Você está na página 1de 42

Ficha Técnica

Título: A Bicicleta Que Tinha Bigodes


Autor: Ondjaki
Capa: António Jorge Gonçalves
ISBN: 9789722124720
Editorial Caminho, SA
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© Editorial Caminho, 2011
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.caminho.leya.com
www.leya.pt

Segundo a norma da editora, no texto deste livro aplica-se o Acordo Ortográfico de 1990.
o livro que se segue foi escrito com os conteúdos e os ritmos de uma
«estória». nessa letra «e» – minúscula e tão gigante – cabem os desejos e as
fantasias feitos memória quase verdadeira...
peço que entendam a minha personagem Isaura – ela adora dar nomes
demasiado verídicos aos seus bichinhos. mas não pretendemos ofender ou
molestar nenhuma sensibilidade.
fui eu que escrevi esta estória; mas foi a Isaura que me ensinou o caminho
dos nomes que ela escolheu. não há nenhuma relação intencional entre os
nomes e os bichos – amigos – da Isaura.
– Tio Rui, posso falar dos restos de letras que a tia Alice tira do teu bigode
à noite?
– Podes.
– Não vão querer vir na nossa rua roubar a caixa de letras?
– Não. Ninguém vai acreditar.
Sobrinho

Claro que podes que ainda a rua já é a mesma outra de nome mudado e
tudo, não se pode mais jogar futebol, nem ouvir pássaros, nem sapos, é só o
engarrafamento dos jipaços, parecem estilhaços das sirenes do cimento bem
armado de mãos nos bolsos dos calos dos sapatos. Podes, com palavras
pode-se mesmo traduzir a voz do silêncio. Com bigodes e a fazer de guiador
de uma bicicleta que desce para cima sem travões. Podes, sim senhor, falar
dos restos de letras que, felizmente, andamos a semear. Katé!
Tio Manuel também Rui
Na minha rua vive o tio Rui, que é escritor e inventa estórias e poemas que
até chegam a outros países muito internacionais.
O CamaradaMudo, um senhor gordo que fala pouco e está sempre sentado
na esquina da nossa rua, disse que essas estórias já foram transformadas em
peças de teatro num país com nome comprido, parece que se diz
«Julgoeslávia».
Quando ouvi a notícia na rádio, que iam dar uma bicicleta bem bonita,
amarela, vermelha e preta, lembrei-me logo de falar com o tio Rui. Era um
concurso nacional com primeiro prémio de uma bicicleta colorida que já
apareceu na televisão, mas nesse dia na nossa rua não havia luz.
De noite, a falar com a minha almofada, eu até já prometi bem as coisas:
«se eu ganhar a bicicleta colorida, vou deixar todos da minha rua andarem
sem pedir nada em troca, nem gelados nem xuínga».
Essa promessa assim bem dura de fazer é que me fazia acreditar que eu ia
mesmo ganhar a bicicleta.
Mas eu não tenho jeito nenhum para essa coisa das estórias. Falei com
outros miúdos, para saber quem tinha ideias, quem queria participar no
concurso nacional da bicicleta colorida, mas todos me gozam a dizer que essa
bicicleta já deve ter dono, que já sabem quem é que vai ganhar.
Não entendi aquilo, mas não desisti. Fui ainda falar com o CamaradaMudo.
– É verdade que essa bicicleta que estão a anunciar na rádio não é de
verdade?
– Claro que é de verdade – o CamaradaMudo respondeu. – Tu tens uma
boa estória?
– Eu só tenho uma boa vontade de ganhar essa bicicleta.
– Mas para ganhares tens de inventar uma estória.
– Tou masé a pensar que devíamos pedir patrocínio no tio Rui, aquele que
escreve bué de poemas.
– Isso não é batota?
– Batota porquê?
– E as outras crianças?
– Quero lá saber, não tenho culpa que o tio Rui vive aqui na minha rua.
Eles que descubram também o escritor da rua deles.
O tio Rui é simpático e tem sempre bué de pressa.
Às vezes nos dá dinheiro para irmos comprar gelado e, no dia 1 de junho,
podemos entrar todos no quintal da casa dele para ouvir algumas estórias que
ele lê diretamente dos papéis amarelos onde ele escreve. Fala com uma voz
constipada e algumas palavras mesmo são difíceis de entender. Eu pensava
que era só o modo de falar, mas a minha amiga Isaura é que me explicou um
dia.
– Não vês como são os bigodes do tio Rui?
– São como?
– São assim tipo capim que já não se corta desde o último cacimbo.
– E depois?
– Depois que alguns sons e algumas palavras ficam presas no bigode. Então
só ouvimos já o resto.
A Isaura tem sempre ideias complicadas. Fica muito tempo sentada no
quintal dela a olhar as andorinhas, as lesmas e até conhece cada gafanhoto do
jardim dela. Dá nomes de pessoas aos bichos mas não sabe bem a tabuada.
– Quatro vezes quatro? – perguntava o CamaradaMudo quando ainda dava
explicações de matemática.
– Não sei, mas por exemplo, o gafanhoto SamoraMachel gosta mais das
plantas da casa do tio Rui, e só come antes das onze. Se está muito sol, vai--
se esconder.
Nós ríamos daquela maluquice dela, ainda perguntávamos mais.
– Seis vezes três?
– Não sei, mas a lesma Senghor é muito estranha porque anda a fazer uma
casa com pedrinhas que vai buscar no fundo do quintal e um dia destes pode
ser pisada.
A Isaura, como é vizinha do tio Rui, tem boas informações.
– O tio Rui, à tarde, fica na varanda dele a escrever. Primeiro pensa, depois
fala em voz alta e depois é que escreve.
– Como é que sabes que ele tá a pensar?
– És burro ou quê? – a Isaura olhou para mim espantada. – Não sabes que
quando os mais velhos coçam muito tempo o bigode é porque estão a pensar?
A Isaura dá nomes de presidentes aos bichos do quintal dela, e porque são
muitos bichos, ela sabe nomes de muitos presidentes. Podem ser nomes
também de alguns que já morreram ou mesmo outros que não foram
presidentes mas pessoas assim importantes.
O gato dela se chama Ghandi, acho que era um senhor tipo indiano ou quê.
O cão se chama AmílcarCabral, até lhe chamamos de AmílcarCãobral. A
lesma é Senghor, os gafanhotos são Samora, Mobutu e Khadafi, os sapos se
chamam Raúl e Fidel. Parece que também deu nomes aos passarinhos mas
nunca consegui decorar a lista toda.
Agora é que me lembrei, há um papagaio chamado JoãoPauloTerceiro,
filho do falecido jacó JoãoPauloSegundo que tinha morrido na boca do
próprio Ghandi. É que o Ghandi, antes não se chamava Ghandi, se chamava
Tátecher! Só depois de comer os papagaios é que lhe cortaram os tímbalos e
ficou mais calmo a miar devagarinho e a não arranhar ninguém. Mas eu não
posso dizer «tímbalos», nem mesmo «timbalóides», porque a minha
AvóDezanove não gosta que eu diga disparates.
Depois do jantar, a luz foi.
Estavam já algumas crianças na rua e a Isaura veio também. Era sempre
assim, quando a luz faltava, as pessoas se juntavam nesse muro perto da casa
do tio Rui. Às vezes mesmo o tio Rui também vinha cá fora ouvir a nossa
conversa e ficar a rir, depois anotava as coisas que as crianças diziam nessas
folhas de papel amarelo.
Mas o tio Rui não veio. Só o CamaradaMudo chegou perto.
– Camarada Mudo – a Isaura começou –, assim foi avaria só de quinze
minutos ou é coisa séria?
– Pelo modo como a luz foi, assim sem tremer nem nada, acho que foi
mesmo corte intencional.
– «Corte intencional» é como então? – eu perguntei.
– É quando a Edel corta a luz porque quer.
– Mas a Edel existe para dar ou para cortar a luz?
Mais à frente, perto da casa do GeneralDorminhoco, ouvimos uma
travagem brusca do jipe dele. Quem conduz o jipe do GeneralDorminhoco é
um motorista que nunca soubemos o verdadeiro nome dele. Lhe chamamos
só de Nove, já lhe encontrámos com esse nome, dizem que ele já atropelou
mortalmente nove pessoas, sempre de noite. A Isaura foi a correr a ver o que
tinha acontecido, porque não ouvimos gritos, então se não foi pessoa só podia
ser mesmo bicho. E ela tinha razão.
Quando eu, o CamaradaMudo e o JorgeTemCalma chegámos, a Isaura
estava a chorar e a pedir ao Nove para fazer marcha-trás.
– Mataste o meu sapo – ela chorava.
– Há maka? – perguntou o CamaradaMudo.
– Eu só travei porque os miúdos gritaram, mas não vi nada – se desculpou
o Nove.
Mas a Isaura sabia. Eu também. Aquela era a hora de os sapos atravessarem
a rua e irem beber água numa lagoazinha de água parada, que também tinha
capins castanhos e às vezes também dava flores bonitas, sempre no mês de
novembro. Mesmo a Isaura uma vez me disse que naquela lagoa ela já tinha
visto gambozinos coloridos a imitarem um arco-íris.
– Tu viste mesmo esses gambozinos?
– Vi sim. Tinham as cores do arco-íris, e outras cores que vocês nunca
viram.
– E não apanhaste um só pra nós vermos também?
– A minha Avó disse que não se pode apanhar um gambozino.
O motorista Nove deu marcha-atrás com o jipe do GeneralDorminhoco.
Estava no chão uma mancha escura de alguma coisa que devia ter sido um
sapo.
– Mataste o Raúl – a Isaura chorava encostada ao CamaradaMudo.
– Mataste o Raúl? – o CamaradaMudo perguntou ao Nove.
– Afinal mataste o Raúl? – o JorgeTemCalma perguntou também.
– Matei o Raúl? Mas qual Raúl?
– O irmão do Fidel – respondi para ele se assustar.
O Nove ficou muito atrapalhado. Não sabia o que dizer e muita gente já
começava a se acumular ali na rua. Alguém foi chamar o
GeneralDorminhoco. Uma luz de petromax se acendeu no primeiro andar da
casa do tio Rui. Era a tia Alice. Veio à janela.
– O que se passa aí?
– Atropelaram o sapo Raúl.
– Atropelaram só, ou atropelaram mesmo?
– Atropelaram mesmo.
O GeneralDorminhoco veio muito irritado, pois ainda estava a jantar. A
mulher dele veio também, ainda com o avental vestido e os antigos chinelos
de plástico.
– Volta para casa – o General falou. – Não te quero na rua de avental.
O GeneralDorminhoco foi falar com o Nove. Depois riu. Veio saber quem
era a Isaura, dona do sapo.
– Sou eu – a Isaura falou com um bocado de medo.
– Então tu dizes que o Nove atropelou um sapo?
– Sim, camarada general.
– E tu conhecias esse sapo?
– Esse sapo era meu.
– Era «teu»?
– Sim, vivia no meu quintal há muito tempo.
O GeneralDorminhoco riu, parecia que estava a gozar connosco. Depois
acendeu uma lanterna e focou na mancha escura no chão.
– E como é que sabes que isto aqui era um sapo? Pode ser uma fruta podre,
ou outro bicho qualquer.
– Mas eu sei que é o Raúl.
– Não sabes nada. E acabou a conversa porque a rua está muito escura e
vocês nem deviam estar aqui a brincar. Já para casa todo o mundo.
Só que apareceu o tio Rui de chinelos e calções. Vinha a fumar um cigarro
escuro tipo charuto que cheirava bué a tabaco dos cubanos.
– Parece que houve um caso de atropelamento na via pública.
– Na via escura, camarada Rui – o GeneralDorminhoco falou.
– Escura e de circulação pública. Este jipe é seu, General?
– Sim, mas quem vinha a conduzir era este desastrado do Nove.
– Nove? Nome interessante – o tio Rui se abaixou para ver melhor. –
Parece que vamos ter aqui uma mudança de nome.
– Camarada Rui, essa mancha pode ser qualquer coisa.
– Mas qualquer coisa também é coisa, camarada! Portanto, do ponto de
vista da lei, temos que ver que coisa era. Se era coisa animada ou
desanimada.
– Eu é que estou a ficar desanimado – o General falou.
A Isaura começou a chorar e a querer ir embora.
– O que foi, Isaura, diz lá ao tio Rui.
– O Nove atropelou o sapo Raúl.
– Era o sapo Raúl?
– Sim, tio. Tenho a certeza, ele sempre vai beber água a esta hora.
– Então – o tio Rui falou para o General – temos o corpo identificado. E até
temos presente o familiar mais próximo. Neste caso, um parente por
aproximação afetiva.
– E então? – o General já tava a ficar irritado.
– Então há um crime rodoviário do foro da fauna doméstica.
– O quê!?
– O motorista Nove atropelou um sapo que já habitava no quintal desta
criança há um tempo considerável. Se você é o proprietário da viatura, então
você é o responsável indireto. Mas podemos resolver isto amigavelmente.
– Vamos lá despachar esta brincadeira.
– Isto não é uma brincadeira, camarada General. Estamos num país onde os
direitos das crianças são respeitados. E por adjacência os direitos sapais.
– Sim, sei – o GeneralDorminhoco estava mesmo irritado.
– Ainda bem que sabe – o tio Rui fazia festinhas à Isaura, e piscou-me o
olho.
O motorista Nove começou a choramingar. Pediu desculpa à Isaura e
explicou que nem tinha visto nada porque o carro só tinha a luz dos mínimos,
não dava para ver bem com toda aquela escuridão.
– Eu compreendo – a Isaura falou. – Até desculpo o camarada Nove, mas
temos que enterrar o sapo Raúl perto da lagoa.
O General não gostou nada daquela conversa, mas autorizou o motorista
Nove a estar presente no funeral que ia acontecer meia hora depois, assim que
a Isaura conseguisse encontrar o sapo Fidel para estar presente.
Como o General queria ir para casa, concordou em dar comida ao sapo
Fidel por um período de dois meses, segundo tinha pedido o próprio tio Rui
que, além de escritor, também era advogado e todo mundo tinha receio de ele
levar as coisas para um tribunal.
– Só uma coisa, camarada General.
– O que foi, camarada Rui?
– O camarada motorista deve sofrer uma atualização.
– Como assim? Uma multa?
– Não. Uma atualização nominal. O camarada motorista passa a ser
chamado de Dez.
– Isso é que não – o GeneralDorminhoco ficou furioso. – Sapos não
contam! Só pessoas ou cães vacinados.
– Você está a dizer que um sapo chamado Raúl, irmão de um sapo
chamado Fidel, não conta para mudar o nome do seu motorista?
Nós, as crianças, rimos baixinho.
O GeneralDorminhoco foi obrigado a concordar e o motorista passou a
chamar-se Dez. Demorou mais de uma hora para encontrar o sapo Fidel e
estávamos quase a desistir de fazer o enterro naquela noite, mas ele foi
encontrado ali perto da despensa onde estava a jantar. A Isaura ficou muito
triste.
– Sabes, Isaura, é preciso ver as coisas boas da vida.
– A morte do meu sapo pode ser uma coisa boa, tio Rui?
– Pode. O sapo Raúl já era muito adoentado e assim escusa de estar a
sofrer. E o sapo Fidel ficou com comida garantida por dois meses.
O tio Rui tinha essa maneira de nos querer fazer ficar alegres com qualquer
coisa. Depois fez festinhas na cabeça da Isaura e os olhos dela ficaram menos
tristes.
– Eu quando crescer também quero ser advogado e escritor. Assim nenhum
general vai querer me enganar – alguém falou.
A tia Alice veio chamar o tio Rui porque tinha uma chamada para ele no
telefone. Ficámos ali a conversar um bocado, ao pé da lagoa. O
JorgeTemCalma disse que ia buscar umas coisas e saiu a correr.
– Não te importas que eu não fique para o enterro, Isaura?
– Obrigada, tio Rui. Nestes enterros só podem mesmo ficar as crianças.
– Porquê? Que lei é essa? – reclamou o CamaradaMudo.
Afastaram-se. A tia Alice a sorrir devagarinho para a Isaura, o
CamaradaMudo a reclamar que em Angola não havia nenhuma lei que proíba
adultos de assistirem a funerais de animais, sobretudo um funeral público,
com falta de luz e numa lagoa toda suja que era frequentada por dois
pirilampos velhos.
– Isaura, podias deixar o CamaradaMudo assistir ao enterro.
– Não posso mesmo. Li num livro. Enterro de bichos é coisa de crianças.
Os adultos não entendem e depois só querem nos gozar.
– Mas há adultos – eu falei – que nunca cresceram nesse lado dos enterros
dos bichos. Eu acho que devias deixar, Isaura. Se calhar o CamaradaMudo
está mesmo triste.
Fui chamar de novo o CamaradaMudo e também o JorgeTemCalma, esse
miúdo muito irrequieto, sempre a correr sem conseguir ficar parado. Todos
da rua sempre diziam «ó Jorge, tem calma!», frase que aprendemos com a
mãe dele desde que ele era pequenino.
Então vieram outras pessoas da rua, e a Isaura não reclamou, porque todos
vinham com cara de respeito e até algumas migalhas de pão duro para
oferecer ao sapo Fidel num jeito de amizade no comba improvisado.
A noite na nossa rua ficou bonita. Como não havia luz, alguns trouxeram
pequenas lanternas de luz fraquinha, outros umas velas bem cambutas, um
petromax também de se poupar e até dois candeeiros daqueles com garrafa de
vidro e depósito para o azeite.
A lagoa ficou toda cercada de iluminação com direito a choro da Isaura e
alguns que choravam só para acompanhar as lágrimas da Isaura, e que nunca
nem tinham conhecido o sapo Raúl.
Os morcegos fizeram voo rasante que parecia espetáculo de aviação com
mig’s de verdade, um vizinho baixou a música em sinal de respeito e o mais
bonito foi os dois velhos pirilampos a pararem de piscar a luz deles quando a
Isaura começou a falar.
Todos olharam para trás espantados quando ouviram o barulho dos
chinelos da minha Avó. A minha AvóDezanove chegou devagarinho e
segurou a mão da Isaura. Foi a AvóDezanove que disse:
– Vais dizer umas palavras, Isaura?
– Só se for um poema.
– Pode ser. Acho que os sapos também gostam de poesia.
As pessoas apagaram as lanternas e as velas. Só ficaram acesas duas
lamparinas de azeite com o estranho cheiro que elas deitam. A rua estava
muito escura num silêncio de dez da noite.
O motorista Nove que agora era Dez começou a deitar lágrimas. Olhei para
trás: na casa dele, eu vi a luz do cigarro. O tio Rui tinha ficado ali no escuro
da janela dele a ver o enterro do sapo Raúl.
A Isaura falou:
– Obrigada a todos pela presença de estarem aqui... Não sei muito bem o
que falar.
O JorgeTemCalma não conseguia estar quieto. Nem calado.
– Mas ela não disse que ia falar um poema?
– Fica masé calado – eu ralhei.
A AvóDezanove fazia festinhas nos ombros da Isaura, acho que para lhe
encorajar a falar, ou mesmo só para lhe fazer sentir bem.
A Isaura continuou:
– Mesmo o poema que eu ia falar, também já esqueci antes de começar...
Todos rimos um bocadinho.
– Queria agradecer as palavras do tio Rui que não está aqui, e as migalhas
que todos trouxeram para deixar aqui no lago. Se calhar os sapos gostam de
migalhas como os mortos de verdade gostam que lhes deitem bebida no chão,
não sei. Avó – falou para a AvóDezanove. – Os sapos têm alma?
A AvóDezanove sorriu e esperou. A Isaura olhou para ela esperando uma
resposta que nunca veio.
– Também queria agradecer o camarada motorista Nove, quer dizer, Dez,
por ter aceitado assim mudar de nome na conta da morte do sapo. E pronto,
também isto não é nenhum jogo de futebol – a Isaura sorriu –, não precisa
demorar 90 minutos. Obrigada a todos.
Escapámos quase bater palmas, mas não se podia. Cada um foi para a sua
casa. Ficaram os miúdos. Os miúdos são sempre os últimos a querer ir
embora.
– Isaura, se tu quiseres – falou o JorgeTemCalma –, um primo meu, de
Benguela, mora perto de um rio. Lá tem bué de sapos e são bem grandes.
Posso pedir ao meu pai para trazer um de lá. Só não sei se sapo de rio sabe
viver aqui na nossa cidade de Luanda...
– Jorge, tem calma e não fales à toa.
– Não fales tu à toa – a Isaura disse. – Obrigado, Jorge, mas acho que não.
Aqui em Luanda estão a atropelar muito, é melhor cada sapo ficar na sua
província.
O JorgeTemCalma disse que tinha que ir embora porque senão iam lhe
ralhar. Olhei de novo para os capins da lagoa: os pirilampos tinham
começado a piscar de novo.
– Adoro pirilampos – a Isaura falou.
– Adoro estrelas quando o céu tá todo escuro – eu falei.
– É a mesma coisa.
– Isaura – comecei.
– Diz.
– Desculpa só meter o assunto assim de repente em cima do enterro...
– Podes falar.
– Queria te perguntar se não queres me ajudar a ganhar a tal bicicleta do
concurso. Se nós ganhássemos a bicicleta até podia ficar dos dois.
A Isaura sentou no chão.
– Esse concurso da Rádio Nacional?
– Sim, esse mesmo. Inventamos uma estória juntos e ganhamos a bicicleta.
Fica dos dois.
– Isso não ia dar problemas?
– Não. A bicicleta fica contigo segunda, quarta e sexta. Depois trocamos,
terça, quinta e sábado fica comigo.
– E domingo?
– Domingo fica também comigo.
– Porquê?
– Porque eu sou rapaz.
– E então?
– Nós gostamos mais de bicicletas que vocês.
– Não é verdade, desculpa lá. Eu também gosto de bicicletas.
– Então domingo emprestamos a bicicleta ao tio Rui.
– Boa ideia, ele também gosta de andar de bicicleta.
Sentei-me também no chão ao pé dela. Os pirilampos acendiam e piscavam
muito.
– Estes pirilampos aumentaram a potência ou quê?
A Isaura riu.
– Não, acho que tá a ficar mais escuro. Temos de ir para casa.
– Então e a estória?
– Eu não tenho nenhuma boa ideia.
– Mas eu tenho.
– Para a estória? Então podes escrever e ganhar.
– Não, eu tenho uma ideia para conseguirmos uma boa estória.
– Não entendi.
– A caixa do tio Rui – falei baixinho.
– Chiuuu!, já te disse que isso é um segredo, não podes falar a ninguém
nisso. Tu tinhas prometido.
– Só estou a falar contigo!
– Nem comigo. Um segredo é uma coisa de pensar, não se diz.
A Isaura levantou-se e foi a correr para a casa dela.
Fiquei um bocadinho ali sentado. Olhei para trás. Como tava tudo quase
completamente escuro, consegui ver o cigarro na boca do tio Rui, a mão dele
a coçar os bigodes. Ele devia estar a pensar.
Fiquei com inveja. Quando eu penso não me saem estórias. Penso nos
trabalhos de casa que não fiz, penso em preparar a mochila com os livros para
o dia seguinte, e nos chocolates bons que encontrei algumas vezes na casa de
alguém. Penso nessa coisa de a Isaura estar sempre a dar nomes aos bichos e
saber do comportamento deles. Também penso nas coisas estranhas que a
minha AvóDezanove diz. Às vezes ainda penso que talvez, um dia, se eu
crescer e tiver bigode, e se coçar muito o bigode, eu vou conseguir escrever
uma boa estória. Mas eu queria era ter bigodes agora para poder ganhar a
bicicleta.
Os pirilampos não paravam. Um acendia, o outro também. Devagar, rápido,
e em ritmos trocados. Não sei explicar, mas parecia que usavam a luz para
falar um com o outro.
Fui para casa.
No escuro da varanda, a AvóDezanove estava sentada a abanar-se com um
leque chinês muito antigo que ela tinha. O leque era lindo e ninguém podia
brincar com ele. Quando a Avó se abanava parecia que tinha na mão a cauda
de uma avestruz a dançar devagarinho.
– Tá na hora de ir para a cama.
– Sim, Avó – fui lhe dar um beijinho de boa noite. – Avó, a luz já não vem
hoje?
– A luz vem quando quer, filho. Tem uma vela acesa na casa de banho para
não fazeres xixi fora da sanita.
– Nunca faço, Avó. Tenho boa pontaria. Mesmo no escuro consigo fazer
xixi sem sujar o chão.
– Está bem, já conheço essa estória, queres é desculpa para ficares aqui um
bocadinho na conversa. Até amanhã.
– Até amanhã, Avó.
Entrei na casa de banho e apaguei a vela.
Abri a janela e deixei os olhos habituarem-se ao escuro. Em vez de dois
barulhos de sapo, apenas o sapo Fidel agora falava uma cantiga triste. A
Isaura devia estar a ouvir a mesma coisa. Se calhar até nem seria má ideia o
pai do JorgeTemCalma trazer um sapo bem gordo de Benguela.
Passado um bocadinho, mesmo no escuro, eu já via tudo. Era esse o truque,
esperar um bocadinho, fechar os olhos com força e depois vê-se bem mesmo
no escuro. Fiz bué de xixi e não entornei nem um bocadinho. Tirei água do
balde e despejei na sanita.
Além do sapo, um grilo também começou a cantar.
Sonhei com a bicicleta bem colorida, os da minha rua brincavam com ela, o
CamaradaMudo ria muito, a AvóDezanove dizia para termos cuidado para
não sermos atropelados por nenhum carro e para não atropelarmos mais
nenhum bicho, a bicicleta do meu sonho era bem grande e zunia muito,
amarela nas rodas, o quadro e o volante eram vermelhos e os para-lamas
assim pretos, só que à frente, um pouco abaixo da zona do volante, ninguém
ainda tinha visto: a bicicleta tinha uns bigodes iguais ao do tio Rui.
A Avó me acordou. Eu estava a suar.
– Estás bem, filho? Estás a suar.
– Eu vim já a suar do sonho, Avó. Eu tinha ganhado uma bicicleta com
bigodes muito pendurados e já estava a dar bué de voltas na nossa rua.
– Dorme mais um pouco. Ainda é cedo.
– Nenhum galo ainda não cantou, Avó?
– Ainda.
Espremi os olhos e apertei as mãos, é assim que se faz quando se tem
vontade de sonhar outra vez na continuação de um sonho bom. Nada. O
sonho não voltou. Nem o sono.
Fiquei a ver a luz entrar devagarinho pelas ripas de madeira da minha
janela. A luz assim a perder os azuis-claros e a entrar nuns amarelos que me
fizeram outra vez lembrar a minha bina que eu queria tanto ganhar.
Aquelas ripas de madeira me devolviam aquela ideia: a caixa de madeira
do tio Rui, segredo meu e da Isaura, era mesmo a solução perfeita. Aquilo
não eram restos? Restos não são migalhas? Que eu saiba, ninguém é dono de
migalhas nenhumas, e aquela caixa tinha só restos de palavras, bocadinhos de
sonhos, letras que nunca conseguiram ser palavras nem mesmo frases de o tio
Rui escrever os livros dele.
Ouvi os passos dos chinelos da Avó bem devagar, vi as primeiras luzes da
manhã. Um dia alguém disse que aquela era uma luz muito fresca, eu ria de
ouvir essas frases dos poetas, «luz fresca», como a água da Avó regar as
plantas verdes de manhã, isso quando a água vinha. Se a água não viesse, a
minha Avó, que é muito engraçada, regava mesmo assim.
– Só de mangueira a fingir numa água que ainda está lá na barragem, Avó?
– Assim mesmo.
– Tipo que és do teatro dos jardineiros?
– Tipo – a Avó sorria, os gestos dela continuavam a abanar a mangueira
sem água nenhuma, só umas gotas sacudidas do dia anterior ou quê.
– Assim estás a regar como, Avó?
– A regar só. As plantas sabem.
A regar só. A Avó ficava bué de tempo a «regar só». Mesmo deixava
passar esse tempo como se fosse uma demora de molhar. E olhava o céu num
pedido de pingos.
– Pediste água dos céus, Avó, no tal camarada que abre as torneiras?
– Pedi.
– Hum, melhor só é pedir água à Epal, pode ser que te aceitem na conta de
seres mais-velha respeitada.
O matabicho ia aparecendo, devagar, para parecer que tinha muita coisa. A
minha Avó com os teatros dela: bocados de pão, depois a manteiga, leite
aguado já misturado assim na cozinha para eu não ver, um bocadinho de café
que eu sempre pedia.
– Avó, tu não tomas leite?
– Só café.
Era mentira de poupar as coisas para as crianças, pois quando havia mais
de um pacote a Avó também matabichava leite.
– Eu sei que estás a pensar na bicicleta.
– É verdade, Avó. Quer dizer, o camarada presidente devia organizar
melhor o nosso país.
– Ai é?
– Sim. Devia dar bicicletas sem ser preciso uma pessoa estar a inventar
estórias. Ainda pode acontecer que as crianças fiquem mentirosas.
– Eu acho bom esse concurso da Rádio. Faz as crianças pensarem e
imaginarem estórias.
– Mas isso é para quem tem jeito... Nós aqui na rua só temos miúdos
malucos e uma miúda que fala com os bichos.
– Temos um escritor.
– Que não quer ajudar as crianças porque fica egoísta com os bigodes dele.
– O quê? – a Avó não entendeu.
Barulhos vieram da rua. O jipe do GeneralDorminhoco saiu, devia ir buscar
pão numa loja que sempre tinha pão para o camarada GeneralDorminhoco.
Ele devia ainda estar a dormir e a mulher dele também.
Fui espreitar na janela: o JorgeTemCalma já estava na rua a não fazer quase
nada e o CamaradaMudo já tinha instalado o banco dele no passeio. A manhã
cheirava a sol fresco e as andorinhas já estavam a trabalhar de ir buscar
minhocas para alimentar os filhotes.
Ouvi a voz da Isaura lá fora. Saí também.
– Tenho a certeza que foi o gato francês.
– Mas o gato é francês ou é angolano? – perguntava o CamaradaMudo.
– O gato daquele senhor francês.
– Mas esse gato nasceu já aqui em Angola, não? – o JorgeTemCalma
também agitou.
– Ainda hoje de manhã vi os três a brincarem, o Samora, o Kadhafi e o
Mobutu.
– Mas é o quê, Isaura?
– Comeram o gafanhoto Mobutu. Foi o gato francês.
– Mas o gato é francês ou angolano?
– A questão não é essa, vocês são malucos ou quê? Eu acho que aqui na rua
ninguém respeita os bichos.
– Mas um gafanhoto arrisca-se sempre a ser comido – o CamaradaMudo
comentou.
– Mas porquê que o gato francês tem de entrar nos quintais dos outros?
– Mas o Kadhafi está bem? – perguntou o JorgeTemCalma.
– Por enquanto sim, mas com o gato francês nunca se sabe.
Eu vi que a Isaura estava mesmo triste.
– Mas como é que tu sabes que foi mesmo o Mobutu que faleceu?
– Não faleceu, foi falecido!
– Sim, mas como sabes que não foi outro?
– Porque eu conheço as cores deles. O Kadhafi tem uma marca na cabeça e
o Mobutu não. Ainda por cima encontrei restos de asas no chão.
O CamaradaMudo ligou o rádio para ver se mudávamos de conversa. Era
hora do noticiário e explicaram coisas da nossa guerra, falaram também da
falta de água e de uma falta de luz que também poderia acontecer devido aos
combates perto de Cambambe. Só já quase no fim, depois do desporto, é que
falaram do concurso.
Faltava só um dia mesmo para as crianças entregarem as estórias na
portaria da Rádio Nacional.
– Se eu apanho o gato francês!
– Ó Isaura, para lá com isso, já chega dessas makas de mortes, há outros
assuntos que temos de tratar.
– Quais assuntos?
– O assunto da bicicleta – eu falei.
– Mas ainda não escreveste a estória? Pensei que ias fazer isso ontem à
noite.
– Para escrever a estória preciso de uma ideia.
– Pede ao CamaradaMudo.
– CamaradaMudo – o JorgeTemCalma falou –, não tem uma ideia só para
nós usarmos?
– Não.
Eu sabia, no fundo o problema era mesmo esse: a ideia. Escrever a estória,
com um bocadinho de esforço, talvez dois ou três podem conseguir, mas a
ideia é como uma raiz invisível que faz crescer a planta.
– Isaura – eu chamei. – Vem só.
– O que foi?
– A ideia está dentro da caixa.
– Qual caixa? – perguntou o JorgeTemCalma.
– A caixa do tio Rui.
– Era segredo! – a Isaura afastou-se zangada.
– Tens de prometer segredo, Jorge.
– Só posso prometer depois de saber o segredo.
– Agora tenho que ir pra casa, depois conto-te.
– Está bem. Vou para casa ver se tenho alguma ideia. Ainda vou telefonar
também aos meus primos, os de Benguela e os de Malange, eu mando bué de
primos nas províncias.
– Tá bem, mas acho que nas províncias não acontece nada.
– Então, isso pode ser bom. Eles devem ter mais tempo para ter boas ideias.
Fiquei a pensar naquilo à hora do almoço. Há muito tempo que a Isaura me
tinha contado aquela espécie de segredo. Ela via da casa dela o que se
passava à noite no quintal do tio Rui.
Primeiro também não acreditei, até que um dia a Isaura me chamou para ir
ver também. Era às quintas-feiras, por volta das vinte e uma, na hora de todos
estarem a ver a telenovela.
O tio Rui ficava lá fora a fumar, à espera da tia Alice, a mulher dele. Ela
vinha com uma bata bonita com rendas, parecia das toalhas da minha Avó.
Uma escova na mão esquerda, como se fosse brinquedo de bonecas. O tio Rui
ficava quieto na cadeira dele e encostava a cabeça para trás. Respirava fundo,
tipo que ia adormecer.
A tia Alice tirava do bolso uma tesourinha que acertava as barbas nunca
certas do tio Rui. Mas a tesoura gostava é de dançar no ar quase a não tocar
em nenhum pelo do tio Rui. O tio Rui respirava fundo sem quase se mexer.
Na zona do bigode, também a tesoura não tocava mas a tia Alice ficava ali a
mexer os dedos e nós escutávamos um ruído de metal na noite deles. Depois
guardava a tesoura.
Os bichos da Isaura, só de saberem que nós não queríamos fazer barulho,
começavam todos a querer nos denunciar: o jacó JoãoPauloTerceiro
começava a gritar frases de telenovela, «vá de retro, satanás», que era a frase
do BeatoSalú, pai do RoqueSanteiro; depois gritava «tô certo ou tô errado»,
que era frase do SinhozinhoMalta; nós bem quietos atrás da trepadeira e a tia
Alice a olhar mesmo na nossa direção sem nos ver; o jacó dizia a última
frase, «posso penetrar?», que era a frase do professor AstromarJunqueira
quando ia visitar a Mocinha. Pronto, o jacó não ia falar mais, só talvez uma
meia hora depois. O sapo Raúl ainda era vivo e saltava para perto de nós.
O gato Ghandi tinha maus hábitos, como dizia a minha Avó, e àquela hora
estava só a dormir quase a querer ressonar com os bigodes sujos dele, parece
que só lhe demos um banho bem molhado uma vez que a Isaura não estava
em casa e lhe prendemos num caixote de papelão que apanhámos na casa do
GeneralDorminhoco. E o cão AmílcarCãobral, bem bonito, esse era só uma
pessoa lhe fazer festinhas que ele nem ladrava mais.
A tia Alice guardava a tesoura, nós olhávamos bem atentos: ela esfregava
os dedos todos, uns contra os outros, devagar primeiro, depois um pouco
mais depressa, falava umas palavras que não ouvíamos, olhava devagar para
o tio Rui, olhava os bigodes, e aproximava a escova pequenina, como se
fosse de pentear as sobrancelhas das bonecas. Esfregava os bigodes do tio
Rui, devagar, como se escolhesse o lugar onde a escova devia tocar.
A escova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O tio Rui parece
que sorria devagar, eu olhava a Isaura que olhava para eles e eu olhava de
novo: na outra mão dela, a tia Alice tinha uma pequena caixa de madeira,
com desenhos que eu já vi num museu qualquer, a caixa aberta ficava assim
perto do queixo do tio Rui. Ela esfregava os bigodes, soprava, esperava e
aquilo acontecia: pequenas letras caíam do bigode para a caixa, eram vogais
de «a», «e», «i», «o», «u», mas também sobras de «k» e «w», alguns «t» e
dois «h». Ela escovava e a caixa guardava aquelas letras soltas. Parece que
aquilo dava comichão, o tio Rui mexia os lábios, queria tocar no bigode mas
a tia Alice não deixava.
– Isso é mesmo possível ou é feitiço?
– Acho que é mesmo possível, o tio Rui tem bigodes de escritor – a Isaura
falou baixinho.
Entrou o JorgeTemCalma a gritar para nos chamar, e tivemos que bazar.
– Estavam a fazer o quê? – ele quis saber.
– Nada – a Isaura olhou para mim.
– Quem não faz nada são as lesmas!
– As lesmas fazem muita coisa, seu burro!
– Isaura, vamos só lhe contar também.
– Mas um segredo não pode ser conhecido por mais de duas pessoas.
– Pode sim – o JorgeTemCalma estava masé bem curioso.
– Fica um segredo de três pessoas, Isaura – eu pedi.
– Isso não é um segredo, é um mujimbo – rimos todos.
Fomos para a casa da minha Avó. Almoçámos lá.
Então agora era um segredo de três pessoas, contado assim devagar, mas
sem aumentar nada, porque a estória já era muito complicada. O
JorgeTemCalma não acreditou e pediu para ir ver também. Combinámos que
íamos, à noite, espreitar o quintal do tio Rui.
Nessa noite o tio Rui chamou a tia Alice para lhe cortar o cabelo.
Sentaram-se lá no quintal, no mesmo lugar de sempre.
Montámos uma espera tipo tocaia das novelas. O JorgeTemCalma trouxe
umas paracucas para o caso de dar fome, a Isaura tinha uma garrafa de sumo
tang de maracujá e eu trouxe aquela roda verde de «dragão» para os
mosquitos não nos ferrarem nas pernas.
Estava noite de lua apagada e mesmo poucas estrelas estavam no céu para
iluminar a noite com brilhos esbranquiçados.
A Edel foi nossa amiga e a luz foi.
Quando a luz vai, as conversas de rua ficam mais mágicas: os olhos tipo
que brilham de outra maneira, as pessoas saem à rua e ficam a imaginar o que
poderia estar a acontecer na telenovela, todos querem saber se no dia seguinte
a TPA vai repetir o capítulo que todo mundo não viu, a minha Avó fica no
muro a rir das nossas estórias ou conta também uma estória de antigamente, o
CamaradaMudo não entra para jantar, a noite fica mais quente, os carros
passam devagar porque as crianças brincam no meio da rua, alguém liga um
rádio barulhento que quase não se ouve por causa do barulho do gerador do
GeneralDorminhoco, um cheiro de petromaxes fica a passear pelos nossos
narizes, dá para roubar mangas, goiabas e pitangas nas árvores alheias e se
jogamos escondidas aqueles que não são da nossa rua demoram muito tempo
para nos encontrar porque não conhecem os lugares melhores com bons
esconderijos, tipo o vóx-váguen da doutora Victória, ou um galinheiro
abandonado, ou mesmo a casa aberta de qualquer vizinho onde só nós, os da
rua, podemos entrar sem pedir com-licença, quando a luz vai na minha rua, as
crianças afinal reclamam de não ver novela mas no fundo no fundo, ficamos
contentes porque podemos fazer mil coisas fora do ritmo normal das nossas
vidas.
No escuro, acendemos o fumo do «dragão» contra os mosquitos. O Cãobral
ficou perto de nós a querer espreitar.
Uma tesoura maior cortava o cabelo do tio Rui, com movimentos rápidos e
sem medo de estar um bocado escuro. O candeeiro petromax do tio Rui
ficava perto das pernas dele e ele ia matando os mosquitos com gestos de
agarrar em vez de bater palmas, um rádio lá longe tocava um som tipo
cubano e nós ouvíamos a respiração um dos outros e a do Cãobral também. A
tia Alice olhava de longe, acertava assim com a tesoura a cortar já só o ar, a
mão dela acalmava, os mosquitos faziam nuvem à volta da cabeça do tio Rui.
Na mão, o tio Rui tinha a caixa. Dei a dica ao JorgeTemCalma, ele nem
entendeu.
– É aquela caixa.
– Mas não brilha.
– Jorge, tem calma.
A tia Alice pôs a tesoura no bolso da bata dela, e ficou assim de pé à
espera. Nas pernas do tio Rui estava o caderno amarelo dele, ele começou a
escolher umas páginas, soprou, depois aproximou das vistas e começou a ler.
Era um poema assim todo lido de uma vez, quase sem parar nem para
respirar, e a tia Alice ouvia, nós de longe não entendíamos bem as palavras,
ouvíamos só restos de algumas frases, alguma coisa sobre a chuva, a água, os
pássaros, o mar. Depois ele parou de repente e deixou a cabeça cair para trás.
A tia Alice com a escovinha, sacudiu os bigodes, primeiro devagar e depois
mais rápido.
– São letras, aquilo? – o JorgeTemCalma não queria acreditar.
– São restos de frases que ficam presas no bigode.
A caixa aberta tinha já um brilho dentro, e mais letras caíam, assim com o
escuro dava para ver bem, um «j» todo perfeito muito amarelo, dois «k» que
não queriam se desprender da ponta esquerda do bigode e que a tia Alice
soprou com força, e só no fim os acentos, acento circunflexo, disse a Isaura,
acento agudo, cedilha e mesmo até um travessão.
O tio Rui fechou a caixa, ouvimos os passos da tia Alice a entrar em casa
levando com ela a luz do petromax. As mãos do tio Rui, com restos desse
brilho tipo poeira, embrulharam a caixa num pano escuro, encarnado, e
depois ele também entrou.
– É aquela caixa que nós precisamos – eu disse.
– Sabes onde eles guardam?
– Temos de descobrir.
– Eu não vou participar desse plano – a Isaura avisou.
– Não podes ser assim. A caixa é a nossa salvação.
– Salvação de quê?
– Aquelas letras do tio Rui já vêm com força de estória, depois é só
acrescentar um bocadinho. Aquela caixa é que nos pode fazer ganhar a
bicicleta da Rádio Nacional.
A Isaura acendeu a lanterna dela, apontou para o chão. O gato Ghandi miou
lá dentro, a provocar o jacó JoãoPauloTerceiro que começou a dizer frases da
novela outra vez: «Lulu, onde é que você vai vestida desse jeito?», a imitar a
voz do ZéDasMedalhas, nós rimos muito, porque a voz era igualzinha e às
vezes até nos assustava. E ele mesmo dava a resposta: «Ah, Zé, me deixa, tô
indo a lugar nenhum, não», e nós fazíamos silêncio de ouvir a continuação,
mas esse jacó não batia bem da cabeça, e misturava as novelas todas, depois
entrou frase do Odorico: «Seu Dirceu, deixemos os considerandos e
passemos aos finalmentes».
Depois, silêncio só, a Isaura a brincar com a luz a apontar o caminho para a
lesma Senghor pôr a baba dela.
– Passemos aos finalmentes – falou o JorgeTemCalma.
– Quando, agora? – a Isaura perguntou.
– Sim, não vale a pena perder tempo. É boa hora. Atacamos hoje mesmo.
– Boa ideia – concordei.
– Eu não vou.
– Tudo bem – o JorgeTemCalma todo nervosinho parece que já tinha um
plano. – Ficas na retaguarda, a ver se vem alguém. Se vier, assobias com
aquele som da telenovela Cambalacho.
– Qual som?
– Aquele que imitava um gato bêbado. Em vez de dizer «miau», dizes
«maiau»...
– Tens cada uma!
– Nós vamos avançar.
– Mas qual é o plano? – queria saber.
– Eu entro numas perguntas de distração, tipo que tenho cólicas e quê, e
fico a falar com eles. Tu procuras a caixa. Não disseste que costuma ficar lá
na sala?
– Eu?
– Sim, não disseste que a caixa costuma ficar num armário da sala?
– Eu não, só se foi a Isaura.
– Eu também não.
– Epá, vocês tão a complicar, vamos só.
A campainha do tio Rui não funcionava, então batemos só as palmas.
– O portão está só encostado, podem entrar – o tio Rui nos viu da janela.
– Mas aqui está escrito «cuidado com o cão».
– O cão está a dormir.
– E se ele acordar, tio Rui? – o JorgeTemCalma era campeão de já ter sido
mordido por cães que até nem gostavam de morder.
– Se acordar dizes que ainda não é de manhã!
Entrámos pela porta de lado, bem perto da casota do cão. Tipo que ele
ressonava. A Isaura, mesmo contrariada, ficou lá fora a «cobrir a retaguarda»,
frase que o JorgeTemCalma tinha apanhado num filme de guerra.
– Ficou a cobrir como?
– A cobrir só.
Subimos por um corredor bem escuro cheio de máscaras onde fazia mais
silêncio que noutros lugares. O tio Rui já estava à espera.
– Comé, o cão dormia?
– Sim, tio Rui.
– Entrem só. Vão querer atacar um sumo tang aguado, ou água só com
cheiro de sumo?
– Sumo tang aguado.
A tia Alice na cozinha preparava a bandeja, jarro de plástico amarelo, uma
colher de sopa a misturar um bocadinho de sumo tang de maracujá.
– Vão beber um sumo que faz bem à cabeça. Vai vos dar força nos
pensamentos da escola.
– E ideias também?
O tio Rui olhou para mim e começou a coçar os bigodes dele. O
JorgeTemCalma tirou um bloco pequenino do bolso e um lápis amarelo tipo
B2 que usávamos nas aulas de desenho.
– Vais ter uma ideia agora, tio Rui?
A tia Alice entrou na sala a rir.
– Uma ideia? – ele sorriu já com a voz mais constipada. – Eu estou sempre
a ter ideias.
– Nós então estamos a precisar de algumas.
– Mas qual é a maka?
– Não é maka, é o concurso da Rádio Nacional, tio. Nós queremos bué
ganhar aquela bicicleta.
– Ouvi dizer.
– Ouviu nas notícias da uma?
– Não. Ouvi nos mujimbos da rua.
– Temos que apresentar uma estória até amanhã ao meio-dia e deixar na
portaria da Rádio Nacional.
A tia Alice dividiu o sumo por todos os copos, até um para ela e outro para
o tio Rui.
– Eu não vou beber, Alice, aumenta lá no copo dos miúdos.
– Então é isso, tio – o JorgeTemCalma insistiu mais.
– É isso o quê?
– Andamos a fazer «pedimento».
– Pedimento ou peditório?
– Peditório. Em todas as casas da rua.
– Tu já conheces essa palavra «peditório»?
– Já sim, tio, ouvi numa telenovela.
– E é peditório de quê?
– De ideias.
– Deves falar com a Isaura, ela é que tem bué de ideias.
– Mas o tio é que escreve estórias.
– Mas estórias não são ideias. Como é que está esse peditório?
– Parece que está a correr bem.
– «Parece»? – a tia Alice riu. – Já têm muitas ideias? Passaram em muitas
casas?
– Até que esta é a primeira. Queremos que o tio coce muito os bigodes e
nos dê algumas ideias.
– Ou mesmo uma boa estória já bem completa – os meus olhos brilharam
quando vi a caixa na parte de baixo da mesa, mesmo perto do jarro, ainda
pensei que se alguém entornasse o sumo, as letras iam ficar com um delicioso
sabor de maracujá.
– Mas isso é cábula! – o tio Rui olhou para nós e a tia Alice riu bem alto. –
Ó Alice, faz o favor de rir mais baixo.
– Cábula não é na escola? – disse o JorgeTemCalma.
– Cábula é uma coisa copiada, que não é nossa. Acho que esse concurso é
para conhecer as vossas estórias...
Fizemos um silêncio. O JorgeTemCalma não conseguia parar com as mãos
quietas. Nem os olhos. A Isaura dizia que o JorgeTemCalma tinha uns olhos
que pareciam duas gazelas porque não paravam de saltitar.
Os adultos gostam de fazer silêncios. O tio Rui coçava os bigodes e eu
pensei que a qualquer momento ele poderia pelo menos nos emprestar uma
ideia. Mas ele estava só a pensar.
– O tio Rui não podia só nos emprestar uma ideia?
– Emprestar?
– Sim.
– E vocês depois devolviam a ideia ou quê?
– Se nós ganharmos, o tio Rui pode andar com a bicicleta todos domingos e
feriados também.
A tia Alice levantou devagar, levou a bandeja com o sumo para a cozinha e
nem perguntou se alguém queria mais.
Apagaram as velas da cozinha. Só a luz amarela do petromax ficou a
iluminar um bocadinho a sala.
– Acho que a nossa rua tem boas estórias – o tio Rui disse.
– Também acho – o JorgeTemCalma tinha essa mania de dizer «também
acho».
– Uma estória de ganhar a bicicleta, tio Rui?
– Acho que sim.
– Também acho – o JorgeTemCalma não resistiu.
O silêncio voltou como a água que se entorna numa aguarela acabadinha de
pintar.
– Tio Rui, os silêncios afinal servem para quê?
– Para as pessoas estarem umas com as outras.
– Não basta estarmos sentados no mesmo lugar?
– Não – o tio Rui parou de coçar os bigodes. – É preciso olharmos para o
outro.
– Tás a olhar para mim, tio Rui?
– Estou.
– A ver o quê?
– A espreitar a tua ideia.
– As ideias nascem na cabeça?
– As boas ideias nascem no coração. Tás a sentir o quê no teu coração?
– Só sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso não é uma estória, é só uma
vontade.
– Essa é a tua estória. Podias escrever sobre isso.
– Também posso escrever uma estória sobre os teus bigodes, tio Rui?
– Claro que podes. Eu ia ficar muito honrado.
– Honrado é bom ou é mau?
– Honrado é bonito.
A tia Alice entrou a dizer que estava um camarada importante ao telefone,
que queria falar com o tio Rui.
– Um camarada importante?
– Importante mesmo – a tia Alice respondeu.
– Se é importante mesmo, vocês dão licença aqui na nossa conversa.
Os dois saíram da sala e demoraram bué de tempo. O JorgeTemCalma
apontou a caixa para ver se eu conseguia apanhar. Levantou-se e ficou a
controlar a porta. Fez-me sinal com os olhos para eu apanhar a caixa.
– Podes descer, Jorge – comecei a chegar perto da caixa. – Controla as
escadas que eu depois desço.
Ele desceu as escadas depressa.
A luz amarela do petromax tremia numa dificuldade de iluminar, fazia os
meus olhos arderem. Peguei na caixa com cuidado e espreitei – bem
devagarinho.
Uma quase magia me fez comichão nas mãos: a caixa tinha veludo lá
dentro e letras brilhantes faziam um barulho que eu não podia ouvir. Acentos
circunflexos estavam num canto, uns em cima dos outros, como chapéus de
palha dos chineses, havia cedilhas no meio, muitos «k», muitos «p» e dois
«w». Tive medo de tocar ou mesmo de deixar cair a caixa, então soprei
devagarinho.
A cidade ficou ainda mais escura como se o meu sopro tivesse apagado
Luanda inteira. O brilho aumentou a mudar de cor com a velocidade bonita
das estrelas. As minhas mãos tremiam como o mar quando engole o sol
devagarinho. Ouvi a voz do tio Rui.
– Alice, vai buscar o petromax.
Desci a correr, primeiro fechei os olhos para me habituar ao escuro, depois
consegui ver a corrente do cão no chão e saltei para não lhe acordar. Quando
cheguei ao passeio, a Isaura e o JorgeTemCalma já tinham ido embora.
Voltei para casa. A AvóDezanove estava a mudar o curativo do pé dela.
– Mas vocês andam na rua até esta hora?
– Estávamos na casa do tio Rui.
– Não estavam a incomodar?
– Não, Avó. Estávamos a espreitar corações.
A Avó terminou o curativo e foi buscar um resto de comida de ontem para
eu comer assim tipo ceia.
– Sabes que amanhã é o último dia para ires pôr a estória na Rádio
Nacional.
– Sim, Avó, sei.
– Queres que acenda aquela vela boa, para tentares escrever a tua estória?
– Quero sim, Avó.
De manhã, a energia ainda não tinha voltado.
A nossa sorte mesmo é que o sol aparece todos os dias de manhã bem
iluminoso, e cedo, na hora que os galos gostam de acordar e a minha Avó
também, minutos antes das seis da manhã. Às vezes a essa hora também vem
água e a minha Avó pode regar as plantas com uma água assim verdadeira.
A luz do sol veio bem forte, não era fraquinha como o petromax do tio Rui.
O CamaradaMudo fez o favor de levar o meu envelope bem fechado para a
portaria da Rádio Nacional e depois me deu um papel que chamam de
«comporvativo».
– Se a tua estória ganhar, podes ir lá com este papel.
– Obrigado, CamaradaMudo.
Antes da hora do almoço dei encontro com a Isaura e o JorgeTemCalma
que queriam saber as novidades.
– Quais novidades? – ainda perguntei.
– Ontem. Como foi lá na casa do tio Rui?
– É segredo.
– Conta só – pediu o JorgeTemCalma.
– Não posso, é mesmo segredo.
A Isaura riu. Trazia com ela uma caixa de fósforos com a lesma Senghor
dentro.
– Está assim adoentada.
– «Adoentada»? – o Jorge fez cara de espanto. – Vocês também inventam
cada palavra mais difícil, não basta só dizer que está «doente» ou que está
«muito mal»? E como é que sabes que está «adoentada»?
– Estava parada a não ir a lado nenhum.
– As lesmas nunca vão a lado nenhum, Isaura...
– Vão sim. Procuram comida e vão visitar outras lesmas.
– Como é que sabes?
– Conheço as lesmas da nossa rua.
– Todas mesmo?
– Todas.
– E és médica de lesmas?
– Não, mas sei quando não estão bem. São como as pessoas.
– Fazem quê?
– Não visitam os outros.
Vimos o tio Rui chegar de carro e a demorar muito para entrar em casa.
Isso queria dizer ou que ele não queria ainda falar com a tia Alice, ou que
estava à espera que fôssemos lá conversar um bocadinho.
– Vamos ainda cumprimentar o tio Rui.
– Nem penses nisso – o JorgeTemCalma falou. – E se ele nos ralha?
– Ralhar de quê?
– Não tiraste a caixa dele? – a Isaura quis saber.
– Achas que eu ia mesmo roubar a caixa com restos de estórias do tio Rui?
A Isaura sorriu devagar parece que ficou contente. O JorgeTemCalma não
entendia mais nada.
– Escreveste a estória? – o tio Rui perguntou a tirar a carteira dele do bolso.
– Não foi bem uma estória. Só consegui mesmo escrever uma espécie de
carta.
– Tio Rui – o JorgeTemCalma falou todo nervosinho –, uma «espécie de
carta» é um postal daqueles com selo que nunca chegam às outras
províncias?
– Pode ser.
– E postal também entra nesse concurso de Rádio?
– Tudo vale. E quando sair o resultado podemos escutar juntos na minha
casa.
– Aceito e levo a minha lesma parada.
– Também acho – gritou o JorgeTemCalma.
Rimos juntos e quase estávamos a ir embora quando o tio Rui nos deu um
dinheiro para irmos comprar gelados na esquina.
– Não houve luz a noite toda. Não devem ter feito gelados, tio Rui.
– Cala a boca – o JorgeTemCalma só queria ficar com o cumbú.
– Não faz mal. Vão só. Pode ser que eles tenham ligado o gerador, se não,
compram outra coisa qualquer.
A Isaura chamou o cão AmílcarCãobral que veio connosco a correr. Ele ia
à frente, guloso, como se ele também fosse comer gelado a saber a leite
Pelargon.
– O teu cão sabe o caminho, Isaura?
– Os cães sabem todos os caminhos.
– No mar também sabem?
– Claro que sim.
– Esse AmílcarCãobral já foi na piscina aprender a nadar?
– Os cães já sabem nadar quando nascem, Jorge. Não fica só mais burro do
que já és.
Íamos a correr muito, a saltar buracos nos passeios, a desviar dos carros
antigos e abandonados, a olhar para o céu onde dançava parado um papagaio
de papel que tinha ficado preso na antena de um prédio, a seguir os gritos do
Cãobral que afinal se chamam latidos, fizemos adeus ao camarada motorista
Dez que estava a passar de jipe, atravessámos a rua bem rápido como a minha
Avó sempre diz para não fazermos e deve ter sido nessa velocidade de rir à
toa que o tal «comporvativo» me caiu do bolso, porque nunca mais vimos
esse papel nem mesmo quando o tio Rui, muitos dias depois, me disse que
queria guardar na caixa dele aquele papel assim da minha bicicleta sonhada.
Como não havia gelado resolvemos guardar o dinheiro e voltámos a correr.
Acho que isso foi bom porque quando a Isaura soltou a lesma Senghor da
caixa de fósforos ela começou devagarinho, como fazem todas as lesmas, a ir
visitar as amigas dela.
Passámos a tarde juntos, sentados no chão a confirmar que era verdade o
que a Isaura sabia sobre aqueles bichos: os saltos diferentes dos gafanhotos
Samora e Khadafi, as brincadeiras de cavar do Cãobral, as músicas
desafinadas do sapo Fidel que parecia rir quando na Rádio tocavam músicas
cubanas tipo «guantanamera» e as visitas que a lesma Senghor fez durante a
tarde toda. Só que, para uma lesma, «muitas visitas» são só duas ou três
amigas que ela ia ver acompanhada da baba dela desenhada no chão de trilhas
feitas como pincel molhado.
– Mas abriste a caixa ou não? – era isso que eles queriam saber.
– Abri.
– Tinha letras?
– Bué de letras. E acentos também.
– E acontecia quê?
– Um brilho de magia.
– Com som ou sem som? – a Isaura me atrapalhou com essa pergunta.
– Fica difícil explicar.
– Também acho – o JorgeTemCalma falou bem devagarinho.
– Era como uma música parada.
– Assim não dá para entender.
– Eu também ainda não entendi, Isaura. Mas à noite quando olhas as
estrelas, podes mesmo explicar aqueles brilhos com palavras de falar?
– Acho que não – ela também falou devagar no ritmo das lesmas.
– O pôr do sol com cor amarelo-torrado, explicas?
– Acho que não.
– Banho de bacia com água morna misturada pela tua Avó e aquecida na
cafeteira de chá?
– Não dá pra explicar...
Ficámos só parados a não dizer nada. Mesmo o JorgeTemCalma, que custa
para ficar calado, também não falou.
No dia seguinte, à hora combinada, demos encontro na rua.
– Vamos lá no tio Rui. São quase dezoito horas.
– Vamos.
Além do sumo tang de maracujá, a tia Alice tinha preparado uma coisa
espantosa: sanduíche de pão com manteiga só que lá dentro tinha mesmo
posto um pedaço grosso daquele queijo de capa encarnada.
– E hoje o sumo não é aguado – o tio Rui avisou.
Era verdade, o sumo tava bem doce que até ficava muito tempo na boca o
sabor daquele açúcar assim castanho que usavam na casa do tio Rui.
Primeiro o rádio custou um pouco para sintonizar mas o tio Rui juntou o fio
da antena à coleção de latas de gasosa que ele tinha no armário e a voz do
locutor até aumentou.
– Tio Rui, esse rádio é bem potente que até apanha rádios de outros países
bem internacionais? – o JorgeTemCalma gostava de fazer essas perguntas
estranhas.
– Apanha sim.
– Também apanha uma coisa chamada voz das américas?
– Não. Aqui em casa não gostamos dessas vozes americanas!
– E rádio da «Julgoeslávia» onde apresentam teatros do tio Rui? – eu
perguntei.
– Pouco barulho masé, está a começar o noticiário – a Isaura avisou e
aproveitou para se servir de mais um copo de sumo tang.
O noticiário começou com discurso do camarada presidente por causa de
um congresso do Partido. Depois vieram as notícias da guerra, depois makas
das fábricas que andavam a não funcionar. Ainda o locutor falou da falta de
luz que ainda não tinham encontrado uma explicação muito boa, falaram do
tal Á-Éne-Cê da África do Sul e do coitado do camarada Mandela que
continuava só preso.
– Ainda deviam soltar o camarada Mandela antes que ele fique velho e nem
vá ao enterro da mãe dele – a Isaura falou.
– Também acho.
Depois das notícias do desporto o locutor já ia se despedir quando se
lembrou: «agora a nota especial sobre o concurso nacional da melhor estória
infantil, cujo primeiro prémio é a bicicleta com as cores da bandeira
nacional...»
– Tio Rui, toda hora estou a escutar essa palavra «cujo», mas isso é o quê
então?
– Chiuuu!
Falaram do júri composto não sei quê mais e dos camaradas professores
que já tinham lido a estória.
– Parece que o Sinhozinho Malta – o JorgeTemCalma me falou no ouvido
– está sempre a falar de um camarada «DitoCujo», deve ser isso.
Mas eu nem prestei mais atenção. Tinha as mãos nos bolsos, aflito, a sentir
que o meu papel tinha mesmo desaparecido. Acho que a Isaura entendeu e
ficou muito parada a olhar para mim.
– O «comporvativo» não está!
– Diz-se «comprovativo» – a tia Alice me corrigiu.
– Mesmo dizendo «comprovativo», não está! Deve ter caído do bolso.
Também o tio Rui olhou para mim com pena e depois parámos de falar
para ouvir o resultado final, e quando disseram o nome do vencedor,
entendemos que era uma menina. Uma menina tinha ganho a bicicleta com as
cores da bandeira nacional de Angola.
Ficámos naqueles silêncios da casa do tio Rui. O meu copo estava vazio e o
do JorgeTemCalma também. A minha Avó já tinha ensinado que eu devia
servir os outros primeiro mas eu, assim triste de não ter ouvido o meu nome,
perguntei ao JorgeTemCalma:
– Não queres sumo, pois não?
Ele engoliu assim um cuspe seco, ainda a olhar para o sumo bem
adocicado, mas disse que não.
De repente parecia que ninguém queria falar comigo, nem olhar para mim.
– Acho que tinhas razão, Isaura.
– O quê?
– As meninas também gostam muito de bicicletas.
A tia Alice sorriu para mim e entrou na cozinha.
– Agora a surpresa.
Voltou com um gelado enorme, daqueles de balde que não víamos há muito
tempo. Devem ter conseguido esse tanto gelado na casa de um camarada
importante com um gerador que até aguenta arcas e geleiras.
– Não há bicicleta, mas há gelado.
– Bem fixe, tio Rui – a Isaura tinha os olhos a brilhar.
– É de quê esse gelado?
– De múcua – a tia Alice começou a servir todo mundo.
Fazia calor. O tio Rui abriu as janelas da sala.
Do meu lugar, depois de desligarem o rádio, eu conseguia ver as estrelas. A
tristeza me passou rapidamente porque o gelado de múcua era muito bom.
– Deixa só te perguntar uma coisa – o JorgeTemCalma sempre bué curioso.
– Diz então.
– O teu envelope que o CamaradaMudo foi lá entregar...
– Sim.
– Tinha mesmo o quê? Uma estória tua?
– Não.
O tio Rui quase parou de comer o gelado dele.
– Então? – a Isaura também ficou curiosa.
– Era um pedido.
– Mas o concurso era de estórias. Por isso é que não ganhámos!
– Nós não ganhámos porque não tínhamos uma boa estória, Jorge.
– Era pedido tipo quê?
– Era um pedido mesmo. Para o camarada presidente dar bicicletas a todas
as crianças de Angola, mesmo as que não sabem contar estórias. Como eu...
As estrelas brilhavam mais porque a noite estava escura como se o mar
tivesse molhado todo o céu.
– Mas assim não dá – o JorgeTemCalma cruzou os braços. – O camarada
presidente não tem tantas bicicletas na casa dele.
– Era só um modo de falar – acabei o sumo. – Se ele não tem tantas
bicicletas, pode dar uma prenda pequenina a cada um. Não é, tio Rui?
O tio Rui sorriu e começou, outra vez, a coçar os bigodes.
Da rua, chamaram a Isaura e o JorgeTemCalma, que começou a comer bem
depressa o resto do gelado dele.
– Jorge, tem calma – a tia Alice falou e todos rimos.
A tia Alice foi para a cozinha arrumar as coisas e o tio Rui acendeu um
cigarro. A cara dele, os olhos e as mãos, até o sorriso, ficaram escondidos
atrás do fumo que o cigarro fazia. Parecia nevoeiro dos filmes a preto e
branco.
– Gostas de estrelas?
– Gosto bué, tio Rui. Brilham sem gastar a pilha. Só nunca consegui
entender a cor delas.
– As estrelas não têm cor, são como as pessoas.
– Eu pensei que a cor das pessoas ficava na pele delas.
– Não. A cor das pessoas fica nos olhos de quem as olha...
Ele fumou mais um bocadinho. Olhou as estrelas como se elas estivessem
muito perto, ali, penduradas no quintal dele.
– Então eu posso escolher a cor que eu quero ver, tio?
– Vocês podem.
– Nós quem?
– As crianças.
A tia Alice saiu com o petromax muito fraquinho e subiu para o quarto
dela.
A janela mexeu com um resto de vento que passou pela sala. O tio Rui
coçou os bigodes bem devagarinho e não olhou mais para mim nessa noite.
Antes de sair da casa dele a cheirar a múcua, fiz só mais duas perguntas.
– Tio Rui, as estrelas têm dono?
– Têm, sim.
– São de quem?
– São do povo.

Você também pode gostar