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OPINIÃO
Por André Portugal
Ronald Dworkin talvez seja o maior exemplo disso: cuida-se do filósofo mais
aclamado pelos estudiosos brasileiros, ao mesmo tempo em que as partes mais
relevantes de sua obra costumam ser completamente ignoradas, de modo que várias
são as teses e monografias sobre a sua teoria escritas com base em premissas falsas,
que chegam, por óbvio, a conclusões precipitadas.
Várias são as críticas que considero relevantes, sob o ponto de vista da Teoria do
Direito e do Direito Constitucional, à obra de Dworkin. Por razões de espaço,
mencionarei apenas algumas delas — todas aparecem, com mais detalhes, em
Decisão Judicial e Racionalidade: Crítica a Ronald Dworkin[1].
Eis, de modo fatalmente resumido, parte do caminho de Dworkin para chegar à tese
da “única resposta correta”.
Toda a obra de Dworkin faz jus àquilo que ele apontou como sua principal
preocupação: ela é verdadeiramente coerente entre si. Não há como reivindicar a
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16/05/2019 ConJur - André Portugal: Obra de Ronald Dworkin é gigante, mas possui falhas
existência de uma única resposta correta sem considerar cada uma dessas partes
que, juntas, compõem o seu direito como integridade.
Em se tratando dos sistemas jurídicos, essas contradições são comuns: por vezes,
será inevitável que um dado encontre, no sistema, duas ou mais respostas
contraditórias entre si, cabendo ao intérprete solucioná-la com o recurso a
metarregras. O ponto é que é logicamente impossível que o sistema preveja uma
única resposta para qualquer caso, ainda que essa resposta exija uma interpretação
com base nos princípios que o sustentam. Afinal, mesmo a completa harmonização
entre esses princípios é um ideal logicamente inatingível, sobretudo quando se lida
com uma linguagem inevitavelmente ambígua e aberta.
De modo que a ideia de que os conflitos entre princípios são meramente aparentes
representa, a meu ver, um equívoco da teoria de Dworkin. As colisões existirão, e
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Por terceiro, também há problemas sérios com o “juiz Hércules” idealizado por
Dworkin. Como os chamados casos difíceis não raro envolvem relevantes
controvérsias axiológicas, imaginar que a sua solução dependeria exclusivamente
de termos todos tempo, paciência, conhecimento e isenção parece, no mínimo,
presunçoso demais — veja-se, aliás, que, coincidentemente, o Hércules de Dworkin
chegaria justamente aos dois princípios de justiça que este entende como a base de
todo o sistema jurídico.
Pensando nisso foi que Aulis Aarnio perguntou-se: e se houvesse dois juízes
Hércules, ambos igualmente racionais e com todos esses atributos preconizados por
Ronald Dworkin[2]? Chegariam eles a uma mesma resposta? Ora, se admitirmos,
por exemplo, a possibilidade de que duas pessoas, uma liberal e outra conservadora,
sejam ambas igualmente racionais, isentas e estudiosas, é fácil perceber que os dois
“juízes” Hércules, o liberal e o conservador, chegariam a respostas contraditórias
para um mesmo caso jurídico.
Eu, pessoalmente, admito essa possibilidade, razão pela qual não posso concordar
com a premissa endossada por Dworkin.
E esse ideal revela ainda mais: ao apostar as suas fichas em Hércules, Dworkin
aposta no juiz de cada caso como o melhor intérprete dos princípios que
fundamentam o Direito. Habermas, nesse aspecto, rotula o ideal dworkiniano como
solipsista[3]. Concordemos ou não com a afirmação, parece-me, no mínimo, mais
legítimo e democraticamente saudável que as principais controvérsias morais — ou
as decisões sobre a recepção dessas controvérsias pelo Direito — sejam decididas
com ampla participação daqueles que por elas serão afetados, tal como preveem as
chamadas condições ideais de fala, de Habermas.
Daí é que não são poucas as críticas ao viés pouco democrático da teoria de Ronald
Dworkin. Cass Sunstein, por exemplo, chega a falar que Dworkin parte de uma visão
perfeccionista e excessivamente otimista do Poder Judiciário[4], enquanto Carlos
Bernal Pulido[5] e Ran Hirschl[6] alertam que a tese da “única resposta correta” e a
chamada “decisão por princípio” têm e tiveram como consequência natural a
fragilização do Parlamento por meio daquilo que Hirschl chamou de “juristocracia”.
Os argumentos são fortes.
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Todas essas controvérsias teóricas acabam por envolver questões práticas bastante
relevantes. Por exemplo, as conclusões sobre a possibilidade ou impossibilidade de
uma única resposta correta para os assim chamados casos difíceis terão
consequências diretas no que se deve entender por “segurança jurídica”. Ademais, o
reconhecimento ou a negação de autênticas colisões entre princípios — e, logo, entre
direitos fundamentais — definirá o modo como tais casos devem ser solucionados,
bem como a própria abordagem a ser adotada pela teoria dos direitos
fundamentais. Se admitirmos as colisões, devemos encontrar algum meio de
solucioná-las, e a mais conhecida delas é, naturalmente, a chamada ponderação. Se
as negarmos, por outro lado, não haveria nada a ser ponderado.
Outras críticas poderiam ser mencionadas. Por razões de espaço, optei por citar
apenas algumas delas, dando maior atenção àquelas que considerei precisarem de
maior esclarecimento.
Dworkin integra o rol dos maiores filósofos do Direito de toda a história. A despeito
disso, como costuma acontecer com as grandes obras científicas da humanidade,
também a sua deve ser e é passível de críticas e refutações.
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