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CRIE UMA SEREIA SÓ PARA VOCÊ

Marina Carr

A criança inclinou-se sobre a mesa de fórmica azul e leu o anúncio, seus pequenos dedos
encardidos deixando rastros de caracol sob as palavras – CRIE UMA SEREIA SÓ PARA VOCÊ.
Pasma, a criança olhou para as palavras, leu-as novamente, desta vez com mais cuidado,
devagar. O mesmo. Sob o título havia um desenho a tinta de uma pequeníssima sereia num
aquário redondo, acenando e sorrindo. Atrás dela, um cavalo marinho sorria também. A criança,
encantada com o sorriso da sereia, retribuiu o sorriso e acenou constrangedoramente para a bela
mulher-peixe. Envie 25 centavos, dizia o anúncio, e lhe remeteremos as sementes de sua sereia e
de seu cavalo-marinho. Você as coloca na água e elas crescem e podem até mesmo falar com
você. A criança imaginou-se acordando à noite e indo até o aquário bater um papo com a sereia.
De que falavam as sereias, questionou-se a criança.

* * *

A mãe da criança mexia o feijão numa panela sobre o fogão e suas costas moldadas por
um espartilho preto movimentavam-se em ondas sincronizadas com o movimento da colher. Perto
do fogão, Vó Blaize procurava por algo há muito esquecido. Esticava os dedos acima da cabeça
procurando apanhar alguma coisa no ar. A criança olhou para ela e então a mãe da criança virou-
se para olhar também, ainda mexendo o feijão, de lado agora. Tanto a mãe quanto a criança
viram quando Vó Blaize puxou algum tesouro invisível até o chão. Ela sentiu-se observada e
lançou um rápido sorriso, um dardo de velhas gengivas e língua enrijecida como couro, antes de
retomar aquela expressão de total concentração ao procurar e puxar novamente.
– Vamos acabar com isso, Vó Blaize? – disse a mãe da criança asperamente.
Vó Blaize a ignorou. Esta noite ou amanhã ela terá passado desta para melhor. Quando
começou a agir assim, já estava em declínio. A criança gostava mais dela agora, no momento
antes da partida. A criança imaginava Vó Blaize abrindo uma porta com um fio mágico, uma porta
em algum outro lugar, em qualquer lugar, mas distante daqui.
– Mãe, olhe – disse a criança, erguendo a gravura da sereia. A mãe parou de mexer o
feijão e foi até a criança.
– Ah! Isso – disse ela, dando uma olhada na revista que a criança estava lendo.
– Crie uma sereia só para você – leu a mãe. – Já se viu... –
Sua voz sumiu, pois também ficou encantada com a pequena sereia sorrindo e acenando
do seu aquário.
– Bom, nunca ouvi falar de uma coisa dessa – disse a mãe, meio desanimada, mas ainda
olhando para a sereia.
– Podemos, mãe? – perguntou a criança.
– Podemos o quê?
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– Podemos encomendar uma sereia?
– A gente vai ver. – A mãe suspirou e voltou para o feijão, que estava queimando.

* * *

A mãe da criança estava construindo uma casa no lago dos castelos. Dos fundos do
terreno de sua casa, elas podiam avistar a casa nova. Estava pela metade. A mãe da criança
disse que era um segredo. A criança não deveria contar para ninguém do bando dos
Connemaras, porque eles se perguntariam de onde vinha o dinheiro. O dinheiro foi emprestado de
quatro bancos, a mãe da criança murmurava, e quando seu pai ver essa casa, vai se apaixonar
por ela, principalmente pela sala de música, e vai voltar, para sempre desta vez. Algumas noites,
elas falavam por horas sobre a decoração da casa. – Janelas, janelas por todos os lados –
sussurrava a mãe da criança no escuro. Muitas vezes elas dormiam juntas desde que o pai da
criança se fora. – E teu quarto – sussurrava a mãe da criança – será todo amarelo, com uma pia
amarela e cortina amarela, armário amarelo e carpete amarelo. – A criança não gostava de
amarelo, mas não dizia nada. Queria seu quarto azul e verde, como o quarto de uma sereia. Não
tinha importância; puxaria o azul e verde de um cordão invisível, do mesmo modo que Vó Blaize
fazia, e então a sereia chegaria. Algumas noites a mãe da criança apertava-a tanto junto a si que
não podia respirar. A criança ficava quente e pegajosa quando sua mãe sussurrava embaixo do
acolchoado sobre “aquele filho da mãe” e “depois de tudo que eu fiz por ele” e “é assim que ele
me paga”. A criança tentava colocar a mão fora das cobertas para pegar um pouco de ar fresco e
a mãe da criança a agarrava e a puxava de volta ao escorregadio calor da cama. “Meu
amorzinho”, murmurava a mãe da criança enquanto a criança jazia lá banhada em suor, com a
face úmida da mãe em seu pescoço. A criança abafava um grito. No corredor Vó Blaize cantava
“A canção de ninar dos Connemaras”; estava em outro mundo agora e não falava com ninguém a
não ser consigo mesma até o fim da primavera. A criança ficava lá no escuro, pensando em sua
sereia crescendo no aquário.
Primeiro colocar a água do lago dos palácios numa vasilha Tupperware, então colocar as
sementes de sereia e misturar tudo gentilmente e no dia seguinte uma sereia estaria flutuando de
costas, sorrindo para a criança. E a criança diria: – Olá, pequena sereia. – E a sereia cantaria para
a criança uma canção sobre o mar, sobre castelos e baleias e tartarugas e cidades inteiras e
famílias que viviam lá no fundo do mar. E a criança contaria à sereia tudo sobre a escola e sua
amiga Martina com quem às vezes brincava e sobre aquela vez em que viram um balão no céu e
o perseguiram por horas. A criança lhe falaria sobre Pollonio, a fada que nunca vira, mas sabia
que morava em Mohia Lane. Para tornar as coisas mais interessantes para a sereia, a criança
faria de conta que se encontrava com Pollonio freqüentemente. A criança adormeceu enquanto a
sereia se desvanecia na escuridão à margem do sonho da criança.

* * *
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Vó Blaize jazia na cama lutando com o fantasma de Siracusa. Amparada por
travesseiros, tragando um cachimbo de ópio, rosnava para o fantasma de Siracusa. – Empanturrar
tua pança era tudo que fazia, seu stroinseach! – Ela dá uma outra tragada para se acalmar depois
do esforço. O fantasma de Siracusa era o marido que saíra pela porta um dia – para pegar um
pouco de fresca – e nunca mais voltara. Isso foi há trinta anos. A criança espiou pelo buraco da
fechadura. Ele tinha enviado um cartão postal de Siracusa: “Tempo lindo, céu púrpura quase
todas as noites, venha ver algum dia”. Vó Blaize tinha embrulhado o cartão em plástico e o furava
em intervalos regulares. A criança rolava de rir e batia o nariz na maçaneta da porta.

* * *

A criança comia os doces que eram do irmão doente, e a mãe a mandava para a sala
preta e vermelha. A criança esperava. Depois do que parecia ser uma eternidade, a mãe da
criança aparecia na porta com um cabide de madeira.
– Agora, tire a roupa – dizia a mãe da criança e observava enquanto a criança tirava tudo.
Depois, deitada no sofá com vergões tão grandes como cenouras nas suas pernas, a criança
dormia e sonhava com um homem com um forcado que vivia no fundo do mar. – Quanto tempo? –
sussurrava a criança.
– Logo, logo – respondia o homem com o forcado. A criança acordou com a mãe em pé
olhando para ela. – O que você tem pra me dizer?
– Desculpa, mãe. – Era um ritual antigo entre elas.
– E você não vai fazer isso de novo?
A criança vacilava, olhando para o lado, saboreando a pequena rebelião.
– Vai? – dizia a mãe, soltando uma baforada de raiva que explodia por qualquer motivo.
– Não – a criança aquiescia de má vontade, mas não era suficiente para acalmar a mãe, a
criança podia sentir. A mãe era insuperável nesse estado de espírito e a criança pensava nas
costas gordinhas onde não havia vergões. A criança rendia-se. – Não, nunca mais.
A mãe da criança a pegava em seus braços grossos, ainda jovens. A criança contava a
respiração, vagarosamente, cuidadosamente. Era sincronizada com os passos da mãe nas
escadas. Uma sereia morreria nesta casa, pensou a criança.

* * *

O pai da criança voltou e fazia mágicas, tirando castanhas das orelhas deles e fazendo
moedas estalar. Uma noite ele entrou usando seu grande chapéu azul e sentou o irmão da criança
sobre a mesa de fórmica azul.
– Posso fazer você desaparecer – disse o pai da criança.
O irmão da criança inchou seu pequeno tórax, maravilhado em ser o escolhido. A criança
observava e desejava estar no lugar dele.
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– O único problema é – disse o pai da criança – que você jamais poderá voltar.
O rosto do irmão da criança contraiu-se ao começar a chorar.
– Tudo bem – disse o pai da criança – não vou fazer nada.
O irmão da criança continuou a chorar, envergonhado de estar chorando na frente do pai e
da irmã.
– Tudo bem – disse o pai. – Não vou fazer você desaparecer.
A criança deu um passo à frente.
– Me faça desaparecer – disse a criança.
– Você não vai poder voltar.
– Eu não quero – disse a criança.
O pai da criança estremeceu. – Você é muito jovem para esta mágica.
O pai da criança saiu da sala. A criança pegou a mão do irmão.
– Vamos brincar atrás da casa onde a mãe e o pai não podem ver a gente.
O irmão da criança deixou-se levar para fora da casa, as lágrimas foram esquecidas e a
dignidade infantil voltou. Eles brincaram no buraco de cinzas e beberam água do cano de esgoto
da cozinha. Tinha gosto de nabo e folhas de chá. Eles não foram pegos desta vez.

* * *

Um dia a criança subiu no trator de Sam Morrison com seu irmão e sua mãe e Vó Blaize
que estava lutando consigo mesma em cima da cômoda. O pai da criança a levantou para o trailer
e a colocou no sofá preto. A mãe da criança riu. Usava um vestido novo e uma fivela no espesso
cabelo escuro. Desceram a rua e pararam do lado de fora da nova casa no lago dos palácios. Um
cisne deslizou pelo lago, um peixe saltou, a sereia cantou.
O pai da criança foi embora de novo, no meio da noite, desta vez. A mãe da criança
quebrou a porta de vidro com a cabeça do irmão da criança. A criança contou sua respiração,
aguda e superficial. O irmão olhava para ela enquanto a mãe da criança o segurava para o
médico limpar o ferimento.
– É tão difícil cuidar deles – ela cochicha para o médico. O doutor concorda com a cabeça.
Mais tarde a mãe da criança os leva ao Oásis para as delícias nova-iorquinas. A gelatina era
dourada e azul, da cor do rabo da sereia.

* * *

À noite a criança sonhou que a mãe a estava cozinhando no fogão e a servindo para os
ciganos com pão feito em casa. A criança acordou gritando, a mão pegajosa da mãe fervendo em
cima dela. A criança preferia o pesadelo.

* * *
5
Em baixo, no quarto, Vó Blaize rasga um mapa de Siracusa em mil pedacinhos e os fuma
no cachimbo de ópio. Afunda no Mar da Galiléia.
A mãe da criança senta à janela todas as noites, olhando para o lago dos palácios. A sala
de música está vazia. Bebe uísque e cerveja e beija os filhos. A criança sente vontade de vomitar
com o bafo da mãe. – Qualquer dia destes – sussurra a mãe da criança. – Qualquer dia destes.

* * *

A mãe da criança caminhou lago adentro numa noite calma sem lua. O pai da criança
voltou, para sempre desta vez. Ele caminha furtivamente ao longo do lago com seus velhos olhos
sorrateiros. – Ele urina lágrimas – a criança sussurra para a sereia e as duas riem na casa
silenciosa. Agora o irmão da criança raramente fala e nunca com a criança. Eles trocam olhares
enquanto comem sanduíches de banana sob o olhar descontrolado do pai. Não têm bebido de
canos de esgoto há anos, não juntos pelo menos.

* * *

Quando dragaram o lago dos palácios em busca do corpo da mãe, a criança sentou-se no
juncal, arranhando seu minúsculo violão. Só sabia tocar “My Darling Clementine”. – Dó. Sol
sétima. Dó de novo. – Oh my darling, oh my darling, oh my darling, Clementine, dwelt a miner,
forty-niner, and his daughter Clementine. Light she was and like a fairy and her shoes were
number nine, now she’s gone and lost forever, oh my darling Clementine. – A criança cantou,
arranhando seu minúsculo violão enquanto uma roldana levantava sua mãe no ar, então eles a
baixaram até que ela deslizou pela superfície em direção à criança no juncal. Eles não pararam
até que sua cabeça repousou numa moita de junco, perto da criança. – Oh my darling... – cantou
a criança.
Na visão vantajosa da criança, sua mãe não era diferente da sereia salvo as marcas
deixadas por peixes no braço direito. Eles a experimentaram e a deixaram para as enguias, os
comedores mais sujos de todos. Mas as enguias não tinham tocado nela. Talvez não tivessem
tido tempo ou talvez enguias também tenham seus padrões, pensou a criança. Arranhou seu
violão e desviou o olhar dos frios olhos de garça da mãe.
– Já chega, criança – disse um homem do barco.
A criança cantou mais alto. Este era o funeral real. O caixão fiado, a procissão, os hinos
santarrões, a Missa concelebrada, tudo viria logo, logo. O bando dos Connemaras lá, agarrando-a
com suas garras ferinas e velhas corcundas derrotadas. A criança tossiu para evitar rir da loucura
mhuire strua deles à beira do túmulo. Insistira em usar seu jeans ao invés do traje de veludo preto
que tinham comprado para ela. Nunca a perdoaram por isso. Não era real, nada daquilo era real.
No juncal, arranhando seu minúsculo violão, sua mãe sendo arrastada até ela com um fedor
terrível de ganso e a crueldade da lua, era real.
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* * *

O pai da criança levou a criança e o irmão da criança para a sala de jantar.


– Em memória à sua querida mãe... – disse ele, o ganido ganhando força no fundo de sua
garganta. A criança olhou para ele enojada.
– Em memória à sua querida mãe vou permanecer celibatário por seis meses.
A criança enrubesceu.
– O que é isso – perguntou o irmão da criança.
A criança sabia.
– Não vou dormir com ninguém por seis meses.
A criança saiu correndo da sala. Mais tarde a criança encontrou uma caixa de revistas no
armário do pai. Todas revistas pornográficas de mulheres gordas. A criança as colocou em baixo
da cama dela. Quando procurou por elas novamente, tinham desaparecido. A criança sabia com
quem estavam. Naquela noite arrancou um dos olhos dele num sonho. Na noite seguinte
costurou-o de volta.
Vó Blaize arranca seus dentes, um por um. Coloca-os sobre a cômoda. São macios como
puxa-puxa. A criança chupa um. Tem gosto de tênis velho. A criança o morde com dentes brancos
e fortes como os de cavalo. O dente se parte como uma bala de menta macia. A criança o cospe
no lago dos palácios e mastiga um punhado de grama. Tem gosto de asa de cisne.

* * *

A criança dorme por vinte anos. A sereia que nunca veio há muito já foi esquecida. Um dia,
caminhando pela rua, a criança tira a aliança de casamento da mãe e a joga numa lata de lixo.
Ela desaparece entre velhas lascas de madeira, tocos de cigarro, um cone de sorvete
comido pela metade. A criança vai para casa e dorme.

* * *

A criança está numa piscina. Parece que ela nunca vai alcançar o fundo, então o alcança.
Uma porta de forte se abre com um rangido, um reluzir de barbatanas douradas, a sereia aparece.
– Até que enfim, você veio finalmente – diz a criança.
A sereia sorri, aquele sorriso de anos atrás na mesa de fórmica azul. A criança se prepara
para a descida nas águas. O rabo da sereia ilumina o caminho.

Tradução de Brunilda T. Reichmann


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MARINA CARR
Uma das mais talentosas escritoras irlandesas contemporâneas, Marina Carr nasceu em 1964, em
Tullamore. The Mai recebeu o prêmio de melhor peça no festival de Teatro de Dublin. O conto
“Crie uma sereia só para você” conquistou o Hennessy Prize.

O conto remete aos perigos potenciais engendrados na família. O lar não é um lugar seguro; ele é
um espaço de armadilhas e encarceramento do qual os membros da família não podem escapar
facilmente.

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