga

Representa a morte, a transformação e o sexo. Era uma reverência à


deusa Selkis, a rainha dos escorpiões.

Dança do cajado

É uma simbologia sobre o nascimento de Hórus. O cajado teria sido


utilizado por Ísis, sua mãe, para a magia de sua concepção, já que Osíris, seu
pai, havia sido morto pelo irmão Seth.

Dança do bastão

É uma variação da dança do cajado. A madeira do bastão simboliza o


mistério de Osíris que, por ser divino, foi capaz de gerar somente com a
energia espiritual.

Dança com snujs

Esses pequenos címbalos de metal eram usados pelas sacerdotisas para


energizar, trazer vibrações positivas e retirar os maus fluidos do ambiente,
além de servir para acompanhar o ritmo da música.

Figura 12: Dança com Snujs

Dança do castiçal
72

O fogo das velas representa a vida. Por isso, essa dança é


freqüentemente realizada em festas de aniversário.

2.4.5 Benefícios da dança do ventre

Segundo Sabongi (2001) dança do ventre favorece às formas femininas e


às linhas arredondadas. Os movimentos se adaptam perfeitamente ao desenho
natural do corpo feminino. Baseada na consciência corporal e no isolamento de
grupos musculares específicos, bem executada, a dança oferece flexibilidade.

A delicadeza dos passos e deslocamentos retoma a graça feminina do


andar e o reconhecimento de quanto a mulher pode ser suave e assertiva sem
se desfazer de sua natureza. Aprendendo de novo a expressar emoções
através da música e da dança, uma nova perspectiva se abre, ampliando as
possibilidades de aplicação da dança na vida cotidiana.

Muitas seqüências concentradas na região do baixo ventre, movimentos


gerados a partir do quadril resplandecem em uníssono com o resto do corpo,
deixando a sensação de que a música e a dançarina são a mesma coisa e não
se movem em separado, mas em perfeita harmonia.

O corpo, de forma geral, estimulado pelos movimentos da dança, tem


aquecida sua circulação e em conseqüência uma oxigenação uniforme. Esta
propriedade da dança do ventre favorece o alívio de tensões do ciclo
menstrual, por exemplo, ou das tensões na coluna, aliviando o
comprometimento causado por má postura e falta de exercícios, além do
fortalecimento muscular.
73

Um dos maiores benefícios que a mulher percebe ao dançar é a


redescoberta do prazer de ser feminina. Além disso, na dança do ventre o
corpo reflete a sintonia com a música e a emoção de estar dançando,
possibilitando à mulher expressar-se livremente. Como cita Gibran (apud Khan
el Khalili, 2001), “na profundidade da alma existe uma canção que não pode
ser expressa em palavras”. A dança é uma forma de expressão que fala por si
só.

O caráter bioenergético, a beleza, a graciosidade de seus gestos aliados


à suavidade de suas melodias, que funcionam como mantras libertadores,
trabalham o corpo feminino, levando-o harmoniosamente e com equilíbrio
físico-mental a moldar-se, não a padrões pré-estabelecidos, mas a tornar-se
verdadeiro e único tal qual como é a sua alma e o seu modo de pensar.

Enfatizando a sabedoria ao mesmo tempo que o corpo, liberando o


verdadeiro feminino, eliminando o "stress" diário, a dança do ventre devolve a
vitalidade e harmonia para mulher. É uma terapia da alma e do corpo. Um
caminho para o auto-conhecimento. Um trabalho com consciência e energia.

As mulheres do mundo árabe dançam umas para as outras, e para elas


mesmas. Elas formam um grupo, uma por vez, levantam-se e desenvolvem a
sua performance, para suas irmãs e amigas, sem a presença de homens.
Celebram assim a espiritualidade e a força femininas, e transmitindo beleza e
liberdade através da sua expressão particular.

Os benefícios da dança do ventre podem ser observados no corpo:

 Corrige a postura, conferindo elegância;

 Modela ombros e braços, dando contornos mais definidos;

 Ao corrigir a postura, eleva os seios, favorecendo seu formato;

 Fortalece e enrijece o ventre, diminuindo a barriga;


74

 Afina a cintura;

 Arredonda e endurece quadril e glúteos;

 Tonifica e desenvolve os músculos das pernas, principalmente coxas e


panturrilhas;

 Se a aula mantiver um bom ritmo, pode queimar até 300 calorias por
hora, o que auxilia na perda ou manutenção do peso.

No campo psicológico, cita-se como benefícios da dança do ventre:

 É uma ótima terapia, relaxando e trazendo bem estar emocional;

 Desenvolve a autoestima e a confiança em si própria;

 Traz desenvoltura e desinibição;

 Confere vaidade e graciosidade às praticantes.

Enfim, os benefícios podem ser notados a olhos vistos, tanto para quem
pratica como para quem dá aulas de dança do ventre. Contudo, apesar do
extenso referencial teórico levantado até este momento, faz-se necessário,
ainda, considerações sobre esta experiência, que foi tão marcante a ponto de
se concretizar neste estudo. Assim, nas considerações finais, poderão ser
confirmadas as informações aqui expostas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A dança do ventre é uma dança que expressa os movimentos que


nascem da natureza do corpo feminino. Estes movimentos, principalmente do
ventre e quadris, traduzem toda a fertilidade e a energia que a mulher sente ao
ouvir a voz da sua corporeidade.

Os movimentos da dança do ventre não estão presos a uma técnica


mecânica, mas nascidos e interpretados de acordo com as possibilidades de
cada corpo. Trabalha cada articulação, ao mesmo tempo que tenciona alguma
parte do corpo, relaxa e libera energia em outra, enquanto movimentos de
braços e mãos emolduram o corpo com movimentos suaves e deslizantes.

Esses movimentos, por serem naturais e não forçados, respeitam os


limites de cada mulher, ao mesmo tempo que a estimulam a soltar a
imaginação e criar seus próprios movimentos, a partir deste trabalho corporal.
Além disso, a mulher passa a trabalhar sua corporeidade, expressando na
dança seus sentimentos e emoções, sem regras nem técnicas que não
respeitem a sua história de vida e que se traduz no seu corpo.

A dança do ventre é uma atividade que respeita à natureza do corpo, sem


querer impor ritmos que não combinem com o seu ritmo natural. Ao contrário,
ela oportuniza momentos em que a mulher descobre que é capaz de conhecer
seu próprio corpo, capaz de se conhecer melhor através dos movimentos que
ela jamais imaginaria conseguir fazer. Conhecendo-se melhor,
76

será uma pessoa mais segura em suas decisões e escolhas, mudando seu
comportamento diante da vida, tornando-se uma pessoa mais crítica.

A própria escolha do tipo de atividade física que irá praticar poderá


significar uma mudança de atitude para melhor, se não for influenciada por
modismos de academia, que não visam saúde e bem estar, mas na maioria
das vezes somente estética. As aulas empolgantes que enchem as academias,
a longo prazo podem até ser prejudiciais, se não forem bem acompanhadas e
se o único objetivo for a estética perfeita. A idéia de um modelo corporal
inatingível preconizado nas academias acaba contaminando as pessoas que
são influenciadas por padrões de beleza introjetados pela sociedade, pela
mídia, pelo mercado. É tão ardiloso que faz isso quase sem que as pessoas
percebam.

Fazendo uma atividade que lhe proporcione, além de saúde, bem estar e
que respeite seus limites, gerando situações que provoquem o
desenvolvimento humano, estimulando a criação, na participação da pessoa na
atividade, estará trabalhando corpo e mente como uma unidade.

Esta prática acaba influenciando as suas atitudes, desde as mais simples.


Durante as aulas de dança do ventre, notei consideráveis mudanças nas
alunas com o passar do tempo. Geralmente, no início são muito
envergonhadas quando se trata de fazer os movimentos, por serem bem
diferentes e por nunca terem feito nada parecido. Além disso, são movimentos
que trabalham a soltura das articulações, principalmente as do quadril e do
tronco, onde os seios ficam em evidência. Há uma certa dificuldade em
trabalhar esses movimentos no início, pois é preciso que a pessoa esteja com
uma roupa que mostre e favoreça os movimentos do corpo, mas as alunas
costumam usar roupas que cobrem completamente o corpo por inibição ou
timidez.
77

Noto que, inicialmente, o corpo está, na maior parte das alunas, muito
tenso. Ao analisar seus movimentos, esta tensão ainda é mais gritante, pois
elas os fazem mecanicamente, levando algum tempo para saírem dessa
tensão e deixarem o corpo se expressar. Custa-lhes internalizar que a dança
do ventre não é uma dança que objetiva a técnica, mas sim a expressão de
movimentos de várias maneiras, dependendo de cada pessoa. Cada uma deve
sentir o seu próprio movimento e pode criá-lo também. Levou alguns meses
para as alunas desligarem-se da mecânica e da técnica e deixarem seu corpo
se expressar sem medo de arriscar.

Após algum tempo, que varia de pessoa para pessoa, as alunas


começaram a participar mais das aulas, deixando seu corpo mais disponível
aos seus próprios sentimentos. Notei, até mesmo através das roupas, pois
começaram a vestir-se de forma a deixarem sua barriga e ventre mais à
mostra, facilitando a prática dos movimentos. Algumas passaram a se arrumar
de modo a ficarem mais à vontade, fazendo da aula um momento especial para
elas.

Algumas relataram que pensavam ter domínio sobre seu corpo, que o
conheciam e que, ao participarem das aulas, descobriram que tinham
dificuldades em movimentar livremente seu próprio corpo. Não sabiam que
eram capazes de fazer muitos movimentos e ficaram impressionadas em
perceber que haviam até esquecido de certas articulações.

Quando começaram a conhecer melhor seu corpo, ou seja, seu próprio


eu, pois o corpo é um todo indissociável, tornaram-se mais seguras, mais
confiantes em si mesmas. Notei esta mudança também através das conversas
que tivemos, momentos em que contaram sobre certas atitudes que passaram
a tomar. Como, por exemplo, quando houve uma apresentação de dança e o
marido não a deixou e os filhos diziam que ela era ridícula e ela não deixou
isso domina-la e apresentou-se maravilhosamente bem. Há também casos em
que a família passou a incentivá-las, assistindo as apresentações, admirando-
as por sua atitude, tirando fotos, filmando, o que as faz sentirem-se vitoriosas.
78

Observei-se, também, mudanças no cotidiano, pois para ser possível


reservarem algum tempo para si, passaram a dividir as tarefas de casa com o
marido e os filhos. Outra constatação é que, depois de praticarem a dança por
algum tempo, sentiram-se mais encorajadas a praticarem outras atividades que
tinham vontade, mas que sentiam-se reprimidas por medo de expor seu corpo,
especialmente, no caso das mulheres com mais idade.

Os exemplos que dei foram baseados nos cinco anos que ministro aulas
de dança. A dança do ventre pode estar tendo seu ápice nos tempos modernos
em razão da novela “O Clone”, mas antes disso, ela já estava sendo divulgada,
como pode ser observado no estudo teórico.

Por este motivo, é claro que existem mulheres que procuram a dança do
ventre por modismos. Contudo, o entusiasmo dessas pessoas é só
momentâneo. Outras acabam gostando realmente e se identificando com a
dança, até porque, apesar de tudo, a dança do ventre exige dedicação e força
de vontade da mulher que for praticar.

A dança do ventre é uma atividade que pode contribuir em muito para a


melhora da autoestima feminina, pois ela desperta mistérios do interior de cada
mulher, celebra e fortalece a beleza única de cada uma “sem comparações”.
Enaltece a alma feminina, através da consciência corporal que destaca todas
as suas qualidades e que estão, muitas vezes, reprimidas. Para tanto, a dança
do ventre age de dentro para fora, agindo na conscientização da mulher, e
quando ela percebe seu potencial, deixa-o aflorar. Sua postura mudará e ver-
se-á como o ser único que é, com sua beleza única e individual, desenvolvendo
assim sua auto-confiança. A dança do ventre contagia corpo e mente, deixando
o corpo feminino falar de si mesmo sem rodeios, na sua própria linguagem,
com beleza, naturalidade e toda emoção que a mulher precisa para enriquecer
a sua vida.
79

Enfim, pode-se dizer que o aspecto mais importante é que todas as


melhorias que esta dança proporciona acontecem de uma maneira prazerosa,
respeitando os limites e a história de vida de cada uma, ao mesmo tempo que
a estimula a criar, a conhecer seu corpo, valorizando a sua beleza e
homenageando a vida através de seus movimentos, que representam, antes de
tudo, a fertilidade, a energia e o vigor do corpo feminino.
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