Você está na página 1de 12

T E O R I A DO DIREITO

Fernando Rabello

93

A INTERPRETAÇÃO EM
RONALD DWORKIN
RONALD DWORKIN’S VIEWS ON INTERPRETATION
Carlos Henrique Generoso Costa

RESUMO ABSTRACT
Debate a teoria de Ronald Dworkin no que tange à estrutura do The author discusses Ronald Dworkin’s theory concerning the
ordenamento jurídico e sua interpretação. frame of the legal order and its interpretation.
Propõe a interpretação construtiva, que deve constituir a melhor He suggests a constructive interpretation of what should
justificativa das práticas jurídicas, por meio da interpretação pro­ constitute the best justification of legal practices by means of
porcionada pelo princípio da integridade no romance em cadeia. the interpretation provided by the principle of integrity within
chain novel.
PALAVRAS-CHAVE
Teoria do Direito; integridade; princípio; regra; Política; Roman­ KEYWORDS
ce em Cadeia; Hércules. Law Theory; integrity; principle; rule; Politics; chain novel;
Hercules.

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


1 INTRODUÇÃO vencional de regras estabelecidas pelo intencionais tomadas por pessoas que
Para Ronald Dworkin (2003), o poder legislativo ou por outra autoridade planejam, por meio dessas decisões,
Direito constitui espada, escudo e amea­ legalmente investida. imputar na comunidade uma obediência
ça, sendo o nosso soberano, abstrato e Nesse sentido, direcionará a sua críti­ geral, com base nas suas próprias deci­
etéreo. Entretanto, tal poder coercitivo ca à perspectiva positivista defendida por sões, em meio a uma sociedade que é
estatal nos chega por um mero sussurro, Herbert L.A. Hart1, demonstrando que a complexa. Ou seja, o positivismo rejeita a
conforme prefacia em sua obra, O impé- práxis jurídica é mais complexa do que existência de outros direitos além dos ex­
rio do Direito, o autor explica e discuti­ um emaranhado de regras, em que o pressamente determinados pela coleção
mos os seus decretos, mesmo quando juiz possui ampla discricionariedade para de regras explícitas (DWORKIN, 2002).
os livros que supostamente registram decidir questões controvertidas e, nesse O utilitarismo econômico [...] con-
suas instruções e determinações nada caso, criar o Direito. cebe os indivíduos como átomos auto-
dizem; agimos, então, como se a lei Para Dworkin (2003), não há criação interessados da sociedade, em vez de
apenas houvesse sussurrado sua ordem, do Direito pelos magistrados, mas cons­ seres inerentemente sociais, cujo sentido
muito baixinho para ser ouvida com ni- trução do Direito pelas partes mediante de comunidade é uma parte essencial
tidez. Somos súditos do império do di- os princípios, portanto abandona o mar­ de seu próprio sentido de identidade.
reito, vassalos de seus métodos e ideais, co teórico, a perspectiva unilateral das (DWORKIN, 2002, p. 13). O utilitarismo
subjugados em espírito enquanto discu- regras, conforme defendia o positivismo. econômico rejeita qualquer decisão que
timos o que portanto fazer (DWORKIN, O convencionalismo mostra-se fa­ não atenda ao bem estar geral da co­
2003, p. 10). lho quando não é capaz de explicar o munidade em detrimento do indivíduo
(DWORKIN, 2002).
Para Dworkin (2003), não há criação do Direito pelos Dworkin (2002) estabelece uma
teoria alternativa, pelo princípio da inte­
magistrados, mas construção do Direito pelas partes gridade, que se preocupa como os indi­
mediante os princípios, portanto abandona o marco teórico, víduos podem ter outros direitos, além
dos criados de uma decisão ou prática
a perspectiva unilateral das regras, conforme
expressa. Como se pode ter direito ao
defendia o positivismo. reconhecimento judicial de uma prer­
94 rogativa quando não existem decisões
Ainda que seja escudo e ameaça o traço dominante nas decisões judiciais, judiciais ou práticas sociais inequívocas
comando do Direito nos chega por um em casos denominados por Dworkin de que conferem decisão em favor dessa
nítido sussurro, dessa forma, o Direito “difíceis”, sobretudo, quando a força de perspectiva.
não impede que debatamos as suas uma lei ou de uma decisão anterior é A integridade pressupõe a equidade
normas, muito pelo contrário, temos a problemática. Para isso o autor cunha o ou equanimidade2, justiça3 e devido pro­
liberdade exatamente para discutir o que princípio da integridade como alternativa cesso legal adjetivo4. Conforme determi­
fazer com a autonomia moral. ao positivismo e ao pragmatismo. na José Emílio Medauar Ommati (2004),
Assim, pretendemos utilizar do racio­ Nesse sentido, expressa Dworkin podemos afirmar que tais princípios po­
cínio jurídico proposto, uma vez que o críticas quanto ao positivismo e a toda e deriam ser entendidos como igualdade e
debate jurídico é o exercício de interpre­ qualquer forma de utilitarismo: O posi- liberdade que, por si, proporcionariam o
tação construtiva, que constitui a melhor tivismo jurídico pressupõe que o direito projeto político de integridade com base
justificativa de nossas práticas jurídicas, é criado por práticas sociais ou decisões no modelo de sociedade calcado nos
tornando-as o mais correta possível. institucionais explícitas; rejeita idéia mais princípios mencionados. Nas palavras
Para tal, as ideias de integridade, co­ obscura e romântica de que a legislação do professor: Aqui, algumas palavras
munidade de princípios, Hércules, prin­ pode ser o produto de uma vontade devem ser ditas sobre a tradução bra-
cípios, diretrizes políticas, entre outras geral ou da vontade de uma pessoa sileira da obra de Dworkin. Quando o
questões levantadas por Dworkin, serão jurídica. O utilitarismo econômico é autor americano faz referência à inte-
examinadas, com o fito de negar toda e igualmente individualista, ainda que gridade e fala dos princípios de justiça,
qualquer forma de discricionariedade judi­ apenas até certo ponto. Fixa o objetivo certeza do Direito (que também pode
cial na construção do que Dworkin (2003) de bem-estar médio ou geral como o ser entendido como respeito às regras
chama da melhor resposta possível. padrão de justiça para a legislação, mas do jogo) e devido processo, o autor,
define o bem-estar geral como uma para falar da certeza do Direito utiliza
2 A Integridade na legislação e função do bem-estar de indivíduos dis- o termo em inglês fairness. A tradução
aplicação do Direito tintos e se opõe firmemente à idéia de brasileira desse termo entendeu fairness
Dworkin (2003) irá empreender que, enquanto entidade separada, uma como eqüidade, o que é equivocado.
todo o seu trabalho em uma crítica ao comunidade tem algum interesse ou De fato, o termo é de difícil tradução.
positivismo jurídico e a existência ou não prerrogativa independente (DWORKIN, Fairness pode significar várias coisas:
da discricionariedade judicial. Discorda o 2002, p. 12). correção, equanimidade, justeza. Esses
autor norte-americano quanto ao orde­ O direito na perspectiva convencio­ significados são, digamos assim, mais
namento jurídico ser um conjunto con­ nal é produto de decisões deliberadas e rebuscados. Mas, em um sentido mais

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


pobre, e entendo que esse é o utilizado por Dworkin, significa Afirma Dworkin, [...] que uma sociedade política que aceita
também certeza, no caso, do Direito, ou respeito às regras do a integridade como virtude política se transforma, desse
jogo. (OMMATI, 2004, p. 78). modo, em uma forma especial de comunidade, especial
Deste modo, tais ideais exigem [...] que o governo tenha num sentido que promove sua autoridade moral para as-
uma só voz e aja de modo coerente e fundamentado em prin- sumir e mobilizar monopólio de força coercitiva. Este não é
cípios com todos os seus cidadãos, para estender a cada um o único argumento em favor da integridade, ou a única con-
os padrões fundamentais de justiça e eqüidade que usa para sequência de reconhecê-la que poderia ser valorizada pelos
alguns. (DWORKIIN, 2003, p. 201). A integridade da concep- cidadãos. A integridade protege contra a parcialidade, a
ção de equidade5 de uma comunidade exige que os princípios fraude ou outras formas de corrupção oficial, por exemplo.
políticos necessários para justificar a suposta autoridade da [...]
legislatura sejam plenamente aplicados ao se decidir o que A integridade também contribui para a eficiência do direito
significa uma lei por ela sancionada. A integridade da con- no sentido que já assinalamos aqui. Se as pessoas aceitam
cepção de justiça de uma comunidade exige que os princípios que são governadas não apenas por regras explícitas, estabe-
morais necessários para justificar a substância das decisões de lecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por
seu legislativo sejam reconhecidos pelo resto do direito. A in- quaisquer outras regras que decorrem dos princípios que essas
tegridade de sua concepção de devido processo legal adjetivo decisões pressupõem, então o conjunto de normas públicas
insiste em que sejam totalmente obedecidos os procedimen- reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à
tos previstos nos julgamentos e que se consideram alcançar medida que as pessoas se tornem mais sofisticadas em per-
o correto equilíbrio entre exatidão e eficiência na aplicação de ceber e explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas
algum aspecto do direito, levando-se em conta as diferenças circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da le-
de tipo e grau de danos morais que impõe um falso veredi- gislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis pontos
to. Essas diferentes exigências justificam o compromisso com de conflito. Esse processo é menos eficiente, sem dúvida, quan-
a coerência de princípio valorizada por si mesma. Sugerem do as pessoas divergem, como é inevitável que às vezes acon-
aquilo que sustentarei: que a integridade, mais que qualquer teça, sobre quais princípios são de fato assumidos pelas regras
superstição de elegância, é a vida do direito tal qual o co- explícitas e por outras normas de sua comunidade. Contudo,
nhecemos (DWORKIN, 2003, p. 203) (Grifo nosso). uma comunidade que aceite a integridade tem um veículo
A integridade constitui ideal político quando exigimos do para a transformação orgânica, mesmo que este nem sem-
Estado ou da comunidade que ajam como agentes morais atra­ pre seja totalmente eficaz, que de outra forma sem dúvida 95
vés do conjunto único e coerente de princípios, ainda que os não teria (DWORKIN, 2003, p. 228-229) (Grifo nosso).
cidadãos estejam divididos quanto aos princípios da justiça e
equanimidade (DWORKIN, 2003). Dworkin (2003) entende que a integridade na
Dworkin ainda divide a integridade em dois outros prin­
cípios que são: a integridade na legislação, [...] que pede aos atividade jurisdicional fomenta a integridade
que criam o direito por legislação que o mantenham coerente política, que supõe a personificação da
quanto aos princípios. (DWORKIN, 2003, p. 203) e a integri­ comunidade como um todo, que se engaja nos
dade no julgamento ou aplicação do direito, quando se está
diante de um caso concreto, ela [...] pede aos responsáveis por princípios da equidade, justiça e devido
decidir o que é a lei, que a vejam e façam cumprir como sendo processo legal adjetivo.
coerente nesse sentido. (DWORKIN, 2003, p. 203).
Dworkin (2003) entende que a integridade na atividade É por isso que Dworkin (2003) entende que somos os res­
jurisdicional fomenta a integridade política, que supõe a per­ ponsáveis e os autores das decisões políticas, uma vez que esse
sonificação da comunidade como um todo, que se engaja nos ideal impreterivelmente clama pela integridade, pois o cidadão
princípios da equidade, justiça e devido processo legal adjetivo. não pode se considerar autor de uma norma ou conjunto de
A integridade política personifica a comunidade de uma for­ leis incoerentes. A integridade convoca que cada cidadão assu­
ma atuante, já que pressupõe que ela pode adotar, expressar e ma a sua posição política: A integridade expande e aprofunda o
ser fiel ou infiel aos princípios próprios. Isso significa o modo papel que os cidadãos podem desempenhar individualmente
como uma comunidade adota ou abandona um princípio, o para desenvolver as normas públicas de sua comunidade, pois
que fará parte da sua própria elaboração do direito como inte­ exige que tratem as relações entre si mesmos com se estas fos-
gridade, bem como, da sua própria responsabilidade coletiva6. sem regidas de modo característico, e não espasmódico, por
Há que se compartilhar o paradigma em que cada ponto de essas normas. Se as pessoas entendessem a legislação formal
vista deve ter voz no processo de deliberação, mas essa decisão apenas como uma questão de soluções negociadas para pro-
coletiva deve fundar-se em algum princípio coerente, já que [...] blemas específicos, sem nenhum compromisso subjacente com
a comunidade como um todo, e não apenas as autoridades nenhuma concepção pública mais fundamental de justiça, elas
individualmente consideradas, deva atuar de acordo com prin- estabeleceriam uma nítida distinção entre dois tipos de embate
cípios. (DWORKIN, 2003, p. 224). com seus concidadãos: os que pertencem à esfera de alguma
Deste modo, para se defender o princípio legislativo da inte­ decisão política do passado e os que lhes são extrínsecos. A
gridade, devemos entender que a argumentação deve conside­ integridade, pelo contrário, insiste em que cada cidadão
rar a comunidade como um agente moral (DWORKIN, 2003). deve aceitar as exigências que lhes são feitas e pode fazer

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


exigências aos outros, que compar- 3 Princípios, Regras e Diretrizes pessoas para a prisão, tiramos dinheiro
tilham e ampliam a dimensão moral Políticas delas, ou as levamos a fazer coisas que
de quaisquer decisões políticas explí- Os juristas por vezes lidam com não desejam fazer, e, para justificar tudo
citas. A integridade, portanto, promove problemas em que não há consenso no isso, dizemos que essas pessoas infrin-
a união da vida moral e política dos modo de se proceder, sobretudo, quan­ giram a lei, deixaram de cumprir suas
cidadãos: pede ao bom cidadão, ao de- do se está diante de uma lei em que obrigações jurídicas ou interferiram nos
cidir como tratar seu vizinho quando os não se está preocupado com a sua efi­ direitos jurídicos de outras pessoas.
interesses de ambos entram em conflito, cácia, mas com o fairness. A controvérsia [...]
que interprete a organização comum da pode se dar pela discussão do que são Podemos sentir que o que estamos
justiça à qual estão comprometidos em princípios e o que significa aplicá-los fazendo é correto, mas, enquanto não
virtude da cidadania (DWORKIN, 2003, (DWORKIN, 2002). identificamos os princípios que estamos
p. 230) (Grifo nosso). Quando lidamos com questões téc­ seguindo, não podemos estar certos que
eles são suficientes, ou se os estamos
A diretriz política estabelece um objetivo estatal a se alcançar aplicando conscientemente (DWORKIN,
2002, p. 24-25) (Grifo nosso).
no âmbito econômico, social, entre outros. Já o princípio
Dworkin (2002) denomina de “nomi­
representa a tradição compartilhada por uma comunidade de nalistas” os juristas que não problemati­
princípios. zam tais questões, que entendem que a
maneira de resolver os problemas é os
A teoria da integridade proporcio­ nicas, devemos analisar as leis escritas, ignorando, e propõe a necessidade de ex­
na o liame entre o público e o privado as decisões judiciais, de forma a extrair por que tais práticas constituem um erro,
infundindo o espírito de uma em outra a doutrina jurídica dessas fontes oficiais, e esse é o cerne do problema, justamente
a que propicia a mudança orgânica, com fulcro nos princípios que têm sido a dificuldade de assumir esse erro.
uma vez que a concepção de direito abandonados na interpretação do Direito Dworkin, ao lançar críticas à teoria
deve oferecer uma justificativa para o em benefício das diretrizes políticas. de H.L.A. Hart, afirma que, quando os
poder coercitivo do Estado. Afirma o autor: Podemos argumentar juristas debatem a respeito dos direitos
Daí atribuir-se a legitimidade a um (como fizeram alguns autores) que a e obrigações jurídicas, sobretudo, nos ca­
96
Estado somente se a sua estrutura e as lei será economicamente mais eficiente sos difíceis, [...] eles recorrem a padrões
suas práticas constitucionais forem de tal se os juízes forem autorizados a levar que não funcionam como regras, mas
forma que os cidadãos tenham obrigação em conta o impacto econômico de suas operam diferentemente, como princí-
geral de obedecer apenas às decisões po­ decisões; isso, porém, não responderá à pios, políticas e outros tipos de padrões.
líticas que pretendam impor deveres. questão de saber se é justo que eles pro- (DWORKIN, 2002, p. 36).
A integridade proporciona-nos o ar­ cedam assim, ou se podemos considerar Ante um caso concreto, o magistrado
gumento em favor do próprio direito que critérios econômicos como parte do di- encontra-se, por vezes, diante de uma re­
a considera fundamental, uma vez que reito existente, ou se decisões com base gra, um princípio ou uma diretriz política.
tal concepção deve explicar porque mo­ no impacto econômico têm, por essa Eis os sentidos atribuídos: Denomino
tivo o direito é autoridade de legitimar a razão, um maior ou menor peso moral. “política” aquele tipo de padrão que
sua própria coerção, de tal forma: Nossas Suponhamos que um juiz esteja persua­ estabelece um objetivo a ser alcança-
reivindicações de integridade estão, des- dido, por exemplo, de que a indústria do, em geral uma melhoria em algum
se modo, ligadas a nosso projeto prin- automobilística prosperará se ele rejeitar aspecto econômico, político ou social da
cipal: o de encontrar uma concepção uma regra antiga e inventar uma nova comunidade (ainda que certos objetivos
atraente do direito. (DWORKIN, 2003, p. que a beneficie e que a economia em sejam negativos pelo fato de estipula-
232-233). geral se beneficiará se isso ocorrer com rem que algum estado atual deve ser
Assim, o autor proclama os princípios a indústria automobilística. Essa é uma protegido contra mudanças adversas).
da integridade na legislação e a aplicação boa razão para mudar a regra? Não po- Denomino “princípio” um padrão
do direito como mecanismos que funda­ demos decidir esse tipo de questão por que deve ser observado, não porque
mentam e limitam a atuação coercitiva do meio de uma análise que associe meios vá promover ou assegurar uma situa-
Estado em uma determinada sociedade, a fins (DWORKIN, 2002, p. 11). ção econômica, política ou social con-
para isso Dworkin entende que a comu­ De tal forma, abandonaríamos os siderada desejável, mas porque é uma
nidade ideal é a formada por princípios. princípios e concederíamos aos magis­ exigência de justiça ou eqüidade ou
Desta forma, Dworkin (2002) ofe­ trados o poder discricionário para de­ alguma outra dimensão da moralidade
recerá uma alternativa ao analisar que a terminar as nossas vidas, ainda que sem (DWORKIN, 2002, p. 36) (Grifo nosso).
decisão judicial pode estar baseada em fundamentação. Dworkin (2002) deno­ A diretriz política estabelece um ob­
argumentos de política7 e argumentos minará a necessidade de fundamentação jetivo estatal a se alcançar no âmbito eco­
de princípio, optando pelo último como e da análise dos princípios de uma co­ nômico, social, entre outros. Já o princí­
o compatível com a democracia e a co­ munidade de “leitura moral do Direito”, pio representa a tradição compartilhada
munidade de princípios em manifesto usando o exemplo do Direito Penal: [...] por uma comunidade de princípios.
repúdio ao ativismo judicial. através do uso da força, mandamos Dworkin, também traz a distinção

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


entre princípios e regras jurídicas: A diferença entre princípios selecionadas entre os padrões extrajurídicos, fossem tais
jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois con- que justificassem uma mudança ou reinterpretarão radical
juntos de padrões apontam para decisões particulares acerca até mesmo da regra mais arraigada (DWORKIN, 2002, p.60)
da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distin- (Grifo nosso).
guem-se quanto à natureza da orientação oferecem. As regras Os princípios constituem o norte da interpretação, sendo
são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos limites ao alvedrio estatal, portanto, os magistrados não pos­
que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso suem discricionariedade na escolha de um ou outro princípio,
a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, segundo as suas convicções pessoais, mas no sentido de que os
e neste caso em nada contribui para a decisão (DWORKIN, princípios são padrões obrigatórios para as autoridades públicas
2002, p. 39) (Grifo nosso). de uma comunidade. Assinala Dworkin: argumentei que princí-
Um princípio enuncia uma razão que nos conduz ao argu­ pios, como os que mencionei, entram em conflito e interagem
mento em certa direção, ainda que existam outros princípios, uns com os outros, de modo que cada princípio relevante para
regras ou diretrizes políticas, e quando eles não regularem o um problema jurídico particular fornece uma razão em favor
caso ou os seus argumentos forem frágeis, o princípio será de­ de uma determinada solução, mas não a estipula. O homem
cisivo. Se o princípio for relevante, deverá ser levado em conta que deve decidir uma questão vê-se, portanto, diante da exi-
pelas autoridades públicas como razão a nos inclinar para uma gência de avaliar todos esses princípios conflitantes e antagô-
direção (DWORKIN, 2002). nicos que incidem sobre ela e chegar a um veredicto a partir
Os princípios possuem uma dimensão de importância re­ desses princípios, em vez de identificar um dentre eles como
flexiva superior às regras, e, em caso de aplicação de princípios “válido” (DWORKIN, 2002, p. 114).
diferentes, devemos levar em consideração a força relativa de De tal forma, apenas diante de uma situação jurídica con­
cada um, pois a controvérsia faz parte na aplicação e escolha do creta, poderemos saber qual o princípio aplicável, como aquele
princípio adequado ao caso (DWORKIN, 2002). Nesse ponto, que melhor se adapta a solução do caso e que serve de base
os princípios diferem das regras: Se duas regras entram em para as instituições e leis da comunidade.
conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber Para o positivismo jurídico, nas hipóteses em que o juiz não
qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformula- possua uma regra clara, estabelecida a priori por uma institui­
da, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão ção, ele goza de um poder discricionário para decidir o caso de
além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular uma maneira ou de outra. Dessa forma, a sua decisão é redigida
esses conflitos através de outras regras, que dão precedência de forma a parecer que uma das partes possuía o direito pree­ 97
à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra xistente de ganhar a causa (DWORKIN, 2002).
promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou
outra coisa desse gênero (DWORKIN, 2002, p. 43). [...] apenas diante de uma situação jurídica
Ao aceitarmos que um princípio é obrigatório para os juízes, concreta, poderemos saber qual o princípio
de forma que se o magistrado não adotá-lo incorrerá em erro,
aplicável, como aquele que melhor se adapta a
uma vez que, se for adequada a sua aplicação a um caso con­
creto, não será possível abandoná-lo, ante a ausência de toda ou solução do caso e que serve de base para as
qualquer tipo de discricionariedade judicial (DWORKIN, 2002).8 instituições e leis da comunidade.
Conforme Dworkin, tal como o espaço vazio no centro
de uma rosca, o poder discricionário não existe a não ser Para Dworkin (2002), naquela situação encampada pelo
como espaço vazio, circundado por uma faixa de restrições. positivismo jurídico, o juiz legisla novos direitos e os aplica
(DWORKIN, 2002, p. 51). retroativamente. Ocorre que ele tem o dever de descobrir os
Arremata Dworkin, quanto à negativa da discricionariedade direitos das partes, mas não de inventá-los, já que os juízes não
judicial, que se os tribunais tivessem poder discricionário para são legisladores delegados. Nesse mister, é preciso reforçar os
modificar as regras estabelecidas, essas regras certamente não argumentos de princípio e política: Os argumentos de política
seriam obrigatórias para eles e, dessa foram, não haveria direi- justificam uma decisão política, mostrando que a decisão
to nos termos do modelo positivista. (DWORKIN, 2002, p. 59). fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunida-
Existem padrões obrigatórios para os juízes, estruturados de como um todo. O argumento em favor de um subsídio
por princípios, que, em certas ocasiões, justificam a modifica­ para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção
ção da decisão judicial: Porém, não é qualquer princípio que irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política.
pode ser invocado para justificar a mudança; caso contrário, Os argumentos de princípio justificam uma decisão políti-
nenhuma regra estaria a salvo. É preciso que existam alguns ca, mostrando que a decisão respeita ou garante o direito
princípios com importância e outros sem importância e é preci- de um indivíduo ou de um grupo. O argumento em favor
so que existam alguns princípios mais importantes que outros. das leis contra a discriminação, aquele segundo o qual uma
Esse critério não pode depender das preferências pessoais minoria tem direito à igualdade de consideração e respeito,
do juiz, selecionadas em meio a um mar de padrões ex- é uma argumentação de princípio (DWORKIN, 2002, p. 129)
trajurídicos respeitáveis, cada um deles podendo ser, em (Grifo nosso).
princípio, elegível. Se fosse assim, não poderíamos afirmar Entende Dworkin (2002) que as decisões sobre políticas
a obrigatoriedade de regra alguma. Já que, nesse caso, devem-se operar pelo processo político criado para oferecer a
sempre poderíamos imaginar um juiz cujas preferências, expressão exata dos diversos interesses que devem ser levados

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


em consideração. O sistema político da cidadãos têm direito e não um objetivo, identificados ou declarados. Também
democracia representativa, por vezes, pois os cidadãos têm direito a essa liber- não presume que esses outros direitos
pode funcionar com indiferença nesse dade por uma questão de moralidade e deveres estejam condicionados à sua
aspecto, mas funciona melhor do que política, e que o aumento de produção aprovação integral e sincera de tal siste-
no sistema que permite aos juízes não de material bélico é um objetivo e não ma; essas obrigações decorrem do fato
eleitos estabelecer os interesses concor­ um direito, pois contribui para o bem histórico de sua comunidade ter adota-
rentes em uma sala de audiências. estar coletivo, mas nenhum fabricante do esse sistema, que é então especial
Dworkin estabelece o conceito de específico tem uma prerrogativa a um para ela, e não da presunção de que ele
princípio ao referir-se ao argumento de contrato governamental. Isso, porém, o teria escolhido se a opção tivesse sido
política: O primeiro é menos relevante não melhora nossa compreensão, pois inteiramente sua. Em resumo, cada um
quando um tribunal julga um princípio, o conceito de prerrogativa antes utili- aceita a integridade política como um
pois um argumento de princípio nem za, do que explica o conceito de direito ideal político distinto, e trata a aceitação
sempre se fundamenta em pressupos- (DWORKIN, 2002, p. 142). geral desse ideal, mesmo entre pessoas
tos sobre a natureza e a intensidade Um objetivo político ou diretriz polí­ que de outra forma estariam em desa-
dos diferentes interesses e necessidades tica constitui justificação política genérica, cordo sobre a moral política, como um
distribuídos por toda a comunidade. Ao já o direito político é o objetivo político dos componentes da comunidade políti-
contrário, um argumento de princípio individualizado, a meta [...] é um objeti- ca (DWORKIN, 2003, p. 254-255).
estipula alguma vantagem apresenta- vo político não individuado, isto é, um A comunidade de princípios coadu­
da por quem reivindica o direito que estado de coisas cuja especificação não na com a sociedade pluralista esculpida
o argumento descreve uma vantagem requer a concessão de nenhuma opor- pelo paradigma do Estado democrático
cuja natureza torna irrelevantes as tunidade particular, nenhum recurso ou de Direito em que cada cidadão respeita
sutis discriminações de qualquer argu- liberdade para indivíduos determinados os princípios vigentes na sua comuni­
mento de política que a ela se pudesse (DWORKIN, 2002, p. 143). dade. Na política estamos juntos para
opor. Assim um juiz que não é pressio- Essa distinção é imperiosa, pois melhor ou pior, ou seja, a política [...]
nado pelas demandas da maioria polí- Dworkin elenca como paradigma de co­ é mantida pela legislação que rege a
tica, que gostaria de ver seus interesses munidade9, a dos princípios, que exige prestação jurisdicional e sua aplicação.
protegidos pelo direito, encontra-se, uma compreensão compartilhada, uma (DWORKIN, 2003, p. 257).
98 portanto, em uma melhor posição para vez que as pessoas estão fortemente Nesse paradigma, há uma comu­
avaliar o argumento (DWORKIN, 2002, ligadas aceitando que são governadas nidade justa calcada em princípios que
p. 134) (Grifo nosso). por princípios comuns e não por regras satisfazem as condições da própria co­
munidade, o Direito será escolhido, alte­
A integridade não deve ser vista apenas como decidir casos rado, desenvolvido e interpretado de um
semelhantes da mesma forma, mas exige que as normas modo global com fulcro nos princípios.

sejam criadas e vistas com o escopo de expressar o sistema 4 O Romance em cadeia


único e coerente de justiça [...] A integridade constitui a chave para a
melhor interpretação construtiva das práti­
O argumento de princípio leva a con­ criadas por um acordo político. A políti­ cas jurídicas, bem como o modo com que
siderar sob uma nova luz a reinvidicação ca, para essas pessoas, é uma arena de os juízes decidem os casos difíceis tendo
das partes mitigando a margem discricio­ debates sobre quais princípios a comu- por fulcro a integridade na legislação e de­
nária judicial, já que as restrições institu­ nidade deve adotar como sistema, que liberação judicial (DWORKIN, 2003).
cionais perduram até a decisão judicial, concepção deve ter de justiça, equidade O princípio da integridade na legis­
pois o argumento de princípio oferece e justo processo legal e não a imagem lação restringe o que os nossos legislado­
uma justificativa para a decisão particular, diferente, apropriada a outros modelos, res possam fazer ao elaborar as normas
de forma que haja coerência na aplicação na qual cada pessoa tenta fazer valer públicas. O princípio da integridade na
do princípio: Os argumentos de princípio suas convicções no mais vasto territó- deliberação judicial requer que os apli­
são argumentos destinados a estabele- rio de poder ou de regras possível. Os cadores do direito respeitem o ordena­
cer um direito individual; os argumentos membros de uma sociedade de princí- mento jurídico como conjunto coerente
de política são argumentos destinados pio admitem que seus direitos e deveres de princípios e, deste modo, descubra
a estabelecer um objetivo coletivo. Os políticos não se esgotam nas decisões normas implícitas entre as demais nor­
princípios são proposições que descre- particulares tomada por suas instituições mas jurídicas (DWORKIN, 2003).
vem direitos; as políticas são proposi- políticas, mas dependem, em termos Nesse âmbito normativo, Dworkin
ções que descrevem objetivos, e qual mais gerais, do sistema de princípios que (2003) entende que para o magistrado
a diferença? É difícil fornecer alguma essas decisões pressupõem e endossam. que aceitar a integridade, perceberá os
definição que não incorra em petição Assim, cada membro aceita que os ou- direitos genuínos dos litigantes. Os seus
de princípio. Parece natural dizer, por tros têm direitos, e que ele tem deveres atos e assuntos são decididos com base
exemplo, que a liberdade de expressão que decorrem desse sistema, ainda que na melhor concepção das normas ela­
é um direito e não um objetivo, pois os estes nunca tenham sido formalmente borada pela comunidade, em uma dada

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


época histórica. A integridade exige que essas normas sejam de que lei é lei e o cinismo do novo realismo, de forma que,
coerentes, como se o Estado tivesse uma única voz, a da comu­ quando um juiz declara que um determinado princípio está
nidade corporificada. imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação
A integridade não deve ser vista apenas como decidir casos ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afir-
semelhantes da mesma forma, mas exige que as normas sejam mação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim
criadas e vistas com o escopo de expressar o sistema único e uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma
coerente de justiça (DWORKIN, 2003). parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma
Nessa perspectiva, uma instituição que aceite esse ideal às maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerên-
vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das deci- cia de princípio que a integridade requer. O otimismo do direi-
sões anteriores, em busca da fidelidade aos princípios conce- to é, nesse sentido, conceitual; as declarações do direito são
bidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo. permanente construtivas, em virtude de sua própria natureza.
(DWORKIN, 2003, p. 264) 10. Esse otimismo pode estar deslocado: a prática jurídica pode
O princípio legislativo da integridade determina que o legis­ determinar por não ceder a nada além de uma interpretação
lativo proteja os direitos morais e políticos de todos, de tal ma­ profundamente cética. Mas isso não é inevitável somente por-
neira que as normas expressem um sistema coerente de justiça que a história de uma comunidade é feita de grande conflitos
e equidade (DWORKIN, 2003). e transformações. Uma interpretação imaginativa pode ser
A integridade determina ao magistrado que identifique os elaborada sobre terreno moralmente complicado, ou mesmo
direitos e deveres legais criados pela comunidade personificada, ambíguo (DWORKIN, 2003, p. 274-275).
de forma que, [...] as proposições jurídicas são verdadeiras se
constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade Hércules, quando estiver diante de um caso
e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação
construtiva da prática jurídica da comunidade. (DWORKIN,
concreto, deve elaborar uma teoria acerca das
2003, p. 272). decisões e princípios que circundam o caso, a
O direito como integridade é tanto o produto da interpreta­
fim de buscar o melhor argumento possível a
ção abrangente da prática jurídica como fonte de inspiração. O
programa que chega ao magistrado que está diante de um caso justificar a sua decisão.
difícil é contingente e interpretativo. Na leitura da integridade o
direito determina que continuem interpretando o material que Os magistrados são autores e críticos, no que Dworkin 99
está diante dele. (2003) denomina de “romance em cadeia”, eles introduzem
Desta forma, de curial importância é o papel da história no acréscimos na tradição que interpretam, por isso, podemos en­
direito como integridade: A integridade não exige coerência de contrar terreno fértil entre a literatura e o direito ao se criar o
princípio em todas as etapas históricas do direito de uma co- gênero literário do romance em cadeia.
munidade; não exige que os juízes tentem entender as leis que Para realizar tal façanha, imagine-se um grupo de roman­
aplicam como uma continuidade de princípio com o direito de cistas que se propõe a escrever um romance em série, e cada
um século antes, já em desuso, ou mesmo de uma geração romancista da cadeia interpretará os capítulos anteriores para
anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizontal do escrever o capítulo posterior. Tal capítulo será acrescentado pelo
que vertical ao longo de toda a gama de normas jurídicas que romancista seguinte e assim sucessivamente.
a comunidade agora faz vigorar. Insiste em que o direito – os Cada romancista deve escrever o capítulo de forma que seja
direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas criado da melhor maneira possível, assim a complexidade ine­
no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a rente a essa tarefa representa a complexidade de se decidir um
coerção – contém não apenas o limitado conteúdo explícito caso difícil à luz do direito como integridade.
dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o sis- O romancista criará um único romance a partir do material
tema de princípios necessários a sua justificativa. A história é que recebeu, do que ele próprio recebeu e acrescentou, bem
importante porque esse sistema de princípios deve justificar como daquilo que os seus sucessores na trama serão capazes
tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores de acrescentar. Ele deve criar o melhor romance possível como
(DWORKIN, 2003, p. 274). se fosse a obra de um só autor, mas que é produto de várias
A interpretação do direito utilizando-se da integridade e do mãos (DWORKIN, 2003).
passado só irá acontecer quando o seu enfoque contemporâ­ Essa tarefa hercúlea do escritor exigirá uma avaliação geral
neo assim o determinar. Não se busca recuperar na atualidade de sua parte ou várias avaliações na medida em que reescreve.
os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro os Ao adotar um ponto de vista que vai se formando aos poucos,
criaram. deve trabalhar elementos como personagens, trama, gênero
A história pretende justificar o que se fez em uma pers­ ele deve determinar o que considera como continuidade e não
pectiva digna de ser contada hoje, pois [...] a história que traz como começo. Conforme Dworkin: Se for um bom crítico, seu
consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual modo de lidar com essas questões será complicado e multifa-
pode ser organizada e justificada por princípios suficientemen- cetado, pois o valor de um bom romance não pode ser apre-
te atraentes para oferecer um futuro honrado (DWORKIN, endido a partir de uma única perspectiva. Vai tentar encontrar
2003, p. 274). níveis e correntes de sentido, em vez de um único e exaustivo
A integridade abandona o mecanismo do ponto de vista tema. (DWORKIN, 2003, p. 277).

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


Para atingir tal desiderato devemos acrescenta seu próprio capítulo, guiado interminável) ao tentar elaborar uma
distinguir: a dimensão da adequação pela interpretação pela qual optou. Ao interpretação que se ajuste ao conjunto
e a dimensão do ajuste, ou a compati­ começar a escrever, ele poderia des- do que você considera, no texto, como
bilidade com o material que lhe foram cobrir naquilo que escreveu uma inter- mais fundamental do ponto de vista ar-
entregues (DWORKIN, 2003) (CHAMON pretação diferente, talvez radicalmen- tístico. Mais de uma interpretação pode
JUNIOR, 2006), ou seja, nessa tarefa, [...] te diferente (DWORKIN, 2003, p. 279). sobreviver a essa prova mais branda.
Hércules vai alcançar as interpretações Questão interessante que Dworkin Para escolher entre elas, você deve se
a priori aceitáveis para o caso concreto (2003) aborda é a seguinte: a opinião voltar para suas convicções estéticas de
(CHAMON JUNIOR, 2006, p. 54). sobre a melhor maneira de interpretar e base, inclusive para aquelas que con-
A dimensão da adequação determi­ dar continuidade ao romance em cadeia sidera formais. É possível que inclusive
na que não se pode adotar uma interpre­ é uma opinião livre ou forçada? A respos- para aquelas que considera formais. É
tação, ainda que, pela sua complexidade, ta é bastante simples: nenhuma dessas possível que nenhuma interpretação so-
com diferentes leituras de personagem, duas descrições incipientes – de total breviva, mesmo a essa prova mais ate-
trama e objetivos que essa interpretação liberdade criativa ou coerção mecânica nuada. Esta é a possibilidade cética que
descreve. do texto – dá conta de sua situação, pois mencionei há pouco: você terminará,
A adequação não significa que a cada um deve, em certo sentido, sofrer então, por abandonar o projeto, rejei-
interpretação deve-se ajustar a cada seg­ ressalvas em decorrência da outra. Você tando sua tarefa por considerá-la impos-
mento do texto, não o desqualifica se sentirá liberdade de criação ao compa- sível. Mas não pode saber de antemão
algumas linhas ou tropos são acidentais, rar sua tarefa com outra, relativamente que vai chegar a esse resultado cético.
ou mesmo que alguns elementos da tra­ mais mecânica, com a tradução direta Primeiro, é preciso tentar. A fantasia do
ma são erros, pois, para Dworkin (2003) de um texto em língua estrangeira. Mas romance em cadeia será útil de diversas
a interpretação deve fluir ao longo de vai sentir-se reprimido ao compará-la a maneiras nesse último argumento, mas
todo o texto e será mal sucedida se dei­ uma tarefa relativamente menos diri- essa é a lição mais importante que tem
xar sem explicações partes estruturantes gida, como começar a escrever um ro- a ensinar. A sábia opinião de que ne-
do texto. Se o romancista não encontrar mance (DWORKIN, 2003, p. 281). nhuma interpretação poderia ser melhor
interpretação que não possua falhas ele O intérprete deve basear as suas opi­ deve ser conquistada e defendida como
não terá cumprido a sua tarefa. niões naquilo que lhe parece certo, na qualquer outro argumento interpretativo
100 Caso sua interpretação não seja com­ medida em que decide se uma interpre­ (DWORKIN, 2003, p. 284-285).
patível com o material que lhe foi entre­ tação é apropriada, se ela se ajusta ao eixo Para Dworkin (2003), o intérprete que
gue, Dworkin nos oferece uma resposta do romance em cadeia tornando-o mais pretende ser um romancista nessa cadeia
radical, [...] deve abandonar o projeto, atraente. Deste modo, [...] não se está su- terá muitas decisões difíceis a tomar, des­
pois a consequencia de adotar a atitu- jeito a coerção, já que nenhuma opinião sa forma, diferentes romancistas tomarão
de interpretativa com relação ao texto poderá ser constrangida, salvo fatos ex- decisões diferentes, mas as suas decisões
em questão será, então, uma peça de ternos e irredutíveis que todos estejam de devem estar vinculadas ao romance em
ceticismo interno: nada pode ser consi- acordo (DWORKIN, 2003, p. 282). execução que lhe foi entregue.
derado como continuação do romance: A interpretação do ponto de vista
é sempre um novo começo (DWORKIN, do escritor e a coerção que ele sofre são 5 Hércules e os casos difíceis
2003, p. 278). de tais formas incontroversas que todos Adotando-se o direito como integri­
Nesse sentido, o intérprete pode sentem essa mesma força que o autor vi­ dade, caberá ao magistrado se conside­
achar que nenhuma interpretação iso­ vencia, já que tal interpretação se dá pelo rar como um autor na cadeia, de forma
lada se ajusta ao conjunto do texto, mas romance em cadeia e constitui a obra de que os casos decididos por outros juízes,
que mais de uma se encaixa. A segunda um único autor. Imprescindíveis as colo­ ainda que não sejam exatamente iguais
dimensão da interpretação exige do intér­ cações de Dworkin, no que concerne a ao seu, tratam de problemas afins, e,
prete o julgamento das possíveis interpre­ vinculação do intérprete ao eixo interpre­ deste modo, deve considerar aquelas
tações e qual delas se ajustam melhor à tativo: Ainda que cada um dos romancis- decisões como parte de uma longa his­
obra em desenvolvimento, depois de ob­ tas anteriores da cadeia assumisse suas tória que ele deve interpretar e continuar
servados todas as perspectivas da questão responsabilidades de maneira bastante (DWORKIN, 2003).
(DWORKIN, 2003). séria, o texto deveria mostrar as marcas A decisão do magistrado deve ser
Somente quando nenhuma das de sua história, e você teria de adaptar extraída da interpretação que ao mesmo
duas dimensões for desqualificada é que seu estilo de interpretação a essa cir- tempo se adapte aos fatos anteriores e
podemos mostrar o texto sob a sua me­ cunstância. Poderia não encontrar uma os justifique, até onde seja possível, para
lhor luz, o que permite uma integração interpretação que fluísse ao longo do realizar tal façanha Ronald Dworkin criará
mais interessante de estilo e conteúdo. texto, que se adequasse a tudo aquilo um jurista imaginário: No direito, porém,
Ressalta Dworkin: também não pode- que o material que lhe deram conside- a exemplo do que ocorre na literatura, a
mos estabelecer uma distinção muito ra importante. Você deve diminuir suas interação entre adequação e justificação
nítida entre a etapa em que um roman- pretensões (como talvez o façam os é complexa. Assim como, num romance
cista em cadeia interpreta o texto que escritores conscienciosos que participam em cadeia, a interpretação representa
lhe foi entregue e a etapa em que ele da equipe de autores de uma novela para cada intérprete um delicado equi-

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


líbrio entre diferentes tipos de atitudes literárias e artísticas, em selecionar as diversas hipóteses que correspondem a melhor in­
direito é um delicado equilíbrio entre convicções políticas de di- terpretação dos casos precedentes afirmando o direito como in­
versos tipos; tanto no direito quanto na literatura, estas devem tegridade que é estruturado pelo conjunto coerente de princípios
ser suficientemente afins, ainda que distintas, para permitirem sobre a justiça, equidade e devido processo legal em respeito a
um juízo geral que troque o sucesso de uma interpretação própria comunidade de princípios (DWORKIN, 2003).
sobre um tipo de critério por seu fracasso sobre outro. Devo A força gravitacional do precedente, como relato de uma
tentar expor essa complexa estrutura da interpretação jurídica, decisão anterior e enquanto fragmento da história oferece ra­
e para tanto utilizarei um juiz imaginário, de capacidade e pa- zões para se decidir outros casos de maneira similar no futuro.
ciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade Dworkin entende que para: [...] limitar a força gravitacional das
(DWORKIN, 2003, p. 287). decisões anteriores à extensão dos argumentos de princípio
Esse juiz imaginário denominado de “Hércules” deverá emi­ necessários para justificar tais decisões. Se se considerasse que
tir juízos e lidar com tensões ao decidir um grande número de uma decisão anterior estivesse totalmente justificada por al-
casos. O direito como integridade pressupõe mais perguntas do gum argumento de política, ele não teria força gravitacional
que respostas a outros juristas e juízes que possivelmente darão alguma. Seu valor enquanto precedente ficaria restrito a sua
respostas diferentes, entretanto, nesse jogo de perguntas e res­
postas forma-se o romance em cadeia. É certo que um juiz verdadeiro só ira imitar
Para se chegar à resposta que atenda aos anseios da par­
tes e que seja compatível com a teoria dos princípios, Ronald
Hércules até certo ponto, a permitir que o
Dworkin propõe, pela metáfora do juiz filosófico Hércules, um alcance de suas interpretações se estenda
juiz mítico que seria capaz de desenvolver a resposta que pro­
desde os casos imediatamente relevantes até
duza consonância entre a intenção legislativa e os princípios
jurídicos: Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, outros casos gerais do direito
sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem
chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja juiz de força de promulgação, isto é, aos casos adicionais abarcados
alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero por alguns termos específicos do precedente. A força distribu-
que ele aceita as principais regras não controversas que consti- tiva de uma meta coletiva, como já observamos aqui, e uma
tuem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, questão de fatos contingentes e de estratégia legislativa ge-
ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir ral. Se o governo interveio em favor da srta. MaxPherson, não 101
direitos jurídicos, e que os juízes têm o dever geral de seguir as porque ela tivesse algum direito à sua intervenção, mas so-
decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores mente porque uma estratégia criteriosa sugeria este meio para
cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas, alcançar uma meta coletiva como a da eficiência econômica,
aplica-se ao caso em juízo (DWORKIN, 2002, p. 165). então não pode haver um argumento de equidade efetivo, de
Hércules, quando estiver diante de um caso concreto, deve acordo com o qual o governo tinha, por isso, a obrigação de
elaborar uma teoria acerca das decisões e princípios que cir­ intervir em favor do autor da ação no caso Spartan Steel [...]
cundam o caso, a fim de buscar o melhor argumento possível a (DWORKIN, 2002, p. 177).
justificar a sua decisão. Dworkin (2003) entende que a força do precedente só in­
Deverá [...] examinar a questão não apenas como um pro- fluirá na decisão do juiz Hércules quando estiver embasada em
blema de ajustamento entre uma teoria e as regras da insti- argumentos de princípios que lhes ofereçam sustentação, uma
tuição, mas também como uma questão de filosofia política. vez que Hércules deve mostrar que a interpretação visa lançar
(DWORKIN, 2002, p. 167). a melhor luz diante do que lhe é trazido. É preciso levar em
Esse projeto é um raciocínio para desenvolver uma teoria consideração não só as decisões tomadas anteriormente, mas a
que confira o conjunto complexo de princípios e políticas jus­ forma com que elas foram tomadas, por quais autoridades e em
tificáveis para o sistema de governo. Hércules deve-se ater à quais circunstâncias (DWORKIN, 2003).
filosofia política e ao comando institucional. Tal tarefa vinculará Dworkin (2003) estabelece que os juízes estão em situações
a linguagem emanada do poder legislativo e as suas responsa­ profundamente diferentes dos legisladores e o modo como de­
bilidades institucionais como juiz. vem ser tomadas as suas decisões abstraindo-se da política: O
Assim, podemos discordar de um ponto de vista de direito como integridade pressupõe, contudo, que os juízes se
Hércules, pois se você rejeitar esses pontos de vista distintos encontram em situação muito diversa daquela dos legisladores.
por considerá-los pobres enquanto interpretações construtivas Não se adapta à natureza de uma comunidade de princípio o
da prática jurídica, não terá rejeitado o direito como integri- fato de que um juiz tenha autoridade para responsabilizar por
dade: pelo contrário, ter-se-á unido a sua causa. (DWORKIN, danos as pessoas que agem de modo que, como ele próprio
2003, p. 287). admite, nenhum dever legal as proíbe de agir. Assim, quando
Hércules deve formar a sua opinião sobre o problema. os juízes elaboram regras de responsabilidade não reconheci-
Atuando como um romancista em cadeia, deve encontrar al­ das anteriormente, não tem a liberdade que há pouco afirmei
guma maneira coerente de ver os personagens e os temas que ser uma prerrogativa dos legisladores. Os juízes devem tomar
lhe foram apresentados. Também, deve buscar alguma teoria suas decisões sobre o “common law”11 com base em prin-
coerente sobre os direitos para manifestar a sua posição. cípios, não em política: devem apresentar argumentos que
Esse juiz hipotético deve ser criterioso e metódico, pois deve digam porque as partes realmente teriam direitos e deveres

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


legais “novos” que eles na época em prios padrões, mas significa sempre uma a estrutura política e com a doutrina jurí­
que essas partes agiram, ou em algum ascensão a uma universalidade superior, dica de sua comunidade.
outro momento pertinente do passado que rebaixa tanto a particularidade pró- Por vezes, podem surgir, diante do
(DWORKIN, 2003, p. 292-293). pria como a do outro. O conceito de ho- magistrado, os casos difíceis: os casos
O juiz Hércules aplica o direito com rizonte se torna aqui interessante, porque difíceis se apresentam, para qualquer
base no princípio da integridade, portan­ expressa essa visão superior mais ampla, juiz, quando sua análise preliminar não
to, faz a interpretação do que fizeram os que aquele que compreende deve ter. fizer prevalecer uma entre duas ou mais
juízes em casos anteriores não proferin­ Ganhar um horizonte quer dizer sempre interpretações de uma lei ou de um jul-
do sua decisão com base em argumen­ aprender a ver mais além do próximo e gado. (DWORKIN, 2003, p. 306).
tos de política. do muito próximo, não para apartá-lo da Aceitar a integridade como um ideal
A integridade exige que o juiz ponha vista, senão que precisamente para vê-lo político pressupõe a comunidade política
a prova a sua interpretação na vasta rede melhor, integrando-o em um todo maior como uma comunidade de princípios, de
de estruturas e decisões políticas de sua e em padrões mais corretos (GADAMER, forma que a escolha final de Hércules da
comunidade, determinando que ele faça 2005, p. 456). interpretação decorre do seu compro­
parte da teoria coerente que justifica Coaduna essa perspectiva Vinícius misso com a integridade: Hércules sabe
a rede como um todo. O juiz real não Bonfim, no que concerne ao jogo de que, em termos de princípios, o direito
poderia impor nada, de uma única vez, perguntas e respostas que regem a está longe de ter uma coerência perfei-
mas deve-se aproximar da interpretação construção intersubjetiva da tradição, ao ta. Sabe que a supremacia legislativa dá
plena de toda a comunidade. dispor que: quando há uma troca de in- força a algumas leis que, em princípio,
Por isso, afirma Lucio Antonio formações em que sempre a pergunta são incompatíveis com outras, e que a
Chamon Junior (2006), a existência da toma a dianteira, ela deixa por aberta compartimentalização do “common
figura mítica de Hércules, incumbido de o novo, a busca pelo conhecimento, a law”, juntamente com a prioridade local,
realizar o vasto trabalho interpretativo, continuidade da linguagem. Pois toda favorece a incoerência inclusive ali. Mas
para que a decisão seja publicamente experiência é confronto, já que ela opõe ele pressupõe que essas contradições
sustentável. o novo ao antigo. Não quer dizer que o não são tão abrangentes e intratáveis
É certo que um juiz verdadeiro só ira “novo” prevalecerá, que se tornará uma dentro de cada ramo ou instituto do di-
imitar Hércules até certo ponto, a permi­ verdadeira experiência, ou se o antigo, reito que sua tarefa se torne impossível.
102 tir que o alcance de suas interpretações costumeiro e previsível, reconquistará a Admite, na verdade, que é possível
se estenda desde os casos imediatamen­ sua existência. Em outras palavras, po- encontrar um conjunto de princípios
te relevantes até outros casos gerais do demos dizer que quando se considera razoavelmente plausíveis, para cada
direito (DWORKIN, 2003). a tradição para fazer a pergunta e, ao segmento do direito que deva fazer
vigorar, que se ajuste suficientemente
Segundo Dworkin (2003), os juízes, ao aceitarem a bem para poder ser uma interpreta-
ção aceitável (DWORKIN, 2003, p. 319)
integridade e decidirem um caso difícil, buscam encontrar, no
(Grifo nosso).
conjunto coerente de princípios sobre o direito e deveres das O juiz Hércules deve construir o es­
pessoas, a melhor interpretação possível que coaduna com a quema de princípios que forneça justifi­
cação coerente a todos os precedentes,
estrutura política e com a doutrina jurídica de sua na medida em que estão respaldados
comunidade. por princípios, também um esquema
que justifique as disposições constitucio­
Para realizar tal interpretação é pre­ mesmo tempo, o texto faz a mesma per- nais e legislativas, sendo que as disposi­
ciso levantar uma característica particular gunta, o texto e a tradição fundem os ções constitucionais ocupam o nível mais
em Hércules, no que concerne a forma­ seus horizontes. Ou seja, se o texto tenta alto dessa estrutura (DWORKIN, 2002).
ção da sua convicção, pois, suas opiniões responder a uma pergunta e, ao tentar Hércules enfrentará um problema
sobre a adequação se irradiam a partir interpretar esse texto levamos a tradi- complexo, de forma que, se a história
do caso que tem diante de si em uma sé- ção em consideração para buscarmos de seu Tribunal não for muito comple-
rie de círculos concêntricos. (DWORKIN, a resposta, é como se o texto e a tradi- xa, ele descobrirá, na prática, que a
2003, p. 300). ção estivessem olhando para o mesmo exigência de consistência total por ele
A interpretação é um projeto coletivo lugar, olhando na mesma direção e, as- aceita se revelará excessivamente forte,
em que cada geração deve assumir o texto sim, com horizontes fundidos. (BONFIM, a menos que ele a desenvolva de modo
em uma constante fusão de horizontes de 2010, p. 81-82). que inclua a idéia de que, ao aplicar
sentido. Dworkin bebe na fonte de Hans- Segundo Dworkin (2003), os juízes, essa exigência, pode considerar algu-
Georg Gadamer (2005) ao falar dos círcu­ ao aceitarem a integridade e decidirem ma parte da história institucional por
los concêntricos de horizontes e o papel da um caso difícil, buscam encontrar, no considerá-la equivocada. Isto porque ele
tradição, isto por que: esse deslocar não é conjunto coerente de princípios sobre o será incapaz, mesmo com sua soberba
nem empatia de uma individualidade na direito e deveres das pessoas, a melhor imaginação, de encontrar qualquer con-
outra, nem submissão do outro sob os pró- interpretação possível que coaduna com junto de princípios que concilie todos os

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


precedentes e todas as leis existentes. Este fato não surpreen- possível e impor limites ao ativismo judicial, uma vez que o
de: os legisladores e juízes do passado não tinham, todos, a magistrado está adstrito as dimensões do ajuste e da adequação
capacidade ou o insight de Hércules, nem eram homens e mu- na escolha do princípio aplicável.
lheres que compartilhava as mesmas idéias e opiniões. Sem Para se alcançar a coerência, a decisão se dá pelo romance
dúvida, qualquer conjunto de leis e decisões pode ser explicado em cadeia, em que cada romancista interpretará os capítulos
histórica, psicológica ou sociologicamente, mas a consistência anteriores e dará sequência da melhor maneira possível nos
exige uma justificação, e não uma explicação, e a justificação capítulos subsequentes acrescentando elementos como trama,
deve ser plausível, e não postiça. Se a justificação que Hércules gênero e personagens.
concebe estabelece distinções que são arbitrárias, e se vale de Dworkin atribuirá a tarefa de decidir em símile com a do
princípios que são convincentes, então ela não pode, de modo escritor no romance em cadeia e à figura mítica de Hércules,
algum, contar com uma justificação (DWORKIN, 2002, p. 186). que possui capacidade, sabedoria e paciência sobre-humanas,
Nessa tarefa, Hércules deve afirmar uma decisão que seja sendo que Hércules tem o papel de conferir aos indivíduos a
compatível com a sua teoria, deve argumentar principiologica­ aplicação consistente dos princípios, sobre os quais repousam
mente, de acordo com os dados levantados pelas partes, en­ as instituições.
tretanto [...] deve ampliar sua teoria de modo a incluir a idéia Tais princípios decorrem do Direito Constitucional, que
de que uma justificação da história institucional pode apresen- constitui a moralidade política da comunidade e será defendida
tar uma parte dessa história como um equívoco. (DWORKIN, contra qualquer perspectiva incoerente, ainda que seja a mais
2002, p. 189). popular.
Nesse caso, entende Dworkin (2002) que Hércules não po­ Hércules deverá argumentar principiologicamente na esco­
derá fazer uso imprudente desse recurso, pois se lhe conceder­ lha da melhor decisão para o caso concreto, de forma que a
mos liberdade para reconhecer qualquer aspecto incompatível sua escolha seja coerente com a rede de estruturas e decisões
da história institucional como erro, sem que isso lhe causasse políticas de sua comunidade.
consequência alguma, a teoria da coerência cairia por terra. Enfim, a figura mítica constitui a imposição de que a escolha
Portanto, ele deve mostrar quais seriam as conseqüências, do princípio aplicável seja publicamente sustentável.
para novos argumentos, de se considerar algum evento ins-
titucional como um erro, e deve limitar o número e o cará-
ter dos eventos dos quais se pode abrir mão dessa maneira. NOTAS
(DWORKIN, 2002, p. 189). 1 A mais influente versão contemporânea do positivismo é a proposta por
103
H. L. Hart e é essa versão que este livro critica. (DWORKIN, 2002, p. XI).
Quando um evento for classificado como erro, e, aqui, 2 A doutrina mineira afirma que o uso da expressão equanimidade, por
Dworkin estabelece a distinção entre erros enraizados e passí­ considerá-la mais adequada que o termo equidade, utilizado nas tradu-
veis de correção: [...] também distinguirá entre erros enraizados ções brasileiras de Dworkin e de Rawls. Para tanto, transcreve-se o alerta
de Cattoni de Oliveira (2001 :113) : Não traduzimos o termo inglês fair-
e erros passíveis de correção; os primeiros são aqueles cuja
ness por equidade e sim por equanimidade, a fim de marcar o quadro
autoridade específica acha-se estabelecida de tal maneira que não-aristotélico em que a Teoria da Justiça de Rawls [bem como, a Teoria
ela sobreviva à perda de sua força gravitacional; os segundos do Direito como Integridade de Dworkin, foram elaboradas], [assim, o
são aqueles cuja autoridade específica depende da força gra- termo assume] uma concepção que se pretende procedimental e não
substancialista [...] (PEDRON, 2009, p. 15).
vitacional, de modo que ele não pode sobreviver a perda dela. 3 A justiça, pelo contrário, se preocupa com as decisões que as instituições
(DWORKIN, 2002, p. 189-190,). políticas consagradas devem tomar, tenham ou não sido escolhidas com
Para Dworkin (2002), o erro não perderá a sua autoridade eqüidade, se aceitarmos a justiça como uma virtude política, querermos
que nossos legisladores e outras atividades distribuam recursos materiais
específica, mas perderá a sua força gravitacional de precedente, e protejam as liberdades civis de modo a garantir um resultado moral-
deste modo não valerá como argumento em outros casos. mente justificável. (DWORKIN, 2003, p. 200).
Se uma decisão judicial anterior estiver eivada de algum 4 O devido processo legal adjetivo diz respeito a procedimentos corretos
para julgar se algum cidadão infringiu as leis estabelecidas pelos pro-
erro, podendo ser criticada, tal fato revelará a sua vulnerabi­ cedimentos políticos; se o aceitarmos como virtude, queremos que os
lidade, e então Hércules terá de demonstrar, por argumentos tribunais e instituições análogas usem procedimentos de prova, de des-
históricos ou pela percepção da comunidade política, que de­ coberta e de revisão que proporcionem um justo grau de exatidão, e que,
por outro lado, tratem as pessoas acusadas de violação como devem ser
terminado princípio tem pouca força para continuar gerando tratadas as pessoas em tal situação. (DWORKIN, 2003, p. 200-201).
decisões em determinado sentido12. 5 Leia-se da perspectiva da doutrina mineira por equanimidade ou respeito
às regras do jogo, já que as citações, aqui, realizadas foram colhidas da
tradução do Law’s Empire e conforme a doutrina mineira apresenta inter­
6 CONCLUSÃO
pretação diversa das mencionadas.
Ronald Dworkin apresenta o princípio da integridade como 6 Dworkin cita exemplos de responsabilização coletiva por erros do passado:
capaz de conectar os princípios aos direitos dos cidadãos em Alemães ainda não nascidos na época em que os nazistas governavam
o país têm vergonha e um sentimento de obrigação para com os judeus;
uma comunidade política, uma vez que a perspectiva unilateral
norte-americanos brancos que não herdaram nada de donos de escravos
das regras reduz a atividade jurisdicional ao ativismo. sentem uma responsabilidade indeterminada para com negros que nun-
A integridade é dividida em integridade na legislação e ca foram acorrentados. (DWORKIN, 2003, p. 209).
aplicação do direito, sendo que ambas conclamam o cidadão a 7 Conforme a nota do tradutor: Policy – traduzimos na maior parte dos ca-
sos por “política” (e eventualmente por política pública). Refere-se tanto
assumir a sua posição na arena de debates políticos, sobretudo aos princípios gerais que orientam um governo na condução dos assun-
quando se está diante de argumentos de princípio, regras ou tos públicos, como aos programas e ações governamentais orientadas
políticas. por esses princípios [...] (DWORKIN, 2002, p. 16).
8 Alerta a nota do tradutor: Judicial discretion – aqui traduzido por “poder
De tal forma, integridade pretende dar a melhor resposta

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011


discricionário do juiz”, mas a expressão tem um sentido mais amplo e se
aplica igualmente às decisões dos tribunais. (DWORKIN, 2002, p. 49).
9 Dworkin trabalha mais dois modelos de comunidade: a comunidade geo­
gráfica que seria um [...] um acidente de fato da história e da geografia,
entre outras coisas, e, portanto, como uma comunidade associativa que
nada tem de verdadeira. (DWORKIN, 2003, p. 252) e a comunidade de
regras Pressupõe que os membros de uma comunidade política aceitam
o compromisso geral de obedecer a regras estabelecidas de um certo
modo que é específico dessa comunidade. (DWORKIN, 2003, p. 253).
10 E continua Ronald Dworkin: A integridade é uma norma mais dinâmi-
ca e radical do que parecia de início, pois incentiva um juiz a ser mais
abrangente e imaginativo em sua busca de coerência com o princípio
fundamental. Em alguns casos, como o McLougnhlin, de acordo com
as premissas que acabamos de assumir, o juiz que tomar a integridade
por modelo parecerá, de fato, mais cuidadoso do que o pragmático. Em
outros casos, porém, suas decisões parecerão mais radicais. (DWORKIN,
2003, p. 265).
11 Para a doutrina mineira, também, é possível a aplicação da teoria dworki­
niana para países de tradição civil law.
12 Hércules aplicará, portanto, pelo menos duas máximas na segunda parte
de sua teoria dos erros. Se puder demonstrar, por argumentos históricos
ou pela menção a uma percepção geral da comunidade jurídica, que
um determinado princípio, embora já tenha tido no passado atrativo
suficiente para convencer o poder legislativo ou um tribunal a tomar
uma decisão jurídica, tem agora tão pouca força que é improvável que
continue gerando novas decisões desse tipo – então, nesse caso, o ar-
gumento de equidade que sustenta este princípio se verá enfraquecido.
Se Hércules puder demonstrar, por meio de argumentos de moralidade
política, que esse princípio é injusto, a despeito de sua popularidade, en-
tão o argumento de equidade que sustenta o princípio estará invalidado
(DWORKIN, 2002, p. 191).

REFERÊNCIAS
BONFIM, Vinícius Silva. Gadamer e a experiência Hermenêutica. Revista CEJ,
104 Brasília, ano XIV, n. 49, p. 76-82, abr./jun. 2010.
CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria constitucional do direito penal: con­
tribuições a uma reconstrução da dogmática penal 100 anos depois. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006.
DWORKIN, Ronald. O Império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma
hermenêutica filosófica. 7. ed. Tradução de Flávio Paulo Meurer, título original:
Warheit und Methode. Petrópolis: Vozes, 1999.
OMMATI, José Emílio Medauar. A igualdade no paradigma do estado demo-
crático de direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2004.
PEDRON, Flávio Quinaud. A proposta de Ronald Dworkin para uma interpreta­
ção construtiva do direito. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n.47, p. 127-137, out./
dez. 2009.
______. Esclarecimentos sobre a tese da única “resposta correta”, de Ronald
Dworkin. Revista CEJ, Brasília, ano XIII, n.45, p. 102-109, abr./jun. 2009.

Artigo recebido em 24/09/2011.


Artigo aprovado em 06/10/2011.

Carlos Henrique Generoso Costa é pesquisador da Fapemig e


da Puc Minas em Serro- MG.

Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 55, p. 93-104, out./dez. 2011

Você também pode gostar