Você está na página 1de 12

COLEÇÃO

HERMENÊUTICA, TEORIA DO
DIREITO E ARGUMENTAÇÃO

Coordenador: Lenio Luiz Streck

Francisco José Borges Motta

Ronald Dworkin e
a Decisão Jurídica

2017

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 3 08/12/2016 19:36:33


CAPÍTULO 1

DEMOCRACIA PARA OURIÇOS

1.1 INTERPRETANDO CONCEITOS INTERPRETATIVOS: A


RECONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO DE RONALD DWORKIN A
PARTIR DE JUSTICE FOR HEDGEHOGS

1.1.1 Considerações iniciais


A presente pesquisa tem por objetivo fornecer, tomando por fio
condutor o pensamento de Ronald Dworkin, critérios para a construção de
uma decisão jurídica que seja adequada ao contexto constitucional brasileiro.
A primeira providência, para que possamos dar início a este aprendizado,
é a familiarização com alguns dos conceitos nucleares do pensamento do
jusfilósofo norte-americano. Uma visão de conjunto parece particularmente
importante neste caso. No pensamento de Dworkin, que é original e contrain-
tuitivo em doses parecidas, argumentos aparentemente distintos fornecem,
na verdade, apoio recíproco. Assim, uma visão preliminar do todo favorecerá
o entendimento dos pontos que nos interessam mais proximamente, e sobre
os quais nos debruçaremos ao longo da investigação.
Nossa tarefa foi, de algum modo, facilitada pelo próprio Dworkin: na
abertura de seu abrangente Justice for Hedgehogs1, há uma espécie de road
map de seu pensamento, e é esta a trajetória que percorreremos. Apresen-
taremos, assim, algumas de suas principais teses, conectando-as com seus

1. Justice for Hedgehogs é o penúltimo livro de Dworkin. O último, publicado postumamente, leva o
nome Religion Without God. Um pouco antes de falecer, o autor enviou para a redação do periódico
The New York Review of Books, do qual era um colaborador habitual, um trecho do texto (então)
inédito. Trata-se de um trabalho em que Dworkin visa a, de algum modo, separar Deus da religião
(concebida como um conceito interpretativo). Nas suas palavras, “se nós conseguirmos separar Deus
da religião – se chegarmos ao entendimento a respeito do que o ponto de vista religioso realmente
é e porque ele não requer ou pressupõe uma pessoa sobrenatural –, então nós estaremos em con-
dições de diminuir, ao menos, a temperatura destas batalhas [a saber: da chamada guerra religiosa]
por meio da separação das questões de ciência das questões de valor. As novas guerras religiosas
são agora, realmente, guerras culturais. Elas não tratam de história científica – sobre qual é melhor
descrição do desenvolvimento da espécie humana, por exemplo – mas, mais fundamentalmente,
a respeito do sentido da vida humana e do que significa viver bem” (tradução nossa). DWORKIN,
Ronald. Religion Without God. The New York Review of Books, v. LX, n. 6, abr. 4, 2013, p. 67. Essas
reflexões sobre o sentido da vida humana e sobre o que significa viver bem foram trabalhadas por
Dworkin ao longo de Justice for Hedgehogs e serão investigadas ao longo da presente pesquisa.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 19 08/12/2016 19:36:35


20 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

trabalhos anteriores. Além disso, quando parecer pertinente para os propó-


sitos de nosso estudo, agregaremos algumas observações complementares
aos seus ensinamentos2.

1.1.2 Entre ouriços e raposas: o pluralismo valorativo de Isaiah Berlin


Para começar os trabalhos, é bom recordar que, desde Levando os
Direitos a Sério, Dworkin já defendia que uma teoria geral do direito deveria
ser ao mesmo tempo normativa e conceitual. Normativa no sentido de que
deveria conter uma teoria da legislação, da decisão judicial e da observância/
respeito da lei (ainda que assentadas em uma teoria moral e política mais
geral); conceitual, no sentido de que faria uso da “filosofia da linguagem e,
portanto, também da lógica e da metafísica”3. A ideia central é a de que essas
noções são interdependentes e que não podiam, portanto, ser trabalhadas
separadamente4.
Por assim pensar, ao longo da sua extensa obra, Dworkin foi gradati-
vamente posicionando os argumentos centrais de suas teses num quadro cada
vez mais abrangente do saber. Passou a discutir com cada vez mais interesse,
por exemplo, moralidade, política e filosofia – e nunca de forma comparti-

2. Essa exposição é, creio, o primeiro passo para que possamos nos apropriar das lições de Dworkin
no contexto do Constitucionalismo Contemporâneo em que se insere a experiência brasileira. Aliás,
vale desde já o registro de que, a propósito da construção de uma teoria do direito adequada para
o Brasil, com base na teoria dworkiniana, é necessário consultar a extensa obra de Lenio Streck. Em
especial em Verdade e Consenso, Streck apresenta as bases de uma complexa teoria que se apropria da
parte dita normativa da Teoria do Direito de Dworkin a partir de um olhar filosófico ligado à Filosofia
Hermêutica (Heidegger) e à Hermenêutica Filosófica (Gadamer), adaptando-a para o contexto do
Constitucionalismo Contemporâneo – no qual se insere, veremos, a experiência democrática bra-
sileira. Ver, necessariamente: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e
Teorias Discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
3. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. IX-X.
4. Vale registrar aqui a respeitabilíssima observação de John Finnis a respeito da tentativa dworkiniana
de associar, no âmbito de sua teoria do direito, as dimensões normativa e conceitual. Para Finnis, a
teoria de Dworkin é, fundamentalmente, uma teoria normativa do direito, já que está preocupada em
fornecer orientações ao juiz quanto a seu dever judicial. Por essa razão, Finnis julga que o debate entre
Dworkin e os positivistas (como Hart e Raz) fracassa, já que o interesse teórico destes seria, tão somente
“descrever o que é tratado (isto é, aceito e efetivo) como direito em uma dada época, bem como gerar
conceitos que irão permitir que tais descrições sejam claras e explanatórias, mas sem a pretensão
de fornecer soluções (ou ‘respostas corretas’, ou padrões que iriam, se aplicados apropriadamente,
fornecer respostas corretas) para questões em disputa entre advogados competentes”. FINNIS, John.
Lei Natural e Direitos Naturais. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 34. Retomaremos o célebre debate
Hart-Dworkin, bem como seus desdobramentos teóricos contemporâneos, na sequência do nosso
trabalho. Mas vale adiantar que, de fato, a objeção de Finnis é sustentada pelo próprio Hart no pós-
-escrito que aparece na edição mais recente de O Conceito de Direito – escrito este que somente veio à
luz após a morte do autor, frise-se. Hart insiste, neste texto, que seu projeto era meramente descritivo
e, portanto, moralmente neutro. HART, Herbert. L. A. O Conceito de Direito. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2009, p. 307-56. Dworkin responde à objeção no capítulo 6 de A Justiça de Toga. Em resumo,
o argumento do jusfilósofo norte-americano é o de que uma teoria geral sobre como o direito válido
deve ser identificado não constitui uma descrição neutra da prática jurídica, mas uma interpretação
dela que pretende não apenas descrevê-la, mas também justificá-la. DWORKIN, Ronald. A Justiça de
Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 199-264.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 20 08/12/2016 19:36:35


DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 21

mentada. Sempre esteve marcada em seus textos a propensão de construir


uma teoria que encontrasse certo apoio recíproco entre esses argumentos de
natureza aparentemente distinta. Por exemplo, Dworkin identificou objetivos
políticos na instituição dos direitos5; mapeou princípios morais na base da
comunidade política6; justificou a igualdade com base em princípios éticos7;
propôs que se fizesse uma leitura moral da Constituição norte-americana8;
articulou interpretações filosóficas de conceitos jurídicos. E assim por diante.
Com esse quadro mais geral em vista, Justice for Hedgehogs não chega
a ser uma alteração de rota nessa caminhada, digamos assim, interdisciplinar
que sempre caracterizou o pensamento dworkiniano. A novidade, aqui, é
outra: a tentativa, agora abertamente tematizada, de reivindicar um caráter
de unidade teórica a proposições oriundas de matrizes distintas. E essa
proposta aparece na forma de uma antiga tese filosófica: a tese da unidade
do valor (the unity of value thesis9).
O ponto de partida do livro é uma frase do filósofo grego Arquílo-
co – “The fox knows many things,but the hedgehog knows one big thing” (A
raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa) –, tornada

5. Para Dworkin, um direito político é um objetivo político individuado. DWORKIN, Ronald. Levando os
Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 142.
6. Dworkin defende o ponto de que a comunidade pode ser personificada como um “agente moral”,
querendo dizer com isto que “a comunidade como um todo tem obrigações de imparcialidade
para com seus membros, e que as autoridades se comportam como agentes da comunidade ao
exercerem esta responsabilidade”. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 211-2.
7. A teoria política de Dworkin está assentada no fato de que qualquer governo aceitável deve tratar
os cidadãos sob seu poder como dignos de igual respeito e consideração. A igual consideração é
pré-requisito da legitimidade política, é a virtude soberana da comunidade política. Para defender
esse ponto, o autor recorre à Ética e desenvolve a concepção de uma forma de igualdade material
chamada “igualdade de recursos”, baseada em dois princípios fundamentais do individualismo ético:
o princípio da igual importância (“é importante, de um ponto de vista objetivo, que a vida humana
seja bem-sucedida, em vez de desperdiçada, e isso é igualmente importante, daquele ponto de vista
objetivo, para cada vida humana”) e o princípio da responsabilidade especial (“embora devamos
reconhecer a igual importância objetiva do êxito da vida humana, uma pessoa tem responsabilidade
especial e final por esse sucesso – a pessoa dona de tal vida”). DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana:
a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. I-XV.
8. Trata-se, num resumo bem apertado, de interpretar determinados dispositivos da Constituição
norte-americana (sobretudo a Declaração de Direitos) como referências não a concepções especí-
ficas, mas a princípios morais abstratos, que devem ser incorporados como limites aos poderes do
Estado. DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição Norte-Americana.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 2.
9. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 1. Com relação ao emprego da palavra “valor”, no contexto da obra de
Dworkin, cremos que é pertinente repetir uma observação que Joseph Raz fez com referência ao seu
próprio texto sobre o valor (Valor, Respeito e Apego). Raz reconhece que, ao longo de seu trabalho, faz
um uso “inflacionário” da palavra “valor”, afirmando que toda “propriedade que (necessariamente) torne
boa (ou má) qualquer coisa que a possua é, pelo menos até certo ponto, uma propriedade valorativa,
que representa algum valor”. Contudo – e esse é o ponto que se aplica, pensamos, ao texto de Dworkin
–, pede ao leitor que não se o julgue pela adequação linguística, e sim pelo seu objetivo teórico, que vai
emergindo conforme seu argumento vai se desenvolvendo. RAZ, Joseph. Valor, Respeito e Apego. Martins
Fontes: São Paulo, 2004, p. 41-3.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 21 08/12/2016 19:36:35


22 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

conhecida pelo filósofo moral Isaiah Berlin, que tratou do assunto em 1953,
num ensaio sobre Tolstoi10. Sinteticamente, o objetivo de Berlin, então, foi o
de apresentar o ouriço como um monista, ou seja, como um pensador movido
por uma ideia central, que explica a diversidade do mundo por referência a
um único sistema. Já a raposa, por sua vez, é mostrada como um pensador
pluralista, que entende que a diversidade do mundo, com seus fins vários e
incompatíveis, não autoriza um único sistema explicativo.
Neste contexto, Dworkin, intitulando-se um ouriço, e dando início à
defesa dos seus, anuncia: value is one big thing (o valor é uma grande coisa).
Cabe recapitular, porém. Esse debate com Berlin aparece, antes, em A
Justiça de Toga. Dada a sua importância para a compreensão dos propósitos
de Justice for Hedgehogs, devemos retomá-lo com um pouco mais de vagar.
Com efeito, ao anunciar que as ideias de Berlin estão ganhando
influência, em especial a sua concepção de pluralismo de valores, e com o
objetivo de depois respondê-lo, Dworkin transcreve o seguinte recorte do
pensamento de seu debatedor:

O que fica claro é que os valores podem entrar em conflito. Eles


podem facilmente entrar em conflito no íntimo de um único indi-
víduo. E disso não se conclui que alguns devam ser verdadeiros, e
outros falsos. Tanto a liberdade quanto a igualdade estão entre os
principais objetivos perseguidos pelos seres humanos ao longo de
muitos séculos. Mas a liberdade total para os lobos significa a morte
para os cordeiros. Esses choques de valor constituem a essência do
que eles são e do que nós somos.
Se nos disserem que essas contradições serão resolvidas em algum
mundo perfeito onde todas as coisas boas estarão, em princípio, har-
monizadas entre si, devemos responder aos que nos fazem tal afirma-
ção que os significados por eles atribuídos às palavras que, para nós,
denotam valores conflitantes, não são iguais aos nossos. Se sofreram
alguma transformação, desconhecemos por completo os novos sentidos
que assumiram. A noção do todo perfeito, a solução definitiva na qual
todas as coisas boas coexistem, parece-me não apenas inatingível – o
que constitui um truísmo –, como também conceitualmente incoerente.
Entre os grandes bens, existem alguns que não podem viver juntos.
Trata-se de uma verdade conceitual. Estamos condenados a escolher,
e cada escolha pode significar uma perda irreparável11.

10. O ensaio em questão é referido em nota de revisão da versão brasileira de A Justiça de Toga, publicada
pela WMF Martins Fontes. Trata-se de BERLIN, Isaiah. The Hedgehog and the Fox: an essay on Tolstoi’s
view of history. Elephant Paperbacks, Chicago, 1993. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010, p. 150.
11. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 149-50. Vale dizer
que a passagem transcrita por Dworkin – e aqui reproduzida –, está no livro The Crooked Timber of
Humanity: chapters in history of ideas, obra que reúne oito ensaios de Isaiah Berlin.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 22 08/12/2016 19:36:35


DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 23

Ainda, Dworkin aponta que Berlin retomou esse tema, em ensaio


posterior, “de modo mais ameaçador”12. Berlin teria reconhecido que a atração
por um todo perfeito seria, apesar de falsa, duradoura e importante. Por outro
lado, avalia-a perigosa, recomendando que não se ceda a esse impulso, por
ele considerado sintoma de uma “imaturidade moral e política igualmente
profunda e perigosa”13.
Fixemo-nos nos argumentos mobilizados por Dworkin para contestar
Berlin. Isso, cremos, aplainará o terreno para que cheguemos bem a Justice
for Hedgehogs.
O primeiro passo é apontar que não só esse ideal holístico condenado
por Berlin pode ser perigoso: também o pluralismo pode ser mal empregado.
Se é verdade que tiranos podem, de fato, justificar crimes “recorrendo à ideia
de que todos os valores morais e políticos se unem em uma visão harmoniosa,
de importância tão transcendental que o assassinato se justifica quando está
a seu serviço”, não é menos verdadeiro dizer que “outros crimes morais têm
sido justificados pela atração pela ideia oposta, a de que os valores políticos
importantes entram necessariamente em conflito”, de modo que “não se
pode defender nenhuma escolha entre eles como a única escolha correta e
que os sacrifícios em algumas das coisas que nos são caras são, portanto,
inevitáveis”14. Ou seja, há perigos em ambos os lados.
Depois, Dworkin chega ao ponto. O destaque dado a Berlin decorre
do fato de que este não é apenas mais um autor pós-moderno, que crê serem
os valores meras criações sociais ou reações subjetivas. Pelo contrário: Berlin
– como Dworkin – acreditava que os valores são, de fato, objetivos. O que o
distingue é a circunstância de, apesar disto, defender que existem conflitos
insolúveis entre os valores verdadeiros. Não é que as pessoas divirjam sobre
o que é verdadeiro; é que haveria um conflito intrínseco quanto à veracidade
destas questões15.
Trazendo essa temática para o âmbito da teoria política, Berlin
identificaria, com efeito, um conflito efetivo entre os valores igualdade e
liberdade, por exemplo, na decisão a respeito de uma eventual tributação dos
ricos para dar mais dinheiro aos pobres. A promoção da igualdade (social),
nesse caso, viria com a violação da liberdade de alguns (de fazerem o que
bem entendessem com o seu dinheiro). O contrário (promoção da liberdade
mediante a não tributação) também seria verdadeiro: liberdade promovida
ao custo da igualdade. De acordo com o raciocínio de Berlin, ambos os

12. Justamente, o ensaio acima referido, sobre Tolstoi (vide a nota 22). DWORKIN, Ronald. A Justiça de
Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150.
13. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.
14. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 150-1.
15. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 152-3.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 23 08/12/2016 19:36:35


24 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

valores são autênticos e, em si, inconciliáveis, de modo que a comunidade


política cometerá um erro moral qualquer que seja a decisão que resolva
tomar. Nesse sentido, sendo as coisas como são, ela não deve definir se vai
ser injusta com algum grupo, mas qual grupo tratará injustamente16.
Dworkin explica que o argumento de Berlin é coerente com suas
premissas. Para Berlin, a liberdade é a ausência de interferência alheia na
realização de qualquer coisa que pretendamos fazer. Se for assim, realmente,
a liberdade do lobo é a morte do cordeiro. Por certo que a liberdade, assim
concebida, entrará muitas vezes em conflito com outros compromissos –
notadamente, com aqueles de caráter igualitário17. Contudo, objeta Dworkin,
uma concepção alternativa das exigências da liberdade (por exemplo, com-
preendida como a liberdade de fazer o que se quer na medida em que se
respeitem os direitos morais das outras pessoas) não a levaria, necessariamente,
a conflitar com a igualdade. Vale dizer, a definição do conceito correto de
liberdade não é uma questão meramente semântica ou empírica, mas sim de
filosofia moral e política substantiva. Em linguagem dworkiniana, trata-se
de decidir a melhor maneira de compreender o valor da liberdade18.
E essa empresa – que Dworkin retoma, com fôlego, em Justice for
Hedgehogs – ocorre, em primeiro lugar, a partir de uma concordância inicial
abstrata com os principais valores políticos – igualdade, liberdade, demo-
cracia etc. –, para, depois, chegar à discussão a respeito do que esses valores
realmente são, ou seja: precisamos descrevê-los mostrando o que há de bom
neles, a fim de que percebamos que qualquer transigência com tais valores
não é apenas inconveniente, mas sim nociva19. Com esse aprimoramento
conceitual – que nos leva a enxergar, caso a caso, a importância especial do
valor em questão –, devemos descobrir se as ações que a concepção sugerida
define como violações de liberdade são realmente nocivas ou erradas. Caso
contrário – se um Estado não age mal com nenhum cidadão quando, de
acordo com a definição proposta, viola sua liberdade (por exemplo, quando
impede a “liberdade” de uma pessoa matar a outra) –, a concepção sugerida
será inadequada20.
O ponto aqui anunciado por Dworkin – e que, esperamos, ficará mais
claro na sequência deste trabalho –, em resumo, é a sua crença de que, de
algum modo, os valores liberais dominantes possam estar ligados da maneira
certa21. De que maneira, porém? É o que veremos a seguir.

16. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 154-5.
17. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 159.
18. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 160-1.
19. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 162-3.
20. DWORKIN, Ronald. A Justiça de Toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 163.
21. Não há como deixar de registrar o caráter obviamente controverso da proposta dworkiniana. Costas
Douzinas, por exemplo, para citar apenas este, afirma que a “esperança de Dworkin” de que o direito

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 24 08/12/2016 19:36:35


DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 25

1.1.3 A tese da unidade do valor


Como dito acima, Dworkin avalia que é muito fácil formular
definições de valores políticos como liberdade, igualdade, democracia e
justiça que acabem conflitando entre si. O difícil é demonstrar por quais
razões nós deveríamos aceitar essas definições. Dworkin sugere que não as
aceitemos – pelo menos não assim, tão facilmente. E que nos engajemos
na tarefa de formular concepções que unifiquem, de alguma forma, esses
valores políticos importantes, preservando-os naquilo que há de bom em
cada um deles. A intenção é que a liberdade, bem compreendida, não
conflite com a igualdade. Que a melhor interpretação do que seja a de-
mocracia, por exemplo, seja harmônica e coerente com a melhor definição
do que seja a justiça.
É dessa ambiciosa empreitada que trata a tese da unidade do valor, na
visão apresentada por Dworkin. E o ponto de partida não poderia ser mais
generalizante: o autor não se limita a tratar de valores e conceitos políticos
e jurídicos. Avançando para um campo bem mais familiar à filosofia moral
do que ao direito, o autor norte-americano começa seu Justice for Hedgehogs
afirmando que as verdades a respeito das noções de bem viver, de ser bom,
ou do que é maravilhoso, são não só coerentes, mas também se apoiam
reciprocamente. Isto é, o que pensamos a respeito de qualquer uma dessas
coisas pode aparecer como um argumento decisivo em qualquer discussão
sobre as demais. Há harmonia e não conflito. Seguindo essa linha, Dworkin
visa a ilustrar a unidade entre os valores morais e éticos: descreve uma teoria
sobre o que é viver bem (Ética) e sobre aquilo que, se quisermos viver bem,
nós devemos fazer e deixar de fazer pelos outros (Moral)22.

possa funcionar como uma “rede sem emendas” representa “a maior ilusão liberal”. Segundo Dou-
zinas (e reproduzimos aqui suas observações porque, cremos, sejam uma boa síntese do que se
critica no pensamento dworkiniano), a lei “pode ser fechada e o ordenamento simbólico completo
somente se um significante-mestre adicional existir fora do conjunto, além do Nome-do-Pai. Um
significante que, por estar fora do simbólico, pode atuar como a garantia última da completude da
lei e permitir que o campo se feche”. DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos. São Leopoldo:
Unisinos, 2009, p. 333-4. Como se vê, Douzinas afirma que o projeto dworkiniano somente teria
sucesso caso se validasse o argumento jurídico mediante o recurso a algum elemento externo –
do contrário, parece sugerir o pensador grego, haveria apenas circularidade. O ponto de Dworkin,
contudo, é outro, como se verá ao longo da nossa pesquisa: para ele, a verdade do valor é inde-
pendente da verdade nos demais domínios do conhecimento. O tema é abordado em Justice for
Hedgehogs sob o nome de a independência metafísica do valor, algo que Dworkin defende a partir
do que chama de o princípio de Hume. Esses pontos serão abordados, em seu tempo devido, ao
longo do presente escrito.
22. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press
of Harvard University Press, 2011, p. 1. Dworkin elabora uma metáfora para ilustrar essa distinção
traçada entre moral e ética. O autor imagina pessoas nadando em pistas separadas de uma piscina,
que podem trocar de pista para auxiliar os outros nadadores, porém não para machucá-los. A moral,
neste sentido, definiria as pistas que separam os nadadores; e estipularia quando alguém deve trocar
de pista para ajudar os outros nadadores e em que condições seria proibida a troca de pistas. A ética
estaria ocupada em definir o que é nadar bem em sua própria pista. DWORKIN, Ronald. Justice for
Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011,
p. 371.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 25 08/12/2016 19:36:36


26 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

A ideia central, como se vê, é a de que os valores morais e éticos


dependem uns dos outros. E para defender esse argumento, Dworkin parte
do ponto de que a responsabilidade intelectual a respeito do valor é, em
si, um valor importante, o que o leva a discutir temas tão (aparentemente)
diversos como a metafísica do valor, o caráter da verdade, a natureza da
interpretação, as condições genuínas de acordo e discordância, o fenômeno
da responsabilidade moral, o problema do livre-arbítrio e mais outros tantos
assuntos que dizem respeito às teorias ética, moral e jurídica23.
Pois bem. Como dito alhures, o principal propósito desse tópico
inicial é fazer uma espécie de apresentação de algumas das principais teses
dworkinianas expostas ao longo de sua trajetória – e sintetizadas em Justice
for Hedgehogs. E a melhor maneira de fazê-lo, parece-nos, é seguir a ordem
proposta pelo próprio Dworkin, no riquíssimo sumário que abre seu livro.
É claro que não se trata de uma tradução do texto original (em que pese o
recurso à tradução seja útil, frequente e, em certo sentido, inevitável); trata-se,
isso sim, de fornecer as balizas minimamente necessárias para a compreen-
são da contribuição dworkiniana ao pensamento jurídico contemporâneo.
Veremos, pois, a partir de agora, a que correspondem a justiça e os
demais conceitos que lhe são correlatos (igualdade, liberdade, democracia e
direito), passando pelos problemas da interpretação, da verdade e do valor,
até que cheguemos ao aspecto, para Dworkin, fundamental: como devemos
viver para realizar a unidade do valor.

1.1.4 Justiça

Igualdade24.
Dworkin acredita que nenhum governo é legítimo sem que endosse
dois princípios. Primeiro, deve demonstrar igual interesse pelas pessoas
que estão sob o seu domínio25; segundo, deve respeitar a responsabilidade
e o direito dessas pessoas de eleger o que é valioso para si mesmas. Esses
princípios devem guiar uma teoria aceitável de justiça distributiva26, já que

23. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 1-2.
24. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 2-4.
25. Dworkin presume que “todos aceitamos os seguintes postulados da moral política. O governo deve
tratar aqueles a quem governa com consideração, isto é, como seres humanos capazes de sofri-
mento e de frustração e com respeito, isto é, como seres humanos capazes de formar concepções
inteligentes sobre o modo como suas vidas são vividas, e de agir de acordo com elas”. DWORKIN,
Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 419.
26. Não há como não lembrar, aqui, do célebre princípio da diferença de John Rawls – um autor frequen-
temente presente (e por vezes expressamente tematizado, como ocorre no capítulo 9 de Justiça de

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 26 08/12/2016 19:36:36


DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 27

não há distribuição politicamente neutra. Assim, qualquer distribuição deve


ser justificada pela demonstração de atendimento aos princípios de igual
consideração e de respeito pela responsabilidade individual.
Para a ilustração desse argumento, Dworkin retoma a metáfora de um
leilão inicial de todos os recursos disponíveis, do qual todos participassem
com o mesmo número de fichas27. O leilão deve terminar numa situação
na qual ninguém inveje o pacote de recursos adquirido pelo outro (não im-
porta quanto tempo dure o leilão, e nem quantas vezes deva ser refeito até
que se chegue a esse resultado). Depois, segue-se um novo leilão, no qual
os participantes constroem e escolhem apólices de seguro compreensivas,
pagando o prêmio estabelecido pelo mercado para cada uma das coberturas
escolhidas. Esse leilão não elimina as consequências da boa ou má sorte,
mas torna as pessoas responsáveis pelo seu próprio gerenciamento de risco.
Vale notar que Dworkin é um crítico severo da estrutura econômica
presente na maioria dos países ricos, entre eles, os Estados Unidos da América.
E é esse gap entre a teoria e a política que faz com que os autores recorram
a exercícios contrafáticos (do véu da ignorância de Rawls até o leilão inicial
do próprio Dworkin) para a definição do que a justiça requer, em termos de
igual consideração e respeito28. Curiosamente, o autor aponta que as teorias
de justiça distributiva quase sempre demandam por uma reforma radical
das comunidades capitalistas nas quais elas próprias são desenvolvidas e
estudadas, o que faz com que soem artificiais e autoindulgentes. Ainda
assim, devem demonstrar os passos mínimos que devemos tomar, aqui e
agora, na direção certa29.
Lembramos, por exemplo, que em A Virtude Soberana Dworkin che-
gou a propor a estruturação de um sistema de saúde pública universal com

Toga) no contexto das reflexões de Dworkin. Segundo Michael Sandel, a teoria da justiça de Rawls é a
“proposta mais convincente de uma sociedade equânime já produzida pela filosofia política americana”.
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012,
p. 204. Quanto ao princípio da diferença, cuida-se, em resumo, de um princípio regulatório das desi-
gualdades sociais e econômicas, a partir do qual somente se poderiam permitir desigualdades sociais
e econômicas que visassem ao benefício dos membros menos favorecidos da sociedade. SANDEL,
Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 189.
27. Em A Virtude Soberana a metáfora do leilão aparece na construção do conceito da “igualdade de
recursos”, uma teoria geral da igualdade distributiva que afirma que se tratam as pessoas como iguais
quando se “distribui ou transfere de modo que nenhuma transferência adicional possa deixar mais
iguais suas parcelas do total de recursos”, DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática
da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5.
28. Remetemos o leitor, a propósito, ao ponto VI do capítulo 3 de A Virtude Soberana, denominado, não
por acaso, De volta ao mundo real, na qual o autor desenvolve aquilo que ele denomina de uma
teoria do aprimoramento, cujo objetivo é fornecer parâmetros concretos para que se reduza o déficit
de equidade. DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 221-35.
29. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 351-2.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 27 08/12/2016 19:36:36


28 RONALD DWORKIN E A DECISÃO JURÍDICA

base nessa metáfora do leilão30; a ideia era calcular, com base nela, o limite
da cobertura que seria razoável admitir que as pessoas fossem procurar –
sem que abrissem mão, portanto, de todos os fundos que seriam úteis para
o custeio de outros interesses importantes em suas vidas.
Conclusivamente, a teoria da igualdade de recursos, aqui retomada
por Dworkin, presume que nós tratamos as pessoas com igual considera-
ção quando permitimos que cada um desenhe a sua própria vida, ciente de
que suas escolhas terão, dentre outras consequências, um impacto na sua
própria riqueza. Contudo, é crucial para esse entendimento que o caráter e
o grau desse impacto reflitam o efeito que suas escolhas têm nas fortunas
dos outros, quer dizer: o custo aos outros, em oportunidades perdidas para
si mesmos, das várias decisões que ele fez31.

Liberdade32.
A justiça precisa de uma teoria da liberdade tanto quanto precisa de
uma teoria da igualdade de recursos. Não raro, como já se disse, identifica-se
um conflito entre essas duas noções. Dworkin formula uma teoria na qual,
supõe, esse perigo seria eliminado. Para tanto, o autor traça uma distinção
muito sutil entre dois conceitos: your freedom, que é simplesmente a sua
habilidade de fazer qualquer coisa sem que o Estado o impeça, e your liberty
que é aquela parte da liberdade que o Estado estaria errado em restringir33.
A tese é a de que não haveria nenhum direito geral à liberdade (freedom),
mas sim direitos à liberdade (rights to liberty). Nesse sentido, esses direitos à
liberdade não estão assentados num direito geral de liberdade, mas em bases
distintas. Por exemplo, o direito à independência ética decorre do princí-
pio da responsabilidade pessoal – e não, portanto, de um direito geral de
liberdade. Ainda, as pessoas têm direito – aí incluído o direito à liberdade
de expressão – que são imposições de um direito mais geral de governar
suas próprias vidas, que também deriva da responsabilidade pessoal. E têm
direitos, inclusive o direito ao devido processo legal, que decorrem do direito
à igual consideração e respeito.

30. DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 5.
31. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 363.
32. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 4
33. Essa sutil distinção – de difícil tradução – entre your freedom e your liberty remete ao conceito dworki-
niano de having a right. Segundo o autor, ter direito no sentido “forte” (having a right) significa que
os outros não devem interferir numa (determinada) ação; ou seja, significa que seria errado interferir
com a realização daquela ação ou, pelo menos, que necessitamos de razões especiais para justificar
qualquer interferência. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p. 289-91. A liberty seria um direito nesse sentido forte – e, portanto, mesmo preexistente ao Estado.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 28 08/12/2016 19:36:36


DEMOCRACIA PARA OURIÇOS 29

Note-se: no limite, os princípios justificadores dos direitos à liberdade


são os mesmos que fundamentam o direito à igualdade, ou seja, igual consi-
deração e respeito e responsabilidade individual. Ambos estão imbricados,
adianta-se, com princípios éticos (princípios de dignidade, dirá Dworkin,
com base em Kant), que a seguir serão abordados.
O ponto defendido por Dworkin aqui é: não há um conflito efetivo
entre igualdade e liberdade porque esses conceitos estão fortemente inte-
grados. São interdependentes. Não se pode determinar o que a liberdade
requer sem também decidir qual distribuição da propriedade demonstra
igual consideração por todos. Assim, uma teoria da liberdade que está desta
forma envolvida numa moralidade política muito mais abrangente, não pode
conflitar com a igualdade34.
Dworkin ainda delimita duas concepções distintas de liberdade: liber-
dade positiva e liberdade negativa. A primeira remete ao ponto de que, se as
decisões do governo são coercitivas, então as pessoas devem poder desempenhar
um papel na formulação dessas decisões, ou seja, de que o governo legítimo
deva ser autogoverno. A segunda, apela para o fato de que as pessoas devem
ser livres de qualquer ordem de coerção em algumas de suas próprias decisões
e atividades. Segundo o autor, ambas as dimensões do conceito de liberdade
acima descritas devem integrar uma teoria da liberdade. As pessoas devem
ter responsabilidades por suas vidas, e essas responsabilidades somente são
compatíveis com a coerção governamental quando determinadas condições
estão satisfeitas. Primeiro, todos devem poder participar, da maneira correta,
nas decisões coletivas que digam respeito às suas vidas; segundo, todos devem
ficar isentos de qualquer coerção nos assuntos em que a sua responsabilidade
pessoal exija a tomada de decisões individuais35.
Neste tópico, Dworkin retoma incidentalmente seu debate com Ber-
lin, para quem essas duas modalidades de liberdade (positiva e negativa)
necessariamente conflitariam. É que, para Berlin, liberdade “irrestrita” (li-
berdade como freedom) e liberdade negativa seriam coextensivas, de modo
que qualquer limitação à primeira implicaria uma invasão à segunda36. Não

34. Em O Direito da Liberdade, Dworkin já adiantava essa concepção de que a liberdade, de alguma
forma, é interdependente da igualdade (do direito à igual consideração e respeito), nestes termos:
“o Estado deve tratar todas as pessoas sujeitas a seu domínio como dotadas do mesmo status
moral e político; deve tentar, de boa-fé, tratar a todas com a mesma consideração (equal concern); e
deve respeitar todas e quaisquer liberdades individuais que forem indispensáveis para esses fins”.
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição Norte-Americana. São
Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10-1.
35. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts, London: The Belknap Press of
Harvard University Press, 2011, p. 365.
36. Dworkin chama a atenção para o fato de que não apenas Berlin, mas também Hart e Mill, endossam
essa concepção de liberdade. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge, Massachusetts,
London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2011, p. 367.

Hermeneutica v3 -Motta-Ronald Dworkin e a Decisao Juridica-1ed.indd 29 08/12/2016 19:36:36

Você também pode gostar