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A BICICLETA QUE TINHA BIGODES

Estórias sem luz elétrica


Ondjaki

o livro que se segue foi escrito com os conteúdos e os ritmos de


uma «estória». nessa letra «e» - minúscula e tão gigante - cabem
os desejos e as fantasias feitos memória quase verdadeira....
peço que entendam a minha personagem - Isaura - ela adora dar
nomes demasiado verídicos aos seus bichinhos. mas não
pretendemos ofender ou molestar nenhuma sensibilidade.
fui eu que escrevi esta estória; mas foi a Isaura que me ensinou o
caminho dos nomes que ela escolheu. não há nenhuma relação
intencional entre os nomes e os bichos - amigos - da Isaura.
- Tio Rui, posso falar dos restos de letras que a tia Alice tira do
teu bigode à noite?
- Podes.
- Não vão querer vir na nossa rua roubar a caxa de letras?
- Não. Ninguém vai acreditar.

Sobrinho
Claro que podes que ainda a rua já é a mesma outra de nome
mudado e tudo, não se pode mais jogar futebol, nem ouvir
pássaros, nem sapos, é só o engarrafamento dos jipaços, parecem
estilhaços das sirenes do cimento bem armado de mãos nos bolsos
dos calos dos sapatos. Podes, com palavras pode-se mesmo
traduzir a voz do silêncio. Com bigodes a fazer de guiador de uma
bicicleta que desce para cima sem travões. Podes, sim senhor,
falar dos restos de letras que, felizmente, andamos a semear. Katé!

Tio Manuel também Rui


Na minha rua vive o tio Rui, que é escritor e inventa estórias e
poemas que até chegam a outros países muito internacionais.
O CamaradaMudo, um senhor gordo que fala pouco e está
sempre sentado na esquina da nossa rua, disse que essas estórias já
foram transformadas em peças de teatro num país com nome
comprido, parece que se diz «Julgoeslávia».
Quando ouvi a notícia na rádio, que iam dar uma bicicleta
bem bonita, amarela, vermelha e preta, lembrei-me logo de falar
com o tio Rui. Era um concurso nacional com primeiro prémio de
uma bicicleta colorida que já apareceu na televisão, mas nesse dia
na nossa rua não havia luz.
De noite, a falar com a minha almofada, eu até já prometi bem
as coisas: «se eu ganhar a bicicleta colorida, vou deixar todos da
minha rua andarem sem pedir nada em troca, nem gelados nem
xuínga».
Essa promessa assim bem dura de fazer é que me fazia
acreditar que eu ia mesmo ganhar a bicicleta.
Mas eu não tenho jeito nenhum para essa coisa das estórias.
Falei com outros miúdos, para saber quem tinha ideias, quem
queria participar no concurso nacional da bicicleta colorida, mas
todos me gozam a dizer que essa bicicleta já deve ter dono, que já
sabem quem é que vai ganhar.
Não entendi aquilo, mas não desisti. Fui ainda falar como
CamaradaMudo.
- É verdade que essa bicicleta que estão a anunciar na rádio
não é de verdade?
-Claro que é de verdade - o CamaradaMudo respondeu. - Tu
tens uma boa estória?
- Eu só tenho uma boa vontade de ganhar essa bicicleta.
- Mas para ganhares tens de inventar uma estória.
- Tou masé a pensar que devíamos pedir patrocínio no tio Rui,
aquele que escreve bué de poemas.
- Isso não é batota?
- Batota porquê?
- E as outras crianças?
- Quero lá saber, não tenho culpa que o tio Rui vive aqui na
minha rua. Eles que descubram também o escritor da rua deles.
O tio Rui é simpático e tem sempre bué de pressa.
As vezes nos dá dinheiro para irmos comprar gelado e, no dia
1 de junho, podemos entrar todos no quintal da casa dele para
ouvir algumas estórias que ele lê diretamente dos papéis amarelos
onde ele escreve. Fala com uma voz constipada e algumas
palavras mesmo são difíceis de entender. Eu pensava que era só o
modo de falar, mas a minha amiga Isaura é que me explicou um
dia.
- Não vês como são os bigodes do tio Rui?
- São como?
São assim tipo capim que já não se corta desde o último
cacimbo.
- E depois?
- Depois que alguns sons e algumas palavras ficam presas no
bigode. Então só ouvimos já o resto.
A Isaura tem sempre ideias complicadas. Fica muito tempo
sentada no quintal dela a olhar as andorinhas, as lesmas e até
conhece cada gafanhoto do jardim dela. Dá nomes de pessoas aos
bichos mas não sabe bem a tabuada.
- Quatro vezes quatro? - perguntava o CamaradaMudo quando
ainda dava explicações de matemática
- Não sei, mas por exemplo, o gatanhoto SamoraMachel gosta
mais das plantas da casa do tio Rui, e só come antes das onze. Se
está muito sol, vai-se esconder.
Nós ríamos daquela maluquice dela, ainda perguntávamos
mais.
- Seis vezes três?
- Não sei, mas a lesma Senghor é muito estranha porque anda
a fazer uma casa com pedrinhas que
vai buscar no fundo do quintal e um dia destes pode ser pisada.
A Isaura, como é vizinha do tio Rui, tem boas informações.
- O tio Rui, à tarde, fica na varanda dele a escrever. Primeiro
pensa, depois fala em voz alta e depois é que escreve.
- Como é que sabes que ele tá a pensar?
És burro ou quê? - a Isaura olhou para mim espantada. - Não
sabes que quando os mais velhos coçam muito tempo o bigode é
porque estão a pensar?
A Isaura dá nomes de presidentes aos bichos do quintal dela, e
porque são muitos bichos, ela sabe nomes de muitos presidentes.
Podem ser nomes também de alguns que já morreram ou mesmo
outros que não foram presidentes mas pessoas assim importantes.
O gato dela se chama Ghandi, acho que era um senhor tipo
indiano ou quê. O cão se chama AmílcarCabral, até lhe chamamos
de AmílcarCãobral. A lesma é Senghor, os gafanhotos são Samora,
Mobutu e Khadafi, os sapos se chamam Raúl e Fidel. Parece que
também deu nomes aos passarinhos mas nunca consegui decorar a
lista toda.
Agora é que me lembrei, há um papagaio chamado
JoãoPauloTerceiro, filho do falecido jacó
JoãoPauloSegundo que tinha morrido na boca do próprio
Ghandi. É que o Ghandi, antes não se chamava Ghandi, se
chamava Tátecher! Só depois de comer os papagaios é que lhe
cortaram os tímbalos e ficou mais calmo a miar devagarinho e a
nāo arranhar ninguém. Mas eu não posso dizer «tímbalos», nem
mesmo «timbalóides», porque a minha AvóDezanove não gosta
que eu diga disparates.
Depois do jantar, a luz foi.
Estavam já algumas crianças na rua e a lsaura veio também.
Era sempre assim, quando a luz faltava, as pessoas se juntavam
nesse muro perto da casa do tio Rui. Às vezes mesmo o tio Rui
também vinha cá fora ouvir a nossa conversa e ficar a rir, depois
anotava as coisas que as crianças diziam nessas folhas de papel
amarelo.
Mas o tio Rui não veio. Só o CamaradaMudo chegou perto.
- CamaradaMudo - a Isaura começou - assim foi avaria só de
quinze minutos ou é coisa séria?
- Pelo modo como a luz foi, assim sem tremer nem nada, acho
que foi mesmo corte intencional.
- «Corte intencional» é como então? - eu perguntei.
- É quando a Edel corta a luz porque quer.
- Mas a Edel existe para dar ou para cortar a luz?
Mais à frente, perto da casa do GeneralDorminhoco, ouvimos
uma travagem brusca do jipe
dele. Quem conduz o jipe do GeneralDorminhoco é um
motorista que nunca soubemos o verdadeiro
nome dele. Lhe charmamos só de Nove, já lhe encontrámos
com esse nome, dizem que ele já atropelou mortalmente nove
pessoas, sempre de noite. A Isaura foi a correr a ver o que tinha
acontecido, porque não ouvimos gritos, então se não foi pessoa só
podia ser mesmo bicho. E ela tinha razão.
Quando eu, o CamaradaMudo e o JorgeTemCalma chegámos,
a lsaura estava a chorar e a pedir
ao Nove para fazer marcha-trás.
- Mataste o meu sapo - ela chorava.
- Há maka? - perguntou o CamaradaMudo.
- Eu só travei porque os miúdos gritaram, mas não vi nada - se
desculpou o Nove.
Mas a Isaura sabia. Eu também. Aquela era a hora de os sapos
atravessarem a rua e irem beber água
numa lagoazinha de água parada, que também tinha capins
castanhos e às vezes também dava flores bonitas, sempre no mês
de novembro, Mesmo a Isaura uma vez me disse que naquela
lagoa ela já tinha visto gambozinos coloridos a imitarem um arco-
fris.
- Tu viste mesmo esses gambozinos?
- Vi sim. Tinham as cores do arco-fris, e outras cores que
voces nunca viram.
- E não apanhaste um só pra nós vermos também?
- A minha Avó disse que não se pode apanhar um gambozino.
O motorista Nove deu marcha-atrás com o jipe do
GeneralDorminhoco. Estava no chão uma
mancha escura de alguma coisa que devia ter sido um sapo.
- Mataste o Raúl - a lsaura chorava encostada ao
CamaradaMudo.
- Mataste o Raúl? - o CamaradaMudo perguntou ao Nove.
- Afinal mataste o Raúl? - o JorgeTemCalma perguntou
também.
- Matei o Raúl? Mas qual Raúl?
- O irmão do Fidel - respondi para ele se assustar.
O Nove ficou muito atrapalhado. Nāo sabia o que dizer e
muita gente já começava a se acumular ali na rua. Alguém foi
chamar o GeneralDorminhoco. Uma luz de petromax se acendeu
no primeiro
andar da casa do tio Rui. Era a tia Alice. Veio à janela.
- O que se passa aí?
- Atropelaram o sapo Raúl.
- Atropelaram só, ou atropelaram mesmo?
- Atropelaram mesmo.
O GeneralDorminhoco veio muito irritado, pois ainda estava a
jantar. A mulher dele veio também, ainda com o avental vestido e
os antigos chinelos de plástico.
- Volta para casa - o General falou. - Não te quero na rua de
avental.
O GeneralDorminhoco foi falar com o Nove. Depois riu. Veio
saber quem era a lsaura, dona do sapo.
- Sou eu - a Isaura falou com um bocado de medo.
- Então tu dizes que o Nove atropelou um sapo?
- Sim, camarada general.
- E tu conhecias esse sapo?
- Esse sapo era meu.
- Era «teu»?
- Sim, vivia no meu quintal há muito tempo.
O GeneralDorminhoco riu, parecia que estava a gozar
connosco. Depois acendeu uma lanterna
e focou na mancha escura no chão.
- E como é que sabes que isto aqui era um sapo? Pode ser uma
fruta podre, ou outro bicho
qualquer.
- Mas eu sei que é o Raúl.
- Não sabes nada. E acabou a conversa porque a rua está
muito escura e vocês nem deviam estar aqui a brincar. Já para casa
todo o mundo.
Só que apareceu o tio Rui de chinelos e calções.
Vinha a fumar um cigarro escuro tipo charuto que cheirava
bué a tabaco dos cubanos.
- Parece que houve um caso de atropelamento na via pública.
- Na via escura, camarada Rui - o GeneralDorminhoco falou.
- Escura e de circulação pública. Este jipe é seu, General?
- Sim, mas quem vinha a conduzir era este desastrado do
Nove.
- Nove? Nome interessante - o tio Rui se abaixou para ver
melhor. - Parece que vamos ter aqui uma mudança de nome.
- Camarada Rui, essa mancha pode ser qualquer coisa.
- Mas qualquer coisa também é coisa, camarada! Portanto, do
ponto de vista da lei, temos que ver que coisa era. Se era coisa
animada ou desanimada.
- Eu é que estou a ficar desanimado - o General falou.
A Isaura começou a chorar e a querer ir embora.
- O que foi, Isaura, diz lá ao tio Rui.
- O Nove atropelou o sapo Raúl.
- Era o sapo Raúl?
- Sim, tio. Tenho a certeza, ele sempre vai beber água a esta
hora.
- Então - o tio Rui falou para o General - temos o corpo
identificado. E até temos presente o familiar mais próximo. Neste
caso, um parente por aproximação afetiva.
- E então? - o General já tava a ficar irritado.
- Então há um crime rodoviário do foro da fauna doméstica.
- O quê!?
- O motorista Nove atropelou um sapo que já habitava no
quintal desta criança há um tempo considerável. Se você é o
proprietário da viatura, então você é o responsável indireto. Mas
podemos resolver isto amigavelmente.
- Vamos lá despachar esta brincadeira.
- Isto não é uma brincadeira, camarada General. Estamos num
país onde os direitos das crianças são respeitados. E por
adjacência os direitos os direitos sapais.
- Sim, sei - o GeneralDorminhoco mesmo irritado.
- Ainda bem que sabe - o tio Rui fazia festinhas à Isaura, e
piscou-me o olho.
O motorista Nove começou a choramingar. Pediu desculpa à
Isaura e explicou que nem tinha visto nada porque o carro só tinha
a luz dos mínimos, não dava para ver bem com toda aquela
escuridão.
- Eu compreendo - a Isaura falou. - Até desculpo o camarada
Nove, mas temos que enterrar o sapo Raúl perto da lagoa.
O General não gostou nada daquela conversa, mas autorizou o
motorista Nove a estar presente no funeral que ia acontecer meia
hora depois, assim que a Isaura conseguisse encontrar o sapo Fidel
para estar presente.
Como o General queria ir para casa, concordou em dar
comida ao sapo Fidel por um período de dois meses, segundo
tinha pedido o próprio tio Rui que, além de escritor, também era
advogado e todo mundo tinha receio de ele levar as coisas para
um tribunal.
- Só uma coisa, camarada General.
- O que foi, camarada Rui?
- O camarada motorista deve sofrer uma atualização.
- Como assim? Uma multa?
- Não. Uma atualização nominal. O camarada motorista passa
a ser chamado de Dez.
- Isso é que não - o GeneralDorminhoco ficou furioso. - Sapos
não contam! Só pessoas ou cães vacinados.
- Você está a dizer que um sapo chamado Raúl, irmão de um
sapo chamado Fidel, não conta para mudar o nome do seu
motorista?
Nós, as crianças, rimos baixinho.
O GeneralDorminhoco foi obrigado a concordar e o motorista
passou a chamar-se Dez. Demorou mais de uma hora para
encontrar o sapo Fidel e estávamos quase a desistir de fazer o
enterro naquela noite, mas ele foi encontrado ali perto da despensa
onde estava a jantar. A Isaura ficou muito triste.
- Sabes, Isaura, é preciso ver o ver as coisas boas da vida.
- A morte do meu sapo pode ser uma ser uma coisa boa, tio
Rui?
- Pode. O sapo Raúl já era muito muito adoentado e assim
escusa de estar a sofrer. E o sapo Fidel ficou com comida
garantida por dois meses.
O tio Rui tinha essa maneira de nos querer fazer ficar alegres
com qualquer coisa. Depois fez festinhas na cabeça da Isaura e os
olhos dela ficaram menos tristes.
- Eu quando crescer também quero ser advogado e escritor.
Assim nenhum general vai querer me enganar - alguém falou.
A tia Alice veio chamar o tio Rui porque tinha uma chamada
para ele no telefone. Ficámos ali a conversar um bocado, ao pé da
lagoa. O JorgeTemCalma disse que ia buscar umas coisas e saiu a
correr.
- Não te importas que eu não fique para o enterro, Isaura?
- Obrigada, tio Rui. Nestes enterros só podem mesmo ficar as
crianças.
- Porquê? Que lei é essa? - reclamou o CamaradaMudo.
Afastaram-se. A tia Alice a sorrir devagarinho para a Isaura, o
CamaradaMudo a reclamar que em Angola não havia nenhuma lei
que proíba adultos de assistirem a funerais de animais, sobretudo
um funeral público, com falta de luz e numa lagoa toda suja que
era frequentada por dois pirilampos velhos.
- Isaura, podias deixar o CamaradaMudo assistir ao enterro.
- Não posso mesmo. Li num livro. Enterro de bichos é coisa
de crianças. Os adultos não entendem e depois só querem nos
gozar.
- Mas há adultos - eu falei - que nunca cresceram nesse lado
dos enterros dos bichos. Eu acho que devias deixar, Isaura. Se
calhar o CamaradaMudo está mesmo triste.
Fui chamar de novo o CamaradaMudo e também o
JorgeTemCalma, esse miúdo muito irrequieto, sempre a correr
sem conseguir ficar parado. Todos da rua sempre diziam «ó Jorge,
tem calma!», frase que aprendemos com a mãe dele desde que ele
era pequenino.
Então vieram outras pessoas da rua, e a Isaura não reclamou,
porque todos vinham com cara de respeito e até algumas migalhas
de pão duro para oferecer ao sapo Fidel num jeito de comba
improvisado.
A noite na nossa rua ficou bonita. Como não havia luz, alguns
trouxeram pequenas lanternas de luz fraquinha, outros umas velas
bem cambutas, um petromax também de se poupar e até dois
candeeiros daqueles com garrafa de vidro e depósito para o azeite
A lagoa ficou toda cercada de iluminação com direito a choro
da Isaura e alguns que choravam só para acompanhar as lágrimas
da Isaura, e que nunca nem tinham conhecido o sapo Raúl.
Os morcegos fizeram voo rasante que parecia espetáculo de
aviação com mig's de verdade, um vizinho baixou a música em
sinal de respeito e o mais bonito foi os dois velhos pirilampos a
pararem de piscar a luz deles quando a Isaura começou a falar.
Todos olharam para trás espantados quando ouviram o
barulho dos chinelos da minha Avó. A minha AvóDezanove
chegou devagarinho e segurou a mão da Isaura. Foi a Avó
Dezanove que disse:
- Vais dizer umas palavras, Isaura?
- Só se for um poema.
- Pode ser. Acho que os sapos também gostam de poesia.
As pessoas apagaram as lanternas e as velas. Só ficaram
acesas duas lamparinas de azeite com o estranho cheiro que elas
deitam. A rua estava muito escura num silêncio de dez da noite.
O motorista Nove que agora era Dez começou a deitar
lágrimas. Olhei para trás: na casa dele, eu vi a luz do cigarro. O tio
Rui tinha ficado ali no escuro da janela dele a ver o enterro do
sapo Raúl.
A Isaura falou:
- Obrigada a todos pela presença de estarem aqui... Não sei
muito bem o que falar.
O JorgeTemCalma não conseguia estar quieto. Nem calado.
- Mas ela não disse que ia falar um poema?
- Fica masé calado - eu ralhei.
A AvóDezanove fazia festinhas nos ombros da Isaura, acho
que para lhe encorajar a falar, ou mesmo só para lhe fazer sentir
bem.
A Isaura continuou:
- Mesmo o poema que eu ia falar, também já esqueci antes de
começar...
Todos rimos um bocadinho.
- Queria agradecer as palavras do tio Rui que não está aqui, e
as migalhas que todos trouxeram para deixar aqui no lago. Se
calhar os os sapos gostam de migalhas como os mortos de verdade
gostam que lhes deitem bebida no chão, não sei, Avó - falou para
a AvóDezanove. - Os sapos têm alma?
A AvóDezanove sorriu e esperou. A Isaura olhou para ela
esperando uma resposta que nunca veio.
- Também queria agradecer o camarada motorista Nove, quer
dizer, Dez, por ter aceitado assim mudar de nome na conta da
morte do sapo. E pronto, também isto não é nenhum jogo de
futebol - Isaura sorriu -, não precisa demorar 90 minutos.
Obrigada a todos.
Escapámos quase bater palmas, mas não se podia. Cada um
foi para a sua casa. Ficaram os miúdos. Os miúdos são sempre os
últimos a querer ir embora.
- Isaura, se tu quiseres - falou o JorgeTemCalma -, um primo
meu, de Benguela, mora perto de um rio. Lá tem bué de sapos e
são bem grandes. Posso pedir ao meu pai para trazer um de lá. Só
não sei se sapo de rio sabe viver aqui na nossa cidade de
Luanda…
- Jorge, tem calma e não fales à toa.
- Não fales tu à toa - a Isaura disse. - Obrigado, Jorge, mas
acho que não. Aqui em Luanda estão a atropelar muito, é melhor
cada sapo ficar na sua província.
O JorgeTemCalma disse que tinha que ir embora porque
senão iam lhe ralhar. Olhei de novo para os capins da lagoa: os
pirilampos tinham começado a piscar de novo.
- Adoro pirilampos - a Isaura falou.
- Adoro estrelas quando o céu tá todo escuro - eu falei.
- É a mesma coisa.
- Isaura - comecei.
- Diz.
- Desculpa só meter o assunto assim de repente em cima do
enterro...
- Podes falar.
- Queria te perguntar se não queres me ajudar a ganhar a tal
bicicleta do concurso. Se nós ganhássemos a bicicleta até podia
ficar dos dois.
A Isaura sentou no chão.
- Esse concurso da Rádio Nacional?
- Sim, esse mesmo. Inventamos uma estória juntos e
ganhamos a bicicleta. Fica dos dois.
- Isso não ia dar problemas?
- Não. A bicicleta fica conticontigo segunda, quarta e sexta.
Depois trocamos, terça, quinta e sábado fica comigo.
- E domingo?
- Domingo fica também comigo.
- Porquê?
- Porque eu sou rapaz.
- E então?
- Nós gostamos mais de bicicletas que vocês
- Não é verdade, desculpa lá. Eu também gosto de bicicletas.
- Então domingo emprestamos a bicicleta ao tio Rui.
- Boa ideia, ele também gosta de andar de bicicleta.
Sentei-me também no chão ao pé dela. Os pirilampos
acendiam e piscavam muito.
- Estes pirilampos aumentaram a potência ou quê?
A Isaura riu. odont
- Não, acho que tá a ficar mais escuro. Temos de ir para casa.
- Então e a estória?
- Eu não tenho nenhuma boa ideia.
- Mas eu tenho.
- Para a estória? Então podes escrever e ganhar.
- Não, eu tenho uma ideia para conseguirmos uma boa estória.
- Não entendi.
- A caixa do tio Rui - falei baixinho.
- Chiuuu!, já te disse que isso é um segredo, não podes falar a
ninguém nisso. Tu tinhas prometido.
- Só estou a falar contigo!
- Nem comigo. Um segredo é uma coisa de pensar, não se diz.
A Isaura levantou-se e foi a correr para a casa dela.
Fiquei um bocadinho ali sentado. Olhei para trás. Como tava
tudo quase completamente escuro, consegui ver o cigarro na boca
do tio Rui, a mão dele a coçar os bigodes. Ele devia estar a pensar.
Fiquei com inveja. Quando eu penso não me saem estórias.
Penso nos trabalhos de casa que não fiz, penso em preparar a
mochila com os livros para o dia seguinte, e nos chocolates bons
que encontrei algumas vezes na casa de alguém. Penso nessa coisa
de a Isaura estar sempre a dar nomes aos bichos e saber do
comportamento deles. Também penso nas coisas estranhas que a
minha AvóDezanove diz. Às vezes ainda penso que talvez, um dia,
se eu crescer e tiver bigode, e se coçar muito o bigode, eu vou
conseguir escrever uma boa estória. Mas eu queria era ter bigodes
agora para poder ganhar a bicicleta.
Os pirilampos não paravam. Um acendia, o outro também.
Devagar, rápido, e em ritmos trocados. Não sei explicar, mas
parecia que usavam a luz para falar um com o outro.
Fui para casa.
No escuro da varanda, a Avó Dezanove estava sentada a
abanar-se com um leque chinês muito antigo que ela tinha. O
leque era lindo e ninguém podia brincar com ele. Quando a Avó
se abanava parecia que tinha na mão a cauda de uma avestruz a
dançar devagarinho.
- Tá na hora de ir para a cama.
- Sim, Avó - fui lhe dar um beijinho de boa noite. - Avó, a luz
já não vem hoje?
- A luz vem quando quer, filho. Tem uma vela acesa na casa
de banho para não fazeres xixi fora da sanita.
- Nunca faço, Avó. Tenho boa pontaria. Mesmo no escuro
consigo fazer xixi sem sujar o chão.
- Está bem, já conheço essa estória, queres é desculpa para
ficares aqui um bocadinho na conversa. Até amanhã.
- Até amanhã, Avó.
Entrei na casa de banho e apaguei a vela.
Abri a janela e deixei os olhos habituarem-se ao escuro. Em
vez de dois barulhos de sapo, apenas o sapo Fidel agora falava
uma cantiga triste. A Isaura devia estar a ouvir a mesma coisa. Se
calhar até nem seria má ideia o pai do JorgeTemCalma trazer um
sapo bem gordo de Benguela.
Passado um bocadinho, mesmo no escuro, eu já via tudo. Era
esse o truque, esperar um bocadinho, fechar os olhos com força e
depois vê-se bem mesmo no escuro. Fiz bué de xixi e não entornei
nem um bocadinho. Tirei água do balde e despejei na sanita.
Além do sapo, um grilo também começou a cantar.
Sonhei com a bicicleta bem colorida, os da minha rua
brincavam com ela, o CamaradaMudo ria muito, a AvóDezanove
dizia para termos cuidado para não sermos atropelados por
nenhum carro e para não atropelarmos mais nenhum bicho, a
bicicleta do meu sonho era bem grande e zunia muito, amarela nas
rodas, o quadro e o volante eram vermelhos e os paralamas assim
pretos, só que à frente, um pouco abaixo da zona do volante,
ninguém ainda tinha visto: a bicicleta tinha uns bigodes iguais ao
do tio Rui.
A Avó me acordou. Eu estava a suar.
- Estás bem, filho? Estás a suar.
- Eu vim já a suar do sonho, Avó. Eu tinha ganhado uma
bicicleta com bigodes muito pendurados e já estava a dar bué de
voltas na nossa rua
- Dorme mais um pouco. Ainda é cedo.
- Nenhum galo ainda não cantou, Avó?
- Ainda.
Espremi os olhos e apertei as mãos, é assim se faz quando se
tem vontade de sonhar outra vez na continuação de um sonho bom.
Nada. O sonho não voltou. Nem o sono.
Fiquei a ver a luz entrar devagarinho pelas ripas de madeira
da minha janela. A luz assim a perder os azuis-claros e a entrar
nuns amarelos que me fizeram outra vez lembrar a minha bina que
eu queria tanto ganhar.
Aquelas ripas de madeira me devolviam aquela ideia: a caixa
de madeira do tio Rui, segredo meu e da Isaura, era mesmo a
solução perfeita. Aquilo não eram restos? Restos não são migalhas?
Que eu saiba, ninguém é dono de migalhas nenhumas, e aquela
caixa tinha só restos de palavras, bocadinhos de sonhos, letras que
nunca conseguiram ser palavras nem mesmo frases de o tio Rui
escrever os livros dele.
Ouvi os passos dos chinelos da Avó bem devagar, vi as
primeiras luzes da manhã. Um dia alguém disse que aquela era
uma luz muito fresca, eu ria de ouvir essas frases dos poetas, «luz
fresca», como a água da Avó regar as plantas verdes de manhã,
isso quando a água vinha. Se a água não viesse, a minha Avó, que
é muito engraçada, regava mesmo assim.
- Só de mangueira a fingir numa água que ainda está lá na
barragem, Avó?
- Assim mesmo.
- Tipo que és do teatro dos jardineiros?
- Tipo - a Avó sorria, os gestos dela continuavam a abanar a
mangueira sem água nenhuma, só umas gotas sacudidas do dia
anterior ou quê.
- Assim estás a regar como, Avó?
- A regar só. As plantas sabem.
A regar só. A Avó ficava bué de tempo a «regar só». Mesmo
deixava passar esse tempo como se fosse uma demora de molhar.
E olhava o céu num pedido de pingos.
- Pediste água dos céus, Avó, no tal camarada que abre as
torneiras?
- Pedi.
- Hum, melhor só é pedir água à Epal, pode er que te aceitem
na conta de seres mais velha respeitada.
O matabicho ia aparecendo, devagar para parecer que tinha
muita coisa. A minha avó com os teatros dela: bocados de pão,
depois a manteiga, leite aguado já misturado assim na cozinha
para eu não ver, um bocadinho de café que eu sempre pedia.
- Avó, tu não tomas leite?
- Só café.
Era mentira de poupar as coisas para as crianças, pois quando
havia mais de um pacote a Avó também matabichava leite.
- Eu sei que estás a pensar na bicicleta.
- É verdade, Avó. Quer dizer, o camarada presidente devia
organizar melhor o nosso país.
- Ai é?
- Sim. Devia dar bicicletas sem ser preciso uma pessoa estar a
inventar estórias. Ainda pode acontecer que as crianças fiquem
mentirosas.
- Eu acho bom esse concurso da Rádio. Faz as crianças
pensarem e imaginarem estórias.
- Mas isso é para quem tem jeito... Nós aqui na rua só temos
miúdos malucos e uma miúda que fala com os bichos.
- Temos um escritor.
- Que não quer ajudar as crianças porque fica egoísta com os
bigodes dele.
- O quê? - a Avó não entendeu.
Barulhos vieram da rua. O jipe do GeneralDorminhoco saiu,
devia ir buscar pão numa loja que sempre tinha pão para o
camarada GeneralDorminhoco. Ele devia ainda estar a dormir e a
mulher dele também.
Fui espreitar na janela: o JorgeTemCalma já estava na rua a
não fazer quase nada e o CamaradaMudo já tinha instalado o
banco dele no passeio. A manhã cheirava a sol fresco e as
andorinhas já estavam a trabalhar de ir buscar minhocas para
alimentar os filhotes.
Ouvi a voz da Isaura lá fora. Saí também.
- Tenho a certeza que foi o gato francês.
- Mas o gato é francês ou é angolano? - perguntava o
CamaradaMudo.
- O gato daquele senhor francês.
- Mas esse gato nasceu já aqui em Angola, não? - o
JorgeTemCalma também agitou.
Ainda hoje de manha vi os três a brincarem, o Samora, o
Kadhafi e o Mobutu.
- Mas é o quê, Isaura?
- Comeram o gafanhoto Mobutu. Foi o gato francês.
- Mas o gato é francês ou angolano?
- A questão não é essa, vocês são malucos ou quê? Eu acho
que aqui na rua ninguém respeita os bichos.
- Mas um gafanhoto arrisca-se sempre a ser comido - o
CamaradaMudo comentou.
- Mas porquê que o gato francês tem de entrar nos quintais
dos outros?
- Mas o Kadhafi está bem? - perguntou e JorgeTemCalma.
- Por enquanto sim, mas com o gato francês nunca se sabe.
Eu vi que a Isaura estava mesmo triste.
- Mas como é que tu sabes que foi mesmo o Mobutu que
faleceu?
- Não faleceu, foi falecido!
- Sim, mas como sabes que não foi outro?
- Porque eu conheço as cores deles. O Kadhafi tem uma
marca na cabeça e o Mobutu não. Ainda por cima encontrei restos
de asas no chão.
O CamaradaMudo ligou o rádio para ver se mudávamos de
conversa. Era hora do noticiário e explicaram coisas da nossa
guerra, falaram também da falta de água e de uma falta de luz que
também poderia acontecer devido aos combates perto de
Cambambe. Só já quase no fim, depois do desporto, é que falaram
do concurso.
Faltava só um dia mesmo para as crianças entregarem as
estórias na portaria da Rádio Nacional.
- Se eu apanho o gato francês!
- Ó Isaura, para lá com isso, já chega dessas makas de mortes,
há outros assuntos que temos de tratar.
- Quais assuntos?
- O assunto da bicicleta - eu falei.
- Mas ainda não escreveste a estória? Pensei que ias fazer isso
ontem à noite.
- Para escrever a estória preciso de uma ideia.
- Pede ao CamaradaMudo.
- CamaradaMudo - o Jorge TemCalma falou -, não tem uma
ideia só para nós usarmos?
- Não.
Eu sabia, no fundo o problema era mesmo esse: a ideia.
Escrever a estória, com um bocadinho de esforço, talvez dois ou
três podem conseguir, mas a ideia é como uma raiz invisível que
faz crescer a planta.
- Isaura - eu chamei. - Vem só.
- O que foi?
- A ideia está dentro da caixa.
- Qual caixa? - perguntou o JorgeTemCalma.
- A caixa do tio Rui.
- Era segredo! - a Isaura afastou-se zangada.
- Tens de prometer segredo, Jorge.
- Só posso prometer depois de saber o segredo.
- Agora tenho que ir pra casa, depois conto-te.
- Está bem. Vou para casa ver se tenho alguma ideia. Ainda
vou telefonar também aos meus primos, os de Benguela e os de
Malange, eu mando bué de primos nas províncias.
- Tá bem, mas acho que nas províncias não acontece nada.
- Então, isso pode ser bom. Eles devem ter mais tempo para
ter boas ideias.
Fiquei a pensar naquilo à hora do almoço. Há muito tempo
que a Isaura me tinha contado aquela espécie de segredo. Ela via
da casa dela o que se passava à noite no quintal do tio Rui.
Primeiro também não acreditei, até que um dia a Isaura me
chamou para ir ver também. Era às quintas-feiras, por volta das
vinte e uma, na hora de todos estarem a ver a telenovela.
O tio Rui ficava lá fora a fumar, à espera da tia Alice, a
mulher dele. Ela vinha com uma bata bonita com rendas, parecia
das toalhas da minha Avó. Uma escova na mão esquerda, como se
fosse brinquedo de bonecas. O tio Rui ficava quieto na cadeira
dele e encostava a cabeça para trás. Respirava fundo, tipo que ia
adormecer.
A tia Alice tirava do bolso uma tesourinha que acertava as
barbas nunca certas do tio Rui. Mas a tesoura gostava é de dançar
no ar quase a não tocar em nenhum pelo do tio Rui. O tio Rui
respirava fundo sem quase se mexer. Na zona do bigode, também
a tesoura não tocava mas a tia Alice ficava ali a mexer os dedos e
nós escutávamos um ruído de metal na noite deles. Depois
guardava a tesoura.
Os bichos da Isaura, só de saberem que nós não queríamos
fazer barulho, começavam todos a querer nos denunciar: o jacó
JoãoPauloTerceiro começava a gritar frases de telenovela, «vá de
retro, satanás», que era a frase do Beato Salú, pai do Roque
Santeiro; depois gritava «tô certo ou tô errado», que era frase do
Sinhozinho Malta; nós bem quietos atrás da trepadeira e a tia
Alice a olhar mesmo na nossa direção sem nos ver; o jacó dizia a
última frase, «posso penetrar?», que era a frase do professor
AstromarJunqueira quando ia visitar a Mocinha. Pronto, o jacó
não ia falar mais, só talvez uma meia hora depois. O sapo Raúl
ainda era vivo e saltava para perto de nós.
O gato Ghandi tinha maus hábitos, como dizia a minha Avó, e
àquela hora estava só a dormir quase a querer ressonar com os
bigodes sujos dele, parece que só lhe demos um banho bem
molhado uma vez que a Isaura não estava em casa e lhe
prendemos num caixote de papelão que apanhámos na casa do
General Dorminhoco. E o cão AmilcarCãobral, bem
bonito, esse era só uma pessoa lhe fazer festinhas e ele nem
ladrava mais.
A tia Alice guardava a tesoura, nós olhávamos bem atentos:
ela esfregava os dedos todos, uns contra os outros, devagar
primeiro, depois um pouco mais depressa, falava umas palavras
que não ouviamos, olhava devagar para o tio Rui, olhava os
bigodes, e aproximava a escova pequenina, como se fosse de
pentear as sobrancelhas das bonecas. Esfregava os bigodes do tio
Rui, devagar, como se escolhesse o lugar onde a escova devia
tocar.
A escova tocava e fazia acontecer uma espécie de brilho. O
tio Rui parece que sorria devagar, eu olhava a Isaura que olhava
para eles e eu olhava de novo: na outra mão dela, a tia Alice tinha
uma pequena caixa de madeira, com desenhos que eu já vi num
museu qualquer, a caixa aberta ficava assim perto do queixo do tio
Rui. Ela esfregava os bigodes, soprava, esperava e aquilo
acontecia: pequenas letras caíam do bigode para a caixa, eram
vogais de «a», «e», «i», «o», «u», mas também sobras de «k» e
«w», alguns «t» e dois «h». Ela escovava e a caixa guardava
aquelas letras soltas. Parece que aquilo dava comichão, o tio Rui
mexia os lábios, queria tocar no bigode mas a Alice não deixava.
- Isso é mesmo possível ou é feitiço?
- Acho que é mesmo possível, o tio Rui tem bigodes de
escritor - a Isaura falou baixinho.
Entrou o JorgeTemCalma a gritar para no chamar, e tivemos
que bazar.
- Estavam a fazer o quê? - ele quis saber.
- Nada - a Isaura olhou para mim.
- Quem não faz nada são as lesmas!
- As lesmas fazem muita coisa, seu burro!
- Isaura, vamos só lhe contar também.
- Mas um segredo não pode ser conhecido por mais de duas
pessoas.
- Pode sim - o JorgeTemCalma estava masé bem curioso.
- Fica um segredo de três pessoas, Isaura - eu pedi.
- Isso não é um segredo, é um mujimbo - rimos todos.
Fomos para a casa da minha Avó. Almoçámos lá.
Então agora era um segredo de três pessoas, contado assim
devagar, mas sem aumentar nada, porque a estória já era muito
complicada. O JorgeTemCalma não acreditou e pediu para ir ver
também. Combinámos que íamos, à noite, espreitar o quintal do
tio Rui.
Nessa noite o tio Rui chamou a tia Alice para lhe cortar o
cabelo. Sentaram-se lá no quintal, no mesmo lugar de sempre.
Montámos uma espera tipo tocaia das novelas. O Jorge
TemCalma trouxe umas paracucas para o caso de dar fome, a
Isaura tinha uma garrafa de sumo tang de maracujá e eu trouxe
aquela roda verde de «dragão» para os mosquitos não nos
ferrarem nas pernas.
Estava noite de lua apagada e mesmo poucas estrelas estavam
no céu para iluminar a noite com brilhos esbranquiçados.
A Edel foi nossa amiga e a luz foi.
Quando a luz vai, as conversas de rua ficam mais mágicas: os
olhos tipo que brilham de outra maneira, as pessoas saem à rua e
ficam a imaginar o que poderia estar a acontecer na telenovela,
todos querem saber se no dia seguinte a TPA vai repetir capítulo
que todo mundo não viu, a minha avó no muro a rir das nossas
estórias ou conta também uma estória de antigamente, o
CamaradaMudo não entra para jantar, a noite fica mais quente, os
carros passam devagar porque as crianças brincam no meio da rua,
alguém liga um rádio barulhento que quase não se ouve por causa
do barulho do gerador do GeneralDorminhoco, um cheiro de
petromaxes fica a passear pelos nossos narizes, dá para roubar
mangas, goiabas e pitangas nas árvores alheias e se jogamos
escondidas aqueles que não são da nossa rua demoram muito
tempo para nos encontrar porque não conhecem os lugares
melhores com bons esconderijos, tipo o vóx-váguen da doutora
Victória, ou um galinheiro abandonado, ou mesmo a casa aberta
de qualquer vizinho onde só nós, os da rua, podemos entrar sem
pedir com-licença, quando a luz vai na
minha rua, as crianças afinal reclamam de não ver novela mas
no fundo no fundo, ficamos contentes
e podemos fazer mil coisas fora do ritmo normal das nossas
vidas.
No escuro, acendemos o fumo do «dragão» contra os
mosquitos. O Cãobral ficou perto de nós a querer espreitar.
Uma tesoura maior cortava o cabelo do tio Rui, com
movimentos rápidos e sem medo de estar um bocado escuro. O
candeeiro petromax do tio Rui ficava perto das pernas dele e ele ia
matando os mosquitos com gestos de agarrar em vez de bater
palmas, um rádio lá longe tocava um som tipo cubano e nós
ouvíamos a respiração um dos outros e a do Cãobral também. A
tia Alice olhava de longe, acertava assim com a tesoura a cortar já
só o ar, a mão dela acalmava, os mosquitos faziam nuvem à volta
da cabeça do tio Rui.
Na mão, o tio Rui tinha a caixa. Dei a dica ao Jorge
TemCalma, ele nem entendeu.
- É aquela caixa.
- Mas não brilha.
- Jorge, tem calma.
A tia Alice pôs a tesoura no bolso da bata dela e ficou assim
de pé à espera. Nas pernas do tio Rui estava o caderno amarelo
dele, ele comecou a escolher umas páginas, soprou, depois
aproximou das vistas e começou a ler.
Era um poema assim todo lido de uma vez, quase sem parar
nem para respirar, e a tia Alice ouvia, nós de longe não
entendíamos bem as palavras, ouvíamos só restos de algumas
frases, alguma coisa sobre a chuva, a água, os pássaros, o mar.
Depois ele parou de repente e deixou a cabeça cair para trás
A tia Alice com a escovinha, sacudiu os bigodes, primeiro
devagar e depois mais rápido.
- São letras, aquilo? - o JorgeTemCalma não queria acreditar.
- São restos de frases que ficam presas no bigode.
A caixa aberta tinha já um brilho dentro, e mais letras caíam,
assim com o escuro dava para ver bem, um «j» todo perfeito
muito amarelo, dois «k» que não queriam se desprender da ponta
esquerda do bigode e que a tia Alice soprou com força, e só no
fim os acentos, acento circunflexo, disse a Isaura, acento agudo,
cedilha e mesmo até um travessão.
O tio Rui fechou a caixa, ouvimos os passos da tia Alice a
entrar em casa em casa levando com ela a luz do petromax. As
mãos do tio Rui, com restos desse brilho tipo poeira, embrulharam
a caixa num pano, encarnado, e depois ele também entrou.
- É aquela caixa que nós precisamos - eu disse.
- Sabes onde eles guardam?
- Temos de descobrir.
- Eu não vou participar desse plano - a Isaura avisou.
- Não podes ser assim. A caixa é a nossa salvação.
- Salvação de quê?
- Aquelas letras do tio Rui já vêm com força de estória, depois
é só acrescentar um bocadinho. Aquela caixa é que nos pode fazer
ganhar a bicicleta da Rádio Nacional.
A Isaura acendeu a lanterna dela, apontou para o chão. O gato
Ghandi miou lá dentro, a provocar o jacó JoãoPauloTerceiro que
começou a dizer frases da novela outra vez: «Lulu, onde é que
você vai vestida desse jeito?», a imitar a voz do ZéDasMedalhas,
nós rimos muito, porque a voz era igualzinha e às vezes até nos
assustava. E ele mesmo dava a resposta: «Ah, Zé, me deixa, tô
indo a lugar nenhum, não» e nós fazíamos silêncio de ouvir a
continuação, mas esse jacó não batia bem da cabeça, e misturava
as novelas todas, depois entrou frase do Odorico «Seu Dirceu,
deixemos os considerandos e passemos aos finalmentes».
Depois, silêncio só, a Isaura a brincar com a luz a apontar o
caminho para a lesma Senghor pôr a baba dela.
- Passemos aos finalmentes - falou JorgeTemCalma.
- Quando, agora? - a Isaura perguntou.
- Sim, não vale a pena perder tempo. É boa hora. Atacamos
hoje mesmo.
- Boa ideia - concordei.
- Eu não vou.
- Tudo bem - o JorgeTemCalma todo nervosinho parece que
já tinha um plano. - Ficas na retaguarda, a ver se vem alguém. Se
vier, assobias com aquele som da telenovela Cambalacho.
- Qual som?
- Aquele que imitava um gato bêbado. Em vez de dizer
«miau», dizes «maiau»...
- Tens cada uma!
- Nós vamos avançar.
- Mas qual é o plano? - queria saber.
- Eu entro numas perguntas de distração, tipo ho cólicas e quê,
e fico a falar com eles. Tu
procuras a caixa. Não disseste que costuma ficar lá na sala?
- Eu?
- Sim, não disseste que a caixa costuma ficar num armário da
sala?
- Eu não, só se foi a Isaura.
- Eu também não.
- Epá, vocês tão a complicar, vamos só.
A campainha do tio Rui não funcionava, então batemos só as
palmas.
- O portão está só encostado, podem entrar - o tio Rui nos viu
da janela.
- Mas aqui está escrito «cuidado com o cão».
- O cão está a dormir.
- E se ele acordar, tio Rui? - o JorgeTemCalma era campeão
de já ter sido mordido por cães que até nem gostavam de morder.
- Se acordar dizes que ainda não é de manhã!
Entrámos pela porta de lado, bem perto da casota do cão. Tipo
que ele ressonava. A Isaura, mesmo contrariada, ficou lá fora a
«cobrir a retaguarda», frase que o JorgeTemCalma tinha apanhado
num filme de guerra.
- Ficou a cobrir como?
- A cobrir só.
Subimos por um corredor bem escuro cheia de máscaras onde
fazia mais silêncio que noutros lugares. O tio Rui já estava à
espera.
- Comé, o cão dormia?
- Sim, tio Rui.
- Entrem só. Vão querer atacar um sumo tang aguado, ou água
só com cheiro de sumo?
- Sumo tang aguado.
A tia Alice na cozinha preparava a bandeja, jarro de plástico
amarelo, uma colher de sopa a misturar um bocadinho de sumo
tang de maracujá.
- Vão beber um sumo que faz bem à cabeça. Vai vos dar força
nos pensamentos da escola.
- E ideias também?
O tio Rui olhou para mim e começou a coçar os bigodes dele.
O Jorge TemCalma tirou um bloco pequenino do bolso e um lápis
amarelo tipo B2 que usávamos nas aulas de desenho.
- Vais ter uma ideia agora, tio Rui?
A tia Alice entrou na sala a rir.
- Uma ideia? - ele sorriu já com a voz mais constipada. - Eu
estou sempre a ter ideias.
- Nós então estamos a precisar de algumas.
- Mas qual é a maka?
- Não é maka, é o concurso da Rádio Nacional. tio. Nós
queremos bué ganhar aquela bicicleta.
- Ouvi dizer.
- Ouviu nas notícias da uma?
- Não. Ouvi nos mujimbos da rua.
- Temos que apresentar uma estória até amanhã ao meio-dia e
deixar na portaria da Rádio Nacional.
A tia Alice dividiu o sumo por todos os copos, até um para ela
e outro para o tio Rui.
- Eu não vou beber, Alice, aumenta lá no copo dos miúdos.
- Então é isso, tio - o JorgeTemCalma insistiu mais.
- É isso o quê?
- Andamos a fazer «pedimento».
- Pedimento ou peditório?
- Peditório. Em todas as casas da rua.
- Tu já conheces essa palavra «peditório?
- Já sim, tio, ouvi numa telenovela.
- E é peditório de quê?
- De ideias.
- Deves falar com a Isaura, ela é que tem bué de ideias.
- Mas o tio é que escreve estórias.
- Mas estórias não são ideias. Como é que está esse peditório?
- Parece que está a correr bem.
- «Parece»? - a tia Alice riu. - Já têm muitas ideias? Passaram
em muitas casas?
- Até que esta é a primeira. Queremos que o tio coce muito os
bigodes e nos dê algumas ideias.
- Ou mesmo uma boa estória já bem completa - os meus olhos
brilharam quando vi a caixa na parte de baixo da mesa, mesmo
perto do jarro, ainda pensei que se alguém entornasse o sumo, as
letras iam ficar com um delicioso sabor de maracujá.bid
- Mas isso é cabula! - o tio Rui olhou para nós e a tia Alice riu
bem alto. - Ó Alice, faz o favor de rir mais baixo.
- Cábula não é na escola? - disse o JorgeTemCalma.
- Cábula é uma coisa copiada, que não é nossa. Acho que esse
concurso é para conhecer as vossas estórias.
Fizemos um silêncio. O JorgeTemCalma não conseguia parar
com as mãos quietas. Nem os olhos. A Isaura dizia que o Jorge
TemCalma tinha uns olhos que pareciam duas gazelas porque não
paravan saltitar.
Os adultos gostam de fazer silêncios. O ti Rui coçava os
bigodes e eu pensei que a qualquer momento ele poderia pelo
menos nos emprestar uma ideia. Mas ele estava só a pensar.
- O tio Rui não podia só nos emprestar uma ideia?
- Emprestar?
- Sim.
- E vocês depois devolviam a ideia ou quê?
- Se nós ganharmos, o tio Rui pode andar com a bicicleta
todos domingos e feriados também.
A tia Alice levantou devagar, levou a bandeja com o sumo
para a cozinha e nem perguntou se alguém queria mais.
Apagaram as velas da cozinha.
Só a luz amarela do petromax ficou a a iluminar um
bocadinho a sala.
- Acho que a nossa rua tem boas estórias - o tio Rui disse.
- Também acho - o Jorge TemCalma tinha essa mania de dizer
«também acho».
- Uma estória de ganhar a bicicleta, tio Rui?
- Acho que sim.
- Também acho - o Jorge TemCalma não resistiu.
O silêncio voltou como a água que se entorna numa aguarela
acabadinha de pintar.
- Tio Rui, os silêncios afinal servem para quê?
- Para as pessoas estarem umas com as outras.
- Não basta estarmos sentados no mesmo lugar?
- Não - o tio Rui parou de coçar os bigodes. - É preciso
olharmos para o outro.
- Tás a olhar para mim, tio Rui?
- Estou.
- A ver o quê?
- A espreitar a tua ideia.
- As ideias nascem na cabeça?
- As boas ideias nascem no coração. Tás a sentir o quê no teu
coração?
- Só sei que queria ganhar a bicicleta. Mas isso não é uma
estória, é só uma vontade.
- Essa é a tua estória. Podias escrever sobre isso.
- Também posso escrever uma estória sobre os teus bigodes,
tio Rui?
- Claro que podes. Eu ia ficar muito honrado.
- Honrado é bom ou é mau?
- Honrado é bonito.
A tia Alice entrou a dizer que estava um camarada importante
ao telefone, que queria falar com o tio Rui.
- Um camarada importante?
- Importante mesmo - a tia Alice respondeu.
- Se é importante mesmo, vocês dão licença aqui na nossa
conversa.
Os dois saíram da sala e demoraram bué de tempo. O Jorge
TemCalma apontou a caixa para ver se eu conseguia apanhar.
Levantou-se e ficou a controlar a porta. Fez-me sinal com os olhos
para eu apanhar a caixa.
- Podes descer, Jorge - comecei a chegar perto da caixa. -
Controla as escadas que eu depois desço.
Ele desceu as escadas depressa.
A luz amarela do petromax tremia numa dificuldade de
iluminar, fazia os meus olhos arderem. Peguei na caixa com
cuidado e espreitei - bem devagarinho.
Uma quase magia me fez comichão nas mãos: a caixa tinha
veludo lá dentro e letras brilhantes faziam um barulho que eu não
podia ouvir. Acentos circunflexos estavam num canto, uns em
cima dos outros, como chapéus de palha dos chineses, havia
cedilhas no meio, muitos «k», muitos «p» e dois «w». Tive medo
de tocar ou mesmo de deixar cair a caixa, então soprei
devagarinho.
A cidade ficou ainda mais escura como se o meu sopro tivesse
apagado Luanda inteira. O brilho aumentou a mudar de cor com a
velocidade bonita das estrelas. As minhas mãos tremiam como o
mar quando engole o sol devagarinho. Ouvi a voz do tio Rui.
- Alice, vai buscar o petromax.
Desci a correr, primeiro fechei os olhos para me habituar ao
escuro, depois consegui ver a corrente do cão no chão e saltei para
não lhe acordar. Quando cheguei ao passeio, a Isaura e o
JorgeTemCalma já tinham ido embora.
Voltei para casa. A AvóDezanove estava a mudar o curativo
do pé dela.
- Mas vocês andam na rua até esta hora?
- Estávamos na casa do tio Rui.
- Não estavam a incomodar?
- Não, Avó. Estávamos a espreitar corações.
A Avó terminou o curativo e foi buscar um resto de comida
de ontem para eu comer assim tipo ceia.
- Sabes que amanhã é o último dia para ires por a estória na
Rádio Nacional.
- Sim, Avó, sei.
- Queres que acenda aquela vela boa, para tentares escrever a
tua estória?
- Quero sim, Avó.
De manhã, a energia ainda não tinha voltado.
A nossa sorte mesmo é que o sol aparece todos os dias de
manhã bem iluminoso, e cedo, na hora que os galos gostam de
acordar e a minha Avó também, minutos antes das seis da manhã.
Às vezes a essa hora também vem água e a minha Avó pode regar
as plantas com uma água assim verdadeira.
A luz do sol veio bem forte, não era fraquinha como o
petromax do tio Rui.
O CamaradaMudo fez o favor de levar o meu envelope bem
fechado para a portaria da Rádio Nacional e depois me deu um
papel que chamam de «comporvativo».
- Se a tua estória ganhar, podes ir lá com este papel.
- Obrigado, CamaradaMudo.
Antes da hora do almoço dei encontro com Isaura e o
JorgeTemCalma que queriam saber novidades.
- Quais novidades? - ainda perguntei.
- Ontem. Como foi lá na casa do tio Rui?
- É segredo.
- Conta só - pediu o JorgeTemCalma.
- Não posso, é mesmo segredo.
A Isaura riu. Trazia com ela uma caixa de fósforos com a
lesma Senghor dentro.
- Está assim adoentada.
- «Adoentada»? - o Jorge fez cara de espanto.
- Vocês também inventam cada palavra mais difícil, não basta
só dizer que está «doente» ou que está «muito mal»? E como é
que sabes que está «adoentada»?
- Estava parada a não ir a lado nenhum.
- As lesmas nunca vão a lado nenhum, Isaura...
- Vão sim. Procuram comida e vão visitar outras lesmas.
- Como é que sabes?
- Conheço as lesmas da nossa rua.
- Todas mesmo?
- -Todas.
- E és médica de lesmas?
- Não, mas sei quando não estão bem. São como as pessoas.
- Fazem quê?
- Não visitam os outros.
Vimos o tio Rui chegar de carro e a demorar muito para entrar
em casa. Isso queria dizer ou que ele não queria ainda falar com a
tia Alice, ou que estaara que fôssemos la conversar um bocadinho.
- Vamos ainda cumprimentar o tio Rui.
- Nem penses nisso - o JorgeTemCalma falou.
- E se ele nos ralha?
- Ralhar de quê?
- Não tiraste a caixa dele? - a Isaura quis saber.
- Achas que eu ia mesmo roubar a caixa com restos de
estórias do tio Rui?
A Isaura sorriu devagar parece que ficou contente. O
JorgeTemCalma não entendia mais nada.
- Escreveste a estória? - o tio Rui perguntou, a tirar a carteira
dele do bolso.
- Não foi bem uma estória. Só consegui mesmo escrever uma
espécie de carta.
- Tio Rui - o Jorge TemCalma falou todo nervosinho -, uma
«espécie de carta» é um postal daqueles com selo que nunca
chegam às outras províncias?
- Pode ser
- E postal também entra nesse concurso de Radio?
- Tudo vale. E quando sair o resultado podemos escutar juntos
na minha casa.
- Aceito e levo a minha lesma parada.
- Também acho - gritou o JorgeTemCalma.
Rimos juntos e quase estávamos a ir embora quando o tio Rui
nos deu um dinheiro para irmos comprar gelados na esquina.
- Não houve luz a noite toda. Não devem ter feito gelados, tio
Rui.
- Cala a boca - o JorgeTemCalma só queria ficar com o
cumbú.
- Não faz mal. Vão só. Pode ser que eles tenham ligado o
gerador, se não, compram outra coisa qualquer.
A Isaura chamou o cão AmílcarCãobral que veio connosco a
correr. Ele ia à frente, guloso, como se ele também fosse comer
gelado a saber a leite Pelargon.
- O teu cão sabe o caminho, Isaura?
- Os cães sabem todos os caminhos.
- No mar também sabem?
- Claro que sim.
- Este AmílcarCãobral já foi na piscina aprender a nadar?
- Os cães já sabem nadar quando nascem, Jorge. Não fica só
mais burro do que já és.
Íamos a correr muito, a saltar buracos nos passejos, a desviar
dos carros antigos e abandonados, a
olhar para o céu onde dançava parado um papagaio de papel
que tinha ficado preso na antena de um prédio, a seguir os gritos
do Cãobral que afinal se chamam latidos, fizemos adeus ao
camarada motorista Dez que estava a passar de jipe, atravessámos
a rua bem rápido como a minha Avó sempre diz para não
fazermos e deve ter sido nessa velocidade de rir à toa que o tal
«comporvativo» me caiu do bolso, porque nunca mais vimos esse
papel nem mesmo quando o tio Rui, muitos dias depois, me disse
que queria guardar na caixa dele aquele papel assim da minha
bicicleta sonhada.
Como não havia gelado resolvemos guardar o dinheiro e
voltámos a correr. Acho que isso foi bom porque quando a Isaura
soltou a lesma Senghor da caixa de fósforos ela começou
devagarinho como fazem todas as lesmas, a ir visitar as amigas
dela.
Passámos a tarde juntos, sentados no chão a confirmar que era
verdade o que a Isaura sabia sobre aqueles bichos: os saltos
diferentes dos gafanhotos Samora e Khadafi, as brincadeiras de
cavar do Cãobral, as músicas desafinadas do sapo Fidel que
parecia rir quando na Rádio tocavam músicas cubanas tipo
«guantanamera» e as visitas que a lesma Senghor fez durante a
tarde toda. Só que, para uma lesma, «muitas visitas» são só duas
ou três amigas que ela ia ver acompanhada da baba dela
desenhada no chão de trilhas feitas como pincel molhado.
- Mas abriste a caixa ou não? - era isso que eles queriam saber.
- Abri.
- Tinha letras?
- Bué de letras. E acentos também.
- E acontecia quê?
- Um brilho de magia.
- Com som ou sem som? - a Isaura me atrapalhou com essa
pergunta.
- Fica difícil explicar.
- Também acho - o Jorge TemCalma falou bem devagarinho.
- Era como uma música parada.
- Assim não dá para entender.
-Eu também ainda não entendi, Isaura. Mas a noite quando
olhas as estrelas, podes mesmo explipor aqueles brilhos com
palavras de falar?
- Acho que não - ela também falou devagar no ritmo das
lesmas.
- O pôr do sol com cor amarelo-torrado, explicas?
- Acho que não.
- Banho de bacia com água morna misturada pela tua Avó e
aquecida na cafeteira de chá?
- Não dá pra explicar...
Ficámos só parados a não dizer nada. Mesmo Jorge
TemCalma, que custa para ficar calado, também não falou.
No dia seguinte, à hora combinada, demos encontro na rua.
- Vamos lá no tio Rui. São quase dezoito horas.
- Vamos.
Além do sumo tang de maracujá, a tia Alice tinha preparado
uma coisa espantosa: sanduíche de pão com manteiga só que lá
dentro tinha mesmo posto um pedaço grosso daquele queijo de
capa encarnada.
- E hoje o sumo não é aguado - o tio Rui avisou.
Era verdade, o sumo tava bem doce que até ficava muito
tempo na boca o sabor daquele açúcar assim castanho que usavam
na casa do tio Rui.
Primeiro o rádio custou um pouco para sintonizar mas o tio
Rui juntou o fio da antena à coleção de latas de gasosa que ele
tinha no armário e a voz do locutor até aumentou.
- Tio Rui, esse rádio é bem potente que até apanha rádios de
outros países bem internacionais? - o Jorge TemCalma gostava de
fazer fazer essas perguntas estranhas.
- Apanha sim.
- Também apanha uma coisa chamada voz das américas?
- Não. Aqui em casa não gostamos dessas vozes americanas!
- E rádio da «Julgoeslávia» onde apresentam teatros do tio
Rui? - eu perguntei.
- Pouco barulho masé, está a começar o noticiário - a Isaura
avisou e aproveitou para se servir de mais um copo de sumo tang.
O noticiário começou com discurso do camarada presidente
por causa de um congresso do Partido. Depois vieram as notícias
da guerra, depois makas das fábricas que andavam a não funcionar.
Ainda o locutor falou da falta de luz que ainda não tinham
encontrado uma explicação muito boa, falaram do tal A-Ene-Cê
da África do Sul e do coitado do camarada Mandela que
continuava só preso.
- Ainda deviam soltar o camarada Mandela antes que ele fique
velho e nem vá ao enterro da mãe dele - a Isaura falou.
- Também acho.
Depois das notícias do desporto o locutor já ia despedir
quando se lembrou: «agora a nota espeal sobre o concurso
nacional da melhor estória infantil, cujo primeiro prémio é a
bicicleta com as cores da bandeira nacional...
- Tio Rui, toda hora estou a escutar essa palavra «cujo», mas
isso é o quê então?
- Chiuuu!
Falaram do júri composto não sei quê mais e dos camaradas
professores que já tinham lido a estória.
- Parece que o Sinhozinho Malta - o Jorge TemCalma me
falou no ouvido - está sempre a falar de um camarada «DitoCujo»,
deve ser isso.
Mas eu nem prestei mais atenção. Tinha as mãos nos bolsos,
aflito, a sentir que o meu papel tinha mesmo desaparecido. Acho
que a Isaura entendeu e ficou muito parada a olhar para mim.
- O «comporvativo» não está!
- Diz-se «comprovativo» - a tia Alice me corrigiu.
- Mesmo dizendo «comprovativo», não está! Deve ter caído
do bolso.
Também o tio Rui olhou para mim com pena e depois
paramos de falar para ouvir o resultado final, e quando disseram o
nome do vencedores demos que era uma menina. Uma menina
tinha ganho a bicicleta com as cores da bandeira nacional de
Angola.
Ficámos naqueles silêncios da casa do tio Rui. O meu copo
estava vazio e o do JorgeTemCalma também A minha Avó já
tinha ensinado que eu devia servire os outros primeiro mas eu,
assim triste de não ter ouvido o meu nome, perguntei ao
JorgeTemCalma:
- Não queres sumo, pois não?
Ele engoliu assim um cuspe seco, ainda a olhar para o sumo
bem adocicado, mas disse que não.
De repente parecia que ninguém queria falar comigo, nem
olhar para mim.
- Acho que tinhas razão, Isaura.
- O quê?
- As meninas também gostam muito de bicicletas.
A tia Alice sorriu para mim e entrou na cozinha.
- Agora a surpresa.
Voltou com um gelado enorme, daqueles de halde que não
víamos há muito tempo. Devem ter conseguido esse tanto gelado
na casa de um camarada importante com um gerador que até
aguenta arcas e geleiras.
- Não há bicicleta, mas há gelado.
- Bem fixe, tio Rui - a Isaura tinha os olhos a brilhar.
- É de que esse gelado?
- De múcua - a tia Alice começou a servir todo mundo.
Fazia calor. O tio Rui abriu as janelas da sala.
Do meu lugar, depois de desligarem o rádio, eu conseguia ver
as estrelas. A tristeza me passou rapidamente porque o gelado de
múcua era muito bom.
- Deixa só te perguntar uma coisa - o JorgeTemCalma sempre
bué curioso.
- Diz então.
- O teu envelope que o CamaradaMudo foi lá entregar...
- Sim.
- Tinha mesmo o quê? Uma estória tua?
- Não.
O tio Rui quase parou de comer o gelado dele.
- Então? - a Isaura também ficou curiosa.
- Era um pedido.
- Mas o concurso era de estórias. Por isso é que não ganhámos!
- Nós não ganhámos porque não tínhamos uma boa estória,
Jorge.
- Era pedido tipo quê?
- Era um pedido mesmo. Para o camarada presidente dar
bicicletas a todas as crianças de Angola, mesmo as que não sabem
contar estórias. Como eu...
As estrelas brilhavam mais porque a noite estava escura como
se o mar tivesse molhado todo céu.
- Mas assim não dá - o JorgeTemCalma cruzou os braços. - O
camarada presidente não tem tantas bicicletas na casa dele.
- Era só um modo de falar - acabei o sumo. - Se ele não tem
tantas bicicletas, pode dar uma prenda pequenina a cada um. Não
é, tio Rui?
O tio Rui sorriu e começou, outra vez, a coçar os bigodes.
Da rua, chamaram a Isaura e o JorgeTemCalma, que começou
a comer bem depressa o resto do gelado dele.
- Jorge, tem calma - a tia Alice falou e todos rimos.
A tia Alice foi para a cozinha arrumar as colsas e o tio Rui
acendeu um cigarro. A cara dele, os olhos e as mãos, até o sorriso,
ficaram escondidos atrás do fumo que o cigarro fazia. Parecia
nevoeiro dos filmes a preto e branco.
- Gostas de estrelas?
- Gosto bué, tio Rui. Brilham sem gastar a pilha. Só nunca
consegui entender a cor delas.
- As estrelas não têm cor, são como as pessoas.
- Eu pensei que a cor das pessoas ficava na pele delas.
- Não. A cor das pessoas fica nos olhos de quem as olha...
Ele fumou mais um bocadinho. Olhou as estrelas como se elas
estivessem muito perto, ali, penduradas no quintal dele.
- Então eu posso escolher a cor que eu quero ver, tio?
- Vocês podem.
- Nós quem?
- As crianças.
A tia Alice saiu com o petromax muito fraquinho e subiu para
o quarto dela.
A janela mexeu com um resto de vento que passou pela sala.
O tio Rui coçou os bigodes bem devagarinho e não olhou mais
para mim nessa noite.
Antes de sair da casa dele a cheirar a múcua, fiz só mais duas
perguntas.
- Tio Rui, as estrelas têm dono?
- Têm, sim.
- São de quem?
- São do povo.
Carta encontrada nos arquivos da Rádio Nacional de Angola

Camarada Presidente da República Popular de Angola


esselência
e também ouvi dizer que é um camarada enjenheiro:

Este postal não é a estoria que a Radio Nacional pediu e o


meu nome não vou dizer porque eu quero pedir uma coisa que não
é para mim mas para muitas crianças, mas se o camarada
presidente quizer mesmo assim me dar uma bicicleta com as cores
da bandeira nacional, eu sou o neto da AvóDezanove, é só vir aqui
na minha rua perguntar onde ela mora, eu sou amigo da Isaura (a
dona do Cãobral) e do JorgeTemCalma.
Na nossa rua vive um camarada escritor, o tio Rui, que até
tem textos traduzidos num país internacional da Julgoeslávia, mas
ele é muito honesto e não quis dar nenhuma ideia da cabeça dele,
aliás, do coração, para nós aproveitarmos e ganharmos o concursu
porque isso era enganar os miúdos das outras ruas.
Agora já é tarde e a vela está quaze a acabar e a luz na nossa
rua não vem já tem alguns dias, então quero só pedir no camarada
presidente se pode distribuir umas prendas para todas crianças de
Angola, porque o mundo tem mais adultos que crianças e não é
tão difícil dar só um brinquedo mesmo que pequenino. Aproveito
já para começar a agradecer por todos, principalmente aqui da
minha rua, que também tem um camarada General com um
motorista que agora o nome dele é Dez mas nós já lhe perduamos
do sapo Raúl que ele atrupelou sem querer porque não estava a
ver bem, então isso também podia ser outro pedido, que a luz
viese mais vezes para podermos ver bem a telenovela, mas fica
para outra vez esse pedido.
Boa noite camarada presidente, dorme bem!
A minha Avó está a chamar para ir para a cama, se na tua casa
tem janelas espreita só porque hoje não tem lua mas as estrelas
estão muito bonitas até pensei escrever uma estória com uns
miúdos que gostavam muito de estrelas e misturava isso tudo com
as coisas bem malucas que acontesem aqui na minha rua mas estes
dias não tive nenhuma boa ideia nem consegui escrever a tal
estória boa, então fica mesmo só este postal para quando o
camarada presidente tiver tempo e lembrar de nós todos que
gostamos tanto de bicicletas, tanto rapazes como meninas, porque
a Isaura afinal também gosta, e mesmo uma bicicleta chegava para
nós porque aqui na rua estamos a dividir bem as coisas e até o
camarada escritor tio Rui também ia poder andar de bicicleta mas
só vamos lhe emprestar nos domingos.
Como diz a minha Avó Dezanove, bons sonhos e felis noite,
camarada presidente.
É verdade: desculpa só se este postal tem muitos erros da
ortugrafia, a minha disciplina preferida é educação fizica.

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