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Conceitos de direito e a

tridimensionalidade jurídica

Álvaro Mariano da Penha

Sumário
1. Introdução. 2. O direito por Kant, Ehrlich,
Kelsen e o tridimensionalismo realiano. 2.1. Nota
preliminar. 2.2. Definição de Kant. 2.3. Defini-
ção de Ehrlich. 2.4. Definição de Kelsen. 2.5. O
tridimensionalismo de Reale e a sua definição
de direito. 3. Conclusão.

“O direito é o igual múltiplo de si mesmo”.


Pitágoras

1. Introdução

Por meio da abordagem de três defini-


ções de direito, vindas todas de correntes
específicas de estudo (axiológica, sociológi-
ca e normativista), este trabalho tenciona
efetuar análise de cada uma delas e, ao fi-
nal, estabelecer similitudes e/ou divergên-
cias com a Teoria Tridimensional de Miguel
Reale. Tal intento se justifica pela neces-
sidade de melhor compreender o fenômeno
direito que, encerrando conceitos vários ao
longo dos séculos, apresenta-nos o desafio
de defini-lo a contento, buscando o que lhe
é perene sem olvidar sua complexidade e
mutabilidade. Além disso, a importância de
utilizar-se com exatidão o termo direito, por
aqueles que com ele operacionalizam juri-
dicamente, dá-nos sobremodo razão nessa
busca de um conceito que venha a apreen-
Álvaro Mariano da Penha é advogado no der sua essência. Como destaca Lourival
Recife. Vilanova (1947, p. 35-36), muitos outros con-
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ceitos derivam daquele do direito (relação expressar. Logo, nosso objeto será primor-
jurídica, sujeito de direito, fato jurídico etc.), dialmente as definições que, por sua vez,
sendo imprescindível entender este últi- encerrarão diferentes conceitos de direito.
mo para que os demais tornem-se inteli- Esclarecida essa diferença, vejamos a pri-
gíveis. meira definição a ser analisada.
Com esse propósito a norteá-la, esta mo-
nografia se encontra dividida em sete pon- 2.2. Definição de Kant
tos. O primeiro deles se trata de uma rápida “Direito é o conjunto de condições pelas
nota distintiva entre conceito e definição. O quais o arbítrio de um pode conciliar-se com
segundo se dedica à análise daquilo que o arbítrio do outro, segundo uma lei geral
Emmanuel Kant definiu, numa perspectiva de liberdade”(1954, p. 80). Como se perce-
axiológica, como sendo direito. O terceiro be, há três palavras-chave na asserção: con-
examina a definição sociológica de direito junto de condições, arbítrio e liberdade. Segun-
formulada por Eugen Ehrlich. O quarto traz do esse autor, liberdade é a posse de um ar-
a definição de direito dada por Hans Kel- bítrio próprio independente do de outrem, é
sen, numa óptica normativista. O quinto é o exercício externo desse arbítrio: arbítrio é
desenvolvido em torno da Teoria Tridimen- o querer1 consciente de que uma ação pode
sional de Miguel Reale, que aborda o direito produzir algo; conjunto de condições ou
nos seus aspectos axiológicos, sociológicos obrigações jurídicas (aqui Kant revisita Ul-
e normativos. O sexto ponto, por sua vez, piano) implica ser honesto, não causar le-
prende-se a considerar a definição de Rea- são/dano a alguém e entrar em estado em
le. No final da monografia, o sétimo ponto que se assegure, frente a todos, aquilo que
se constitui numa conclusão onde se avalia- cada um possua.
rão, a partir de inter-relações, os aspectos Com o suporte dessas notas fornecidas
de relevo de todas definições apresentadas. pelo próprio Kant e por Recaséns Siches,
Ao longo do trabalho, e mormente na sua poderíamos refazer a afirmação: “o direito
parte de conclusão, serão levantadas duas implica pressupostos (honestidade e respei-
questões: 1ª – uma visão globalizante pode to à posse de outrem, verbi gratia) que possi-
entender em profundidade um fenômeno bilitam a concretização recíproca do querer
pleno de especificidades com o do direito? de cada um e de todos, observando-se que o
2ª – qual o procedimento, a forma, o método querer exercido/possuído por cada um en-
pelo qual se possibilita concretamente o en- contra como limite o querer de todos”. Essa
tendimento proposto por Reale? Posto isso, definição, de caráter valorativo/axiológico,
passemos ao ponto que inicia propriamen- reflete a importância do elemento liberdade
te este conjunto de observações. (posse e exercício de arbítrio). Só há liberda-
de dentro de limites e esses são impostos
2. O direito por Kant, Ehrlich, Kelsen pela idéia de preservá-la. Jusnaturalista,
e o tridimensionalismo realiano Kant não menospreza o papel desempenha-
do pelo direito posto, contudo afirma ser esse
2.1. Nota preliminar direito posterior ao natural, que o legitima2.
Prosseguindo, vejamos uma definição de
A começar o trabalho, cabe distinguir
natureza sociológica.
conceito de definição. Grosso modo, conceito
compreende o interior, a essência de um ser 2.3. Definição de Ehrlich
ou de uma coisa; enquanto definição trata
da exteriorização desse conceito. De acordo “O direito é ordenador e o suporte de
com Paulo Nader (1994, p. 247), a defini- qualquer associação humana e, em todos os
ção se dá pela verbalização, já o conceito lugares, encontramos comunidades porque
pode ou não se servir de palavras para se organizadas”(1986, p. 24-25). Ao definir
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direito, Ehrlich busca o interior, a estrutura inter-relacionadas, compõem um todo; para
da sociedade, para asseverar que nada se que essas partes continuem a se comunicar
põe, nada se firma, nada existe, enfim, des- e a existir como um corpo, necessita-se de
provido de uma ordem. Dessarte, não existe uma estrutura que as disponha em ordem,
modo de cindir a ordenação do produto, dando hierarquia e dinamicidade ao siste-
pois este último só se torna produto por ma. Para Kelsen, norma coativa é a que evi-
apresentar-se organizado. Com coerência, ta conduta por todos indesejada por meio
Ehrlich refuta que o direito posto, como sis- da coação (mal aplicado ao infrator), em-
tema de leis, seja o único direito na socieda- pregando a força física, se necessário. Por
de, pois há comunidades que o desconhe- seu turno, norma fundamental é aquela que
cem; porém, nenhuma sociedade desconhe- concede validade, pois, toda norma do sis-
ce as manifestações normativas, a ordem tema tem seu fundamento de validade re-
dada por outros fatores/institutos (família, pousado sobre essa norma originária. E a
religião, economia etc.), que constituem o validade seria a legitimidade do ato criador
chamado direito vivo. da norma, cujo procedimento deve estar es-
No capítulo XXI de seu Fundamentos da tabelecido no ordenamento (p. 60, 269).
sociologia do direito, Ehrlich discorre sobre Após essas explicações primeiras, cabe
esse direito vivo. Trata-se do direito maior verificar que Kelsen, ao formular sua teoria,
na sociedade, abaixo do qual estariam o que não ignorava elementos outros que o direito
ele denomina categorias subalternas (a or- trazia consigo; em os abstraindo, quis ele
dem estatal e as regras de decisão dos tribu- isolar a porção normativa da fática e da axio-
nais). Vivo ele é por nascer, crescer e desen- lógica. Tal propósito se justificava na medi-
volver-se com grande dinamismo no cerne da em que buscava ele os fundamentos para
da comunidade; em contrapartida, as duas uma ciência jurídica independente, em que
outras categorias se encontram sempre em o rigor científico estaria concentrado na aná-
atraso e submetidas ao seu vigor. Nessa vi- lise à exaustão da norma jurídica; uma ciên-
são sociológica, o que se nota é o entrelace cia a permitir, bem mais justificar, as deci-
dos três tipos de direito e a comunidade, sões jurídicas num nexo próprio ao ordena-
sendo que esta última, ao se metamorfosear, mento, deixando à sociologia a análise do
modifica a sua ordem, a estrutura que lhe teor político-social e à filosofia, o teor axio-
serve de base. A relação direito/sociedade lógico/valorativo. E aqui se localiza o po-
não se configura, pois, como de coordena- rém à formulação kelseniana. À guisa de
ção, mas sim de império, onde se apresen- exemplo, Lourival Vilanova (1947, p. 99)
tam, em primeiro plano, os fatos sociais a aponta, e com ele concordamos, que, ao se
condicionar a ordem jurídica. excluir do direito o que lhe há de psíquico
ou sociológico, dificulta-se a compreensão
2.4. Definição de Kelsen da positividade (respeito à norma pelos seus
Diametralmente oposto a Ehrlich, encon- destinatários). Entre as críticas ao normati-
tramos Hans Kelsen, que define direito nos vismo de Kelsen (como também aos axiolo-
seguintes termos: “o direito se constitui pri- gismos e sociologismos no campo jurídico),
mordialmente como um sistema de normas encontra-se a Teoria Tridimensional de Rea-
coativas permeado por uma lógica interna le, que, como veremos adiante, trata-se de um
de validade que legitima, a partir de uma momento particular no estudo do direito.
norma fundamental, todas as outras normas
que lhe integram” (1984, p. 57). Compreen- 2.5. O tridimensionalismo de Reale e a
der essa definição é compreender sistema, sua definição de direito
norma coativa, norma fundamental e validade. Em linhas gerais, a Teoria Tridimensio-
Sistema pressupõe a existência de partes que, nal do Direito formulada por Miguel Reale

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postula que o fenômeno direito se nos apre- vência destes em sociedade. O mérito dessa
senta, e deve em conseqüência ser analisa- definição vê-se de pronto: o fato de uma vi-
do, por meio de três aspectos inseparáveis e são holística ser a que se ajusta o melhor ao
distintos entre si: o axiológico (que envolve o estudo do direito. Todavia, cabe fazer-lhe
valor de justiça), o fático (que trata da efetivi- algumas reflexões, que vamos expor como
dade social e histórica) e o normativo (que parte de conclusão deste trabalho.
compreende o ordenamento, o dever-ser).
Quando em estudo é tentado isolar um des- 3. Conclusão
ses elementos, surgem as concepções jurídi-
Considerando as últimas notas, fica cla-
cas unilaterais (como o moralismo de Kant,
ro o escopo realiano. A óptica tridimensio-
o sociologismo de Ehrlich e o normativismo
nal pretende findar com a tendência de se-
de Kelsen). Se o resultado desses estudos
torização de um objeto que se apresenta e
for apenas aglutinado num único estudo,
constitui-se em multiplicidade. Kant, Ehrlich
ter-se-á o tridimensionalismo genérico e abstra-
e Kelsen, e tantos outros estudiosos do mun-
to. Mas, se ao contrário, num processo de
do jurídico, não ignoravam as facetas do
integração, esse estudo procurar correlacio-
direito, porém, ao elegerem uma delas como
nar os três elementos fundantes do direito,
sendo a mais importante, comprometeram
ter-se-á o tridimensionalismo específico e con-
o entendimento global do fenômeno; isso,
creto, englobando os problemas de funda- contudo, não significou tão-somente insu-
mento, eficácia e vigência (1993, p. 514-515). cesso – veja-se que a obra de Kelsen conti-
Reale ainda acrescenta que esses elementos nua a servir de referência aos mais variados
do direito se exercem influência, fazendo trabalhos sobre norma jurídica. Embora não
surgir pólos autônomos que, numa relação tenham abarcado o todo direito, eles anali-
de dialética cultural3, entram em conflito e, saram isoladamente, com maestria e profun-
por via do elemento norma, chegam à har- didade, as partes que o integravam. Essa
monia; porém, como assinala Marcelo Ne- observação faz indagar até que ponto é pos-
ves (1988, p. 14), a porção normativa dessa sível, no campo prático e não apenas teóri-
relação de conflito não propicia a supera- co, em se seguindo a orientação tridimensio-
ção da tensão (entre valor e fato), ela tende nal, continuar obtendo igual ou maior pro-
sim a complicá-la. fundidade na pesquisa jurídica.
Tendo em conta o tridimensionalismo Nesse ponto, como resposta à questão,
específico, eis a definição dada por Reale: entendemos que o método a ser seguido, o
“direito é a realização ordenada e garanti- caminho a trilhar para que se alcance o re-
da do bem comum, numa estrutura tridi- sultado em mente, é condição sine qua non.
mensional bilateral atributiva” (1973, p. 88). Lembremo-nos de que o objeto a ser estuda-
Analisemos de início o bem comum. Para Luiz do não traz facilidades, sua constituição é
Legaz y Lacambra, trata-se de um bem esta- múltipla e suas relações recíprocas, mutan-
belecido a partir de relações entre as pessoas, tes. A nosso ver, a questão metodológica
relações cujo valor é o da realização da jus- deveria ter merecido de Reale um tratamen-
tiça. Por sua vez, a bilateralidade atributiva to especial – em sua Teoria tridimensional do
consiste na união que faz relacionarem-se direito (1994, p. 63), o autor em tela aponta
dois ou mais sujeitos, atribuindo-lhes pre- uma possível orientação metodológica, mas
tensões e estabelecendo-lhes formas de agir não lhe aprofunda a análise. O objetivo que
e de ser (1961, v. LVI, n. II, p. 83-84). a teoria tridimensional deseja alcançar no
Em outros termos, por direito entende-se conhecimento do direito depende, enorme-
a totalização de valores e fatos em normas mente, do procedimento de estudo. O como
que obrigam os seus destinatários a deter- possibilitará o ser. Estabelecer uma postura
minadas condutas, possibilitando a convi- diante de um determinado objeto é o início;

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tão importante quanto é definir o modo pelo EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do di-
qual ele será, propriamente, analisado. Isso reito. Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
não se configura como uma mera observa- KANT, Emmanuel. Introducción a la teoría del dere-
ção; no caso do tridimensionalismo especí- cho. Madrid: Instituto de Estudios Políticos, 1954.
fico e concreto defendido por Reale, trata-se KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Coim-
da sua própria realização, efetivando-se ple- bra: Armênio Amado, 1984.
namente como teoria. LEGAZ Y LACAMBRA, Luiz. La filosofia del dere-
cho de Miguel Reale. Revista da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo , São Paulo, v. 61,
fasc. II, p. 78-85, 1961.
Notas
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 9.
1
Esse querer é o da determinação radical e pri- ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.
meira que põe em ação mecanismos e atividades
humanos (imaginação, vontade etc.). Cf. Luis Re- NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das
caséns Siches. (1970, p. 75). leis. São Paulo: Saraiva, 1988.
2
Cf. Maria Helena Diniz. (1993, p. 39-40). REALE, Miguel. Filosofia do direito. 15. ed. São Pau-
3
Reale diz ser esta a dialética de implicação-pola- lo: Saraiva, 1993.
ridade, visto que os pólos valor, fato e norma impli-
cam-se mutuamente e mantêm-se irredutíveis. Cf. ______. Lições preliminares de direito. São Paulo:
Teoria tridimensional do direito (1994, p. 47-). Bushatsky, 1973.
______. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. rev. e
aum. São Paulo: Saraiva, 1994.
Bibliografia RECASÉNS SICHES, Luis. Tratado general de filoso-
fia del derecho. 4. ed. México: Porrúa, 1970.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à
ciência do direito. 5. ed. atual. São Paulo: Saraiva, VILANOVA, Lourival. Sobre o conceito do direito.
1993. Recife: Imprensa Oficial, 1947.

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