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SUMÁRIO

Sumário
Introdução
PARTE UM – QUESTÕES METODOLÓGICAS E PROPOSTA
Capítulo I – Um prelúdio clássico: o direito existe?
1. Voegelin e o paradoxo zenônico do direito
2. O direito como participação
Capítulo II – Condições iniciais de investigação e exame de fontes
auto expressivas
1. Estratégia teórica da busca pelo conceito de direito
2. Estabilidade e Unidade
3. O problema semântico do “ser”
3.1. O conceito do “conceito”
3.2. O conceito em Frege
4. Direito e tópica
Capítulo III – Apontamentos para uma proposta
1. Método da filosofia do direito
2. Campos e o método decadialético
2.1. O que são os campos de problemas jurídicos
2.2. Crítica dos métodos
2.3. Requisitos formais da tese e procedimento de aplicação
da decadilética.
PARTE DOIS – TEORIA DECADIALÉTICA
Capítulo I – Primeiro campo
1. Campo do sujeito e do objeto
1.1. Proposta dialética a partir dos discursos prescritivos e
descritivos
1.2. O discurso prescritivo
1.3. O discurso descritivo
1.4. Descrição e prescrição na abordagem metaética
2. Conclusão – Problemas do discurso prescritivo e descritivo
Capítulo II – Segundo campo
1. Campo da oposição atualidade e virtualidade do discurso
prescritivo
1.1. Revisitando o problema da validade
1.2. Alternativas ao problema da validade
1.3. Caso-limite: a validade da Constituição dos Estados
Unidos da América
1.4. Definindo atualidade e virtualidade
1.5. Hipótese de expansão do conceito de direito
2. Conclusão - Problemas da concreção e discussão
Capítulo III – Terceiro campo
1 Campo das possibilidades reais e não reais na virtualidade
1.1. O “sentido” como possibilidade jurídica real
1.2. O lugar da tópica
1.3. A hermenêutica radical
1.4. Interpretação prescritiva
2. Conclusão - Problemas dos sentidos reais e não reais
Capítulo IV – Quarto campo
1. Campo da extensidade e intensidade na atualidade
1.1. Intensidade em Wilhelm Ostwald
1.2 Extensidade e Intensidade do direito
2. Conclusão – Problemas da concreção: ontologia e deôntica
Capítulo V – Quinto campo
1. Campo das oposições de extensidade e intensidade na
atualidade
1.1. Oposições da intensidade em Kelsen e Hohfeld
1.2. Oposições da Extensidade na teorias metaéticas de
Richard Hare e de Kurt Baier
2. Conclusão – Problemas das oposições ontológicas e oposições
deônticas
Capítulo VI – Sexto campo
1. Oposições do sujeito
1.1. O problema da mudança jurídica
1.2. Atualidade como comunicação
1.3. Oposições dos conceitos e dos valores
2. Conclusão – Problemas do discurso prescritivo: sistemas e
valores
Capítulo VII – Sétimo campo
1. Oposições da razão
1.1. Os sistemas jurídicos
1.2. Exame dos sistemas como fontes autoexpressivas
1.3. Conceptualização lógica na dogmática jurídica
2. Conclusão – Problemas das oposições do sistema: aplicação e
abstração conceitual
Capítulo VIII – Oitavo campo
1. Campo das oposições das atualizações e virtualizações
racionais-intuitivas
1.1. Sistema e Antisistemas
1.2. Sistema e valor
1.3. A atualização e virtualização dos sistemas diante dos
valores
2. Conclusão – Problemas da antinomia (virtualização e
atualização) entre sistemas e valores
Capítulo IX – Nono campo
1. Campo das oposições da intuição
1.1. Intuição como valor
1.2. O problema dos valores no direito
1.3. Segurança Jurídica como Valor
1.4. Equidade
2. Conclusão – Problemas da oposição entre os critérios de
valor de segurança jurídica e equidade.
Capítulo X – Décimo Campo
1. O variante e o invariante
1.1. A atualidade como sintonia da ordem
2. Conclusão – problemas do direito em sentido natural e
positivo
Capítulo XI - Conclusões e Teses
1. Estabilidade e Unidade
2. Pragmaticidade
3. Objetividade
Referências 210

Introdução

É curiosa a atenção dedicada pelos juristas à pergunta ‘o que é o direito’. Não


menos significativa é a resignação perante a falta de uma resposta
peremptória. Já foi dito que a questão interessa apenas aos neuróticos e as
crianças. É possível. Um e outro são criaturas insatisfeitas com a realidade,
para as quais os erros do pensar são uma forma de criatividade e
maravilhamento – uma filosofia do “Als ob”, criadora de seu mundo e de
suas regras. Porém, a exigência de certeza combinada à exuberância de
respostas transforma a criatividade meditativa em uma arena de contendores.
Outros já responderam, outros podem me responder. Melhor deixar a questão
de lado. Na vida prática do jurista, em seu meio de atuação e trabalho, ela
pouco importa.
Mas apesar desta serena resignação prática, a curiosidade teórica permanece.
Sua latência desperta quando o debate é lançado. Correntes se polarizam.
Dúvidas são postas. Representantes são eleitos. Nomes aparecem. Sua
importância vem à tona como o conflito inconsciente do neurótico. Ela
retoma seu valor como a curiosidade da criança. O polemos só é dissipado
pela lembrança de que, na prática, a questão pouco importa.
Esta tese busca seus resultados indo de encontro à polêmica. Não como
contendor, mas abordando-a como aspecto integrante do direito enquanto
objeto conceitual. Um prelúdio ilustra a experiência existencial do direito,
sem o qual a questão sobre sua natureza pareceria equivocadamente
descolada do fluxo histórico permeado por símbolos de uma ordem
subjacente ao conceito. A intuição originária é derivada da Tópica de
Theodor Viehweg, que mais tarde pôde ser interligada ao método
decadialético do filósofo brasileiro Mario Ferreira dos Santos. Com os dois
elementos em consonância, tópica e decadialética, é possível planejar uma
estratégia teórica de investigação.
A Parte Dois trata da aplicação teórica da decadialética, substituindo as
antinomias de Mario Ferreira por antinomias próprias do fenômeno jurídico.
A expectativa é ver surgir, ao final, um conceito suficientemente estável e
unitário do direito.

PARTE UM – QUESTÕES METODOLÓGICAS E PROPOSTA


“In my mind’s eye” (Hamlet, Ato I, Cena II) Capítulo I – Um
prelúdio clássico: o direito existe?
1. Voegelin e o paradoxo zenônico do direito
O filósofo, e também jurista, Eric Voegelin teve seu momento de
dúvida ao buscar a natureza do direito[1]. Haveria uma natureza,
compreendida à maneira dos clássicos? Em que medida podemos buscar uma
“essência” do direito sem despertar a acusação reviver a metafísica? Ou, em
nosso caso específico, há realmente algo que se possa considerar um objeto,
unitário e estável, inconfundível com outros fenômenos e dotado de certas
propriedades permanentes? Ou estamos diante de um tour de force
abstrativo? Num limite, o direito existe?
Inicialmente constatamos a existência de não um, mas vários
“direitos” correspondentes a uma pluralidade de conteúdos e sociedades.
Atribuímos essa pluralidade à presença do direito no tempo e no espaço.
Nesse sentido, se seguíssemos o paradigma clássico da conceptualização
recorreríamos a uma abordagem comparativista na qual, depois de selecionar
um numeroso agrupamento de regras jurídicas em diferentes estágios no
tempo e no espaço, verificar-se-ia quais delas se repetem com maior
frequência. A partir desta decantação de regras estáveis no tempo e no espaço
formularíamos um conceito, à maneira de uma espécie botânica ou zoológica,
que congregasse as propriedades principais de determinado ser. A “essência”
do direito seria o conjunto daquelas regras e instituições que aparecem com
maior frequência nas sociedades humanas[2].
Há motivos para rejeitar este paradigma das ciências naturais – em
que pese seja uma formulação de Aristóteles[3]. Uma particularidade nos
impede de afastar as regras pouco frequentes do conceito. Um jurista
rejeitaria firmemente a hipótese de haver regras em seu ordenamento (i.e.,
aquele no qual está inserido) não pertencentes à “essência”, consideradas
elementos meramente acidentais (e, por isso, contingentes). Esta rejeição do
jurista seria justificada pelo fato de tanto as regras frequentes e constantes
quanto aquelas infrequentes e inusitadas partilharem um mesmo valor dentro
do ordenamento jurídico: ambas são igualmente válidas. Toda regra
pertinente ao caso é “essencial” no sentido de que dela depende a
comunidade jurídica para exercer sua função.
A história dos sistemas jurídicos chamou de “sistemas internos” a
conceptualização interna do direito, isto é, a verificação de sua estrutura
estável e unitária[4]. Abria-se mão de investigar propriedades extrínsecas ao
objeto, como sua relação com a liberdade humana ou com a consciência
histórica de determinado povo, voltando-se “para dentro”. Aqui, melhor do
que a busca pela “essência”, o jurista voltava os olhos para a validade e dela
partia para a produção do conceito. Sobre esta pedra, Kelsen edificaria sua
ciência[5].
Teríamos as regras válidas dentro de determinado ordenamento
restrito a um determinado processo legiferante atribuidor da validade a partir
dos requisitos procedimentais elencados pela lei daquela determinada
sociedade[6]. Este agregado de regras reuniria todas as regras válidas naquele
instante da análise, adstritas ao local onde são produzidas (mais precisamente,
ao Estado em questão).
Porém, se considerarmos este conjunto como objeto do direito
enfrentaremos a dificuldade de lidar com uma estabilidade meramente
conceitual. Apesar de termos firmemente estabelecido quais critérios de
validade tornam determinada norma um elemento integrante do direito,
teremos de admitir a fugacidade com que estas regras “vêm e vão”. O
problema da estabilidade é realocado: a validade aparece e desaparece
faticamente sob as vicissitudes de projetos de lei, derrogações e
promulgações[7]. Nesta configuração do agregado de regras teríamos uma
fotografia nítida do objeto estudado, tão fiel a ponto de podermos nela nos
basearmos durante a atividade jurídica prática sem nenhum transtorno,
bastando mantermo-nos atualizados quanto a novas regras. De fato, esta é a
atitude pragmática do exercício das profissões jurídicas. O filósofo que
buscasse trazer à consciência um conceito do direito teria de correlacioná-lo
ao fluxo de procedimentos de validade; no caso brasileiro, ao processo
legislativo segundo a Constituição terminando na publicação no Diário
Oficial. A questão termina aqui para o profissional do direito. Esta
configuração satisfaz, acima de qualquer dúvida razoável, a questão sobre se
o direito existe, pois correlaciona sua existência com um procedimento
factual que lhe atribui validade. O direito existe, pois há uma ocasião factual
em que ele é concebido, modificado, emendado, votado, aprovado e passa a
aplicação judiciária[8]. Mas a pergunta que se impõe é: trata-se aí de um
conceito do direito? É possível conceptualiza-lo se o separamos de seu fluxo
histórico para estabilizarmos seu conteúdo? Cabe perguntar, o que ocorre
com as leis previamente válidas? E as leis em discussão, de lege ferenda? E
os instrumentos jurídicos que não são normativos, mas que de qualquer forma
estão presentes no cotidiano, como petições iniciais, tratativas contratuais,
deliberações em audiência, discussões orçamentárias, planos de governo, etc,
etc.? Precisam estas ser inclusas no conceito já que fizeram parte do objeto
em um tempo anterior ao da análise? Se se mantiveram em disputa como
possivelmente válidas durante certo período, não estamos falando de direito
em potência? Não é o mesmo que retomar a estratégia de reunir um grande
número de regras, pois aqui não estamos incluindo regras de outros
ordenamentos, tampouco propostas de regras que sequer chegaram a ser
discutidas, remanescendo na imaginação doutrinária, mas buscando uma zona
limítrofe razoável entre a existência e não-existência do direito.
Poderíamos nos dar por satisfeitos com esta inclusão: o fator de
unificação e estabilidade do direito estaria no processo legislativo
preconizado por regras enquadradas numa hierarquia superior apta a atribuir-
lhes o sentido objetivo da validade que se encontra, somado aos processos
fáticos de discussão e elaboração das leis. Terminaríamos, assim, por
fundamentar a ordem jurídica em uma teoria positiva, posto que com algumas
combinações adicionais da história do direito e do direito constituendo (de
lege ferenda), tratando de pormenores como os contratos e demais atos
jurídicos por meio da sustentação destes dentro das normas. Não se trataria
mais da fotografia estática do agregado de regras. Para elucidar o fenômeno
da intermitência da validade no ordenamento Voegelin utiliza a metáfora de
uma lanterna (simbolizando a validade). Ela ilumina um determinado
agregado de regras, mas vai se arrastando ao longo do tempo; a luz irradiaria
uma pequena zona de penumbra clareando, atrás, os momentos anteriores,
isto é, os agregados de regras anteriormente válidos, e também, à frente, a
possibilidade de novos agregados com a expectativa de continuidade do
movimento[9]. O direito aqui é o objeto formado por um continuum de
passado, presente e futuro, dispostos consoantes o requisito da validade que
sustenta a série. O foco da luz estaria na validade, e uma zona de penumbra
acompanharia seu movimento para frente (lege ferenda) e para trás (nas
regras revogadas).
Mas Voegelin não se contenta com esta elaboração. O recurso ao
processo constante (unitário e estável) estabelecido pela Constituição como o
elo entre a sequência de diversos agregados de regras que se prolongam no
tempo não possibilita atribuir à ordem jurídica uma existência temporal. Por
que?
O direito sob o paradigma da validade depende em certa medida de
sua realização por meio das decisões judiciais – ainda na esteira no
pensamento kelseniano, ao afirmar a necessidade condicionante de uma
“eficácia global”[10]. Sendo assim, só existe na medida em que é válido, e não
será válido sem aplicação. Argumenta Voegelin que, se é assim, a validade só
remete a um futuro ainda não existente da efetivação judicial a qual, num
processo valorado pelo contraditório e apreciação das provas, estará sujeita a
certo grau de indeterminação. Sob o paradigma da validade, o direito,
portanto, não existe até o momento da aplicação. No instante seguinte
também não se pode afirmar sua validade-existência, pois nada garante que
será futuramente aplicada.
O paradigma da validade sucumbe ao paradoxo zenónico. A estória é
conhecida: a cada vez que Aquiles preenche o espaço que concedeu de
vantagem à tartaruga ela avança mais um pouco, de modo que o herói nunca
a ultrapassa. Por ser um paradoxo implica, naturalmente, uma nuance de
contradição escamoteada por um engodo convincente. No caso, Zenão
constrói a estória sob uma premissa errônea: a infinita série de pontos
estáticos completa um movimento contínuo; o movimento contínuo da
tartaruga é descrito como uma série de pontos estáticos demarcáveis. Aquiles
precisa atingi-los antes de se aproximar dela.
Nossa investigação inicial do direito compreendia-o como um
agregado de regras válidas, equivalente a imagem de um direito estático, no
qual sequer haveria movimento, apenas a sustentação de um sistema íntegro
de normas ligadas pela validade. Avançamos para um paradigma no qual
temos a ordem jurídica dinâmica como uma sequência de regras válidas se
acumulando no tempo, no mesmo sentido do contínuo de pontos estáticos.
Destas duas hipóteses Voegelin afirma que nenhuma é possível: a primeira
pela franca contrariedade com a transformação paulatina do direito; a
segunda corresponde à paradoxal sequência de pontos estáticos
pretensiosamente completando o continuum da realidade[11]. A corrida das
decisões judiciais aplicadas em grande número (assim como Aquiles
correndo contra a tartaruga) tenta preencher o continuum da existência
temporal através de pontos estáticos no tempo, isto é, o próprio conteúdo
juridicamente válido das decisões judiciais. A configuração do agregado de
regras baseado na validade falha por ser a validade uma categoria artificial de
pensamento, desprovida de status ontológico. A existência do direito
remanesce impossível.
O impasse do paradoxo zenónico é diagnosticado por Voegelin como
pertinente a toda teoria que se disponha a tratar de entes segundo o domínio
de seus significados, ou seja, sem fazer referência a objetos, ações ou eventos
temporalmente existentes. A ocorrência de parodoxos como esse reafirma o
alerta de Gottlob Frege sobre a necessidade de conceitos que façam
referência a objetos, jamais a outros conceitos[12]. A validade, enunciada
como propriedade e ao mesmo tempo critério, não tem status ontológico para
servir a uma análise com perspectiva temporalmente válida. Equivale dizer: a
validade enquanto fundamento da ordem jurídica se revela como falsa
abstração, pois não parte de um dado concreto, mas salta diretamente ao
domínio de significados[13]. Buscaremos evitar esta armadilha ao tratar do
conceito do direito voltando-nos para o objeto, e não para outros conceitos.
De nada vale aqui depositar as esperanças no processo legislativo como o
dado factual dotado de existência temporal. Sua própria existência depende
de uma constituição no sentido material que o descreva em termos de regras
válidas. Em que pese a expectativa de uma continuidade indefinida das
constituições – ainda que, na prática, nem sempre ocorra – e, mesmo
admitindo a uniformidade dos processos que conferem validade às regras,
nada disso preenche uma existência temporal concreta. O escalonamento
normativo enquanto princípio dinâmico de criação do direito nada mais é do
que a corrida de Aquiles contra a tartaruga, pois nada apresentam como
existência temporal intrínseca do direito, satisfazendo-se em construir
complexos domínios de significados[14]. O paradoxo zenónico do direito é
resultado desta limitação: uma vez encontrado o fundamento numa
experiência concreta e temporal será possível compreender a continuidade do
direito.
Sem a prova de um status ontológico a validade não pode servir como
indicativo da “essência” do direito, nem sequer pode-se arriscar a afirmação
de sua existência sem resvalar na suspeita dos significados meramente
conceituais (num limite, meras figuras de linguagem). Não significa, porém,
ser a validade uma pura abstração destituída de qualquer fundamento
concreto. A propriedade representada pelo paradoxo zenónico do direito é a
incapacidade da validade funcionar como o fundamento no qual a
investigação deve se basear inicialmente, mas não descartando-a como
elemento.
A análise deve prosseguir buscando o que há de anteriormente
ontológico à validade, ou seja, no que de concreto ela se baseia.
Essa indagação leva ao pressuposto de uma causa eficiente para a
validade, algo no âmbito concreto, uma condição pré-analítica do conceito. A
experiência sugere um momento propício ao aparecimento da validade como
argumento quando determinada regra está na iminência de ser concretizada.
Conforme descrevemos acima, as decisões judiciais são o âmbito de
aplicação do direito no qual a validade das regras ganha importância para a
situação fática. A decisão, todavia, vai além da declaração de validade, mas
desencadeia uma série de consequências sociais diretamente relacionadas ao
que nos referimos quotidianamente por “direito”. A este fenômeno Weber
chamara de “vigência empírica” da norma, isto é, sua possibilidade de
conseguir impor-se, ao que devemos somar considerações bastante concretas
sobre a autoridade e coerção[15]. Consequências sociais surgem sob certo grau
de previsibilidade no momento em que as regras são feitas e a validade é
estipulada; há, portanto, um determinado fim extrajurídico direcionado em
cada regra.

2. O direito como participação

Afirmamos acima a relação de escalonamento das regras como fator


de validade e, afirmamos agora, não ser possível abrir mão deste dado. Ele é
verdadeiro sob os aspectos da exigência de fundamentação de uma ciência.
Mas de nada auxilia na compreensão dos fatores extrínsecos das regras que se
entrelaçam com a realidade social. Em outras palavras, a ação legislativa e
judicial (ou qualquer que seja o mecanismo de modificação do direito)
requerida para a produção de regras válidas não faz parte em si mesma de
uma normatização anterior, mas da ação de seres humanos particulares[16].
Ao descer a escala de regras para sua aplicação judicial o mesmo se verifica:
o raciocínio do juiz ao fundamentar sua sentença, ou o acordo do júri, não são
explicados pela lógica da hierarquia da ordem jurídica, mas apenas pelos atos
concretos se sua criação e modificação.
Esta dependência intrínseca do direito e seu correspondente ato
criativo e modificativo em diversos níveis indicam a necessidade de dois
âmbitos discursivos numa teoria que se proponha a englobar todo o objeto.
Um discurso para as regras enquanto tais, estruturadas de maneira lógica e
expressas como fontes objetivas; e um discurso para o momento cognitivo de
personagens inseridos no âmbito jurídico. O direito seria uma linguagem de
duas funções: prescritiva e descritiva. É possível retomar a teoria linguística
de Karl Bühler para elucidar este ponto. Em sua fórmula de emissor-receptor-
objeto, temos a função apelativa da linguagem como a relação binária entre
emissor-receptor, ou seja, um discurso formulado por A com a pretensão
apelativa direcionada a B[17]. O discurso descritivo seria a metalinguagem
sobre o discurso prescritivo (linguagem-objeto). Estes dois discursos são o
conteúdo mínimo do que podemos chamar de linguagem jurídica. Seu
entrelaçamento tensional mostra a qualidade dialética que Theodor Viehweg
defendeu[18].
Não somente por via da criação legislativa e aplicação judicial pode-
se falar em dois gêneros discursivos: há mais exemplos que podem preencher
a zona de problemas dialéticos que este campo suscita. Os contratos, por
exemplo, são redigidos segundo a vontade ou, em paradigmas
contemporâneos, são estruturados a partir de elementos econômicos por
sujeitos individuais ou coletivamente, de acordo com um momento cognitivo
próprio de cada um ou, ao menos, por meio da manifestação de um consenso.
As partes contraentes fazem um pacto de regras válidas entre si, no sentido
que suas ações futuras têm por expectativa seu cumprimento. As regras
criadas em torno da relação devem estar de acordo com regras comuns do
ordenamento de determinado país ou o tratado internacional que a elas se
refira, e o contrato torna-se juridicamente válido a luz da possibilidade de
extrair consequências judiciais de seu prazo de vigência. É um exemplo de
uma circunstância econômico-voluntarista que produz um discurso
prescritivo por meio de um discurso descritivo. Os personagens em cena
participam do direito ativamente.
Ainda que tratássemos de sujeitos absolutamente alheios a qualquer
transação econômica contratual e a qualquer circunstância de aplicação
jurídica, ainda assim poderíamos apontar sua participação na ordem jurídica.
Um sujeito participa do direito cotidianamente em alguma medida ao pagar
seus impostos, ao votar nas eleições e na abstenção de praticar crimes. Se
porventura pensássemos em tipos ainda não definidos pelo agregado de
regras, como uma espécie nova de instituto jurídico, ou as chamadas
“lacunas”, ainda assim teríamos a participação no momento da indagação
sobre aquele determinado ato ser ou não considerado lícito. Parece que
sujeitos são um elemento básico da gramática normativa. A princípio,
bastante concretos, bastante reais. Mas ainda é necessário investigar sua
relação.
Podemos presumir uma presença do direito, um dado logicamente
anterior ao conhecimento intelectivo e mesmo ao nível sensível. Esta
presença do jurídico na existência do sujeito e, em contrapartida, o influxo da
presença do próprio sujeito no direito enquanto objeto pode ser descrita por
meio do conceito platônico de participação (metéxis). O indivíduo, de fato,
não é um agente isolado, olhando o direito de fora, mas está envolvido –
ainda que o ignore completamente. Esta experiência não serve para distinguir
o direito de nenhum outro fenômeno, pois é análoga à experiência do homem
em relação a muitos outros aspectos da realidade. Mas ela é instrutiva na
medida em que descreve que tipo de relação há entre o homem e o direito.
Voegelin inicia a exposição do tema da ordem na história justamente
explicando o conceito de participação: “Existe uma experiência da
participação, uma tensão reflexiva na existência, que irradia o sentido da
proposição: o Homem, em sua existência, participa do ser”[19]. O significado
desta proposição torna necessário esmiuçar os termos com que o filósofo
alemão trabalha, afastando a possível problematização do nível meramente
lógico[20]: Este sentido, no entanto, se perderá se esquecermos que o sujeito e o predicado
da proposição são termos que explicam uma tensão da existência, e não conceitos que
denotam objetos. Não existe um objeto chamado ‘Homem’ que participa do ‘ser’ como se
fosse uma atividade opcional a ele; existe, sim, ‘algo’, uma parte do ser, capaz de
experimentar como tal, e também capaz de usar a linguagem e de chamar esta consciência
experimentante pelo nome de ‘Homem’.

O “ser” de que trata Voegelin é a totalidade de experiências


relacionadas à realidade, na qual o indivíduo se submete apenas parcialmente.
No entanto, ainda que sua participação dentro da perspectiva do conjunto
total de seres seja modesta, na perspectiva do sujeito ela é total: a existência é
preenchida pela participação no ser[21].
Participar vem do latim participare. Etimologicamente, participar é
receber algo de alguém, é uma parte recebida de outrem. O que participa é o
participante, que recebe algo, o participável, de outrem, o participado.
Esquematicamente, participação é o fato de participar o participante do
participável do participado[22].
O conceito é aparentemente trivial. Vejamos uma de suas aplicações.
Segundo a filosofia neo-platônica, é possível determinar que o “que é
recebido é recebido segundo o modo de ser do recipiente” i.e., do
participante[23]. Há aí uma relação entre o participável que é recebido e o
participante que o recebe: ele não recebe totalmente e nem fortuitamente, mas
de acordo com seu “modo de ser”. É um conceito metafísico que podemos
exemplificar, por exemplo, pela leitura de um livro: o livro é algo que o autor
disponibilizou de seu potencial criativo para seus leitores. Eles, no entanto,
não recebem a totalidade da criação, mas apenas o registro editorial pré-
estipulado. Mais: não recebem uniformemente, mas cada um “absorve” do
livro algo de acordo com seu próprio modo de ser[24]. O conteúdo do livro
não pertence totalmente ao leitor—participante, mas permanece obra do
autor—participado.
A esta altura podemos formular a questão que nos interessa: de que
modo o homem participa do direito?
Inicialmente temos dois entes nos quais se verifica uma relação:
direito e homem. O “direito”, do qual não temos ainda uma definição, se
refere ao conjunto de experiências que compartilhamos em sentido “bruto”.
Antes de esmiuçar os dois entes propriamente – direito e indivíduo –, temos
de verificar que tipo de relação a participação trata, nos baseando
primordialmente em seu texto fonte. O Parmênides de Platão.
O que se relaciona partilha algo com o par da relação. O relativo é,
segundo Aristóteles, aquilo cujo ser se refere a outra coisa. A filosofia
medieval distinguiu entre relativum secundum dici e relativum secundum
esse[25], o primeiro como uma relação lógica, a nível de uma observação
acidental a respeito da semelhança entre dois entes (e.g., a semelhança do
formato cilíndrico do copo e do lápis); o segundo diz respeito a relações
essenciais, na qual um ser só é definido em relação ao outro (e.g., pai e filho).
A semelhança é uma relação entre qualidades. Mais que isso: sendo as
qualidades partes da substância, pode-se dizer que a semelhança só é capaz
de enfocar qualidades concordantes entre dois seres se estas qualidades forem
de uma espécie comum, afins de algum modo, ou seja, enfim, análogas. Ora,
em todos os seres há ao menos uma semelhança pelo fato de serem (no
sentido de existirem) e ao menos uma diferença (ou dessemelhança) pelo fato
de não serem o mesmo ser. Por isso Aristóteles, ao expor a doutrina de
Platão, considera estas duas formas como ontologicamente anteriores aos
seres[26], no sentido de poderem existir sem a necessidade deles. Os seres
semelhantes seriam, portanto, posteriores à semelhança, que se apresenta
como uma forma perfeita e anterior aos seres que dela participam.
No entanto, segundo Mario Ferreira dos Santos, esta consideração nos
levaria a aporias que não condizem com o pensamento platônico[27]. Platão
jamais afirmaria a anterioridade da semelhança enquanto uma forma, como
expõe Aristóteles acerca de seu predecessor. Isso porque a relação só pode
advir de um fundamento ontologicamente anterior a ela. Mario Ferreira diz
que o fundamentante, isto é, a qualidade enfocada como semelhante,
empresta um “grau de realidade” à relação[28].
A participação em si, metéxis, é um elemento da teoria das formas que
Platão expõe em Parmênides. A usual dualidade platônica do mundo sensível
e o mundo das ideias contêm os elementos que complementam a noção de
participação. Como método fundamental tem-se a dialética, diferente da
aristotélica, que será mais aprofundada nesta tese, mas ainda relacionada ao
seu elemento principal: a doxa, a opinião dos sábios, que buscam enfrentar o
problema da realidade por trás das aparências sensíveis e mutáveis. As coisas,
tal como as experimentamos, apenas copiam sua forma (eide)
correspondente. A grande aporia que Platão, personificado no diálogo por
Sócrates, enfrenta diante do venerável e temível Parmênides é justamente
como podem as coisas copiarem sua forma sem que se admita que esta, a
forma, está na coisa em si. Ou se admite que, de fato, estão, mas com isso
admite-se também que as formas são materiais; ou, se estiverem fora das
coisas, como garantir que não sejam um puro nada? Um exemplo permite
enquadrar a aporia em termos ilustrativos: um triângulo, que existe
particularmente desenhado no papel, tem, por assim dizer, dentro de si a
forma do triângulo ou esta forma é algo ausente? Platão vai pela via da
exterioridade das formas, como independentes da nossa mente. Elas saltam o
cronotópico para alojarem-se numa realidade superior. O termo forma, tal
como Platão utiliza, parece ter muito a ver com nosso conceito matemático de
fórmula, usado para descrever uma variedade de possibilidades latentes
dentro de um determinado ser. De fato, Mário Ferreira faz questão de
explicitar a familiaridade das formas platônicas com os números (arithmoi)
pitagóricos[29].
O novo desafio que Platão enfrentará será a investigação
gnosiológica, ou seja, de que modo as formas ausentes e superiores ao
intelecto humano e fora das coisas podem ser conhecidas? A teoria se
completa com a noção da assimilatio, a assimilação de algo que nos chega a
partir dos sentidos, mas que já é por si suficiente para atualizar o
conhecimento; há algo latente a ser despertado pela sensação, algo que é uma
contraparte do objeto no sujeito e faz com que ele se recorde daquilo que, de
certo modo, já sabe. A isso Platão chama de anamnesis[30].
Não se trata, como se poderia objetar, que as formas deste ou daquele
objeto são por nós recordadas (Parmênides desafia o jovem Sócrates ao
questioná-lo se a lama, o cabelo, a imundice e coisas sem valor teriam
também formas); mas a constatação de que a forma do objeto imita (mimesis)
o arquétipo que permite conhecê-lo. Um exemplo, posto que grosseiro, é o do
polímero: o material pode ser moldado a fim de atingir um determinado uso,
como carregar água. Nisto está, por exemplo, a forma do copo, que ao in-
formar o polímero, pela ação humana, dá origem ao copo. Não estamos
falando do mero formato do copo, sua forma, como salientamos, se relaciona
com sua fórmula, aquilo que Mário Ferreira chamaria de proporcionalidade
intrínseca da coisa. Podemos aprofundar alguns parâmetros desta forma pelo
modo como ela se adapta à finalidade: o formato cilíndrico corresponde ao
fechamento das mãos em seu entorno, a parte plana mantém o equilíbrio em
uma superfície reta (uma mesa), a espessura fina contém o máximo conteúdo,
a necessidade do material não ser nocivo ao ser humano, etc, etc. Todos esses
parâmetros são o que mais tarde Aristóteles classificará entre as propriedades
e acidentes da substância, tendo em vista sua natureza enquanto finalidade.
A relação da forma extrínseca à coisa e a coisa em si é, portanto, uma
participação (metéxis) da coisa em sua correspondente forma. Na medida em
que a coisa repete determinada forma ela impõe a si uma lei de
proporcionalidade intrínseca e passa a ser na medida em que esta lei é
cumprida.
Podemos partir do mesmo argumento para provar a existência do
direito: o homem, enquanto parte do ser, experimenta um aspecto da
realidade que repercute nele mesmo. O direito teria uma lei de
proporcionalidade intrínseca emanada da própria consciência humana[31]. Só
podemos afirmar a existência do direito por meio da participação do homem
no direito. Saltamos de um paradoxo ontológico de Zenão para uma
tautologia?
O direito não é uma entidade que subsista de per si, isto é, um ser que
exista fora do homem (fora da sociedade) de modo independente a ele.
Podemos tomar esta premissa por verdadeira a partir da constatação de que só
há direito enquanto relação, o que pressupõe os dois polos, homem e direito.
Pode, é certo, existir independentemente de um indivíduo, mas não do
homem em sentido amplo. A concepção de personalidade jurídica hoje
predominante, expansiva até entes ficcionais, bem como a ampliação dos
direitos humanos torna distante a ideia de uma ausência jurídica, isto é, de
uma situação na qual o homem se vê destituído não somente de “direitos”,
mas da experiência que ele suscita. A possibilidade de uma situação concreta
anterior à presença poderia nos ajudar a compreendê-la por sua negação. Este
caminho de investigação supõe a compreensão de antemão do que é esta
experiência a que nos referimos especificamente como jurídica; é o resultado
que esperamos alcançar no final da tese, motivo pelo qual somente após a
conclusão pode-se lançar a tarefa de uma investigação histórico-
antropológica a fim de confirmar ou desmentir o conteúdo da definição de
‘direito’. Efeito adicional desta linha de investigação seria uma busca pelo
fator jurígeno inicial, isto é, o surgimento do direito na sociedade primitiva, a
linha que demarca a experiência pré e pós jurídica do homem. Não será
necessário ir tão longe: a aparição de símbolos jurídicos em qualquer período
histórico atesta a participação do homem no direito.
Algumas civilizações antigas tinham em suas línguas um termo para se referir
à substância ordenadora que permeia não somente um agregado de regras
válidas, mas a totalidade de processos indicativos de uma ordem. O maat
egípcio significa a ordem emanada dos deuses. Tendo eles também seu
próprio maat, eram capazes de intervir no mundo[32]. É um dos termos
abstratos mais antigos da história das fontes, cujo significado indica
inicialmente, em seu sentido mais concreto, uma ordem de fenômenos de
natureza celeste observável por astrônomos da casta sacerdotal[33]. A ordem
celeste compreendida como causa da fertilidade deveria então ser imitada
primeiramente pelo Faraó, com a promessa de que seu reinado traria
abundância e restauraria o maat, independentemente de quão bom tivesse
sido o reinado anterior. Tal ordem é ligada a aspectos do ser divino que atua
através do mundo, o cosmos, descendo até a sociedade e até cada
indivíduo[34]. Nesta esfera pessoal o termo significa a ordenação do
comportamento, buscando a quietude, razoabilidade e cooperação. É produto,
portanto, tanto de uma cosmogonia quanto de uma ética.
O mundo a qual se refere o maat é exclusivamente ao reino do Egito,
e a ordem é exercida pelo maat divino que flui do Faraó para a organização
social pelo corpo de funcionários públicos do reino e chega até a aplicação do
juiz que decide o caso particular. A articulação do maat não é, todavia,
prerrogativa do Faraó e nem tampouco do magistrado: o conhecimento vulgar
do maat é a própria intuição acerca da ordem a qual todos reconhecem.
Assim os súditos podiam protestar contra os desvios do maat e criticar as
decisões tomadas[35].
Ideias e termos semelhantes são partilhados por outras civilizações
antigas, como o tao chinês, o nomos grego e a Lex romana[36].
Historicamente, o ideal de justiça era uma unidade entre idealidade e
realidade; assim, o “justo” podia ser alcançado por trás das coisas (medium in
re)[37]. Csaba Varga assinala que em comunidades antigas ainda sem a figura
do Estado não era possível distinguir entre costumes, contratos e leis:
“Costumes são expectativas normativas e descrições do status quo, contratos
descrevem convenções alcançadas, e leis refletem a decisão tomada pela
comunidade[38]”. Podemos apontar um segundo elemento essencial do
direito: intuições direcionadas a algo que podemos denominar
provisoriamente de ‘ordem’. As diferenciações do termo podem dar origem a
teorias de vários matizes, passando da ordem enquanto aliança divina entre
Deus e seu povo (o berith hebreu) até formulações modernas de substituição
total do Estado pela presunção de eficiência da iniciativa privada. A
determinação do grau de ideologia ou confirmação real da expectativa de
ordem contida nas teorias é o campo tensional onde todos os debates
descritivos se iniciam.
Esta unidade entre realidade e idealidade indica um aspecto
transcendente ao agregado de regras válidas cujo efeito ainda pode ser
verificado hoje. A criação de tipos penais com determinados conteúdos
prescritivos são indicativos do fenômeno quando constatados a luz da
experiência da ordem: a ação do Estado correspondente a cada tipo (pena
privativa de liberdade, restritiva de direitos, etc.) por si só não permitem que
o caráter prescritivo seja descrito a partir de uma finalidade. Significa dizer: a
lei por si só não estipula uma conduta, um “Não farás” à maneira e no estilo
dos discursos prescritivos antigos. A valoração de tal conduta existe, embora
permaneça latente no discurso prescritivo. Na hipótese de um agregado de
regras cujo requisito de validade fosse o único a definir sua essência, tudo se
reduziria a imanência da possibilidade de escolha entre agir ou não
criminosamente. As penas nada mais seriam do que preços de barganha pelo
ato[39]. Nesta hipótese qualquer juízo para além da validade só seria possível a
nível moral e para além do direito. Tal polarização entre a norma como mero
enunciado e como indicação de um comportamento correto ou justo ocorre
historicamente: “A lei é também distinta do formal e indiferenciado ius. Lex
(Lei) também se distingue do ius formalmente indiferenciado. Pois, na noção
de ius, o comportamento que resulta no justum (Justo) torna-se o elemento
central do conceito; A ênfase é assim transferida da própria coisa para o seu
reconhecimento e realização. Da mesma forma, nas noções de recht, right,
droit, diritto, o comportamento que rege o reto é o que recebe ênfase[40]”
Deste momento de diferenciação em diante, o discurso prescritivo torna-se
claramente vinculado a certo conteúdo que transcende o comando linguístico.
Há uma idealidade por trás da realidade expressa como regra, uma ordem
substantiva que é simbolizada pela ordem jurídica.
É preciso presumir inicialmente uma ordem substantivamente
construída pela ordem jurídica, a qual o processo de criação e modificação do
direito busca garantir. As intenções dessa ordem não são explicitadas na lei,
mas pressupostas. É uma operação intuitiva da teoria do direito. A “intenção
do legislador” surge como o encargo de buscar descrever as ações, eventos e
condutas de modo a permitir uma congruência com a realidade, estipulando
certos padrões; é uma operação racional[41]. O mesmo é determinado como
uma exigência para os demais sujeitos que atuam no campo do discurso
prescritivo: todos advogados, promotores, defensores públicos e magistrados,
todos que defendem, alegam, acusam e se submetem ao cumprimento de
normas. Ao mesmo tempo, todos estes participam do direito na medida em
que se verifica o propósito de garantir a substância da ordem na sociedade.
De que forma se dá esta participação e o quê é esta ordem jurídica na
sociedade é o que tentaremos descobrir.

Capítulo II – Condições iniciais de investigação e exame de fontes auto


expressivas

1. Estratégia teórica da busca pelo conceito de direito


É uma difícil questão filosófica determinar em que medida os
conceitos descrevem a natureza de um objeto. O uso de palavras para se
referir ao mundo pode, sabidamente, oferecer alguns enganos e
incompreensões, assim como não é de se desprezar a própria confusão de
significados suscitados pelo termo “direito”. Não prejudicaria, no entanto,
suspender temporariamente esta questão filosófica e propor uma busca pelo
conceito do direito – ligado ou não à ideia de natureza ontológica –, mas com
uma preocupação na utilização pragmática[42].
A partir de indagações voltadas ao domínio do objeto, a possibilidade
de um conceito do direito surgiria sob a forma de uma teoria, válida para
além da amplitude sistemática que lhe dá a dogmática, ou os conteúdos mais
ou menos rigorosos oferecidos por uma sociologia ou uma história. A
hipótese do conceito pragmático se aproveitaria tanto da cisão provocada pela
forma mentis jurídica baseada na lógica, quanto das novas abordagens da
própria ciência jurídica – especialmente a tópica de Viehweg –; e assim teria
condições para desenvolver uma aproximação dialética do objeto.
Tal aproximação dialética é peculiar e demanda uma explanação[43].
Por hora, afirmamos ter o rigor de um extenso e profundo trabalho filosófico
e filológico sustentando seu método, a decadialética, nome indicativo da
análise por meio de dez antinomias dialéticas constatáveis em qualquer objeto
finito, método criado e desenvolvido a partir da obra de Mário Ferreira dos
Santos[44].
O roteiro aqui traçado, de modo a apenas mapear esta primeira parte,
busca oferecer as condições pelas quais uma hipótese de investigação
filosófica dialética pode ser aplicada na elucidação de um conceito do direito:
inicia-se com a exposição dos entraves pelos quais esbarra nossa verbalização
sobre o fenômeno, avança rumo a uma teoria lógica dos conceitos, e a
explicação da tópica jurídica como ferramenta de organização dos problemas
ínsitos no objeto. Finalmente, estabelecidas e analisadas as condições, é feita
uma proposta.
A estratégia de posicionar a proposta no meio da tese – ao invés de se
iniciar por ela – requer uma justificativa. Esta tese não foi elaborada
linearmente. A intuição inicial de que a decadialética se adequaria ao direito
apareceu com a notícia de Viehweg e sua tópica como precursores
consolidados da alternativa ao discurso lógico[45] no direito. Seu trabalho de
combinar a logica inventionis da tópica aos sistemas jurídico-dogmáticos
sugeria uma confiável ponte entre “direito” e “dialética”. Poder-se-ia então
culminar na resposta da pergunta “o que é o direito”, a qual, embora não
fosse possível prever garantidos resultados, era ao menos uma hipótese que
valeria pelo aprofundamento na filosofia e no método de grandes juristas. A
aplicação do método decadialético começou então sem o preparo de uma
constatação prévia destas condições, tentando a interpretação do fenômeno a
partir das antinomias decadialéticas por meio de simples analogias. Houve
resultados proveitosos, mas ainda carecia perceptivelmente do rigor que tanto
a filosofia como a ciência requerem. O trabalho daria então um passo atrás
para investigar tais condições e prosseguir com um embasamento elucidativo;
somente a partir daí as antinomias e campos decadialéticos foram se
conformando e se mostrando adequados ao fenômeno observado.
“Observação” é, naturalmente, uma figura de linguagem insuspeita quando
dirigida a um objeto invisível. Vejamos, inicialmente, os entraves
apresentados na busca pelo conceito. Por que não podemos vê-lo.

2. Estabilidade e Unidade
Não é sem perplexidade que o aluno de direito descobre não haver
uma resposta peremptória, ou minimamente consensual, sobre a definição de
sua disciplina. Esta situação um tanto banalizada não é merecedora de
desprezo. Deve-se incluí-la como experiência significativa da busca por um
conceito do direito[46]. Tentar responder a pergunta com base nas impressões
mais evidentes seria o primeiro passo para uma investigação empírica. Nada,
contudo, garante que o resultado corresponda a um domínio do objeto[47]. Por
isso opta-se por iniciar o trabalho com a inquirição de quais impedimentos se
colocam frente à descrição de tal objeto.
Afirmamos que estabilidade e unidade são os dois entraves nos quais
a intuição e a razão esbarram quando se busca uma verbalização direta do que
seja determinado objeto[48]. Esta verbalização seria trivial para objetos que
permitem uma conceptualização pré-analítica, ou seja, sem o ajuste lógico
interno, como é o caso de objetos imediatamente apreensíveis por meio da
mera presença visual[49]. Podemos afirmar, como regra geral, que quanto
maior a facilidade em constatar a estabilidade e a unidade de um objeto tanto
mais concreto ele se mostra[50] por permitir uma visualização instantânea de
suas semelhanças e diferenças[51]. Uma boa descrição seria aquela capaz de
revelar esta concreção, elevando a capacidade intuitiva do interlocutor ao
mostrar-lhe que certas experiências e conceitos específicos aparentemente
desconexos guardam, na verdade, um sentido partilhado[52].
Não se nega que a transição da experiência ao conteúdo comunicável
está sempre eivada de perdas, variando conforme a capacidade expressiva de
quem formula o conceito e a captação mais ou menos idêntica do
interlocutor[53]. Mas não se deve alegar consequentemente uma
impossibilidade de descrever o direito. Ainda que as dificuldades linguísticas
se imponham, há algo para além destas garantindo a referência comum a uma
experiência semelhante: a própria unidade do real, sua homogeneidade e
continuidade intrínsecas compartilhadas pelos interlocutores permitem uma
investigação ontognosiológica[54] passível de esclarecimento.
Uma definição, podemos afirmar, é um conjunto de enunciados sobre
certo objeto, tais que, por fazerem referência a uma mesma experiência
comum da realidade permitem que o objeto seja reconhecido[55]. A
dificuldade em “definir o Direito” repousa não só na ampla experiência
referenciada pelo termo como também na dificuldade permanente em
distingui-lo de outras experiências similares[56].
Em linhas gerais, podemos descrever esta dificuldade nos termos
lógicos da extensão e intensão: intensivamente, o conjunto de experiências as
quais o direito faz referência precisa tornar-se claro a luz de um conceito que
lhe confira a unidade da referência na totalidade das experiências. É o caso
dos múltiplos âmbitos focalizados pela ciência e filosofia do direito: há
teorias que tratam da interpretação, dos valores, da dogmática, das relações
com o conceito de justiça, moral, política, teorias sobre a natureza do dever-
se, teorias sociológicas e econômicas, todas elas revelando múltiplas facetas
de um mesmo objeto.
Ao mesmo tempo, no contexto extensional, este conjunto de
experiências é intuído de maneira heterogênea em decorrência da sua própria
descontinuidade enquanto objeto em relação existencial com o ser humano,
participando do direito em mais larga ou estreita medida e não raramente
confundindo-se com o que se denomina terreno das demais ciências. A
dificuldade fica evidente, por exemplo, em se tratando de leis orçamentárias
em que o jurídico e o econômico se entrelaçam, ou a forma pela qual é
possível afirmar uma natureza simultaneamente política e jurídica com a
nomeação de um Presidente da República. Busca-se, neste ponto, agrupar
elementos a partir de certa homogeneidade[57].
Há, portanto, sob estes dois pontos de vista lógicos, certa dificuldade
em afirmar a unidade do objeto a que o conceito de “direito” se refere.
Todavia, não bastasse a aparente descontinuidade com que o conceito
de direito dificulta sua apreensão, há ainda o problema quanto a sua unidade
extrínseca sob o ponto de vista cronotópico.
Afirmava Leibniz que dois objetos não podem ser indiscerníveis sem se
confundirem, ou seja, se não é possível distinguir um objeto de outro temos
de admitir tratar-se do mesmo objeto. Teríamos de tomar por consequência
que não há apenas um “direito” como objeto, mas uma multiplicidade deles,
separáveis entre si apenas pela vocação científica do método que os estuda.
Não se trata somente de diferentes ordenamentos em diferentes países, mas
também nos diferentes períodos históricos; a esse fator tempo-espaço
chamaremos de cronotópico[58].
Contudo, se operarmos esta divisão do objeto ficaremos sem saber o
que serve de suporte às suas várias partes. Neste caso, não seria lícito
suspeitar algo em meio às diferenças cujo fundamento permanece em
comum?[59] Poderíamos, de fato, arguir que há mais semelhanças do que
diferenças entre qualquer dos “direitos” se comparados entre si. A existência
cronotópica variante no tempo e no espaço confere ao objeto certa
dialeticidade: posto que não sejam os mesmos “direitos” também não
podemos dizer que não são algo semelhantes, mantendo certa constância em
diferentes tempos e espaços[60]. Em outras palavras, deve-se inicialmente
tomar por pressuposto tratar-se do mesmo objeto para verificar os elementos
de sua unidade intrínseca e verificar como as diferenças cronotópicas se
ajustam dentro desta unidade (não excluída a possibilidade de haver algo
tomado por “direito” que, ao final, se revele contraditório). A esta
coordenação das diferenças, ou seja, este padrão, podemos chamar de
estabilidade[61].
Os entraves da multiplicidade e da instabilidade terão de ser
enfrentados por meio do método proposto. Mas além do conteúdo
materialmente abrangido pela tese importa também para fins da aplicação
correta do método um rigor lógico pelo qual se verifica a resposta a ser
buscada. A pergunta “o que é” determina que sua resposta verbal inclua,
necessariamente, o verbo ser. Este verbo, no entanto, não está isento de certa
peculiaridade filosófica. O tema requer certo desenvolvimento lógico para ser
devidamente aprofundado.
3. O problema semântico do “ser”
Neste subtítulo busca-se um conceito semântico[62] para o modo como
tal pergunta deve ser respondia. A pergunta pelo “o que é” nos conduz
imediatamente a uma investigação semântica sobre o “ser”. De modo prévio,
podemos analisar um possível resultado da pergunta pelo modo como
diferentes correntes filosóficas tratam o problema do “conceito”.

3.1. O conceito do “conceito”


Na história da filosofia a ideia de “conceito” esteve ligada
primordialmente ao que Platão entendia como “formas”: elementos abstratos
e arquetípicos. Estas formas se correlacionavam com os objetos sensíveis do
mundo empírico por uma relação de participação, sendo o modelo do qual os
objetos se copiavam imperfeitamente.
Há, basicamente, três correntes[63] pelas quais a natureza dos
conceitos pode ser apresentada: a) Como representações mentais, ao modo
como inicialmente fora proposto pelas filosofias empiristas como Locke e
Hume. Os conceitos seriam classes especiais de imagens relacionadas a
percepção alojada num meio físico (o cérebro humano) e dependeria de
eventos físicos para que se produzisse, ou seja, de um fato no qual
determinado objeto se apresentasse e sua percepção fosse gravada tornando-
se um conceito. Esta corrente passa, contemporaneamente, por uma
sofisticação no sistema de representações, propondo símbolos e porções
sintáticas próprias do pensamento como verdadeiro meio pelo qual os
conceitos seriam formulados[64].
b) As representações mentais podem ser criticadas por sua natureza de
meio entre a realidade e a percepção[65]. Não sendo nem um nem outro, é
difícil propor um tertius que não faça parte de nenhum dos dois gêneros.
Fica, assim, como um objeto que não é objeto e uma representação que não é
representação. Críticas semelhantes foram feitas ao notar-se a capacidade de
criação de conceitos aos quais não se faz precisamente uma imagem, como o
caso dos números. Uma linhagem cética em relação à existência e à utilidade
das representações mentais pode ser rastreada até Wittgenstein[66]. Uma
corrente próxima pode ser identificada na chamada Oxford Linguistc
Philosophy, com destaque a John L. Austin e Gilbert Ryle. Os conceitos
podem ser descritos, de modo geral, como uma habilidade[67]. O enfoque abre
mão das preocupações ontológicas acerca dos conceitos para atentar ao modo
como estes são utilizados.
c) Finalmente, uma vertente que, de certo modo, combina a
preocupação ontológica da primeira corrente com o rigor linguístico da
segunda. Pode ser caracterizada a partir da relação entre conceitos e o que
Gottlob Frege chamou de “sentidos”. O filósofo alemão divide os termos
lógicos em “sentidos” e “referência”. O primeiro como entidade abstrata
(nem psicológica, nem física) correspondente a um conjunto de propriedades
descritivas de determinado objeto. Estas propriedades cumprem, então, um
papel de ligar o objeto referido ao seu sentido, resultando no conceito[68].
Apesar de abstratas tais propriedades possuem um “peso cognitivo”, que
permitem a referência a determinado objeto. A teoria não explica, no entanto,
o modo pelo qual tais sentidos podem ser concretamente apreendidos e, por
conseguinte, como os conceitos podem ser formulados. Não era esta a
preocupação de Frege, norteando seu trabalho primariamente por uma
organização do saber lógico – não ontológico.
Uma possível aplicação da teoria fregeana dos conceitos pode ser
tentada, mas para isso será necessário elucidar sua teoria.
3.2. O conceito em Frege
O direito não se impõe de maneira pura ou exata. Tanto no aspecto
fático permeado por circunstâncias políticas quanto no âmbito
particularmente psicológico das decisões judiciais, percebe-se um imiscível
conjunto de experiências em constante e mútua influência dentro do qual se
firma o trabalho do jurista que se dispõe a dizer ‘o que é’ (quid est) o direito.
A diversidade de ciências que buscam descrever o objeto jurídico a partir de
suas diversas faces (sociologia jurídica, análise econômica do direito,
psicologia jurídica, etc.) já pressupõe que esta multiplicidade remete a um
conceito universal.
Dentro do campo lógico selecionamos um conjunto de esquemas
abstratos que formam um conceito, articulando as semelhanças tendentes a
uma generalidade. Segundo Frege, contudo, isto não é uma definição do
conceito. O autor no qual esperamos encontrar um aprofundamento para esta
questão diz que os conceitos são elementos simples da lógica e, como tal, não
podem ser propriamente definidos[69]. O filósofo alemão recorrerá, então, a
sugestões que levem o leitor a uma compreensão do que pretende transmitir;
e nós buscaremos aqui uma sintonia entre sua filosofia e a questão do
‘conceito’ lógico do direito.
Se tomarmos um conceito de direito como uma sentença assertiva ela
será, nos termos de Frege, uma “função cujo valor é sempre um valor de
verdade”[70]. O vocabulário matemático do autor indica o conceito como uma
relação sempre verificável entre a descrição genérica do objeto, congregando
suas semelhanças, e o objeto presente, dado imediatamente da realidade. A
validade do conceito se afirma se, e somente se, todas as possíveis situações
reais corresponderem sempre à descrição previamente formulada.
A distinção entre o objeto e o conceito se torna necessária neste
ponto, pois a questão sobre “o que é” o direito guarda esta ambiguidade.
Se descrevermos o fenômeno jurídico presente, tal como ele se
mostra, de modo a saturar[71] a experiência real que ele designa, o sinal verbal
“é” significa identidade, na qual é possível a reversibilidade sem incorrer em
um enunciado ambíguo[72]; por exemplo, “Aquilo que designo como direito
(...) são as profecias sobre o que os tribunais farão”. Equivale dizer: tudo
aquilo que os tribunais farão é/será direito e, reversivamente, tudo que é/será
direito corresponde ao que é feito nos tribunais[73]. Têm-se, aí, a descrição do
direito enquanto objeto.
Se, por outro lado, buscamos as notas constitutivas do direito, o sinal
verbal “é” serve de cópula, indicando a predicação; e.g., “Solução de um
litígio, apaziguamento de um conflito: fazer a paz reinar entre os homens é a
finalidade suprema do direito, e as pacificações, as conciliações, as
transações pertencem ao direito, bem mais certamente do que tantas normas
ambiciosas”[74]– aqui, estamos tratando do direito enquanto conceito,
apontando algumas de suas propriedades, mas não o limitando a ela. De
modo prático, a teoria lógica fregeana permitiria a constatação gramatical:
objetos são sempre precedidos por um artigo definido singular[75] e conceitos
são precedidos por um artigo indefinido. Tudo isso parece algo trivial, mas
permite elucidar o modo como a questão “o que é o direito” é respondida
nesses dois grandes grupos de respostas: aquelas que almejam um conceito e
aquelas que buscam descrever o objeto.
É de singular valor explicativo a analogia utilizada por Frege para
explicar os “conceitos”. Em geometria analítica, o gráfico de uma função
pode ser desenhado cruzando o valor das ordenadas e das abscissas; se
aplicarmos uma analogia ao processo lógico de formulação de conceitos
poder-se-á alcançar uma melhor compreensão deste. Assim: a) Seja “ ” o
objeto, isto é, o fenômeno presente tal como se mostra na realidade, completo
em si mesmo, o que equivale dizer, saturado, correspondente ao valor das
abscissas.
b) Seja o valor da função, análogo ao predicado gramatical
referente a este determinado objeto, correspondente ao valor das ordenadas.
c) O conceito é a função, da qual se exige que cada argumento (i.e.,
objeto) corresponda a um valor (o predicado, ) que seja um valor de
verdade, ou seja, verdadeiro[76]. Desta forma, qualquer que seja o aspecto
fenomênico do direito haverá uma estrita correspondência a um predicado
contido no conceito. Da mesma forma o tracejado de um plano cartesiano, no
qual se esboça uma função, tem cada ponto relacionado a um valor nos dois
eixos. A referência da palavra “direito” nunca poderá ser conceito, mas
somente objeto[77], o que equivale dizer, não se deve confundir a experiência
jurídica presente na realidade intuída intelectualmente e referenciada pelo
signo “direito” com o conjunto funcional de assertivas verdadeiras ligadas a
esta experiência.
A perspectiva sistemática partilhará dessas premissas apontadas por
Frege[78] sob a forma de seus postulados: a completude dos institutos tem a
função de preencher o valor da função para qual todo e qualquer fato jurídico
encontrará correspondência – uma possível descontinuidade do percurso de
valores da função daria ensejo ao problema das “lacunas jurídicas” ou de
pontos indescritíveis do fenômeno. Também a coerência do sistema pode ser
visualizada na analogia aqui empregada como o surgimento de uma
impossibilidade matemática nas condições da função: dois pontos no
conjunto imagem para apenas um no conjunto do domínio indicam uma
incoerência. Equivale dizer: para um “ ” não poderia haver dois ou mais ,
criando a contradição jurídica de um fato ter duas normas que sobre ele se
imponham.
Este arcabouço lógico que Frege provê ao estudo dos conceitos cabe
aqui em dois momentos: primeiro, especificamente como embasamento
teórico do paradigma dos sistemas e, de forma geral, da forma mentis lógica
que descrevemos capítulos acima. A conclusão, por fim, a que chega Frege,
sobre a impossibilidade de que a referência dos termos seja um “conceito”,
mas necessariamente um “objeto” diz respeito ao modo como delinearemos o
nosso próprio conceito de direito. Ela é problemática para uma filosofia
jurídica por colocar em xeque todo possível empreendimento que se
proponha a semelhante tarefa. Iniciamos a tese na direção de um conceito
pragmático, com vistas ao domínio do objeto, e agora podemos especificar tal
tarefa afirmando que o conceito buscado será uma referência a seu objeto,
não a outros conceitos. A tese não fará referência o modo como o direito foi
tratado conceptualmente ao longo do tempo e do espaço, mas o que estes
conceitos apontaram como unificado e estável, isto é, o que eles apontaram
como objeto.
Segundo, o conceito do direito enquanto sentido, isto é, o conjunto de
propriedades, selecionadas abstrativamente de modo a elevar a compreensão
a respeito do objeto, possibilita algumas conclusões iniciais para este
trabalho.
Nada impede que haja uma variância na seleção de propriedades de
determinado objeto para evocar-lhe o sentido. Assim, e.g., o conceito de
elefante pode incluir sua cor, tamanho, formato e sons, mas pode também
incluir sua classificação biológica. Fica nítido que, por trás da formulação dos
conceitos, há certa razoabilidade quanto à escolha de quais propriedades
serão incluídas ou excluídas, contanto sejam propriedades e não acidentes.
Pode haver também certo pragmatismo, no sentido já descrito acima, de
apresentar conceitos de acordo com a utilidade. Assim, por exemplo, o
tratamento e a cura terão relevância no conceito de determinada doença, mas
parece dispensável que o conceito de “torpedo” ou “míssil” traga detalhes
sobre seu cheiro ou sua cor.
O conceito buscado nesta tese se volta à perspectiva filosófica: não se
trata de apontar propriedades que expliquem o funcionamento dos sistemas
jurídicos, ou estabelecer definições aptas a incluir ou excluir ramos do direito
(como o direito primitivo, ou direito internacional), nem tampouco de separar
os campos concernentes ao estudo do direito e ao estudo da moral, embora
estas possam também ser tarefas executadas a nível filosófico. Esta tese busca
uma organização do direito por meio de campos de problemas inerentes ao
seu conteúdo (que são, como se buscará demonstrar, suas propriedades mais
estáveis), na expectativa de que daí surja, como resultado desta organização,
um conceito. Pensando pragmaticamente, a função a que se destina o
resultado desta tese não tem a ver com a possibilidade de modificar a
compreensão do que o direito é, mas de torná-la suficientemente clara por
meio da organização em campos de problemas. De tornar o direito “visível”
em alguma medida.
Se todo conceito do direito está fadado ao fracasso por não atingir o
referente na medida em que esta operação mental acaba por criar outro
conceito, fica claro que nossa busca deve voltar-se para o objeto e então,
somente a partir deste, buscar uma conceptualização. É um enunciado
bastante trivial, o qual possivelmente prescindiria de qualquer sofisticação
lógica para ser formulado. Quando buscamos o conceito de qualquer outro
objeto físico presente na realidade olhamos primeiro para o objeto e depois
para seu conceito; inversamente, se alguém nos diz ou se lemos o conceito
buscamos construir a partir dele um objeto, posto que imaginativamente.
Estes dados por triviais que sejam, todavia, impedem que a investigação saia
do rumo em direção a uma formulação que, ao invés de descrever a realidade,
busque adequá-la a algum pressuposto previamente formulado[79].
As assertivas feitas até agora sobre o direito, quer seja a dificuldade
imposta pela unidade e estabilidade, ou a necessidade de esmiuçar o verbo
“ser” por meio da lógica seguem, no todo, uma condição anterior a que esta
tese deve obedecer. Tocamos no assunto ao falar do desafio cronotópico,
tornando evidente a necessidade de um conceito não se limitar a nenhuma
contingência acidental histórica ou geográfica. A “função-conceito” deve ser
extensa o bastante para congregar dentro de si não somente a descrição de um
segmento gráfico, mas ter a possibilidade de descrevê-lo ilimitadamente. A
antiga questão sobre o direito ser sempre variável – diferente do fogo que
queima tanto em Atenas quanto na Pérsia – esbarra, necessariamente num
aspecto tensional entre sua positividade verificada no conjunto de leis,
códigos e costumes e universalidade, aquilo que está “por trás” dos
sistemas[80].
Uma história semântica do conceito de “direito” seria o primeiro
passo para a sua compreensão e desdobramentos na ciência e filosofia
jurídica, meio pelo qual o status questionis é alcançado. Nela iniciaríamos um
recolhimento das diversas opiniões de filósofos e juristas sobre “o que é o
direito”.
Este método não deve ser adotado neste momento. Iniciar a história
de um termo inevitavelmente levaria a escolha de definições, realçando
posições convenientes e introduzindo o elemento de apreciação subjetiva no
exame das fontes. Não se pode considerar útil para os fins deste trabalho
aquelas opiniões que buscaram uma formulação filosófica do direito, ou suas
relações com política, moral, economia e sociedade. As filosofias de Platão
ou de Aristóteles sobre o direito, por ilustres que sejam, não devem figurar
como elementos transitórios dentro de uma história em evolução rumo aos
dias atuais; elas são uma reflexão mais profunda sobre a ideia ou essência do
objeto, mas que, enquanto reflexão filosófica, não pode ser considerada uma
fonte autoexpressiva. Da mesma forma, o exame direto de leis e códigos
apenas contribuiria para amontoar um material suficientemente grande e
confuso que nada nos auxiliaria a delimitar racionalmente o objeto do qual
faz parte[81]. Por exemplo, uma investigação do direito primitivo ou
construção do direito internacional já afirmaria implicitamente serem estes
dois dos objetos que caem sobre o conceito de direito.
Busca-se, portanto, neste exame inicial de fontes, aquelas opiniões
cuja tarefa foi a de uma organização do direito da época. Busca-se
compreender as propostas de filósofos e juristas para construir (ou desvendar)
estruturas por trás do direito, expondo-o sob categorias, definições e
delimitações aptas a tornar seu conteúdo mais claro. Chamamos estas fontes
de “autoexpressivas” por serem aquelas cuja reflexão parte diretamente do
conteúdo normativo para expressarem de maneira mais clara seu próprio
objeto. É diferente de uma filosofia, cuja reflexão decola para as realidades
últimas[82] do objeto estudado, relacionando-o com instâncias diversas
(direito e sociedade, direito e o homem, direito e política, direito e justiça,
etc.); e é diferente também de uma análise histórica cujo objeto aparece de
maneira “crua”, exigindo uma interpretação por parte do historiador. O
método de buscar as opiniões assentadas sobre o assunto nada tem de
novo[83]. A peculiaridade será buscar nos juristas e filósofos do direito o
modo como eles se referiram ao direito do ponto de vista de sua configuração
intrínseca. A isto chamamos tecnicamente de objeto em contraposição aos
conceitos anteriores. Para criarmos um conceito próprio é necessário,
conforme a lógica fregeana afirma, examinarmos o objeto e não outros
conceitos.

4. Direito e tópica
Daremos especial atenção à abordagem de Theodor Viehweg, pois ela
indica os fundamentos desta tese e se correlaciona, como será demonstrado,
com o método decadialético. Viehweg, tendo alcançado uma intuição
originária na obra de Giambattista Vico[84] e alicerçado no texto
aristotélico[85], aponta o caráter fundamental da ‘tópica’: uma organização
segundo zonas de problemas[86]. É, portanto, uma técnica filosófica baseada
em raciocínios problemáticos[87]. Ela diverge do pensamento sistemático, tal
como fora apreciado pelos juristas a partir do século XIX, na mesma medida
em que a dialética diverge da lógica. Para prosseguir à análise da tópica,
Viehweg definirá os ‘problemas’ como “toda questão que aparentemente
permite mais de uma resposta e requer necessariamente um entendimento
preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que há de levar
a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução”[88][89].
Evidente que, na lógica, a possibilidade de haver mais de uma resposta
conflita com seus pressupostos de não-contradição, devendo ser rechaçada
pelo sistema (seja externo ou interno). Abrindo mão de uma resposta unitária
para cada pergunta (contrariando o requisito da completude dos sistemas) a
dialética perde no grau de certeza alcançável pelos raciocínios lógicos; mas
essa aparente incerteza não pode ser vista senão como uma condição do
desenvolvimento de um raciocínio investigativo por excelência. A tópica se
identifica com o raciocínio dialético, que tem por objeto opiniões geralmente
aceitas e são a munição do combate argumentativo. Em consonância estrita
com a Tópica de Aristóteles, seus métodos incluem, além da indução e
dedução emprestadas da lógica[90], também a descoberta e a apreensão de
premissas[91]; a discriminação da plurivocidade existente nas expressões
linguísticas[92] e a discriminação das diversas determinações categoriais[93]; a
descoberta das diferenças de gêneros e espécies e de semelhança nos
diferentes gêneros[94]. Trata-se, sobretudo, da tarefa filosófica de ordenação
das perguntas: os topoi são um auxílio na obtenção de raciocínios
dialéticos[95].
O caráter problemático de certos ramos do conhecimento sugere uma
aplicação profícua dos topoi[96]. No direito, a emergência de situações
conflitantes e o aparecimento cada vez mais acelerado de circunstâncias
inusitadas diante das quais os institutos prévios se veem despreparados
autorizam a elaboração de uma tópica auxiliar cuja função de orientação é
representada por Viehweg pela comparação à “fios condutores do
pensamento”. A elaboração desta tópica, entendida como uma catalogação
dos modos de compreensão dos problemas, sejam eles gerais ou específicos
de determinado assunto, é advertida por Viehweg como propensa a
descambar na elaboração de um sistema. Desta forma, perder-se-ia a
fecundidade do método dialético de pensar por contradições. A tentação de
formular conceitos e estabelecer definições em cadeias dedutivas com as
certezas do nexo lógico deve ser aplacada a fim de se manter o caráter
problemático da tópica. A projeção de um sistema, salienta Viehweg, apenas
cria uma fissura entre o próprio sistema e o mundo dos problemas, que
permanecem inalteradamente problemáticos[97].
O autor aponta, não obstante, a possibilidade de “catálogos” de topoi,
tal como fora formulado por Aristóteles e Cícero[98]. Estes catálogos não
obedeceriam ao rigor axiomático dos sistemas, mas funcionariam como uma
“tópica de segundo grau”, uma coleção dos principais pontos de vista sobre
determinado assunto.
A tópica tem ainda a função singular de descobrir premissas – a
chamada ars inveniendi de Cícero[99]. Este método, como assinala Viehweg, é
anterior à lógica, cuja função, por sua vez, pode ser útil para elaborá-las de
maneira conclusiva e prová-las retroativamente. Contudo, conforme foi
descrito acima, este prosseguimento lógico se mantém em limites modestos
sob a pena de se distanciar demasiadamente do problema[100].
Na prática, reconhecemos a tópica em debates sobre temas cuja
conclusão permanece em aberto (aporias), ganhando assim o caráter de
problemas. As premissas buscadas surgem sob a forma de aceitações e
recusas por parte dos debatedores (ou o filósofo singularmente debatendo
consigo mesmo), que ao longo dos discursos vão joeirando aquilo que pode
ser admitido por ambos[101], e assim conduzem a investigação[102]. Poder-se-ia
objetar quanto à insegurança das conclusões potencialmente obtidas.
Contrapõe-se a isso o próprio conhecimento prévio dos debatedores sobre o
assunto, reafirmando a definição aristotélica da dialética como a “opinião dos
sábios”[103].
Os sistemas exigem uma ordenação sob um fundamento lógico. O
pensamento tópico disponibiliza, no máximo, uma catalogação descuidada
dos topoi. Ao contrário da demonstrabilidade lógica dos enunciados do
sistema, a catalogação se sustenta pelo caráter dialético. Aristóteles atribuía a
este tipo de discurso o fundamento na “aceitação dos sábios”. Tal
fundamento impõe questionar: trata-se de um discurso científico?
Remetendo a Aristóteles, ciência ( episteme ) é definida
como o conhecimento pelas causas; diferentemente da técnica
( techne ), que é um hábito de produção por reflexão razoável[104].
Por um lado, a tópica parece não ser um discurso científico por lidar com
questões insuscetíveis ao conhecimento absoluto e certo[105]: Sentimos o
desejo de começar a estabelecer, por uma parte, uma série de conceitos
fundamentais, com o fim de obter definições em cadeia ou algo parecido ao
que aprendemos no que se relaciona com uma investigação de princípios.
Com isto, não obstante, alteramos a peculiar função dos topoi. Desligamo-los
progressivamente de sua orientação para o problema quando tiramos
conclusões extensas e absolutamente corretas.
Sob pena de tomar conclusões apenas provisórias como princípios
gerais, deve-se, então, negar um estatuto científico ao pensamento tópico.
Viehweg admite duas possibilidades da ‘cientifização’ da tópica[106]: a
primeira é a tentativa de converter o estilo argumentativo em deduções
lógicas, se dirigindo aos critérios lógicos exigidos pelo discurso científico,
sua completude e unitariedade de conceitos e proposições; a segunda é fazer
da tópica não um método, mas um objeto da ciência, buscando delimita-la e
descrevê-la a partir de um enfoque científico. Em outras palavras, ou a tópica
se transformava em lógica ou se subordinava a ela.
A primeira hipótese pode ser traduzida no esforço dos juristas
oitocentistas criadores de sistemas. O trabalho deles, segundo Viehweg, foi se
colocar contra a tópica em nome dos ideais do discurso lógico, mas ao
mesmo tempo não poderiam negar que seus resultados só podiam ter sido
alcançados devido aos longos debates antigos e medievais travados a
respeitos dos conceitos e institutos jurídicos, cujo fundamento era a própria
tópica[107]. As proposições e conceitos típicos dos sistemas são também a
matéria prima com a qual o pensamento tópico se integra; a diferença está na
interrupção dos desdobramentos dedutivos possíveis que o raciocínio lógico
possibilita. Por exemplo, a positivação do direito, que em geral atua como
uma generalização lógica de determinada circunstância, é evitada no
pensamento problemático sob a pena de desvincular-se das situações
individuais presentes, distanciando-se demais de suas peculiaridades. Mesmo
a positivação, quando ocorre, se dá pela cristalização de um procedimento
argumentativo “às apalpadelas” da solução correta ao caso. Somente ao final
essa solução torna-se fonte do direito. A rigidez do direito positivo será então
mantida até que, novamente, uma situação nova exija sua modificação,
demandando novos pontos de vista do pensamento tópico.
Ao explicar como esta passagem acontece, Viehweg explica que o
catálogo dos topoi é convertido em uma ordem mais ou menos fortuita de
“conceitos básicos iniciais” ou “proposições-diretrizes” de determinado
direito. Estes conceitos e proposições deverão obedecer ao rigor lógico,
exigindo-lhes clareza e evitando suas contradições internas, ou seja, os topoi
serão preparados para elevar-se à categoria de um conjunto de axiomas[108].
No entanto, a possibilidade de um corpo rígido de axiomas dos quais
os conceitos manteriam um elo implacável, permitindo transformar
completamente a dialética dos topoi na lógica das proposições, jamais se
realizou[109]. Mesmo teoricamente, este projeto enfrentaria dificuldades das
quais se pode inferir a impossibilidade de uma remoção completa da tópica.
Em primeiro lugar, há a determinação de quais axiomas serão adotados para
compor o sistema, sugerindo aí o prenúncio de uma indagação
potencialmente dialética. Depois de consolidados em linguagem natural, a
interpretação das proposições introduzirá uma ‘tópica oculta’, da qual o
jurista não poderá se desvencilhar. Fica assim provada a persistência da
tópica, mesmo no mais alto grau de formalismo. É preciso admitir que tópica
sempre esteve presente e sua techne continua a mesma dos séculos anteriores
ao predomínio do pensamento axiomático. Segundo Viehweg, a forma de
pensamento baseada em axiomas, deve sua importância ao momento
presente, ou seja, ao modo atual como o direito é descrito. Historicamente,
todavia, os axiomas se revelam não tão imprescindíveis, ocupando
objetivamente um segundo plano[110]. O primeiro cabe à tópica.
Viehweg cederá à confabulação de uma hipótese que alcance a
eliminação da tópica, estabelecendo ad argumentandum o predomínio da
lógica dedutiva. Para tanto é imposta a gerência sobre-humana de um
legislador incumbido de conceituar cada nova situação. Os enunciados
normativos estariam dispostos com uma especificidade tal que a interpretação
se extinga sob uma estrita proibição dentro do sistema. Ainda assim,
argumenta, o problema da escolha inicial arbitrária dos axiomas será
incompatível com a exigência lógica, pois seu fundamento e critério
respondem ao problema da justiça[111]. Sua argumentação serve para reiterar
a presença inelutável da tópica, porém é ponderada diante da hipótese de
formalizar “regiões parciais” do direito[112], dentro das quais o uso da lógica
na construção dos sistemas não exclui, mas se adéqua à tópica.
O desenvolvimento do raciocínio tópico não é, portanto, incompatível
com a ideia de sistemas. Seguindo a ideia proposta por Franz Von Hippel,
Viehweg, a elaboração dos problemas correspondentes à situações
historicamente dadas sob o fundamento filosófico da tópica torna possível
elaborar correspondentes respostas a estes problemas[113]. Estas respostas
formariam um código. A dicotomia entre perguntas-respostas permite ver o
direito positivo como uma resposta derivada, por sua vez, de uma aporia
fundamental: o problema da justiça. A unidade do direito reside neste ponto
axiológico; o valor imbricado nas respostas dadas pelo sistema de direito
positivo repousa sobre esta questão fundamental[114]: É claro que todas as
partes integrantes desta busca do direito têm de permanecer necessariamente
dependentes, e que não é lícito, por isto, tentar desligá-las de sua raiz
problemática e ordená-las depois isoladas em si mesmas. Não estão, em
absoluto, em situação de desenvolver um arcabouço semelhante, a partir de si
próprias. Projeto de sistema que contrarie este ponto de vista se elimina, em
geral, por si só, e é, apesar de toda a sua beleza científica, praticamente
inutilizável.

“Inutilizável” revela menos um ataque aos construtores de sistema


oitocentistas ocupados com a elaboração das fontes romanísticas
enquadrando-as na rigidez lógica, do que uma afirmação de que mesmo eles
utilizavam a tópica inadvertidamente. Ainda que a roupagem lógica fosse
ostensivamente demonstrada, era inegável que subjazia a ela um emaranhado
de perguntas antecedentes, todas estas ligadas pelo problema da justiça. A
teoria de Viehweg reata, neste ponto, várias correntes de pensamento que
haviam se distanciado a partir do século XX: a sociologia do direito podia
agora se embasar nos interesses em disputa por meio da tópica; a filosofia do
direito poderia fornecer teorias em resposta ao conceito de justiça; o
positivismo mantinha sua exigência de elaboração lógica sem prejuízo da
investigação sobre o problema da validade. Viehweg havia descoberto um
fundamento ontologicamente anterior aos problemas ligados a cada corrente
do conhecimento jurídico. Por ser assim, a tópica poderia existir
independentemente dos demais ramos e disciplinas jurídicas sem contradizê-
las; ao contrário, fornecendo-lhes uma explicação para seu desenvolvimento.
Assim como o “fogo que arde na Pérsia é o mesmo de Atenas” os debates
travados pela ius civile, pelo mos italicus, pelos iluministas do século XVIII e
pela civilística alemã do século XX tinham a tópica em comum. A tópica era
o elemento dinâmico, porém constante, presente nos discursos prescritivos e
descritivos.
Uma vez identificado o princípio dinâmico de determinado fenômeno,
basta abstraí-lo para obter uma estabilização.

Capítulo III – A pontamentos para uma proposta


Though this be madness, yet there is method in’t - (Hamlet - Ato 2, Cena 2) 1.
Método da filosofia do direito
A descoberta de Viehweg sobre a estrutura tópica da ciência jurídica
aparece com a advertência sobre sua sistematização científica sob a pena de
se criar mera projeção de um sistema sem levar a nenhum esclarecimento.
Mas, uma vez perdidas as esperanças de uma ciência jurídica baseada na
tópica, poderia ela ser aproveitada numa tarefa filosófica de obtenção do
conceito de direito[115]?
Verificou-se que as diversas tentativas em busca de um conceito
puramente científico do Direito e, ao mesmo tempo, condizente com sua
positividade – vale dizer, condizentes com determinada estrutura da
consciência[116] – lograram ou em um desvio à sociologia[117] e à
psicologia[118] descarrilando o saber jurídico de sua autonomia enquanto
atividade intelectual; ou numa separação lógico-interpretativa, com destaque
à teoria kelseniana. Explica-se esta insuficiência não pelo conteúdo que este
método científico-jurídico buscou obter, mas uma insuficiência essencial do
próprio método positivista da primeira metade do século XIX e
posteriormente neokantiano na primeira metade do século XX, enquanto fora
adotado como instrumento de construção das definições do objeto no qual
opera[119]. O positivismo filosófico é, com efeito, reducionista: parte de uma
exclusão do suprassensível, limitando o conhecimento válido à observação
empírica, ou seja, fatos, coisas e conexões ora causais ora imputativas. Ao
seccionar uma determinada área de fenômenos da realidade e sobre eles
investigar, não pode simultaneamente definir a totalidade destes
fenômenos[120]. Uma vez que cientificamente busca-se apenas alcançar
enunciados verdadeiros pela dedução e indução fica claro que a generalidade
da qual se obtêm conclusões particulares não pode ser, ela mesma, explicada
pelo método que nela se opera[121].
O mesmo pode se dizer para as investidas de um sistema externo
baseado na conceptualização totalizante: a definição do direito foge à
atividade da ciência jurídica se se compreende esta eminentemente como a
construção de sistemas de estrutura lógica. Neste caso, teria o condão de
chegar a conclusões dentro de seu objeto previamente delimitado, i.e., dentro
do próprio sistema (os teoremas, ou subconjunto T)[122], mas não poderia
emitir um enunciado verdadeiro sobre o que entrelaça as diversas
experiências formando uma universalidade[123]. Esta busca por construções
científicas totalizantes teve seu momento no século XIX, mas desde lá
eminentes cientistas já buscavam refrear pretensões de uma ciência
“universal” em vários níveis, tanto no sentido da abrangência do objeto
quanto da determinação apodítica do conhecimento[124].
A perspectiva da unidade do conhecimento que define o direito deve
ser um movimento ampliativo; o método dedutivo da ciência só pode tirar
suas conclusões a partir de um conjunto pré-disposto de dados mais ou menos
ordenados sob um mesmo nome, isto é, um modelo, aprofundando seu
enfoque como a lente de um microscópio, descendo das fórmulas genéricas
para as específicas[125]. Da mesma forma, a indução padece da mesma
limitação, só podendo alcançar conclusões gerais dentro de uma generalidade
pré-definida de dados aos quais ela pode confirmar, mas não estabelecer[126].
Em resposta a esta inadequação, o positivismo, em sua modalidade
especificamente jurídica, respondeu com a tentativa de substituir o objeto
material de seu método científico: o ordenamento jurídico viria em lugar de
sua experiência[127], assim como se substituíam as relações causais por
imputações, trocando uma universalidade por uma generalidade[128]. Evidente
que a manobra foi um injustificável recuo a nível ontognoseológico,
afastando o observador do objeto, tomando este por sua representação. Só se
explica a obstinação com que o positivismo buscou “dizer o que é o
Direito”[129] pela crença de que este seria totalmente compatível a uma ciência
positiva, no sentido moderno. Tal premissa seria resultado direto da pretensão
de adaptá-lo às requisições de neutralidade, seguindo não somente o
paradigma neokantiano[130] mas uma tradição que reverbera a “bifurcação” da
realidade em res cogitans e res extensa preconizada por Descartes[131].
Alterou-se o objeto a fim de se obter a precisão do método[132], erro o qual
Aristóteles já precavia seus discípulos[133].
Ainda assim, se é verdade que o objeto é que determina o método – e
não o contrário – a teoria pura e demais propostas norteadas pela forma
mentis lógica tiveram o mérito de construírem sistemas de imputações
seguras, abarcando desde os negócios jurídicos até o direito internacional. A
segurança proveniente das relações de imputação que asseguram a validade a
cada etapa da descrição do fenômeno é a mesma segurança almejada
materialmente no direito sob o nome de “segurança jurídica”. Kelsen acertou
em cheio ao propor um método que é, em última análise, um sistema interno
de reiteradas validações das normas pela comunidade jurídica, um sistema de
competências por meio do qual o direito não somente é criado[134], mas é
criado de forma segura.
Comparativamente a Kelsen, o método exposto a seguir é
determinado não mais pela segurança, isto é, pela possibilidade de
expectativas e resultados seguros na criação e aplicação do direito, mas
determinado pela qualidade dialética do objeto, isto é, a possibilidade de um
pensamento por problemas observado na dinâmica forense, nas decisões
políticas legislativas, nos atos administrativos, na formulação de orçamentos
públicos, nas formas representativas de governo, nas questões bioéticas, nas
alternativas conciliatórias de resolução de conflitos, nas propostas teórico
reflexivas, no repúdio aos cânones interpretativos, nas reflexões sobre a
injuntividade, validade e eficácia, na vinculação com a moral. Em suma,
todos os contextos jurídicos parecem em alguma medida se enquadrar na
definição de Viehweg para as zonas de problemas da tópica[135]. É esperado
que isso funcione: antes de buscar soluções seguras, o direito busca soluções.
Analogamente, busca-se então uma proposta metodológica pautada no
pensamento por problemas. A reunião estável de categorias de problemas
permitirá traçar os contornos da unidade do direito e, enfim, culminar em seu
conceito semântico-pragmático.
2. Campos e o método decadialético
Um método é, nos termos de Bernard Lonergan, um “esquema
normativo de operações recorrentes e inter-relacionadas que produzem
resultados cumulativos e progressivos”[136]. O método desta tese, conforme já
aludido, é a decadialética: um procedimento de investigação apto à
concreção de qualquer objeto conceptual, criado e desenvolvido pelo filósofo
brasileiro Mário Ferreira dos Santos, “(...) um conhecimento harmônico, que
capte os opostos analogados, subordinados à normal e normais dadas pela
totalidade a que pertencem, o que nós chamamos, em suma, a
decadialética”[137]. Tendo em mente ser um procedimento inusitado na
filosofia jurídica[138], forneceremos explicações que amparem na
compreensão mútua de objeto e método sem abrir mão de necessárias
citações diretas do autor. Embora seja o método pelo qual Mario Ferreira
desenvolve boa parte de sua filosofia, a exposição e o modo de aplicação do
raciocínio decadialético se resume às explicações em Lógica e Dialética[139] e
Métodos Lógicos e Dialéticos, volume III[140].
De modo preliminar, os campos do método decadialético são
antinomias dialéticas, cujo caráter busca superar os princípios lógicos
absorvendo-os numa relação. “O raciocínio decadialético estrutura-se no que
há de firme na lógica clássica, sem abandonar o que há de útil na dialética,
mas evita cair no terreno movediço, por infértil, da inconsistência”[141]. Por
conseguinte, não se pode considera-lo um método científico, pois falta-lhe a
conexão entre causas e os requisitos da necessidade e universalidade do
conhecimento obtido[142]. Mas ainda assim, é um método: o pensamento por
problemas elabora antinomias que ampliam a cognição sobre o objeto ao
investigar suas contradições internas. Sem fazer afirmações conclusivas, ele
permite a produção de resultados cumulativos e progressivos sobre a natureza
do objeto[143]: “A decadialética é a dialética dos 10 campos de raciocínio.
Esses dez campos combinam-se entre si, e tornam o raciocínio dialético
complexo, heterogêneio, como a heterogeneidade da própria existência”[144].
Mário Ferreira oferece um arranjo destas relações, numerando-as
esquematicamente de um a dez[145]: 1. Campo sujeito-objeto: Descreve as
possibilidades de compreensão do que há de subjetivo e o que há de objetivo,
investigando esta complementaridade dialética inicial[146].
2. Campo da atualidade e virtualidade: É o campo no qual se
investiga o que o objeto é em ato e em potência. O objeto não pode ser
tomado em si sem se levar em conta parâmetros de mudança intrínsecos a ele,
contendo, inclusive, suas contradições, motivo pelo qual se investiga
condições gerais da experiência para além da atual[147].
3. Campo das possibilidades reais e das possibilidades não reais: As
potências de um objeto não são as mesmas. Este campo diz respeito às
possibilidades e seus graus diversos de se atualizar, isto é, de tornar-se real.
Estes graus representam uma escala de probabilidade, na qual as
possibilidades reais são atualizadas e as possibilidades não reais permanecem
latentes.
4. Campo dialético da atualidade e antinomia entre intensidade e
extensidade: A dualidade “quantidade e qualidade” é vista com certas
reservas por Mário Ferreira. Sua superação é proposta com os conceitos de
intensidade e extensidade, explicáveis por meio de teorias da ciência natural.
A explicação do conteúdo destes dois movimentos dialéticos está
correlacionada ao “semelhante” e “diferente”, conceitos básicos sobre os
quais grande parte da teoria do conhecimento de Mário se funda. A
extensidade tem caráter homogêneo, racional, tendente ao semelhante; a
intensidade aponta para o heterogêneo, intuitivo, tendente ao diferente[148].
5. Campo das oposições de intensidade e extensidade nas
atualizações: O semelhante e o diferente encerram em si suas oposições, o
que se dá, por exemplo, nas passagens do quantitativo para o qualitativo.
Mário estuda as divergências a respeito deste ponto nas dialéticas hegeliana e
marxista, tecendo suas críticas a ambos. A problemática do “movimento” está
também aí envolvida, na qual as transformações do objeto podem ser
descritas pelos conceitos de extensidade e intensidade.
6. Campo das oposições do sujeito: razão e intuição: A distinção
lógica de sujeito e objeto é retomada, focalizando o sujeito e suas
atualizações. Conhecer determinado objeto pressupõe que não somente ele
seja investigado, mas também a natureza do conhecimento obtido através do
fenômeno. Os campos decadialéticos não podem ser descritos como mera
análise ou desconstrução. É uma investigação de maior profundidade e
abrangência, pois se apoia sobre o conjunto mais extenso de dados,
envolvendo desde a presença do objeto até a natureza cognoscente do
sujeito[149].
7. Campo das oposições da razão: conhecimento e desconhecimento:
Dentro dos processos racionais de conhecimento - aqueles que de maneira
geral trabalham tencionando uma organização informacional e extraindo dela
possíveis conclusões -, dentro destes se verifica a oposição fundamental entre
aquilo que é conhecido e o que é desconhecido. Desconhecer não significa
ignorar, tampouco é sinônimo do incognoscível. O racionalmente
desconhecido é a matéria bruta na qual a razão trabalha, trazida à consciência
pelas vias sensitivas e intuitivas, mas ainda informe e não ajustado aos
requisitos abstrativos da razão. Afirma Mário Ferreira “(...) em todo
conhecimento há seleção: conhecer é também desconhecer (consciência e
inconsciência), porque quando conhecemos alguns aspectos, desconhecemos
outros”[150]. Deste campo surgem oposições também no que diz respeito ao
apriorismo dos conceitos, aos juízos valorativos ou existenciais, ao
conhecimento categorial e conceitual.
8. Campo das atualizações e virtualizações (razão e intuição em
compasso): Fundamental para entender o pensamento de Mario Ferreira é o
caráter antinômico dos campos decadialéticos. Isso fica especialmente
destacado aqui quando se revela a simultaneidade dos processos de
atualização e virtualização da razão em reciprocidade inversa com a
atualização e virtualização intuitiva. Em outras palavras, o que se atualiza
racionalmente, se virtualiza intuitivamente e vice-versa. Uma operação
dedutiva ou intuitiva atualiza racionalmente determinada impressão obtida
intuitivamente, passando esta para um segundo plano. Da mesma forma, se,
depois de abstraídas as diferenças para a elaboração de um conceito, este é
submetido a um exame de suas diferenças em relação a outros conceitos
temos uma atualização da intuição e virtualização da razão.
9. Campo das oposições da Intuição: conhecimento e
desconhecimento: Analogamente ao que se afirmou sobre as oposições
intrínsecas à razão, há as oposições intuitivas. O que se conhece como
singularidade é conhecido intuitivamente, o que significa que se desconhece a
abstração deste determinado ente. É o contrário da razão: nela as semelhanças
são agrupadas dando origem aos conceitos, na intuição o singular é colocado
em destaque na medida em que as semelhanças são preteridas. Conhece-se o
singular e desconhece-se o geral; ressaltam-se as diferenças e desprezam-se
as semelhanças.
10. Campo do variante e invariante: Diz Mario Ferreira: “É uma
antinomia observável em todos os fatos: o que deles se repete e o que neles se
apresenta como novo”[151] (grifos do autor). A constância de alguns
fenômenos é a chave interpretativa deste campo. Algo ocorre e é tratado pela
sociologia sob certo conceito, ou seja, é um fato sociológico por um lado
inusitado, por outro já conhecido, o que motiva a consideração sobre suas
consequências. Algo nele varia pela sua própria estrutura tempo-espacial e
algo pode ser descrito à semelhança de outros fatos. Esta antinomia está
presente em todos os objetos, mas só pode ser considerada pelos sujeitos. O
fechamento da decadialética é uma retomada ao primeiro campo, integrando
todos seus aspectos.
Figura 1: Esquema em árvore dos campos decadialéticos do primeiro ao
nono.

O modo de aplicação deste esquema decadialético ao direito trará


maiores dificuldades do que sua mera explicação. A noção de “direito” pela
qual partimos não pode ser inicialmente definida, nos salvaguardando da
petitio principii de definir inicialmente para depois sair em busca de um
conceito, levando à circularidade[152]. Deve-se, pois, partir inicialmente de
noções retidas pelo exame das fontes autoexpressivas, ou seja, aquelas que
organizavam o direito e descreviam seus teoremas criticamente. Desta
organização inicial, busca-se uma nova adequação aos campos decadialéticos.
Tal expediente remete ao método clássico da dialética, verificando nas
opiniões consolidadas o que se exprime de comum e o que pode ser
constatado na experiência. Mário Ferreira anota algumas “regras práticas” do
raciocínio decadialético[153]: a). A lei da alternância: ação e reação – positivos
e opositivos.
b). Toda firmação exclui; e o excluído, se concrecionado com o
afirmado, deve ser lembrado.
c). Tudo que existe cronotopicamente se dá no tempo, portanto se
altera (lei da alteridade).
d). Tudo que é, tem, em si, razões dialéticas de ser e de não-ser.
e). Tudo o que é, para ser, xige o que se lhe opõe para atingir o ser.
f). Tudo o que é em ato, é indeterminado enquanto potência, e esta,
atualizada, revela novas possibilidades.
g). Ter sempre patente as polarizações dos valores e dos epítetos.
Algumas considerações devem ser feitas quanto ao objeto conceitual
sobre o qual nos aventuramos a escrever. Esta é uma tese de filosofia do
direito, muito embora com vistas a produzir um conhecimento objetivamente
válido conforme têm sido hoje apanágio das ciências[154]. Nada obstante, faz-
se uso aqui de instrumentos usualmente manipulados pela ciência jurídica
mantendo-a dentro de uma perspectiva de maior alcance, que é a filosofia. Já
tivemos oportunidade de afirmar que o saber filosófico busca sempre uma
unidade do conhecimento experimentando os objetos sobre os quais perquire
em sua totalidade, não raro em sua universalidade[155]. No caso, o objeto
material deste trabalho é o conhecimento desenvolvido pela ciência e
filosofia jurídica, equivalente ao que poderíamos chamar de fontes auto
explicativas do direito, aquelas nas quais o discurso prescritivo das
normas[156] foi descrito e analisado a luz de um método filosófico,
formulando conceitos baseados no objeto descrito. A utilidade prática pode
ser encarada como uma organização que direciona os questionamentos a
respeito de cada um dos campos. Ao final, a ideia de uma unidade sugere o
esboço do que pode vir a ser um conceito do direito, dentro de uma
perspectiva (objeto-formal quod) decadialética.

2.1. O que são os campos de problemas jurídicos


O conceito de “campo” surge com propósitos explicativos dos
fenômenos físicos relacionados principalmente ao eletromagnetismo[157] e a
indagação sobre o movimento das ondas oceânicas. O uso vulgar determina
campo como uma área ou espaço sob influência, ou dentro do alcance, de
outro agente[158]. Analogamente, aqui, os campos sugerem uma zona de
conflitos intrínseca aos diversos contextos em que o direito aparece e podem
ser explorados dialeticamente.
O uso explícito no método decadilético é o “campo” enquanto
conjunto de problemas aptos a serem tratados pelas antinomias
correspondentes. Assim, o campo do sujeito e do objeto diz respeito aos
problemas nos quais “sujeito” e “objeto” são antinomias aplicáveis;
extensidade e intensidade formam um campo de problemas correspondentes a
estas antinomias, e assim por diante para os demais.
Esta forma de investigação tem uma justificativa na própria dialética.
O modo pelo qual o paradigma dos sistemas jurídicos construía e explicava o
direito a partir das fontes tinha uma natureza lógica, ficando, por
consequência, adstrito aos requisitos da própria lógica. Conforme
apresentamos, os requisitos de completude e coerência buscavam englobar
toda a experiência jurídica organizando-a em conceitos, aproximando muitas
vezes a ciência jurídica ora de uma espécie de taxonomia de institutos, como
na jurisprudência dos conceitos de Puchta, ora numa taxonomia de
imputações, como no princípio do escalonamento de Kelsen. Este paradigma
se defronta com a crítica de Viehweg a respeito de seu caráter dialético de
fundo, não mais se justificando um tratamento puramente lógico. Por isso
esta abordagem decadialética ao tratar de campos de problemas (em lugar de
uma organização de conceitos e institutos visando atender aos requisitos
lógicos dos sistemas) busca oferecer ao direito um método propício a sua
natureza dialética. Os campos são, por assim dizer, lugares onde os
problemas jurídicos podem ser encontrados. A tópica dos antigos era nada
mais do que esta lógica inventionis que permitia descobrir problemas e, por
meio deles, conhecer novos aspectos do assunto tratado.
O paradigma e o método dos sistemas não podem ser admitidos
irrestritamente nesta perspectiva dialética. Reiteramos a crítica de Viehweg
sobre a necessária contraposição do pensamento problemático (equivale
dizer, dialético) ao pensamento sistemático[159]: Justificado que a
jurisprudência precisa ser concebida como uma permanente discussão de
problemas e que, portanto, sua estrutura total deve ser determinada a partir do
problema, buscando pontos de vista para sua solução, resulta que seus
conceitos e suas proposições têm de estar ligados aos problemas, de modo
especial. Isto é relativamente fácil de compreender no que se refere às
proposições de conteúdo jurídico. Em compensação, não é assim tão evidente
que os conceitos tomados isoladamente têm também de ser entendidos
exatamente do mesmo modo.
Tanto as proposições, quanto os conceitos, não podem, então, eximir-
se do resquício dialético que Viehweg apresenta. A investigação baseada nos
campos de problemas se aproveita desta circunstância para nela enfocar e
investigar suas possibilidades.
Os campos de problemas são, em suma, também eles tópicos no
sentido da qualidade de poderem se abrir para uma logica inventionis, ou
seja, um raciocínio de descobertas a partir das antinomias dialéticas do
método decadialético.

2.2. Crítica dos métodos


Duas indagações se impõem neste momento.
A primeira quanto ao que pode haver de arbitrário no procedimento
dialético em seu caráter indiscutivelmente subjetivo e, diga-se logo,
aparentemente inexato para conclusões de caráter filosófico. A proposta da
tópica de Viehweg, suscitada como aplicação profícua para a ciência do
direito, foi transferida para uma filosofia do direito. Poder-se-ia acusar esta
transferência de uma adaptação ilícita, contrariando o que afirmamos
reiteradas vezes sobre a adequação necessária entre método e objeto. A isso
se responde que, de fato, esta transferência foi feita sem maiores rigores. A
justificativa se encontra na especificidade da tópica para a ciência jurídica,
seu uso inicial sempre foi filosófico, e coube a Viehweg realizar a adaptação
para a ciência jurídica. Nesse sentido, estamos retornando ao uso genérico,
dando um “passo atrás” das conquistas metodológicas para verificar se há
mais alguma possibilidade no uso da tópica em filosofia jurídica. Tal como
Viehweg, é possível se apoiar no “pensamento por problemas” tal como
Nicolai Hartmann o descreveu: “O modo de pensar aporético [i.e., por
problemas] processa-se, em tudo, inversamente método clássico da dialética
produz conclusões prováveis, as quais não se coadunam com a precisão
requerida pelas ciências naturais. Já tivemos oportunidade de salientar que a
natureza do objeto impõe seu grau de cognoscibilidade pelo método, jamais o
contrário. Não obstante, a reflexão crítica que subjaz a esta forma de proceder
garante que cada fracasso – não salvo este – será futuramente o próprio
material pelo qual novas investigações poderão avançar nem que seja, num
limite, como erro a não ser cometido, dando margem a novas alternativas.
Toda elucubração teórica, se bem desenvolvida, partilha de um nexo comum
com todas as demais produções a respeito do tema[160].
A segunda indagação é quanto à opção pela decadialética de Mário
Ferreira. Utilizamo-la pelo seu valor intrínseco na investigação filosófica e
pelo proveito que disso pode tirar a ciência jurídica, ainda impregnada de
certa circularidade entre pragmatismos e logicismos. O que se disse à
dialética se aplica também aqui.

2.3. Requisitos formais da tese e procedimento de aplicação da


decadilética.
E afinal, o que é o direito? Esta tese se inicia preocupada com o tipo
de resposta que esta pergunta exigiria. Os primeiros capítulos são, em grande
medida, voltados para o problema de como respondê-la. A resposta deveria
atender a alguns pressupostos iniciais: a). Unidade e Estabilidade: Voltar-se
para os aspectos da estabilidade e unidade, a fim de garantir a concretude do
conceito.
b). Pragmaticidade: Ser pragmática, no sentido de possibilitar um
domínio do objeto, determinando suas definições e elevando a capacidade de
compreensão do conceito.
c). Objetividade: A partir da lógica dos conceitos em Frege, a resposta
deve fazer referência ao direito enquanto objeto presente da realidade, não a
outros conceitos – em que pese a importância destes como fontes auto
expressivas.
O conceito de direito enquanto tópica apresentado por Viehweg
indicava a possibilidade de atender a todos estes requisitos e atendia, ainda, a
possibilidade de aplicação do método decadialético. A sintonia entre os dois
autores – Mario Ferreira e Viehweg – não é fortuita: ambos tratam da
dialética aristotélica. Permite-se uma investigação baseada nos pressupostos
do direito como uma atividade humana voltada ao debate de problemas e o
mapeamento desses problemas de maneira a elucidar o que permanece
invariável por trás da variedade.
A solução é esta: por trás de toda discussão jurídica, seja ela
jurisprudencial (no sentido de teórica), dogmática, ou mesmo forense,
existem de maneira fenomênica, apontando para o direito. É um aspecto de
inabarcável instabilidade e multiplicidade do objeto no tempo e espaço.
Diferentes argumentos e diferentes respostas são produzidas, mas ao fim eles
devem se referir a um conjunto determinável de problemas de fundo. O
elenco destes problemas equivaleria ao procedimento tópico de catalogação
jurisprudencial e dogmática, ou de construção teórica de sistemas. A
instabilidade é reduzida a um número razoável, porém grande, de institutos e
teorias jurídicas que perpassam a história do conhecimento jurídico. São o
que tratamos por fontes auto expressivas que reúnem zonas de problemas.
Estes problemas, por sua vez, quando vistos sob a perspectiva filosófica,
referem-se às estruturas invariáveis (estáveis) pertencentes a um mesmo
objeto (unitárias). Quando organizados a partir do método decadiláetico, as
fontes auto expressivas são enquadradas em tensões descritas pelos campos.
Se esta organização se comprovar de fato realizável, os dez campos formarão
um conceito do direito.
Uma vez definido nosso destino, podemos iniciar a exploração dos
campos. A apresentação de cada um obedece a uma sequência de (1)
descrição do campo e aplicação ao direito; (2) “conclusão”, apresentando a
fórmula geral dos problemas daquele campo.
PARTE DOIS – TEORIA DECADIALÉTICA

I could be bounded in a nutshell, and count myself a king of infinite


space, were it not that I have bad dreams - (Hamlet - Ato II, Cena 2)
Capítulo I – P rimeiro campo
1. Campo do sujeito e do objeto
A relação lógica de sujeito e objeto é sempre uma relação recíproca,
tal como os papéis desempenhados por um e outro. Esta correlação não é
reversível. Ser sujeito é diverso de ser objeto e vice-versa, pois a função de
um determina a ele mesmo e a seu par, de modo não ser possível invertê-la
sem inverter seus conceitos. Essa função é, no sujeito, a função de apreender
o objeto; no objeto, é a função de ser apreendido ou apreensível pelo sujeito.
Segundo a abordagem fenomenológica, é no sujeito que algo se altera em
função de uma intencionalidade voltada ao objeto, podendo definir o
conhecimento resultante como a determinação do sujeito pelo objeto[161]. Por
isso consideramos o objeto transcendente em relação ao sujeito sem que, no
entanto, esta transcendência contradiga a correlação entre um e outro. Objeto
e sujeito só são inseparáveis no interior do conhecimento, pois cada um tem
um ser em si, não se esgotando um em relação ao outro[162].
Lembremos que o sujeito, além de apreender o objeto, deve ser ele
mesmo uma fonte passível de apreensão, que emite informação tal como
objeto. Este, por sua vez, não pode igualmente existir enquanto “objeto
puro”, absolutamente apreensível pelo sujeito; deve haver algo que o sujeito
não apreenda ou que se revele apenas parcialmente ou temporalmente[163].
Desta forma não existe um “sujeito puro” nem tampouco um “objeto puro”,
de forma que a constituição de ambos é pressuposta antes mesmo da relação
entre os dois. Este conjunto de afirmações é útil para estruturar o problema
partindo de uma investigação fenomenológica daquilo que é essencial a todo
conhecimento[164].
Todo ser é sujeito e objeto simultaneamente, sem que um conceito se
anule no outro; para tanto a perspectiva dialética é necessária. Dentro do
campo da lógica observamos que sujeito e objeto funcionam como polos de
uma relação biunívoca na qual o que é para um, só é assim em relação ao
outro, mantendo-se válida a reciprocidade formal, porém com limites
estanques entre a delimitação de um e outro[165].
É a dialética que rompe o dualismo estático do conteúdo de um em
relação ao outro provendo, a ambos, uma dinamicidade. Assim, o sujeito
passa a ser algo mais que não se esgota na captação de informações do objeto
e este, quando visto sob uma abordagem dinâmica, não é somente o conteúdo
que emite, mas também uma unidade que recebe[166].
O campo da dualidade dialética sujeito-objeto é o primeiro grau da
aplicação do raciocínio decadialético, do qual resultará a primeira dimensão
do objeto conceptual tratado[167].

1.1. Proposta dialética a partir dos discursos prescritivos e descritivos


Segundo a tradição consolidada a respeito de sua forma, toda regra
pode ser compreendida como juízo hipotético ligado a uma consequência. O
discurso feito a partir dessa regra não possui, entretanto, maiores rigores
lógicos, mas possui um sentido cognitivo próprio do ser humano e uma
direção evocada pela experiência da ordem substantiva da sociedade na qual
o discurso está inserido. Pensar e comunicar-se sobre as normas é diferente
de cumpri-las, aplicá-las e criá-las. Esta distinção está enraizada no tipo de
comunicação pretendido. A separação de sujeito e objeto está dada por
pressuposto em todo juízo, mesmo a nível gramatical; o modo imperativo e o
modo descritivo indicam respectivamente um discurso direcionado para um
sujeito e um discurso direcionado para um objeto ou estado de coisas. Estes
dois polos da relação servem como índices que indicam a prevalência de um
ou de outro em seus respectivos discursos. Sendo o direito uma forma de
linguagem, é certo afirmar sua forma lógica. No dizer de Lourival Vilanova,
o direito positivo “se não é, tende a ser um sistema”[168], não apenas um
agregado de regras, mas uma unidade dotada de organização e leis internas.
Há nos sistemas elementos que se relacionam segundo leis próprias (não leis
jurídicas, mas leis próprias da dinâmica do sistema)[169].
Podemos partir da divisão lógica dos sistemas em dois subconjuntos:
de axiomas[170], enquanto dados elementares e de validade[171] lógica
pressuposta; e de teoremas, cuja descrição corresponde ao funcionamento e
relações entre os axiomas. Nesta tese, o primeiro campo trata do caráter
objetivo representado pelo subconjunto A (os axiomas enquanto regras) e o
caráter subjetivo pelo subconjunto T (os teoremas enquanto discurso sobre as
regras)[172].
O aspecto subjetivo do subconjunto T – do conjunto dos teoremas ou
o discurso científico a respeito da matéria –, é evidenciado pelas
circunstâncias nas quais se produz: todo conhecimento científico tem por
base o testemunho individual direcionado a um objeto ou estado de coisas;
seja por meio das constatações empíricas ou da verificação lógica, nenhum
conhecimento é obtido à revelia de um observador e um referente[173]. Ao
tomar para si a tarefa do ‘construtor’ de sistemas, o filósofo imprime sua
própria subjetividade num determinado objeto, projetando sobre ele uma
descrição[174].
Exatamente este confronto dialético entre o que foi nomeado
subconjunto A, representando formalmente pela integralidade do agregado de
regras direcionadas aos sujeitos, e subconjunto T, como os discursos do
sujeito individual a respeito do sistema-objeto, é o campo da oposição entre
sujeito e objeto[175].
Na prática, poderíamos descrever os axiomas como o conjunto do
direito positivo de qualquer natureza cronotópica, não limitado, pois, ao
âmbito de validade temporal ou espacial (veremos adiante o porquê). Os
teoremas, por sua vez, seriam apresentados como todo o discurso descritivo
baseado em tais fontes, incluso sua sistematização e interpretação a partir de
matrizes filosóficas e histórica dos sistemas jurídicos[176].
Os problemas suscitados são aqueles extraídos da relação entre o
discurso prescritivo e o discurso descritivo[177]. Podemos explicar esta relação
no modo pelo qual ambos se afetam mutuamente. Assim, se é verdade que o
discurso descritivo tem por base o discurso prescritivo como um
espelhamento teórico do que é proposto, é também verdade que a imagem
neste espelho não é estática. Suas mudanças correspondem a contingências
que só podem ser primeiramente explicadas a nível teórico[178], dentro do
campo do sujeito, para depois serem reformuladas nos diversos mecanismos
de modificação e criação jurídica[179]. O campo descritivo não é, portanto,
uma descrição imóvel e passiva do campo prescritivo, mas é também ele, e
somente ele, que é capaz de provocar-lhe movimentos[180].
Discurso descritivo e prescritivo (sem ainda esmiuçar seus respectivos
conteúdos) são os dois gêneros sob os quais os fenômenos jurídicos se
manifestam. Como postulado inicial desta tese, podemos afirmar que: o
direito é formado pelo discurso prescritivo e pelo discurso descritivo sobre o
discurso prescritivo.
1.2. O discurso prescritivo
Formalmente, o discurso prescritivo é, no direito, o agregado de
regras com pretensão apelativa. Sem ele não há que se falar em objeto, pois
nele está o conjunto de enunciados a que denominamos subconjunto A, isto é,
axiomas cujo conteúdo é representado pelos sistemas sob a forma de leis,
decretos, sentenças, resoluções, entre outros[181]. Ao tratar o direito em seu
aspecto objetivo por “agregado de regras”, colocamos em suspenso as
relações e leis internas da dinâmica sistêmica que é descrita pelos teoremas,
isto é, pelo discurso descritivo.
A estrutura das regras, podemos afirmar, é uma constante no direito.
Trata-se sempre de um discurso prescritivo sob a forma de um enunciado que
enlaça um fato a uma consequência, imprimindo sobre elas um caráter de
“dever”[182]. O sentido, então, que subjaz a toda prescrição ao ligar um
determinado fato a uma consequência é o que dá o caráter normativo. Não se
confunde tal sentido com os enunciados descritivos que, conforme será
abordado, tem o sentido dependente de uma qualificação entre “verdadeiro”
ou “falso”. Aqui, no discurso prescritivo, a verdade descritiva tem sua
equivalente retratada, na maioria das vezes, como a validade normativa[183].
São proposições hipotéticas que, formalmente, obedecem ao esquema: Se a
situação de fato S possui os elementos descritos na previsão P, vigora para
essa situação de fato a consequência jurídica P. A amplitude de situações de
fato é contida na previsão abstratamente, isto é, selecionando um conjunto
suficiente de semelhanças e desprezando as diferenças cuja relevância para o
sentido normativo é diminuta[184]. Assim, essa operação mental de abstração
possibilita delimitar o conjunto de objetos da situação fática e conceitos da
previsão e da consequência jurídica. Os elementos das proposições jurídicas
avançam de modo a afastar o quanto possível a presença de um sujeito
cognoscente, objetificando o quanto possível a natureza do discurso[185].
Verifica-se tal afastamento na progressão histórica das fontes do
direito determinando mudanças em seu estilo de linguagem. O estilo
prescritivo avança de modo a livrar-se paulatinamente de seus elementos
descritivos; Radbruch anota a superação de três estilos desprezados pela
moderna técnica jurídica: a persuasão, a convicção e a instrução.
Persuasivo é o discurso que empresta elementos retóricos ao texto,
sugerindo a conduta ao mesmo tempo em que a prescreve. É, por exemplo, a
insinuação do valor moral abjeto, ao proibir “sodomia e outros pecados desse
tipo que, devido a sua monstruosidade, não podem aqui ser citados” no
Allgemeine Landrecht (Direito estatal) da Prússia de 1794[186].
O estilo da convicção busca apresentar motivos pelos quais a norma
deve ser obedecida e os motivos que a embasa, função hoje própria de textos
não vinculantes como os preâmbulos e a exposição de motivos.
De natureza semelhante é a instrução, explicando o que se quer dizer
com o texto, rompendo o laconismo da ordem dada; é o alerta reiterado por
diversos juristas sobre a má técnica legislativa em colocar as definições dos
termos na própria lei, melhor aproveitados nas doutrinas[187]. Conforme
afirmamos, a linguagem prescritiva torna mais apta sua finalidade na medida
em que se livra de elementos descritivos, compondo-se de uma terminologia
mais restrita de conceitos próprios, mantendo, porém, a função apelativa da
linguagem. Sua vocação científica também determina um estilo técnico,
esquivando-se de ambiguidades ou incompreensões, tendo por conteúdo
exclusivo proposições lógicas. Essa separação culmina na distinção, hoje
mais nítida, do que é a regra e do que é o discurso sobre a regra.

1.3. O discurso descritivo


Para que se bem compreenda o discurso descritivo e sua função de
provocar a modificação jurídica, é necessário expô-lo não como mera
linguagem ou texto que os juristas se utilizam para a descrição. O discurso
descritivo representa a compreensão e exposição ampla dos fenômenos
jurídicos, atos que só podem se efetivar pelo sujeito. Suas categorias
envolverão não matérias normativas como no caso do discurso prescritivo,
mas processos cognitivos e a ação do sujeito por meio do qual o discurso é
manifesto. A título de exemplo, tomemos o ensino jurídico como discurso
descritivo. Chama a atenção na história do direito o amplo papel ocupado
pelo ensino enquanto preocupação dos juristas. Não raro se encontra em
doutrinas contemporâneas o cuidado com a transmissão conceitual didática,
por vezes buscando-se um complemento com a prática forense, das obras de
Cícero, passando pelas Institutas de Gaio até o atual meio editorial dominado
pelos manuais. É inegável que a descrição do direito, inclusa sua
compreensão e explicação, ocuparam e ainda ocupam um espaço
considerável nas obras jurídicas de um modo geral. A determinação de um
sistema externo com uma função didática é a preocupação dominante da
ciência jurídica até fins do século XIX, seja no âmbito dogmático dos
aplicadores do direito, seja para os juristas que buscavam construí-lo sob um
determinado fundo filosófico. O advento da doutrina, entendida como um
Juristenrecht ou Professorenrecht, nos séculos XVI e XVIII repercute
diretamente na produção dos primeiros códigos[188]. O Código Civil francês é
apontado como obra de Pothier, Domat e Pufendorf, apenas travestidos da
vontade do povo rousseauniana[189].
Mais que isso: a explicação didática ou científica não limita o
espectro coberto pela descrição. Fosse assim, o direito estaria restrito a certo
número de indivíduos que com ele são capazes de interagir segundo suas
capacidades intelectivas. Naturalmente isso se afasta de modo evidente da
experiência cotidiana, na qual dificilmente é possível se “esquivar” de uma
relação jurídica na qual participamos[190].
O discurso descritivo pode ser formulado, conforme
fundamentaremos adiante, como atos subjetivos concretos relacionados ao
discurso prescritivo. Isso inclui naturalmente um enorme espectro de
possibilidades, as quais devem todas participar do direito sob o ponto de vista
da dinamicidade dialética.
No entanto, apenas o longo período de tempo e o considerável espaço
dedicado nas obras jurídicas nos quais se dispuseram os juristas a descrever e
pensar sobre o direito, bem como sua faticidade nas relações diárias não
tornaria imediatamente lícita a afirmação de que tais enunciados descritivos
também são parte do objeto conceitual, devendo, portanto, ser agregados em
seu conceito, como ora afirmamos.
Passaremos a argumentar no sentido da necessidade pela qual
integramos os discursos prescritivo e descritivo sob um mesmo aspecto
conceptual, determinando logicamente a pertinência desta relação com a
realidade. Antes, contudo, é necessário apresentar as teorias que
aprofundaram o teor analítico dos discursos a partir da abordagem metaética.

1.4. Descrição e prescrição na abordagem metaética


De maneira sucinta, podemos distinguir, dentre outras, duas
abordagens da ética por meio da natureza de seus problemas. A ética
aplicada busca resolver problemas éticos em situações particulares,
delimitando em torno de um problema específico qual sua solução de acordo
com determinados critérios. Tais critérios, por sua vez, correspondem ao
campo de problemas investigados pela teoria ética ou ética normativa. A
relação entre as duas abordagens corresponde a uma diferença bastante
similar ao que foi apresentado anteriormente como sistemas externos e
sistemas internos do direito. Importante observar que não se trata apenas da
passagem do particular para o geral ou abstrato, mas uma recondução dos
problemas iniciais a uma investigação dos critérios que subjazem às possíveis
decisões.
Diferente da ética aplicada e da ética normativa e suas respectivas
preocupações com os problemas e critérios éticos há a busca ainda mais
profunda por elementos que constituem o discurso aplicado às duas
disciplinas. A metaética busca responder que tipo de coisa é tratado pela ética
por “bom”, o que são os chamados “valores éticos”, se há ou não valores
objetivos, se é a moral objetiva ou subjetiva e de que natureza, enfim, o quê
são os problemas éticos. Novamente, não se trata de uma abstração de nível
ulterior, mas uma nova gama de problemas que se colocam tocando os
fundamentos da discussão.
Um apontamento inicial desta disciplina foi abrir mão do conflito
entre os diferentes critérios explorados na ética normativa para indagar sobre
a constituição básica dos discursos por meio dos quais os problemas são
formulados. Nesse ponto, deve estar clara a preocupação desta tese com esse
nível de abordagem, que é em tudo semelhante à estratégia de investigação da
natureza do direito por meio dos problemas que ele suscita. Tocamos aqui no
ponto em que o conjunto de problemas éticos podem ser descritos como
discursos, isto é, mecanismos interativos do homem, efetuado por meio da
linguagem. Seguindo a teoria de Karl Bühler indicamos os processos
fundamentais da linguagem por meio das indicações (dêixis) e
representações (símbolos)[191]. Estes dois processos fundamentam as três
funções semânticas da linguagem apresentadas por Bühler por meio da
interação entre emissor, receptor e objeto. São elas: função representativa
(Darstellungsfunktion); função expressiva (Ausdrucksfunktion) e função
conativa (apelativa) (Appellfunktion)[192]. Os discursos são desenvolvimentos
de premissas que cumprem tanto o processo de indicação quanto de
representação[193]. São, portanto, interações que visam estabelecer uma
credibilidade do conteúdo apresentado, afetando seu interlocutor de alguma
maneira.
Assim, podemos remeter a distinção inicial entre discurso prescritivo
e descritivo aos trabalhos de Charles Leslie Stevenson que, de maneira
pioneira, buscou esclarecer que os termos éticos são utilizados com funções
predominantemente expressivas e apelativas, ou, no caso da função
descritiva, tratam-se de “definições persuasivas”[194]. Nesse sentido,
afirmações morais do tipo “O presidente é ruim” não estavam sujeitos a
verificação por meio dos valores verdadeiro ou falso. Stevenson não
considera este tipo de afirmação uma descrição da realidade, mas apenas um
discurso potencialmente expressivo (algo equivalente a uma expressão de
desgosto, como uma vaia) ou prescritivo (algo equivalente ao comando de se
substituir o presidente). O fundamento metaético das questões morais era,
portanto, a influência causada por meio de afirmações ético-normativas. O
chamado “emotivismo” atribuía considerável importância para parâmetros
que só podem ser vistos, em última instância, como psicológicos. Justamente
este teor psicológico possibilitava a crítica baseada numa aparente falta de
critérios objetivos para sustentar a validade dos argumentos oferecidos em
favor de determinada afirmação normativa. Em outras palavras, a teoria
emotivista suspendia a discussão sobre a validade dos argumentos[195].
Mas, em que pesem as críticas, o marco da discussão ficou bem
estabelecido por meio dos conceitos apresentados por Stevenson. Um aparato
mais sofisticado surgiria em seguida aplicando a filosofia da linguagem de
John L. Austin à metaética. A teoria de Richard Mervyn Hare manteve a
distinção entre funções do discurso, argumentando, assim como Stevenson,
contra a derivabilidade dos imperativos de afirmações puramente descritiva e
afirmando o caráter predominantemente prescritivo[196]. Sua defesa do
chamado ‘prescritivismo’ descreve os imperativos e os julgamentos de valor
como pertencentes ao gênero do discurso prescritivo, se baseando na
premissa de que não pode haver uma dedução lógica de julgamentos morais a
partir de enunciados factuais[197].
Defendemos, nesta tese, a ideia de que o discurso prescritivo
corresponde à função apelativa da linguagem. O caráter normativo do direito
está, em última instância, ligado ao caráter linguístico pelo qual é concebido,
isto é, uma ação de convencimento. Discutiremos adiante o modo pelo qual a
função apelativa se sobressai ao paradigma da “validade” como fundamento
explicativo, sem, no entanto, buscar uma substituição artificial de um pelo
outro. Da mesma forma, a função apelativa se mostrará apta a explicar tanto
os processos de coerção, quanto de criação e modificação do direito.

2. Conclusão – Problemas do discurso prescritivo e descritivo


A experiência sugere, portanto, a permanente e indissolúvel
participação do sujeito detentor do discurso descritivo no discurso
prescritivo. A sociedade enquanto “segue” o direito reflete a seu respeito e
refletindo o modifica. Somente desta forma, integrando a ação modificativa
do sujeito ao agregado de regras válidas, preenchemos espaço intersticial dos
pontos estáticos no qual a validade é aplicada, resolvendo o paradoxo
zenónico do direito. Os problemas surgidos nesse entremeio são, na verdade,
todos os problemas jurídicos possíveis, porque englobam os dois entes da
relação sujeito-objeto. Podemos especifica-los, no entanto, se aprofundarmos
as relações de diálogo mantidas entre jurisprudência e a dogmática. A
primeira, empenhada em alcançar critérios precisos para a solução de
questões jurídicas, envolve a permanente tarefa de interpretação e de
“colmatar de lacunas”, mas não somente; para além dos aspectos que poder-
se-ia apontar como “subsuntivos” há ainda a complexa necessidade de clareza
e sintonia das regras para, ao final, evitar o quanto seja possível as
contradições valorativas. O problema seria, em última instância, da ideia de
justiça. A dogmática, conforme foi visto na evolução dos sistemas jurídicos,
avança de modo a superar a ideia da completude do ordenamento pela via da
construção de edifícios conceituais (ideia extremada pela “jurisprudência dos
conceitos”), relegando a tarefa meramente subsuntiva, no que se consolidou
como um “trabalho conceptual valorativamente neutro”[198]. A superação,
conforme visto, se dá por várias vias, mas especialmente o pensamento
orientado a valores sem que, com isso, se afaste a aplicabilidade e
operacionalidade que os conceitos oferecem, como é o caso da descrição de
tipos na metodologia de Karl Larenz. O diálogo, assim, entre dogmática e
jurisprudência pode ser verificado na medida da mútua influência que
exercem uma sobre a outra, tal como aqui as qualificamos a partir da
antinomia formulada entre discurso prescritivo e discurso descritivo. Uma
jurisprudência dos tribunais é capaz de fundamentar suas decisões com
material jurídico passível de um posterior re-exame dogmático; da mesma
forma, porém na direção oposta, a dogmática oferecerá subsídios materiais de
direito para a aplicação nos casos particulares.
Podemos enunciar, de modo geral, a tensão do primeiro campo como
fonte geradora de problemas. Ela se baseia na dialética entre os dois
fenômenos apresentados: a) A formulação de enunciados com pretensão
apelativa corresponde ao objeto do direito, estabelecido sob a forma de um
discurso prescritivo.
b) A ação concreta do sujeito sobre o discurso prescritivo, seja
elaborando-o, modificando-o, interpretando-o, sob a forma de um discurso
descritivo.
Figura 2: A sequência de figuras representa a substituição das antinomias do método por
antinomias do direito. A aplicação do primeiro campo substitui “sujeito” e “objeto” por
“discurso descritivo” e “discurso prescritivo”.

Capítulo II – Segundo campo


1. Campo da oposição atualidade e virtualidade do discurso prescritivo
O segundo campo partirá da definição de objeto como discurso
prescritivo para nele investigar a atualidade e virtualidade do direito in
abstrato descrito na norma.
A transição do discurso prescritivo em sua qualidade latente, isto é, a
simples pretensão, que evolui para a realização do discurso no âmbito social
é um campo vasto de problemas para a ciência jurídica e a filosofia do
direito. A tarefa de mapear zonas de problemas iniciada com a separação dos
discursos prescritivos e descritivos avança para dentro do primeiro, i.e., do
discurso prescritivo, com a formulação dos conceitos de virtualidade e
atualidade. Estes conceitos, emprestados da ontologia, tem o objetivo de
oferecer uma primeira aproximação ao funcionamento do direito por meio da
investigação dialética.
A atualidade e a virtualidade são, respectivamente, o movimento de
aproximação e o movimento de afastamento da realidade[199]. Quando
aplicados ao discurso prescritivo, isto é, ao agregado de regras, representam
um campo de problemas por meio dos quais tais regras podem ser trazidas à
realidade fática. Comumente tal se dá pela forma de uma reação
institucionalizada[200], mas afirmá-la como meio necessário e exclusivo pelo
qual o discurso prescritivo é atualizado confrontaria a possibilidade de uma
visão ampla e historicamente anterior às instituições[201]. Veremos em seguida
que a exigência de que a regra seja cumprida, isto é, a pretensão de
injuntividade e vinculatividade é o que confere o sentido de “norma”. Esta
qualidade de “pretensão a ser realizada” envolve tanto o processo de criação
do direito quanto sua aplicação, possibilitando a passagem do discurso
abstratamente concebido para a realidade factual das relações humanas. Ao
contrário, seria possível falar em regras meramente descritivas que
traduzissem um comportamento reiterado na sociedade, sem lhes conferir o
vigor de um imperativo ou comando – neste caso, traríamos de regras, mas
não propriamente de normas[202].
A virtualidade é também a consequência fática cuja expectativa a
norma permite vislumbrar, mas apenas em estado latente, ou seja, em um
estágio distante da realização.
Seria trivial, no entanto, apenas afirmar de modo geral que há regras
que se atualizam (se realizam) e outras que se virtualizam (se tornam ou se
mantém latentes). Precisaremos esmiuçar as conclusões obtidas no campo
anterior, submetendo-as a casos “de fronteira” do direito constitucional para
verificar a real pertinência da atualidade e virtualidade enquanto conceitos
explicativos.

1.1. Revisitando o problema da validade


No capítulo introdutório, a discussão sobre a existência do direito e o
paradoxo zenônico deu margem à discussão quanto à validade como
fundamento do direito. Lá, obtivemos como resultado a insuficiência do
pressuposto de validade quando encarado sob a perspectiva do continuum
temporal, existindo, ao contrário, como uma série intermitente de regras
válidas. A explicação, no entanto, não permite descartar a primazia da
validade em si para a compreensão do direito, uma vez que sua presença na
ordem jurídica é evidente e explicativa de muitos fenômenos. Salientamos
que uma existência temporal só ficaria completa se, em adição ao processo
validativo constitucional, houvesse a ação humana voltada para determinado
fim. Uma vez mantida, a validade impõe uma série de problemas quanto a
sua natureza.
O modo usual, seguindo a linha positivista, pelo qual atribuímos
validade a determinada regra é o escalonamento normativo. A validade só
pode ser emprestada de outra validade superior, qual seja, o processo descrito
constitucionalmente para a adesão de leis ao agregado de regras.
Naturalmente, sendo este processo constitucional também um agregado de
regras, tem, todavia, a singularidade de não poder emprestar sua validade de
algo hierarquicamente superior. A validade deve, portanto, ser buscada
externamente, em fontes extra-jurídicas.

1.2. Alternativas ao problema da validade


Usaremos o processo constitucional como caso limite para representar
o modo pelo qual determinadas regras podem ser atualizadas, isto é,
realizadas enquanto fato de valor social. Sendo as constituições espécies de
regras no topo do escalonamento, sua investigação funciona como caso de
fronteira do direito constitucional, uma vez que a alternativa de basear o
“porquê” de sua validade em uma validade superior já é, de antemão,
descartado[203].
Das várias alternativas históricas para responder esta questão,
utilizamos como exemplo a doutrina política de Jean Bodin. Nela o problema
é direcionado a novas faixas de realidade sob os símbolos do direito natural e
divino. Não cabe aqui especular a respeito da estrutura interna da teoria da
soberania, o importante é ressaltar os novos elementos extrajurídicos que
surgem de modo a suprir a contingência ontológica deixada pela validade.
Em Bodin os “poderes fáticos” conferem validade ao direito na medida em
que o decretam, o poder soberano é a autoridade que organiza uma estrutura
de poder envolvendo a sociedade[204]. Assim, regras com a finalidade de
manutenção e garantia da ordem podem ser expressas sob a forma da lei e
seus mecanismos. Estamos diante, aqui, do fundamento necessário que
ampara o questionamento a respeito da reação institucional do direito diante
do fato. O agregado de regras, no caso da proposta de Bodin, surgiria como
efeito de um poder soberano que articula seu poder em diversos âmbitos da
sociedade[205].
A aparente naturalidade do processo não deve nos enganar: somente
com o exercício ativo do poder é possível instaurar inicialmente o agregado
inicial de regras válidas. A figura de uma revolução emerge como experiência
histórica mais destacável, mas não pode ser necessariamente a única, já que
ela é, por definição, a substituição de um poder anterior. Este fator do
contexto social que aqui poderíamos incluir como manifestação de um
discurso descritivo acionado contra o discurso prescritivo vigente leva o caso
de fronteira ao um patamar ainda mais extremo. Pois não será a substituição
do agregado de regras efeito de uma substituição do contexto social,
culminando com um novo corpo de regras? E essa transformação propiciada
pela experiência revolucionária não permitiria falar em uma nova ordem
jurídica? E se há uma nova ordem jurídica não é efeito espelhado de uma
nova ordem substantiva da sociedade? O campo da atualidade e virtualidade
deve voltar-se, agora, não somente à análise dos mecanismos pelos quais a lei
se realiza a partir de casos individuais, mas o próprio fundamento da
possibilidade de concretização.
A análise pode ir mais fundo, uma vez enquadrada em um problema
de caso-limite do direito constitucional. Ele terá a função de exemplo crítico
para demonstrar um cenário de realização (atualização) de um agregado de
regras ainda em estado latente (virtual), sem a pretensão de uma análise
histórica e jurídica da matéria. Veremos adiante de que forma o problema da
ordem substantiva da sociedade se articula com a validade da ordem jurídica.

1.3. Caso-limite: a validade da Constituição dos Estados Unidos da


América
Muito poderia se indagar acerca da continuidade substantiva de
determinada ordem jurídica e talvez ainda mais se enfrentado o problema em
seu todo, isto é, da continuidade da ordem social. Durante os seis anos em
que os Estados Unidos da América foram governados sob a forma provisória
do Congresso Continental havia um ambiente suficientemente instável no
qual a investigação sobre a relação entre ordem jurídica e social é
evidenciada. O conflito armado com a Coroa britânica sob a expectativa de
separação colonial sugere, ao menos sob o aspecto político, a instauração de
uma nova ordem social. É possível, no entanto, argumentar contrariamente
com base em fontes históricas e sociológicas sobre as transformações
advindas da Revolução, principalmente no tocante ao estereótipo persistente
enquanto autoridade política, isto é, homens brancos e ricos, pouco distintos
das autoridades britânicas. Isso criava a dissonância entre o nacionalismo
enquanto colônia e o patriotismo em gérmen, exposta na preocupação do
ministro de Connecticut, Ebenezer Baldwin, ao tratar a Revolução como uma
“guerra mais desnatural (...) na qual as pessoas da mesma nação, com a
mesma ascendência, a mesma língua, a mesma religião professada e
herdeiros dos mesmos privilégios serão levados a sujar as mãos com o
sangue dos outros”[206]. Todavia, a Revolução é acompanhada por um novo
aparato jurídico de nuances constitucionais: os Artigos da Confederação,
aprovados pelo Congresso Continental em 1777 e ratificados pelos treze
estados em 1781. Dali a seis anos uma reunião organizada para discutir
melhorias[207] no governo federal acabará por organizar um novo governo,
sob a forma da Constituição dos Estados Unidos da América.
No entanto, e aqui entra o elemento limite, a reunião do Convenção
de Filadélfia para a revisão dos Artigos da Confederação era, sob o ponto de
vista processual, uma assembleia revolucionária por não seguir propriamente
a expectativa de perpetuidade consagrada e esperada nos próprios Artigos.
Processualmente, eles determinavam que alterações só fossem feitas sob o
acordo de todos os estados[208]. James Madison, consciente das limitações
jurídicas da Convenção, escrevia "the foundation of the new system in such a
ratification by the people themselves of the several States as will render it
clearly paramount to their Legislative authorities”, crente de que a
Constituição poderia sobrelevar-se às leis estaduais, ao contrário dos Artigos.
Muito embora houvesse a aprovação do Congresso para uma convenção
organizar-se e revisar os Artigos, não se pode dizer que a consequência de
elaborar uma Constituição fosse esperada, mesmo porque o processo de
ratificação encontraria posteriormente dificuldades políticas que sem dúvida
extrapolaram o âmbito jurídico. No fim das contas, acertou-se que apenas
nove das treze colônias precisavam assinar a Constituição para que ela
entrasse em vigor[209]. Pensilvânia e Connecticut ratificaram por decisão
majoritária; Nova Jérsei, Delaware, Georgia, por decisão unânime;
Massachusetts, Maryland, Carolina do Sul e New Hampshire aderiram após
debates completando os nove necessários. Porém, não seria ainda
politicamente suficiente contar com estes estados sem o apoio dos dois mais
relutantes e mais poderosos: Nova York e Virgínia. O debate prosseguiu
dando origem a toda uma literatura envolvendo as questões federalistas e
anti-federalistas, até que em 1788 apenas Rhode Island e Carolina do Norte
ainda se mostravam reticentes. Mas a maioria política já era suficiente e a
Constituição era, sob o aspecto legislativo, válida. Em 1789 um processo
eleitoral nacional já indicava o primeiro presidente.
Tais dificuldades marcam, sem dúvida, um processo de
amadurecimento político completado por uma renovação da ordem social.
Voegelin observa sobre o fenômeno[210]: A gênese da Constituição americana
nos eventos ocorridos entre 1776 e 1787 fornece talvez a melhor lição para o
crescimento do poder autorizado numa sociedade nova, acompanhado como
foi por uma habilidade soberba no delinear de formas jurídicas para a
estrutura estável O caso é especialmente relevante, conforme anotamos,
porque mostra que o processo de validação já previsto torna-se relativizado a
depender da situação histórica. A aprovação dos nove estados, ao invés de
treze como explicitavam os Artigos da Confederação, violava o estipulado
como processo legal de revisão da lei. A maior relevância da ordem política
da sociedade quando comparada à validade no âmbito legal fica ainda mais
nítida quando a não-adesão de Nova York e Virgínia impedem a aprovação
do documento. A validade de uma regra fica, portanto, também sujeita a
indagações[211]. O caso norteamericano, no qual houve uma reestruturação das
instituições políticas com a adesão dos estados ao novo texto constitucional,
parece se enquadrar numa real tomada de poder, ainda que por processos não
visivelmente violentos como fora a Revolução Francesa. No curso dos
acontecimentos a eficácia dos Artigos da Confederação foi desrespeitada, o
que torna a Convenção de Filadélfia antijurídica. No entanto, dizer
“antijurídica” apenas afirma a validade dos Artigos, pois uma norma
desrespeitada motiva uma consequência jurídica já prevista no ordenamento.
É preciso, portanto, admitir que a realização da Convenção tratou-se de uma
assembleia revolucionária que atacou a efetividade do ordenamento jurídico
como um todo, e por isso comprometeu-se a validade tout court[212].
A revolução segue uma necessidade de emitir ordens, de constituir a
si mesmo um núcleo normativo e exigir dele o cumprimento a fim de não se
tornar mero exercício arbitrário de poder. Muitas questões podem ser
levantadas neste ponto. Eficácia e validade são parâmetros para se classificar
um determinado estado de coisas. A similitude entre ambos – e aqui
poderíamos juntar, ainda, a existência, seguindo a clássica definição de
Pontes de Miranda – justifica que sejam ambos englobados por um mesmo
gênero. Buscamos provar aqui, com o caso-limite em que a validade da regra
fica claramente condicionada por disputas políticas extra-jurídicas, que o
conceito de validade não pode ser o critério unificado de definição do direito,
nem tampouco seu fundamento explicativo. A eficácia, por sua vez, é um
evento mais nítido cujas constelações de poder se manifestam, mas que,
mesmo assim, não funciona explicativamente. O conceito de “atualidade” não
se confunde, portanto, com a validade e eficácia, mas pode abrangê-las.

1.4. Definindo atualidade e virtualidade


Seria interessante pensar no direito meramente como um jogo de
participação consensual, seguindo determinadas regras anteriormente
concebidas e esta seria uma descrição bastante apurada do fenômeno se não o
olhássemos do ponto de vista mais extremo, isto é, da possibilidade de burlar
as regras. O que se daria se, depois de decidido determinada lide, a sentença
não se cumprisse? Ou se, aprovada determinada lei pelos mecanismos
constitucionais, ela não entrasse em vigor?
Em ambos os casos podemos aplicar a terminologia que agora
formulamos como atualidade, isto é, a passagem dentro do discurso
prescritivo de um conjunto de regras em estado latente para um estágio
avançado de produção de efeitos. No caso da sentença, os efeitos buscados
podem ser tanto de natureza fática quanto manter o estatuto de natureza
jurídica (decisões declaratórias). Já a aprovação de uma lei tem eficácia de
natureza jurídica, apenas num segundo momento propaga efeitos fáticos ao
ser vinculada aos processos decisórios. Estaríamos, então, sendo
analiticamente simplistas se definíssemos o conteúdo da atualização como a
faticidade da regra, isto é, seu efeito factual no caso particular. Tal conteúdo
não abrangeria os casos em que o discurso prescritivo é elaborado para versar
sobre ele mesmo, a exemplo das sentenças declarativas, ou no exemplo dado
acima sobre a aprovação de leis[213]. É necessário melhor investigar o
conceito para estabelecer sobre quais problemas este campo diz respeito.
O caso-limite da Constituição dos Estados Unidos da América
forneceu dados sobre uma situação histórica de aprovação de uma lei sob
circunstâncias que, sem dúvida, são extremas quando confrontadas com o
procedimento ordinário segundo o qual leis são aprovadas. Por não seguir
propriamente o que estabelecia o mecanismo validativo anterior, foi possível
observar elementos extrajurídicos correndo em auxílio à tarefa de ordenação
de uma sociedade. A política dos membros participantes da Convenção, os
escritos dos federalistas, a relutância e a necessidade de convencimento dos
estados, são todos aspectos que mostram que a noção de legalidade
procedimental não é por si só suficiente para descrever o modo pelo qual o
conteúdo latente elaborado torna-se realizável. A aprovação durante a
Convenção foi um dado na ordem factual, mas não transformou diretamente a
sociedade antes de sua aplicação em casos particulares, a exemplo da própria
eleição presidencial. Há, portanto, dois efeitos que a atualidade deve explicar:
tanto a passagem do conteúdo virtual do projeto de lei da Constituição
elaborado nos longos debates da Convenção de Filadélfia e seus derradeiros
ajustes para sua final aprovação em 1788, como também a realização factual
dos efeitos desta Constituição em casos particulares pulverizados em toda
sociedade norte-americana dos séculos seguintes. São acontecimentos de
naturezas distintas: o primeiro transfere um conteúdo político para o jurídico,
o segundo transfere um conteúdo jurídico para o social. Se delimitarmos a
análise do objeto conceitual do direito, como é o objetivo desta tese, podemos
utilizar o conceito da atualidade para nos referirmos à aproximação do
discurso prescritivo para sua consequência factual. Assim, atenderemos
todos os casos pré-analíticos nos quais se diz popularmente que o “direito é
aplicado”, que o “conteúdo da lei é aplicado”, que “uma lei foi feita”, ou
ainda que “garantiu-se um direito”.
A virtualidade é explicada e definida automaticamente como estágio
anterior à este movimento de aproximação, ou ainda como o retorno a este
estágio sob o nome de virtualização. Permite-se incluir no discurso
prescritivo não apenas as regras válidas, mas também aquelas que estiveram
sob discussão sem chegar a serem aprovadas (de lege ferenda), como também
aquelas que já foram válidas, mas foram ab-rogadas ou derrogadas
(virtualizadas) por novas regras. O campo da atualidade e virtualidade surge
agora esclarecendo melhor o conteúdo do discurso prescritivo: é possível
incluir nele toda a matéria estudada historicamente, inclusas todas as fontes
históricas do direito. Também se incluem as regras que tiveram sua validação
fracassada, mas permanecem relevantes sob muitos aspectos[214]. A dualidade
virtual-atual diz respeito a uma mútua reciprocidade dentro do discurso
prescritivo na qual determinada regra ou conjunto de regras é dotado de
determinada qualificação que permita e aproxime sua realização fática
(atualizado); ou permaneça ou retorne ao estado latente enquanto enunciado
prescritivo (virtual ou virtualizado).

1.5. Hipótese de expansão do conceito de direito


Se nos dispusermos a atender esta terminologia teremos então uma
pista sobre a natureza do direito. É comum o uso de elementos comparativos
para que se defina um objeto; por exemplo, o uso da diferenciação entre
sociedade e Estado permite uma aproximação ao conceito de ambos,
revelando pela contraposição algo da natureza de cada um. Teorias jurídicas
costumam servir-se de estratégia semelhante, buscando delimitar o objeto por
seu meio circundante; desta maneira vemos Kelsen diferenciando a norma
jurídica da ameaça de um gangster, ou Joseph Raz afirmando a natureza não
jurídica de “regras de um club de golf”[215]. H. Kantorowicz debate sobre o
absurdo que seria reconhecer que a obra de Hugo Grócio, Cujácio, obras
históricas de Gierke, e todos os estudos contemporâneos sobre o direito
romano não são “direito” por não serem “vinculantes”[216]. O conceito de
virtualidade jurídica permite, no entanto, nos confrontarmos com muitas
dessas diferenciações ao introduzir a perspectiva dialética no direito.
Equivale dizer que muito do discurso prescritivo considerado fora do objeto
jurídico (seu meio circundante) pode ser considerado também como direito,
com a peculiaridade de estar virtualizado. Uma vez atendidos todos os
requisitos tratados nos campos seguintes, o conceito de virtualidade
conduziria a um aumento brusco na extensão do conteúdo que conhecemos
como jurídico. Seria incluído no conceito não apenas aquilo que ele “é” e o
que ele “deve ser”, mas também a análise de quais objetos “podem vir a ser”
jurídicos, considerando-se virtuais em relação aos atuais. É a questão sobre
em que medida a ameaça do gangster e as regras do club de golf podem ser
essencialmente jurídicas, faltando-lhes apenas uma atualização. A ampliação
do conceito de direito por via do campo da atualidade e virtualidade permite
enfrentar problemas deste tipo.

2. Conclusão - Problemas d a concreção e discussão


Foi possível apresentar os conceitos de atualidade e virtualidade já
lhes imiscuindo os problemas a eles relacionados, a título de exemplos
explicativos. Um maior rigor deve agora nortear a delimitação dos problemas
suscitados no segundo campo, distinguindo-os do primeiro campo. Lá, o
discurso prescritivo se afastava do descritivo pela pretensão apelativa dos
conceitos gerais abstratos do primeiro, e a natureza descritiva sobre a
pretensão apelativa no segundo. As regras que se afirmam como válidas ou
que têm esta pretensão se diferenciam do discurso montado a partir delas e a
diferença, como foi visto, pode ser conceptualmente marcada pelo maior grau
de objetificação do discurso prescritivo. Há a já mencionada tensão entre a
objetificação, que trabalha abstratamente construindo proposições gerais para
situações particulares e os atos do sujeito, sempre concretos.
A objetificação do discurso prescritivo é, agora, no segundo campo,
esmiuçada sob a tensão entre atualidade e virtualidade. O movimento com
que determinado discurso prescritivo avança em direção a sua realização
fática marca sua atualidade: naturalmente elementos descritivos também
aparecem imiscuídos nestas transformações, mas, importante salientar, eles
não se realizam, o que se deve a sua natureza intrínseca: eles já são
concretos, logo, eles já estão realizados. Seria impensável virtualizar um
discurso descritivo: sua menção já é completamente atual, não demanda
validade nem aplicação no caso particular. Apenas dentro do discurso
prescritivo, portanto, pode-se falar em atualização e virtualização.
A tensão geradora de problemas se deve a presença antinômica de: a)
elementos prescritivos que se atualizam, e os elementos descritivos que
atuam nesta atualização; a atualização corresponde a concretização do direito.
b) elementos prescritivos que se virtualizam ou se mantém
virtualizados, e os elementos descritivos que atuam nestes sentidos; a
virtualização ou virtualidade corresponde à discussão do direito.
Figura 3: Aplicação do segundo campo substitui “Atualidade” e “Virtualidade” por
“Concretização” e “Discussão”.

Capítulo III – Terceiro campo


1 Campo das possibilidades reais e não reais na virtualidade
Neste campo estão as relações internas do direito latente que
descrevemos como virtualidade do discurso prescritivo. Por certo há um
conjunto virtual de hipóteses que podem ou não se efetivarem a partir do que
declara o enunciado normativo. Não há que se falar em possibilidades reais e
não reais na atualização: tudo que se atualiza não está mais na esfera do
possível, mas do realizado. Nem são, tampouco, elementos do discurso
descritivo: em que pese haja a maciça influência de elementos descritivos, só
contam como possibilidades o conjunto de hipóteses compreendidas como o
discurso com pretensão apelativa[217]. Neste conjunto é feita a divisão escalar
entre aquelas possibilidades reais e não-reais. Importante frisar: as
possibilidades estão ínsitas no discurso prescritivo e apenas nele, ainda que o
esforço de interpretação seja de natureza descritiva.
Possibilidades reais são passíveis de se convalidarem a luz da
apreciação normativa, ou seja, nelas se efetiva o conjunto fático determinado
abstratamente no enunciado normativo segundo aspectos lógicos e
valorativos (correspondentes aos campos seguintes) e, a posteriori, o discurso
se atualiza. Pode anteceder, por exemplo, à subsunção[218]. Possibilidades
não-reais têm o conteúdo mais ou menos descartável a luz da circunstância
fática, na medida do grau de atualização do discurso; embora seja uma
consequência latente, não congrega elementos suficientes para a aplicação
total; por exemplo, de uma norma geral que não especifica determinada
circunstância e deve, por isso, afastar-se da aplicação em um caso particular.
Os problemas evocados aqui são endereçados a uma grande parcela
do conhecimento jurídico, muito do qual a Jurisprudência trabalha enquanto
ciência da compreensão do direito. Tomando por objeto desta disciplina o
“direito vigente”, isto é, as normas jurídicas (escritas, na maioria dos casos) e
as decisões que a partir delas se atualizam, surge a necessidade de uma
compreensão linguística do objeto, antecedendo e balizando o processo de
atualização.

1.1. O “sentido” como possibilidade jurídica real


Desde sua chamada “pré-história” a hermenêutica surge como uma
técnica de obtenção de significados implicando, necessariamente, a gradação
de significados reais e alcançáveis à luz de um cânone. O problema inicial
que impulsiona a necessidade de um cuidado maior com os textos e a
revelação de seu sentido adequado (ou, em alguns casos, dito verdadeiro)
encontra base em duas temáticas fundamentais: a teologia protestante e a
filologia clássica. Na primeira, temos o empenho de Lutero e Melanchton em
estabelecer a Sagrada Escritura como um texto de sentido próprio e a
dispensabilidade da tradição católico-romana, tal como havia se firmado no
Concílio de Trento. Por exemplo, as parábolas devem ser lidas de forma
alegórica, pois assim determina o próprio texto; mas o Antigo Testamento
deve afastar-se da leitura alegórica, devendo ser interpretado em seu sentido
literal[219]. A Reforma era baseada, portanto, numa dogmática hermenêutica
cujo pressuposto era o da unidade da Bíblia – fato que veio a ser confrontado
posteriormente.
Este pré-início de uma metodologia da interpretação ganharia firme
substrato filosófico em Schleiermacher, com a proposta da ampliação
compreensiva do ser. A hermenêutica não se destinava somente a esclarecer
pontos obscuros ou “mal-entendidos” de um corpo literário específico, mas
ousava uma compreensão metódica de todo diálogo humano. Fundamentava
seu método na premissa da individualidade tal como manifestação de uma
vida universal: “cada qual traz em si um mínimo de cada um dos demais, o
que estimula a adivinhação por comparação consigo mesmo”[220]. Esta
interpretação psicológica será sua contribuição no desenvolvimento da
hermenêutica como um método autônomo, reivindicando a superioridade do
intérprete sobre seu objeto na famosa fórmula “compreender o autor melhor
do que ele próprio se compreendeu”[221]. A partir da influência de
Schleiermacher, a escola histórica do século XIX apresentaria possibilidade
de uma compreensão da história universal, ou seja, a totalidade dos nexos
históricos da humanidade. No específico contexto do romantismo alemão, as
posições de Schleiermacher soam paradoxais: membro da seita pietista dos
Herrhuter, ousou defender Lucinde, o romance de Friedrich Schlegel sobre o
amor livre. Escusado afirmar a relativização dos dogmas do catolicismo
romano no protestantismo, mas Schleiermacher parece ter ido além. Sua
definição de religião como “sentimento cósmico de depender de forças
superiores”[222] prescinde de qualquer dogma. É pura interpretação.
O papel de Schlegel na consolidação da hermenêutica como método
de conhecimento também deve ser ressaltado. Com o desaparecimento do
mecenato com a Revolução Francesa, a literatura deixa de ocupar apenas
professores, preceptores e bibliotecários e toma o estatuto de profissão. O
início é precário. Sobre a literatura enquanto profissão no início do
Romantismo alemão, escreve Carpeaux[223]: É, porém, uma profissão muito
precária, em que o sucesso depende, em vez dos mecenas, do novo público
anônimo, literariamente atrasado, incompreensivo: pois os literatos enfrentam
camadas que em parte se agarram ainda ao racionalismo do século XVIII e
em parte já cultivam a mentalidade utilitarista da burguesia. Tomam atitude
de oposição, de épater le burgeois, com ares de boemia de Brentano ou com
teses de medievalismo deliberadamente reacionário como Arnin e Goerrer.

É neste ambiente em que Schlegel terá ideias exóticas como a


introdução do budismo e da filosofia indiana, exigiu uma “literatura
universal” e a revalorização da Idade Média e do Oriente. Schlegel escreverá
que “[o] desejo revolucionário de realizar o reino de Deus é o ponto elástico
da cultura progressiva e o começo da história moderna. O que não tem
relação com o reino de Deus só tem nela um papel acessório”[224] donde a
interpretação de Ari Marcelo Solon afirma uma “orientação
revolucionária”[225]. A conversão de Schlegel ao catolicismo romano em 1808
e a defesa jornalística da política reacionária de Metternich parecem depor
contra a interpretação de Solon[226].
Em que pese não seja o problema do progressismo ou
conservadorismo do romantismo alemão ligado aos propósitos desta tese[227],
a possibilidade da hermenêutica radical tem consequências ao fenômeno que
descrevemos . A consequência direta para o direito parece ter sido a
hermenêutica de Savigny. Assim como o romantismo alemão tomou por base
a cultura helênica, Savigny reintroduziria a ciência jurídica ao paradigma
romano. O jurista alemão reiteradamente tido por reacionário está, na leitura
de Ari Marcelo Solon, “em sintonia com os primeiros filósofos da
hermenêutica moderna, tinha uma visão jurídica como um ato criador,
produtivo e fundador do direito, que para ele tinha uma natureza social”
levando à perplexidade da Escola do Direito Livre ter condenado sua
metodologia como formalista. No Sistema de Direito Romano Atual o dogma
da unidade do direito é tido por Solon como “errôneo”, que levaria a Escola
Histórica a confrontar-se com uma hermenêutica livre ao remanescer no
postulado da interpretação das normas ao invés da interpretação do
direito[228]. Abre-se mão da criação da arte jurídica em prol do paradigma da
subsunção. A hermenêutica radical parece se opor a este formalismo “bruto”
de Savigny e preferir uma remodelação na qual a Teoria Pura oferece melhor
suporte[229]. Solon indica “molduras jurídicos-normativas, que apontam para o
fenômeno, sem poder previamente determina-lo”[230], arraigando-se na
percepção das normas jurídicas a partir da Stufenbaulehre (teoria do
escalonamento), a qual permite “visualizar a totalidade das disposições
normativas existentes como simples molduras (Rahmen) aguardando por
subsequentes atos criadores/positivadores do direito”[231].
Seguindo a proposta, neste campo almeja-se provar a pertinência da
antinomia entre possibilidades reais e não-reais como aptos a descreverem o
fenômeno jurídico. As possibilidades aparecem dentro do discurso
prescritivo: o embate da antinomia apresentada do campo anterior (atualidade
e virtualidade) é regido por um novo campo no qual aquilo que está em
estado virtual é transformado em atual. Essa atualização, conforme se buscou
demonstrar no anteriormente, não é fortuita, mas se correlaciona a fatores
tanto intrajurídicos (como o procedimento formal de validação de regras)
quanto extrajurídicos (a exemplo das circunstâncias políticas e sociais que
intervieram no caso-limite apresentado). A explicação que toma por base os
“indicativos formais” (formale Anzale) tratam essas possibilidades enquanto
“antecipação para manifestação fenomênica, mas de modo algum autoriza a
prever qual delas será atualizada, na medida em que esta atualização depende
da interposição de uma autoridade humano (fator subjetivo)”[232]. O novo
campo, do qual se trata agora, tem sua razão suficiente no pressuposto
ontológico de que a virtualidade contém possibilidades em graus distintos,
passíveis de se verificarem sob certo arranjo de maior ou menor adequação.
As possibilidades reais representariam o polo no qual a atualização é
iminente e certa; e as possibilidades não-reais são aquelas que se distanciam
maximamente da atualização – sem, contudo, chegarem à negação da
possibilidade, ou seja, à impossibilidade.
A aplicação do método decadialético impõe que dentro do campo da
atualidade e virtualidade se descubra qual o meio pelo qual o direito se
correlaciona a este critério de possibilidades baseado em certo grau. Uma vez
esclarecido que tais possibilidades tratam da atualidade – a qual conseguiu
traduzir-se no direito para a criação e aplicação de regras válidas –, buscar-
se-á demonstrar que são essas possibilidades intrínsecas a todo e qualquer
procedimento de criação e aplicação.
Neste ponto, a investigação só pode avançar por meio da evidência de
que todos estes procedimentos incorrem necessariamente na compreensão do
sentido ínsito nas regras e a correspondência deste com o fato[233]. Este é o
ponto dialético no qual direito e realidade mais se aproximam: a apreciação
do fato aparece como acontecimento neutro diante da ciência jurídica,
cabendo a ela a apreciação, compreensão e valoração. Esse conjunto de
apreciação, compreensão e valoração não possui univocidade, mas
apresentam-se como tensões internas inerentes a qualquer regra jurídica.
Esta compreensão de expressões linguísticas pode ser abordada pelo
paradigma do da reflexibilidade: pode se dar pelo modo irreflexivo, ou seja,
por meio do acesso imediato ao sentido da regra; e o modo reflexivo,
mediante a interpretação. Supostamente, o modo irreflexivo não seria
problemático por não trazer à tona possibilidades de interpretação, mas não
deixa de ser passível de questionamento quanto a apreciação do fato que
motiva a interpretação[234]. Robert Alexy enumera quatro motivos que
conduzem à necessidade de interpretação: a) A imprecisão da linguagem do
direito, a qual já fora aludida por Viehweg como determinante na
impossibilidade estrutural de sistemas fechados em si mesmos b) A
possibilidade de conflitos entre as normas, problema ocasionado
possivelmente pela inobservância do princípio da coerência dos sistemas –
algo plausível diante da complexidade de qualquer sistema jurídico atual.
c) O problema geral das lacunas, isto é, a falha no princípio da
completude jurídica – problema este que envolve potencialmente a questão
política de separação dos poderes, uma vez que o juiz pode ser tentado a atuar
como legislador no caso particular.
d) A possibilidade de contradição entre normas de hierarquias
diferentes.
Não cabe apontar soluções para cada um dos motivos, mas sim
enquadra-los como problemas fundamentais do direito. Além disso, é
necessário demonstrar que estas não são situações anômalas que se destacam
em momentos de incongruência evidente entre o discurso prescritivo e a
realidade. Embora haja casos em que a decisão ou justificação seja simples
tendo em vista as proposições da dogmática ou, no caso da common law, dos
precedentes, não é possível supor que tais hipóteses prescindam
absolutamente de questionamentos – o que se traduz, na grande maioria de
casos judiciais, entre teses das partes. A interpretação vista como necessária a
todo campo prescritivo se relaciona a necessidade de uma justificação de uma
escolha. Tal escolha dará ensejo a uma transformação na realidade, seja
permitindo, proibindo, facultando um direito, em suma, tudo aquilo que se
convencionou chamar aqui de atualização. Nesta escolha é dada uma
preferência a determinado tipo de consequência, uma escolha que traz
implicitamente a gradação de que a consequência escolhida é preferível às
demais. Logo, há uma atividade de mediação na qual o intérprete tem diante
de si várias possibilidades e deve escolher e decidir por uma delas. Este
procedimento não é automatizado por uma lógica proposicional, mas segue
parâmetros com base em diferentes considerações. Não se afasta o estatuto
científico do direito; antes, o confirma: a margem de possibilidades
interpretativas condensadas em uma linguagem especializada é o que torna
adequada um pensamento por meio de problemas, conjunturas e modelos;
neles se encontram hipóteses que podem ser confirmadas ou afastadas,
ligadas a diversas causas na quais repousam a razão de ser de uma regra. Esta
tarefa se incumbe propriamente à dogmática[235]. Diferentes autores buscaram
estabelecer um conjunto de métodos interpretativos, os chamados cânones,
aos quais se relaciona um parâmetro extra ou intrajurídico para sanar
dificuldades interpretativas. A título de exemplo Savigny enumerava quatro
cânones: gramatical, lógico, histórico e sistemático; Larenz, cinco: sentido
literal do estatuto, o inter-relacionamento do significado da lei, a intenção de
regulamentação, motivos e pressupostos do legislador histórico, os critérios
objetivos-teleológicos e a conformidade de interpretação da constituição.
Evidente que a apresentação dos cânones não esgota o problema, mas
o complexifica: qual a ordem de cânones a ser seguida? Quando a aplicação
de um se sobrepõe a de outro? Há ainda a recursividade inerente a cada
cânone, isto é, a interpretação dentro dos cânones para extrair-lhes o
significado. Esta nova ordem de problemas poderia apontar para o
surgimento de um sistema de princípios gerais de ordem-jurídica, um sistema
axiológico-teleológico[236]. Diferente do discurso prescritivo, não há aqui uma
virtualidade e atualidade, mas virtualidade pura, uma vez que o conteúdo dos
cânones e princípios não é diretamente realizável, mas passa por uma etapa
dentro do conjunto de regras.
O problema dos cânones aponta para a necessidade de juízos de valor
conforme critérios múltiplos. Aqui se expandem os cânones interpretativos
para critérios de grande significado na jurisprudência. Alexy elabora a
problemática, em seu conjunto, nas perguntas: a). Onde e até que ponto os
julgamentos de valor são necessários; b). Como esses julgamentos de valor se
relacionam com os argumentos designados como “especificamente jurídicos”
e a dogmática jurídica, fazendo surgir também a questão dos motivos morais.
c). Se esses julgamentos de valor são racionalmente justificados (...)
[237]
.
Neste campo, temos por hipótese que é o sentido que se atualiza, não
a regra em si, e este sentido deve ser obtido por meio da interpretação. Tal
hipótese parece se conformar à necessidade de elaboração de problemas que
relacionem eventos naturais e fatos jurídicos em sentido amplo. Kelsen, ao
tratar do fundamento das normas, adverte: “O que transforma este fato (lícito
ou ilícito) não é a sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é, seu ser tal
como determinado pela lei da causalidade e encerrado no sistema da
natureza, mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a significação
que ele possui”[238]. Sabemos que o “sentido objetivo” é um termo próprio da
Teoria Pura do Direito e tem seu fundamento ligado à validação da norma
pela constatação de uma norma superior correspondente, diferenciando-se do
“sentido subjetivo”, de natureza psicológica; todavia, coaduna-se Kelsen com
a inelutabilidade das evocações de um sentido próprio às normas, sentido este
que difere da literalidade do texto bem como da especificidade do caso
particular. Prossegue o jurista austríaco: “O sentido jurídico específico, a sua
particular significação jurídica, recebe-a o fato em questão por intermédio
de uma norma que a ele se refere com o seu conteúdo, que lhe empresta a
significação jurídica, por forma que o ato pode ser interpretado segundo esta
norma”[239]. Esta é a base do chamado princípio dinâmico. Em sua teoria pura
vemos a interpretação conformando o ato factual a partir do discurso
prescritivo; não é necessário tomar este pressuposto por verdadeiro na
investigação deste campo, mas encaixamo-lo como exemplo por excelência
da inevitabilidade de possibilidades reais contidas dentro do discurso
prescritivo as quais só se abrem à atualização diante de um processo de
decisão e escolha dentre as possibilidades, tal processo pode ser, inclusive,
como de fato é na teoria kelseniana, um fundamento que a validade encontra
em normas anteriormente (do ponto de vista lógico-normativo) válidas: “A
norma que empresta ao ato o significado de um ato jurídico (ou antijurídico)
é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe
significação jurídica de uma outra norma”[240].
Tomando a teoria pura do direito e o escalonamento normativo por
exemplos, podemos explicá-los sob os conceitos de possibilidades reais
vinculando a estas as possíveis interpretações que uma norma de grau
superior permite ao emprestar o sentido às normas inferiores. Até aqui trata-
se da interpretação que Kelsen qualifica como “criação jurídica”. Nos
capítulos finais da obra, a interpretação reaparece como escolha dentre
possibilidades de sentido inferidas a partir da intencionalidade do legislador
ao elaborar normas gerais ou da não-intencionalidade a partir da ambiguidade
dos termos. No caso da interpretação que parte da intencionalidade há um
número expressivo de possibilidades contido em cada norma superior[241],
deste número algumas possibilidades se verificam mais proximamente ao que
se espera do dispositivo legal. Kelsen salienta que na medida em que o
escalonamento se afasta da Constituição diminuem também as possibilidades
interpretativas. Quanto mais “concreto”, menos possibilidades[242]. Podemos
dizer, quanto mais atual, menos possibilidades reais. A diferenciação entre a
autenticidade da interpretação feita pela comunidade jurídica, ou seja, a
interpretação que de fato será válida no caso concreto, podemos tomá-la na
Teoria Pura, como a única possibilidade real, sendo não-reais todas as outras
possibilidades não-autênticas[243].
Estas tensões entre diferentes possibilidades e sua propensão a vir a se
realizar coaduna-se com o conflito hermenêutico e tópico da aplicação de
determinado dispositivo. A afirmação da compreensão pelo “ciclo
hermenêutico” levaria em conta “circunstâncias hermeneuticamente
relevantes”, uma vez constatado o processo de, basicamente, conexões
sucessivas entre o significado de palavras e seu conjunto. Tal processo liga-se
aos problemas que as possibilidades reais suscitam na medida em que busca
oferecer um método explicativo da elevação do nível de compreensão de um
texto. A hermenêutica afasta a ideia de univocidade no discurso prescritivo,
advertindo contra a ideia de uma linearidade de conclusões a maneira de um
procedimento lógico proposicional; a ideia do “círculo” como símbolo de
retomada ao ponto inicial e até certa hesitação, a nível psicológico, de aderir
à determinada interpretação, revela que as possibilidades são traços
permanentes da atualização do discurso prescritivo. Se tal discurso é
colocado na perspectiva processual, o jogo de possibilidades se torna ainda
mais evidente pelo modo como é contraposto entre as partes. A dialética aqui
pode ter o sentido clássico de um real embate de proposições prováveis no
qual as virtualidades possíveis são julgadas seja por um terceiro. O conceito
de possibilidades reais de atualização deve abarcar, na jurisprudência, desde
os mecanismos de apreciação do fato, até a interpretação do discurso
prescritivo, como também a versão desta apreciação e interpretação veiculada
pelas próprias partes (acordos latu sensu, resolução de conflitos por
mediação, negócios jurídicos processuais, formulação de contratos, entre
outros) ou por uma autoridade (projetos de lei, etc.). Em todos os casos
sobressai um sentido de regras como possibilidade real de atualização,
joeirando-se de demais sentidos que a situação do caso particular descarta
como não-reais[244].

1.2. O lugar da tópica


Ao apresentar os pontos de irrompimento da tópica na rigidez
axiomática dos modelos lógico-dedutivos, Viehweg descreve os pontos em
que a tensão dialética das possibilidades reais e não reais se torna evidente.
Há um campo de aplicação da tópica relacionado ao uso da linguagem
natural, ou seja, a linguagem cotidiana utilizada nas interações comunicativas
informais. Tal linguagem unifica entendimentos variantes de maneira
contínua, agindo de modo semelhante à própria tópica. A comunicação
depende desta estabilização dos significados discrepantes para que seja
efetiva. Da mesma forma, o uso dos termos no debate jurídico é também uma
configuração apenas estável, mas não fixa. A qualquer momento pode sofrer
alterações que não são anômalas ao comportamento do sistema, mas um de
seus eventos integrantes. A opção por sentidos diferentes é simultaneamente
(e paradoxalmente) um risco dos sistemas dedutivos e seu fundamento, pois
os conceitos cristalizados integrantes e formadores do sistema são eles
mesmos resultantes de um processo formativo dialético, que tem a tópica por
fundamento[245]. Essa coincidentia oppositorum entre a lógica do sistema e a
tópica da linguagem também influi, como se verá adiante, na tensão inerente
ao campo das possibilidades reais e não reais do direito[246].
Previamente ao embate interpretativo dos termos do debate, se
manifesta outro fenômeno, também assinalado por Viehweg, de natureza
tópica: é a natureza interpretativa do estado de coisas, isto é, a apreciação e
conformação dos fatos relevantes ao direito[247]. Podemos apontar este
fenômeno, brevemente, como a percepção humana formadora, inicialmente,
de uma “situação de fato bruta” repleta de imagens representativas. Sua
relevância jurídica é, naturalmente, indiferenciada. Somente um juízo a partir
da norma pode verificar os elementos que interessam ao direito. Isso equivale
dizer, é gerada uma dependência mútua entre o conhecimento do fato e o
conhecimento do direito[248]. Segundo Viehweg, a compreensão inicialmente
provisória do conjunto do direito passa a uma compreensão dos fatos, que,
retornando ao direito, passa a influir reciprocamente sobre ele. Esta mútua
influência construtiva foi descrita por Engish na versátil metáfora do “olhar
de ida e volta”, ora focando nas normas que o fato aponta, ora olhando para o
próprio fato e procurando nele as normas aplicáveis[249].
Em ambos, quer na tópica dos termos em debate quer na apreciação
dos estados de coisas, há uma finalidade comum deste campo dialético: a
escolha, afinal, de uma das possibilidades para que esta se torne, posto que
provisoriamente, aquela selecionada para realizar-se dentro de uma
virtualidade de conteúdos jurídicos possíveis direcionados à concretização.
Complicações podem surgir a depender do texto legal. Por exemplo, as
possibilidades contidas nas chamadas “pautas carecidas de preenchimento”,
isto é, termos utilizados no dispositivo legal com grande margem para a
interpretação[250]. Neste caso, a situação de fato a ser apreciada deve ser
ponderada por meio de uma valoração, que discernirá a partir de elementos
jurídicos ou extrajurídicos[251] a pertinência da situação à previsão legal. O
campo das possibilidades reais e não-reais seleciona uma das primeiras e
descarta as do segundo tipo. Ele é o critério que subjaz a toda atualização.
Como e de que forma elementos extrajurídicos intervém na atualização é um
tema que pode ser explorado, a título de exemplo teórico significativo, na
teoria da hermenêutica radical.

1.3. A hermenêutica radical


A proposta de uma teoria decadialética na qual as normas são
operadas segundo sua virtualidade e atualidade permite descrições e
diagnósticos que extrapolam o paradigma da exclusividade do direito estatal.
Ao aprofundarmos no campo das possibilidades virtuais da norma podemos
ler a hermenêutica radical à luz de nossas categorias. Solon parte da
dicotomia “radical” existente na cultura entre o “jus” – um “puro significado,
um nomos criado pelo homem que não precisa de nenhum Estado percebido
como aparato ou substância”, uma “vivência como significado”[252], oposto a
uma “lex”, a “forma de controle social fundado na força”, a organização do
direito como poder”[253]. A divisão reverbera a dicotomia do nomos bíblico
proposta por Robert Cover entre um suposto legalismo judaico rompido por
São Paulo Apóstolo e a perspectiva escatológica[254]. No caso concreto, a
isenção fiscal dos menonitas serve se suporte ao diálogo entre a lex
constitucional norte americana e o jus da vivência religiosa. Cover ressalta
em sua decisão o possível distanciamento e divergência entre os dois nomos,
e em consequência nada permitiria afirmar a superioridade da interpretação
da Suprema Corte. Solon acentua: “Não se pode seguir ideologicamente
aprisionando [o direito] por meio de narrativas estatalistas, que não raro
conduzem à supressão violenta do jus em favor da lex”[255]. O campo da
interpretação é aberto, enfim, a toda comunidade que participa do direito. O
direito se torna interpretável enquanto possibilidade virtual, não apenas diante
do caso concreto, mas como vivência[256].
A aplicação da distinção entre jus e lex nos julgamentos atuais do
Supremo Tribunal Federal (STF) indicarão os aspectos revolucionários da
tese de Solon. O caso da Lei de Anistia (ADPF 153) é lido sob a
reminiscência histórica da queda da tirania ateniense, no século V a.C.. O
oblívio da violência é colocado como condição e causa da crise democrática
que se seguiu. O paralelo será evidente. A crise da democracia brasileira
advém do perdão irresponsável concedido aos torturadores. Mas não é esse o
argumento de Solon. O fundamento do nomos insular, progressista e
revolucionário, está na hermenêutica sacra. O perdão deve ser negado não
pela “indevida analogia” entre Atenas e o Brasil, mas pela filosofia da
religião de Hegel. O filósofo torna imanente o princípio evangélico de que
“não há perdão para quem nega o perdão”, secularizando a doutrina da
negação do perdão contra o Espírito Santo[257]. A decisão do STF,
contrariando Hegel e Solon, reafirmou a anistia, entendendo pela substituição
do texto da lei ordinária de 1979 pelo texto da Emenda Constitucional 26/85.
Salienta o voto do relator, Ministro Eros Grau, que sequer a recepção deve
ser debatida, sendo a lei posterior um ato decorrente do poder constituinte
originário. Tal decisão, embora sustentada normativamente, só é possível
devido a uma escolha entre virtualidades possíveis da norma, recorrendo a
“elementos metapositivos, sejam eles enunciados ou não”[258]. Não apenas o
texto jurídico e a dogmática erigem possibilidades de escolha, mas por trás da
interpretação há um nomos para o qual a escolha hermenêutica se dirige.
Na elaboração de uma regualre juris, a título de conclusão da tese,
Ari Solon destaca: “O autêntico problema da hermenêutica jurídica consiste
na assunção de uma inevitável escolha entre dois nomoi que se digladiam, a
cada decisão jurídica. Cânones e princípios hermenêuticos não conduzem ao
resultado hermenêutico, antes são conduzidas pela escolha fundante a ser
feita entre nomos oficial e nomos insurgente, entre hermenêutica
conservadora e progressista, tendencialmente revolucionária”.
Conservadorismo e progressismo podem ser elementos políticos
infiltrados na atualização das possibilidades virtuais da norma. Talvez
inadvertidamente, talvez propositadamente, talvez cinicamente.

1.4. Interpretação prescritiva


O objeto da interpretação é o texto como portador de um sentido
prestes a ser atualizado, isto é, trazido à realidade por meio da consequência
jurídica. Há aí um duplo sentido: 1) A conformação do fato em “estado
bruto” às proposições potencialmente aplicáveis, fenômeno intitulado
conformação jurídica da situação de fato e 2) quanto a compreensão do
conteúdo das normas a aplicar tendo em vista, novamente, a situação fática.
Neste último, a problemática surge da diferença entre o discurso científico,
amparado por terminologia própria, embasado pela rígida escolha de palavras
para enunciar um fato a partir de conceitos próprios, contraposto à linguagem
cotidiana, que prescinde de tais elementos. A interpretação de 1 e 2 importa
na medida em que “decide” por uma possibilidade real contida no discurso
prescritivo. Desta forma, é possível tomar tal sentido por prescritivo na
medida em que, a partir de certo momento, também ele adquire pretensão
apelativa, dotada de validade. Dito de outra forma, a interpretação pode ser
dita válida na medida em que provoca a atualização de determinado discurso
prescritivo.
Permanece o problema, todavia, de se delimitar qual o momento
lógico no qual a interpretação – compreendida como atuação humana sobre o
texto – despe-se do caráter puramente descritivo e torna-se prescritiva. Qual
momento passa a valer a certificação de validade do texto e não mais de
veridicidade?
Vimos que as possibilidades subjazem ao sentido da norma e, a partir
de processos cognitivos pertencentes ao discurso prescritivo, elas ganham
certo tom de concretude, aproximando-se da atualização. A hermenêutica e a
tópica são exemplos de discurso descritivo exigido para a atualização de
determinada regras, posto que não sejam, por si mesmos, dados do terceiro
campo.
De maneira a objetivar a investigação, podemos exemplificar os
problemas deste campo para neles buscar a tensão subjacente ao conflito
antinômico das possibilidades. É o caso, por exemplo, dos enunciados sobre a
situação de fato (premissa menor da subsunção). São descritivos ou
prescritivos? Parecem ser descritivos, dado o caráter de reunir elementos
relevantes da situação fática. Sua natureza não é voltada para a pretensão
apelativa, mas de descrição dotada de veridicidade. Somente num segundo
momento, eles entram no discurso prescritivo, após a subsunção, como uma
das possibilidades reais contidas na norma. No entanto, sua formulação
definitiva depende também da norma, na medida em que esta indica os
elementos relevantes a serem procurados na situação fática. Conforme já
esclarecido, trata-se aqui de uma manifestação do “círculo hermenêutico”, no
qual a compreensão de ambos os discursos é construída dialeticamente pelo
sujeito; ou, na fórmula de Viehweg, a dialética entre a situação fática e a
previsão[259] . Também as provas são parte do discurso descritivo que,
igualmente, num segundo momento, passam a integra-lo quando
fundamentam uma decisão com pretensão apelativa.
É necessário também que este campo alcance o discurso prescritivo
sob a forma dos projetos de lei. Se estes se atualizam e são parte do discurso
prescritivo, como se afirmou acima, também deve haver neles possibilidades
reais virtuais, ainda que na hipótese de não aprovação pelo mecanismo
constitucional prescrito. Neste caso, tais possibilidades não são as
consequências jurídicas que uma possível lei desencadearia – como a
limitação das leis infraconstitucionais perante a Constituição, ou as sentenças
formuladas a partir de determinada matéria, estas contam como
possibilidades reais da lei já aprovada. A possibilidade real de um projeto de
lei é sua atualização sob a forma de aprovação após o procedimento
constitucionalmente prescrito, variando conforme essa possibilidade se
verifique no terreno fático da aprovação.

2. Conclusão - Problemas d os sentidos reais e não reais


Assim, com base nos exemplos e na dogmática analisada, é possível
formular a tensão geradora de problemas no terceiro campo a partir da
antinomia: a) Elementos prescritivos previamente dispostos na norma
(virtualizados) que concorrem para a atualização; são os sentidos reais da
discussão b) Elementos prescritivos previamente dispostos na norma
(virtualizados) que concorrem para a manutenção da virtualidade ou
virtualização; são os sentidos não reais da discussão.

Figura 4: Aplicação do terceiro campo substitui “possibilidades reais” e “possibilidades


não reais” por “sentidos reais” e “sentidos nãos reais”.

Capítulo IV – Quarto campo


1. Campo da extensidade e intensidade na atualidade
Uma vez determinada a tensão entre possibilidades reais e não reais
das virtualidades o estudo e aplicação da decadialética, volta-se agora para o
aspecto atualizado do direito. Conforme foi apontado no segundo campo, são
atuais os aspectos do discurso prescritivo que caminham para a realização
fática, tomando o lugar da contraparte não-real que permanece ou se torna
virtual. Consolidada esta fase, é possível discernir uma tensão que se
configura entre os diferentes aspectos da atualização: extensidade e
intensidade tomam o sentido de duas diferentes caracterizações do discurso
prescritivo, podendo ser verificadas proporcionalmente em todos fenômenos
atuais. Antes de buscar a tradução do campo decadialético no direito,
adaptando seus conceitos ao fenômeno jurídico, tentaremos oferecer um
delineamento dos termos “intensidade” e “extensidade”, seguindo-lhes o
rastro na filosofia e ciências naturais.

1.1. Intensidade em Wilhelm Ostwald


Extensidade e intensidade tem seu significado próprio na filosofia de
Mário Ferreira. Não são comportadas por um gênero e tampouco são
categorias como é o caso de seus correlatos mais próximos: quantidade e
qualidade, respectivamente[260]. Não se trata aqui de uma aplicação forçada
de conceitos das ciências naturais ao direito, mas buscar compreender um
sentido partilhado que pode ser terminologicamente útil; assim, a
compreensão dos termos pode ser ampliada se investigarmos sua origem na
química[261]. Já no início do século XX, Wilhelm Ostwald parte da concepção
termodinâmica para explicar o conceito de intensidade em seu uso técnico
específico. Inicia sua explicação com a descoberta da lei da conservação de
energia de Julius Von Robert Mayer[262], segundo a qual calor e trabalho são
quantitativamente intercambiáveis. Segundo Ostwald, a cada forma de
energia há uma propriedade correspondente à temperatura em calor, assim,
torna-se possível quantificar o trabalho, calculando há uma energia
correspondente. No entanto, a transformação de energia em trabalho não
ocorre espontaneamente. Depende de uma diferença inicial que desencadeia a
transformação para que, em seguida, a energia retorne ao equilíbrio.
Justamente essa propriedade inerente da energia em tornar ao equilíbrio,
Ostwald chama de intensidade (intensity)[263]. Sua “lei da intensidade” afirma,
portanto, que as diferenças de intensidades são condições necessárias e,
reciprocamente, o equilíbrio é obtido quando não há mais diferenças[264].
Tais informações voltadas à química despertam, em Mário Ferreira, a
intuição de sua validade e aplicabilidade filosófica. A intensidade tem seu uso
comum na linguagem partilhado em derivados como intenso, intensivo,
intensificar; são, para o filósofo, sentidos que remetem a uma
“heterogeneidade da sucessão, o movimento das mutações do exterior para
dentro, é uma transformação em si mesma, volvida para o interior, é
centrípeta”[265]. Assim como na explanação química de Ostwald, a
intensidade funciona para Mário como uma propriedade inerente dos objetos,
a qual tende a possibilidade de mudança dentro de si mesmo.

1.2 Extensidade e Intensidade do direito

Os termos extensidade e intensidade tem sua aplicação lógica em


conceitos de qualquer natureza. É possível aplicá-los ao direito enquanto
discurso prescritivo atualizado. Pretendemos utilizar os termos para a
descoberta de uma nova zona de problemas que, conforme é o objetivo desta
tese, sejam próprios da natureza jurídica.
O conjunto extensivo do direito é formado pelos entes que compõem
seu horizonte de aplicação, isto é, emprestando o termo dogmático, o
conjunto extensivo seria o conjunto de “sujeitos” de direito. Não se trata,
como outrora, dos sujeitos do ponto de vista lógico, antípodas do objeto, mas
dos sujeitos concretamente presentes aos quais as regras são dirigidas.
A intensidade do direito seria, correlativamente aos sujeitos, o
conjunto de regras que lhes dizem respeito. Há, aqui, uma explicação sobre o
modo como o termo “direito” é utilizado de modo não técnico quando, por
exemplo, diz-se que tal pessoa “tem direito” a algo, ou seja, ela é receptora de
um discurso prescritivo, ou, em nossa terminologia, há nela uma intensidade
jurídica. Podemos reunir, portanto, o conjunto de problemas da intensidade
no direito sob a categoria das relações jurídicas.
O tema das relações jurídicas ganha maior sofisticação com seu
embasamento a partir da lógica deôntica.. É possível rastrear a discussão até o
século XIV com Robert Holcot e Roger Rosetus[266]. Uma definição possível
seria aquela de Bolzano e Quine, pela qual a lógica deôntica é o estudo de
sentenças nas quais apenas expressões lógico-normativas ocorrem
“essencialmente”. Ernst Mally, todavia, é considerado o primeiro filósofo a
elaborar uma teoria formal sobre conceitos normativos. Sua monografia
Grundgesetze des Sollens: Elemente der Logik des Willens[267] de 1926 é tida
como o marco inicial do estudo lógico dos aspectos normativos da
linguagem. O autor elenca 21 teoremas formais da lógica deôntica. Muitos
deles são intuitivos e careceriam de formalismo lógico para serem notados
pelos juristas, como o Teorema 6: , “p e q são obrigatórios se e
somente se p é obrigatório e q é obrigatório. Outros são chamados por Mally
de surpreendentes (befremdlich) ou paradoxais (paradox), como o Teorema
21 no qual afirma “ser obrigatório equivale a ser o caso”. O tema se
popularizou com o artigo de Von Wright ‘Deontic Logic’ em 1951[268]. Von
Wright percebeu a analogia possível entre as noções de lógica modal alética
(necessidade, possibilidade e impossibilidade) e as noções modais deônticas
(obrigação, permissão e proibição). A formalização dos problemas jurídicos
em linguagem lógica é viável graças a atualização do discurso prescritivo. O
mesmo não se daria, por exemplo, em matéria moral, cuja atualização não
necessariamente conduz à enunciados rígidos passíveis de formalização.
Mesmo que contestemos a existência de uma “ciência jurídica” ou do direito
enquanto ciência, não se pode negar o acúmulo histórico de sistemas e a
descrição lógica de enunciados jurídicos. A positivação sem dúvida tem aí
papel fundamental na medida em que oferece um conteúdo uniforme a partir
do qual a norma é extraída. O sistema de Von Wright difere do de Mally pela
inovação trazida nos chamados “individual acts”: “(A palavra ato) às vezes é
usada para aquilo que podemos chamar de propriedades qualificadoras de
atos, e.g., roubo. Mas ela pode ser também usada para os casos individuais
que recaem sobre estas propriedades, e.g. os roubos individuais (...) Os casos
individuais que recaem sob roubo, assassinato, fumar, etc. podemos chamar
de ato-indivíduos. É sob atos e não ato-indivíduos que as palavras deôticas
são predicadas”[269]. Fica claro neste ponto o caráter intensivo da lógica
deôntica para a caracterização de problemas do direito. Em oposição ao
aspecto extensivo, as relações jurídicas abstraem o aspecto subjetivo do ato e
atentam apenas para a qualificação da operação deôntica. (permissão,
proibição, obrigação)[270].
Na extensidade, portanto, temos o aspecto subjetivo do direito.
Inicialmente a experiência pré-analítica nos conduz a concepção de “pessoa”,
para quem o discurso prescritivo é direcionado, tal como configura nosso
Código Civil[271]. Conforme o esquema de Karl Bühler, temos a função
apelativa da linguagem como a relação binária entre emissor-receptor, ou
seja, um discurso formulado por A com a pretensão apelativa direcionada a
B[272]. Emissor e receptor servem de suporte ao aspecto extensivo. Os
problemas aí derivados podem ser elencados na abrangência e limitação dos
conceitos subjetivos a quem a intensidade jurídica é direcionada. Ao longo da
história esses conceitos puderam ser modificados com maior ou menor rigor
revelando opções e escolhas políticas sobre quais sujeitos seriam partícipes
da ordem substantiva da sociedade. Era possível limitar o conceito subjetivo
no direito romano negando o status libertatis, consequentemente negando a
personalidade jurídica. Há fontes, contudo, nas quais se encontra a palavra
pessoa empregada no sentido de ser humano[273]. Problemas daí derivados
incluiriam o estatuto dos estrangeiros[274], a aptidão de animais para relações
jurídicas[275], a personalização de associações, sociedades e empresas, de
órgãos e entes administrativos. Em Kelsen a formalização do conceito é
reiterada com a contestação da teoria tradicional, que identifica o conceito de
sujeito do direito como o de pessoas. Para o jurista austríaco, pessoa “é a
unidade de um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos. Como
estes deveres jurídicos e direitos subjetivos são estatuídos por normas
jurídicas – melhor: são normas jurídicas –, o problema da pessoa é, em última
análise, o problema da unidade de um complexo de normas[276]”. Em mesmo
sentido, Recasaéns Siches busca superar o conceito organicista de pessoa,
ressaltando o aspecto normativo, enquadrando a personalidade jurídica como
uma “unificação de relações”[277]. Esses aspectos que aproximam o sujeito
enquanto pessoa e sua descrição puramente prescritiva será instrutiva para o
campo seguinte, no qual apresentaremos as oposições inerentes à
extensidade.

2. Conclusão – Problemas da concreção: ontologia e deôntica


A partir destes dois conceitos – extensidade e intensidade – é possível
descrever o discurso prescritivo atualizado. Por este motivo, este é o campo
da atualidade, no qual são apreendidos os problemas derivados da tensão
entre extensidade e intensidade.
O direito encontra-se aqui em ato, o que equivale dizer, em sua forma
ontológica atualizada e presente.
São as tensões neste campo a) os problemas originados da natureza
ontológica do sujeito ao qual a norma se dirige e b) os problemas originados
da natureza deôntica da relação jurídica. O campo seguinte aprofundará estas
concepções.
Figura 5: Aplicação do quarto campo substitui a “extensidade” e “intensidade” pela
“ontologia” e “deõntica” do direito.

Capítulo V – Quinto campo


1. Campo das oposições de extensidade e intensidade na
atualidade
O quinto campo de antinomias dialéticas é um aprofundamento do quarto
campo. Nele foram expostas a extensidade e intensidade de forma simples e
sem interação. Convém agora expor as oposições internas de cada uma delas.
1.1. Oposições da intensidade em Kelsen e Hohfeld
Tratamos por intensidade do discurso prescritivo, sua qualidade
objetiva, isto é, o “quê” se destina aos sujeitos por ele abrangidos. Será
necessário investigar aqui o modo pelo qual a atualização do discurso “cai”
sobre os indivíduos e instituições. A relação de participação do homem no
direito, tema da introdução, é aqui desdobrado em duas formas de redução da
exuberância de fenômenos possíveis. Encontraremos em Kelsen uma redução
máxima, elencando a relação jurídica em uma única estrutura. Em Wesley
Hohfeld, as relações funcionam como quatro pares de correlativos e
oposições.
Inicialmente, constatamos a riqueza de temas neste campo
concentrada na natureza deôntica da norma jurídica. Para restringir a
apresentação do tópico a um de seus desenvolvimentos, optamos pela
oposição entre dois autores que tratam sobre aquilo que chamamos aqui de
intensidade.
O primeiro, Kelsen, opta por uma descrição obrigacional restrita, na
qual toda norma é emoldurada num esquema fixo de obrigação:

Na fórmula, M significa um comportamento humano, tanto uma ação


( ) quanto uma omissão ( ); significa um evento produzido pelo
comportamento é a consequência coercitiva do funcionário
estatal. A flecha representa a relação de imputação, uma novidade trazida
pela teoria kelseniana em oposição à causalidade dos eventos naturalísticos.
Em Kelsen, as normas não são objetos pertencentes ao reino da existência
(Sein), mas da essência (Sollen), respeitando a divisão inaugurada pela lógica
neokantina[278].
A análise das regras ganha um diferencial no momento em que se
correlaciona com a exuberância de relações recíprocas entre sujeitos
determinados: não basta a descrição da estrutura constante da norma. A
presença de sujeitos diversos, em diversos graus de autoridade, impõe a
descrição relacional do discurso prescritivo. As possibilidades modais
imperativas são, na fórmula de Wesley Hohfeld, oito: right, no-right,
privilege, duty, power, disability, immunity, liability, cada uma originando
possibilidades de ações correspondentes[279]. O autor dispõe essas
possibilidades modais em pares de oposições e correlativos, admitindo a
insuficiência de uma redução completa à uma só fórmula, como pretende
Kelsen. Mas podemos ir além: como mostramos, a formulação dos projetos
de norma são também atualizações, e são, portanto, comunicações passíveis
de descrição como tensão intensiva do direito.
Importante para os propósitos desta tese é notar o surgimento da
relação enquanto campo de problemas internos do direito. Parece ser esta
uma constante onde quer que apareça o discurso prescritivo atualizado. Neste
campo surgem os problemas de ordem deôntica.
Isso apenas nos apresenta parte do status quaestionis do tema, sem
apontar a real tensão geradora de problemas deste campo. Sendo a lógica
deôntica um desdobramento quantificado e abstraído de uma série de
experiências possíveis reais é necessário investigar a base concreta das
relações deônticas.
Partindo do pressuposto lógico de que todas relações deônticas podem
ser convertidas em “obrigação”, devemos constatar aí a pista para a tensão de
problemas. Uma obrigação é, assim como o direito, uma relação de
participação. Há um sujeito participante e uma situação participada. Não
precisamos nos aprofundar nas considerações sobre a natureza desta
obrigação se formos direto ao elemento que a distingue de outras formas de
relação. Deve haver um ente que represente um poder ou autoridade em
relação ao sujeito participante. Este ente, afirmamos, pode ser tanto outro
sujeito quanto um discurso prescritivo emanado de um sujeito. A tensão
dialética na intensidade se constrói, portanto, entre o sujeito ou norma
dotados de autoridade-poder sobre outro ente (sujeito ou norma). A
combinação do ente “norma” aos dois polos da relação permite construir
sistema em que há normas inferiores e superiores, tal como a hipótese de
escalonamento normativo de Adolf Merkl, ou a distinção de normas
primárias e secundária em Hart. A combinação entre dois sujeitos permite
descrever hipóteses nas quais há uma relação direta de poder-autoridade entre
dois indivíduos, ainda que a norma esteja presente acima de ambos
conferindo o poder-autoridade a um deles. A combinação “sujeito-norma”
corresponde um sujeito dotado de poder-autoridade suficiente para a criação,
modificação, revogação (atualização) de normas. Finalmente, a combinação
“norma-sujeito” corresponde ao fenômeno jurídico básico de subordinação e
vinculação dos sujeitos de direito ao ordenamento vigente. De modo
esquemático: a) : poder-autoridade de normas superiores em
relação a inferiores b) : poder-autoridade de um sujeito em
relação a outro c) : poder-autoridade para a atualização das
normas d) : poder-autoridade das normas em relação aos
sujeitos vinculados.
Estes quatro fenômenos básicos podem ser resumidos como uma
tensão da obrigação entre sujeitos e normas.
Os problemas decorrentes deste campo envolvem os tipos de coerção,
de vinculação, de injuntividade, a observância cotidiana ao direito, a
executividade dos processos, as questões de hierarquia entre sistemas
jurídicos e entre normas, as competências em sentido amplo, as
possibilidades legislativas, os limites dos poderes administrativos, as
prerrogativas do corpo de funcionários públicos, a divisão de poderes, etc.
Em todos eles há a tensão surgida da obrigação nas combinações de sujeito e
norma.

1.2. Oposições da Extensidade na teorias metaéticas de Richard


Hare e de Kurt Baier
Em que pese não se tratar de um conteúdo especificamente jurídico, a
ética encontra similaridades com o discurso prescritivo no momento em que
são formulados pressupostos para sua aplicação. Veremos em seguida de que
modo dois diferentes autores tentaram estabelecer princípios e condições para
a universalização da ética. Este ponto é importante pois revela as oposições
que surgem na extensidade, isto é, no horizonte de aplicação de determinada
regra, seja ela ética ou jurídica. Tais oposições se verificam como uma
dificuldade em exapandir o conteúdo ético ao mesmo tempo em que tal se
concilie com especificidades de cada sujeito. As críticas de Robert Alexy
quanto às teorias aqui apresentadas são reveladoras deste sentido sempre
presente de oposições internas da extensidade.
A teoria de Hare busca respaldar os imperativos com uma estrutura
típica de discursos prescritivos. Mas não se limitando a determinar um gênero
para o elemento metaético do discurso, Hare propõe dois princípios que
justificam a racionalidade da argumentação moral.
Em primeiro lugar, o Princípio da Universalidade determina que
enunciados descritivos estão sujeitos a um rigor entre as descrições iguais se
os objetos forem também iguais. Não seria racional atribuir descrições
diferentes para um mesmo dado da realidade, motivo pelo qual a
racionalidade obriga que as semelhanças sejam igualmente descritas. Uma
vez que o discurso prescritivo invariavelmente partilhe de elementos
descritivos, ainda que seja distinto do discurso descritivo, é necessário
admitir que o Princípio da Universalidade também é válido para os
imperativos. Assim, determinada conduta não pode ser ora boa ora ruim se
houver elementos não-morais suficientes para descrevê-las como a mesma
conduta. Uma interessante reflexão que leva a este resultado é imaginar o
contra-senso em descrever dois objetos com as mesmas propriedades e
relações e afirmar que apenas um deles pode ser dito “bom”. Seria esta uma
“regra mínima” para a argumentação moral[280].
O segundo princípio é o Princípio da Prescritividade. Fica claro que o
Princípio da Universalidade não exige mais do que a coerência entre
afirmações equivalentes, de maneira próxima ao requisito dos sistemas
lógicos, sendo necessário algo que complemente a racionalidade do discurso
prescritivos subsidiando seu conteúdo. O Princípio da Prescritividade entra aí
como uma coerência que parte do ponto de vista do sujeito: “a prescrição
moral que me cabe seria justa se aplicada a outrem?” Hare se utiliza da
hipótese do indivíduo colocado na posição que sofrerá as consequências de
determinada ação. O exemplo utilizado pelo autor pode elucidar o problema.
Em uma construção lógica, A deve uma quantia para B e B deve a
mesma quantia para C. A prestação é a mesma e, portanto, pelo Princípio da
Universalidade, há o dever comum entre A e B de pagarem. Mas a situação é
algo mais complexa: os credores (B e C) podem exigir a prisão dos devedores
(A e B). B, que é credor e devedor ao mesmo tempo, está na posição moral de
optar pela prisão de A mas, segundo o Princípio da Prescritividade, apenas
pode fazê-lo se estiver disposto a admitir sua própria prisão por C. Um
dilema moral é resolvido quando o sujeito então coloca-se hipoteticamente no
lugar dos afetados pelos interesses de outros, permitindo que julgamentos
morais sejam alcançados sem a aplicação de premissas normativas, mas
somente por meio de uma alteridade lógica[281].
Alexy chama a atenção para a necessidade ulterior de um princípio
que suplemente os princípios da Universalidade e Prescritibilidade, pois,
segundo ele, trata-se aqui de “jogos linguísticos”. Alexy remete à passagem
em que Hare faz uma conexão entre a completa justificativa de uma decisão e
seus efeitos, os princípios observados, e os efeitos a que poderiam levar tais
princípios. Tudo isso estaria baseado, para Hare, em um certo modo de
vida[282]. De modo um tanto polêmico, Alexy afirma que este fundamento
ético-normativo descamba, em última análise, nos chamados modos de vida
(ways of life) tornando impossível decidir entre diferentes ideais como o
Nazismo e o Liberalismo. Esta crítica é um exemplo nítido de como as
oposições da extensidade ocorrem: o sujeito da norma é colocado como uma
oposição interna do discurso prescritivo. Ora a intenção moral subjetiva é
admitida, ora afastada. É central para este campo de problemas constatar que
a presença de sujeitos reais no direito, assim como na ética, faz emergir toda
a miríade de questões que podemos reunir sobre o título de ‘ontológicas’.
Não é exagero. Em última instância é apenas neste ponto em que o direito se
vê diante de uma realidade concreta e não abstrata. Somente no ponto em que
a atualização chega ao sujeito podemos apontar um caráter de oposição
ontológica. Tudo o mais até agora pode ser considerado em algum nível de
abstração: os dois discursos, atualidade e virtualidade, possibilidades reais e
não-reais. O momento de aplicação da norma, todavia, revela finalmente a
presença completa do sujeito real, na relação de participação com o direito.
Outras objeções podem ser feitas a estes dois princípios de Hare. Mas
sua fragilidade do ponto de vista justificativo e validativo de proposições
ética obscurece seu verdadeiro sentido, de elevância para as oposições na
extensidade: o teor lógico admitido como um mínimo de racionalidade
subjacente aos discursos prescritivos faz parte da própria estrutura deste
discurso. Hare pretendia delimitar os critérios morais dentro da própria
estrutura lógica, e de fato o fez. Já afirmamos anteriormente que incumbe à
metaética a determinação da natureza do discurso ético, afastando-se das
pretensões da ética normativa em estabelecer critérios para decisões
particulares. A estrutura que os princípios de Hare revelam permite tratarmos
do conceito de extensidade como um propósito de homogeneidade da
aplicação do direito. Neste ponto seria necessário admitir que muito antes das
considerações áticas, estóicas e cristãs sobre a igualdade individual já havia
uma estrutura lógico-jurídica de base para assegurar esta homogeneidade ao
menos em nível formal.
Com o contributo da teoria de Hare pode-se argumentar contra a
natureza política ou ideológica desta homegeneidade. Trata-se de uma
necessidade lógica que o discurso prescritivo tenha um propósito de
homogeneidade. O Princípio da Universalidade afirma a coerência entre os
objetos iguais de determinado direito, e o Princípio da Prescritividade afirma
a coerência entre os sujeitos.
De modo semelhante aos princípios afirmados por Hare, Kurt Baier
buscou indicar parâmetros formais pelos quais as razões morais de
determinado argumento podem ser consideradas “verdadeiras”. Em seu livro,
The moral point of view, Baier distingue entre condições formais e materiais.
As primeiras podem ser resumidas na exigência de houvesse regras morais,
isto é, que elas existissem, e fossem utilizadas em lugar do interesse pessoal
dos agentes, confirmando a expectativa de universabilidade tal como Hare já
propusera. Além disso, tais regras morais deveriam ser universalmente
válidas, acessíveis e apreensíveis. Neste ponto observa-se um
aprofundamento da universabilidade e, podemos afirmar, uma ampliação da
extensidade. Dentro das condições das regras morais, Baier elabora alguns
fundamentos para sua racionalidade; segundo ele, as regras não podem ser: a)
autodestrutivas, afirmando um propósito e negando-o em seguida, como em
“Faça promessa que não pretende cumprir”. Neste caso, a causa da promessa
enquanto valor moral fica comprometida a priori, tornando impossível
afirmar sua racionalidade.
b) autodelimitadoras, quando o propósito é ameaçado logo depois de
ter sido enunciado, como é o caso de “Peça ajuda quando estiver com
dificuldades, mas não ajude quando pedirem”. É um caso similar ao Princípio
da Prescritividade de Hare, no qual a alternância de papéis entre quem atua e
quem sofre as consequências serve indício para a moralidade de uma regra.
c) moralmente impossíveis de serem ensinadas, no caso de uma
proposta tal que elimine a possibilidade de formar outras regras morais. É o
caso de “Sempre duvide de tudo”, tornando ineficaz o conhecimento moral
advindo dali em diante.
No caso das condições materiais, Baier aponta três exigências para a
validade universal: a) A condição que as regras sejam norteadas por um
escopo que contribua imediatamente para o bem comum de cada um, para
aqueles casos em que seja possível uma coincidência total de interesses.
b) Nos casos que envolvam conflitos de interesses deve ser respeitada
a reversibilidade. De modo similar ao que Hare propusera no Princípio da
Prescritividade, Baier explica esta exigência como o comportamento que
deve ser aceito pelos que são afetados independentemente se são seus agentes
ou pacientes.
c) Uma ação deve ser regulada proibitivamente quando sua adoção
geral trouxer consequências indesejáveis.
A primeira condição formal, de que devem se suspender os interesses
pessoais e se utilizar as regras morais, dentro das quais está o ponto de vista
dos outros, é atacada por Alexy. Neste caso trata-se de apenas substituir o
próprio ponto de vista pelo ponto de vista de outros, sem que com isso se
atinja alguma objetividade[283]: A fim de justificar o ponto de vista moral,
temos de pressupor o ponto de vista de qualquer um. Mas quem deixa de lado
os fatores pessoais e adota o ponto de vista de outros, já determinou de
alguma maneira algo como um ponto de vista moral. Assim sendo, a
justificação se torna circular.

Novamente a crítica de Alexy toca na oposição interna da


extensidade: o critério a ser adotado para a ampliação das regras acaba de
mostrando um argumento circular.
Sobre as condições materiais, vemos na condição material de
reversibilidade o mesmo que ocorrera antes com o Princípio da Prescritvidade
de Hare. A substituição hipotética do agente ativo por passivo revela apenas
uma objetividade artificial, uma vez que os interesses podem não ser os
mesmos. Pode ser exemplificado com aquilo que dizemos popularmente com
“O que é bom para mim pode não ser para você”.
A condição de generalidade apresenta problemas de eficácia
similares. Alexy exemplifica[284]: Se todos produzissem roupas a humanidade
morreria de fome. Mas isso significa que ninguém deveria produzir roupas? O que acontece
se um certo número de pessoas se dedica à atividade em questão de modo que as
consequências indesejáveis venham a acontecer?
Embora afirme ser possível reformular esta condição sujeitando-a a
limitações e qualificações, Alexy suscita o problema das extensidades na
medida em que aponta a inevitável contradição na expansão dos critérios e o
possível obstáculo que seus efeitos gerariam se utilizados universalmente.
As teorias descritas, juntamente com sua crítica, revelam um aspecto
problemático que parece essencial à estrutura do discurso prescritivo.
Conforme buscamos elaborar nos campos decadialéticos, há um conjunto de
tensões inerentes ao direito que podem ser reveladas na medida em que nos
aprofundamos nos sujeitos da relação. É o caso das oposições da extensidade.
Somente neste nível de atualização do direito nos deparamos com o sujeito, o
único polo ontologicamente estável da relação de participação. Sua
estabilidade, enquanto homem ou mulher, existentes em espaço e tempo, não
é, todavia, unitária. A multiplicidade de sujeitos leva à oposições ontológicas.
A questão de assegurar a igualdade aos iguais e a justa desigualdade aos
desiguais expõe um dos problemas sensíveis da extensidade. Podemos ir
além: em que medida o conceito de pessoa jurídica perfaz uma realidade?
Este ponto suscitará os problemas envolvendo a personalidade jurídica e sua
desconsideração, as distinções entre pessoa e cargo, os princípios que
marcam a impessoalidade administrativa e finalmente, os problemas de
representação constitucional.
2. Conclusão – Problemas d as oposições ontológicas e oposições
deônticas
Vimos que há oposições da intensidade, expressas no campo de
problemas surgidos no tipo de relação jurídica, e as oposições da extensidade
expressas no campo de problemas relativos aos sujeitos da norma.
Podemos descrevê-las sucintamente como 1) oposições de ordem
ontológica no caso da extensidade e 2) oposições da obrigação entre sujeitos
e normas.
Figura 6: Aplicação do quinto campo substitui as oposições da “extensidade e
intensidade” por oposições da “ontologia” e “deôntica” jurídicas.

Capítulo VI – Sexto campo


1. Oposições do sujeito
Todo conhecimento deriva de uma relação entre sujeito e objeto,
conforme apresentamos no excurso da exposição sobre o primeiro campo. A
divisão entre discurso prescritivo e discurso descritivo aponta para este dado
fundamental do direito: ele é composto por duas funções da linguagem. Não
se limita a investigação, portanto, ao objeto, isto é, ao que denominamos
discurso prescritivo. O tipo de conhecimento pelo qual o sujeito interage com
o objeto e formula assertivas é fundamental para a compreensão das
propriedades do direito. Além disso, se buscamos um conceito de direito que
agregue suas propriedades também se inclui aquelas propriedades
responsáveis pelas mudanças do objeto ao longo do tempo. O discurso
prescritivo não pode ter em si mesmo sua causa. Ele depende da descrição
sobre as prescrições como princípio necessário para que elas sejam
modificadas.
1.1. O problema da mudança jurídica
A exposição do primeiro campo delineou os problemas surgidos em
torno da relação entre o discurso prescritivo e o discurso descritivo.
Apontamos estes problemas como gerais, no sentido de completarem
qualquer experiência jurídica possível. Para prosseguir o desenvolvimento
investigaremos o problema da mudança jurídica.
Afirmamos que o agregado de regras válidas do direito funciona
como discurso prescritivo, nos quais a ação humana intervém de maneira a
modificá-lo. A afirmação é trivial. No entanto, do ponto de vista filosófico
pode suscitar novos problemas geradores de novas linhas de investigação.
Manteremos o contato com uma delas a fim de prosseguir na investigação
sobre qual situação existencial é evocada pelo primeiro campo.
Supomos, de início, que a modificação do direito é um processo que
não suscita maiores indagações para além do requisito da validade. Uma vez
considerado válido, um novo enunciado prescritivo passa a integrar o
agregado de regras e, por conseguinte, está a disposição da ação humana para
a aplicação. Mas toda modificação implica uma alteração de um estado
anterior, a qual, no caso do direito, se dá necessariamente pela virtualização
de um de seus aspectos. Exemplo disso é um projeto de lei que modifique
certa norma ab-rogando seu enunciado anterior e descartando-o sob o ponto
de vista da validade.
A pergunta que se impõe é: se algumas regras são simplesmente
descartadas como partes do objeto como um todo, isto é, do agregado de
regras válidas, em que medida este se torna outra coisa? A experiência
cotidiana sugere que uma simples mudança – como ocorre constantemente –
em nada afeta o direito enquanto tal: por frequentes que sejam, a criação e
modificação de normas em nada afetam a importância do requisito da
validade, tampouco a contradiz noção de ordem jurídica[285]. Mas em que
limite essas modificações podem ser levadas a cabo sem que elas
transformem o objeto ora determinado “direito” em outra coisa? Sabemos
pela experiência e de modo evidente que, ao mudar, o direito não deixa de ser
direito, permanecendo a mesma coisa. Há, portanto, a necessidade em se falar
de uma “essência”, algo que permanece intacto a despeito de quaisquer
mudanças. Não podemos repudiar por completo o paradigma clássico de
investigação do objeto por meio da verificação de suas propriedades mais
evidentes para a construção do conceito.
Surge um novo problema: se o direito muda e, mudando, permanece
enquanto ordem jurídica, há algo que sustenta sua identidade através das
mudanças. Cabe aqui observar que não nos distanciamos das observações
feitas historicamente sobre os sistemas externos: a elucubração teórica de
Kant sobre o crescimento per intussuscepcionem que influenciou Savigny,
entre outros, é justamente uma busca pela garantia de permanência do objeto
se modificando e se mantendo como tal, crescendo a maneira de um
organismo. Sobre esta analogia, Voegelin ressalva[286]: A ideia de encontrar
na ordem jurídica algo como uma forma orgânica é, ao menos, sugestiva, mas
as probabilidades não parecem boas, pois tanto a distinção entre
características essenciais e não-essenciais como a relação entre forma
constante e substância mutável já esbarraram no obstáculo da validade.

O problema da validade foi enfrentado anteriormente adicionando a


ela seu complemento de ação subjetiva – mas a indagação quanto à essência
permanece irresoluta. A este problema nos preocuparemos agora.

1.2. Atualidade como comunicação


Se a tensão entre a conduta empírica e a ordem vinculada ao discurso
prescritivo se manifesta por meio de ações individuais surgem daí novos
pontos a serem trabalhados: o conjunto de regras não é por todos conhecido,
ainda que tomemos por certa a premissa de que é por todos “participado”. O
conhecimento e desconhecimento gera a situação de demanda organizacional:
“O significado normativo de uma regra envolve, pelo menos, duas pessoas
face a face num ato de comunicação, ainda que uma das pessoas possa ser o
eu pensador que formula uma regra para ser seguida pelo eu agente”[287].
Um exemplo da participação pressuposta com a qual o direito
funciona pode ser observado como uma preocupação dentro do próprio
agregado de regras: no direito brasileiro, a inescusabilidade do
desconhecimento da lei[288] comprime dentro de si o grande paradoxo de toda
relação entre a participação total do indivíduo, imerso no conjunto de
relações jurídicas que lhe dizem respeito, e o conhecimento meramente
parcial do conteúdo destas relações. Mesmo os maiores conhecedores devem
confessar sua incapacidade de captar a totalidade do conhecimento jurídico, e
mesmo as menores questões jurídicas dotadas de validade serão igualmente
dotadas da obrigatoriedade de serem cumpridas. O distanciamento entre a
participação e a ação, que poderíamos aqui tratar por ontológico, é justamente
a lacuna que a comunicação busca preencher. É um preenchimento concreto,
não teórico; estamos diante de reais dimensões objetivas que não se explicam
nem pela lógica dos sistemas, nem tampouco pela tópica: a comunicação
requer o conhecimento de um número razoável de indivíduos, dedicados
profissionalmente para imergirem o tanto quanto possível na participação
jurídica. As profissões jurídicas têm, então, uma função imperiosa na busca
pela ordem estabelecendo o elo entre o desconhecimento jurídico do cidadão
leigo e o conhecimento que o discurso descritivo desenvolve.
Os problemas voltam a aparecer em diferentes âmbitos factuais: a
qualidade das profissões jurídicas vincula-se à ordem; o acesso dos cidadãos
leigos ao profissional requer um discurso prescritivo adequado, não há um
supra-direito regulando as relações do próprio direito.
O problema da relação da ordem com o direito e o homem (sociedade
e indivíduo) parece mais palpável uma vez esclarecidas as tensões internas e
as relações entre os pares[289]. A ordem social substantiva é buscada pelo
homem sob a forma de ação, na medida em que organiza suas relações e
constrói para si um âmbito de profissionalização jurídica, a ordem se lhe
deslinda sob a forma de regras e imprime-lhes o apelo para que sejam
seguidas[290]. O problema da atualização se personaliza finalmente, ligando a
ordem das regras válidas ao campo da conduta individual, do “dever-ser” ao
“ser” como Kant repudiara. Da participação à comunicação.
A comunicação necessária se engendra a partir de diversas
experiências que podem ser descritas a nível psicológico e sociológico.
Insere-se aqui, na descrição do fenômeno jurídico. As definições adotadas
pelo direito têm suas compreensões vinculadas à participação em
determinado setor ou âmbito da experiência. Tal nos levaria a aporia
fundamental da participação conforme descrita acima: de que forma pode o
homem participar do direito e incluir-se em seus “jogos de linguagem” antes
de conhecê-lo propriamente?
Larenz levanta a evidência de “vivências-chave” ocorridas mesmo na
idade infantil, argumentando de maneira próxima ao que Platão chamaria
anamnese. Segundo ele[291]: (...) é indubitável que uma criança compreende o que
deve fazer ou não pode fazer algo, quando tal lhe é indicado. O passo seguinte poderia ser
o fato de que a criança constata que não é só a ela que se fazem exigências, mas também a
outros. Muito cedo, porém, ela vem a desenvolver também um certo poder de distinção
relativo a se tais exigências são “justificadas” ou não. (...) Provavelmente são estas
“vivências-chave” que possibilitam a todo o indivíduo, desde tenra idade, o acesso à esfera
normativa Tal nível de experiência parece sugerir um natural envolvimento do
homem com o que estabelecemos como a ordem, mas elas ainda estão
distantes de iniciar o indivíduo na linguagem própria do direito,
representando, no caso, uma vivência algo lúdica que o ser humano
experimenta na infância.
O avanço destas experiências organizadas em torno da ordem
substantiva da sociedade indica a prevalência de um discurso sobre o
discurso prescritivo. O direito, enquanto objeto, deve então se manifestar em
duas funções da linguagem: uma prescritiva (natural e própria do agregado de
regras) e uma descritiva direcionada ao discurso prescritivo. Esta formulação
simples de discurso prescritivo e discurso descritivo sobre o discurso
prescritivo resume o problema do “gênero” do direito. Ela funciona, todavia,
apenas sob um aspecto linguístico primário e nada nos aponta além de um
conteúdo superficial em funcionamento. Os campos seguintes aprofundarão o
discurso descritivo formulando os problemas direcionados ao modo como
nossa linguagem opera sob a descrição do direito. Temas ainda não
explorados (por não serem prescritivos) só podem ser enquadrados num novo
sub-gênero, evitando a usual confusão da filosofia jurídica sobre a confusão
entre direito e moral, direito e justiça, direito e valores, etc. A unidade destas
relações é feita a partir do aspecto subjetivo fundamental da participação do
sujeito na ordem: o discurso prescritivo é produzido pelo ser humano e deve
ser analisado segundo categorias gnosiológicas humanas. Seguindo o método
de Mario Ferreira, razão e intuição serão a antinomia dialética básica do sexto
campo até o nono.

1.3. Oposições dos conceitos e dos valores

Mário Ferreira coloca no sexto campo a antinomia dialética do


conhecimento racional e intuitivo, explicitando a dialeticidade entre ambos.
A inteligência seria disposta pela dialeticidade de razão e intuição, operando
antagonisticamente. Em “Filosofia e Cosmovisão”, livro tido por introdutório
do autor, são explicados os elementos básicos da decadialética. O
conhecimento racional opera sobre semelhanças, agrupando-as e
determinando-as pela via abstrativa. O semelhante, enquanto “conceito
preferido” da razão, é o primeiro aspecto intelectivo que se desenrola num
“roteiro”: “do parecido ao semelhante, do semelhante para o mesmo, do
mesmo para o igual e do igual `identidade, que é a homogeneidade absoluta,
abstração máxima da função abstrativa da razão”[292] . O primeiro movimento
racional é uma comparação entre semelhantes, por meio do reconhecimento
da semelhança: “Conhecer racionalmente é comparar, pois o conhecimento
racional é conceitual”[293]. O motivo pelo qual este processo tem relevância
para a inteligência humana é a “economia de esforço” que “leva a razão a
separar, a isolar o semelhante que interessa, única forma de torná-lo sempre
congnoscível, comparável”, do contrário “todo o processo comparativo
tornar-se-ia novamente moroso e consequentemente cansativo,
antieconômico e prejudicial”. Aqui entra a abstração como o “semelhante ou
o diferente racionalizado, separado, isolado do concreto”. Com a
estabilização das semelhanças e sua formulação chega-se ao conceito. Mário
Ferreira zela por uma construção simples de sua teoria, quase didática. Um
exemplo possível da aplicação deste campo ao direito seria sua descrição
enquanto conjunto de normas hierarquizadas sob o princípio dinâmico de
competências e o desenvolvimento deste conhecimento como a indagação
sobre os nexos de validade entre as normas, culminando na configuração de
um sistema cujos pressupostos de unidade e adequação sejam atendidos,
atentando-se para o saneamento de contradições internas. A variedade de
formas e institutos jurídicos fica então abstraída sob uma única categoria que
perpassa suas diferenças: a semelhança é buscada por meio da validade.
A razão não permite, todavia, fica limitada ao aspecto estático da
realidade: “A realidade racionalizada seria apenas em acto, idêntica a si
mesma. Mas a realidade é também potência porque ela pode ser, vir-a-ser. Se
a realidade fosse apenas acto seria totalmente simultânea e coexistente, e o
diferente seria impossível”[294]. A necessidade auto-evidente de afirmar a
diferença como um vir-a-ser conduz à necessidade de um conhecimento
humano próprio deste âmbito.
É, por outro lado, intuitivo o conhecimento que determina as
diferenças, permitindo uma separação de elementos de um todo previamente
organizado. A “imediatidade” cuja tradição filosófica aponta como dado
essencial do conhecimento intuitivo se justifica sob este olhar: diferenças não
carecem de abstração para serem determinadas, são ditas evidentes por
prescindirem de uma etapa gnosiológica entre sua presença e apreensão. A
percepção de dados valorativos também só pode ser feita a partir da intuição,
conquanto sejam tomadas por base as teorias valorativas que ponderam o
papel do indivíduo. Conforme explica Johannes Hessen, há que se distinguir
entre intuição material e formal[295]. A primeira é tomada em sentido mais
amplo designando a apreensão imediata de uma relação entre conteúdos
sensíveis, como é o caso do reconhecimento imediato que temos da diferença
entre categorias sensíveis, entre duas ou mais cores, sons, formatos, etc.
Tomada em sentido material, a intuição diz respeito à apreensão de um
conteúdo suprassensível, fundado nas três potências da estrutura psíquica
humana. Têm-se então uma intelecção volitiva, racional ou emotiva. Estas
três intuições subjetivas concordam com a estrutura do objeto, separado em
seus aspectos: o “ser-assim” (essentia) corresponde à intuição racional; o
“ser-aí” (existentia) à intuição volitiva; e o “ter-valor” à intuição emocional.
Não é fortuito que as intuições do sujeito concordem com aspectos do objeto.
A dialetização exige uma correspondência da apreensão com o dado
apreendido, assim como afirmamos haver um domínio da verdade que
abrange os dois polos da relação. Hessen afirma que nos três casos a
apreensão imediata do objeto pode ser expressa pela palavra “visão”
(anschauung).
A intuição racional tem no objeto seu exato correlato, consistindo em
sua ‘essência’, atingindo-a por um esforço direto do espírito[296]. Encontramo-
la desde Platão, passando por Descartes e os idealistas alemães, mas
sobretudo Husserl apresentou-a em sua teoria fenomenológica.
Bergson desceu às minúcias da intuição chamada por ele intelectiva,
alçando-a a atividade filosófica por excelência. O aspecto profundo e real dos
pensamentos é o movimento, a continuidade, o devir, que apenas a intuição
alcança; a linguagem filosófica deve também se adaptar a esta condição
aproximando-se de uma linguagem literária, apta a sugerir nuances do
pensamento real, provocando as intuições no leitor para que ele mesmo se
torne um filósofo. Vê-se aqui a proximidade com a qual a intuição intelectual
de Bergson tem das intuições emotivas.
A intuição volitiva nasce das motivações internas do sujeito e tem seu
correlato na existência, à realidade existencial do objeto. Segundo Dilthey por
sermos seres com vontade, seres que querem, que desejam, logo nos
confrontamos com a resistência das coisas: tal resistência se converte em
existência. Assim, o nosso querer, isto é, nossa intuição volitiva, afirma a
existência das coisas e também do eu.
A antiguidade parece ter explorado este tipo de conhecimento
intuitivo do direito. Heráclito descreve uma ordem cosmológica que se
desenrola como eterno devir, mais precisamente como uma luta universal,
geradora da vida e também sua destruidora. Por trás dessa luta haveria uma
“harmonia oculta”[297].Esta harmonia seria, portanto, coordenada por uma
organização presciente, o Logos eterno, predominante sobre todo universo
empírico e que, assim como o fogo, persiste a todas as transformações[298].
Esta harmonia coordenada pelo Logos eterno seria vislumbrada pelo homem
no ato de conhecer a si mesmo[299]. O reino da justiça (Diké) seria coabitado
pela subversão da ordem (Eris), mas ambas formariam uma harmonia oculta
na qual o direito estaria presente[300] , submetido a uma ordem superior e
eterna[301]. De onde vem esta percepção do direito enquanto mudança, o
antagonismo de Diké e Eris, a harmonia oculta? A consciência humana, para
Mário Ferreira, operando sobre a dialeticidade de intuição e razão não
elimina a existência de nenhuma. A predominância de uma torna a outra
secundária, mas não suprimida[302]: Quando predomina a intuição na
consciência, passam a identidade, as tendências sintéticas da razão, ao
subconsciente, sem que deixem de exercer sua ação sobre a ação intuitiva,
pois, partindo do nosso princípio da contemporaneidade, não há
conhecimento do singular sem o geral, e vice-versa.

A dialeticidade de razão e intuição operam a par de suas diferenças


insuperáveis. O processo de abstração se apoia inicialmente num conjunto de
diferenças, cujos esquemas noético-abstrativos permitem captar semelhanças
e atribuir-lhes um significado. Quando demonstrada a unidade e a
estabilidade deste significado, seja pelo valor, seja pela repetição, este
significado se torna um conceito. Novamente a razão abstrai semelhanças
partilhadas entre conceitos, simbolizando-os tal como se fossem objetos[303],
alcançando assim conceitos superiores, gêneros, categorias. Conclui-se,
portanto, que a razão opera sobre diferenças apreendidas intuitivamente a
exemplo de um subtrato material informado pela faculdade abstrativa.
Paralelamente, a intuição pode retomar os conceitos já formulados e dentro
deles delimitar diferenças (agora sobre uma nuance distinta das semelhanças
que ensejaram o agrupamento inicial), obtendo o que se poderia chamar,
grosso modo, “sub-conceitos”, cuja equivalência descritiva entre sua
representação e a presença real é o que determina a validade das definições.
O conhecimento jurídico, sendo espécie de conhecimento humano,
deve se enquadrar nestas duas categorias, transigindo dialeticamente entre os
dois polos. Já dissemos que os sistemas são a consolidação racional, mas
podemos complementar que sua operacionalidade só se justifica
intuitivamente. De fato, no campo das possibilidades reais e não-reais quando
uma determinada situação fática é descrita por determinado enunciado
normativo o que se busca são semelhanças entre ambas[304]. Mas a operação
mental para que se “encontre” no sistema, dentro das variadas fontes (ou em
sua ausência), a solução mais adequada ao caso só pode ser intuitiva, na
medida em que capta suas diferenças específicas permitindo uma inferência
direta, cujo nome dado pela tradição jurídica foi subsunção. Indo da intuição
para a racionalidade, temos o próprio fenômeno jurígeno: situações
conflituosas novas demandam uma incorporação no sistema, seja pela via
integrativa, a colmatação de lacunas ou a “criação do direito”, ponto assaz
discutido quanto à validade; em todos os casos há o reconhecimento de que
as diferenças sobrepujam as semelhanças, tornando a via puramente racional
ineficaz. Demanda-se uma apreensão das diferenças pela intuição para que, a
posteriori, dados gerais sejam abstraídos e reinicie-se o processo de
subsunção.

2. Conclusão – Problemas do discurso prescritivo: sistemas e valores


Assim como no primeiro campo, o sexto campo é naturalmente vago
na apresentação da tensão geradora de problemas, pois apresenta apenas
preliminarmente antinomia dialética do discurso descritivo. Podemos resumir
o conjunto de tensões geradora de problemas deste campo como: a) o
discurso descritivo baseado em intuições sobre o problema de valores.
b) o discurso descritivo baseado em conceptualizações racionais
tendentes à formação dos sistemas.
Figura 7: Aplicação do sexto campo substitui a antinomia da “razão” e “intuição” pela
antinomia entre “sistema” e “valor”.

Capítulo VII – Sétimo campo

1. Oposições da razão
A passagem do âmbito fático e particular para a generalização
conceitual antes de ser prescrita deve ser descrita. A divisão feita entre o
discurso prescritivo e descritivo permite englobar a razão jurídica prévia a
criação de leis como um processo do segundo tipo.
1.1. Os sistemas jurídicos
Optamos pela investigação dos sistemas enquanto fontes
autoexpressivas das oposições da razão no discurso descritivo. O percurso
dos sistemas na história é uma amostra de quais assuntos são discutidos pelos
juristas, ou seja, do modo como buscaram organizar o direito, aproximando-
se do que hoje podemos chamar de conceito pragmático[305].
A auto delimitação e a coerência em si mesma, tendem ao
cumprimento dos requisitos da unidade e estabilidade dos conceitos[306].
Sistemas são modelos de conceitos pragmáticos uma vez que expressam um
elevado domínio do objeto – e por isso devem ser investigados. Tal
investigação parte, como foi dito, não da qualidade em si de cada proposta,
mas da expectativa de que o resultado da tarefa de organização aponte para
um aspecto unitário e estável do direito, Não por acaso, métodos lógicos,
compreendidos como o modelo de elaboração resultante no conhecimento
apodítico, permeiam a história dos sistemas jurídicos com a nítida tarefa de
lhes conferir o máximo rigor epistemológico. O avanço chega a tal ponto em
que o rigor acaba por cindir o conteúdo jurídico sistemático separando-lhe do
plano da vida, o Lebenswelt, criando divisões bastante duvidosas como
“mundo dos fatos” e “mundo do direito”. Novas alternativas precisam ser
buscadas, afinal, as imposições sociais também se modificam ao compasso
das novas teorias: os sistemas são transformados, relativizados, combinados e
questionados. A afirmação de sua insustentabilidade conduz a proposta de
seu abandono. Com Theodor Viehweg ocorre o momento crucial no
desenvolvimento dos sistemas: há uma hesitação sobre o predomínio da
lógica como viga estruturante do pensamento jurídico. Seja negando ou
afirmando seu papel, é a partir dela que tanto as filosofias do direito quanto a
ciência jurídica haviam caminhado até a metade do século XX. Viehweg
retoma o conceito clássico da tópica para ressaltar o papel da retórica e da
dialética como imprescindíveis e anteriores à lógica.

1.2. Exame dos sistemas como fontes autoexpressivas


A Antiguidade utilizou o termo “σύστημα” com sentidos técnicos para
se referir à métrica poética e à música[307]. Em sentido atécnico vemos em
Aristóteles a referência à organização[308] do cosmos. Seu itinerário ao longo
da história perpassa momentos de florescimento do ardor humano em obter
uma ordem a partir de conhecimentos difusos acumulados: é assim o intento
de utilizar o sistema como meio didático ou mnemônico, oferecendo um meio
visual da organização do saber[309]. No caso do direito, a ambição por
sistematizar conteúdos esparsos (enquanto institutos razoavelmente estáveis)
começa com os juristas romanos. Há o registro histórico de Quinto Múcio
Cevola, que teria feito um esquema expositivo de tipo lógico no ano 100,
considerado o primeiro tratado de direito privado[310]; mais nitidamente, há o
esforço de codificação na época pós-clássica com os Códigos Gregoriano e
Hermogeniano e, finalmente, o Corpus iuris Civiles[311]. É necessário ressaltar
que os romanos não tiveram uma atitude constante em relação aos sistemas.
O pensamento abstrativo ganha força especialmente no último século da
República, enfraquece no período clássico e é retomado no bizantino; de
modo geral os romanos permaneciam reticentes suspeitando de perigos que
as generalizações trariam[312].
Embora não possa ser inserido no conceito de sistema, o passo
seguinte da história do direito revelaria nuances de uma lógica com a escola
dos glosadores. A redescoberta de um manuscrito primitivo do Digesto em
1050 seria o acontecimento fundamental para que o ímpeto sistematizador de
juristas como Irnério e Acúrsio produzissem uma nova ciência jurídica[313]. A
interessante tese de Erwin Panofsky ressalta a ligação do pensamento
medieval e a estrutura gótica das catedrais construídas neste período: o
esforço por uma totalidade que concilie possibilidades contraditórias[314].
A noção de sistema ganha aplicação nas obras de teologia,
inicialmente nas sumas católicas e depois nas interpretações protestantes[315].
O século XVIII, influência kantiana culmina na “estabilização” do termo. O
paradigma da matemática é posto em relevo e nela deve-se emular a filosofia
na construção de seu sistema, tendo por princípio, análogo ao papel
representado pelos axiomas, a autodeterminação humana. As partes do
sistema devem tender a este princípio tal como um organismo, em
desenvolvimento harmônico, o que Kant chama de incrementos internos, ou
per intussuscepcionem. O modelo kantiano de sistema prevaleceu, posto que
não isento de críticas e reparos[316], principalmente no que diz respeito a
unitariedade do princípio que o fundamenta, isto é, cada parte deve estar
jungida pela lógica e também deve se referir a um princípio único. Em Kant,
a ideia de um direito cosmopolita posto sob o ordenamento de uma federação
de Estados era o meio pelo qual a humanidade alcançaria a “paz perpétua”
entrelaçando o escopo da história com o culminar do direito[317].
A pretensão de universalidade das ideias chega ao direito sob a forma
dos estudos comparatistas, ainda carentes de um método homogêneo o qual
os juristas de diferentes países pudessem compartilhar e nisso estava em jogo
também a consideração do momento histórico como determinante do
direito[318]. O empenho na investigação sobre as razões da história
significaria, sobretudo, um fruto da concepção de sistema como instrumento
de ordenação apto a explicitar algum tipo de padrão que possa ser
interpretado pelo historiador ou pelo jurista[319].
O conjunto de normas predominante até o século XIX era de origem
romana cujo conteúdo, por sua vez, era adaptado pela atividade prática
(utilizava-se o nome “direito romano atual”)[320]; o esforço de sistematização
a partir de determinada matriz filosófica ocorre nas vésperas do surgimento
da Escola Histórica com Gustav Hugo (1764-1844) remontando às fontes
romanas históricas, posteriormente com Thibaut (1772-1840), buscando uma
sistematização diversa daquela ínsita às fontes romanas, e em Georg Arnold
Heise (1778-1851) com a consolidação de um modelo eminentemente
privatístico. Nestes juristas vê-se o florescimento do espírito construtivista
ainda hesitante em abrir mão da aplicação dogmática das fontes
justinianas[321]. Ao se aprofundar, a organização com finalidade dogmática
revela certa dependência da matéria em si, ou seja, do sistema interno;
depende, portanto, não somente do papel ocupado por cada instituto, mas da
criatividade em se elaborar o direito como um todo, rompendo os limites dos
“axiomas”, ou seja, dos institutos romanos, antes tidos por irrenunciáveis.
A proposta de Savigny (1779-1861) inaugura a busca pela construção
na qual também as fontes deviam se adequar ao sistema. Segundo ele, estas
só prevalecem se de acordo com alguns princípios fundamentais: a ciência
jurídica deve ser histórica, pois está ligada ao espírito de um povo; e
filosófica, no sentido da organização, válida do ponto de vista lógico, em
estrita consonância com a concepção filosófica de sistema encontrada em
Christian Wolff (1679-1754); introduz ainda o elemento organicista de um
desenvolvimento a partir do espírito do povo e a mentalidade nele
consolidada[322]. Também em Julius Stahl (1802-61) e no “primeiro” Rudolf
Von Jhering (1818-82) encontramos a concepção de sistema realçada pela
proximidade com o que foi apresentado sobre os sistemas atuais: institutos
que interagem e se modificam uns aos outros, pois estão ligados agora à
natureza prática de sua aplicação e, logo, à vida humana. Especialmente
Jhering vislumbra a possibilidade do direito partilhar com a ciência natural a
ideia de sistemas tal como se conhece hoje, estabelecendo como requisitos da
construção: a coincidência com o material positivo (completude do sistema);
eliminar contradições e apresentar uma “beleza jurídica”, isto é, uma
elegância nas proposições[323].
Tal ideia é reafirmada em Puchta (1798-1846) com o incremento de
uma concepção de “crescimento interno da ciência”, ou seja, de uma
aproximação cada vez maior do discurso científico ao objeto estudado. O
autor marca a atitude da construção do sistema renunciando à exposição
histórica para buscar uma organização com nítido viés filosófico. O índice de
seu Cursus der Institutionen segue uma estrutura que parte da pessoa e se
ramifica em família, negócio jurídicos, coisas, obrigações, sucessão
marcando o predomínio de uma ordem conceitual focada no sujeito[324].
Larenz indica a pirâmide conceitual de Puchta com seu ápice no a priori
kantiano da liberdade[325], a partir do qual deduz os conceitos dogmáticos.
Assim como o desenvolvimento da ideia de sistemas latu sensu,
apresentada acima, pode ser interpretada como a racionalização ou
quantificação de dados brutos e heterogêneos (ainda no sentido de juntar os
semelhantes a partir dos diferentes), também os sistemas jurídicos são
fundados sob uma adequação lógica aproximando-se do ideal das ciências
naturais. A necessidade de uma aplicação prática dos institutos, porém, deu
ensejo a contínuas adaptações que culminaram em uma distinção entre as
duas tarefas envolvidas. A atitude construtivista havia se aprofundado
suficientemente para tocar o núcleo dos sistemas que buscava construir: as
normas. Não surpreende que os desgastados institutos romanos houvessem
perdido sua plasticidade no irromper do contemporâneo século XX. O
movimento de codificação, já estabelecido na França napoleônica era, de
fato, inevitável para a jurisprudência alemã, e seu desenvolvimento a partir da
Escola Histórica fornecia recursos científicos para tanto.
Em contraste com a atividade precedente de elaboração de sistemas
externos, isto é, de discursos sobre a ciência jurídica, voltados a uma
organização da matéria na qual se pressupunha a caoticidade do dado e a
ligação estritamente lógica entre as proposições enunciativas, surge agora o
sistema interno sob uma nova concepção. A começar pela premissa de uma
ordem ínsita a matéria estudada, isto é, ao direito positivo: o emaranhado das
fontes romanas dava lugar à ordenação conceitual dos códigos tal como
preconizava a pandectística; assim como no direito público as constituições
desenhavam nitidamente os contornos do Estado. Isso possibilitava que o
estudo jurídico perfurasse a camada dos institutos antes enrijecida pelo valor
histórico das fontes e passasse a ser desenvolvido diretamente sobre seu
conteúdo; este salto qualitativo permitia que o enfoque não fosse mais
direcionado a obter uma clareza didática, mas uma funcionalidade da
aplicação[326]. Por fim se projetam nexos entre as proposições científicas que
extrapolam a mera lógica formal, dotando a ciência jurídica de um tipo
específico de raciocínio, a exemplo do escalonamento normativo (Stufenbau)
em Kelsen[327]. As teorias oitocentistas que propunham um sistema externo
eram representações cada vez mais organizadas do direito, como se este fosse
uma matéria prima com o qual se edifica uma construção[328]. Com o salto
qualitativo da ciência jurídica do século XX, interessa agora uma
representação exata do que sustenta este edifício internamente, sua estrutura,
o fundamento conceitual apto a mantê-lo em pé independentemente do
material que o preencha[329].
A racionalização do objeto havia então atingido seu ápice com a
teoria pura do direito. Em que pesem as críticas a respeito de seu rigor
metodológico e as contradições internas do sistema de Kelsen, é ele, sem
dúvida, o grande salto qualitativo da ciência jurídica do século XX[330].
A primeira metade do século XX assiste, então, a uma retomada dos
sistemas na psicologia; com Wolfgang Köhler e a teoria da Gestalt; na
ecologia sob a forma de estudos demográficos com Alfred J. Lotka; os
trabalhos na fisiologia de Walter Bradford Cannon sobre o conceito de
homeostase; finalmente, a filosofia se entrelaçava à matemática com o
Círculo de Viena, principalmente sob a figura de Moritz Schlick e Gottlob
Frege[331]. Em linhas gerais se observa um predomínio de concepções
anteriormente restritas às chamadas ciências naturais, que avançam em
direção à filosofia ao mesmo tempo em que dela recebe seus influxos[332]. De
fato, a concepção de sistema tinha notas muito mais relacionadas ao campo
científico do que ao filosófico[333].

1.3. Conceptualização lógica na dogmática jurídica


A forma pela qual os sistemas jurídicos se desenvolveram denotam
um movimento de afastamento de influxos extrajurídicos, tornando o modo
pelo qual o direito é apresentado (no caso dos sistemas externos) ou
explicado e utilizado (no caso dos sistemas internos) cada vez mais “fechado”
em si mesmo, ou seja, resolvendo os problemas que se impunham a partir de
conteúdos intrinsecamente jurídicos, prescindindo de outras fontes do
conhecimento humano[334].
Os chamados sistemas externos tiveram por razão de ser uma
necessária organização da matéria jurídica, possibilitando uma “visão” do
sujeito cognoscente diante de seu objeto. O meio pelo qual tal tarefa pode ser
executada depende da formação de conceitos de gênero, ordenados de forma
que a inclusão ou exclusão de determinadas diferenças dentro de um padrão
de semelhanças permita alocá-los em grupamentos de conteúdo e
continente[335]. Trata-se, como é evidente, de uma abstração. Apreende-se um
objeto da experiência sensível somente por suas propriedades mais evidentes.
Estas propriedades constituem notas a serem recolhidas na definição do
objeto apreendido e, a partir do grau de detalhamento (da quantidade
extensiva de diferenças) é possível ampliar o conceito para que ele abranja
um maior número de objetos particulares. Assim, os conceitos “inferiores”,
que são o de menor grau de abstração (logo, maior número de diferenças),
podem ser subsumidos a conceitos “superiores” cada vez mais genéricos. Tal
seleção de semelhanças e diferenças não é, contudo, fortuita. Ela depende
fundamentalmente do fim perseguido pela ciência que o conceito participa.
Por isso é natural que os conceitos jurídicos, embora homônimos de tantos
outros de outros ramos do conhecimento humano, sejam destes diferentes. O
culminar desta escalada atinge um número pequeno de conceitos aos quais,
idealmente, toda a matéria jurídica pode ser remetida.
A grande meta deste paradigma dos sistemas afirmada historicamente
na codificação é o requisito da completude. Um sistema jurídico será tão bom
quanto sua capacidade de prever as situações particulares conflitantes e
estipular consequências adequadas. A reunião de diversos conceitos
espalhados por todo o campo das relações humanas juridicamente relevantes
tem efeito estandardizável, suprimindo as diferenças descabidas e atribuindo
a este grupo padronizado de relações as mesmas consequências. Ao fundo
está a promessa de segurança jurídica, tendente a todas as resoluções[336].
Além disso, propõe-se uma clareza de dados ao sintetiza-los na forma de
conceitos gerais com que se permite a rápida imersão do jurista na totalidade
da matéria.
A limitação deste método abstrativo conceitual de formulação dos
sistemas fica, por sua vez, determinada pelo próprio efeito da
estandardização. Toda abstração obedece ao um movimento dúplice: é
negativa ao separar o objeto concreto da sua totalidade de propriedades, e
positiva ao integrá-lo a uma generalidade. Tal efeito negativo fica claro na
constatação de um “esvaziamento” do conteúdo do objeto[337]. Por sua vez, o
correspondente efeito positivo (desejável para os fins do sistema) acaba
parcialmente comprometido: a multiplicidade de possibilidades reais e não-
reais são suprimidas sob a forma de um conceito. Por trás disso há uma
condição insuperável da realidade na qual os fenômenos não se colocam de
maneira rígida e estanque como quer o construtor de sistemas, mas aparecem
quase sempre na forma de transições, misturas e variantes. A ideia de um
escalonamento de conceitos inconcussos dificilmente se estabilizaria a luz de
novas e incessantes mudanças da sociedade[338]. Semelhante crítica pode ser
feita a partir de seu próprio fundamento linguístico, constantemente desafiado
pela interpretação jurídica[339].
Este paradigma de sistemas conceptuais-abstratos permite que
examinemos a dinâmica interna de seus conceitos. Este dado será relevante
para mostrar uma aplicação das oposições da razão sob o viés lógico e abrirá
caminho para futuras explicações sobre sua aplicação valorativa-intuitiva.
Temos, portanto, que examinar a formulação de conceitos partindo do
pressuposto que sua intensidade corresponde ao sentido nele imbricado e a
extensidade como a amplitude de aplicação do conceito. É, sobretudo, a
aplicação lógica dos termos “extensidade” e “intensidade”, da qual podemos
tirar algumas relações. Nas palavras de Larenz[340]: Segundo a mencionada lei
lógica de que quanto maior é a extensão (âmbito da aplicação) tanto menor
será o conteúdo do conceito abstrato, este pode englobar em si tanto menos
conteúdo de sentido das normas jurídicas e das regulações dela resultantes –
dos institutos jurídicos – quanto mais avançar a abstração, quanto maior for o
grau de abstração.
Equivale pensar na volatilização dos conceitos para dar-lhes maior
abrangência, perdendo-se, com isso, algo do sentido pré-disposto na norma.
Trazendo esta crítica para a terminologia aqui adotada temos que a
formulação conceitual abstrata provê uma ampliação da virtualidade da
norma, mas reduz suas possibilidades reais.
Num limite, a redução do sentido acaba por tornar os conceitos
inferiores limitados a dois tipos em contraposição excludentes: uma coisa
(conceito superior de sentido bastante mitigado, mas de abrangência extensa)
congrega apenas imóvel ou coisa móvel (ampliando o sentido e reduzindo a
extensão). Este exemplo permite ressaltar que a virtualidade de determinada
regra que inclua o conceito “coisa” será bastante ampla devido à extensão do
conceito, mas necessariamente encontrará um sentido bastante diminuto
demandando mais meios discursivos que lhe ofereçam suporte.

2. Conclusão – Problemas das oposições do sistema: aplicação e


abstração conceitual
Chegamos, portanto, a esta tensão inerente aos conceitos jurídicos: a)
A abstração conceitual propicia maior homogeneidade e clareza, tornando
determinada regra mais extensa. Ela cresce em possibilidades reais de
aplicação, tornando-se apta a cair sobre um maior número e variedade de
casos concretos. Há menos conteúdo, adaptando-se ao que na decadialética é
tratado por “conhecimento”.
b) Com isso perde-se parte do sentido imbricado da regra, tornando-a
menos intensa. A objetividade do enunciado prescrito será necessariamente
reduzida, possibilitando um menor rigor e estandardização de seu conteúdo.
Conclusões adicionais podem ser alcançadas invertendo os valores da
tensão, o que equivaleria à descida dos conceitos superiores aos conceitos
inferiores, assim: c) A especialização do conceito superior restringe sua
aplicação, tornando-o menos extenso. Recai, portanto, sobre um menor
número de casos. O conteúdo, todavia, é maior e mais pormenorizado,
aumentando o que a decadialética trata por “conhecimento”.
d) A especialização agrega notas à definição do conceito, ampliando
seu sentido, tornando-o mais intenso. A objetividade é maior.
Esta tensão, é preciso ressaltar, não encontrará total correspondência
em sistemas jurídicos contemporâneos – o que é natural dado o abandono dos
sistemas puramente conceituais-abstratos tanto pela dogmática quanto pela
jurisprudência. A motivação pela clareza e segurança jurídicas anteriormente
ressaltadas precisava dar lugar a novas modalidades de discursos diferentes
da conceptualização lógica, discursos aptos a preencher o sentido “esvaziado”
dos conceitos superiores. Impunha-se que os conceitos dentro do sistema
fossem concatenados suplementando a horizontalidade “superior” e
“inferior”, surgindo novas propostas de estrutura.
Figura 8: Aplicação do sétimo campo substitui as oposições de conhecimento e
desconhecimento da razão pela tensão entre “aplicação” e “abstração” dos conceitos
jurídicos.

Capítulo VIII – Oitavo campo


1. Campo das oposições das atualizações e virtualizações racionais
-intuitivas
A busca pela conceptualização jurídica por meio da abstração de
situações fáticas em conceitos é decorrente de um valor essencial do direito.
Ao resguardar interesses, o ente legiferante e a interpretação doutrinária
estabelecem um agregado normativo aberto, assegurando o direito para um
grande número de casos e sujeitos. A extensidade jurídica (sujeitos e normas
de direito) é ampliada por meio de enunciados genéricos (mais possibilidades
reais), e restringidas por meio de enunciados com mais detalhes e concreção
(menos possibilidades reais, ou mais possibilidades não-reais). A
consequência causal e descritiva desse fenômeno eminentemente prescritivo
será a impressão nos sujeitos que participam da ordem.
Há a tensão a nível existencial: de um lado a lei como superior ao que
é intuído como justo; do outro, a submissão da lei, mesmo que injusta, em
nome da ordem. Este campo abarca no lado virtual a expectativa de valores
que podem se sobrepor ao conteúdo normativo como um conteúdo desejável,
mas só existente sob a forma latente da norma a ser confirmada na
atualização. Esta atualização, por outro lado, já é a realização da norma em si,
cogente e inquestionável, cujo valor existencial se exprime na ideia de ordem.
Um argumento contemporâneo que é resquício desta tensão é a segurança
jurídica, em contraposição ao valor do justo.

1.1. Sistema e Antisistemas


Podemos rastrear a evocação das oposições racionais do direito no
mito da superioridade do direito posto em relação às demais formas de
justiça. Segundo Eric Voegelin, este mito tem início com Cícero ao equiparar
o nomos-logos estoico com a lex romana. A ordem espiritual afirmada pelos
estoicos e direcionada para a comunidade do ser realizada na “cosmopolis” é
conformada à ordem política vigente na época, o Império Romano[341]. A
imanentização de formas espirituais em elementos jurídicos estáticos e
controlados por uma autoridade mundana deve ser vista como uma operação
racional. Para nos atermos aos conceitos de Mário Ferreira, ela designa a
seleção cuidadosa de semelhanças entre situações concretas na qual o
resultado é percebido intuitivamente como justo. As situações deverão ser
abstraídas, conforme explicamos no campo anterior, e conceitos jurídicos
genéricos serão criados para descrevê-las. A consequência será igualmente
descrita em termos conceituais, desvencilhando-se das circunstâncias
particulares. Finalmente, uma vez criados os conceitos jurídicos a experiência
intuitiva do justo estará imanentizada. A tentação de Cícero em incorporar a
lex romana é tratada por Voegelin como a divinização da ordem imperial
intramundana, a equiparação da “cosmópolis” e Roma[342]. O resultado a
longo prazo será a contínua evocação do direito romano como padrão para
avaliar momentos históricos de decadência ou renascimento. A percepção de
um florescimento com os glosadores da escola de Bolonha, seguida de uma
estagnação dos comentadores e um renascimento humanístico no século XVI
só se justifica com a elevação do direito romano a padrão de ordem histórica.
Contra esta percepção, Voegelin dá o exemplo histórico do Breviarium
Alaricianum, de 506, que serviu de direito aplicado aos súditos romanos de
Alarico II. Sua qualidade, afirma Voegelin, permite servir às necessidades
jurídicas da população romana ruralizada do século VI e não poderia ser visto
como um decaimento jurídico. Outro exemplo em contrário pode ser
apontado na codificação de Justiniano. Neste período o direito romano
encontra-se em decadência e o esforço de seleção e organização das
constituições imperiais e opiniões dos juristas do período clássico
correspondem a uma tentativa de restaurar a ordem anterior: “Sente-se a
atomosfera de uma finalidade fúnebre, canonizante, nas medidas que proíbem
o estudo histórico do direito mediante a comparação da nova coleção com as
fontes de onde foram extraídas, bem como todo trabalho de comentário”[343].
É perceptível que o volume de fontes causaria o risco de contradições, a
violação racional mais grave do discurso jurídico. A ciência europeia do
direito do século XI, em Bolonha, terá esses institutos por base. Assim como
a reforma justiniana, a busca por uma compreensão completa e coerente dos
fenômenos jurídicos é traduzida na dogmaticidade. Novos métodos são
utilizados: o trivium serve de instrumento exegético, conduzindo o jurista à
descrição por meio da controvérsia, dissentio, ambiguitas, até chegar à
solutio[344]. A vinculação ao texto (especialmente o Corpus Iuris Civiles e o
Decretum de Graciano) torna-se problemática diante de situações inaugurais
do comércio e formação de centros urbanos. A cosmovisão medieval cede
lugar à ciência moderna. O paradigma dos sistemas, contudo, ao invés de se
perder junto com as fontes romanas é, ao contrário, reforçado e refinado pelo
humanismo renascentista. O conceito de natureza parece ser a chave para
entender a formação jurídica da modernidade. Tércio Sampaio descreve essa
passagem[345]: Assim, se o problema antigo era o de uma adequação à ordem
natural, o moderno será, antes, como dominar tecnicamente a natureza
ameaçadora. É nesse momento que surge o temor que irá obrigar o pensador
a indagar como proteger a vida contra a agressão dos outros, o que entreabre
a exigência de uma organização racional da ordem social. Daí,
consequentemente, o desenvolvimento de um pensamento jurídico capaz de
certa neutralidade, como exigem as questões técnicas, conduzindo a uma
racionalização e formalização do direito. Tal formalização é que vai ligar o
direito ao chamado pensamento sistemático (grifo do autor).

A conexão entre direito e sistema foi elaborada no campo anterior


partindo das obras de teologia protestante, indo até Cristian Wolf, Lambert e
os juristas do racionalismo do século XVIII, a positivação do século XIX, o
aperfeiçoamento pandectista até Kelsen. O racionalismo e o caráter formalista
dos sistemas não seriam aceitos por tanto tempo sem uma reação. Assim
como a fonte filosófica de Kelsen pode ser rastreada até Kant, passando por
Simmel, os movimentos contrários à construção dos sistemas pode ser
remetida às filosofias voluntaristas do século anterior, como Nietzsche e
Schopenhauer e às escolas econômicas tanto de matriz liberal quanto
marxista. O problema fundamental da aplicação da norma geral ao caso
concreto antes seguia obediente a subsunção lógica, de natureza
inquestionável. O século XX é inaugurado o questionamento desta natureza,
seja pelas pulsões irracionais do ser humano, seja por sua questão social
condicionada pelo materialismo histórico. Em 1930, Isay proclama que o
direito não é mais um conjunto de normas, mas um conjunto de sentenças[346].
O direito não depende mais da inexorabilidade lógica da subsunção, mas da
vontade do juiz. De especial importância neste período é Eugen Ehrlich
(1862-1922). Ao distinguir conceitos jurídicos (referentes ao conflito de
interesses) de conceitos sistemáticos (voltado à exposição didática das
relações jurídicas, constituídos, portanto, de abstrações dos conceitos
jurídicos) ele fornece as bases para a relação dialética mais profícua do
direito: a atividade do jurista enquanto sujeito cognoscente determinando o
objeto da mesma forma que este estabelece o objeto que o jurista atualiza. Em
suas palavras: “Também em nosso tempo, como em todos os tempos, o
baricentro do desenvolvimento jurídico não reside nem na legislação, nem na
doutrina, nem nas sentenças, mas na própria sociedade”[347]. Para Ehrlich os
conceitos jurídicos podem ser compreendidos como a cristalização de
interesses sociais que passam a ser juridicamente relevantes, mas o que
confere relevância a tais interesses é a atenção do jurista que os conceitua
expositivamente antes de se tornarem propriamente jurídicos. O contrato, por
exemplo, surge como conceito sistemático para expor os tipos contratuais já
existentes desde o direito romano, mas em adição à vocação didática há ainda
a possibilidade latente de englobar novas relações sociais que se determinem
relevantes, passando a fazer parte dos conceitos jurídicos[348]. A sociologia
jurídica é aí a matriz explicativa do direito, indicando a possibilidade de
englobar novas situações de modo a caracterizar uma completude pela
atividade dos juristas. Esta atividade é descrita como uma abstração dos
elementos específicos de conceitos jurídicos buscando-se afinidades com a
nova situação descrita; não se trata apenas de analogia, mas ir além do que a
própria norma previa. Disto conclui-se que a atividade do jurista não é
externa ao direito, mas própria do objeto, na condição de uma de suas causas,
modificando-o no tempo e no espaço. A tão almejada completude lógica dos
pandectistas dá lugar a uma completude de natureza eminentemente dialética,
a atitude anti-sistemática dos jusliberistas permitia uma inclusão maior (como
é característico de qualquer raciocínio dialético) de situações fáticas
supervenientes à normatização.
1.2. Sistema e valor
O paradigma jusliberista permitia um influxo extrajurídico que os
sistemas lógicos repudiavam confiantes de que os desdobramentos lógicos
dos conceitos atingiriam qualquer situação apresentada. O método pelo qual
os juízes aplicariam as normas ressaltava o valor hermenêutico da resolução
de conflitos a partir dos interesses históricos conflitantes, inclusa a
possibilidade, para Ehrlich, da aplicação contra e praeter legem. Sob este
novo discurso assistemático surge uma nova ordem de problemas, dos quais
alguns ainda hoje permanecem em discussão. Temos, em especial, os
chamados princípios jurídicos ainda ressoando como um legítimo
questionamento, tanto no que diz respeito à sua natureza (se é ou não norma)
quanto aos limites de sua aplicação. No mesmo período, os Estados Unidos
da América assistem à formulação de teorias jurídicas de semelhante negação
ao paradigma lógico formalista, fundadas na perspectiva na social
engeneering de Roscoe Pound[349], como o realismo de Oliver W. Holmes
(1841-1935). Ainda em contraposição à construção de sistemas há o realismo
escandinavo da Escola de Uppsala e seu fundador Axel Hägerström (1868-
1939); nela o objeto do direito se distancia do paradigma normativo para
buscar no comportamento psicológico o conjunto de ações que fundamentam
o direito. Tal abertura culminará na ampliação do próprio conceito de
“dogmática” como uma Jurisprudência teórica que “está aberta a novas
questões e que se compreende a si mesma, não tanto como inferência lógica
de premissas estáveis, mas como pensamento compreensivo e orientado a
valores”[350].
Pode-se observar que o estremecimento político e social das primeiras
décadas do século XX foi evidentemente um fator contributivo para a reação
aos ditos sistemas. Era inegável que uma atividade que se dispusesse a
discutir os fundamentos tanto externos quanto internos do ponto de vista
formal não atendiam à urgência que as relações sociais demandavam. Na
República de Weimar, por exemplo, a inflação monetária impunha uma
resposta a conflitos de natureza patrimonial nos quais tanto a expectativa de
uma exposição teórica dos sistemas externos quanto a investigação da
estrutura interna não ofereciam propostas. A amplitude conceitual dos
sistemas externos e a estreita limitação metodológica do sistema interno
kelseniano deixavam a solução prática dos problemas em um intermezzo
vazio. Os antissistemas do movimento do Direito Livre e da jurisprudência
dos interesses vinham justamente de modo a preencher este espaço, buscando
nos interesses (ainda que sob diferentes pontos de vista) a resposta ao modo
como os conflitos eram resolvidos. O método propugnado tinha por base não
a exposição ordenada das normas tampouco a verificação de sua coerência
intrínseca: estes dois quesitos já eram pressupostos, na maioria das vezes,
devido às codificações. Restava agora ao jurista esclarecer de que modo a
aplicação das normas devia ser feita. Novos problemas se impunham como a
colmatação de lacunas pela atividade judicial e, em seu limite, a criação do
direito. Por exemplo, havia a proposta de Hermann Kantorowicz sobre o
‘direito livre’ surgido das lacunas abertas dentro do corpo do ‘direito formal’,
devendo estas ser preenchidas por normas “não formalizadas”. A
jurisprudência alemã já havia apontado soluções para as lacunas como em
Philipp Heck (1858–1943), representante da jurisprudência dos interesses,
que apresentava meios interpretativos de modo a ponderar tanto a vontade
psicológica do juiz quanto a investigação puramente sociológica,
determinando uma investigação histórica dos interesses[351]: É uma
interpretação histórica – adepta aos métodos de investigação históricos – mas
não exclusivamente subjetiva: deve procurar sim os pensamentos
exteriorizados ou revelados por meio do ato legislativo, mas a sua ação
retrospectiva deve ir mais longe, até os interesses determinantes da lei, aos
interesses causais (grifo do autor).

O ‘direito livre’ de Kantorowicz, no entanto, era radical na ciência


jurídica da Europa continental (embora fosse algo familiar dos juristas da
common law), pois previa a impossibilidade da completude do sistema de
normas formais, apontando para a necessidade de recursos extrajurídicos para
a resolução de casos concretos. Tais recursos eram normas não-formais, que
permanecem num “estado de transição”, como é o caso dos “projetos de lei,
princípios políticos, usos do comércio, convicções inarticuladas e
preferenciais emocionais”[352]. Ao serem aplicadas no caso concreto estas
normas não-formais constituem a ‘criação do direito’. Kantorowicz atenta
para uma validade “muito inferior” do direito livre, mas que resulta numa
“importância prática” muito maior[353]. A ideia de “estados de transição”
representa uma potencialidade do direito que se atualiza mediante etapas.
Embora a abordagem da Escola do Direito Livre e dos anti-sistemas em geral
esteja na contra-mão de uma ontologia jurídica suas teorias parecem apontar
para um mesmo núcleo de problemas, confirmando algumas expectativas
iniciais desta tese de que diversos juristas ao apresentar suas posições
convergem para um mesmo objeto e são, portanto, o objeto material de uma
investigação sobre o conceito do direito.
Os antissistemas exerceriam influência após a Segunda Guerra
Mundial em uma nova geração de juristas. O jusnaturalismo jamais se
apagou, mantendo-se na obra de Heinrich Stoll[354]. A Common Law
exerceria influência sobre os sistema romano-germânicos reservando a tarefa
criativa do àmbito das normas positivas estendendo seu sentido por meio de
máximas e princípios gerais[355]. Depois de 1945 as correntes baseadas na
crítica aos sistemas e herdeiras da jurisprudência dos interesses tinham por
objetivo a determinação de valores (Wertungsjurisprudenz).
Diferente do jusnaturalismo, a jurisprudência dos valores não aponta
um valor absoluto ao qual o direito deve se submeter, mas a vários valores
cuja pertinência na sociedade constitui uma validação jurídica. Esta
concepção estava ligada à valorização do sistema político democrático e o
veemente repúdio aos países totalitários perdedores da Segunda Guerra
Mundial. Era uma jurisprudência direcionada à investigação dos valores que
norteiam a decisão do juiz quando a norma não lhe oferece critérios
suficientes para avaliar o caso concreto. Em nível filosófico, o problema
havia sido posto por Nicolai Hartmann[356] e já havia precursores da ideia
como Erich Kaufmann[357] e Rudolf Smend[358]. Harry Westermann firmará a
divisão ente normas e valores correspondia a divisão entre os “interesses”
(Begehrungsvostellungen), ou seja, representações de desejos, e “critérios
valorativos da lei”[359]. Haveria valorações do legislador traduzidas em
normas e, portanto, vinculantes. É o caso, por exemplo, da tutela da
propriedade, a qual Westermann afirma ser uma dedução do próprio conceito
de justiça[360]. Se os valores do legislador não transparecem nas normas, o
juiz deve buscar princípios que orientam o legislativo; se esta tarefa resulta
impraticável deve recorrer à princípios constitucionais. Os valores devem ser
buscados dentro, portanto, do próprio ordenamento. Karl Larenz acentua a
questão dos valores ao integrar o direito na exigência da justiça. Normas que
não exprimem a justiça enquanto um ideal não são, para Larenz, vinculantes.
Josef Esser avança afirmando a pertinência de valores na realidade social. O
realismo anglo-americano de Benjamin Cardozo (1870-1938) é diretamente
aplicado na explicação dos valores para Esser. Cardozo define o direito como
rules, como base decisória para os casos e principles, deduzidos das rules[361].
Esser transfere a terminologia para “normas” (Normen) e princípios jurídicos
(Grundsätze, Prinzipien, allgemeine Rechtsgedanken). Em Cardozo, quando
não há princípios (principles) suficientes é lícito ao juiz resolver os casos
segundo novos critérios, originários, por sua vez, de novos princípios. Losano
nota que esta estrutura de criação principiológica será continuada por Lon
Fuller e passada ao sociólogo Talcott Parsons, que por sua vez é a principal
influência de Niklas Luhmann[362]. Um desenvolvimento extremo da
jurisprudência dos valores virá com Reinhold Zippelius, ao considerar que na
ausência de valores intrínsecos ao ordenamento e valores extrajurídicos
oferecidos pela interpretação, caberá ao juiz decidir por convicções pessoais
de justiça e oportunidade[363].
A permanência dos códigos ao longo das transformações sociais e
políticas indicava a possibilidade de sistemas adaptáveis à essas mudanças. O
sistema móvel de Walther Wilburg propõe a fixação de valores no direito
positivo. Tal positivação deveria ser conduzida legislativamente,
considerando reformas graduais (daí a mobilidade)[364]. Helmut Coing define
um tipo de sistema que procure “reproduzir uma ordem imanente na vida
social”[365]. Os requisitos de Coing são admitidamente utópicos devendo
conter “todos os princípios que podem ser levados em consideração num
ordenamento jurídico, ou seja, um mapa completo dos critérios da justiça; 2.
Todas as situações existências (e as regras que as regem) que podem ser
levadas em consideração (...) Um semelhante sistema nunca foi realizado: ele
pressupões o pleno conhecimento do mundo moral e da natura rerum”[366].
Também enfrentando o problema dos valores e princípios jurídicos em sua
tese de habilitação Claus Wilhelm Canaris dispensa o requisito da
completude para incluir os princípios jurídicos mais gerais sem descambar
para os princípios éticos. O ponto de partida de seu sistema aberto serão os
postulados da ordem, compreendida como o postulado da justiça de tratar o
igual igualmente e o diverso na medida da diversidade, e da unidade, como
exigência de não-contradição e tendente a uma generalização que afaste a
fragmentação dos julgamentos por equidade. A preocupação em Canaris não
é, contudo, meramente descritiva. Seu sistema aberto é criado para ser
aplicado: “a tarefa do sistema jurídico (...) consiste em descrever e realizar a
coerência valorativa e a unidade interna do ordenamento jurídico”[367]. As
conclusões de Canaris são a de que o direito privado alemão é sistemático,
tendo por base a referência ao valor da justiça; sua função depende da
realização deste valor; a partir disso é possível criticar outras teorias não
respaldadas por seus requisitos de ordem e unidade.
Outras teorias, algumas criticadas por Canaris, são as propostas
baseadas na investigação argumentativa do direito, como a tópica de
Viehweg, a nouvelle retorique de Chäim Perelman[368], a lógica informal de
Stephen Toulmin[369], o nuevo derecho de Recaséns Siches[370]. Em resumo,
podemos afirmar que ao longo de seu desenvolvimento inicial e
amadurecimento até meados do século XX, a ciência do direito foi composta
por uma organização lógica de institutos almejando adequá-los a um
embasamento filosófico ou científico de fundo e, em seus estágios finais, a
uma concepção própria, que justificasse a autonomia da matéria. Passo a
passo, juristas buscavam explicitar um método ao mesmo tempo em que
realizavam, na prática, a construção de metodologias. A permanência da
lógica, enquanto discurso de pretensa credibilidade plena, tanto pela via
filosófica quanto pela via científica[371], cuja aceitação idealmente prescinde
de fatores alheios ao próprio discurso, permite vislumbrar a forma mentis[372]
dos filósofos do direito e juristas que acataram tal paradigma pelos séculos
XIX e XX[373].

1.3. A atualização e virtualização dos sistemas diante dos valores


Os sistemas jurídicos foram a principal investida do modo racional de pensar
aplicado ao direito enquanto fenômeno. A busca por dados semelhantes é o
que permite fundamentalmente a catalogação de institutos, configurando um
sistema externo, nos moldes da Escola Histórica, pandectística e
jurisprudência dos conceitos, bem como o acabamento do princípio dinâmico
em Kelsen.
A ruptura dos sistemas vem exatamente de casos fronteiriços nos quais algo
de diferente interrompe a plenitude conceitual, exigindo novas categorizações
e respostas. O diferente é o intuitivo. A percepção direta da insuficiência dos
sistemas nos casos particulares e a exigência de sua complementação. A
busca por uma catalogação eminente de conceitos foi a base dos sistemas
“externos”. A teorização por trás da tarefa, entretanto, parece ter se firmado
apenas com o neokantismo sudocidental alemão. Heinrich Rickert em sua
obra Die Grenzen der naturwissenchaftlichen Begriffbildung, expõe a
“supressão do caráter individual da realidade existente”[374] na formulação de
conceitos em ciências naturezas. Distintos, porém, da investigação das
ciências históricas que se baseia na “configuração única”[375], isto é, na
significação individualizada de acontecimentos históricos, obras de arte,
personalidades, etc. A necessidade de “referir-se a valores” que determinem a
relevância de dados para sua conceptualização foi a porta de entrada para o
problema dos valores nas ciência históricas A referência aos valores não
poderia, assinala Rickert, restringir-se ao historiador mas deve ser
reconhecida faticamente em uma comunidade constituída justamente pela
vigência destes valores. Esta “comunidade cultural” pode ser estudada
cientificamente com a descrição dos valores que aderem especificamente e
singularmente em sua história. Isso todavia não exclui a conceptualização
generalizante de algumas ciências como, diz expressamente Rickert, a ciência
jurídica[376]. A aplicação destas ideias a metodologia jurídica inaugurou o
“culturalismo jurídico”. Emil Lask descreveu o direito como um “ramo das
ciências empíricas da cultura”, mantendo a proeminência dos valores como
fator relevantes e distintivo dos acontecimentos. Lask aponta uma dualidade
intrínseca dos resultados a que essa ciência empírica da cultura pode chegar:
se o direito for tomado como “facto cultural real” têm-se uma “teoria social
do direito”, compreendida como “ciência da cultura” no sentido de Rickert;
se considerado um “complexo de significações” abstraído dos
acontecimentos têm-se uma “jurisprudência dogmática”[377]. A síntese dos
resultados e métodos é “organizar sistematicamente o conteúdo de
pensamento das normas que são reconhecidas como “Direito” com base num
juízo de “teoria social”[378]. Lask percebe a duplicidade recorrente do direito
enquanto objeto: orientado ao horizonte de significados únicos não pode
constituir um sistema, orientado ao sistema tem de suprimir as configurações
únicas dos acontecimentos, suprimindo a referência aos valores[379].
Os valores “entram” na descrição direito como sucedâneo imediato da
capacidade resolutiva das subsunções, assim como a sistematização se
originara na estandartização de situações semelhantes possibilitando o caráter
abstrativo das normas, institutos e códigos. A relação entre ambos não os
anula, porém. O caráter antinômico mantém a dualidade dinâmica de sistema
e valor. A proposta básica do pensamento sistemático, isto é, sua completude
diante dos fatos e sua coerência, precisam ser conscientemente suspensas
para dar lugar aos valores. Ocorre uma atualização dos valores e uma
virtualização dos sistemas. O inverso também se verifica: a reunião de
respostas sob mesmos valores torna-os semelhantes e passíveis de uma
catalogação. São os principles de Cardozo, os valores positivados de Wilburg
e os princípios gerais de Canaris. Por este motivo a expectativa de uma
completude de valores no ordenamento jurídico é reconhecida por Helmut
Coing como ilusória. Sistema e valor revelam-se antinomias, operando
dialeticamente no discurso descritivo do direito.

2. Conclusão – Problemas da antinomia (virtualização e atualização)


entre sistemas e valores
O oitavo campo representa a tensão geradora de problemas ao descrever o
direito a partir de dois aspectos próprios de sua natureza: sua capacidade de
sistematização, e sua adequação necessariamente valorativa.
A tensão pode ser formulada como: a) A atualização dos sistemas com a
conceptualização seja de valores ínsitos no ordenamento jurídico, seja de
valores extrínsecos.
b) A virtualização dos sistemas com a insuficiência da subsunção para casos
particulares, demandando a adequação valorativa.
Inversamente: c) A atualização dos valores, em casos de insuficiência da
subsunção a partir os sistemas.
d) A virtualização dos valores, seja com a aplicação suficiente da subsunção,
seja com a conceptualização de valores no ordenamento jurídico.

Figura 9: Aplicação do oitavo campo substitui as oposições das atualizações racionais-


intuitivas pela oposição das atualizações de sistema e valor.

Capítulo IX – Nono campo


1. Campo das oposições da intuição
O campo anterior permitiu uma introdução ao modo como
substituímos a “intuição” na decadialética de Mario Ferreira pelos “valores”
do direito. Iremos aprofundar a noção do próprio Mario a respeito do tema da
intuição.
Em Filosofia e Cosmovisão, a intuição é tratada como o par
antinômico da razão. Significa dizer que razão e intuição operam
contemporaneamente, atualizando-se e virtualizando-se: Quando predomina a
intuição na consciência, passam a identidade, as tendências sintéticas da razão, ao
subconsciente, sem que deixem de exercer sua ação sobre a ação intuitiva, pois, partindo do
nosso princípio da contemporaneidade, não há conhecimento do singular sem o geral, e
vice-versa. A intuição de um objeto pelo espírito, embora este nele intua, realiza uma

classificação, que já é função da parte intelectiva[380].

O conhecimento do singular é comparado a algo que já é conhecido,


em operação racional, mas não dispensa a intuição para “corroborar ou opor-
se”. Mario utiliza o termo coordenadas intuitivas e racionais, com
predominância alternada dos vetores, resultando ora em consciência
intelectual (racional) ora consciência intuitiva. Esta dinamicidade de razão e
intuição é tratada como uma função eminentemente dialética da consciência.
Em Noologia Geral, obra dedicada ao estudo do espírito humano
ponderando seu teor materialista e metafísico, Mario introduz uma breve
explicação a respeito das fases da intuição. Há uma primeira fase denominada
intuição primária ou reflexa[381], apontada como resultado somático do
sistema nervoso. A intuição secundária[382] é afetada já pelos sentidos, e
origina as fases seguintes. A intuição terciária[383] resulta atos de
sensibilidade analítico-sintética, com assimilação de esquemas (no sentido da
psicologia de Piaget). A intuição quaternária é chamada intelectual, com a
distinção do semelhante e diferente, a qual estrutura a razão e seus resultados
classificatórios. Apenas esta última, a intuição quaternária[384], parece servir
ao método decadialético uma vez que apenas ela está em relação antinômica
com a razão.

1.1. Intuição como valor


Uma possível correlação entre a intuição e os valores é sugerida pelo
próprio Mario ao desenvolver o tema da oposição entre razão e oposição. As
atividades do espírito enquanto intelectualidade são de identificação (operada
racionalmente) e de diferenciação (operada predominantemente de forma
intuitiva). Embora separadas, ambas se “concrecionam” no ato de conhecer,
levando à definição de conhecimento como a síntese de identificação e
diferenciação. Em lógica formal, as definições são uma identificação
particularizada pela diferença específica, muito embora com uma perda da
unicidade ôntica[385]. A captação ôntica só é possível pela afetividade[386]:
Racionalmente, este homem é um homem, e podemos descrevê-lo. A
intelectualidade descreve. Mas a intuição intelectual, como está enrizada na
intelecção sensível, e como esta é também a raiz da intuição páthica, ambas
têm, na afetividade, um ponto de identificação mais próximo que o da razão.
A razão descreve, mas a afetividade vive a singularidade. Hegel mostrava
esta diferença tão importante quando dizia: ‘... A especulação exige, em sua
mais alta síntese do consciente e do inconsciente, o aniquilamento da própria
consciência; pois a razão mergulha exageradamente sua reflexão na
identidade absoluta, o seu saber e inclusive ela mesma em seu próprio
abismo. E, nessa noite da simples reflexão e da razão (Verstand) raciocinante,
que é o meio dia da vida, ambas podem encontrar-se’ (sem cit. do autor).
Os valores não intuídos, segundo Mario, por uma intuição não
sensível e direta[387]. O valor estético, introduzido na filosofia por Alexander
Baumgarten na questão sobre a essência do belo, assim como os valores
éticos, introduzidos por Nicolai Hartmann e Max Scheler, não são entes, pois
não são, mas apenas valem.
Em Hartmann, o conhecimento dos valores pode ser tanto intuitivo
quanto racional. Racionalmente, é compreendido como conceitos e juízos
encadeados segundo regras; as intuições se dividem em sensível, intelectual,
emocional, estigmática e conspectiva[388].
Uma definição simples de valor pode ser encontrada em Bernard
Lonergan ao afirma-los uma “noção transcendental”, que se tem em vista
“nas questões submetidas à deliberação”. É pergunta sobre algo ser
verdadeiramente bom ou bom apenas em aparência. Nos juízos de valor três
componentes se unem: o (1) conhecimento da realidade, (2) as respostas
intencionais aos valores e o (3) impulso inicial rumo à autotranscendência
moral constituída pelo próprio juízo de valor. A autotranscendência é a
conquista da intencionalidade consciente: quando a atenção se volta para os
dados do sentido e da consciência, gerando um mundo hipotético mediado
pelo significado e, finalmente, quando a reflexão e o juízo alcançam o
entendimento que “de fato é assim”, que “não depende de nós e de nosso
pensamento”[389]. Esta estrutura esboçada por Lonergan pressupõe o
conhecimento da vida humana, das possibilidades do homem e das
consequências das ações deliberadas no juízo[390]. Juízos de valor podem ser
diagnosticados pelas falhas nessa estrutura. Faltando o conhecimento da
realidade o juízo é conduzido à “idealismos morais”, propostas fascinantes
que não funcionam e podem fazer mais mal do que bem. As respostas
intencionais são o momento seguinte ao conhecimento moral, isto é, seu
cultivo, esclarecimento, fortalecimento, refinamento, crítica e familiaridade,
levando a uma descoberta existencial. Com essa descoberta, emerge o
impulso rumo à autotranscendência, os significados do valor e a
responsabilidade pessoal. Quando repetidos satisfatoriamente os juízos
conduzem à experiência da “própria fragilidade ou da própria iniquidade”[391],
levantando a questão mais fundamental da escatologia. Lonergan não ignora
a exuberância de contextos que abarcam diferentes valores: o
desenvolvimento humano vital, social, cultural, pessoal e religioso abrem um
horizonte valorativo passível e organização e consolidação, mas que não
podem ser arrematados num sistema fechado, impedindo desenvolvimentos
ainda mais novos. Justamente nessa consideração sobre uma plêiade de
valores, surge a questão da impossibilidade valorativa do direito.
O problema pode ser formulado brevemente com a consideração de
horizontes historicamente mutáveis, cujo reflexo incondicional será
conhecimentos historicamente diversos e conflitantes. A possiblidade da
filosofia e de uma filosofia do direito são ameaçadas. A negação da razão
humana capaz do conhecimento da realidade, das possibilidades humanas e
das consequências das ações sociais diante da variedade de valores
conflitantes historicamente, sem que se possa provar a superioridade de
nenhum deles torna-se o núcleo duro das discussões sobre valores ao longo
do século XX. As ciências sociais parecem ter dado maior atenção ao caso,
transferindo a dúvida a posteriori para as ciências jurídicas. Max Weber, que
se considerava discípulo da escola histórica[392], percebeu que a busca por
critérios objetivos preservava a ideia de um direito natural, consistente no
caráter étnico formado por mentalidades singulares dos povos. Apesar disso,
a ciência social podia reivindicar uma validade incondicionada, assim como
as ciências naturais. Leo Strauss descreve a contradição na busca por uma
validade objetiva e universal das proposições científicas que, contudo, são
dirigidas pelo cientista apenas a fenômenos que o interessam, terminando por
imiscuir seus valores[393]: Consequentemente, não faz nenhum sentido falar
de uma ‘estrutura natural de referência’ nem alimentar a expectativa de
formular um sistema definitivo de conceitos básicos: todas as estruturas de
referência são efêremeras (...) só é trans-histórica a validade dessas
descobertas; mas a importância, a significação de quaisquer descobertas
depende de ideias valorativas e, portanto, de princípios historicamente
mutáveis.

A radical distinção entre fatos e valores conduziria a necessidade da


ciência social voltar-se às questões de fato. Impossível afastar o valor
enquanto dado do conhecimento humano e de suas relações sociais, era
necessário abstraí-lo sob a forma de “referência a valores”, legitimando a
investigação científica de suas causas[394]. Weber rejeitaria a tradição de
perquirir fenômenos sociais com base no “senso comum”, proveniente da
ruptura do pensamento moderno no século XVII. A modernidade havia
vencido a filosofia clássica com os resultados proveitosos da nova física de
Newton, e a partir daí as ciências naturais passaram a ser “ciência”
diferenciadas do corpo misto que antes fazia parte, isto é, as “filosofias”. O
conhecimento natural passou a ser encarado como modelo para o
conhecimento que o homem tem do mundo natural, e os resultados daí
advindos podem ser trilhados linearmente até descambar na teoria dos
sistemas do século XX.
A sociologia de Weber teria impacto na ciência jurídica alemã, mas de
modo especialmente “miraculoso”, como anota Allan Bloom, teria influência
nos norteamericanos. A explicação para a colonização dos “valores” no
pensamento acadêmico dos Estados Unidos da América vale a pensa ser
mencionada. O liberalismo embora florescesse economicamente e
ideologicamente em solo americanos, não possuía a contrapartida filosófica
ideal do continente que abrigara Locke e Smith. Bloom anota que Weber
aparece como “tudo o que puderam pegar”[395]; era preciso “inventar uma
religião só para proteger o capitalismo, ao passo que os primeiros filósofos a
ele associados pensavam ser imperioso enfraquecer a religião para
estabelece-lo”[396]. Calvino seria uma personalidade suficientemente
carismática para estabelecer valores, mantendo-se suspensa a consideração
científica sobre revelação e a ação divina. A investigação sobre o substrato
donde emana o carisma seria o campo fértil dos estudos sobre religião de
Weber: não sem certa ironia, nota Bloom que o ateísmo dogmático culmina
na conclusão paradoxal de que só a religião conta. O termo “carisma” faria
sucesso nos EUA, distanciando-se do significado cristão de dom da graça
divina para atribuir-se facilmente tanto a candidatos populistas quanto a
líderes de gangues urbanas (e não se pode deixar de notar a popularidade do
termo também no Brasil). O carisma podia inclusive ser perigosamente
atribuído a Hitler antes de seu regime revelar a verdadeira face, causando
mais do que apenas constrangimento aos acadêmicos que optassem pela
análise weberiana de sua ascensão ao poder. A grande confusão notada por
Bloom estava na recepção do conceito de “valor” pelos norteamericanos de
modo distinto dos europeus. A criação de valores tinha por base
acontecimentos eminentemente religiosos com consequência políticas e
sociais. O menosprezo das universidades americanas pelo religioso era
incompatível com os pensadores alemães exilados[397]: Simplesmente, os
cientistas sociais [americanos] não percebiam que seus novos instrumentos se
baseavam num pensamento que não aceita dicotomias ortodoxas, que os
pensadores europeus não estavam somente procurando por algo semelhante a
protagonistas religiosos no cenário político (...).
Aquilo que antes era terreno das religiões podia ser “esterilizado” para
o conhecimento científico-acadêmico sob uma forma que admitisse
adaptações pessoais sem abrir mão do aspecto transcendente. Bloom nota que
o significado dos valores poderia manter o vínculo com a religião se esta
fosse reduzida a um outro nome: o “sagrado”[398]: O sagrado – como
fenômeno central do eu, irreconhecível para a consciência científica e calcado
aos pés por transeuntes ignorantes que perderam o instinto religioso – foi
levado a sério por pensadores alemães desde o começo da teoria dos valores,
pois sabiam o que efetivamente significa “valor”. Foi necessário atenuar
todas as convicções e apagar todas as distinções para ensinar que o sagrado
não é perigoso, depois que ele veio para ficar.

Nos EUA (e a análise parece ampliar-se para o Brasil[399]) os valores


nada tem a ver com religião ou fé, podendo ser reduzidos a opções
intercambiáveis e bastante pessoais de “estilos de vida”, assim como
diferentes valores estéticos se aplicam a “estilos de arte”[400]. A entrada dos
valores no direito parece significar uma opção pela sociologia weberiana ao
reduzi-los à neutralidade abstrata de “referência à valores”, afastados de seu
aporte religioso comum para adaptar-se a um personalismo, originando enfim
concepções de um subjetivismo ingênuo[401].

1.2. O problema dos valores no direito


Já reconstruímos o ambiente no qual a questão dos valores aparece
como um irrompimento ao paradigma lógico dos sistemas ao tratar a questão
no oitavo campo. Alguns juristas foram além da contraposição sistemática-
axiológica e elevaram o próprio conceito de direito a uma orientação
valorativa.
Gustava Radbruch, na esteira de Stammler, encara o direito de três
maneiras, todas elas relacionadas ao problema dos valores. A primeira, é o
direito como fato cultural que refere (wertbeziehend) as realidades jurídicas
como valores, explicitando uma definição do conceito de direito como “o
conjunto de dados da experiência que têm o ‘sentido’ de pretenderem realizar
a ideia de direito (grifo do autor) ”[402], esclarecendo sem seguida ser esta
referência a valores o prospecto da ciência jurídica. A ideia do direito seria
uma “escala de valores para aferir realidades jurídicas” e a tarefa de uma
filosofia do direito seria não mais a referência a valores, mas “atitude
valorativa” (bewertend). Uma terceira, e talvez obscura forma de encarar o
direito, seria considera-lo “não essencial” (wesenlos), numa atitude
superadora dos valores (wertüberwindend), dando origem a uma filosofia
religiosa do direito[403].
O direito se conformaria a uma ideia pressuposta, valores seriam
escalonados por esta ideia e enquanto a filosofia estudaria a escala (ao final
revelando a justiça como ideal do direito[404]), a ciência estudaria a referência
aos valores escalonados. Assim como Weber teve papel significativo nos
EUA, a teoria de Radbruch encontraria similares estabelecidos nas Supremas
Cortes[405]. Nos países de língua germânica, engendrar-se-ia a “Jurisprudência
de valoração” para lidar com problemas nos quais os valores se encaixam. É
o caso, por exemplo, dos conceitos indeterminados na legislação ou no caso
de colisões normativas[406]. Nesses casos, a quais valores –ou a que tipo de
valores – a ciência jurídica se refere?
Uma limitação inicial defendida por Larenz está acepção de valores
como atos pessoais não passíveis de uma fundamentação racional. Fosse
assim, a valoração do legislador seria substituída pela valoração do juiz. A
necessidade de fundamentação criará problemas metodológicos ainda
maiores se levado em conta o que foi dito sobre a premissa weberiana de não
haver justificação para os valores na ordem do ser, mas apenas sua
referência[407]. Outra limitação seria de natureza lógica, adstringindo o
julgamento a critérios de coerência[408].
De modo geral, é possível observar, com Larenz, que a maioria dos
juristas pende sua concepção de valores na metodologia do direito para uma
concepção ora (1) intrasistemática respaldando-se em enunciados normativos
superiores, ora em (2) conceitos valorativos superiores, como a “justiça”[409]:
A passagem a uma «Jurisprudência de valoração» só cobra, porém, o seu
pleno sentido quando conexionada na maior parte dos autores com o
reconhecimento de valores ou critérios de valoração «supralegais» ou «pré-
positivos» que subjazem às normas legais e para cuja interpretação e
complementação é legítimo lançar mão, pelo menos sob determinadas
condições. (...) A quase totalidade dos autores envolvidos na mais recente
discussão metodológica partilha a concepção de que o «Direito» tem algo que
ver com a «justiça», com a conduta socioeticamente correcta. O que ressalta a
este propósito é todavia o facto de que neste contexto apenas, ou pelo menos
primacialmente, pensam na solução justa de litígios judiciais, ou mais
rigorosamente dito, na justiça do caso concreto (grifo nosso).

Seguindo o método proposto, cabe a este campo de antinomias


estabelecer quais valores se opõe dentro do nono campo. Seguindo o
esquema da decadialética, cabe observar que, sendo os campos 6 e superiores
de natureza descritiva, não se pode aqui apontar quais valores são utilizados
prescritivamente, isto é, quais valores entram como solução prescritiva de
casos ou da criação legislativa. Fosse assim este campo teria de ser aberto a
todos princípios consagrados pelo direito privado como autonomia da
vontade, boa-fé, sinalagma dos contratos, etc., bem como princípios do
direito público, como impessoalidade, legalidade, ou mesmo princípios
políticos e morais que reiteradamente intervém em decisões como igualdade,
democracia, autonomia dos povos, etc. Pretende-se aqui, reunir a vasta gama
de princípios articulando-os no modo geral como podem ser descritos. Trata-
se não de valores do direito, mas de seus critérios de valor.
A passagem de Larenz apontou para dois critérios de valoração. O
primeiro voltado ao próprio ordenamento, na busca pelo reconhecimento de
uma padronização intrasistemática que corra em auxílio tanto do legislador
quanto do juiz. Esta padronização, conforme se irá expor, traduz o critério de
valor jurídico intuído pelo conhecimento com base em semelhanças.
Defenderemos que este valor é a segurança jurídica.
Larenz prossegue apontando um outro critério de valor, o qual se
desliga da padronização indo para seu oposto, isto é, a diferenciação
observada no caso concreto. Em que pese Larenz chame de “justiça”,
defenderemos que se trata de um critério mais específico: a epiquéia.
1.3. Segurança Jurídica como Valor
A segurança jurídica pode ser rastreada em seus elementos essenciais
ao debate sobre o ius certum e os conceitos derivados da pax, securitas e
libertas[410]. No século XVI, há o debate sobre a certitudo jurisprudentias[411],
despertada pela necessidade de imprimir racionalidade ao conhecimento
jurídico. O século XVIII e XIX, no alvorecer dos sistemas e o prenúncio das
codificações, a segurança de leis escritas e claras é apresentado como
impressão significativa da ordem a ser estabelecida pelo direito. A
insegurança está pressuposta nos debates sobre a liberdade e propriedade nas
obras de Savigny[412], Meyer[413], von Mohl[414] e Holleufer[415], e a imediata
necessidade de segurança. A dificuldade de definição do termo é, todavia,
patente[416]. A imprecisão das definições acaba por se tornar parte do
problema, originando problemas do discurso descritivo[417] catalogáveis
enquanto oposição racional do direito. O conjunto de problemas deste campo
afeta diretamente o cidadão comum com a falta de inteligibilidade do
ordenamento jurídico (Unerkennbarkeit der Rechtsordnung): “O cidadão não
sabe exatamente qual é a regra válida. Se aquele sabe qual é esta última, não
conhece bem o que ela determina, proíbe ou permite (...). O cidadão torna-se
dominado por leis que desconhece, revelando-se o princípio de que a
ignorância das leis não escusa seu cumprimento quase um sarcasmo”[418]. Um
segundo problema surge diante da inconfiabilidade do ordenamento
(Unzuverlässigkeit der Rechtsordnung). O cidadão aqui é levado a concluir a
inconstância e instabilidade do direito. A insegurança jurídica, por não ser
alcançada e sequer corretamente definida, reduz a calculabilidade do
ordenamento jurídico (Unberechenbarkei der Rechtsordnung), limitando a
previsibilidade de decisões futuras. O problema da segurança jurídica é,
portanto, o problema do desconhecimento intuitivo possível do direito.
Humberto Ávila extrai dos problemas a conclusão sobre o aspecto material da
segurança jurídica: ela denota um estado de cognoscibilidade (diferente de
determinação) no âmbito da interpretação, como a capacidade de
compreensão das alternativas de sentido em número reduzido e não muito
diverso; de confiabilidade (diferente de imutabilidade) na constância das
normas, e de calculabilidade (diferente de previsibilidade) quanto a
antecipação igualmente em número reduzido e não muito diverso dos
conteúdos normativos, tanto no que diz respeito à previsão de consequências
jurídicas, quanto modificabilidade de normas futuras[419]. O meio apontado
para atingir estes parâmetros de segurança jurídica será a “controlabilidade
jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas
gerais e invidividuais, como instrumento garantidor do respeito à sua
capacidade de – sem engano, frustração, surpresa, arbitrariedade – plasmar
digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico
juridicamente informado do seu futuro”[420]. A exigência do caráter
argumentativo remonta ao que foi posto sobre o enquadramento de valores no
direito. Por trás dos valores jurídicos permanece uma exigência retórica de
racionalidade e coerência. Racionalidade pelo adição de regras ao debate
jurídico, como a necessidade de fundamentação decisional e petitória, e
universalização de sentidos. Coerência na possibilidade de recondução de
uma decisão a um conjunto consistente de princípios e regras (em
MacCormick, especialmente princípios cultivados pelos direitos
fundamentais[421]).
A complexidade de situações é um indício do caráter intuitivo dos
problemas. A existência de um número maior de possibilidades de ação que
aquelas que podem ser efetivamente adotadas é tratado por Luhmann como
inerente ao mundo social. A contingência seria o desarranjo entre
experiências e expectativas. Tanto na previsibilidade de ações possíveis,
quanto nas expectativas há uma ordem racional de elementos semelhantes
rompida por um aspecto do diferente. A intuição capta exatamente este
rompimento com a quebra de expectativas e a frustração das possibilidades
de ação abandonadas. Se cabe ao direito, segundo Luhmann[422], ser o
instrumento redutor da complexidade e contingência por meio da garantia de
expectativas comuns a todos os cidadãos, será pela segurança jurídica que
estas expectativas serão intuídas.
A ideia de segurança jurídica já fora notada como inerente ao direito
em Radbruch[423] e Fuller[424]. A inovação neste campo é enquadrá-la em seu
locus correto dentro de uma filosofia jurídica, seguindo o método da
decadialética.
Haveria inicialmente um valor intrínseco, ou valor funcional na
segurança jurídica ao proporcionar as condições listadas por Ávila:
cognoscibilidade, calculabilidade e confiabilidade. Ela seria um bem
desejável em si mesmo; não tanto um critério de valores a posteriori para a
criação, modificação e aplicação do direito, mas um valor em si mesmo. Um
sistema jurídico apto a atender o pressuposto de Luhmann quanto garantia de
expectativas, conferindo razoável grau de estabilidade ao ordenamento.
Uma segunda perspectiva seria a segurança jurídica como valor
instrumental, ou valor-meio[425], intermediando direitos e outros valores,
como a determinação da igualdade, liberdade, asseguramento probatório,
estabilidade e continuidade[426]. Os riscos inerentes desta visão são evidentes:
além de valores consagrados no ordenamento, qualquer outro valor poderia
ser justificado com base nos critérios meramente formais. Por isso Ávila
chama atenção para a vinculatividade do valor instrumental da segurança
jurídica para outros valores: a liberdade, pois a cognoscibilidade permite o
conhecimento das condições presentes e planejamento da ações futuras; a
igualdade por permitir a aplicação de normas gerais e abstratas de modo
uniforme e, portanto, isonômico; e a dignidade por que quanto mais
acessíveis forem as leis, e mais justificadamente forem aplicadas, mais se está
respeitando a capacidade de autonomia do indivíduo[427].
No âmbito da liberdade o valor instrumental da segurança jurídica
pode ser inversamente considerado quanto ao papel do Estado, privilegiando
leis que afastem seu poder coercitivo da esfera privada[428]. No mesmo
sentido, mas com consequências opostas, a concepção instrumental de
segurança jurídica aparece como materialmente vaga, incluindo aí o risco
político de seu uso arbitrário ou ideológico pelo próprio Estado[429]. Pode-se
chegar numa mediação entre os dois polos, como aponta Ávila, “que sem a
segurança jurídica não pode haver liberdade, mas com segurança jurídica não
há necessariamente liberdade”[430]. Para efetivar o desígnio da liberdade é
necessário a introdução de elementos dinâmicos e funcionais, como
“exigência de continuidade e a proibição da arbitrariedade”[431], que serão
pormenorizados como aspectos materiais do comportamento humano e os
efeitos relacionados ao estado de coisas da segurança jurídica. Inclui-se aí o
estudo da publicação de leis, intimação de atos administrativos e decisões,
proteção ao direito adquirido, regras de transição, efeitos diferidos e
prospectivos no caso de mudanças administrativas ou judiciais. Os três
poderes republicanos possuem uma tarefa finalística neste empenho, bem
como há a contrapartida do indivíduo em “forçar” sua realização.
Ainda assim, mesmo feito o “preenchimento” da segurança jurídica
com conteúdo finalísticos, o controle da racionalidade e coerência do
discurso, e a atribuição legítima aos poderes do Estado e do indivíduo, ela
entra em choque (ou oposição) com o critério da justiça.
Já foi dito que, ao invés de oposição e choque, pode-se ver uma relação de
complentariedade e união, a depender da conceituação dos dois critérios[432].
A justiça pode englobar a segurança jurídica se considerarmos aquela como
portadora de iguais desideratos desta: igualdade, liberdade e dignidade[433].
Seria, portanto, um conflito aparente.
No entanto, este conflito deixa de ser aparente se, ao invés de considerados o
caráter finalístico dos critérios, aponta-se para o âmbito de aplicação
considerado extensivamente: (...) pode-se conceber um conflito externo do princípio
da segurança jurídica com o princípio da justiça se as exigências decorrentes do primeiro,
além de absolutas, forem vinculadas ao ordenamento em feral, para a maioria dos casos e
para a maioria das pessoas (...), e os deveres do segundo forem atrelados a manifestações
normativas pontuais, para determinado caso e para determinada pessoa (justiça como

equidade) (grifo nosso)[434].

A definição de segurança jurídica de Humberto Ávila apoiada na


exigência de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade, antes de
estabelecer os componentes valorativos aí imbricados pelo autor, é admitida
como em conflito principiológico com a justiça individual, a equidade na
aplicação das normas gerais. Este conflito é desfeito pelo autor, como
salientamos, com a introdução de elementos valorativos associados ao
aspecto moral da justiça, terminando por concluir com uma conexão entre os
dois princípios, ou no máximo uma polaridade, mas não uma antinomia[435].
O método estabelecido nesta tese impede que concordemos com Ávila.
Segurança jurídica e equidade encontram-se em relação antinômica enquanto
critérios de valor: a introdução de aspectos valorativos na equidade é um
aspecto prescritivo que pode vir a ser utilizado no elenco de problemas do
segundo campo (atualidade e virtualidade dos valores morais na resolução
dos casos concretos) ou terceiro campo (sentidos reais e não reais
encontrados como fontes valorativas na virtualidade do discurso prescritivo).
Assim, só é critério de valor o que descreve, sem prescrever, o direito – em
obediência, inclusive, aos postulados kantianos da separação entre ser e
dever-ser, a às determinações de método expostas pela “referência à valores”
de Max Weber.
Além de valor em si (funcional), a segurança jurídica serve de critério
para todos os valores que conduzem à cognoscibilidade, calculabilidade e
confiabilidade do direito, sob o direito, no direito, a partir do direito. O
aspecto do conhecimento intuitivo, seguindo o método de Mário Ferreira, fica
claro pela necessidade de um estabelecimento prévio de condições cognitivas
passadas, presentes e futuras. Segurança jurídica estaria em oposição não à
justiça, mas à equidade. A equidade pode ser vista, como se procurará
demonstrar, como a suspensão (ou virtualização) das condições de segurança
jurídica e os valores que se remetem a ela para a aplicação excepcional, isto
é, a aplicação intuitiva do direito na circunstância desconhecida. A
diferenciação entre justiça e equidade (epiquéia) demonstrará que, enquanto
critério de valor, segurança jurídica e equidade dão conta de estabelecer um
horizonte valorativo para qualquer descrição intuitiva do discurso prescritivo.
1.4. Equidade
Em 1614, Cristoph Besold escreveu: “A razão política, que agora
chamam de Estado (outrora equidade e epiquéia) infringe leis, (tenham elas
sido) promulgadas por escrito ou oralmente; (entretanto, ela o faz) quanto à
letra, mas não quanto ao sentido, nem quanto à finalidade”[436]. Klaus
Günther nota com perplexidade a equiparação de sentidos entre “razão de
Estado” e “equidade”. Teria sido a possibilidade de suspensão de leis no caso
concreta a mesma suspensão delas em perante o príncipe (princeps legibus
solutus), conduzindo a submissão do direito ao Estado. Esta equiparação,
segundo Günther, é o início da positivação (da alteração aleatória,
desprendida do direito natural) do Direito[437]. A proximidade do conceito de
equidade da situação em concreto e a insuficiência da generalidade semântica
para resolução do caso serve de justificativa para atribuir estes casos à
competência do Estado, contrariamente às leis[438]. Este modo de encarar o
direito, descrevendo-o com base na intuição de casos desconhecidos e até
certo ponto imprevisíveis ao legislador é uma preocupação que remonta ao
conceito grego originário da “equidade”, a epiquéia (ἐπιείκεια).
A “justiça” em seu sentido estrito[439] ou em sentido legal[440] é, para
Aristóteles, a “igualdade”[441], compreendida como o “justo meio termo”[442]
entre o excesso e a carência. Esta definição de justiça serviria para a divisão
proporcional dos bens[443] e para a aplicação da lei. Seria um princípio social
de organização da polis[444] e, ao mesmo tempo, uma virtude moral[445]. A
justiça, neste sentido mais estrito, será desdobrada em dois aspectos, aos
quais basta aqui uma menção: a justiça distributiva, operando sobre
condições de proporcionalidade segundo a necessidade de cada um[446]; e a
justiça comutativa, que põe a parte o merecimento das pessoas envolvidas e
trabalha com a proporcionalidade entre bens comensuráveis[447]. A equidade
surge com alguma peculiaridade em relação ao sistema de virtudes no qual a
justiça se enquadra: ela é tratada nem como parte, nem como algo
diferente[448], e por vezes como superior à justiça[449], de modo que esta se
refere a situações previamente definida como justas, ao passo que a equidade
é uma “atitude universalmente justa”[450] e indefinida. As leis gerais e
abstratas podem, por sua própria natureza, não serem justas nas
circunstâncias em concreto, uma vez que servem para os casos mais
frequentes. A equidade surge como corretivo do justo legal, imprevisto ao
legislador: Sobre algumas coisas não é possível fazer uma proposição geral o qual deve
ser correta. Nestes casos, então, nos quais é necessário falar geralmente, mas em que não é
possível fazê-lo corretamente, a lei leva em consideração os casos usuais, embora não
ignorando a possibilidade de erro. E não é errado fazer deste modo: pois a falha não está na
lei nem no legislador, mas na natureza da coisa, já que a matéria das coisas concernentes à
ordem prática é assim desde o princípio (...) Sobre algumas coisas é impossível formular
uma lei, assim como um decreto particular é necessário. Pois quando a coisa é indefinida, a
regra também é indefinida, como régua de chumbo usada nas construções de Lesbos: a
régua se adapta aos contornos da pedra, e não é rígida. Assim também um decreto se adapta

aos fatos particulares[451].

A “régua de Lesbos” entra como critério valorativo ligado a


propensão eminentemente prática do direito. Conforme argumentamos
seguindo a definição de valor de Bernard Lonergan, a intuição de um critério
valorativo também depende da autotranscendência do sujeito, o que em
Aristóteles aparece sob a habitualidade das virtudes. Aí também os discursos
descritivos envolvendo o aspecto intuitvo-valorativo da equidade
rapidamente descambarem para considerações sobre seu agente. Santo
Agostinho aprofunda a explicação aristotélica: Os legisladores, examinando
atentamente o que sucede com mais frequência, procuram legislar levando
isto em conta. Mas, em alguns casos, observar rigidamente a lei vai contra o
bem comum que a lei visa. (...), portanto, deve-se dizer que a epiquéia não se
afasta simplesmente do que é justo em si mesmo, mas do justo que é
determinado pela lei[452].

E ao tratar sobre a relação entre equidade (epiquéia) e justiça: Fica


pois claro que a epiquéia é parte subjetiva da justiça. E ela pode ser chamada
justiça por prioridade, antes mesmo da justiça legal, pois a justiça legal se
dirige de acordo com a epiquéia. Desta forma ela se comporta como uma
espécie de regra superior dos atos humanos[453].

Klaus Günther remete à psicologia moral de Kohlberg, indicando o


estágio 6 (estágio pós convencional, de rompimento de estatutos morais
abstratos para sua aplicação concreta[454]) como correlato da equidade, no
qual o sujeito aprende construir normas adequadas e universalmente
fundamentáveis a partir das diferenças em cada situação[455]. Ainda Gadamer
apontava a phrónesis judiciária, a serviço da equidade, como indicativo da
tese sobre a hermenêutica jurídica[456]. Estranhamente, a equidade grega não
encontra total consonância com a equidade hoje[457]. A proximidade do
conceito com a razão de Estado acompanha, afirma Günther, seu afastamento
teológico e moral, um “entendimento sem hábito ético”, ou, do ponto de vista
aristotélico, uma pura prudência racional (deinótes)[458], possíveis de
aplicarem a quaisquer objetivos, em especial da manutenção do Estado como
notara Carl Schmitt.

Por isso, é fácil de se compreender que se transfira a decisão a


respeito de sinais característicos situacionais, que sejam relevantes
para haver sucesso, não a um discurso de aplicação, mas a “peritos”
que sejam competentes no assunto – por exemplo, a uma
administração pública. Se não conseguimos em hipótese alguma
examinar todos os sinais característicos de uma situação e
constantemente sofremos de falta de tempo, necessitamos de
determinadas instituições especializadas que possam assumir a
tarefa da equidade[459].

Não por acaso o Código de Processo Civil brasileiro de 2015 remete,


em seu art. 375, a tarefa auxiliar de regras de “experiência comum” do que
“ordinariamente acontece” e “experiência técnica”, ressalvado o exame
pericial. A equidade se faz presente enquanto critério de valor, remetendo,
quando necessário, a competência técnica. A peculiaridade extremada de um
caso pode exigir um outro agente, diferente do juiz, ou mesmo dos poderes
instituídos para a resolução satisfatória do direito. Em determinados tipos de
conflitos pode o Estado recorrer ao conhecimento técnico para auxílio do
julgamento ou da criação legislativa; mas pode ainda reconhecer a alternativa
de sua jurisdição comum por meio da arbitragem e métodos alternativos de
resolução de controvérsias.
Neste âmbito do discurso descritivo iniciamos a exposição da
equidade apontando sua ligação com a razão de Estado e podemos concluir
indicando, pela mesma via, sua ligação com a superação do Estado. Sobre a
relação entre política e equidade em Aristóteles, assinala Michel Villey: Com
mais razão ainda, se o legislador porventura extrapolou claramente os limites
da ciência do justo natural, se não agiu em função do bem comum da pólis (e,
nesse caso, não se pode mais dizer que ele seja um legislador: (...) não são
mais uma monarquia, a aristocracia, a politia, mas regimes falsos,
degenerados), então a lei deve ser infringida; ela perdeu seus fundamentos de
validade[460].
Todos os problemas decorrentes das situações inusitadas clamam pela
sua particularização, e o critério de valor aí utilizado pode ser descrito como a
equidade. Saindo do paradigma clássico, e adentrando no cristianismo, a
evocação de um critério de valores superposto às leis é elaborado por Santo
Agostinho ao tratar da autoridade das “leis profanas”, onde “nada de penoso é
prescrito, nada de impuro proibido; (...) que as leis zelem pelos danos
causados à vinha de outrem, não àquele que cada um inflige à sua própria
vida (...) que as mulheres públicas pululem (...) que as pessoas bebam,
vomitem, se saciem (...)[461]” feitas pelos “grandes reinos [que] não passam de
pilhagem em grande escala”[462], que, enfim, a rigor, “(...) onde não há justiça,
não há direito (...) Não se deve chamar de retos os estabelecimentos injustos
dos homens pois eles mesmo só denominam de direito o que vem da fonte da
justiça (...)”[463]. Em Santo Agostinho o critério de valor da equidade não
retira, contudo, a validade das leis, incluso seu dever de obediência: inserido
no conflito das cidades terrena e eterna, o cristão “usa” o estado profano e
suas leis[464]. Os motivos se esclarecem à luz da influência platônica: a ordem
é soberana à injustiça. Sua noção de pax permite uma organização graduada:
no topo há a paz perfeita da justiça (pax opus justitiae), porém abaixo
convém guardar tranquilidade provisória trazida pelas leis profanas[465]. Aqui
a antinomia de equidade e segurança jurídica se reveste de tons escatológicos:
a justiça verdadeira paira acima do conflito entre aplicação justa particular e
ordenada no geral, mas é o fundamento de ambas. A própria Providência
divina assim estabelece, pois tudo que acontece é permitido pela onipotência
divina e segue um curso misterioso, um sentido na história da salvação.
Completa Villey: Eis o motivo por que santo Agostinho, depois de ter negado
sua justiça, ensina firmemente o respeito às leis da cidade terra. Note-se que
esses motivos são de um novo tipo, despercebidos pelas doutrinas clássicas
do direito natural; que eles transportam, como destacaram alguns intérpretes,
para o clima do positivismo jurídico. Ordem pública, segurança, poder de
fato, respeito à história, serão os polos do pensamento jurídico moderno[466].

No diálogo sobre A Ordem, a própria origem do mal é ligada ao


problema da justiça[467]: Estou completamente de acordo que não pode haver outra
conclusão – disse a mãe [Santa Mônica, mãe de Agostinho]. – Não havendo o mal, não
havia nenhum juízo de Deus, nem pode parecer que tenha sido justo se alguma vez não
tenha atribuído a cada um dos bons e dos maus o que lhe competia.

A percepção da injustiça como meio justificativo da ordem é talvez a


ideia mais paradoxalmente benéfica enquanto conforto do ponto de vista da
eternidade e maléfica se utilizada como pretexto ideológico de submissão[468].

2. Conclusão – Problemas da oposição entre os critérios de valor de


segurança jurídica e equidade.
Conforme já aludimos, o critério de valor da equidade estará sempre
em relação antinômica com o critério de valor da segurança jurídica. A
cognoscibilidade da segurança jurídica é surpreendida pela inusitado do caso
excepcional sobre o qual recai a equidade. A confiabilidade e a
calculabilidade devem ser suspensas para originarem a aplicação
excepcionalmente diversa, justificada por valores diferentes do previsto.
Valores da segurança jurídica serão desvalores sob o critério da equidade, e
valores aplicáveis a partir da equidade serão desvalores da segurança jurídica.
a) No âmbito geral a cognoscibilidade, calculabilidade e confiabilidade
representam o conhecimento intuído, seja da autoridade-poder, seja
do sujeito, de condutas e efeitos jurídicos; no âmbito particular essas
condutas e efeitos são sopesados em razão de características
inusitadas.
b) No âmbito particular, características inusitadas são desprezadas,
intuitivamente desconhecidas, em favor da cognoscibilidade,
calculabilidade e confiabilidade futuras.
Figura 10: Aplicação do nono campo substitui as oposições da intuição
(conhecimento e desconhecimento) pela oposição entre critério de valor da segurança
jurídica e equidade.

Capítulo X – Décimo Campo

1. O variante e o invariante
Variante e invariante são formas de constância a que um objeto está
sempre submetido. Descrevemos acima, no primeiro capítulo da Parte Um, o
modo pelo qual se dá a participação do homem – seja indivíduo, ou sociedade
– no direito. O ânimo com que foi feita a relação entre a ordem substantiva da
sociedade e a ordem jurídica, ambas entrelaçadas e coordenadas, contrasta em
algo com as expectativas reais que nos permitimos acreditar. A força de
manutenção da ordem é, sem dúvida, posta em cheque quando sociedades
juridicamente alicerçadas se mostram socialmente instáveis. Mais que isso: a
premissa de que a ordem decorra de uma suposta aclimatação ou
naturalização do comportamento previsto prescritivamente com o
comportamento de fato, unindo ambos numa mesma sintonia, parece
demasiada ingênua para os dias de hoje. É preciso, agora, esmiuçar os
mecanismos pelos quais se pode falar em “ordem” a partir de experiências
existenciais evocadas pelo fenômeno jurídico e sua inserção na sociedade.
Na investigação sobre o segundo campo, ao buscar definições para os
termos “atualidade” e “virtualidade” no direito, introduzimos a questão da
possibilidade de descumprir regras juridicamente estabelecidas – válidas,
portanto. Tal questão, todavia, remanesceu sem resposta em decorrência do
objetivo do método dialético elaborado de modo a se resignar em mapear
zonas de problemas, suspendendo momentaneamente a preocupação com
suas respostas. Foi, no entanto, esclarecido que a atualização das regras
corresponde a um salto na possibilidade de vir a se realizar, o que nos
motivou a incluir tanto o processo de criação do direito quanto seu
cumprimento e efetivação.

1.1. A atualidade como sintonia da ordem


A participação esboçada como mero conceito nos leva a perplexidade
ao contrastar a expectativa de ordem na sociedade com os processos de
criação e cumprimento do direito. Este distanciamento não é matéria
inusitada no desenvolvimento filosófico e científico do direito. Kelsen admite
ter sido este seu ponto de partida rumo a uma teoria que resolvesse o
problema[469]: Um dos problemas mais difíceis da teoria do direito – mesmo
que até agora nunca tenha sido formulado claramente por falta de
fundamentação metodológica – consiste desde sempre em saber como o
sentido indubitavelmente normativo por meio do qual o ordenamento jurídico
se refere ao comportamento humano regulado por ele pode ser ligado ao fato
igualmente indubitável de que um acontecimento factual corresponde até
certo grau a esse ordenamento jurídico e constitui a única condição mediante
a qual se pode falar de um ordenamento jurídico válido como dever-ser.

O problema é colocado sob a forma da distinção irrevogável do ser e


dever-ser, um dos significados a que a atualidade pode vir a aderir, mas não
necessariamente[470]. Inicialmente é necessário estabelecer que a ordem da
sociedade não pode ser ontologicamente negada, sob o risco de negar-se a
existência da própria sociedade enquanto comunidade humana organizada.
Uma sociedade ainda que ingerida politicamente e em meio a circunstâncias
históricas de caos social devem, ainda assim, ser compreendidas como
tendentes à determinada ordem. O argumento mais plausível, mas que não
pode ser senão esboçado aqui, é o de que a busca pela ordem é um fator
inerente à história da humanidade, tal como formulado por Eric Voegelin na
sentença “a ordem da história surge da história da ordem”[471]. A humanidade
deixa, segundo o filósofo, rastros de símbolos que representam esta busca por
uma ordem: desde a revelação israelita até as mais sofisticadas interpretações
filosóficas e sociológicas do “sentido da história” há um compasso eviterno
de sociedades e civilizações buscando fundamentar sua história em
determinados significados de sua existência. Tais significados se
materializam culturalmente sob a forma de símbolos, remetendo esta busca
pelo sentido a um fator ontologicamente anterior àquela comunidade, seja ele
humano ou divino. A esta busca pela ordem, posto que nem sempre atingível
em termos concretos, pode-se associar a um aspecto da própria natureza
humana– e do próprio direito, enfim. Podemos, agora, compreender com
maior profundidade o tema da participação: o direito é participável pelo
homem (participante), pois ele almeja esta ordem[472]. O símbolo egípcio do
maat deixa esta relação exposta sob a luz de seus significados polivalentes
tanto para o periodismo cosmológico verificado na astronomia egípcia,
quanto para o reinado glorioso do Faraó, quanto para adequação da decisão
do juiz no caso particular, quanto para a correção da ação humana
individual[473]. Não muito distante está nossa própria atribuição vulgar de
significado para o termo ordem.
Em todos os casos elencados subsiste um elemento comum, o qual se
pode chamar durabilidade. Os ciclos cósmicos são o exemplo por excelência
da repetição rítmica, também o prolongamento da abundância anunciada pelo
Faraó e a certeza de justiça nas decisões judiciais, evocando nuances
primevas da segurança jurídica. Uma ordem só merece tal designação se
permanece estável por determinado período sob o efeito das mudanças
intrínsecas que nela ocorrem[474]. No paradigma dos sistemas, esta condição é
afirmada sob a premissa de uma ordem caótica exterior ao sistema que é por
ele ordenada, a fim de ser compreendida ou explicada. O meio externo é
desordenado, e o sistema ordenado.
No direito, a durabilidade da ordem está implícita no enunciado da
regra pelos elementos que descrevem o fato e a consequência jurídica
correspondente. Evidente que tal fórmula só é possível se enquadrada dentro
de uma ordem social na qual as situações são suficientemente semelhantes
entre si para que os enunciados sejam aplicáveis por um prazo razoável de
tempo a cada situação particular. A consequência, por sua vez, insere a
expectativa de atualização da regra em eventos que devem ocorrer
obedecendo a certa frequência. Leis em sentido jurídico se parecem muito
com as leis da natureza na medida em que ambas buscam um alto grau de
previsibilidade ao relacionar uma situação com o evento correspondente. Os
problemas que podem ser envolvidos nesse âmbito da discussão são aqueles
pertencentes ao segundo campo, como a natureza da relação implicada entre
situação e evento consequente (causa-efeito), seja ela uma imputação, uma
reação institucional, um comando de linguagem, dentre outros. Importa neste
momento somente verificar por meio da evidência propiciada pela
experiência jurídica que há, de fato, uma durabilidade nas situações e eventos
compartilhados pela sociedade e pelo direito a ponto de serem passíveis de
uma generalização em regras. É durável, por exemplo, o bem físico objeto de
um negócio jurídico de compra e venda, assim como os sujeitos envolvidos,
seu interesse ao longo da relação, o valor monetário de uma das prestações e
as condições de uso do objeto. Esta série de fatores duráveis, próprios da
realidade social, são o verdadeiro alicerce sob o qual é possível destacar
ontologicamente uma ordem. É possível que um desses fatores padeça de um
acontecimento inusitado, imprevisto dentro da ordem durável, como por
exemplo a deterioração do bem, ou a perda do interesse de um dos polos da
relação: isto não significa uma desordem ou um contraexemplo da
durabilidade, pois esse tipo de situação só é destacada juridicamente se for
minimamente previsível, constituindo não uma negação da ordem, mas uma
sua reafirmação[475].
Mas, mesmo afirmada esta durabilidade da ordem sob a forma de
situações e eventos repetíveis em alta frequência, ainda fica sem resposta a
indagação sobre o real espelhamento da ordem jurídica com a ordem social.
Estaríamos meramente invertendo os termos da equação ao dizer que a
durabilidade do direito provém da durabilidade da ordem social. O direito
abriria mão de qualquer função social se relegando a um papel descritivo. A
real adesão da sociedade a determinada regra é o grande problema que a
atualização das regras enfrenta: sob este aspecto, depois de demonstrada a
participação do homem e a durabilidade da ordem, pode-se chegar ao desafio
enfrentado pela normatividade.
Ao afirmarmos que há uma incessante busca pela ordem nas
comunidades humanas não prosseguimos analisando o modo pelo qual essa
ordem é estabelecida e, uma vez alcançada, como pode ser mantida. Parece
ser este um grande campo de investigação histórica e sociológica que a
filosofia jurídica pode utilizar para compreensões ainda mais amplas sobre a
natureza da ordem, mas que será apenas esboçado sob o enfoque da filosofia
clássica para o esclarecimento do conteúdo da ordem que mencionamos. O
direito é mais um processo dentre vários possíveis que concorrem na busca
humana pela ordem: o conceito de participação se desdobra, porque da
mesma forma como o direito é participado pelo homem a ordem é participada
pelo direito.
Os três elementos se articulam: na Política de Aristóteles vemos o
homem concebido individualmente como elemento da ordem na medida em
que coopera com ações individuais de alcance inicialmente limitado, como a
própria sobrevivência, o trabalho, a formação da família, a realização de
operações econômicas, etc[476]. A sociedade, surgida do amálgama destas
ações, é o salto qualitativo que permite o homem sair da situação puramente
sobrevivencial para alcançar, na polis, a “vida boa” que permite inclusive sua
atividade contemplativa da própria ordem. Torna-se o homem, enfim,
instrumento da própria ordem como almejava Platão ao indicar a saída da
decadência helênica por meio da ordenação inicial da alma do indivíduo,
tendo Sócrates por modelo[477]. A ação destes homens virtuosos se daria na
política, criando boas leis para sua polis. Voegelin nota a relação destes três
elementos[478]: O homem tem a experiência de participar através da sua
existência numa ordem do ser que não só o abrange a si mesmo, mas também
Deus, o mundo e a sociedade. Esta é a experiência que se pode tornar
articulada na criação de símbolos da ordem penetrante do ser, tal como nos
previamente indicados maat egípcio, ou o tao chinês, ou o nomos grego. O
homem experiencia, outrossim, a ansiedade pela queda possível desta ordem
do ser, com a consequência da sua aniquilação na parceria do ser e,
correspondentemente, ele experiencia uma obrigação de sintonizar a ordem
da sua existência com a ordem do ser. Finalmente, ele experimenta a queda
possível e a sintonia com a ordem do ser como dependente da sua ação, isto
é, ele experiência a ordem da sua própria existência como um problema para
a sua liberdade e responsabilidade.

A “sintonia” evocada por Voegelin nada mais é do que o mecanismo


preenchido pelos problemas do segundo campo: toda atualização de
determinada regra é precedida por uma indagação existencial que só pode ser
confirmada na experiência. Esta experiência é, para Voegelin, a experiência
da ordem na qual o homem participa. A noção de dever, integrando suas
demais possibilidades imperativas, surge como uma tensão ontologicamente
real entre a ordem e a conduta individual[479]. Seguindo a comparação entre as
leis em sentido natural e em sentido jurídico, Voegelin aponta a primeira
como verdadeira se se encontra descrita de modo a estabelecer uma
causalidade frequente entre dois dados (causa e efeito); a lei do direito é
“verdadeira” se a ordem da sociedade é descrita correspondentemente a
atualização de seu enunciado. A formulação de novas regras, i.e., a criação do
direito, é a pretensão de alcançar a ordem e é “verdadeira” na medida em que
tal pretensão se confirme. Sua conclusão parece ter sido escrita de modo a
resolver o problema do ser e dever-ser[480]: Embora a intenção da regra não
seja cognitiva, a regra quer dizer, não obstante, uma verdade. Esse é o ponto
talvez mais difícil de compreender no estado contemporâneo de
desintegração filosófica. A normatividade não é uma qualidade que se
vincule à forma gramatical das fórmulas imperativas ou normativas. (...) A
fim de exibir seu significado completo nós devemos traduzir sempre a
linguagem da normatividade para o mais completo ‘É verdade que você deve
fazer isto ou aquilo’. A verdade da proposição resultante está sujeita a exame,
tal como está a verdade de uma proposição com intenção cognitiva acerca dos
eventos no mundo da experiência dos sentidos.

O problema é resolvido da única maneira pelo qual vem sendo apontado ao


longo da história do pensamento jurídico: pela indagação da natureza
humana. Qual ação conduz a realização plena dentro das possibilidades
humanas? Esta será sempre a realidade oculta por trás dos problemas
jurídicos quaisquer que sejam. O caráter normativo não repousa apenas na
configuração gramatical do discurso prescritivo, mas na ação concreta
correspondente.
Apenas o componente da tensão ontológica do dever perante a natureza
humana não põe fim ao problema da normatividade. Voegelin realça o
componente impessoal do homem na sociedade, isto é, a participação de
modo impessoal na ordem como é o caso da representação política. Daí
elementos ulteriores ao dever ontológico passam a compor a norma desde o
momento de sua criação por um sujeito impessoal (um Parlamento, um rei,
um Senado, um Conselho, etc.), sua aplicação (por magistrados e autoridades
de quaisquer tipos) e a execução nos casos concretos. O deve ontológico deve
combinar-se com uma autoridade: Esta autoridade do poder, como podemos chamar-
lhe, não é uma fonte adicional de normatividade, pois não há existência do homem
independente da ordem da sociedade. A ordem da existência humana é indivisivelmente a
ordem da existência humana na sociedade. E o dever, tal como se descobre a si mesmo na
experiência da tensão entre a ordem empírica e a ordem verdadeira, inclui a disciplina da
paixão, tanto individual como social. Dever ser, sendo o que é a natureza humana, uma
organização da sociedade com o pode de fazer impor o direito, pois a sociedade é
inelutavelmente, na constituição do ser, o modo da existência humana. Embora o poder do
representante e sua função de criação do direito não seja uma fonte independente de
normatividade, ele é uma fonte separada de validade da regra jurídica, pelo lado das duas

fontes normativas da razão e da revelação[481].

O problema da antítese entre ius positivium agonista no ius naturale e ius


divinum torna-se uma antinomia: dois sentidos polarizados, mas não
excludentes. As correntes de pensamento jurídico se caricaturizam, levadas
que são pela lógica do diálogo e da polêmica, mas a realidade ontológica do
problema admite uma superação dialética revelando a verdade nos dois polos.
O “nó” da polêmica parece estar na confusão entre, de um lado, a premissa
estabelecida da ordem jurídica como componente da validade justificada pelo
enraizamento desta ordem na natureza humana e sua existência social e, de
outro, as possibilidades pouco realistas de uma dedução do conteúdo do
direito a partir da natureza humana. O esforço de ordenação é diferente,
portanto, da constatação e expressão da ordem. A diversidade de sociedades
sempre foi um dado elementar de qualquer ciência política. A noção de dever
jurídico ontológico só poderia igualmente levar em conta os parâmetros
históricos de uma sociedade in casu para daí iniciar o exame crítico do direito
positivo[482].
2. Conclusão – problemas do direito em sentido natural e positivo
A noção de deve ontológico leva à constante indagação sobre a melhor
resposta, ou o resultado mais adequado segundo a natureza mesma da coisa.
Ora, sendo esse resultado sempre preenchido pelas nove antinomias descritas
nos nove campos anteriores, é razoável não considerar a possibilidade de
dedução de um sistema completo de respostas quaisquer que sejam os
problemas. Este código, um “último código” por assim dizer, estaria limitado
mesmo que hipoteticamente por não haver um catálogo prévio de situações a
serem considerar a priori jurídicas. O direito “surge” apenas concretamente,
levado por circunstâncias apenas relativamente previsíveis – incluso o
próprio prospecto da natureza humana[483] -, e repostas apenas
provisoriamente conclusivas, incluindo aí a necessidade humana de colocar
fim às discussões por atos de vontade[484]. A busca, todavia, pela melhor
resposta é uma constante invariável.
Não é possível enquadrar este campo – do variante e do invariante –
nem no discurso prescritivo, nem do descritivo. Tanto as teorias do direito
quanto sua aplicação são moldadas por circunstâncias variantes sob uma
invariante noção ontológica de dever.
Capítulo XI - Conclusões e Teses
A concreção das tensões dialéticas revela a invariância do dever
ontológico, mas o conjunto de circunstâncias não permite a formulação de
um conceito desapegado da variância. A tópica é o método mais apropriado,
conforme buscamos provar, pois ressoa a condição variável do objeto. A
indefinibilidade do direito é a condição para continuidade do movimento
dialético dos campos de problemas. Nisso parece estar alicerçada a própria
expectativa de ordem substantiva da sociedade.
A partir dos campos decadialéticos, podemos fixar definições parciais
do direito. São parciais tanto no sentido de divisão em partes de um todo,
quanto de provisoriedade. Hipoteticamente, uma vez fixado em conclusões
sobre suas definições (se é puramente prescritivo ou descritivo; qual o critério
definitivo para atualização; qual o critério definitivo para possibilidades reais
venham a se atualizar; qual relação intencional é a mais adequada; a qual
número e tipo de sujeitos o direito é extensivo; qual a delimitação final para a
razão e intuição jurídicas; quando e como se alcança plena segurança jurídica
e como adequá-la a equidade; qual critério final da equidade), ou seja, uma
vez resolvidos peremptoriamente todos os conjuntos de problemas o direito
se estagnaria numa provisão conceitual reentrando no ciclo de discussões
tópicas. A hipótese falha ao desprezar o caráter variante do discursivo tópico
invariante. Tudo que é possível à filosofia jurídica é oferecer respostas
provisórias e circunstanciais. A própria definição está fadada a esse
pressuposto, o que pode ser percebido historicamente (e cotidianamente) pela
relutância da comunidade jurídica em aderir a um conceito ao longo de toda
sua existência.
Os requisitos para responder ‘o que é o direito’, elaborados
inicialmente podem agora ser retomados[485]: 1. Estabilidade e Unidade
(Voltar-se para os aspectos da estabilidade e unidade, a fim de
garantir a concretude do conceito).
A formalização dos campos de problemas permite não um conceito
definitivo, mas definições conceituais. Evita-se reentrar no ciclo de
discussões sobre ‘o que é o direito’ ao evitar uma resposta estática, mas
apenas estável. Essa resposta é formulada por meio da suspensão da
exigência de respostas aos problemas, resignando-nos à sua organização sob
a forma dos dez campos.
A multiplicidade de conteúdo é evitada por meio da suspensão da
exigência de delimitação do objeto. Abre-se mão da unitariedade de um
conteúdo jurídico plasmado pelas fontes e admite-se a unidade do conjunto
de problemas.
Esquematicamente, a aplicação pode ser representada como:
Figura 12: Esquema geral de aplicação da decadialética ao direito.

A fixação de definições com base nos campos permite elaborar um


conceito pragmático. Ele parece útil ao organizar os campos de problemas de
maneira simples, provendo a economia mental da esquematização.
2. Pragmaticidade
(Ser pragmática, no sentido de possibilitar um domínio do objeto,
determinando suas definições e elevando a capacidade de compreensão do
conceito).
A função do conceito decadialético é, assim como a tópica, permite
uma ars inveniendi, um mapa de acesso aos problemas possíveis que conduza
a ganhos cognitivos a medida que é aplicado. O conceito se torna método, na
acepção de Lonergan, ao permitir construções cumulativas e progressivas.
Cabe mencionar uma possibilidade colateral do conceito decadialético
em permitir sua aplicação metodológica de modo restrito aos próprios
conteúdos do direito: Exemplo de aplicação restrita: Conceito decadialético
de propriedade 1) Aspectos prescritivos por meio das fontes positivas;
descritivos pelas teorias consagradas sobre a definição de propriedade e sua
distinção da posse; 2) atualização da propriedade por meio dos institutos
consagrados (usucapião, acessão, ocupação, especificação, invenção,
aquisição de frutos); 3) sentidos reais da propriedade (propriedade intelectual,
patrimoniais e titularidade); 4) extensão ou dimensão ontológica da
propriedade, elaboráveis apenas no caso concreto por fazerem parte do
campo da atualização. Exemplos possíveis: direitos do possuidor, direitos do
proprietário, normas primárias e secundárias direcionadas à propriedade),
intensão ou dimensão deôntica (relação erga omnes, tutelas processuais,
obrigações propter rem, direitos reais e obrigacionais, desapropriação e
confisco); 5) oposições ontológicas e deônticas: descritas no caso concreto, a
que tipo de sujeitos e normas a propriedade é destinada e por meio de quais
normas? Quais relações existem entre os sujeitos e normas? (Exemplos
sujeito-sujeito: relação erga omnes; sujeito-norma: promulgação de leis
referentes à propriedade; norma-sujeito: limitações do direito de propriedade;
norma-norma: regramento material subordinado ao regramento constitucional
da propriedade).
6) Aspectos descritivos por meio da teoria e doutrina: fontes romanas,
definições de property na common law, dimensão política e descrição dos
conflitos jurídico-sociais, classificações e conceituações da propriedade.
7) Dimensão do sistema: Definição e organização dos eventos
jurídicos relativos à propriedade, sua conceituação por meio de noções
descritivas (corporeidade, possibilidade de apropriação, valor econômico),
modos de aplicação conceitual (definições de Jhering e Savigny).
8) Oposição entre sistema e valor: conflitos descritivos da
conceptualização de propriedade levando em conta sua função social, seu
sentido contratual, classificações de imóvel e seu papel na economia.
9) Oposição entre segurança jurídica e equidade (epiquéia):
confiabilidade no conceito, decisões, jurisprudência; calculabilidade diante de
situações inusitadas (e.g., teoria da base negocial); cognoscibilidade dos
conceitos-limite (propriedade intelectual).
10) Variante e Invariante: determinação da propriedade segundo sua
natureza, e conteúdo do conceito segundo seu desenvolvimento histórico.
O conjunto de campos decadialéticos em aplicação restrita à
propriedade permite uma rápida catalogação dos problemas, o que, no caso,
se mostra supérfluo diante da exaustiva elaboração conceitual e dogmática
que um tema como a propriedade obteve desde o direito antigo até hoje. De
toda forma, serve de indício para a utilidade pragmática do método.
3. Objetividade
(A partir da lógica dos conceitos em Frege, a resposta deve fazer
referência ao direito enquanto objeto presente da realidade, não a outros
conceitos – em que pese a importância destes como fontes auto
expressivas).

A elaboração de um conceito que responda à pergunta ‘o que é o


direito’, conforme as exigências especificadas, trata-se apenas de adequação
literal das teses a uma sentença. Em virtude da inadaptabilidade sintática de
elaborar frases com um conteúdo semântico extenso, que englobe os dez
campos, é preferível remeter a resposta a apresentação sumarizada de dez
teses. A organização final das dez antinomias dialéticas presentes do direito,
seguindo aplicação do método decadialético de Mario Ferreira dos Santos,
pode ser apresentada como: a) Primeiro campo: o direito é expresso sob duas
funções da linguagem, descritiva e prescritiva. O direito é um discurso
prescritivo ou um discurso descritivo sobre um discurso prescritivo.
b) Segundo campo: o direito se atualiza como concreção do discurso
prescritivo, ou se virtualiza (ou se mantém virtualizado) como discussão do
discurso prescritivo.
c) Terceiro campo: o direito possui sentidos reais, aptos à
concretização, e sentidos não-reais, que jazem virtualizados na discussão do
discurso prescritivo.
c) Quarto campo: Toda concreção (atualização) do discurso
prescritivo é uma relação direcionada a um sujeito ou norma.
d) Quinto campo: Toda relação pode ser descrita como uma obrigação
entre sujeito e normas em suas quatro combinações.
e) Sexto campo: O discurso descritivo do direito é o discurso sobre o
discurso prescritivo. Ele pode descrever sistemas ou valores.
f) Sétimo campo: O discurso descritivo do sistema é formado pela
abstração racional e aplicação de conceitos descritivos.
g) Oitavo campo: A insuficiência dos sistemas conduz à descrição de
valores; a conceptualização de valores retoma a descrição de sistemas.
h) Nono campo: A segurança jurídica é intuída como critério de valor
para casos gerais, a equidade é intuída como critério de valor para casos
particulares.
i) Décimo campo: A noção ontológica de dever é determinada pela
natureza ou pela vontade.
As dez teses obtidas na aplicação do método decadialético fazem
referência aos aspectos intrínsecos do direito. A objetividade fica garantida
pelo modo como suspendemos a exigência de respostas aos problemas,
permitindo apontar apenas as tensões geradoras, sem reduzi-las a outros
conceitos.

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[1]
E. VOEGELIN, The nature of Law, trad. port. F. V. Ferreira, A natureza do
direito e outros textos jurídicos, Lisboa, Vega, 1998, p. 45 e ss.
[2]
Essa ideia não é apenas uma sugestão retórica. Ela de fato ocorre com a
mudança de significado do ius gentium no século II, nos Institutos de Caio, império do
Antoninos. Inicialmente, os juristas romanos designavam o ius gentium o direito comercial
realizado para com os estrangeiros. Na época de Cícero o termo passa a designar institutos
comuns a todas as nações, reservando o título de ius civile apenas o que havia de peculiar.
Esta divisão ainda é encontrada no Digesto (Ulp. 1 inst. D. 1, 1, 1,4). O ius gentium refletia
aquilo que a filosofia estóica preconizava como uma razão natural, comum a todos os
homens. Ver: F. DE ZULUETA, The Development of Law under Republic, in: Cambridge
Ancient History, vol.9, 1932, cap. p.806-7; e W.W. BUCKLAND, Classical Roman Law,
in: Cambridge Ancient History, vol.2, 1936, p. 869-71 apud The Collected Works of Eric
Voegelin, vol. 19, History of Political Ideas, vol. 1, Hellenism, Rome and Early
Chrystianity, University of Missouri, Columbia, 1989, p.258. Por este motivo São Tomás
dedica uma quaestio especificamente sobre o tema, v. Suma Teológica –( dir. G. C.
Galache, São Paulo, Loyola, 2001, tr. II, II, q.57, 3).
[3]
A apresentação do método comparativista nas ciências naturais surge da
necessidade de classificação das espécies, já esboçando a taxonomia retomada no século
XIX. Os detalhes são apresentados na Analytica Posteriora (II, 13; 97b5-15) e na Pars
Animalium (I, 1; 639ª15-639b5). Sobre a discussão do comparativismo em Aristóteles v. J.
FERIGOLO, Conhecimento, dialética, analogia e identidade na biologia de Aristóteles,
tese (doutorado) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2012, p.289-92.
[4]
Jhering é o primeiro a descrever que, apesar desta plasticidade dos sistemas,
eles não podem distorcer certos aspectos rígidos dos institutos; embora o faça por meio de
metáforas, fica claro se tratar do que chamamos aqui de ‘sistema interno’ do direito: “Essa
precipitação das normas no sistema não é uma obra surgida da discricionariedade subjetiva,
não é uma elaboração da matéria empreendida pela ciência, mas é inerente ao próprio
direito” - (R. Von JHERING, Geist der römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen
seiner Entwicklung, Breikopf & Härtel, Leipzig, 1852-65, 4 vol., p.42, apud. M. LOSANO,
Sistema e struttura nel diritto, volume I: Dalle origini alla Scuola Storica, 1968, trad. port.
C.A. Dastoli, Sistema e estrutura no direito, volume 1 – Das Origens à Escola Histórica,
Martins Fontes, São Paulo, 2008, p.367); em Stammler, em sua obra de 1911, retrata a
passagem do paradigma oitocentista de construção de sistemas para a descoberta dos
sistemas jurídicos, abrindo mão da busca por relações causais e orientando a ciência
jurídica para o paradigma finalístico - (R. STAMMLER, Theorie der Rechtswissenschaft
Buchhandlung des Weisenhauses, Halle und der Saale, 1911). François Gény aponta este
dado ao afirmar o que antes era tido pelo jurista como essencial (“o papel e o valor das
fontes formais”) passara a um plano subordinado, visto como, “não sendo senão modos
contingentes de expressão de uma realidade permanente, as fontes devem ficar
subordinadas a essa realidade mesma” – (F. GÉNY, Science et Technique, I, p. 41, apud M.
REALE, Teoria Tridimensional do Direito, 5ª Ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p.6). No
entanto, somente com Hans Kelsen (1881-1973) têm-se o marco definitivo da busca pela
estrutura interna em sua Teoria Pura do Direito, o que Mario Losano chama de “arquétipo
do sistema interno” – (M. LOSANO, Sistema e Struttura nel Diritto, vol. II, Il Novecento,
2002, trad. Port. L. Lamberti, Sistema e estrutura no direito, vol.2 – O século XX, Martins
Fontes, São Paulo, 2008, p.154).
[5]
Muito embora tenhamos focado esta divisão no positivismo jurídico ela aparece
anteriormente em Phillip Heck. A “jurisprudência dos interesses” pugnava por motivações
alheias ao pensamento estritamente filosófico conceptual, ou “metajurídico”, em reação
tanto aos defensores da interpretação histórica como Bierling, como à “jurisprudência dos
conceitos” – (P. HECK, Gesetzesauslegung und Interessenjurisprudenz, 1914, trad. port. J.
Osório, Interpretação da Lei e Jurisprudência dos Interesses, São Paulo, Saraiva, 1947,
p.16 e ss.).
[6]
No caso das democracias atuais, um processo legislativo constitucional, no qual
regras são propostas e votadas por representantes da população, eleitos pelo voto de uma
maioria.
[7]
Numa análise mais apurada segundo a teoria geral do direito poderia ser
sugerido ainda mais formas de atribuir ou desprover normas de validade, indo desde a
admissão de determinado costume até a aplicação de súmulas fundamentadas em
reinterpretações constitucionalmente validadas. De nada adiantaria remetermos a validade à
legitimação pela força ou poder. Mesmo antes da organização do Estado os costumes
tinham força vinculativa enquanto tal, não devido às qualidades do sacerdote ou líder que o
impunha. Sobre o papel dos sacerdotes na aplicação do direito, v. M. VAN CREVELD,
The Rise and Decline os the State, Syndicate of the University of Cambridge, Cambridge,
1999, p.12. Devemos abandonar esta linha de investigação para os propósitos de
estabelecer a existência do direito, mas ela se conserva decisiva ao constatar os modos
como esta existência se impõe.
[8]
As definições do direito baseadas no gênero de um conjunto ou somatório de
leis ou de normas parece ser o paradigma atual. Nobert Horn, por exemplo, define como
“suma das normas gerais garantidas pelo Estado para a regulamentação da vida em comum
das pessoas, e para o apaziaguamento de conflitos inter-pessoais através da decisão” – (N.
HORN, Einführung in die Rechtswissenschaft und Rechsphilosophie, 2ª ed., trad. Ale. S.
Fabris, Introdução à ciência do direito e filosofia jurídica, Porto Alegre, Sergio Fabris,
2005, p.34).
[9]
E. VOEGELIN, A natureza do direito e outros textos jurídicos, p. 55.
[10]
“As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas) porque a
norma fundamental que forma sua regra basilar de produção é pressuposta como válida, e
não porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz, quer
dizer, enquanto esta ordem jurídica é eficaz” – (H. KELSEN, Reine Rechtslehre, 2ª ed.,
1960, trad. Port. J. B. Machado, Teoria Pura do Direito, WMF Martins Fontes, Ltda.,
2012, p. 237).
[11]
“Nós compreendemos a ordem jurídica, primeiro, como um agregado de regras
válidas e, depois, como uma série de tais agregados ligados pelo processo constitucional. A
ordem jurídica no primeiro sentido é o ponto estático numa dimensão temporal criada pelo
processo constitucional; e a ordem jurídica no segundo sentido é o continuum concebido
como uma série de pontos estáticos sobre a linha. A sucessão dos pontos estáticos nunca
correrá simultaneamente com o continuum autêntico de uma coisa que existe realmente no
tempo” - (E. VOEGELIN, A natureza do direito e outros textos jurídicos, p. 58).
[12]
G. FREGE, Schriften zur Logik und Sprachephilosophie, 1904, trad. port. de P.
Alcoforado, Sobre o conceito e o objeto in Lógica e Filosofia da Linguagem, 2ª ed, São
Paulo, Edusp, 2009, p. 114.
[13]
Voegelin expõe com a elegante truculência de praxe: “A pletora de teorias
jurídicas, a variedade desconcertante de posições existentes no nosso tempo, é causada pela
má vontade em submeter à análise as verdades parciais que podem ser extraídas em grande
número da experiência pré-analítica do “direito”. Elas são deixadas no estádio de
presunções iniciais por analisar” (E. VOEGELIN, A natureza do direito e outros textos
jurídicos, p. 59). A exigência de uma certeza “científica” inicial, um ponto arquimédico da
filosofia jurídica, reduz as expectativas de verdades a serem encontradas em reflexões do
uso cotidiano dos termos, ou da observação crua dos fenômenos. Esta exigência tem então
de ser suprida por domínios meramente conceituais, erigindo teorias em torno de figuras
como “norma de reconhecimento” ou “norma fundamental”.
[14]
Podemos somar ainda a crítica de não haver relações causais nas teorias que
buscam explicar o direito enquanto um agregado de regras válidas. Por não determinar a
causalidade, teorias positivas explicam, mas não compreendem o direito. Kelsen
admitidamente não busca estabelecer uma ciência jurídica baseada no conhecimento pelas
causas – paradigma proposto por Aristóteles e jamais interrompido – mas um estudo sobre
a interpretação dos atos jurídicos, a partir da construção de um sistema baseado no
pressuposto epistemológico da norma fundamental. Sobre a orientação epistemológica de
Kelsen na Teoria Pura do Direito Cf. S. GOYARD FABRE, Philosophie Critique et Raison
Juridique, trad. port. M. Galvão, Filosofia crítica e razão jurídica, São Paulo, Martins
Fontes, 2006, p.233. Sobre a solução kelseniana de impor uma norma hipotética, Voegelin
responde: “[Ela] confere validade jurídica à própria constituição e fecha o “sistema”
jurídico. Esta construção deve ser rejeitada por ser analiticamente sem sentido. Ela não
analisa nada mas mutila a indagação à natureza do direito. Em ciência, nós estamos
interessados no estudo da realidade, não na construção de um sistema que preclude o seu
estudo” – (E. VOEGELIN, A natureza do direito, p. 78).
[15]
Ao tratar da aplicação do direito, Max Weber afirma: “a fonte de decisões
“judiciais”, primeiramente, não está constituída por normas gerais – “normas de decisão” -
de qualquer tipo, as quais ele poderia "aplicar" ao caso concreto, ou somente o está quando
se trata de certos problemas preliminares formais. Ao contrário, o juiz, ao decretar a
garantia coativa num caso concreto e por razões concretas, cria eventualmente a vigência
empírica de uma norma geral como "direito objetivo", porque sua máxima ganha
importância, que vai além desse caso concreto - (M. WEBER, Wirtschaft und Gesellschaft:
Grundriss der verstehenden Soziologie, trad. Port. R. Barbosa, Economia e sociedade:
fundamentos de Sociologia Compreensiva, vol. 2, Brasília, UNB, 1999, p. 71).
[16]
“Uma realidade social de ações válidas imbrica-se com o direito como um
agregado de regras válidas (...) A noção de hierarquia de regras válidas deve, assim, ser
expandida num processo de criação do direito no qual regras e atos criadores de regras de
alternam. Este processo desagua, finalmente, na vasta realidade da sociedade que “tem” o
direito que é feito no processo. Mesmo esta vasta realidade para além do processo de
criação do direito em sentido técnico tem, todavia, um modo de participar do direito” (E.
VOEGELIN, A natureza do direito e outros textos jurídicos, cit., p. 59, grifo nosso). Uma
possível objeção caberia aqui. O critério de constitucionalidade das normas, remetendo-as à
análise a partir de uma norma superior, não pode ser visto como causa eficiente da criação
de novas normas. No máximo poder-se-ia dizer que o texto constitucional permite o
posterior processo legiferante, mas por sua natureza de discurso descritivo não pode ser
causa das novas leis. Reconhece-se uma indiscernível presença agente humana no processo.
[17]
K. BÜHLER, Sprachtheorie, 1934, trad. ingl. D. F. Goodwin, Theory of
language: the representational function of language, Philadelphia, John Benjamin
Publishing Co., 2011, p. 99.
[18]
T. VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz, 1953, trad. port. T. Ferraz Jr., Tópica
e Jurisprudência, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1979, p. 21.
[19]
E.VOEGELIN, Order and History, vol. 1: Israel and the revelation, trad. Port.
C. C. Bartolotti, Ordem e história, vol. 1: Israel e a revelação, São Paulo, Loyola, 2014, p.
50.
[20]
Id. p. 51.
[21]
Têm-se aqui um ponto paradoxal, pois o Homem se vê como parte de algo que
não compreende totalmente, sem também compreender totalmente a si mesmo. Sua
participação no que Voegelin chama de “comunidade do ser”, fazendo eco à filosofia
estóica de Zenão, não pode ser completa porque nem seu conhecimento do ser nem o
conhecimento de si é completo: “A ironia socrática da ignorância se tornou o exemplo
paradigmático da consciência sobre este ponto cego no centro de todo o conhecimento
humano sobre o homem” - Ibid. p.52.
[22]
“Em seu sentido etimológico , participar é receber algo de outrem. Mas o que é
recebido é recebido não totalmente (totaliter), pois totaliter recipire seria receber em
totalidade algo (aliquid). É intuitivo que o conceito de participar implica um receber parte
de algo (áliquid) de outro (ab alio). O que participa é o participante, o qual participa do
participável (participable = o que pode ser recebido) de outro, o participado”. M.
FERREIRA DOS SANTOS, Tratado de Simbólica, São Paulo, É realizações, 2007, p. 93.
[23]
Mário Ferreira não especifica a fonte, transcrevendo a relação em latim
(quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur), ou “Tudo quanto é participado em
algo, o é, nele, segundo o modo de ser do participante, pois ninguém pode receber acima de
sua medida”, do latim “Omne quod este participarum in aliquo est eo per modum
participantes; qui nihil potest recipere ultra mensuram suam” – (M. FERREIRA DOS
SANTOS, Tratado de Simbólica, cit., p. 94-5).
[24]
A tripartição de participante, participado e objeto participável é útil na
exposição hermenêutica permitindo categorizar com clareza a relação entre sujeito e texto:
“a ideia que se tem de um texto antes (na forma de pré-conceito) e durante a sua leitura
afeta o que o próprio texto a ser interpretado é, modificando a relação original do leitor
com esse objeto de interpretação, que não é mais o mesmo, vez que sua atividade já o
alterou” – (A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, tese (titularidade), Faculdade de
Direito da USP, São Paulo, 2013, p.16). O objeto participável não permanece intacto, mas
se modifica na medida do participante. A experiência da participação torna possível
“alavancar” a própria reflexão com base na obra de arte. O Bildungsroman de Goethe é o
paroxismo da interpretação-participação quando Wilhelm Meister descobre ele mesmo
retratado, descrito, interpretado enfim, na Sociedade da Torre. A participado e participante
tornam-se um só aos olhos do leitor.
[25]
M. FERREIRA DOS SANTOS, O Um e o Múltiplo em Platão, Logos Ltda.,
São Paulo, 1958, p. 44.
[26]
ARISTÓTELES, Metafísica, trad. port. G. Reale, trad. port. M. Perine, 5ª ed.
São Paulo, 2015, p.49, trecho,990b 20 e p.665, trecho 1088a 2, b.
[27]
M. FERREIRA DOS SANTOS, O Um e o Múltiplo em Platão, p. 42.
[28]
Id. p.43.
[29]
Ibid. p.45.
[30]
Mais do que simples verbete de epistemologia, “Anamnese” é o conceito
central na filosofia da história e da consciência de Voegelin. A relação entre ambas será
dada por uma “filosofia da ordem”, um “processo através do qual encontramos a ordem de
nossa existência como seres humanos na ordem da consciência” (E. VOEGELIN,
Anamnesis, trad, port. E. Fonseca, Anamnese – Da teoria da história e da política, São
Paulo, É Realizações, 2006, p. 48). O símbolo platônico será a retomada consciente do que
foi esquecido, que “entretanto, pode ser lembrado apenas porque é um conhecimento à
maneira do oblívio, que através de sua presença no oblívio provoca o desassossego
existencial que forçará seu crescimento à maneira de conhecimento” (Id. p.49). O
pensamento não articulado é transformado em conhecimento e fixado em formas
linguísticas. A tarefa de uma filosofia política será a recordação dos símbolos articulados
da ordem e desordem na existência pessoal, social e histórica: “No mundo externo o
símbolo pode separar-se da consciência recordante, pode tornar-se opaco para a experiência
expressa; e o conhecimento recordante pode de novo afundar da presença da consciência na
latência do oblívio” (Id. p.49). O direito conta como um dos símbolos pelos quais a ordem
é recordada e o efeito de sua anamnese deve reconduzir não somente a uma prova supérflua
de sua existência, mas à intuições históricas sobre sua natureza.
[31]
Não será difícil encontrar discussões nas quais o conceito de justiça é
tenazmente objetificado para ao fim retornar resignado a um aspecto subjetivo. Aristóteles
e São Tomás parecem ter considerado a subjetividade uma propriedade natural do conceito
de justiça ao classifica-la como virtude humana - (physei dikaion em Ética a Nicômaco,
1134b18 e ss; e pelo conceito de habitus principalmente na Summa Theologica, II, II, 57-
122; e no Comentário à Ética de Aristóteles, 5; n.° 885-1108). O mesmo não se dá com
Kelsen ao disfarçar com falsa modéstia o resultado infrutífero de conceptualização da
justiça em seu ensaio sobre o tema.
[32]
M. R. BUNSON, Encyclopedia of ancient Egypt, 3ªed., Nova Iorque, Facts on
File, 2012, p. 249.
[33]
Id. p. 249.
[34]
Jan Assmann propõe a tradução “justiça conectiva” para o maat: “The
Egyptians (...) describe their concept of human fellowship-ma'at-as a gentle yoke. But they
also proceed on the assumption that ma'at cannot exist among humankind without the state
and its coercive rods (...) The state is there to enforce ma'at on earth, to guarantee the
parameters within which ma'at can be taught and remembered in the first place. Thus the
Egyptians regarded ma'at and its transmission not as something autopoietic, which would
spontaneously develop in the course of social interaction, but as a system that had to be
imposed from outside, or rather from above, and that could be maintained only by the
power of the state” – (J. ASSMANN, Agypten. Eine Sinngeschichte, Carl Hanser, Munique,
1996, trad. Ingl. A. Jenkins, The mind of Egypt: History and meaning in the Time of
Pharaohs, Metropolitan Books, Nova York, 2002, p. 127). A universalização do conceito,
todavia, parece ter se dado apenas durante a XII dinastia (1991-1783 a.C.), durante o
chamado Império Médio com a passagem da capital para Tebas e unificação das regiões
norte e sul do Nilo – (T. FERREIRA CANHÃO, A literatura egípcia do Império Médio:
espelho de uma civilização, vol 1, tese (doutoramento) Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2010, p 23).
[35]
J. ASSMANN, The mind of Egypt: History and meaning in the Time of
Pharaohs, cit., p. 131-5.
[36]
E. VOEGELIN, A Natureza do Direito, p.69.
[37]
Sobre o conceito do “justo natural” na polis grega, v. E. VOEGELIN, Das
Naturrecht in der politischen Theorie, in Sonderausgabe der österreichischen Zeitschrift für
öffentliches Recht 13, ed. F. M. Schmölz, Viena, 1963, pp. 38-51, trad. Port. E. Fonseca,
“Justo por natureza” cap. in Anamnese – Da teoria da história e da Política, p. 177-97.
[38]
“Customs are normative expectations and descriptions of the status quo,
contracts record the convention actually reached, and laws reflects the decision taken by
the community” – (C. VARGA, Theory of Laws, Budapest, Szent István Tarsulat, 2012,
p.27).
[39]
E. VOEGELIN, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, p. 70.
[40]
“Lex (Law) is also distinguished from the formely undifferentiated ius. For, in
the notion of the ius, the behavior resulting in the justum (Just) becomes the core element
of the concept; emphasis is thereby shifted from the thing itself to its recognition and
realisation. Similarly, in the notions of recht, right, droit, diritto, the behavior embodying
the rectum receives emphasis” – (C. VARGA, Theory of Law, p. 27).
[41]
Voegelin fornece um esboço histórico da chamada “jurisprudência normativa”,
aqui considerada operações racionais, em paralelo com a “jurisprudência sociológica”, aqui
incluídas nas operações intuitivas. Inicialmente parece haver um amálgama de ambas na
experiência indiferenciada da ordem na pólis helênica. Platão e Aristóteles não dissociam
os atos normativos de criação e a expectativa de garantia do bem comum. Nos estados
nacionais modernos do século XVI, a criação do direito torna-se prerrogativa dos príncipes,
mas a teoria de Bodin mantém como exigência a garantia da ordem por meio da submissão
ao direito divino e natural. No século XVII a teoria de Hobbes enfraquece o elo entre
criação normativa e substância da ordem, reduzindo esta ao “postulado de paz no interior
da comunidade”. O “secularismo e desintegração da filosofia nos séculos XIX e XX”
afiança autonomia completa a criação das normas em relação a questão da ordem. A
completa esterilização da jurisprudência normativa será feita por Kelsen, ao purificar o
direito da concepção sociológica, eliminando juntamente qualquer operação intuitiva sobre
a ordem. Como reação surgem em número e espécie variados tipos de abordagens
sociológicas de caráter pré-analítico, que também se afastam da questão da ordem: “A
indagação não avançou até o ponto em que surgem os critérios da ordem verdadeira em no
seu sentido filosófico. No seu agregado, eles refletem o mesmo estado de desintegração
filosófica que é manifesto na jurisprudência normativa. A natureza do direito como a
ordem substantiva da sociedade não se tornará objeto da análise se a indagação parar na
observação de fenômenos tais como a conduta dos juízes, as exigências dos grupos de
pressão, as ideologias dos movimentos políticos, a psicologia da conformidade ou da
delinquência, a necessidade da reforma legislativa ou judicial, etc.” – (E. VOEGELIN, A
Natureza do Direito e outros textos jurídicos, p. 71-4).
[42]
Este caminho é proposto por Hermann Kantorowicz em sua obra póstuma,
“The definition of Law”, escrita como uma introdução à Oxford History of Legal Science.
Não se deve confundir essa utilização pragmática com o que se denomina correntemente
“pragmatismo”, a doutrina que vincula a verdade de uma proposição a seu melhor fim
prático. O intuito de uma definição é, segundo afirma o autor, “ser frutífera para a ciência
de que trata”, com o efeito de “relacionar o que deve ser relacionado e separar o que deve
ser separado” delimitando um campo de “manifestações importantes e verídicas e
proporcionar um instrumento para a elaboração de classificações completas e exaustivas”.
Kantorowicz rechaça a ideia de uma definição baseada na ideia platônica de “essência”, ou,
mais grosseiramente, envolvida na disputa lexicográfica sobre determinado termo. O autor
prefere definições baseadas na liberdade inicial de selecionar características e relações que,
num segundo momento, serão foco de disputas teoréticas sobre sua pertinência ao objeto a
ser definido. Estas características e relações não serão apenas descrições possíveis do
objeto, mas devem ser perscrutadas e comprovadas analiticamente. A definição torna-se
assim tão verídica quanto fecunda, deixando de ser uma definição “nominal” para tornar-se
uma definição “real”. Uma definição não pragmática de ser humano seria “animal de dois
pés sem plumas”. Correta. Mas inútil. A partir dos apontamentos de Kantorowicz é
possível afirmar que um conceito de direito vincula-se ao domínio que a comunidade
científica tem de suas relações e características reais, não meramente terminológicas. (H.
KANTOROWICZ, The Definition of Law, 1958, trad. esp. J.M. de la Vego, La definición
del Derecho, Revista de Occidente, Madrid, 1964, p.39).
[43]
Este método é apresentado pormenorizadamente como proposta, Cf. infra,
Capítulo IV.
[44]
Apesar da excelência de sua obra, o autor é pouco conhecido no meio
acadêmico, motivo pelo qual é necessária uma breve notícia biográfica. Mário Dias
Ferreira dos Santos foi um filósofo brasileiro, nascido em Tietê, São Paulo, em 3 de janeiro
de 1907. Bacharel em direito e ciências sociais pela Faculdade de Direito de Porto Alegre,
não seguiu a carreira jurídica rumando inicialmente para o jornalismo. Além de articulista,
traduziu para a Editora Globo obras de autores como Pascal, Balzac, Amiel e Nietzsche –
este último de marcante influência em sua filosofia. Na década de 50, tornou-se dono de
suas próprias editoras (Logos S.A. e Matese Ltda.) mudando-se para a capital paulista onde
participou ativamente dos meios culturais, dirigindo cinemas, fazendo conferências, dando
palestras, escrevendo para jornais e revistas. Já nesta época, começa a escrever suas obras
filosóficas, compondo o que viria a se tornar a Enciclopédia das Ciências Filosóficas. O
teor de seu trabalho é, ao mesmo tempo, exótico e profundamente tradicional: combina
pitagorismo com Piaget, a escolástica portuguesa com o anarquismo de Proudhon,
reflexões platônicas sobre a forma com a recém-descoberta física relativística de Einstein.
Mas não se trata de mero diletante. Sua obra magna, a Filosofia Concreta, é uma sequência
original de demonstrações geométricas as quais se iniciam pela premissa de que “algo há” e
se estendem com rigor até problemas fulcrais da mente humana e do fundamento da
matéria. De especial interesse para esta tese são as seguintes obras: Filosofia e Cosmovisão,
livro “didático”, no qual o autor apresenta conceitos básicos de seu sistema, mas já
avançando para temas elaborados de física; Lógica e Dialética, que inicia pela apresentação
dos modos clássicos de silogismo e as diferentes “dialéticas” encontradas na filosofia
ocidental, terminando por oferecer seu próprio método, a decadialética; Tratado de
Simbólica, livro pioneiro no tratamento dos símbolos enquanto categorias filosóficas, cujo
fundamento pitagórico começa a surgir; Sabedoria das Leis Eternas, uma das obras finais
do autor, aqui o pitagorismo traz elementos que formam uma compreensão qualitativa dos
números, tratados como leis ontológicas. É preciso salientar que, embora de uma
exuberância e profundidade tremendas, os livros de Mário Ferreira não receberam o devido
cuidado editorial, sendo publicados quase sempre sem a revisão do autor, nem jamais
tiveram uma equipe dedicada ao estudo de sua obra. A maioria das edições contemporâneas
se limita a transcrição dos originais com algumas notas pouco elucidativas e textos
introdutórios dispensáveis. A obra de um dos maiores filósofos brasileiros permanece,
portanto, como uma espécie de relíquia mística incompreendida em seu valor e
incompreensível em seu conteúdo total. O resgate e a devida valoração de Mário Ferreira
têm sido uma tarefa solitária do filósofo Olavo de Carvalho, cuja pesquisa embasa também
esta notícia biográfica – (O. CARVALHO, Introdução in M. FERREIRA DOS SANTOS,
Sabedoria das Leis Eternas, São Paulo, É Realizações, 2001, p. 12-42).
[45]
A suspeita sempre foi de que a tópica fosse, basicamente, a dialética clássica.
Mas tal suspeita não se verificou completamente equiparada a compreensão do que é a
dialética em Viehweg. Para tanto, a presente tese ocupou boa parte de um capítulo
buscando verificar até que ponto era pertinente a relação entre os topoi e as antinomias de
Mário Ferreira.
[46]
Uma sondagem na França perguntando sobre o que é o direito para jovens
entre 11 e 18 anos revela que 40% vê o direito como ameaça de punição; 30% o relaciona
com a educação; 27% ligam o direito ao justo – (C. LOURILSKI, Que représente le droit
pour les 11-18 ans?, Le Courrier du CNRS: Les Sciences du Droit, 75, 1990, 61).
[47]
A experiência cotidiana e a atividade prática do direito, seja forense, seja
acadêmica, parece fornecer apenas um material bruto de intuições a respeito do que seja o
direito, sem todavia atribuir-lhe uma estrutura interna de coesão, que permita enfim reunir
tais intuições sob um mesmo conceito. Georges Vedel, jurista francês relata que “... há
semanas e até meses que eu “gramo’ laboriosamente sobre a questão, contudo
aparenetemente inocente ‘ O que é o direito?’ Esse estado, já pouco gloriso, agrava-se com
um sentimento de vergonha. Ouvi minha primeira aula de direto faz mais de sessenta anos;
dei meu primeiro curso em cátedra lá se vão mais de cinquenta; não parei de exercer o
ofício de jurista alternada ou simultaneamente como advogado, como professor, como
autor, como consultor e mesmo como juiz. E eis-me desconcertado como um estudante de
primeiro ano entregando uma cópia em branco, por não ter conseguido reunir migalhas de
resposta que façam escapar do zero” – (G. VEDEL, Indéfinissable mais présent, Droits, 11,
1990, 67 apud Aux confins du droit, N. ROULAND, Odile Jacob, Paris, 2003).
[48]
A rigor, os entraves são a falta de estabilidade e unidade, isto é, uma
instabilidade e uma multiplicidade. Explica-se a seguir.
[49]
Algo muito semelhante a conceptualização lógica se passa na visão humana.
Pensemos num navio zarpando de uma ilha: ela é uma miríade de formas, a areia da praia
entremeada por pedras, recobertas por limo e, ao fundo, árvores de diferentes espécies, com
cores e formatos diversos, se movimentando ao sabor do vento. Ao nos afastarmos as
formas vão ficando menores em escala, e também seus movimentos diminuem, se
aglutinando, tornando-se mais estáveis; as cores perdem suas nuances e contrastes mais
profundos suavizando-se até se conformarem numa escala homogênea de tons, cada vez
mais parecidos, até que se tornam uma cor única. A ilha toda se torna um bloco inteiriço
distinto apenas do mar. Ela se torna unitária e estável. A metáfora serve para explicar como
um conceito, repleto de conteúdos internos diferentes, é unificado como um todo
semelhante a partir de um distanciamento do observador.
[50]
A discussão sobre a possibilidade de um ‘sistema’ jurídico vai de encontro ao
que afirmamos aqui sobre o ‘conceito’. Canaris se refere aos postulados de “ordenação” e
“unidade”, coincidentes com a maioria das definições que demais juristas propuseram –(C.
W. CANARIS, Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, 1983, trad. port. de
M. Cordeiro, Pensamento sistemático e Conceito de Sistema no Direito, Fundação Calouste
Gulbenkian, 5ª Edição, Lisboa, 2012, p.15).
[51]
Quando se abstrai o semelhante de uma maneira suficientemente segura pela
qual se estabeleça uma unidade e uma estabilidade, aí estamos diante de um conceito.
Faremos a análise do conceito em sua modalidade lógico-formal adiante, mas antecipamos
a conclusão de sua importância finalística, qual seja, a economia mental que possibilita,
congregando em um só termo todas as operações abstrativas que denotam as semelhanças
de determinado objeto. Ao criar conceitos estamos conduzindo as diferenças às
semelhanças, o individual ao geral, combinando razão e intuição em seu caráter
antinômico. O caminho inverso do conceito é a definição. Se tomarmos os conceitos e
dentro deles buscarmos o diferente, i.e., o individualizável, estaremos delimitando os
objetos, tracejando conceitos menores dentro de outros mais amplos. Não se pode,
portanto, deixar de estabelecer uma diferença essencial entre conceito e definição. Um
conceito de direito seria aquele que congregasse um número suficiente de semelhanças
coordenadas entre si, com as quais poderíamos, apenas a posteriori, delimitar o direito
dentro de um gênero – a ética, os sistemas sociais, a justiça, a linguagem... – nos
aproximando de uma definição - (M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão,
2ª ed., São Paulo, Logos, 1955, p.150).
[52]
Os conceitos, quando organizados, resultam em uma classificação que
engendra outros conceitos mais amplos tratando, sobretudo, de comparações entre suas
extensões. Quando a extensão de dois conceitos distintos é plenamente equivalente, ou
seja, o que se aplica a um é o mesmo que se aplica ao outro, estamos novamente diante da
definição. É o caso, por exemplo, da maneira clássica pela qual se busca o gênero próximo
e a diferença específica - (M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, p. 155-
60).
[53]
Esta condição de insuficiência na transmissão de informações pode ser
explicada por várias vias. Em especial, a linguagem cotidiana não trás em si a exatidão
sobre quais expressões são sentenças e quais sentenças são afirmáveis, o que leva a Alfred
Tarski dizer que lhes falta uma “estrutura especificada”. A. TARSKI, The Semantic
Conception of Truth, 1944, trad. Port. C. Braida, A concepção semântica da verdade, São
Paulo, Unesp, 2007, p. 168.
[54]
Ontognosiologia é o termo utilizado por Miguel Reale para a dualidade
intrínseca do estudo do direito partindo tanto de seu objeto (onto) quanto das condições
subjetivas necessárias para seu conhecimento (gnose). M. REALE, Filosofia do Direito,
20ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.49).
[55]
A questão do reconhecimento dos objetos e sua relação com a verdade
produzida sobre eles é tratada contemporaneamente sob as categorias de “truthbearers” e
“truthmakers”. A primeira trata do conteúdo que “carrega” a verdade, incluindo, por
exemplo, as proposições, enunciados, figuras mentais, etc. A segunda trata dos
“constituintes” da verdade, incluindo aí fatos, estados de coisas, etc. Sobre o assunto, v. M.
GLANZBERG, "Truth", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2016 Edition),
Edward N. Zalta (ed.), disponível em
https://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/truth/ (acessado em fevereiro de 2016).
[56]
Cita-se, a título de exemplo, Herbert Hart em sua obra The concept of Law,
buscando identificar as relações entre direito, coerção e moral para nelas sustentar sua
proposta de conceito. Veremos adiante que a estratégia pensada por Hart se assemelha,
possivelmente de forma inadvertida, ao recurso tópico de buscar inicialmente perguntas
que podem ser feitas a respeito do objeto para descobrir seu real significado – (H. HART,
The concept of Law, 1962, trad. port. A. R. Mendes, O Conceito de Direito, 6ª ed., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, p.18 e ss); também Hans Kelsen inicia sua obra com
três capítulos dedicados à diferenciação analítica, tomando por elementos específicos do
direito seu uso enquanto técnica social, a coercitividade e as relações de imputação – (H.
KELSEN, Teoria Pura do Direito, pp. 1-113).
[57]
Foi o objetivo do positivismo jurídico resolver a questão buscando um fundo
comum dentre os diversos ramos do direito, meio pelo qual se estabeleceria uma Teoria
Geral. Tal meta é corolário do positivismo filosófico, cuja ambição admitida é a de um
saber filosófico que congregue horizontalmente as diversas ciências, isto é, um saber
unificado semelhante a uma enciclopédia. Sobre o contexto teórico do período, destaca o
filósofo Miguel Reale: “A suposta correspondência entre a infra-estrutura social e o sistema
de normas vigentes levava, por conseguinte, o jurista a concentrar a sua atenção nos
elementos conceituais ou lógico-formais, não havendo razões para se distinguir entre
Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, à qual se acabou dando o nome equívoco de
“Enciclopédia Jurídica”. Quando, porém, logo no fim do século passado, começou-se a
perceber que havia poderosas razões de conflito entre os fatos e os códigos, pode-se dizer
que cessou, como por encanto, “o sono dogmático” dos “técnicos do direito” e as
cogitações filosófico-jurídicas reconquistaram a perdida autonomia” – (M. REALE, Teoria
Tridimensional do Direito, cit., p.5). Naturalmente tal pretensão poderia ser acusada de
uma redução do saber filosófico ao saber científico. Desde o período de maior divulgação
alcançado pelo idealismo absoluto, a filosofia passava por um período de descrédito, ainda
mais quando posta em confronto com os espetáculos técnicos que a ciência moderna
alcançava no decorrer do século XIX. Não surpreende que houvesse uma investida
científica nos moldes do positivismo, buscando um entremeio de contemplação e técnica,
com o fito de estabilizar o objeto e formular uma teoria a seu respeito.
[58]
O termo é utilizado abundantemente por Mário Ferreira dos Santos em suas
obras, motivo pelo qual o adotamos buscando adequar aspectos terminológicos da tese com
seu conteúdo metodológico.
[59]
A tribo dos toradjas nas Celeber, arquipélago próximo de Bornéu, realiza um
rito conciliação no qual os cônjuges devem inicialmente falar perante uma assembleia da
aldeia, expressando tudo aquilo que não amam para que não se pense mais em divórcio. Se
a conciliação fracassa, há dois tipos de divórcio. A “má ruptura” exige a prova de uma falta
durante o casamento, e é malvista pela tribo. No “divórcio de ouro” não é feita nenhuma
pergunta sobre os motivos e os cônjuges se separam pacificamente, deixando a partilha dos
bens aos cuidados da assembleia. O fundamento da separação consensual parece ser o
mesmo intuito de pacificação social encontrado nas sociedades estatais – (J. KOUBI, En
quête d’harmonie. Le divorce chez les Toradja, Droit et Cultures, 15-6, 1988, 5-45 apud N.
ROULAND, Nos confins do direito, p.17).
[60]
O chamado “cânon da unidade” enquanto princípio hermenêutico que
pressupõe a unidade do sistema jurídica em nada poderia nos ajudar neste momento. Em
que pese o valor intrasistemático, ele nada garante em termos da busca por uma “natureza”
do direito, tema o qual aprofundaremos na Parte Dois. Outros pressupostos, como o
surgimento histórico comum ou a internacionalização do direito, apenas destacam o fato de
tratar-se hoje de múltiplos objetos semelhantes, mas não oferecem nenhuma garantia lógica
de sua unidade.
[61]
O culminar da obra de Goffredo Telles Junior não é outro senão a busca pela
estabilidade, aquele conhecimento que revela a existência por trás do ser contraposto às
vicissitudes do não-ser: Uma coisa existe quando ela continua como ela própria, embora
tudo se movimente e mude, dentro dela e em volta dela. Só existe, em verdade, o que não
muda, isto é, o que continua. O que não muda, o que continua, durante certo tempo. A
existência é atributo do que perdura e permanece. Ela pressupõe a estabilidade”. G.
TELLES JUNIOR, Direito Quântico, Juarez de Oliveira, São Paulo, 2006, p. 194.
[62]
Entende-se a semântica como as relações entre significados dentro da
linguagem. No caso, a investigação do significado da noção de “conceito” e a denotação do
verbo “ser” aplicada ao substantivo “direito” não devem pressupor que esta tarefa, por si,
revolva a questão da presente tese, resultando feericamente numa definição.
[63]
Para a discussão aprofundada e crítica das três correntes, v. E. MARGOLIS -
S. LAURENCE, “Concepts”, The Standford Encyclopedia od Phylosophy, 2006,
disponível em http://plato.stanford.edu/entries/concepts/ (acessado em fevereiro de 2016).
[64]
Esta corrente segundo a qual o pensamento é formado por representações
mentais semelhantes à linguagem é conhecida por ‘language of thought hypothesis”, cf. J.
FODOR, Concepts: Where Cognitive Science went wrong, Nova York, Oxford University,
1998. Embora o título seja provocativo, este paradigma é dado como “padrão” na
neurociência, cf. S. PINKER, The Language Instinct, The New Science of Language and
Mind, Londres, Penguin, 1994; P. CARRUTHERS, The Architecture of the Mind: Massive
Modalarity and the Flexibility of Thought, Nova York, Oxford University, 2006; E.
MARGOLIS e S. LAURENCE, Concepts: Core Readings, Cambridge, MIT, 1999.
[65]
Leibniz, respondendo à teoria de John Locke, busca moderar este total
alheamento do sujeito por meio de sua Lei da Continuidade, afirmando que o objeto e a
reprodução do mesmo não podem ser completamente semelhantes, pois onde quer que se
procure há “pequenas percepções” separando gradativamente um e outro. Além disso,
deveria haver algo inato sujeito, como Ser, Unidade, Substância, Duração, Mudança, Ação,
Percepção, etc – (G. W. LEIBNIZ, Novos Ensaios sobre o entendimento humano, Nova
Cultural, São Paulo, 1988, p.10).
[66]
L. WITTGENSTEIN, Philosophical Investigations, 3ª ed., G.E.M., Anscombe,
Blackwell, 1958. Crítica semelhante é feita por Michael Dummet ao questionar a
possibilidade de explicar o conhecimento com uma linguagem que, de antemão, já possui
os símbolos cognitivos deste conhecimento. O esquema de linguagem/metalinguagem
inaugurado por A. Tarski indicaria que a linguagem que explica o conhecimento deve ser
necessariamente mais “rica” do que a linguagem-objeto. A consequência seria absurda:
seria necessário um conhecimento “maior” do que o conhecimento humano para explica-lo
– (M. DUMMET, Seas of Language, Oxford, Oxford University, 1993; A. TARSKI, The
Semantic Conception of Truth, 1944, trad. Port. C. Braida, A concepção semântica da
verdade, São Paulo, Unesp, 2007)
[67]
Com o intuito pragmático de uma definição, Joseph Raz formula quais seriam
as tarefas envolvidas na busca por este conceito: 1-Estabelecer condições para o
conhecimento envolvido no completo domínio de um conceito, que é o conhecimento de
todas as características essenciais da coisa da qual é um conceito. Esta primeira tarefa
determina de que coisa o conceito é um conceito. Não se pressupõe, aqui, alcançar-se um
conhecimento total do objeto, tarefa em muitos casos impossível, mas as condições para tal
conhecimento, o que é diferente. É bastante plausível dizer que, por exemplo, o
conhecimento da gramática, em sua totalidade, depende da condição inicial de se ter acesso
a um determinado corpo linguístico com uma lógica intrínseca. 2-Explicar a compreensão
envolvida no completo domínio do conceito. A compreensão deriva da atividade humana a
partir de tais condições anteriormente estipuladas, envolvendo, por conseguinte, o exame
do próprio conhecimento humano. É uma tarefa estritamente ligada a epistemologia. 3-
Explicar as condições para a obtenção mínima de um conceito, i.e., aquelas propriedades
essenciais e não essenciais daquilo para o qual o conceito é um conceito, conhecimento de
quais dessas propriedades são necessárias para que uma pessoa tenha o conceito,
independentemente do quanto incompleto possa ser seu domínio do conceito. O que Raz
chama de “obtenção mínima de um conceito” deixa claro a concepção filosófica de que não
é preciso alcançar o conhecimento completo das características para se ter um conceito do
objeto, como ocorre cotidianamente com a grande parte dos conceitos. Deixa aberta a
possibilidade de pessoas conhecerem conceitos ainda que não sejam capazes de expor um
conhecimento completo de suas características. 4-Explicar as capacidades requeridas para a
obtenção mínima de um conceito. Novamente, aqui, a obtenção mínima de um conceito
que permita seu uso. Raz salienta que a capacidade de compreensão não se restringe a
habilidades verbais - (J.RAZ, “Can be a theory of Law?”, 2005, trad. esp. R. S. Brigido,
“Puede haber una teoría del derecho?” in “Uma discusión sobre la teoría del derecho”
Madrid, Marcial Pons, 2007, p. 49-56).
[68]
Uma linha contemporânea se pensamento aplica o pensamento fregeano
apenas ao equiparar sua noção de sentido com os “conceitos”. O filósofo alemão, todavia,
não fazia esta equiparação. Para a discussão dos conceitos como “fregean senses”, v. C.
PEACOCKE, A Study of Concepts, Cambridge, MIT, 1992; E. ZALTA, Fregean Senses,
Modes of Presentation, and Concepts in Philosophical Perspectives, 15, p.335-59. As
críticas aos paradigmas anteriores são fundadas em contraexemplos de conceitos cuja
representação e habilidade não se conformam à realidade, como a identidade de “Eric
Blair” e “George Orwell”, o mesmo nome para um só referente e ainda assim há um
“ganho cognitivo” ao equiparar ambos. Pode haver, além disso, conceitos sem
representação mental exata, como “fótons”, ou cuja habilidade nos seja desconhecida.
[69]
G. FREGE, Über Begriff und Gegenstand, 1892, trad. port. de P. Alcoforado,
Sobre o conceito e o objeto, in Lógica e Filosofia da Linguagem, São Paulo, Edusp, 2009,
p. 111-129.
[70]
G. FREGE, Was ist eine Funktion?, 1904, trad. port. de P. Alcoforado, Que é
uma função in Lógica e Filosofia da Linguagem, São Paulo, Edusp, 2009, p. 96.
[71]
Embora utilizado por Frege em sentido lógico, o termo “saturar” (sättingen)
guarda semelhança com seu uso na química, ou seja, saturar uma solução significa
completar o solvente com o máximo de soluto possível, sem aumento do volume. De
maneira similar, a descrição do fenômeno o “completa”, por assim dizer, até um limite
máximo alcançado na correspondência plena de todas suas propriedades.
[72]
A reversibilidade do objeto e predicado tem o mesmo valor lógico do
conectivo bicondicional. A ambiguidade representaria uma inadequação do predicado, seja
por limitação ou excesso, o que demonstra a invalidade do conceito. Equivale ao que
Aristóteles afirma nos Tópicossobreaspropriedades: “‘Propriedade’ é um predicável que
não explicita a essência de uma coisa, mas que lhe pertence em exclusivo e pode ser
predicado convertivelmente acerca da coisa” – (ARISTÓTELES, Tópicos, trad. port. L.
Condinho, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2007, trecho 102ª, p.239)
[73]
Naturalmente, a sentença de O. W. Holmes deve ser contextualizada e seu
sentido aprofundado. Utiliza-se aqui sua célebre frase apenas ilustrativamente.
[74]
J. CARBONNIER, Droit civil – Introduction, Paris, PUF, 1988, p.35.
[75]
A respeito da discussão linguística e histórica a cerca do papel fundamental
dos artigos definidos como “sementes” do pensamento abstrativo, logo, racional e
científico, cf. B. SNELL, Die Entdeckung des Geistes. Studien zur Entstehung des
europäischen Denkens bei den Griechen, 1946, trad. ingl. T. G. Rosenmeyer, The
Discovery of the mind - The greek origins of european thought, Cambridge, Harvard
University, 1953, p. 227-29. Em Frege, o uso do artigo definido funcionará como teste
prático na verificação do conceito como tal.
[76]
Cumpre salientar que o conceito/função é necessariamente incompleto,
insaturado, ou seja, dependem do argumento/objeto para existirem. A conclusão é que não
se pode prescindir de nenhum dos aspectos do direito, tomado enquanto objeto, se
quisermos buscar seu conceito. Qualquer redução à sociologia, psicologia ou mesmo ao
formalismo está de antemão condenado.
[77]
G. FREGE, Sobre o conceito e o objeto in Lógica e Filosofia da Linguagem, p.
114.
[78]
Em sentido semelhante, Canaris descreve a correspondência entre sistemas de
conhecimento e sistemas do objeto de conhecimento, e a necessária correspondência entre
ambos – (C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e Conceito de Sistema no Direito,
p.13).
[79]
É o caso de Alexy, ao tratar do conceito de direito tomando por parâmetros
três elementos: a legalidade, a eficácia social e a correção material. Este tipo de elaboração
teórica já toma por pressuposto que esses elementos sejam constitutivos do objeto. Os três
elementos funcionam como critérios dentro de outras teorias (positivistas, jusnaturalistas e
jusracionalistas), as quais Alexy apenas generaliza e ao final combina com outros critérios
para chegar a uma definição – (R. ALEXY, Begriff und Geltung des Rechts, 2ª ed, 2005,
trad. port. G.B.Mendes, Conceito e Validade do Direito, São Paulo, Martins Fontes, 2010,
p.15, 151-55). É exatamente o que se busca evitar nesta tese: um conceito sobre conceitos.
Embora a estratégia de estabilização e unificação do conceito seja semelhante ela difere no
fazer referência às fontes autoexpressiva no que elas representam do objeto. O conceito
trazido por cada fonte só pode ter papel secundário.
[80]
Afirma Gerhart Husserl que: “Diversamente de outros produtos humanos – por
exemplo, de um objeto físico -, a norma jurídica, desde o momento que existe, que está aí,
não é de modo nenhum independente do comportamento dos homens a que diz respeito” E
em seguida: “(...) a norma jurídica insere-se no tempo histórico. O tempo não está imóvel, e
a norma jurídica acompanha-o por assim dizer no seu movimento” (G. HUSSERL, Recht
um Zeit, 1955, p. 23 apud K. LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1991, trad.
port. de J. Lamego, Metodologia da Ciência do Direito, Calouste Gulbenkian, 3ª ed,
Lisboa, 1997, p. 152-57). Este filósofo, seguindo a escola fenomenológica de seu pai,
buscava estabelecer uma região ontológica do direito, assim como se afirmava possível nas
demais ciências. Sua estratégia foi “a elaboração de um sistema de puros conceitos
fundamentais e supra-temporais, que formam uma região de possibilidades apriorísticas do
direito”. Vai no sentido da busca por núcleos de sentido que guardem algo de
transcendental, que superem, por assim dizer, as divergências históricas dos diferentes
sistemas jurídicos. É uma tentativa que qualificamos aqui por transcender aos elementos
cronotópicos. A tensão fundamental inerente a um conceito de direito é, portanto, entre sua
universalidade (seja ela lógica, como Gerhart Husserl buscou por meio dos conceitos, seja
ontológica, como propõem algumas corrente éticas) e seu aspecto positivo, determinável no
tempo e no espaço. Tal aspecto positivo tende a esta universalidade buscando capta-la
plenamente. Partindo do pressuposto de que se trata ontologicamente do mesmo objeto
presente enquanto experiência universal na realidade poder-se-á discernir nos diversos
conceitos já formulados um fundo de convergência, uma estrutura a qual todos os autores
partilham, uma mesma referência. No entanto, tomamos como suposição inicial de que não
será a universalidade lógica dos conceitos que abrirá possibilidade para a determinação
deste fundo de convergência, mas a experiência real e concreta baseada num conjunto
estável de problemas. (G. HUSSERL, Rechtskraft uns Rechtsgeltung, apud. J. de SOUZA
BRITO, Fenomenologia do direito e teoria egológica, Lisboa, Instituto Superior de
Ciências Sociais e Política Ultramarina, 1963, p. 31).
[81]
Sobre esta estratégia decididamente ruim, v. o comentário de Alf Ross sobre
um investigador do xadrez que busque aprender suas regras apenas assistindo as partidas –
(A. ROSS, On law and Justice, trad. Port. E. Bini, Direito e Justiça, Bauru, Edipro, 2000,
p.24-8).
[82]
“Ante a multiplicidade dos objetos do conhecimento e das conquistas feitas, é
natural que o nosso espírito, por seu processo eminentemente racional, deseje dar à
filosofia, uma unidade, torná-la, enfim, a ciência da unidade, a máxima unificação de todo
o nosso conhecimento” – (M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, p.
113). No mesmo sentido: “A filosofia é ambas as coisas: visão de si e visão do mundo”, e
adiante: “Em conclusão, portanto, podemos dizer que a filosofia é a tentativa do espírito
humano de atingir uma visão de mundo mediante a auto-reflexão sobre suas funções
valorativas teóricas e práticas” – (J. HESSEN, Erkenntnistheorie, 1924, trad. port. de J. V.
G. Cuter, Teoria do Conhecimento, 1ª ed., Martins Fontes, São Paulo, 2000, p.8-9).
[83]
A investigação da “opinião dos sábios” é a justificativa inicial de Aristóteles
nos Tópicos. A dialética seria a propedêutica da filosofia, mas também deve-se avaliar o
que elas tem de convincentes “por si mesmas” (Tópicos, I, 1, 100ª29-30; Refutações
Sofísiticas: 2, 165b3-4; Primeiros Analíticos: I, 1, 24b1-3). Por isso Oswaldo Porchat
afirma que a dialética é “prova e exame” das coisas conhecidas pela filosofia – (O.
PORCHAT, Ciência e Dialética em Aristóteles, São Paulo, Fundação Editora da Unesp,
2001, p.360).
[84]
Viehweg encontrou no filósofo italiano Giambattista Vico a exposição de uma
dualidade que permeia o pensamento ocidental: a retórica e a crítica. A antiguidade,
argumenta Vico, foi dominada pela retórica, o modo de pensar que partia de um senso
comum, i. e., o antigo conceito romano (sensus communis) das tradições da vida civil e
social. Este modo de pensar devia, segundo ele, ser retomado como uma forma de melhor
ensinar, motivo pelo qual o texto do italiano chama-se “De nostri temporis studiorum
ratione” (O caráter dos estudos do nosso tempo). A tradição da retórica baseada no senso
comum era ameaçada pelo desenvolvimento do cartesianismo, no qual Vico via um método
privado das virtudes que a retórica dispunha. O método da modernidade é a crítica, cujo
ponto de partida é um primum vero, um fundamento indeclinável sobre o qual se engendra
todo edifício teórico de determinada teoria. A estrutura de tal teoria é a própria lógica, que
entrelaça as premissas silogisticamente. A constatação inicial sobre a forma mentis dos
juristas desde o jusracionalismo liga-se, portanto, a esta descrição feita por Vico. Numa
preocupação primordialmente educacional e didática dos jovens da época, o italiano passa a
aludir aos benefícios da retórica, tomando parte nela, ao descrevê-la como uma trama de
pontos de vista (topoi) que “proporciona sabedoria, desperta a fantasia e a memória” e
ensina a pensar aderindo apenas provisoriamente a certas opiniões que podem, sem
prejuízo de uma coerência intrínseca, serem posteriormente atacadas. No fundo, esta
distinção tem por base a teoria do conhecimento de Vico, a qual toma por criteriologia da
verdade aquilo que pode ser reconduzido à criação humana, isto é, somente aquilo que o
homem criou pode ser conhecido completamente por ele, afastando as pretensões de uma
cadeia dedutiva que abarque todo o universo – (B. CROCE, La filosofia di Giambattista
Vico, 1866, trad. ingl. R. G. Collingwood, The philosophy of Giambattista Vico, Londres,
Howard Latimer, 1913, p. 21-36). Assim, uma vez resignado ao conhecimento de sua
própria obra, nada impede que a especulação sobre a obra do Criador tenha por objetivo, no
máximo, conclusões verossímeis, bem ao modo do pensamento retórico. Vico então
complementa o modo de pensar “crítico” adicionando-lhe a antiga “tópica” – a arte de
encontrar argumentos, que desenvolve o sentido para o que é convincente. A educação dos
jovens não poderia se iniciar pelo pensamento crítico sem antes possuir um conteúdo
sedimentado de conhecimentos plausíveis, obtidos criativamente pela tópica. Há na
retórica, além disso, uma abertura para o desenvolvimento ético: tomar decisões práticas
exige a subsunção do universal ao particular, no qual são tomadas por universais o
conjunto das virtudes éticas gregas ou o sensus communis romano. Ainda nos moldes do
que Aristóteles se referia como phronesis, a decisão prática de agir depende de
circunstâncias variadas as quais não se submetem a um conhecimento de tipo téorico.
Gadamer, em comentário ao sensus communis, descreve que este saber tão aclamado pela
Antiguidade era, além de um modo de se pensar e argumentar, a chave para compreensão
da unidade comunitária humana: “Vico acredita que o que dá diretriz à vontade humana
não é a universalidade abstrata da razão, mas a universalidade concreta representada pela
comunidade de um grupo, de um povo, de uma nação, do conjunto da espécie humana. O
desenvolvimento desse senso comum é, por isso, de decisiva importância para a vida” (H.
G. GADAMER, Wahrheit und methode, 1960, trad. por. F. P. Meurer, Verdade e método,
5. Ed. vol. 1, Petrópolis, Vozes, 2008, p. 57-8). Este conhecimento seria, por certo,
relacionado a virtude da prudência como meio capaz de manter a vida em sociedade. Não
escapa a Habermas que o procedimento tópico, baseado no senso comum, garante mais
solidez do que a ciência experimental poderia almejar no terreno das ciências sociais: “Em
sua polêmica contra a filosofia social de seu tempo, Vico antecipou uma tendência que se
impôs apenas hoje. A incerteza da ação cresce quanto mais estritamente se escolhe nessa
dimensão os critérios para a verificação científica”(J. HABERMAS, Theorie und práxis,
1963, trad. port. R. Melo, Teoria e praxis, São Paulo, Unesp, 2011, p. 88-9).Viehweg
compreende a necessidade de retomar então o caminho que o modo de pensar apontado por
Vico, que o jurista alemão identifica como a ‘tópica’, percorreu desde seu surgimento na
Antiguidade. O faz, no entanto, sem pretensão historiográfica, mas tendo em vista os
fundamentos da teoria que pretende estabelecer. Buscaremos, aqui, oferecer dados
suficientes para a investigação e fundamentação da tópica, que mais tarde nos servirá como
fundamento do pensamento por problemas – (T. VIEHWEG, Topik und Jurisprudenz,
1953, trad. port. T. Ferraz Jr., Tópica e Jurisprudência, Brasília, Editora Universidade de
Brasília, 1979, p. 21).
[85]
O raciocínio dialético em Aristóteles surge, segundo Viehweg, como uma
consequência de questões retóricas, as quais, diferentemente da lógica, não possuem o
caráter apodítico. Giovanni Reale aponta os Analíticos primeiros, livro no qual a lógica
aristotélica é apresentada, como uma espécie de centro de gravidade ao redor dos quais
orbitam os Tópicos, os silogismos dialéticos; segundo ele, a primazia da descoberta dos
silogismos por Aristóteles era consequência de uma reflexão a partir dos procedimentos
iniciados pelos sofistas, bem como utilizado por Sócrates – (G. REALE, Introduzione a
Aristotele, 1975, trad. port. E. Aguiar, Introdução a Aristóteles, Rio de Janeiro,
Contraponto, 1ª edição, 2012, p. 155). A retórica aparece como mera atribuição prática,
como um manual para o orador, seguindo mais ou menos a mesma destinação que a Poética
recebeu em relação aos escritores literários – (D. ROSS, Aristotle, 6ª ed. Nova York,
Routledge – Taylor and Francis Group, 1995, p.284-304). Um tanto contrariamente à
hipótese de predomínio da lógica no pensamento aristotélico, Eric Weil ressalta que apesar
do filósofo ter inventado os silogismos como forma de dedução apodítica ele raramente os
utiliza em suas obras, preferindo a dialética como meio de investigação dos princípios;
estes surgem por um aclaramento da discussão propiciado pelo confronto de hipóteses
contrárias (E. WEIL, La place de la logique dans la pensée aristotélicienne, Revue de
Métaphysique et de Morale, 56 ed., Ano n.3, 1951, pp. 283-315).
[86]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, cit., p. 33.
[87]
Em texto introdutório, Tércio Sampaio Ferraz Júnior diz que a tópica não é um
método, mas “um estilo, (...) não é um conjunto de princípios e avaliação da evidência,
cânones para julgar a adequação de explicações propostas, critérios para selecionar
hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir deles e em direção deles” - (T.
SAMPAIO FERRAZ JR. Introdução in T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, cit., p.3).
[88]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, cit., p. 34.
[89]
A definição de “problema” apresentada por Viehweg é talvez o ponto mais
criticado de sua teoria. Garcia Amado, em crítica à definição escreve: “la noción de
problema es excesivamente vaga pues “la mera concesión de importancia prioritaria al
pensamiento de problemas no basta de por sí para caracterizar de forma unívoca ni
excesivamente original uma dirección metodológica o una teoría del derecho (…) uma
caracterización que debería estar dotada de una mayor especificidad de la que supone la
identificación de problema con toda cuestión que admita más de una respuesta, como
hemos visto que lo entiende Viehweg” – (G. AMADO, Teorías de la tópica jurídica,
Madri, Civitas, 1988, p. 114).
[90]
Em Aristóteles, a indução e dedução encontram-se em Tópicos, I, 12, 105ª –
(ARISÓTELES, Tópicos, p. 250).
[91]
A descoberta é direcionada para “lugares”, a título de premissas, que sejam
verdadeiros ou aceitos pelo conhecimento geral – (ARISTÓTELES, Tópicos, VIII,1, 155b,
p.465).
[92]
ARISTÓTELES, Tópicos, I,1, 102ª, p.238.; Id. I,1, 150b, p.256.
[93]
As categorias surgem como gêneros superiores, dentro dos quais os
predicáveis podem ser enquadrados. A contraposição entre sistemas e retórica poderia ser
objetada neste ponto. É difícil discordar que a organização sucinta e suficiente das dez
categorias (essência, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado, ação,
paixão) e a relação destas com os quatro predicáveis (propriedade, acidente, gênero,
definição) não torna os Tópicos um sistema – (ARISTÓTELES, Tópicos, I,1, 103b, p.244).
[94]
ARISTÓTELES, Tópicos, I,1, 107ª, p.258.
[95]
Aristóteles descreve o termo “problema dialético” como “”uma tomada de
posição que leva a decidir entre escolha e rejeição, ou entre verdade e conhecimento,
tomada quer por si mesma, quer como auxiliar na procura da solução de outras questões
similares; trata-se de questões acerca da qual as pessoas, ou não têm opinião definida, ou a
maioria pensa de maneira oposta aos conhecedores, ou estes de maneira oposta à maioria,
ou mesmo uns em oposição a outros” – (ARISTÓTELES, Tópicos, I,1, 104b, p.248).
[96]
O próprio Aristóteles estabelece uma limitação ao uso da dialética. Sua
utilidade aparece quando o interlocutor “está em dificuldade em chegar a uma conclusão,
sem que mereça qualquer censura, ou careça de afinar os sentidos”. Como exemplo de
problemas censuráveis, o filósofo apresenta o problema de honrar os deuses. A afinação
dos sentidos bastaria para problemas cuja evidência esteja na percepção, como o branco da
neve (ARISTÓTELES, Tópicos, I,1, 105a, p.250). Fica claro, desde o início, que a dialética
aristotélica na qual Viehweg se baseia nada tem de polêmica, tampouco serve de
confirmação para problemas triviais. Sua finalidade parece estritamente prática, com uma
preocupação eminentemente voltada aos resultados “verdadeiros”. Sobre a discussão da
verdade a partir da dialética v. O. PORCHAT, Conhecimento e Dialética em Aristóteles,
p.374-395).
[97]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência., p. 79-83.
[98]
Viehweg cita ainda, a título de exemplo, a Lógica de Port Royal (1662) e um
obscuro livro chamado “Tópica ou Ciência da Invenção” escrito em 1816 por Christian
August Lebrecht Kastner. Interessante notar alguns dos topoi reunidos por este último
livro: etimologia, sinonímia, homonímia, definição, gênero, espécie, diferença, qualidade,
índole, todo, parte, causa, fim, testemunhos, exemplos. (T. VIEHWEG, Tópica e
Jurisprudência., p. 37).
[99]
A obra de Aristóteles viria a interessar a Cícero. O filósofo estoico lhe daria
uma releitura facilitada de modo a atender os objetivos práticos dos debates, especialmente
jurídico. É importante notar a distinção entre os dois. Em Aristóteles trata-se da descrição
de um procedimento de investigação filosófica, virtualmente aplicável a qualquer ramo do
conhecimento; na obra ciceroniana a tópica ganha uma aplicação voltada ao terreno
retórico, cujo objetivo é menos uma perquirição isenta da verdade do que um
convencimento do interlocutor. O próprio termo ‘retórica’ ganharia proeminência sobre a
chamada dialética no sentido Aristóteles lhe atribuía. A confusão se tornaria ainda maior
com a designação dada às artes liberales romanas: ‘retórica’ mantinha o sentido da disputa
pelo convencimento, mas por ‘dialética’ entendia-se o modelo formal de silogismos
apresentado na tradição grega como ‘analítica’. A Idade Média aderiu ao modo de pensar
pela tópica, elegendo os escritos de Cícero o grande modelo das glosas e comentários do
baixo medievo. A recusa à sistematização foi o destaque do período: optando pela tópica o
direito romano era discutido e modificado à luz de situações inéditas, preparando o terreno
para o direito comum – (T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência., p. 65). O trivium da
Idade Média retornaria ao termo ‘lógica’ para designar o raciocínio axiomático. A
‘dialética’, por sua vez, exaurida do conteúdo que passava para a lógica, só reapareceria em
sentido já distante daquele utilizado por Aristóteles, como atesta este trecho em Santo
Agostinho: “[A dialética] proporciona a metodologia para ensinar e aprender; por ela a
própria razão se mostra e se revela o que é, o que deseja o que pode. Dá certeza do saber;
somente ela não apelnas quer, mas também pode fazer com que tenhamos conhecimentos”
– (AGOSTINHO, Da ordem, cit., p. 237).
[100]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência., p. 42-3.
[101]
A “aceitação” da contraparte no diálogo é um ponto sobre o qual a crítica de
Canaris acusa a tópica de “impraticável” para a ciência jurídica. As premissas não estão
disponíveis para aceitação ou recusa pois constituem o direito objetivo e, portanto, não
careceriam de legitimação por via do “parceiro na conversa” – (C. W. CANARIS,
Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 5ª ed., cit., p.255-6).
[102]
Um modelo esquemático, o de investigação tópica, formulado e utilizado por
São Tomás de Aquino, nos fornecerá um exemplo deste modo de pensar: 1—urutum –
fixação do problema; 2—videtur quod – pontos de vista próximos ;3—sed contra – pontos
de vista contrários; 4—respondeo dicendum – solução. Quase idêntico, nota Viehweg, é o
esquema dos comentários jurídicos de Bartolo: 1- quarietur na – fixação do problema; 2
—et videtur quod – pontos de vista próximos; 3—in contrarium facit – pontos de vista
contrários; 4—ad solutionem quaestionis – solução – (T. VIEHWEG, Tópica e
Jurisprudência., p. 66).
[103]
“Quando o raciocínio resulta de proposições primordiais ou verdadeiras ou de
princípios cognitivos derivados de proposições primordiais e verdadeiras, diz-se que temos
uma demonstração; ao raciocínio obtido a partir de proposições geralmente aceites
(plausíveis, fundadas na opinião comum) chama-se silogismo dialético” –
(ARISTÓTELES, Tópicos, 100b, p. 233).
[104]
Para Viehweg, o ius civile, por exemplo, se situaria como uma técnica, não
uma ciência. O modo de pensar lógico-dedutivo dos sistemas existia na Antiguidade,
notadamente no terreno da matemática euclidiana, contudo, segundo o autor, não era esta
mentalidade predominante do jurista romano, que “coloca um problema e trata de encontrar
argumentos. Vê-se, por isso, necessitado de uma techne adequada. Pressupõem
irrefletidamente um nexo que não pretende demonstrar, porém dentro do qual se move.
Esta é a postura fundamental da tópica”. A ‘demonstração’ cede lugar aos argumentos ditos
inventivos. A busca de premissas, com apoio nos pontos de vista já provados, é uma
abertura investigativa que pressupõe deparar-se adiante com o inusitado e, por assim dizer,
‘inventar’ a solução. Por isso, completa Viehweg, o trabalho do jurista não se limita a uma
aceitação do estabelecido – dito ‘dogmático’ -, mas como algo em constante renovação e
reconstrução – (T. VIEHWEG, Id., p. 55).
[105]
T. VIEHWEG, Id., p. 39.
[106]
T. VIEHWEG, Ibid., p. 40-44.
[107]
T. VIEHWEG, Ibid., p. 87-90.
[108]
Viehweg chama de este conjunto de ‘sistema Z’, mas estabelece critérios de
completude e compatibilidade que nos permitem inequivocamente chamar de “axiomas”,
mantendo a terminologia adotada por Losano na obra “Sistema e estrutura do direito”.
[109]
T. VIEHWEG, Id. p. 78.
[110]
A vinculatividade normativa baseada em dispositivos válidos ficou um longo
período praticamente extinta na Alta Idade Média, só retornando devido ao alcance
filosófico da doutrina tomista ao reabilitar o papel da criação legislativa enquanto fonte
predominante no pensamento jurídico. Sobre o século XII, afirma Villey: “É legítimo
confiar a uma classe de peritos, de sábios e, no que se refere aos detalhes, de “prudentes”, a
tarefa de ler a natureza e de procurar extrair dela as normas que contém em seu seio: e
essas normas valerão por si mesmas, devido a natureza que elas exprimem (jus natura),
simplesmente porque traduzem, de maneira mais ou menos adequada, a ordem contida na
natureza, sem que precisem, para gozar de autoridade, de nenhuma ordem do estado”. O
Corpus Iuris Canonici foi a primeira obra a tirar proveito da inovação, com a incorporação
da legislação canônica pelo papa Bonifácio VIII – (M. VILLEY, La Formation de la
pensée juridique moderne, trad. port. C. Berliner, A formação do pensamento jurídico
moderno, 2ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2009, p. 188). Em Santo Agostinho, a
deliberação sobre obediência às leis positivas injustas ainda aparece como difícil
conclusão, sustentada teologicamente com a prevalência da cidade divina – (op. cit., p. 86-
91).
[111]
Esta seria a prova “ad absurdum” por meio da qual seria possível objetar a
crítica de “insuficiência” da tópica diante da validade. Novamente Canaris criticará o
procedimento tópico como avesso à estabilidade das normas, garantida pelo requisito da
validade. Uma lei “vale” independentemente da “opinião dos sábios”, da “maioria” ou do
“sensos communis”. Por isso a tópica “desconhece, no fundamental, a essência da Ciência
do Direito” – (Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema da Ciência do Direito, cit., p.
260). Canaris, todavia, ignora que a própria deliberação legislativa é, em si, um
procedimento evidentemente tópico. Viehweg tem clara consciência da tópica legislativa
como prova sua argumentação “ad absurdum” do legislador incumbido de legislar para
cada caso específico, criando um sistema dedutivo pleno. Inadmissível, portanto, a crítica
de Canaris que “Viehweg (...) não distingue, de modo reconhecível, entre a atividade do
legislador e a do juiz, de tal modo que fica com a impressão de que as suas considerações
se mantêm, primacialmente, ligadas à primeira” – (op, cit., p. 261-2).
[112]
T. VIEHWEG, Id., p. 84-5.
[113]
A ideia inicial do pensamento problemático baseado na distinção de Nicolai
Hartmann é rastreada por Canaris na obra de Max Salomon. Foi objetivo de Salomon criar
um sistema invulnerável mudanças propondo um conjunto de axiomas sob a forma de
problemas permanentes, sobre os quais haveria correspondentes respostas transigentes a
depender das circunstâncias históricas – (M. SALOMON, Grundlegung zur
Rechtsphilosophie, 2ª ed., 1925, apud C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e conceito
de sistema na ciência do direito, 5ª ed., cit., p. 45). O prórpio Canaris objeta contra o
desenvolvimento de tal sistema afirmando nada torna lícito concluir que somatório de
perguntas resulta numa unidade interna – requisito, aliás, qualquer sistema lógico. Além
disso, a formulação de perguntas requer uma cognição prévia sobre o assunto sobre a qual
dizem respeito e, portanto, segundo Canaris, a formulação de um sistema de problemas
pressupõe uma definição prévia do que seja o direito. Max Salomon trabalha o problema da
autonomia da vontade justamente de um ponto de vista do direito privado, ou seja, as
perguntas são formuladas, mas as respostas já são em grande medida conhecidas. Canaris
atenta para o efeito positivo de um sistema assim construído permitir que “sub-questões”
apareçam, possibilitando, agora sim, novas investigações antes desconhecidas sobre o
tema. Na esteira do que foi dito acerca da tópica, é necessário salientar que Canaris não
percebe estar tratando em sua refutação justamente daquilo que Viehweg alertou sobre a
consequência da elaboração de problemas em torno de um tema, como fora consagrado na
antiguidade pelo uso da retórica. Canaris nota o efeito “inventivo” acarretado pela
formulação de perguntas, mas prefere ater-se à nuance lógica do encadeamento axiomático
de perguntas, respostas, subperguntas e subrespostas – (C. W. CANARIS, op., cit., p. 48).
[114]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, cit.,p. 91.
[115]
A teoria do direito parece estar sempre um passo atrás da produção filosófica
atual. Villey atribui essa “defasagem” à “rotina dos juristas, que, por não terem de cultvar
eles mesmo a filosofia, geralmente só recebem seus ensinamentos com atraso e por canais
indiscretos, deformam-nos e os endurecem, e nunca os obedecem tão bem como quando
deixaram de ser professados por filósofos” – (M.VILLEY, A formação do pensamento
jurídico moderno, 2ª ed., cit., p. 173).
[116]
E. VOEGELIN, Structures in Consciousness, York University, Toronto,
1978, in Voegelin Reseach News, Vol. 2, n. 3, 1996, p.3.
[117]
“Quien se acerca, em cambio, a um sistema jurídico com el metodo
positivista de la observación de lós hechos y de su conexión causal, verá cómo el objeto de
su estúdio se le escapa de entre lãs manos, y cómo em lugar del Derecho le aparecerá el
“mecanismo jurídico”, es decir, el acontecer externo y visible que tiene lugar em la
realización del derecho: em lugar de la ciência del Derecho, tendremos la “sociologia
jurídica” – H. WELZEL, Naturrecht um Materiale Gerechtigkeit,1962, trad. esp. F. G.
Vicén, Introducion a La Filosofia Del Derecho, 2ª ed., Aguilar S. A. de Ediciones, Madri,
1971, p. 193.
[118]
“Lo notable (...) para el espiritu peculiar del positivismo es la psicologización
absoluta de lós contenidos espituales de significación para la materia jurídica – H.
WELZEL, Introducion a La Filosofia Del Derecho, p. 192.
[119]
O problema não escapa a Canaris: “No entanto concluir, sem mais, pela
existência da unidade do Direito, a partir da natureza científica da jurisprudência ou do
postulado metodológico do entendimento unitário, conduz a uma petitio principii” – (C. W.
CANARIS, Pensamento sistemático e Conceito de Sistema no Direito, p.15).
[120]
O debate sobre ciência natural e a delimitação de seu objeto pode ser ainda
complementado por Nicolai Hartmann e o chamado “fundo metafísico” das ciências: a
precisão e a certeza dos enunciados científicos são decorrência da aplicação matemática,
esta toma os objetos apenas por suas quantidades supondo a mensurabilidade unívoca dos
mesmos, incapaz que é de determinar a categorias que os determinam, tarefa
eminentemente metafísica. Assim, não pode a física determinar o que é o tempo ou o
espaço, nem a química definir o que é matéria ou mesmo a matemática definir o que é
número sem recorrer a um método mais elevado - (N. HARTMANN, Zur Grundlegung der
Ontologie, 1934, trad. esp. J. Gaos, Ontologia, Tomo I – Fundamentos, Fondo de Cultura
Economica, México, 1965, pp.7-8).
[121]
Em mesmo sentido, Radbruch defende que o conceito de direito pode ser
colhido pela ciência jurídica, mas apaenas a filosofia do direito pode fundamentá-lo. A
indução deveria ser preterida diante da possibilidade de uma dedução da ideia (Idee) do
direito. Esta seria, por sua vez, a própria ideia de Justiça – (G. RADBRUCH,
Rechtsphilosophie, trad. port. L. Cabral de Moncada, 6ª ed., Coleção STVDIVM: temas
filosóficos, jurídicos e sociais, Armênio Amado ed., Coimbra, 1997, p. 85).
[122]
Pode-se encontrar a distinção dos subconjuntos de maneira menos próxima à
teoria dos sistemas na explicação de Tércio Sampaio Ferraz Jr. com os chamados “objetos-
modelo” equivalentes ao subconjunto A e os “modelos teóricos” equivalentes ao
subconjunto T de teoremas. No entanto, para ele, os “objetos-modelo” extravasam o
enunciado jurídico das normas atingindo também as condutas e conflitos humanos. Cf. T.
S. FERRAZ Jr., Ciência do Direito, São Paulo, Atlas, 2ªed. 2012, p. 105.
[123]
É interessante notar que Kant, antes de qualquer positivismo, tenha realizado
uma espécie de “marco” na ciência do direito ao se adiantar na ideia de que sua
cientificidade deveria ser pressuposta, e aí então perguntar o que a justifica.. E. KANT,
Philosopfie des Rechts, 1995, p.836 apud C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e
Conceito de Sistema no Direito, p.71. Ainda hoje se pode verificar a imorredoura e
constante busca positivista pela conciliação de ciência e filosofia, sujeitando esta aos
pressupostos da primeira com vistas a alcançar os mesmos resultados.
[124]
Wilhelm Ostwald, ao tratar da “determinidade” dos objetos físicos, já alertava
a impossibilidade de prever com perfeita exatidão sequer a trajetória de uma pedra, se
restringindo a almejar um modelo do lançamento horizontal o qual, desprezando inúmeras
variáveis, chega a uma expectativa provável tanto mais exata quanto maior o número de
variáveis levadas em conta. Alerta que se isto é assim para um fato isolado com um número
limitado de interferências quiçá para um dado experimental que envolva o ser humano –
(W. OSTWALD, Bücher der Naturwissechaft, 1900, trad. ing. T. Seltzer, Natural
Philosophy, Henry Holt and Company, New York, 1910, p.31).
[125]
Stammler parece contemplar a questão de maneira similar ao abordar o
conceito de Direto como “uma pura maneira ou modo condicionante para a ordenação da
consciência volitiva, e da qual depende toda a possibilidade de qualificar como jurídica
certa questão”. R. STAMMLER, Theorie der Rechtswissenschaft, 1923, apud K. LARENZ
– Metodologia da ciência do direito, p.152
[126]
A técnica da indução surgia como possibilidade de ser aplicada do mesmo
modo como obtivera êxito nas ciências da natureza, fazendo surgir o que se chamaria
“ciências do espírito”. A primeira aparição deste termo encontra-se numa tradução da
Lógica de John Stuart Mill com o sentido de uma aplicação do mesmo método indutivo das
ciências da natureza para fenômenos e processos individuais. Por trás disso há a confiança
que a regularidade e uniformidade dos objetos estudados pela primeira se repetiriam na
segunda, tornando assim lícito supor que cada fato tomado individualmente é nada mais
que um caso de uma regra geral. Abrir-se-ia mão das antigas formulações metafísicas em
busca de causas e efeitos, para limitar o procedimento à verificação das regularidades. Algo
disso é verdadeiro: podemos apontar contribuições que foram alcançadas por métodos
basicamente indutivos, como a corrente behaviorista da psicologia. Mas nem tudo parece se
conformar às expectativas da equiparação por meio do método. Abrindo caminho para sua
concepção hermenêutica das ciências do espírito, Gadamer aponta: “A experiência do
mundo sócio-histórico não se eleva ao nível de ciência pelo processo indutivo das ciências
da natureza. O que quer que signifique ciência aqui, e mesmo que em todo conhecimento
histórico esteja incluído o emprego da experiência genérica no respectivo objeto de
pesquisa, o conhecimento histórico não aspira tomar o fenômeno concreto como caso de
uma regra geral. O caso individual não se limita a confirmar a legalidade, a partir da qual,
em sentido prático, se poderia fazer previsões. Seu ideal é, antes, compreender o próprio
fenômeno na sua concreção singular histórica – (H. G. GADAMER, Verdade e método,
p.38-9).
[127]
Ou, nas vertentes escandinavas e americanas, a experiência se sujeita a uma
descrição pragmática para servir de objeto à análise linguística. O que dá no mesmo: é uma
experiência abstraída de variáveis concretas, apta apenas para a análise de tipo indicado. É
uma experiência sem experiência.
[128]
Na exposição de Lourival Vilanova: “Mas, no fundo, a teoria geral do direito
é positivismo, um aspecto particular do positivismo como teoria filosófica: o positivismo
jurídico. Por isso, os mesmos caracteres gerais do positivismo vamos encontrar no
positivismo jurídico. O princípio fundamental de sujeição ao dado, de limitar o alcance do
conhecimento ao fenômeno, ao que é objeto de experiência, repercute na ciência do direito,
como a exigência de estabelecer, para o conhecimento jurídico, o fenômeno jurídico, o fato
jurídico em sua pureza objetiva. (...) O fenômeno é o direito positivo, cujos limites não é
lícito ultrapassar. (...) Uma consequência necessária do positivismo é a negação da
metafísica” – (L. VILANOVA, Conceito de direito, in Escritos Jurídicos e Filosóficos, São
Paulo, Axis Mundi, 2003, p. 22.
[129]
H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, 2ª ed., p.2.
[130]
Nesse sentido, a crítica de Welzel: “Os conceitos científicos não são
construções diferentes de um material idêntico, valorativamente neutro, mas reproduções
de fragmentos parcelares de um ser ôntico complexo, que é em si mesmo, imanente,
portador de uma legalidade estrutural e valores diferenciados, e não receptor passivo de
valores e estruturas produzidos pela ciência” – (H. WELZEL, Naturalismus und
Wertphilosophie im Strafrecht, 1935, apud K. LARENZ – Metodologia da ciência do
direito, p.152).
[131]
O método cartesiano resultava de uma dúvida metódica da qual só escapava o
próprio cogito, excluindo, portanto, as circunstâncias históricas e valorativas como
possíveis alicerces das ciências. Ocorre que a passagem da existência do sujeito pensante
para os demais fundamentos de um conhecimento apodítico da realidade só é assegurado,
em Descartes, por meio do pressuposto da onibenevolência divina. É de se notar aqui o
salto argumentativo (coisa que escolástico algum acataria) que de forma alguma assegura
uma certeza imediata da realidade.
[132]
Admite-o, Kelsen: “No cerne da sua filosofia [referindo-se a Kant] eu via –
com ou sem razão – a ideia do sujeito que constrói o objeto no seu processo de
conhecimento. Minha autoconsciência permanentemente ferida pela escola e faminta por
satisfação encontrou evidentemente nessa interpretação subjetivista de Kant, na ideia do Eu
como o centro do mundo, a expressão filosófica adequada” – (H. KELSEN, Hans Kelsen
im Selbstzeugnis, trad. port. G. N. Dias et. al., Autobiografia de Hans Kelsen, 2ªed., Rio de
Janeiro, Forense Universitária, 2011, p. 38-9).
[133]
ARISTOTELES, Ética a Nicomaco, trad. port. A. Castro Caeiro, São Paulo,
Atlas, 2009, p. 20, trecho I, 1095ª14.
[134]
H. KELSEN, Teoria Pura do direito, 2ª ed., pp. 215-306.
[135]
Viehweg define os problemas como “toda questão que aparentemente permite
mais de uma resposta e requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo
com o qual toma o aspecto de questão que há de levar a sério e para a qual há que buscar
uma resposta como solução” - (T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, p. 34).
[136]
B. LONERGAN, Method in Theology, 1971, trad. port. H. Langone, Método
em Teologia, É Realizações, São Paulo 2012, p. 18.
[137]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia Concreta, É Realizações, São
Paulo, 2009, p.55.
[138]
Mario não aplica a decadialética à análise do direito. Suas considerações
sobre o tema estão elencadas de modo breve em Sociologia Fundamental e Ética
Fundamental. O autor aponta brevemente, em duas páginas, aspectos introdutórios do
tema, como o conceito de lei, as relações de direito e força, de direito com
desenvolvimento histórico do povo (em compasso com Savigny), o tema da
responsabilidade e das sanções – (M. FERREIRA DOS SANTOS, Sociologia Fundamental
e Ética Fundamental, 2ª ed., São Paulo, Logos, 1959, pp.239-41).
[139]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Logica e Dialética, 4ª ed., São Paulo, Logos,
1959, pp.237-51.
[140]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Métodos Lógicos e Dialéticos, v. III, 3ª ed.,
São Paulo, Logos Ltda, 1963, pp.149-65.
[141]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Lógica e Dialética, cit., p.241.
[142]
Sobre a discussão sobre os termos “necessidade” e “universalidade” na obra
aristotélica, em especial nos Analíticos Primeiros, v. O. PORCHAT, Ciência e Dialética
em Aristóteles, cit., p. 35-55.
[143]
O procedimento de elencar zonas de problemas, conforme buscamos
demonstrar, faz parte da tradição iniciada por Aristóteles (v. Tópicos, I, 4-11), Vico e
Viehweg. Em Aristóteles, especificamente, o “problema” (προβλήματα) é definido como
“um objeto de pesquisa que contribui seja para escolher e evitar seja para a verdade e
conhecimento”, Oswaldo Porchat comenta ser esta uma questão de ordem prática ou
teórica, ética ou “física” (O. PORCHAT, Ciência e Dialética em Aristóteles, cit., p.363, n.
157).
[144]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Lógica e Dialética, cit., p.243.
[145]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Lógica e Dialética, cit., p.244-9.
[146]
Sujeito e objeto, em tese, seriam categorias totais do conhecimento humano,
retomando o termo “ontognsoiologia” aplicado por Miguel Reale – (M. REALE, Filosofia
do Direito, 20ª ed., cit., p. 49).
[147]
O tema do ato e potência é aprofundado na obra “Sabedoria do Ser e do
Nada”, de Mário Ferreira, v. M. FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria do Ser e do Nada,
1ª ed., São Paulo, Matese, 1968, p. 153-226.
[148]
“Intensidade” e “Extensidade” são termos que Mário Ferreira empresta das
ciências naturais e aponta sua congruência descritiva em diversos filósofos, com destaque à
Descartes e Kant, passando para a ciência moderna em Macquome Rankine e Wilhem
Ostwald, v. Filosofia e Cosmovisão, cit., p. 165-178.
[149]
“Razão” e “Intuição” são tratados de maneira propedêutica em Filosofia e
Cosmovisão, cit., p.147-164.
[150]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Lógica e Dialética, cit., p.245.
[151]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Lógica e Dialética, p.247.
[152]
Tal erro é apontado por H. Kantorowicz na obra de K. Bergbohm: “El único
jurista que percibió este fallo en las discusiones habituales sobre el concepto de derecho
declaró que estaba preparado para avanzar en el mismo circulo, porque era algo
“absolutamente” inevitable” v. H. KANTOROWICZ, La definición del Derecho, p.36.
[153]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Lógica e Dialética, p.249.
[154]
É oportuna a distinção de Johannes Hessen entre objetividade e validade
universal, esta última decorrência exclusiva de pressupostos lógicos, das chamadas “leis do
pensamento”. A primeira, mais tangível na prática, decorre da evidência pessoalmente
vivida, válida não só para experienciais de caráter emocional como para o pensamento
conceitual também: “Objetividade e validade universal devem, portanto, ser muito bem
distinguidas. Muitas das objeções contra a intuição e o conhecimento intuitivo são feitas
exatamente em função da incapacidade de distinguir entre a objetividade e a validade
universal do conhecimento” - (J. HESSEN, Teoria do conhecimento, p.125).
[155]
É o caso da metafísica, cujo objeto não pode ser formalmente descrito sem
limita-la inadequadamente. O meio apreensível de seu campo de estudos pode senão ser
simbolizado por um círculo, isto é, aquilo que não tem começo nem fim.
[156]
É mérito de Hans Kelsen ter elaborado a útil distinção entre Rechstnorm
(norma jurídica) e Rechstgesezt (proposição jurídica). Esta última com o significado de
“juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma
ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas
condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas
consequências pelo mesmo ordenamento determinadas”. O discurso descritivo é mantido
sob os limites do método kelseniano, isto é, só interessa a consequência jurídica pré-
estipulada e a constatação de validade. Mas ainda assim a distinção revela a ruptura entre o
discurso prescritivo e descritivo no direito. (H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 80,
98-99).
[157]
Lord Kelvin definia como “Any space at every point of which there is a finite
magnetic force is called a field of magnetic force’ (…) ”. W. THOMPSON, “On the theory
of magnetic induction in a crystalline and non-crystalline substances”, Philosophical
Magazine 1, 1851, p. 179 apud E. McMULLIN, The Origins of the Field Concept in
Physics in “Physics in Perspective”, n.4, p.13-39, Birkhäuser Verlag, Basiléia, 2002, p. 13.
Interessante notar que, mesmo sendo um crítico do positivismo da virada do século XIX,
Mário Ferreira não abria mão de um profundo interesse pelas ciências naturais e sua
possível aplicação na filosofia. Tal uso de um termo da física não é diletantismo: em
Filosofia e Consmovisão vemos nos capítulos finais uma explicação filosófica da então
recém descoberta teoria da relatividade.
[158]
“The region in which a particular condition prevails, especially one in which
a force or influence is effective regardless of the presence or absence of a material
médium” – (Oxford Living Dictionaries, disponível em
https://en.oxforddictionaries.com/definition/field. Acesso 25 de fevereiro de 2017).
[159]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, p. 92.
[160]
De modo bastante semelhante ao método aqui proposto, Robert Alexy baseia
sua investigação sobre o conceito de direito numa sumarização de diferentes propostas
formando um “quadro conceitual”, no qual são elencadas combinações possíveis para cada
tipo de problema suscitado a partir da vinculação do direito À moral. São eles: conceitos de
direito isentos e não isentos de validade; sistemas normativos e procedimentais;
perspectivas do observador e participante; conexões classificadoras e qualificadoras. Cada
uma dessas distinções poderia ser considerada uma antinomia dialética no plano teórico do
direito, fazendo surgir campos de problemas, nos quais Alexy apoia sua análise – (R.
ALEXY, Conceito e Validade do Direito, pp. 28-34).
[161]
Sobre as considerações iniciais fenomenológicas, e separação entre sujeito e
objeto v. J. HESSEN. Teoria do Conhecimento, cit., p. 19-29
[162]
Mário Ferreira estabelece a distinção gnosiológica inicial de sujeito e objeto
como o “Eu” oposto ao “Não-Eu”. Mas esta distinção é logo criticada como errônea: o
antagonismo antinômico dos dois entes estabelece que um não pode existir sem o outro, “A
negação do objeto seria a posição solipsista, de Berkeley, que nega a existência do objeto
para afirmar apenas as do sujeito” – (Filosofia e Cosmovisão, cit., p. 73). Do ponto de vista
lógico, o objeto é descrito por Mário como os elementos descobertos pelo homem sob uma
certa ordem e regularidade em seus pensamentos, o que possibilitava descobrir suas
relações, regras e constantes – (Lógica e Dialética, cit., p. 15)
[163]
A possibilidade do “Eu” e do “Não-Eu” existentes autonomamente resulta no
que Mário Ferreira chama de “dualismo antagônico” (em oposição à “antinômico”). A
problemática envolveria, a princípio, a divisão estanque dos entes. A separação entre “Eu”
e “Não-Eu” traria a dificuldade de “desdobrar o próprio Eu em seu objeto, como quando o
Eu conhece a si mesmo” – (Filosofia e Cosmovisão, cit., p. 75).
[164]
A relação entre ambos é descrita por Mário Ferreira como uma
“compenetração”, através de “múltiplas trocas entre organismo humano e meio ambiente”
– (Filosofia e Cosmovisão, cit., p. 75). A problemática da compenetração serve a grande
parte do conhecimento humano: psicologia, ontologia, sociologia, economia, direito, etc.
[165]
Frege soube impor os limites do objeto da seguinte maneira: “E só se pode
dizer sucintamente o seguinte: um objeto é tudo aquilo que não é função [logo, que não é
conceito], tudo aquilo cuja expressão não contém um lugar vazio”. Sua distinção busca
demarcar o objeto distintamente da relação deste e o sujeito, a contraexemplo de Lalande,
que define o objeto como tudo aquilo que pode ser sujeito de um juízo; Frege vê o objeto
como o conteúdo determinado dentro dos conceitos - estes, por definição, indeterminados –
(G. FREGE, Sobre o conceito e o objeto in Lógica e Filosofia da Linguagem, p. 114 e ss).
[166]
Cumpre salientar uma possível objeção aqui: a gramática, ao submeter seu
conteúdo às mesmas regras, possibilitando que qualquer substantivo venha a ser sujeito ou
objeto, poderia ser arguida como pressuposto a priori do que se está afirmando. De fato,
coincidência há. Mas sendo a gramática eminentemente uma estrutura lógica de formulação
dos juízos também ela não poderia deixar de enquadrar-se no que se afirmou quanto à
fenomenologia entendendo-se que também ela é condicionada a determinados princípios
ontológicos. Realmente, não poderia ser de outra forma: uma gramática que não permitisse
a alteridade de sujeito e objeto se limitaria formidavelmente.
[167]
A fim de evitar confusões utilizaremos o termo “objeto conceptual” quando
nos referirmos ao direito enquanto objeto em seu caráter lógico. Este é o conteúdo real que
o conceito busca apreender e transformar em um esquema abstrato de relações (função).
[168]
L. VILANOVA, As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, 4ª
edição, Noeses, São Paulo, 2010, p.54.
[169]
“Se os elementos são proposições, sua composição interior obedece a leis de
formação ou de construção. O legislador pode selecionar fatos para sobre eles incidir as
hipóteses, pode optar por estes ou aqueles conteúdos sociais e valorativos, mas não pode
construir a hipótese sem a estrutura (sintática) e sem a função que lhe pertence por ser a
estrutura de uma hipótese” – (L. VILANOVA, As Estruturas Lógicas e o Sistema do
Direito Positivo, p.54).
[170]
O subconjunto de axiomas e teoremas é tratado na obra sobre sistemas de
Mário Losano sob o título de subconjunto A e subconjunto T, respectivamente. De modo
geral, sistemas são definidos como uma totalidade de elementos coordenados a partir de
princípios. Esta definição torna-se mais detalhada e rígida por meio da lógica de Tadeusz
Kotarbinski, filósofo polonês, cuja proposta de teoria geral dos sistemas envolve dois
subconjuntos: “A” de axiomas e “T” de teoremas. Subconjunto A e subconjunto T se
articulam por meio dos requisitos apresentados a seguir assegurando a estrutura (no sentido
técnico de nexo lógico válido entre as proposições) do sistema. Vale dizer que são
requisitos de natureza lógica, condizente ao teor do que se busca explicitar no termo
“sistema externo”, mas válidos para qualquer ordem de conhecimentos científicos. Vistos
pelo ponto de vista jurídico, o subconjunto A são as próprias normas jurídicas vinculadas
ao caráter axiomático, isto é, das quais não se exige uma proposição anterior para garantir-
lhes a validade . O subconjunto T são os teoremas a respeito dos axiomas; vistos do ponto
de vista jurídico são as proposições científicas confiadas ao trabalho do jurista– (M.
LOSANO, Sistema e estrutura do direito, vol. 1, cit., p. 250-264).
[171]
A validade lógica não supõe a validade jurídica. Trata-se de diferentes
estratos de linguagem, cada um com uma valência própria.
[172]
Explica-se esta escolha pelo fundamento dos axiomas se enquadrarem
naquilo que Mario Ferreira entende por conceitos: a reunião de dados semelhantes,
abstraídos formalmente de suas diferenças e enunciados genericamente. Tem a ver também
com a concepção fregeana, tomando as regras por enunciados os quais apresentam um
conjunto fático de hipóteses abstrativamente consideradas e, portanto, indeterminadas ou
insaturadas, que se completam pela eficácia; na analogia com a função matemática
teríamos por objeto (ou argumento da função) o fato particular presente, que se relaciona
com o enunciado descritivo da regra, cujo “valor de verdade” é atestado na aplicação do
direito e o desencadear de seus efeitos. Por ser uma operação lógica importa dizer que o
objeto conceitual permanece intacto; como a distinção engloba todos os aspectos
preliminares sem que divida efetivamente o objeto pode-se afirmar que há, por trás de
todas as nuances e vicissitudes da transformação do direito, uma unidade. Não significa
que a aplicação das regras prescinde do elemento humano, pelo contrário, é este aspecto
que atesta seu caráter dialético, como demonstraremos adiante; o importante aqui é o
desenvolvimento tético das normas jurídicas, como proposições basilares da ciência
jurídica constituindo seu objeto material.
[173]
Mário Ferreira sintetiza este pressuposto: “No conhecimento, não há objeto
sem sujeito. Portanto, podemos colocar-nos em uma dessas duas posições: 1) existência do
sujeito e do objeto; 2) existência do sujeito apenas. A partir destas posições iniciais serão
explanadas as quatro vertentes do problema do conhecimento: 1) respostas empíricas; 2)
respostas dos racionalistas-aprioristas; 3) reposta de Kant, ou criticista; 4) resposta dos
místicos, por meio da intuição imediata – (Filosofia e Cosmovisão, cit., p. 76-78). O
aprofundamento de cada resposta é feito na obra Teoria do Conhecimento (Gnoseologia e
Critériologia), 3ª ed., São Paulo, Logos, 1958, p. 41-109).
[174]
Fontes auto expressivas ilustram esta circunstância: o espírito do povo é uma
crença de Savigny, assim como a irrenunciável liberdade humana o é para Puchta e não
seria difícil enumerar um viés subjetivo indelével a cada um dos que os sucederam. Esta
subjetividade esteve amplificada na criação de sistemas externos, em construções até certo
ponto plásticas sobre um mesmo material das fontes romanas. Jhering é o primeiro a
atentar que, apesar desta plasticidade dos sistemas, eles não podem distorcer certos
aspectos rígidos dos institutos; embora o faça por meio de metáforas, fica claro se tratar de
uma estrutura rígida do direito: “Essa precipitação das normas no sistema não é uma obra
surgida da discricionariedade subjetiva, não é uma elaboração da matéria empreendida pela
ciência, mas é inerente ao próprio direito” – (R. Von JHERING, Geist der römischen
Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung, Breikopf & Härtel, Leipzig,
1852-65, 4 vol., p.42, apud. M. LOSANO, Sistema e Estrutura do Direito, vol. 1, p.367).
[175]
Um trecho de Radbruch relata a experiência ainda confusa do valor por trás
dos discursos descritivos e prescritivos. Há uma doutrina com valor de lei, e uma lei tão
carente de eficácia quanto uma doutrina: “A Idade Média não distinguia ainda entre os
‘livros de direito’, que anotam os preceitos jurídicos já válidos por força do costume e só
eram válidos se o fizessem corretamente, e ‘códigos de leis’, que são a própria fonte de
validade de seus preceitos e por isso necessitam de validade incondicional; o
Sachsenspiegel, concepção jurídica privada de Eike Von Repgow (por volta de 1225), foi
capaz de obter quase autoridade incondicional de um código de leis; a Carolina (código
penal do imperador Carlos V para o Reich alemão, 1532) mal conseguia a obediência de
um livro de direito” – (G. RADBRUCH, Einführung in die Rechtswissenschaft, 1987, trad.
port. V. Barkow, Introdução à ciência do direito, São Paulo, Martins Fontes, 2011, p. 28).
[176]
Um dos problemas evocados nesta relação é, por exemplo, o que Losano
chama de “inversão” do sistema externo. A atividade descrita como dogmática havia aos
poucos se transformado em construtivista, buscando uma maleabilidade dos institutos com
vistas à adaptação às exigências práticas, assim como um sentido filosófico de fundo que
justificasse a organização da matéria. Em Kelsen, o paradigma do sistema interno se
consolida tomando os pontos de relevância primordiais da ciência jurídica: a) validade da
norma e b) os meios pelos quais ela pode ser aplicada. O importante aqui é notar que a
descrição do sistema como união dos dois subconjuntos continua aceitável: o discurso a
respeito dos axiomas apenas passa a tratá-los sob um viés diferente, chegando ao ponto de
questioná-los em sua validade. Ainda que se pudesse objetar que axiomas são, por
definição, indiscutíveis, teríamos de admitir que essa conclusão a respeito de seu status só é
alcançada após a discussão chegar a um termo. Aprofundaremos esta discussão no campo
seguinte.
[177]
Esta dicotomia é o que está por trás da distinção entre normas e proposições
jurídicas em Kelsen. As primeiras, enquanto enunciados hipotéticos tem valor
intrinsicamente descritivo, ao passo que as normas, enquanto “mandamentos”, fazem parte
da função apelativa da linguagem e são, portanto, um discurso prescritivo. Tal distinção
parece ter sido um pioneirismo de Kelsen. O autor esclarece que a ciência jurídica alemã
utilizava os termos (Rechtsnorm e Rechtssatz) como sinônimos até então. – (H. KELSEN,
Teoria Pura do Direito, p.80-81). Dicotomia semelhante é proposta por Alf Ross. O autor
dinamarquês utiliza a metáfora do xadrez, cujas regras primárias correspondem aos
movimentos básicos de cada peça, e regras de teoria do xadrez, que estipulam quais
movimentos levam a uma estratégia bem-sucedida para vencer o jogo. As primeiras seriam
prescritivas (diretivas, na terminologia do autor) e as segundas descritivas – (A. ROSS,
Direito e Justiça, p.34-44).
[178]
Ao afirmar a distinção entre norma e proposição jurídica, Kelsen poderá em
seguida afirmar a preocupação singular da ciência jurídica em verificar os nexos de
imputação nas normas, criando para isso enunciados na forma de proposição. O intento
aparentemente afastaria considerações do nível fático, nível do “ser”, a respeito das
normas, isto é, os efeitos sociais, morais, históricos nelas contidos. É cabível a crítica de
Mario Losano, segundo o qual o estabelecimento deste método para as ciências jurídicas
acaba por ser uma imposição de Kelsen e, por consequência, uma normatização da ciência.
Forçoso admitir um sentido nitidamente ideológico. (M. LOSANO, Sistema e estrutura do
direito, vol. 1, p. 321 e ss). Este sentido ideológico também é apresentado por Voegelin ao
tratar do papel de Kelsen enquanto professor. Sua imposição metodológica neokantiana
transformava a Staatlehre (teoria política) em Rechtslehre (teoria do direito), e tudo para
além do sistema lógico de normas não poderia mais fazer parte da Staatlehre – (E.
VOEGELIN, Autobiographical Reflections, University of Missouri Press, Columbia 2001,
p. 45).
[179]
A antinomia fica, ainda, especialmente clara quando exposta nos
ordenamentos jurídicos da common law, nos quais o discurso prescritivo não é produzido
exclusivamente sob a forma dos enunciados hipotéticos (Se A, então B deve ser). Wesley
Hohfeld, enuncia já em 1917 uma tipologia de conceitos que descreveria os cases a partir
da natureza do ato envolvido, incluindo right, no-right, privilege, duty, power, disability,
immunity, liability - (W. HOHFELD, Fundamental legal conceptions as applied in judicial
reasoning, Faculty Scholarship Series. Paper 1917, 4378, disponível em
http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/4378. Tais modalidades são abstrações
conceituais descritivas do conteúdo fático que, por seu papel no sistema da common law,
tem valor prescritivo. Analisaremos a riqueza de relações apresentadas por Hohfeld nas
oposições da intensidade. No mesmo sentido, Hart dedica boa parte de sua crítica a John
Austin para esclarecer a diversidade de prescrições possíveis além do “comando” – (H.
HART, O Conceito de Direito, p. 33-53).
[180]
Mesmo se nos ativermos ao segmento condicionado pela maior exigência de
imparcialidade no conhecimento jurídico, isto é, a Jurisprudência (entendida enquanto
ciência sobre o Direito ocupada sob o aspecto normativo das decisões), constata-se que a
influência de seus resultados é admitida e, além disso, necessária; de modo que Larenz
afirma: “Certamente que haveremos de ver que os seus enunciados não deixam de ter
influência sobre o conteúdo daquilo a que se referem, ou seja, das normas jurídicas. E
assim distingue-se das hoje denominadas, as mais das vezes, ciências científicas, que
partem da independência do objeto de conhecimento face ao sujeito cognoscente e atêm-se
sempre a este ponto de partida” – (K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito,
p.270).
[181]
Lourival Vilanova define os enunciados de linguagem prescritiva como
aqueles cuja finalidade é alterar a circunstância, e cujo destinatário é o homem e sua
conduta no universo social - (L. VILANOVA, As Estruturas Lógicas e o Sistema do
Direito Positivo, 4ª edição, Noeses, São Paulo, 2010, p.4). Veremos adiante até onde
podemos expandir e restringir o conceito de “discurso prescritivo” no direito para
estabelecer sua virtualidade.
[182]
Vilanova define o dever como um “functor”, “um operador diferencial das
linguagens normativas, um de cujos subdomínios é o do direito”, “um modal específico das
proposições normativas”, por meio do qual a lógica deôntica se diferencia das demais. Seu
distanciamento de outros functores como “necessariamente” ou “possivelmente”, típicos da
lógica alética, permite diferenciar as teorias do direito que afirmam o fenômeno a partir de
uma previsibilidade das decisões judiciais ou do comportamento psicológico e social de
seus interlocutores social - (L. VILANOVA, As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito
Positivo, p.35-6).
[183]
K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p.352-3.
[184]
Diferenças relevantes precisam ser incluídas na forma de uma nova
proposição, seja ela ampliativa, restritiva ou remissiva. Neste caso, são semelhanças entre
as diferenças que permitem uma abstração cognitiva dos elementos da situação fática.
Nesse sentido, ver, por exemplo, o art. 425 do Código Civil Brasileiro que dispõe sobre a
possibilidade de contratos atípicos. Há aí uma proposição que só se torna compreensível se
relacionada sistematicamente com as demais normas sobre contratos (remetendo a uma
disciplina geral dos contratos). A partir daí é possível vislumbrar um conjunto de
possibilidades extras que a lei declara; tal efeito só é possível tendo em vista um conjunto
tão estável de semelhanças constantes nos contratos a ponto de a legislação permitir que
algumas diferenças dispositivas – a depender da vontade das partes – sejam válidas
(ampliando o rol inicial de contratos típicos).
[185]
Sobre a formalização da linguagem, Lourival Vilanova nota a relação entre a
irredutibilidade fenomenológica da divisão entre mundo ôntico e deôntico: “... as estruturas
lógicas estão encobertas pelas referências conceptuais a fatos-do-mundo (eventos e
condutas) que o sistema jurídico trouxe para seu universo. Num texto legislativo não
percebemos as formas lógicas como tais. Por mais que generalize, com a linguagem do
direito alcanço tipos. Há tipos gerais no direito. A tipificação generalizadora prossegue na
ciência jurídica. Um desses tipos é o conceito de negócio jurídico. Generalizando mais,
alcanço a estrutura relação jurídica” - (L. VILANOVA, As Estruturas Lógicas e o Sistema
do Direito Positivo, cit., p.30).
[186]
G. RADBRUCH, Introdução à ciência do direito, cit., p. 26-28.
[187]
C. M. da S. PEREIRA, Instituições de direito civil, vol. 1, 26ª ed. Rio de
Janeiro, Forense, 2012, p. 53.
[188]
Villey atribui o ressurgimento da doutrina ao retorno das ideias aristotélicas
por meio da filosofia tomista: “Creio encontrar os fundamentos desse método de fabricação
do direito na teologia tomista, na revalorização da teoria dita do direito natural clássico,
devida a Aristóteles, acolhida no mundo jurídico romano, onde ela confirmou a ação
criadora dos jurisprudentes. Sustento que a existência dessa fonte de regras de direito é
solidária não só com o direito natural, mas também com a metafísica que funda o direito
natural (...)”– (M. VILLEY, Formação do pensamento jurídico moderno, cit., p.184-8)
[189]
A. J. ARNAULD, Les origines doctrinales du Code civil français, Paris,
LGDJ, 1969 apud M. VILLEY, Id. p. 184).
[190]
Kelsen aponta este fenômeno ao elencar dentre as possibilidades de
interpretação não autêntica do direito a obediência às leis por parte dos integrantes da
sociedade, ainda que não pertencentes à chamada “comunidade jurídica”. Para seguir as
leis é pressuposto algum nível de interpretação – (H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, p.
387-391).
[191]
“The answer is that linguistic messages there are two closely interlocked
fundamental processes which we can and must distinguish in order to understand what is
going on. In intercourse using language there is first pointing: things and processes are
indicated. That demonstratio; I prefer the Greek word deixis. Second, there is also
representing in linguistic intercourse. Objects and states of affairs are given a formulation
in language and are symbolized by words that designate them in the symbolic field of
language”. K. BÜHLER, Theory of language: the representational function of language, p.
99.
[192]
K. BÜHLER, Theory of language, p.34.
[193]
Distinção semelhante é feita para fundamentar a teoria do “direito vigente”
em Alf Ross, separando expressões linguísticas em asserções, exclamações e diretivas –
(A. ROSS, Direito e Justiça, p.43).
[194]
C. STEVENSON, Ethics and Language, New Haven, Yale University Press,
1944, p.202-27
[195]
R. ALEXY, Theorie der Juristischen Argumentation, trad. port. Z.
Hutchinson, Teoria da argumentação jurídica, São Paulo, Landy, 2001, p. 53-4.
[196]
“We have military orders (parade-ground and otherwise), architects'
specifications, instructions for cooking omelets or operating vacuum cleaners, pieces of
advice, requests, entreaties, and countless other sorts of sentence, many of whose functions
shade into one another. The distinction between these various kinds of sentence would
provide a nice logician with material for many articles in the philosophical periodicals; but
in a work of this character it is necessary to be bold. I shall therefore follow the
grammarians and use the single term 'command' to cover all these sorts of thing that
sentences in the imperative mood express, and within the class of commands make only
some very broad distinctions” – (R. M. HARE, The Language of Morals, Transcribed into
hypertext by Andrew Chrucky, July 2005, disponível em
http://www.ditext.com/hare/lm1.html. Acessado em julho de 2016).
[197]
R. M. HARE, Freedom and Reason, Oxford, Claredon Papers, 1963, p.2.
[198]
É a crítica que Larenz faz ao posicionamento de J. Esser quanto à dogmática,
(K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit., p. 312-14).
[199]
O termo “movimento” aparece conotativamente devido a dificuldade
insuperável em se aplicar categorias genéricas aos conceitos metafísicos. A explicação
deverá aprofundar-lhes o sentido.
[200]
G. LUMIA, Lineamenti di teoria e ideologia del diritto, trad. port. D.
Agostinetti, Elementos de teoria e ideologia do direito, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p.
23-37.
[201]
Seria uma visão que renovasse, portanto, o modo pelo qual se concebem as
regras (e o direito, de modo geral) como independente da situação cronotópica posterior ao
surgimento das instituições. Prova disso está no fato de que a ideia de instituição enquanto
garantidora da aplicação de regras requer naturalmente que regras existam anteriormente e
independentemente; sendo assim, portanto, não podem as últimas ser definidas pelas
primeiras.
[202]
A distinção entre regras e normas é usada na terminologia da dogmática
alemã no sentido de distinguir entre o “dever-ser” jurídico e não jurídico - (K. LARENZ,
Metodologia da Ciência do Direito, p. 262). No mesmo sentido, v. a discussão sobre a
diferença de hábitos comportamentais e regras em H.HART, O Conceito de Direito, p. 23-
26.
[203]
Não se busca aqui repudiar as teorias que ofereceram explicações do direito
enquanto um sistema interno, investigando suas possibilidades e condições lógicas
intrínsecas no que se intitula usualmente “Teoria Geral do Direito”. É esta, todavia, uma
investigação que extrapola os limites concebidos metodologicamente por aquela disciplina
do conhecimento jurídico, sem – insistimos – necessariamente repudiar suas colocações.
[204]
Bodin elabora uma hierarquia de formas legais encabeçada por (a) atos
privados de cidadãos não podem derrogar as ordens dos magistrados; (b) ordens dos
magistrados não podem derrogar os costumes; (c) o costume não pode derrogar as leis do
príncipe; (d) as leis do príncipe não podem derrogar a lei natural e divina – J. BODIN,
Republique, p. 146, apud E. VOEGELIN, The Collected Works of Eric Voegelin, v. 23,
History of Political Ideas, V, Religion and Rise of Modernity, trad. port. E. Fonseca,
História das Ideias Políticas: Religião e ascensão da modernidade, São Paulo, É
Realizações, 2016, p. 304.
[205]
A hierarquia legal pressupunha uma hierarquia de pessoas: (a) Deus; (b) o
príncipe soberano; (c) o magistrado, sujeito às ordens do príncipe; (d) os cidadãos privados
dentro da competência dos magistrados – J. BODIN, République, cit., p.351.
[206]
E. BALDWIN, The Duty of Rejoicing under Calamities ans Afflictions, New
York, Hugh Gaine, 1776, p. 21-2 apud S.M. GRANT, A Concise History of United States,
trad. port. J.I. Mendes Neto, História Concisa dos Estados Unidos da América, São Paulo,
Edipro, 2014, p. 151.
[207]
“ ...to meet at Philadelphia on the second Monday in May next, to take into
consideration the situation of the United States, to devise such further provisions as shall
appear to them necessary to render the constitution of the federal government adequate to
the exigencies of the Union....", Carta de William Grayson para James Madison, 22 de
março de 1786, G. BANCROFT, History of formation of the Constitution, apud A.
McLAUGHLIN, A Constitutional history of the United States, 1936, 1936, New York,
Simon Publications, 2001, p. 258.
[208]
O artigo XIII expressa esta expectativa: “And the Articles of this
Confederation shall be inviolably observed by every State, and the Union shall be
perpetual; nor shall any alteration at any time hereafter be made in any of them; unless such
alteration be agreed to in a Congress of the United States, and be afterwards confirmed by
the legislatures of every State”.
[209]
S. M. GRANT, História Concisa dos Estados Unidos da América, p. 172.
[210]
E. VOEGELIN, A Natureza do direito, p. 84.
[211]
Vilanova, na esteira do pensamento kelseniano, afirma que a revolução só é
jurídica quando da renovação da Constituição, do contrário ocorre apenas um golpe-de-
estado (“revolução” no sentido político) no qual se substituem os titulares dos cargos, ainda
que ilegalmente, cargos estes já previamente delineados pelo texto constitucional – (L.
VILANOVA, Teoria jurídica da revolução, Separata do anuário de mestrado, Faculdade de
Direito do Recife, ano II e III, n. 2 e 3, 1979, p. 5).
[212]
Vilanova, in verbis, argumentando sobre a hipótese de uma norma
constitucional que previsse a juridicidade da revolução – o que, como vimos, foi o caso,
posto que desrespeitando o critério estabelecido – salienta que “... a norma que previsse a
juridicidade da revolução não estaria a salvo da destruição de sua validade, pois a
eficacidade atinge o todo do ordenamento. E uma norma isolada não tem validade se não
tem validade o todo do ordenamento. Ser válida é pertencer a um ordenamento válido e
eficaz” – (L. VILANOVA, Teoria jurídica da revolução, p. 8).
[213]
Em suma, no sentido atribuído por Herbert Hart às “regras secundárias” – (H.
HART, O Conceito de Direito, p. 89-101).
[214]
O exemplo mais nítido do direito brasileiro talvez seja o “Esboço de Código
Civil” elaborado por Teixeira de Freitas a pedido do Imperador D. Pedro II. Embora não
tenha entrado em vigor, a obra teve influência sobre o Código de Civil de 1916, e serviu de
modelo para outras codificações da América Latina.
[215]
J. RAZ, Pude haber una teoría del derecho?, p. 61.
[216]
Muito espirituosamente, Kantorowicz cita a passagem de Hamlet no qual o
príncipe indaga o coveiro se quem vai ser enterrado. Este lhe responde que não é para um
homem, tampouco uma mulher, mas: “Uma pessoa que foi uma mulher, senhor, mas que,
descanse em paz, é um morto”. Não sendo a regra vinculante, pode a ciência jurídica
enterra-la no túmulo de Ofélia? (H. KANTOROWICZ, The Definition of Law, p.49).
[217]
O discurso descritivo tem suas atualizações e virtualizações próprias a serem
desenvolvidas nos campos posteriores.
[218]
“Assim, na chamada subsunção, apenas a obtenção das premissas é decisiva:
quando a “premissa maior” e a “premissa menor” sejam suficientemente concretizadas e
ordenadas entres si – e para isso a lógica formal não é essencial – está concluída a tarefa
própria dos juristas; a conclusão final surge agora, por assim dizer, de modo automático
(...)” – (C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do
direito, 5ª ed., cit., p.33).
[219]
H. G. GADAMER, Warheit und Methode, trad. Port. F. Meurer, Verdade e
Método, 9ª ed., Petrópolis, Vozes, 2008, p. 243.
[220]
F. D. SCHLEIERMACHER, Werke, I, 7, 146s., apud H. G. GADAMER,
Verdade e método, cit., p. 261.
[221]
F. D. SCHLEIERMACHER, Werke, 7,33, apud H. G. GADAMER, Verdade
e método, cit., p.263.
[222]
O. M. CARPEAUX, História concisa da literatura alemã, 1ª ed., Barueri,
Faro, 2013, p.89.
[223]
O. M. CARPEAUX, História concisa da literatura alemã, cit., p.90.
[224]
F. SCHLEGEL, Fragmente, 1798, trad. Ingl. P. Firchow, Londres, University
of Minnesota, 1991, p.48.
[225]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, São Paulo, tese (Professor
Titular junto ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo), 2013, p. 20.
[226]
O. M. CARPEAUX, História concisa da literatura alemã, 1ª ed., p.92.
[227]
Carpeaux expõe duas propostas explicativas interessantes. A primeira, a
teoria etnocultural de Joseph Nadler, ressalta a origem de colonização eslava da Alemanha
oriental, de onde provém os irmãos Schlegel, Schleirmacher, Tieck e Novalis. “É uma terra
que não conhece a herança clássica e católica da Renânia e do Sul. É a terra que produziu a
Reforma, os místicos, o Barroco, o irracionalismo. Seu Romantismo é a reação contra a
Alemanha “antiga”, de tradições católicas e latinas. A teoria, contudo, não explica a
evolução posterior do romantismo católico e medievalista de Heidelberg e Viena. Para essa
evolução, a teoria biocultural de Petersen, baseia-se em três gerações: os irracionalistas de
Viena; os medievalistas de Heidelberg; e o Biedermeier – (O. M. CARPEAUX, História
concisa da literatura alemã, 1ª ed., p.89-90).
[228]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 36.
[229]
O suporte viria da teoria de Friz Schreier, apenas chancelada por Hans
Kelsen. O conflito inerente ao processo interpretativo jurídico é tratado como a conciliação
entre a decisão valorativa do caso concreto frente à abstração do conceito positivado.
Schreier demonstra a inexistência de critérios para determinar a superioridade de uma
abordagem hermenêutica sobre as demais. Diante disso reconhece-se que a escolha final do
intérprete não é regulada positivamente. Escolhe-se, afinal, entre um nomos conservador ou
progressista – cf. F. SCHREIER, Die Interpretation der Gesetze und Rechtsgeschäfte,
Viena, 1928, p. III apud A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 69.
[230]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 75.
[231]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 74.
[232]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 74.
[233]
É o que nota Solon, na esteria de Savigny, Ascarelli e Fritz Schreier, ao
apontar a inelutabilidade da norma enquanto texto, só se revelando no momento em que o
problema aparece, isto é, no caso concreto: “Apenas quando estamos diante de um caso
jurídico concreto é que podemos falar em normas jurídicas, para que depois, logo em
seguida, o sistema normativo seja dissolvido novamente em texto (...) A aplicação somente
é válida para o caso jurídico a que se refere. Esta a problematicidade de um ato criador
realmente livre, que se reconhece incapaz de atar o futuro!” – (A. SOLON, Hermenêutica
Jurídica Radical, cit., p. 78-9).
[234]
Contra a opinião de Emilio Betti de que o significado deve ser obtido da
própria norma jurídica e não artificialmente a partir do intérprete, Solon destaca a
incongruência diante da “realidade da vivência do direito”, e afirma “não se pautar em
diagnóstico acurado do funcionamento do direito”. A acusação, por fim, de uma
hermenêutica lida “como simples sustentação ideológica” e, enfim, “conservadora” é
criticável. A irreflexibilidade da lei e a negação da disponibilidade em interpretar ou
reconhecer o papel do intérprete pode legitimar posturas tanto conservadoras quanto
progressistas. Soa demasiado otimista que essa interpretação, entendida como “contínua
criação humana”, seja interpretada de forma “democrática”, “por simples maioria”, o que
parece estar na consciência do autor no momento em que classifica o nomos insular como
“potencialmente redentor” (destaque nosso) – (A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical,
cit., p. 80-1, 100). O conservadorismo só parece ligado a uma interpretação irreflexiva no
caso do texto bíblico segundo a Tradição e Magistério da Igreja Católica, indiferente a
qualquer democracia e maioria. Nada de revolucionário, portanto. É justamente o que
sustenta a ortodoxia, desde São Irineu de Lyon, contra todos os desvios heréticos e
protestantes.
[235]
K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, p.283.
[236]
Tal hipótese é investigada por Canaris, v. C. W. CANARIS, Pensamento
sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 5ª ed., cit., p. 66-76.
[237]
R. ALEXY, Theorie der Juristischen Argumentation, trad. port. Z. H. Shild,
Teoria da Argumentação Jurídica, São Paulo, Landy, 2001, p.21.
[238]
H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, cit., p.4.
[239]
H. KELSEN, Teoria Pura do Direito ,cit., p.4.
[240]
H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, cit., p.4.
[241]
Não é, por certo, um número ilimitado. Prova disso é, por exemplo, a recusa
de aplicação de alguns institutos arguindo-se pela não “recepção” constitucional.
[242]
H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, p. 390 e ss.
[243]
Conforme dispusemos sobre o método utilizado nesta tese, as teorias de
diversos autores são encaradas como fontes autoexpressivas do direito e meio pelo qual
esperamos encontrar os campos de problemas que fornecerão, ao final, uma descrição do
direito enquanto tal. Não se trata de criticar Kelsen, portanto. Mas um possível
questionamento pode ser feito quanto ao papel da ciência jurídica no que diz respeito à
intepretação, conforme a Teoria Pura do Direito sugere. Uma vez que cabe ao cientista do
direito revelar “todas as significações possíveis, mesmo aquelas politicamente
indesejáveis” imediatamente instaura-se a discussão a respeito de quais significações são
possíveis ou não e, por estar num terreno alheio à consideração da simples validade, esta
discussão será necessariamente valorativa. O que impediria, por exemplo, que um texto
legal tivesse elencado sua forma irônica como possibilidade de sentido? Lembremos que o
viés positivista e neokantiano de Kelsen obriga-o a afastar os valores da ciência. O direito
enquanto objeto parece insistentemente se rebelar contra a aplicação da metodologia da
Teoria Pura, se adequando melhor às teorias que o encaram sob o ponto de vista dialético-
discursivo combinando-se com a abordagem sistemática.
[244]
Novamente, “não-reais” tem sentido diverso de impossível, hipótese na qual o
sentido impossível não seria nem mesmo trazido a lume na discussão concreta, nem
tampouco apareceria como resíduo do processo interpretativo que culminou na aderência a
certo sentido.
[245]
T. VIEHWEG, Tópica e jurisprudência, p. 82.
[246]
É a conclusão a que chega o precursor de Viehweg, Nicolai Hartmann: “o
modo de pensar sistemático parte do todo. A concepção é, aqui, o primórdio e mantém-se
dominante. Segundo este ponto de vista aqui não se procura; antes de mais, inclui-se. E a
partir dela são escolhidos os problemas. Os conteúdos problemáticos que não coincidem
com o ponto de vista são eliminados. Eles surgem como questões falsamente colocadas.
(...) O modo de pensar aporético [i. e., por problemas] processa-se, em tudo, inversamente.
(...) Ele não duvida de que há sistema e isso talvez seja dominante, latente no seu próprio
pensamento. Por isso ele é certamente seu, mesmo quando não o saiba” – (N.
HARTMANN, Diesseis von Idealismus und Realismus, Kantstudien, vol. XXXIX (1924),
163 e ss., apud C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência
jurídica, 5ª ed., cit., p. 247).
[247]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência., p. 83.
[248]
Relegando a esta propriedade um papel de menor relevo, Canaris enquadra-a
no capítulo de “possibilidades remanescentes da tópica” – (C. W. CANARIS, Pensamento
Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência Jurídica, 5ª ed., cit., p. 269). Para Canaris só
pode intervir a tópica no caso de inexistência valorativa a partir do direito objetivo.
Somente aí seria lícito recorrer à “opinião da maioria ou dos sábios”, traduzida no direito
atual por “os valores e as intuições jurídicas, culturais e sociais dominantes na comunidade
jurídica em causa (...)” – (C. W. CANARIS, op. cit., 270).
[249]
T.VIEHWEG, Tópica e Jurispudência., p.83.
[250]
Canaris encaixa a tópica nas “lacunas da lei, para cuja interpretação o Cireito
positivo não compreenda valorações” e nas “cláusulas gerais carecidas de preenchimento
com valorações”. É o caso dos exemplos no “cuidado necessário no tráfego” (§ 276 BGB:
“Atua com culpa quem não observe o cuidado necessário no tráfego”) – (C. W. CANARIS,
Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência Jurídica, 5ª ed., cit., p. 271-2).
[251]
Estes elementos serão matéria do campo seguinte. Podemos, a título de
exemplo, mencionar como elementos intrajurídicos o que Teubner chamou de “controle de
correção”, ou seja, o preenchimento das pautas a partir de princípios e valores
constitucionais – (G. TEUBNER, Standards und Direktiven in Generalklausen, 1971,
Berlin, Athenäum, p. 91).
[252]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 83.
[253]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 83.
[254]
R. COVER, The Supreme Court, 1982 Term – Foreword: nomos and
narrative. HeinOnline, Harvard Law Review, v. 97, n.4, 1983-1984, Yale Faculty
Scholarchip Series. Paper 2705, disp. em
<digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/2705/>, apud A. SOLON, Hermenêutica Jurídica
Radical, cit., p. 84.
[255]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 84.
[256]
Cover: “Legal meaning is a challenging enrichment of social life, a potentical
restraint on arbitrary power and violence. We ought to stop circumscribing the nomos; we
ought to invite new worlds” – (R. COVER, The Supreme Court, 1982 Term – Foreword:
nomos and narrative, cit., p.68).
[257]
“(...) Hegel, grande pensador do amor, do perdão e da reconciliação, cravou
no final da história que tudo é perdoável, menos os crimes contra o Espírito Objetivo, a
saber, menos os crimes que negam o próprio poder reconciliador do perdão. A tortura não
se pode perdoar” – (A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 90). A analogia
tem por reflexo a passagem do Evangelho de São Matheus: “Por isso, eu vos digo: todo
pecado e toda blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito
não lhes será perdoada” - (Mateus 12, 31); “Digo-vos ainda: Todo aquele que me confessar
diante dos homens, também o Filho do homem o confessará perante os anjos de Deus; mas
o que me negar diante dos homens, será negado perante os anjos de Deus. Todo aquele que
proferir uma palavra contra o Filho do Homem, isso lhe será perdoado; mas o que
blasfemar contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado” – (Lucas, 12:8-10); “Qualquer,
porém, que blasfemar contra o Espírito Santo, nunca obterá perdão, mas será réu do eterno
juízo” – (Marcos, 3:29). É de se ressaltar que Solon tenha negado pertinência da analogia
entre Brasil e Atenas, mas não entre Hegel e o Evangelho. É certo que a interpretação, ou
nomos, do Evangelho segundo a Tradição e o Magistério da Igreja Católica não admite a
analogia com a aplicação política do preceito. A “blasfêmia contra o Espírito Santo” é
interpretada por São Tomás, à luz de Santo Agostinho como a “impenitência final”, quando
alguém “persevera no pecado mortal até a morte”, não apenas por palavras, mas “também
pela palavra do coração e das obras” - (T. AQUINO, Suma Teológica, cit., II, II,14, I,
p.199). A impenitência é requisito deste pecado, pois suas espécies são todas caracterizadas
pela “rejeição ou desprezo dos meios que podem impedir o homem de fixar sua escolha no
pecado”, a saber: a desesperança, presunção, impenitência, obstinação, impugnação da
verdade conhecida e a inveja da graça fraterna - (T. AQUINO, Suma Teológica, cit., II, II,
14, II, p. 200). A explanação pormenorizada do pecado por São Tomás torna não apenas
incoerente, mas impossível qualquer analogia com a justificativa política para negar o
perdão no caso da Anistia. É possível que outros argumentos possam contrariar a decisão
mantendo a tese acerca do nomos progressista em face do conservadorismo da lex proferida
no STF, mas tal como foi colocado resta saber se faltava ao próprio Hegel conhecimento de
teologia moral ou se construiu um sistema gnóstico propositadamente.
[258]
A. SOLON, Hermenêutica Jurídica Radical, cit., p. 91.
[259]
T. VIEHWEG, Tópica e Jurisprudência, p. 82-3.
[260]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, cit., p. 164.
[261]
O mesmo itinerário é seguido por Mário Ferreira, v. Filosofia e Cosmovisão,
p. 166 e ss.
[262]
Mayer publicou seu trabalho sobre a conservação da energia em 1867,
Ostwald escreve em 1910. Há nesta lei uma peculiar circunstância de simultaneidade de
descobertas, como observa Thomas Kuhn: T. KUHN, The essencial tension, 1977, trad.
Port. M. A. Penna-Forte, A tensão essencial, São Paulo, Unesp, 2009, p.89-127.
[263]
W. OSTWALD, Natural Philosophy, Nova York, Henry and Holt Company,
1910, p. 141.
[264]
R. DELTETE, Philosophy of Chemistry, Oxford, Elsevier, 2012, p. 106.
[265]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, p. 166.
[266]
Sobre a história da lógica deôntica v. o capítulo de Simo Knuuttila, History of
Deontic Logic in R. HILPINEN, New Studies in Deontic Logic: Norms, Actions and the
Foundations of Ethics, Dordrecht (Holanda), D. Reidel Publishing Company, 1981,
pp.225-263. Vale notar que Jeremy Bentham fez uso de uma “deontology” para silogismos
morais.
[267]
E. MALLY, Grundgesetze des Sollens. Elemente der Logik des Willens, Graz:
Leuschner & Lubensky. Reimpresso in Ernst Mally: Logische Schriften. Großes
Logikfragment—Grundgesetze des Sollens, K. Wolf, P. Weingartner (eds.), Dordrecht,
Reidel, 1971, pp. 227–324.
[268]
G. H. Von WRIGHT, Deontic Logic, in Mind, New Series, vol. 60, n. 237
(janeiro de 1951), pp. 1-15.
[269]
“(The word act) is sometimes used for what might be called act qualifying
properties, e.g. theft. But it is also used for the individual cases wich fall under these
properties, e.g. the individual thefts. (...0 The individual cases that fall under theft, murder,
smoking, etc. we shall call act-individuals. It is of acts and not of act-individuals that
deontic words are predicated – (G. H. Von WRIGHT, Deontic Logic, cit., p. 2).
[270]
As operações deônticas de Von Wright foram posteriormente desenvolvidas,
assim como a operações aléticas. A chamada Standard Logic Semantics (SDL) trabalha
atualmente com 5 estados normativos: “it is obligatory that (OB); it is permissible that
(PE); it is impermissible that (IM); it is omissible that (OM); it is optional that (OP). As
relações possíveis podem então ser reduzidas apenas ao aspecto obrigacional: PEp ↔ OBp;
IMp ↔ OB~p; OMp ↔ ~OBp; OPp ↔ (~OBp & OBp). Esta possibilidade descritiva de
todas relações jurídicas possíveis sob o único operador da obrigação parece sugerir certo
acerto das teorias imperativistas. Será também a posição kelseniana, v. infra. Sobre a SDL
v. P. McNAMARA, Deontic Logic in The Stanford Encyclopedia of Philosophy
(Winter 2014 Edition), Edward N. Zalta (ed.), disponível em
https://plato.stanford.edu/archives/win2014/entries/logic-deontic/, acesso em setembro de
2017.
[271]
Art. 1º - Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
[272]
K. BÜHLER, Theory of language, cit., p. 99.
[273]
S. DANTAS, Programa de Direito Civil, Editora Rio, Rio de Janeiro, 1977,
p. 169.
[274]
BRASIL, Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 - Define a situação jurídica
do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815.htm. Acesso em setembro de 2017.
[275]
O direito português fez aproximações do conceito subjetivo aos animais,
passando a integra-los extensivamente em algumas relações – (PORTUGAL, Lei n.º 8/2017
- Estabelece um estatuto jurídico dos animais, alterando o Código Civil, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966, o Código de Processo Civil, aprovado
pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º
400/82, de 23 de setembro, disponível em < https://dre.pt/home/-
/dre/106549655/details/maximized>. Acesso em setembro de 2017.
[276]
H. KELSEN, Teoria Pura do Direito, cit., p. 330.
[277]
L.RACASÉNS SICHES, Introducción al Estudio del Derecho, México,
Porrua, 1970, p. 33.
[278]
Em Wildelband: “(...) the moral law cannot be related to the various duties as
a generic idea is to its species; indeed, if there were such relation of all moral precepts to a
supreme principle, we should have to determine it, not by logical, but by a teleological
subordination – a subordination of means to the common end” – (W. WILDELBAND,
Einleitung in die Philosophie, 1914, trad. Ingl. Joseph McCab, An Introduction to
philosophy, T. Fisher Unwin Ltda., Londres, 1921, p.224). Em Georg Simmel: “O empero
el ser no recibe una certeza particular, sino que es él mismo una certeza, obtiene presencia
en algo que no es ser, sea ello el mismo no ser, sea el pensamiento que se enfrenta como
opuesto al ser, o sea el contenido particular de la cosa singular, que es pues todavía otra
cosa que el mero ser, sea ello el devenir que, como forma fundamental del universo, no está
comprendido bajo el concepto ser” – (G. SIMMEL, Hauptprobleme der Philosophie, 1910,
trad. Esp. S. Molinari e E. Schultzen, Problemas fundamentales de la filosofía Ediciones
Espuela de Plata, Madrid, 2006, p.64).
[279]
W. HOHFELD, Fundamental legal conceptions as applied in judicial
reasoning, cit., p.1.
[280]
R. ALEXY, Teoria da Argumentação moral, p. 67.
[281]
Trata-se de operar seguindo o modus tollens: Se P então Q, e Não Q, Logo
Não P, ou (p>q), q, p.
[282]
“A complete justification of a decision should consist of a complete account
of it’s effects, together with a complete account of the principles which it observed, and the
effects of observing those principles – for, of course, it is the effects (what observing them
in fact consists in) which give content to principles too. Thus, if pressed to justify a
decision completely, we have to give a complete specifications of the ways of life of which
it is a part”. R. M. HARE, The Language of Morals, p.69, apud R. ALEXY, Teoria da
Argumentação Jurídica, p. 69.
[283]
R. ALEXY, Teoria da Argumentação Jurídica, p. 89.
[284]
R. ALEXY, Teoria da Argumentação Jurídica, cit., p.90.
[285]
De 2000 a 2010, o país criou 75.517 leis, somando legislações ordinárias e
complementares estaduais e federais, além de decretos federais. São 6.865 leis por ano - o
que significa que foram criadas 18 leis a cada dia, desde 2000 – (notícia de GLOBO,
disponível em https://oglobo.globo.com/politica/brasil-faz-18-leis-por-dia-a-maioria-vai-
para-lixo-2873389, acesso em setembro de 2017) Cabe aqui uma comparação com o
paradoxo do Navio de Teseu. Plutarco relata que o navio utilizado por Teseu na viagem à
Creta foi preservado durante muitos anos, permanecendo exposto como símbolo da vitória
do herói. Com o tempo, fora necessário que os atenienses trocassem diversas partes do
navio para que ele não apodrecesse, suscitando daí a questão a respeito de até quanto se
poderia substituir do navio sem que este não se transformasse em outro navio.
[286]
E. VOEGELIN, A Natureza do Direito, cit., p. 45.
[287]
E. VOEGELIN, A Natureza do Direito, cit., p. 96.
[288]
Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 - Lei de Introdução às
normas do Direito Brasileiro, art 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que
não a conhece”. O enunciado é particularmente interessante por se parecer mais com uma
descrição do que com um apelo prescritivo.
[289]
As tensões são enquadradas por Eric Voegelin numa ambiguidade
identificada pelo filósofo no uso do termo “direito”: ele significa ora o agregado de regras e
atos de criação e aplicação de normas (em estrita consonância com a doutrina de Kelsen) e
ora como o sentido da ordem substantiva da sociedade – (E. VOEGELIN, A Natureza do
Direito, p. 77).
[290]
É irresistível a particular adequação que a dimensão da atualidade e
virtualidade tem em relação ao tridimensionalismo jurídico. Uma vez concebida a ordem
como os valores, o homem e a sociedade como o âmbito fático e o discurso prescritivo
como as normas fica claro a extensidade que as três dimensões da fórmula Reale possuem
ao se adaptarem constantemente a teorias novas – (M. REALE, Teoria Tridimensional do
Direito, 5ª Ed., cit., passim).
[291]
K. LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p. 280.
[292]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, cit., p.197.
[293]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, cit., p.149.
[294]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, cit., p.191.
[295]
J. HESSEN, Teoria do conhecimento, cit., p. 97-109.
[296]
M. G. MORENTE, Lecciones preliminares de filosofía, Madri, Encuentro,
1938, p. 54-60.
[297]
Fragmento 54 – “Harmonia invisível à visível superior”; frag. 123 – “A
natureza ama esconder-se” – (HERÁCLITO DE ÉFESO, Fragmentos, ed. J. Cavalcante de
Souza, Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, 4ª ed. in Coleção Os
Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1989, p. 56; 63)
[298]
Frag. 64 – “De todas as coisa o raio fulgurante dirige o curso” –
(HERÁCLITO DE ÉFESO, Fragmentos, cit., p. 56).
[299]
Frag. 45 – “Limites da alma não os encontrarias, todo caminho percorrendo;
tão profundo logos ela tem”; frag. 112 – “Pensar sensatamente (é) virtude máxima e
sabedoria é dizer (coisas) verídicas e fazer segundo (a) natureza, escutando”; frag. 115 –
“De alma é (um) logos que a si próprio aumenta”; frag. 116 – “A todos os homens é
compartilhado o conhecer-se a si mesmo e pensar sensatamente” – (HERÁCLITO DE
ÉFESO, Fragmentos, cit., p. 53; 62).
[300]
Frag. 94 – “Pois Hélios não transpassará as medidas; senão as Erínias, servas
da Justiça, descobrirão” – (HERÁCLITO DE ÉFESO, Fragmentos, cit., p. 60).
[301]
Frag. 114 – “(Os) que falam com inteligência (nóôi) é necessário que se
fortaleçam com o comum de todos, tal como com a lei a cidade, e muito mais fortemente;
pois alimentam-se todas as leis humanas de uma só, a divina; pois, domina tão longe
quanto quer, e é suficiente para todas (as coisas) e ainda sobra” - (HERÁCLITO DE
ÉFESO, Fragmentos, cit., p. 62).
[302]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, cit., p.164 e ss.
[303]
Mário Ferreira não cai na confusão denunciada por Frege a respeito da
impossibilidade de haver “conceitos sobre conceitos”. A razão, segundo Mário, opera sobre
eles de modo simbólico, ou seja, reduzindo-os a um esquema próximo ao objeto. Cf.
Tratado de Simbólica, É Realizações, São Paulo, 2009, p.39.
[304]
Canaris, em comentário aos recursos lógico-argumentativos de Ulrich Klug,
aponta o “círculo de semelhança” como critérios teleológicos aplicados aos “processos de
conclusão” jurídicos, como a analogia, a redução teleológica, o argumentum ad contrarium,
o argumentum a fortiori, e o argumentum ad absurdum – (C. W. CANARIS, Pensamento
sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 5ª ed., cit., p. 70).
[305]
A evolução semântica do conceito de sistema perpassa a dificuldade pela qual
se buscou delimitar a organização própria da atividade humana em relação àquela ordem
disposta na própria natureza das coisas. Se por um lado buscou-se desenhar grandes
esquemas de compreensão, não se abriu mão de alegar que esta compreensão fosse mero
reflexo de uma organização subjacente à cognição do construtor de sistemas. Surge a
questão: a ordem dos sistemas reflete uma ordem imanente às coisas ou a razão humana
lhes imprime este significado, persuadindo o homem a ver no mundo o que, na verdade só
existe nele mesmo? Este dualismo tem evidente caráter de um polemos na história do
sistema; nada obstante, foi possível reunir as duas concepções em uma distinção do
conceito, mantendo suspensa a discussão em torno de qual polo (sujeito ou objeto) emana a
ordem constatada. Têm-se então sistemas externos representando a ordem subjetiva,
formulados com base em proposições que buscam descrever e organizar a realidade,
predominantes no século XIX; os sistemas internos surgem na transição para o século XX
como propostas de sistemas ínsitos na matéria estudada, cuja estrutura deriva da realidade
mesma, tendo por causa final sua funcionalidade. Transpondo a classificação aos sistemas
jurídicos, Mario Losano atribui as qualificações de sistema externo de uma “estrutura como
terminus ad quem”, ou seja, aquele no qual a atividade do jurista termina por organizar e
conferir sistematicidade, facilitando a compreensão e a aprendizagem ao reunir a matéria
jurídica sob alguns grupamentos delimitados; e sistema interno no sentido de “estrutura
como terminus ad quo”, da qual a atividade do jurista parte para chegar às conclusões,
necessariamente um ordenamento positivo com a potencialidade de resolução de conflitos,
no qual são verificadas condições internas de seu funcionamento. (M. LOSANO, Sistema e
estrutura no direito, volume 1 – Das Origens à Escola Histórica, cit., p.3-5).
[306]
Losano aponta mais dois requisitos não fundamentais: a independência e a
necessidade. Os sistemas lógicos exigem que axiomas sejam independentes, prescindindo
de uma proposição prévia que lhes garanta validade. É o caso, por exemplo, do conceito de
ponto em geometria, do qual nada poderia ser colocado “antes”. No direito este requisito
seria inaplicável se tomássemos as normas como independentes de proposição prévia, uma
vez que abundam exemplos de normas subordinadas a outras normas. No entanto, Losano
interpreta de forma a adequar a exigência de independência como uma delimitação nítida
entre o conteúdo normativo do subconjunto A e o conteúdo científico do subconjunto T. É
a delimitação clássica do “mundo do ser” e “mundo do dever-ser”, no qual o discurso a
respeito do objeto não se confunde com o objeto mesmo. A necessidade trata de uma
relação biunívoca entre o subconjunto A e o subconjunto T, na qual cada axioma é
explicado por uma proposição específica – (M. LOSANO, Sistema e estrutura do direito,
vol. 1,, p.250-264).
[307]
M. LOSANO, Sistema e estrutura no direito, vol. 1, p. 10.
[308]
Donde se destaca a tese de Werner Jaeger, na qual a construção grega da
ordem das coisas é a base sobre da cultura ocidental. W. JAEGER, Praise of Law, in
Interpretations of Modern Legal Philosophies in Essays in Honor of Roscoe Pound, New
York, 1947, pp. 352-75, apud M. LOSANO, Sistema e estrutura no direito, Vol.2, p. 14.
[309]
Em outros casos é a busca por uma criteriologia própria das ciências naturais
que vem a reboque da busca de sistematização. Sobretudo na filosofia continental dos
séculos XVII e XVIII, com Malebranche, Leibniz, e Christian Wolff a ideia de sistema se
confunde com a própria realização da filosofia. A influência do raciocínio matemático
justificava a tarefa de construção de conjuntos enunciativos complexos, mas com tal ordem
que pudessem fincar raízes em uns poucos princípios axiomáticos, à maneira da geometria
euclidiana. Sobretudo em Wolff, a demonstrabilidade das proposições se torna meio
precípuo pelo qual a filosofia deverá avançar. É deste filósofo alemão a distinção entre
sistema e pseudo-sistema, este último considerado apenas pelo valor didático já que, ao
contrário do verdadeiro sistema, não possui uma estrutura lógica plena na qual proposições
posteriores se fundam nas antecedentes.
[310]
Neste tratado consta que o autor “divide e ordena a obra por grupos de
normas e categorias. É o primeiro jurista que esboça com traços firmes as instituições
jurídicas” – (R. SOHM, Institutionem: Geschichte und System des römischen Privatrechts,
München-leipzig, Duncker und Humblot, 1923, 160).
[311]
M. LOSANO, Sistema e estrutura no direito, Vol. 1, p.3-5
[312]
F. SCHULTZ, Prinzipien des Römischen Rechts, 1934, trad. ingl. M. Wolff,
Principles of Roman Law, Oxford, Clarendon, 1936, p.41.
[313]
Não apenas o Digesto, mas também o Organon aristotélico e algumas obras
de Platão retomavam a importância da cultura clássica num ambiente composto
predominantemente pela filosofia de Santo Agostinho e juridicamente pelo Decreto de
Graciano. Sobre a formação da ciência jurídica europeia no século XI v. F. WIEACKER,
Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Berücksichtigung der Deutschen
Entwicklung, 2ª ed. rev., Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1967, trad ale. A.
Hespanha, História do Direito Privado Moderno, 3ª ed., Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2004, p. 38 e ss.
[314]
Ari Marcelo Solon conjetura a respeito do método da arte gótica também
embasar as glosas jurídicas medievais, as quais, assim como as summae, também tinham
por fim uma solução conciliadora de posições a primeira vista contraditórias – (A. SOLON,
Os caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça,
Curitiba, Editora Prismas, 2015, p. 55).
[315]
A Suma Teológica de São Tomás tinha um propósito didático, de organização
do conhecimento teologal da época, mas marcado pelo influxo do Órganon de Aristóteles e
das obras latinas e árabes. No meio protestante, já no início do século XVII, Bartholomaeus
Keckermann, se inspira nas obras de Lutero e Melanchton e redige a primeira obra teologal
em língua alemã na qual há preocupação em definir o termo sistema – (M. LOSANO,
Sistema e Estrutura do Direito, p. 76).
[316]
Principalmente Carl Leonhard Reinhold, tomando o conceito de
representação como sucedâneo ao da autodeterminação humana – (C. L. REINHOLD,
Über das Fundament des philosophischen Wissens, J.M. Mauke, Jena, 1791, pp. 68 e ss.
apud M. LOSANO, Sistema e estrutura do direito, vol 1, p. 136).
[317]
No início do século XIX surgem as primeiras elaborações de histórias
universais. A ausência de um estado nacional alemão impedia que histórias nacionais
fossem desenvolvidas; ao mesmo tempo a concepção de unidade e universalidade do antigo
Sacro Império Romano Germânico, dissolvido em 1806 em consequência das Guerras
Napoleônicas, ainda era de recente lembrança. Uma história universal necessitava de um
método que a distinguisse de um mero agregado de narrativas, espalhadas por povos
diversos, desencontradas no sentido e no tempo; era indispensável, portanto, que, de modo
muito similar à ideia de sistema, uma história universal se fundasse sobre certa ordem e se
regesse por critérios formais – (M. LOSANO, Sistema e Estrutura do Direito, p.142).
[318]
Em 1814, os argumentos suscitados por Thibaut e Savigny na polêmica
acerca da codificação do direito alemão ainda se ligavam à possibilidade de reconhecer
princípios jurídicos a partir da experiência histórica, conforme havia sido levantado desde a
possibilidade de uma história universal, por Hegel. A busca por uma razão que permeia a
história é um tema fecundo da filosofia idealista do século XIX, com ecos ao longo do
século XX; no direito, o projeto de uma história universal de determinado instituto é
iniciado por Edouard Gans, investigando o direito hereditário em diferentes povos (E.
GANS, Das Erbrecht in seiner welhistorischen Entwickelung. Eine Abhandlung der
Universalrechtsgeschichte, Maurerschen Buchhandlung, 1824, apud M. LOSANO, Sistema
e Estrutura do direito, vol. 1, p. 163.)
[319]
Este é, de modo geral, o plano de fundo filosófico, notavelmente influenciado
por Hegel, que remete a uma unidade nos estudos comparatistas; segundo assinala Coing:
“Aquilo que mais se lhe aproxima é, talvez, a sistemática das vastas exposições
comparatista: de fato, toda comparação jurídica trabalha, mesmo que não o admita, com um
sistema supra-positivo e em certa medida universal” (H. COING, Grunzüge der
Rechsphilosophie, 1993, 5ª ed., pp. 293 apud M. LOSANO, Sistema e Estrutura do direito,
vol.1, p. 192). Os sistemas universais da história em compasso com o direito são vistos em
Jakob Burckhardt sob o protesto contra uma tarefa desmedida e inabarcável, derradeira
ilusão da totalidade da cultura sob o domínio humano. Repreendendo os hegelianos,
afirma: “Nós não fomos iniciados aos fins da eterna sabedoria, e não os conhecemos. Esta
audaz antecipação de um plano mundial conduz a erros a partir de premissas errôneas” (J.
BURCKHARDT, Weltgeschichtliche Betrachtungen,1905, trad. port. L. G. Ribeiro,
Reflexões sobre a história, Zahar, Rio de Janeiro, 1961, p. 11).
[320]
F. WIEACKER, História do Direito Privado Moderno, 3ª ed., p. 397 e ss
[321]
Este paradigma sugere o motivo pelo qual tanto se preocuparam os juristas
alemães com o problemas das “lacunas”. O distanciamento das situações fáticas romanas
daquelas do século XIX exigiam uma integração baseada nas fontes ao invés de
simplesmente criarem uma norma nova – (M. LOSANO, Sistema e Estrutura do direito,
vol.1, p. 230 e ss.)
[322]
“A legislação deve, primeiramente, estar separada em seus elementos
particulares, e depois ser apresentada na relação verdadeira segundo seu espírito, e só
então, o sistema, assim descoberto, poderá ser colocado nos períodos particulares
determinados, segundo uma ordem histórica”, F. K. Von SAVIGNY, Methodenlehre der
Rechtswissenschaft, 1851, trad. port. H. Marenco, Metodologia jurídica, Campinas,
Edicamp, 2001, p.7.
[323]
No século XVIII, Johann Heinrich Lambert lança mão do conceito de
“Nettigkeit” (inspirada no francês, netteté, precisão, clareza) explicitando a preocupação
com o rigor terminológico aliado a um método expositivo de fácil apreensão – (M.
LOSANO, Sistema e Estrutura do Direito, p.116-27). Platão já evocava esta beleza
revelada nas ideias percebida graças a um certo amadurecimento filosófico: “Passando daí
a contemplação da beleza dos costumes e das leis, compreenderá que a beleza é uma só em
todos os casos, para concluir, afinal, pelo nenhum valor da beleza corpórea” – (PLATÃO,
O Banquete, trad. port. C.A.Nunes, Belém, Editora UFPA, 2011, p.169).
[324]
G. F. PUCHTA, Cursus der Institutionen, 1875, Leipzig, Drud und Berlag
und Breitopf und Härtel, p. VII-XIV.
[325]
K. LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p. 25.
[326]
François Gény aponta este dado ao afirmar o que antes era tido pelo jurista
como essencial (“o papel e o valor das fontes formais”) passara a um plano subordinado,
visto como, “não sendo senão modos contingentes de expressão de uma realidade
permanente, as fontes devem ficar subordinadas a essa realidade mesma” (F. GÉNY,
Science et Technique, I, p. 41, apud M. REALE, Teoria Tridimensional do Direito, cit.,
p.6).
[327]
Com Hans Kelsen têm-se o marco definitivo da busca pela estrutura interna
em sua Teoria Pura do Direito, o que Mario Losano chama de “arquétipo do sistema
interno”. Não cabe aqui tratar das possíveis críticas do sistema kelseniano; faremos
referência aos pontos de contato com este trabalho oportunamente. A obra requer especial
atenção na linha de continuidade dos sistemas uma vez que, depois dela, ciência e filosofia
jurídica se distanciam e esta última passa a ocupar uma autoridade claramente inferior à
primeira. É com Kelsen que as normas jurídicas (Rechtsnorm) e as proposições jurídicas
(Rechtssatz) se tornam suficientemente distintas para podermos, por meio delas, distinguir
entre o discurso prescritivo do direito positivo e o discurso descritivo da ciência jurídica.
De modo semelhante, a distinção entre o “ser” (Sein) e “dever-ser” (Sollen) é apresentada a
partir da sociologia de Georg Simmel. A própria renúncia de Kelsen em aprofundar-se
numa explicação do conceito de “dever-ser” é correlata à ideia simmeliana da
impossibilidade de descrição do Sollen sem que se retome o Sein, criando assim uma
armadilha conceitual a qualquer hipótese explicativa. Segundo Simmel, o Sollen é
anteriormente lógico ao Sein, motivo pelo qual sua explicação conceitual se enquadraria
como um adentrar no mundo do ser, fenômeno que não poderia jamais se concretizar. O
sociólogo fica adstrito, então, a tentativa de transmitir o sentido do “dever-ser” como uma
gradação entre o não-ser e o ser, a qual só pode ser explicado se reconduzido a outro
“dever-ser”, assim sucessivamente. A correspondência com o escalonamento normativo
culminando numa problemática norma fundamental é uma flagrante indicação da influência
de Simmel para Hans Kelsen (G. SIMMEL, Einleitung in die Moralwissenschaft. Eine
Kritik der ethischen Grundbegriffe, Besser, Berlin, 1892, vol. 1, p.8, apud M. LOSANO,
Sistema e estrutura do direito, vol. 2, p. 116).
[328]
A recorrência de figuras de linguagem arquitetônicas nas teorias atestam esta
representação; Kant intitula uma das partes da Crítica da Razão Pura de Architectonic der
reinen Vernunft.
[329]
É assim que Rudolf Stammler (1856-1938), representante da Escola de
Marburgo, se posiciona ao buscar um conceito universal de direito, posto como estrutura
transcendental alheia a contingências históricas e positivas (M. REALE, Filosofia do
Direito, p. cit., 289). Tal conceito é norteado por uma ideia de Direito que coincide com a
ideia de justiça – daí o termo pelo qual sua teoria é destacada: o Direito justo. Sua obra de
1911 já sinaliza a passagem do paradigma oitocentista da construção para a descoberta dos
sistemas jurídicos, marcando a postura investigativa direcionada ao sistema interno (R.
STAMMLER, Theorie der Rechtswissenschaft Buchhandlung des Weisenhauses, Halle und
der Saale, 1911).
[330]
Kelsen considera a atividade da ciência jurídica uma “produção” no sentido
da teoria gnoseológica de Kant, ou seja, um aparato ordenador do caos externo produtor de
um “sistema unitário e isento de contradições, isto é, uma ordem jurídica” – (H. KELSEN,
Teoria Pura do direito, cit., p. 82).
[331]
O positivismo (não apenas jurídico, mas já consolidado em diversos matizes)
aparecia aí como alternativa, soerguendo-se por trás das críticas ao idealismo como um
conhecimento de ordem distinta, podendo ser concebido como algo não-filosófico, mas
científico. Justamente neste momento a filosofia do direito, uma vez anteriormente
consumada pela positividade, era ela agora superada pelo conhecimento positivo-
dogmático: tinha início a abordagem sistêmica de uma ciência do direito. Neste novo
quadro desenhava-se uma cisão (um rapto?) da filosofia do direito pela contraparte
científica: os anteriores problemas filosóficos – a validade, a legitimidade, a justiça
enquanto valor moral – ficavam agora sob o encargo de uma ciência da direito com
elaborações epistemológicas e metodológicas próprias. A Teoria Geral do Direito
suplantava a posição da filosofia na reflexão de alto nível na matéria, norteando os sistemas
jurídicos a partir da formulação de conceitos fundamentais próprios e indo fundo à
investigação sobre o teor interno da estrutura dos sistemas. A título de exemplo, Alf Ross
descreve a filosofia como “[um] método, e este método é análise lógica. A filosofia é a
lógica da ciência e seu objeto é a linguagem da ciência (...). O objeto da filosofia do direito
não é o direito, nem qualquer parte os aspecto deste, mas sim a ciência do direito” – (A.
ROSS, On law and justice, 1958, trad. port. E. Bini, Direito e Justiça, Edipro, 2000, p.49-
50). Cabe uma crítica a este posicionamento: no instante seguinte que o Sr. Ross afirma
que a filosofia do direito tem por objeto a ciência do direito alguém poderia indagar o
porquê. E então, no curso da explicação, estaria o Sr. Ross fazendo o que, senão uma
filosofia do direito desvinculada de qualquer ciência?
[332]
Hoje a ideia geral de sistemas é frequentemente associada à cibernética e à
teoria do controle. Há uma diversidade de modelos aplicáveis a diferentes regiões do
conhecimento, dentre os quais podemos citar a Teoria dos jogos para análises baseadas em
decisões racionais com aplicabilidade na economia e na política, Teoria da informação no
sentido da expectativa da informação como medida de organização do sistema, Teoria dos
autômatos cujo modelo geral é a máquina de Turing, explorando a capacidade de simulação
de uma complexidade ser expressa em um número finito de operações lógicas, entre outras.
O paroxismo vem com a Teoria Geral dos Sistemas postulada sob a possibilidade de
conceitos, modelos e princípios lógico-matemáticos comuns aplicáveis a diferentes ciências
empíricas. Não se deixando levar pela tentação de meras analogias entre conhecimentos
distintos, a Teoria Geral dos Sistemas busca o isomorfismo, ou seja, a aplicação de
abstrações conceituais a diferentes fenômenos - (L. VON BERTALANFFY, General
system theory: foundations, development, applications, 1967, trad. port. F. M. Guimarães,
Teoria geral dos sistemas, Vozes, Petrópolis, 2ª ed. revista, 2006, p. 37).
[333]
No Brasil, o positivismo jurídico teve suas influências mais bem delineadas
do que na Europa. A influência da sociologia de Auguste Comte, do monismo
evolucionista Ernst Haeckel, Ludwig Noiré e Herbert Spencer será nítida na obra dos
juristas de meados do século XIX. As investigações tendiam, como na Europa, para
aproximar o direito de uma ciência nos moldes do conhecimento biológico, não abrindo
mão de certo transplante metodológico da indução, como é possível intuir de Pedro Lessa:
“O filósofo que indutivamente sobe de generalização em generalização é obrigado a
reconhecer que toda legislação em qualquer país e em qualquer período histórico, repousa
em princípios fundamentais, necessários, sempre os mesmos” (P. LESSA, Estudos de
Philosophia do Direito, 2ª Ed., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1916, p. 24 apud A. L.
MACHADO NETO, História das Ideias Jurídicas no Brasil, São Paulo, Grijalbo, 1969, p.
66). A Escola de Recife, na pessoa de seu mais ilustre representante, Tobias Barreto,
também seguiria o empenho de submeter a filosofia à ciência, como deixa claro o autor em
Introdução do Estudo do Direito: “... fazer o direito entrar na corrente da ciência moderna,
resumindo debaixo desta rubrica, os achados mais plausíveis da antropologia darwínica”
(T. BARRETO, Obras Completas, vol. II, Aracajú, Editora do Estado de Sergipe, 1926, p.
127 apud. A. L. MACHADO NETO, História das Ideias Jurídicas no Brasil, p. 84). Mas
uma vez tomado o campo de estudo da filosofia por um discurso pretensamente científico,
permanecia a mesma expectativa do discurso; substituindo-se a certeza axiomática do
racionalismo pela certeza indutivista do cientificismo, mantinha-se a peculiar forma mentis
do século XIX de em tudo buscar uma sistematização rígida, firmada em pressupostos
lógicos.
[334]
Canaris deduz desta exigência axiológica o pressuposto de unidade do
sistema jurídico. É este princípio, segundo ele, que assegura a tarefa de evitar contradições
do ponto de vista lógico, realizando a tendência generalizadora da ciência jurídica. No
plano dogmático, é o princípio da igualdade está por trás da busca por segurança jurídica,
que nada mais é do que a homogeneidade das decisões adequada à heterogeneidade das
situações fáticas – (C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na
ciência do direito, 5ª ed., cit., p.18 e ss).
[335]
Este modelo simplificado de conceptualização jurídica apenas esboça o
problema da criação de conceitos. A jurisprudência alemã teve modelos mais sofisticados
como a diferenciação feita por Stammler entre conceitos jurídicos “puros”, tais como
formas a priori de conhecimento, e conceitos jurídicos “condicionados”, estabelecidos
historicamente. O conceito de direito orienta uma “construção unitária dos conceitos
jurídicos supra e infra ordenados” na qual “os conceitos superiores se apresentem como
determinações que, por seu turno, estão condicionadas pelos conceitos jurídicos
fundamentais puros”. Enfim, toda “matéria condicionada de estabelecimento humano de
fins” deve “ascender com segurança ao conceito central do Direito” – (R. STAMMLER,
Theorie der Rechtswissenchaft, p.272 apud K. LARENZ, Metodologia da Ciência do
Direito, cit., p.119 e ss).
[336]
Afirmando a segurança jurídica como valor essencial do direito ligado aos
sistemas externos, v. K. LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p. 622; C.W.
CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 5ª ed., cit.,
p. 26.
[337]
Em mesmo sentido, Humberto Ávila traz a questão da previsibilidade do
resultado das normas a partir de seu conteúdo: “(...) para assegurar o maior número de
interesses, e para fazê-lo de forma isonômica e com flexibilidade, o Estado institui normas
gerais e abstratas com elevado grau de indeterminação. Quanto maior é a abstração e a
generalidade das normas, mais fácil é a sua compreensão, porém menos previsível é o seu
conteúdo, pela falta de elementos concretos relativamente ao que é permitido, proibido ou
obrigatório” – (Teoria da Segurança Jurídica, 4ª ed. rev. ampl. atual., São Paulo,
Malheiros, 2016, p.62).
[338]
“O esforço para introduzir elementos mais concretos com a finalidade de
aumentar o caráter orientador do direito, exige, porém, a edição de regras com mais
detalhes e com mais exceções. Isso faz com que a legislação se afaste do paradigma
legislativo de instituir leis gerais e abstratas em favor de leis particulares e concretas” – (H.
ÁVILA, Teoria da Segurança Jurídica, 4ª ed., cit,. p. 62). Em mesmo sentido, v. L.
FERRAJOLI, “The past and the future of the rule of law”, in Pietro Costa e Danilo Zolo
(orgs.), The Rule of Law – History, Theory and Criticism, Dordrecht, Springer, 2007, p.
337; E. GARCÍA de ENTERRÍA, Justicia y seguridad jurídica en un mundo de leyes
desbocadas, Madrid, Civitas, 1999, p. 50.
[339]
Críticas semelhantes foram formuladas por Viehweg, v. Tópica e
Jurisprudência, p. 79.
[340]
K. LARENZ, Metodologia da ciência do direito, p. 646.
[341]
E. VOEGELIN, The Collected Works of Eric Voegelin, v. 23, History of
Political Ideas, v. II, The Middle Agesto Aquinas (1975), trad. port. M. Castro Henriques,
História das Ideias Políticas, v. II, Idade Média até Tomás de Aquino, São Paulo, É
Realizações, 2012, p. 190 e ss.
[342]
E. VOEGELIN, História das Ideias Políticas, v. II, Idade Média a São
Tomás, cit., p. 192.
[343]
E. VOEGELIN, História das Ideias Políticas, v. II, Idade Média a São
Tomás, cit., p. 193.
[344]
F. WIEACKER, História do Direito Privado Moderno, 3ª ed., cit., p. 52.
[345]
T. SAMPAIO FERRAZ JR., Introdução ao Estudo do Direito: Técnica,
Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1991, p. 85.
[346]
H. COING, Geschichte und Bedeutung des Systemgedankens in der
Rechtswissenschaft. Rede beim Antritt des Rektorats, Vittorio Klostermann, Frankfurt a.
M., 1956, p. 39.
[347]
E. EHRLICH, Grundlegung der Soziologie des Rechts, Vierte Auflage,
durchgesehen und herausgegeben von Mafred Rehbinder, Duncker & Humblot, Berlin,
1989, p. 439 apud M. LOSANO, Sistema e Estrutura do direito, v. II, cit., p.172.
[348]
E. EHRLICH, Die juristische Logik, Mohr, Tübingen, 1929, p. 259 apud M.
LOSANO, op. cit., p.174.
[349]
R. POUND, An Introduction to the Philosohpy of Law, New Haven, Yale
University Press, 1922.
[350]
K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 5ª ed., cit., p.319.
[351]
P. HECK, Interpretação da lei e Jurisprudência dos Interesses, cit., p.9-11.
Losano comenta que o termo “interesse” acaba com causar confusão na teoria, servindo ao
mesmo tempo para designar desejos e aspirações das partes como os critérios utilizados
para a resolução da lide pelo juiz. Por exemplo, o interesse é tanto a “boa-fé” do
proprietário adquirente, quanto à “exigência de certeza nos tráficos”. Confunde-se o
instrumento de medida com o resultado da medição. Heck esclarece adiante o uso na
segunda acepção, isto é, a norma emanada num “juízo de valor causal” (kausaler
Werturteil) – (P. HECK, op. cit., p. 96).
[352]
H. KANTOROWICZ, "Some Rationalism about Realism", in: Yale Law
Journal, XLIII, 1933-34, p. 1240.
[353]
H. KANTOROWICZ, "Some Rationalism about Realism", cit., p. 1241.
[354]
H. STOLL, Begriff uns Konstruktion in der Lehre der Interessenjurisprudenz,
in Heinrich Stoll (Hrsg.), Festgabe für Philipp Heck, Max Rümelin und Arthur Benno
Schmidt, Mohr, Tübingen, 1931, pp. 60-117 apud M. LOSANO, Sistema e Estrutura do
direito, v. II, cit., p. 245.
[355]
J. ESSER, Wert und Bedeutung der Rechtsfiktionen. Kritisches zum Technik
der Gesestzgebung und zur bisheringen Dogmatik des Privatrechts, Klostermann,
Frankfurt, 1940, p. 211 apud M. LOSANO, Sistema e Estrutura do Direito, cit., p. 245.
[356]
N. HARTMANN, Grundzüge einer Metaphysik der Erkenntnis, De Gruyter,
Berlin-Leipzig, 1921, pp; XII-389.
[357]
E. KAUFMANN, Kritik der neukantianischen Rechtsphilosophie. Eine
Betrachtung über die Beziehungen zwichen Philosophie uns Rechtswissenschaft, Mohr,
Tübingen, 1921, pp. I-102.
[358]
R. SMEND, Verfassung und Verfassungrecht, Duncker &Humblot,
München-Leipzig, 1928, pp.178.
[359]
H. WESTERMANN, Wesen und Grezen der richterlichen
Streitentscheideung im Zivilrecht, Aschendorff, Münster, 1955, pp.40.
[360]
H. WESTERMANN, Wesen und Grezen der richterlichen
Streitentscheideung im Zivilrecht, cit. p. 17.
[361]
B. CARDOZO, The Nature of Judicial Process, Yale University Press, New
Haven 1921, pp.180.
[362]
M. LOSANO, Sistema e Estrutura do Direito, v. II, cit., p.260.
[363]
R. ZIPPELIUS, Wertungsprobleme im System der Grundrechte, Beck,
München, 1962, p. 196; Das Wesen des Rechts. Eine Einführung in die Rechtsphilosophie,
4ª ed. Beck, München, 1978, pp. XII-224. apud M. LOSANO, Sistema e Estrutura do
Direito, v. II, cit., p. 257.
[364]
W. WILBURG, Entwicklung eines beweglichen Systems im bürgerlichen
Recht, Rede, gehalten bei der Inauguration als Rector Magnificus der Karl-Franzens-
Universität in Graz am 22. November 1950, Kienreich, Graz, 1950, p.26 apud M.
LOSANO, Sistema e Estrutura do Direito, v. II, cit., p.271.
[365]
H. COING, Grundzüge der Rechtsphilosophie, 5ª ed., trad. port. S. Fabris,
Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, Porto Alegre, Sergio Fabris, 2005, p.
293.
[366]
H. COING, Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, 5ª ed., cit., p.
293 e ss.
[367]
C. W. CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência
do direito, 5ª ed., cit., p.18.
[368]
C. PERELMAN - O. TYTECA, Traité de L1argumentation, trad. port. M.
Prado Galvão, Tratado de argumentação: a nova retórica, 2ª ed., São Paulo, Martins
Fontes, 2005.
[369]
S. TOULMIN - R. RIEKE - A. JANIK, An introduction to reasoning, 2ª ed.,
Nova York, Macmillan, 1984.
[370]
L. RECASÉNS SICHES, Nueva filosofia de la interpretación del derecho, 3ª
ed., México, Editorial Porrúa, 1980.
[371]
Castanheira Neves aponta este predomínio como um legado, posto que tardio,
da filosofia dos séculos XVII e XVIII, período no qual o racionalismo alçava seus voos
mais altos. O “direito natural” havia sido formulado até então sob uma dupla intenção.
Primeiro, havia a expectativa de uma compreensão essencial e absoluta do direito por meio
de uma filosofia reveladora de seus fundamentos ontológicos. No caso da filosofia clássica,
esta primeira intenção filosófica embasaria a busca por um espelhamento entre o direito e
uma metafísica; na filosofia cristã aproximar-se-ia de uma teologia; e na filosofia moderna
partiria de pressupostos antropológicos – a “natureza do homem”. Sendo tanto a metafísica,
quando a teologia, quanto a antropologia, formas de saber radicadas em pressupostos
absolutos – quais sejam, o ser enquanto ser, a presença divina e a natureza do homem – a
consequência direta de um direito nelas radicado seria uma intenção de compreender
absolutamente as relações humanas. Veremos o jusracionalismo participar igualmente desta
crença em seu poder de compreensão absoluta e inequívoca. A segunda intenção, em
corolário da primeira, era de uma normatividade válida em si mesma, pois decorrente de
fundamentos indeclináveis. Esta intenção normativa se traduziria sob duas vertentes
filosoficamente contrapostas. Primeiro haveria o “direito natural” como um direito
absoluto, que não concorre com o direito positivo reconhecidamente mutável a partir de
circunstâncias históricas e sociais. O direito natural por ser “natural” no sentido da filosofia
clássica (physikon dikaion) era, por assim dizer, o justo que dizia respeito às coisas
essenciais, ao passo que o direito positivo tinha sua razão de ser em regulações
convencionáveis. Já na passagem para a filosofia moderna o “natural” do direito receberia
o influxo do racionalismo axiomático-demonstrativo como fonte única de obtenção e,
portanto, de formulação de um “direito ideal” – (A. CASTANHEIRA NEVES, A crise
actual da filosofia do direito no contexto da crise global da filosofia – tópicos para a
possibilidade de uma reflexiva reabilitação, Coimbra, Coimbra Editora, Boletim da
Faculdade de Direito – Universidade de Coimbra, 2003, p.23-7).
[372]
O termo ‘forma mentis’ tem sentido técnico, utilizado aqui como
representação de certa mentalidade típica de determinado período histórico. É um sentido
bastante usual e necessário quando se busca traçar a história das ideias dentro de
determinada disciplina. Warat utiliza o conceito de “senso comum teórico dos juristas”
para designar uma “constelação de representações, imagens, pré-conceitos, crenças,
ficções, hábitos de censura enunciativa, metáforas, estereótipos e normas éticas que
governam e disciplinam anonimamente seus atos de decisão e enunciação” (L. A.
WARAT, Introdução Geral ao direito, vol. 1, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor,
1994, p. 13 e ss.). De modo mais específico, o sentido aqui buscado se relaciona ao que
Eric Voegelin chama de “structures of consciousness”: “For this custom represented by
“isms”, I want to use the term “egophanic” symbolisms. Now, that does not mean that is na
“ism” today is na egophanic case. But the “ism” itself is a stratum in philosophizing that
indicates the subjective position of a truth to be found authotitatively; so that, you might
say, you get the formulation of an “ism” as new language prison that engenders (or enfolds)
you and prevents your contact with reality. So this conception of an “ism” as an ultimate
insight concerning the truth is a modern development, and it represents what I call a
“structure in consciousness”. (E. VOEGELIN, Structures in Consciousness”, palestra
proferida na York University, Toronto, 1978, in Voegelin Reseach News, Vol. 2, n. 3,
1996, p.3).
[373]
Larenz, em comentário ao tipo de sistema que fora o grande símbolo do
logicismo jurídico, afirma que “poucos juristas (...) são capazes de libertar-se do fascínio
exercido pelo sistema conceptual-abstrato. Deslumbrados pelo conceito cientificista de
ciência, recearam abandonar, conjuntamente com o sistema conceptual-abstrato, a
pretensão de cientificidade da Jurisprudência” (K. LARENZ – Metodologia da Ciência do
Direito, p. 624). Muitas causas explicativas podem ser apontadas para a consolidação deste
paradigma do predomínio lógico: o positivismo científico e filosófico, a influência do
neokantismo, os desdobramentos da filosofia da linguagem, a ascensão da teoria dos
sistemas... Tais causas – em que pese não se poder, aqui, investigar em que medida foram
individualmente contributivas para a ciência jurídica – são, no todo, permeadas pela mesma
confiança inspirada no discurso lógico, aproximando-lhe em tom de equivalência do que se
poderia chamar de “discurso científico”.
[374]
H. RICKERT, Die Grenzen der naturwissenchaftlichen Begriffbildung, p. 236
apud K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, cit. p.127.
[375]
H. RICKERT, op. cit., p 246. apud K. LARENZ, op. cit. p.128.
[376]
H. RICKERT, Kulturwissenchaft und Naturwissenschaft, 7ª ed., 1926, p. 107,
apud K. LARENZ, op.cit., p.130.
[377]
E. LASK, Rechtsphilosophie, 1905, apud K. LARENZ, op.cit., p.131.
[378]
E. LASK, op. cit. p. 313 apud k. LARENZ, op. cit., p. 132.
[379]
A solução de Lask será prosseguir a distinção kantiana de “forma” e
“matéria” no direito. Um acontecimento fático, como uma família, é tratado inicialmente
como um “fator-norma”, sobre o qual recai a “norma”. Essa passagem empobrece o sentido
do fato, pois o viver em família possui elementos desprezados pela normatização. Há um
“apoderamento” do fato material pela comunidade jurídica, passando a constituir um
“artefato” jurídico. Contudo fica pressuposto um valor não atribuído pela comunidade
jurídica, mas pela “vontade da comunidade”, um valor que emana da própria regulação da
relação conjugal e constituição familiar (a autonomia da vontade, p. ex.). Uma segunda
passagem lhe confere significação jurídica, enquadrando-se em elemento descritivo de uma
ciência do direito, uma “forma teórica”. A noção de sistema de Emil Lask se distingue,
portanto, dos princípios de hierarquização encontrados em Kelsen e Puchta, não
culminando em uma norma ou um conceito fundamental, mas uma “vontade fundamental”
da comunidade. A diversificação de atos de vontade (do legislador, do juiz, dos
contraentes) implicaria uma multiplicidade de positividades e, portanto, uma pluralidade de
sistemas. Sobre a concepção de sistema em Emil Lask, v. T. S. FERRAZ Jr., Concepção de
sistema jurídico no pensamento de Emil Lask, 1975, disponível em <
http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/107>. Acesso em
setembro de 2017.
[380]
M. FERREIRA DOS SANTOS, Filosofia e Cosmovisão, p. 249.
[381]
“O ser vivo, como corpo (soma), está imerso na concreção. Mas, quando
atinge o estágio complexo em que se manifestam os reflexos, estes já exigem uma análise.
O reflexo é um esquema, e os reflexos condicionados e incondicionados também são
verdadeiros esquemas” – (M. FERREIRA DOS SANTOS, Noologia Geral, 2ª ed., São
Paulo, Logos Ltda., 1956, p. 115).
[382]
“A assimilação aqui já é diferente e fundamentalmente psicológica, pois o
estímulo provoca uma resposta. A diferença de potencial actua como sinal para o reflexo,
portanto o reflexo assimila o sinal do estímulo, e não o incorpora (...) A intuição
secundária, já sensível, por meio dos sentidos, a qual se dá quando da formação da medula
espinhal. E, consequentemente, no desenvolvimento da vida, uma intuição terciária e uma
quaternária (...)” – (M. FERREIRA DOS SANTOS, op. cit., p.115).
[383]
“(...) intuição terciária, quando da formação do sistema cérebro-espinhal.
Sensibilidade analítico-sintética, com formação de esquemas de esquemas, pois o esquemas
analíticos seriam assimilados a esquemas maiores que os conteriam. Essa acção
sintetizadora já implica um esquema de um esquema, com suas assimilações, que seriam
fundamentais para a compreensão da inteligência (...)” – (M. FERREIRA DOS SANTOS,
op. cit., p. 115).
[384]
“(...) intuição quaternária, intelectual, com distinção do semelhante e do
diferente, própria dos seres mais desenvolvidos e que, no homem, torna-se capaz de
estruturar o processo operatório da razão como órgão classificador” – (M. FERREIRA
DOS SANTOS, op. cit., p. 115).
[385]
M. FERREIRA DOS SANTOS, op. cit., p.152.
[386]
M. FERREIRA DOS SANTOS, op. cit., p.152.
[387]
M. FERREIRA DOS SANTOS, op. cit., p.263
[388]
Para uma explicação sobre cada uma das intuições em Nicolai Hartmann v. J.
M. ADEODATO, Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência (em
contraposição à Ontologia de Nicolai Hartmann), 4ª ed., São Paulo, Saraiva, 2009, p. 190.
[389]
B. LONERGAN, Método em Teologia, cit., p. 50.
[390]
B. LONERGAN, op., cit., p. 53.
[391]
B. LONERGAN, op., cit., p. 54.
[392]
M. WEBER, Gesammlte politische Schriften, p. 22; Gesammelte Aufsätze zur
Wissenschaftslehre, p. 208 apud L. STRAUSS, Natural Right and History, 1953, trad. port.
B.C. Simões, Direito Natural e História, 1ª ed., São Paulo, Martins Fontes, 2014, p.47.
[393]
L. STRAUSS, op. cit., p. 47.
[394]
Adiante, Strauss explana a teoria ética de Weber na qual é revelada a
equiparação dos valores contanto sejam escolhidos “com todo o coração, toda a alma e
todo o poder” (Wissenschaftlehre, pp.455, 466-9, 546). A indiferença seria repudiável para
Weber, afirma Strauss, justo a indiferença inicialmente tomada por premissa científica
diante dos valores nas ciências sociais – (L. STRAUSS, op. cit., p.56).
[395]
“(...) took whatever came to hand” – (A. BLOOM, The closing of American
Mind, New York, Simon & Schuster, 1974, p. 210).
[396]
“ A religion must, it seems, be invented for the sole purpose of defending
capitalism, whereas the earliest philosophers associated with it thought that religion must,
at least, be weakened in order to establish it” – (A. BLOOM, op. cit., p. 210).
[397] “
Social scientists simply did not see that their new tools were based on
thought that did not accept the orthodox dichotomies, that not only were the European
thinkers looking for something akin to religious actors on the political scene but that the
new mind itself, or the self, had at least as much in common with Pascal's outlook as it did
with that of Descartes or Locke” – (A. BLOOM, op. cit., p. 215).
[398]
“The sacred—as the central phenomenon of the self, unrecognizable to
scientific consciousness and trampled underfoot by ignorant passers-by who had lost the
religious instinct—was, from the outset of the value teaching, taken seriously by thinkers in
Germany. That was because they understood what "value" really means. It has taken the
softening of all convictions and the blurring of all distinctions for the sacred to be thought
to be undangerous and to come into its own here” – (A. BLOOM, op. cit., p. 271).
[399]
Um manual brasileiro de introdução ao estudo do direito define valor a partir
de necessidades subjetivas: “A ideia de valor está vinculada às necessidades humanas. Só
se atribui valor a algo, na medida em que este pode atender a alguma necessidade. Assim, a
necessidade gera o valor; este coloca o homem em ação, que por sua vez vai produzir
algum resultado prático: a obtenção de algum objeto natural ou cultural, ou a mentalização
e vivência espiritual de objeto ideal ou metafísico” – (P. NADER, Introdução ao Estudo do
Direito, 39ª ed., rev. at., Rio de Janeiro, Forense Ltda., 2017, p. 66).
[400]
Os “valores supremos” no preâmbulo da Constituição (exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça) podem remeter historicamente a fundamentos religiosos, mas estão “limpos” de
qualquer teor transcendente e parecem ter sido chamados valores apenas pela falta de um
gênero próximo capaz de reunir satisfatoriamente suas peculiaridades.
[401]
O “subjetivismo ingênuo” que acompanhou a segunda metade do século XX
é criticado no âmbito jurídico por Andrei Marmor e Joseph Raz, v. A. MARMOR, Positive
Law and Objective Values, New York, Oxford Press, 2001, pp. 160-84; J. RAZ, Value,
Respect, and Attachment, Cambridge, Cambridge Press, 2001, passim.
[402]
G. RADBRUCH, Rechtsphilosophie, trad. port., L. C. de Moncada, Filosofia
do Direito, 6ª ed., reimp, Coimbra, 1997, p.45.
[403]
G. RADBRUCH, op. cit., p.46.
[404]
G. RADBRUCH, op. cit., 85 e ss.
[405]
Benjamin Cardozo é citado textualmente por Radbruch ao tratar do
condicionamento material da Ideia como similar ao “growth of the Law”. De fato, a
similitude fica clara já nas primeiras páginas de Cardozo: “Tha law of our days faces a
twofold need. The first is the need of some restatement that will bring certainty and order
of wilderness of precedent. The second, is the need of a philosophy that will mediate
between the confliting claims of stability and progress, and supply a principle of growth” –
B. CARDOZO, The Growth of Law, New Haven, Yale University Press, 1924, p.1.
[406]
O problema parece se acentuar ao lidar-se com direito processual,
especialmente o direito civil. O caráter formal das leis criadas para lidar com uma gama
numerosas de lides trás o desafio inerente de valorações na aplicação ao caso concreto. É o
que nota Ovídio Baptista da Sivla, v. Da função à estrutura in Revista de Processo: RePro,
v. 33, n. 158, p. 9-19, abr. 2008.
[407]
O problema é abordado por Karl Larenz, v. Metodologia e Ciência do
Direito, 5ª ed., p.167.
[408]
Andrei Marmor aponta a necessidade lógica de conformação dos valores aos
casos: Se admitisse que (1) causar dor desnecessária é errado e que (2) chutar o cachorro é
causar dor desnecessária, torna-se objetivamente verdadeiro o enunciado valorativo que
chutar o cachorro é errado – Positive Law and Objective Values, cit., p.162.
[409]
K. LARENZ, Metodologia da Ciência do Direito, 5ª ed., p. 167-8.
[410]
W. BRÜGGER, “Gewährleistung – ein absoluter Wert? Gedenken zum
Bestimmtheitsefordernis zivilrechtlicher Tatsbestände”, in Gotthard Paulus et ali (orgs.),
FS für Karl Larenz, Münster, Beck, 1973, p. 202.
[411]
A. ARNAULD, Rechtssicherheit, Tübingen, Mohr Siebeck, 2006, p.9.
[412]
F. C. von SAVIGNY, System des heutingen Römischen Rechts, 2ª ed. V.1,
Berlin, Veit und Comp., 1840, p. 322 (reimp: Aalen, Scientia, 1981).
[413]
J. MEYER, Conversations-Lexicon, Zweite Abteilung, v.8, palavra
“Segurança”.
[414]
R. von MOHL, “Die Geschichte und Literatur der Staatswissenschaften”, in
Monographien dargestellt, v.1, Erlangen, 1855.
[415]
C. E. A. von HOLLEUFFER, Rechtssicherheit, unabhängige Jutiz,
ministerielle Cabinets-Justiz im Fürstenthum Schawrzburg-Sonderhausen, Dessau, 1864, p.
101.
[416]
De onde a jocosa afirmação de Racine e Siiriainen que a “segurança jurídica
que parece fazer corpo com o sistema jurídico não foi jamais definida com precisão, o que
é o cúmulo para uma noção que põe uma exigência de certeza!” – J. B. RACINE – F.
SIIRIAINEN, “Sécurité juridique et Droit Économique. Propos introductifs”, in Laurence
Boy, Jean Baptiste Racine e Fabrice Siiriainen (orgs.), Securité juridique et Droit
Économique, Bruxelles, Larcier, 2008, p.13, apud H. ÁVILA, Teoria da segurança
jurídica, cit., p. 75.
[417]
“(...) a segurança jurídica é um ‘elemento’ integrante de uma definição;
portanto, uma proposição metalinguística relativa ao Direito como fenômeno histórico. (...)
a segurança jurídica, quando analisada sob essa perspectiva [de uma definição], não é
norma, mas sim um conceito ou um elemento de um conceito. Sob esse viés, ela é definida
como uma ideia ‘supraordenadora’ (übergeordneter Idee) ou um ‘sobreconceito’
(Überbegriff). Note-se que, nesse aspecto, a segurança jurídica é um elemento da
metalinguagem doutrinária, e não uma norma sobre a qual ela verte” – (H. ÁVILA, Teoria
da segurança jurídica, cit., p. 125). Sobre a ideia de sobreconceito v. A. von ARNAULD,
Rechtssiccherheit, Tubinguen, Mohr Siebeck, 2006, p.7.
[418]
H. ÁVILA, Teoria da segurança jurídica, cit., p.76,
[419]
H. ÁVILA, op. cit., pp. 269-72.
[420]
H. ÁVILA, op. cit., p. 286.
[421]
N. MacCORMICK, “Rhetoric and Rule of Law”, in David Dyzenhaus (org.),
Recrafiting the Rule of Law – The Limits of Legal Order, Oxford, Hart, 1999, pp. 165-66.
[422]
N. LUHMANN, Vertrauen – Ein Mechanismus der Reduktion sozialer
Komplexität, 4ª ed., Suttgart, Lucius & Lucius, 2000, p. 27.
[423]
G. RADBRUCH, Rechtsphilosophie. Studienausgabe, 2ª ed., Heidelberg, C.
F. Müller, 2003 (1932), p. 73.
[424]
L. FULLER, Anatomy of Law, Connecticut, Greenwood, 1968, p. 73.
[425]
M. REALE, “Prefácio”, in Theophilo Cavalcanti Filho, O problema da
segurança no direito, São Paulo, RT, 1964, p. VI.
[426]
M. RÜMELIN, Die Rechtssicherheit, Tübingen, Mohr Siebeck, 1924, pp. 9-
10, 12-13 apud. H. ÁVILA, op. cit., p.195.
[427]
H. ÁVILA, op. cit., p. 198.
[428]
É o que argumenta Hayek: ‘is to limit coercion by the power of the state to
instances where it is explicitly required by general abstract rules which have been
announced beforehand and which [are] applied equally to all people, and refer to
circumstances known to them’ – (F. A. HAYEK, The Constitution of Liberty, Oxford,
Clarendon, 1961, p. 280).
[429]
Ávila ressalta uma defesa do General Göring, político e líder do NSDAP,
sobre o serviço da segurança jurídica perante a “comunidade do povo”, v. H. GÖRING,
“Die Rechscicherheit als Grundlage der Volksgemeinschaft”, in Hans Frank (org.),
Schriften der Akademie für Deutsches Rechts, Hamburg, Hanseatische Verlagsanstalt,
1935, p. 6 apud H. ÁVILA, op. cit., p. 197.
[430]
H. ÁVILA, op. cit., p. 198.
[431]
H. ÁVILA, op. cit., p. 199.
[432]
Radbruch explicita a convergência dos dois critérios: “Que o direito seja
seguro, que ele não seja aqui e agora de um jeito, amanhã e lá interpretado e aplicado de
outro jeito, é ao mesmo tempo uma exigência da justiça” – (G. RADBRUCH,
“Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht”, Anhang 3, in Rechtsphilosophie.
Studienausgabe, 2ª ed., Heidelberg, C. F, Müller, 2003 (1932), p. 216 apud H. ÁVILA, op.
cit., p. 676).
[433]
Há ainda a concepção da segurança jurídica que “engloba” a justiça ao
englobar “prescrições relativas à própria aceitabilidade moral das noras”, concepção que
Ávila empresta de Aleksander Peczenick, v. On Law and Reason, Dodrecht, Kluwer, 1989,
p. 31, apud H. ÁVILA, op. cit., p. 677.
[434]
H. ÁVILA, op. cit., p. 678.
[435]
H. ÁVILA, op. cit., p.679.
[436]
“Ratio politica quam nunc vocant de Statu (olim aequitas et epieikeia)
transgreditur legibus, scripto vel você promulgatae; literam, sed non sensum et finem” – C.
BESOLD apud H. MÜNKLER, In Namen des Staates, Frankfurt/M., 1987, p. 169 apud K.
GÜNTHER, Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdiskurse in Moral und Recht,
Surkamp Verlag Frankfurt am Main, 1988, trad. port. C. Molz, Teoria da Argumentação no
Direito e na Moral: Justificação e Aplicação, 2ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 237.
[437]
K. GÜNTHER, op. cit., p. 237.
[438]
Günther faz menção a uma passagem em que Carl Schmitt recorre ao
argumento da equidade em situações críticas de estados de emergência: “Nele (no
promulgador destes decretos) assoma à luz do dia, por meio de todas as ficções e
obnubilações normativistas, a verdade simples das ciências do Direito: normas só são
válidas para as situações normais e a pressuposta normalidade da situação é, em termos do
Direito positivo, parte constitutiva da sua ‘validade’ – (C. SCHMITT, “Legalität und
Legitimität”, 1932, in Verfassungsrechtliche Aufsätze, 2ª ed, Berlim, 1973, p. 263 e ss apud
K. GÜNTHER, op. cit., p. 238.
[439]
ARISTÓTELES, Etíca a Nicômaco, cit., 1108ª6.
[440]
ARISTÓTELES, op. cit., 1130ª23; 1130b2.
[441]
ARISTÓTELES, op. cit., 1129ª34; 1130b9; 1131ª10.
[442]
ARISTÓTELES, op. cit., 1108ª7; 1129b6; 1131b11; 1133ª9.
[443]
ARISTÓTELES, op. cit., 1130b2; 1133ª9.
[444]
ARISTÓTELES, op. cit., 1129b26.
[445]
ARISTÓTELES, op. cit., 1129ª6.
[446]
ARISTÓTELES, op. cit., 1130b30.
[447]
ARISTÓTELES, op. cit., 1133ª14.
[448]
Alguns autores dispensam a classificação da equidade no quadro na virtude
para considera-la diferente “in genus”, v. A. H. CHROUST, “Aristotle’s Conception of
Equity (Epieikeia)” in Notre Dame Law Review, v. 18, issue 2, article 3, 1942, disponível
em <htp://scholarship.law.nd.edu/ndlr/vol18/iss2/3>. Acesso em setembro de 2017.
[449]
ARISTÓTELES, op. cit., p. 1137b11.
[450]
ARISTÓTELES, op. cit.,1137b8.
[451]
ARISTÓTELES, op. cit., 1137b 14-19, 28-32.
[452]
T. AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 120, 1.
[453]
T. AQUINO, Suma Teológica, II-II, q. 120, 2
[454]
L. KOHLBERG, "Moral stages and moralization: The cognitive-
developmental approach". Moral Development and Behavior: Theory, Research and Social
Issues, Holt, NY: Rinehart and Winston, 1976
[455]
K. GÜNTHER, op. cit., p.238.
[456]
H. G. GADAMER, Verdade e método, cit., 473.
[457]
No Código de Processo Civil de 2015, o art. 140, dispõe: “o juiz só decidirá
por equidade nos casos previstos em lei”. A legislação parece colocar uma salvaguarda ao
arbítrio do juiz afastando a equidade. Isto resulta, possivelmente, da má compreensão do
conceito conforme ressaltado por Recasaens Siches, segundo o qual a equidade não é
“corregir la ley” mas “intrepertala razonablemente” – (L. RECASAENS SICHES, Tratado
General de Filosofia del Derecho, Mexico, Porrua, 1978, p. 654). Em todo caso, trata-se
aqui de discurso prescritivo, em seu terceiro campo, não interessando nesta parte da
exposição.
[458]
K. GÜNTHER, op. cit., p. 238.
[459]
K. GÜNTHER, op. cit., p. 238.
[460]
M. VILLEY, Formação do pensamento jurídico moderno, cit., p. 63.
[461]
AGOSTINHO, Cidade de Deus, cit., IV, 3.
[462]
AGOSTINHO, op. cit., IV, 4.
[463]
AGOSTINHO, op. cit., XIX, 21.
[464]
AGOSTINHO, op. cit., V, 19; V, 21; II, 19; Confissões, III, 8, 15.
[465]
AGOSTINHO, op. cit., XIX, 62.
[466]
M. VILLEY, Formação do pensamento jurídico moderno, cit, p. 93.
[467]
AGOSTINHO, De Ordine (~391), trad port. A. Belmonte, A Ordem, coleção
Patrística, v. 24, São Paulo, 2008, p. 218, tr. II, 22.
[468]
“A consumação final dar-se-à quando será perfeitamente formado pela gnose
todo o elemento pneumático, isto é, os homens pneumáticos que possuem o conhecimento
perfeito de Deus e foram iniciados nos mistérios de Acamot. Afirmam que eles são estes
homens” – IRINEU (Bispo) de LYON, Élencos kaí anatropè tês pseudonúmou gnóseos
(Adversus haereses), (180 d.C), trad. port. L. Costa, Contra as Heresias, col Patrística, v. 4,
São Paulo, Paulus, 2013, p. 47, trecho I, 5.6.
[469]
H. KELSEN, Autobiografia, cit., p. 29.
[470]
Um processo radicalmente distinto de apontamento da ordem por meio do
direito pode ser a separação de terras entre grupos distintos, acontecimento marcante para
Carl Schmitt, da criação simultânea do direito de propriedade (na divisão interna) e do
direito público (em relação a demais grupos). O nomos da terra seria menos uma “lei” do
que uma demarcação de pastoreio, do grego nemein – C. SCHMITT, Der Nomos der Erde
im Völkerrecht des Jus Publicum europaeum, 1997, trad. port. A. F. Sá, B. Ferreira, J. M.
Arruda e P. H. V. B. Castelo Branco, O nomos da Terra no direito das gentes do jus
publicum europaeum, Rio de Janeiro, Contraponto, 2014, pp. 37-38.
[471]
E. VOEGELIN, Ordem e História: Israel e a Revelação, cit., p. 27.
[472]
Em artigo expositivo do livro de Eric Voegelin, The nature of Law, escreve
Lee Trepanier: As participatory creatures in all of these aspects of being, humans exist in a
state of tension between the existential order of society and the true substantive order of
being. Society thus seeks its moral substance in an order of which it partakes but ultimately
is not a part – L. TREPANIER, Eric Voegelin on the Law as a Means and as an End for
True Substantive Order, 2016, disponível em https://voegelinview.com/eric-voegelin-law-
means-end-true-substantive-order/#. Acesso em setembro de 2017.
[473]
Aristóteles estabelece a concreção da busca pela ordem pelos filósofos que
“discutem sobre a natureza” como um passo adiante de seus antecessores “que discutem
sobre os deuses” – (ARISTÓTELES, Metafísica, 981b27-9, 982b18; Ética a Nicômaco,
1117b33-5). Também v. PLATÃO, Leis, 891c2-7, 896ª5-3.
[474]
Voegelin classifica de três tipos de direito nas ordens presentes na história do
ocidente: 1) o direito no contexto das sociedades cosmológicas, inspirado em periodismos
naturais e articulado sob a forma de mitos; 2) o direito no contexto de sociedades que
vivenciaram a revelação ou o salto da razão, nas quais os mitos são articulados em formas
de transcendência e filosofia; 3) o direito em sociedades nas quais a revelação e a razão
estão presentes simultaneamente como autoridades da ordem– (E. VOEGELIN, op. cit., p.
128).
[475]
Uma proposta similar, posto que partindo de uma investigação de natureza
sociológica, pode ser verificada em Niklas Luhmann ao traduzir essas possibilidades
explicativas da ordem em expectativas do homem enquanto participante no procedimento,
o que gera, segundo o autor a “disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo
ainda indeterminado, dentro de certos limites de tolerância”. Tal disposição teria, por
conseguinte, um efeito positivo na sociedade, ainda que paire sobre esta explicação a
suspeita de se estar construindo um arcabouço teórico sofisticado que no fundo aponta
apenas para a ilusão de se estar seguindo regras por um mecanismo psicológico. Tal
mecanismo não é explicado sociologicamente por Luhmann, em virtude do próprio método
da disciplina. N. LUHMANN, Legitimation durch Verfahren, trad. port. M. C. Côrte-Real,
Legitimação pelo Procedimento, Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1980, passim.
[476]
ARISTÓTELES, Polítics, trad. ingl. H. Rackham, London, Harvard
University Press, 1959, passim.
[477]
A. VERDROSS, Abendländische Rechtsphilosophie: Ihre Grundlagen und
Hauptprobleme im geschichtlicher Schau (1958), trad. esp. M. de la Cueva, La Filosofia
del Derecho Occidental: la vision panorâmica de sus fundamentos y principales
problemas, Ciudad del Mexico, Centro de Estudios Filosóficos, 1962, pp.54-68.
[478]
E. VOEGELIN, A Natureza do Direito e outros escritos jurídicos, cit., p.94.
[479]
O símbolo reaparece em Santo Agostinho, no trecho intitulado “Para
compreender que nada acontece fora da ordem divina, faz-se necessário seguir uma
disciplina racional”, e esclarece “Esta disciplina é a própria lei de Deuz que, permanecendo
sempre fixa e inabalável nele, quase se inscreve nas almas sábias para que tanto melhor
saibam viver e tanto mais sublime e mais perfeitamente a contemplem com sua inteligência
e com maior empenho a guardem em sua vida” – (AGOSTINHO, Da Ordem, cit., p. 222,
tr. II, VIII, 25.
[480]
E. VOEGELIN, op. cit., 124-5.
[481]
E. VOEGELIN, op. cit., 126.
[482]
Se estes parâmetros de exame crítico do dever ontológico só se dão
casuisticamente, em sociedades concretas e distintas, Voegelin tira daí uma consequência é
brutal: não há história do direito em sentido estrito. O direito se interessa pela regulação da
conduta humana sob condições concretas as quais só podem ser descritas historicamente de
modo indireto, pelas instituições que participaram da história da existência humana em
sociedade – (E. VOEGELIN, op. cit., p.127).
[483]
Ao responder sobre a incongruência de um direito natural diante da
mutalibidade humana, diz São Tomás: “Ora, a natureza humana é mutável. Por isso, o que
é natural ao homem pode falhar algumas vezes” [Natura autem hominis est mutabilis. Et
ideo id quod naturale est homini potest aliquando deficere] – T. AQUINO, Suma
Teológica, II-II, q.57, 2,2.
[484]
Ao responder sobre a justiça no direito positivo, São Tomás: “(...) deve-se
dizer que a vontade humana, por uma convenção comum, pode tornar justa uma coisa entre
aquelas que em nada se oponham à justiça natural” [(...)dicendum quod voluntas humana
ex communi condicto potest aliquid facere iustum in his quase secundum se non habent
aliquam repugnantiam ad naturalem iustitiam] – T. AQUINO, op. cit., id.; ao tratar da
competência para promulgar leis, afirma “Deve dizer-se que a lei própria, primeiro e
principalmente, visa a ordenação para o bem comum. Ora, ordenar algo para o bem comum
compete a toda multidão ou a alguém a quem cabe geria fazendo vezes de toda a multidão”
– (T. AQUINO, op. cit., II-II, q. 90, III) e Aristóteles “o justo legal é aquilo que antes não
importava ser de um ou de outro modo; porém, importa, sim, depois de estabelecido”.
[485]
V. supra, Parte Um, capítulo III, 2, 2.3, “Requisitos formais da tese”.

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