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CAROLINE MÜLLER BITENCOURT

EDUARDO DANTE CALATAYUD


JANRIÊ RODRIGUES RECK

Teoria do Direito e
Discricionariedade
fundamentos teóricos e crítica
do positivismo

1ª Edição
Santa Cruz do Sul - RS

2014
CONSELHO EDITORIAL

Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil


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Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates


Correção ortográfica: Fabiano Felten
Capa e Diagramação: João Paulo Wayhs
Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:
Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem
nascido, despertei de um sono profundo e notei que
todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as
sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em
sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de
gente, gritando: “Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”.
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram
para casa, com medo de mim. E quando cheguei à
praça do mercado, um garoto trepado no telhado de
uma casa gritou: “É um louco!”. Olhei para cima, para
vê-lo. O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e
minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei
mais minhas máscaras. E, como num transe, gritei:
“Benditos, benditos os ladrões que roubaram minhas
máscaras!”. Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha
loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não
ser compreendido, pois aquele que nos compreende
escraviza alguma coisa em nós.

GIBRAN, Khalil. O Profeta.


AGRADECIMENTOS

Aos livros, constantes interlocutores, cujo saber é inesgotável.


Aos alunos, fonte de inspiração que nos impulsiona a avançar.
À Unisc, por nos propiciar o espaço físico e intelectual para
nossas reflexões.
Ao Departamento de Direito, por acreditar e financiar nossa
obra.
A todos que acreditam que as teorias nos ajudam a explicar e
compreender o mundo.
À amizade desprendida e à paixão pela Teoria do Direito, que
nos trouxe até aqui.
SUMÁRIO

Prefácio 14

Notas introdutórias 18

PARTE I -ASPECTOS FUNDACIONAIS NA LEITURA


DE KELSEN, HART E DWORKIN: CONHECENDO OS
ELEMENTOS CONCEITUAIS 22

1 A TEORIA DO DIREITO EM KELSEN E O PROBLEMA DA


DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL 25
1.1 Kelsen e o projeto de construção de uma Teoria Pura do
Direito 26
1.1.2 Purificação no domínio “daquilo que deve ser” 28
1.1.3 Purificação no domínio da Ética (“dever ser” moral) 29
1.1.4 Purificação em relação à Política Jurídica (“dever ser”
político) 30
1.1.5 Purificação em relação ao Direito Natural (“dever ser”
ideal) 31
1.2 A Ciência do Direito 33
1.3 Os conceitos fundamentais do aparato conceitual da TPD 33
1.3.1 Norma 36
1.3.2 Sentido subjetivo e sentido objetivo 37
1.3.3 Ato de vontade 38
1.3.4 Validade 39
1.3.5 Validade e eficácia 39
1.4 A estrutura escalonada do ordenamento jurídico: norma
superior e inferior 42
1.5 A cadeia de validade e seu limite: a norma fundamental 44
1.5.1 Características da norma fundamental 45
1.6 A interpretação na TPD 48

2 A REFORMULAÇÃO POSITIVISTA EM HART: OS


CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE SUA TEORIA
ANALÍTICA E O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE
JUDICIAL 53
2.1 A crítica ao modelo paradigmático de Austin 56
2.2 A diferenciação entre hábitos e regras: uma distinção
fundamental 59
2.2.1 O ponto de vista interno e o ponto de vista externo 60
2.2.2 A classificação do Direito em regras primárias e
secundárias 62
2.2.3 A regra do reconhecimento como último fundamento de
validade, na teoria de Herbert L. A. Hart 64
2.3 A estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico em
Hart: a regra de reconhecimento e suas implicações conceituais 66
2.4 A teoria da interpretação de Hart e a discricionariedade
judicial 77

3 DWORKIN E O CONTROLE DA DISCRICIONARIEDADE


JUDICIAL COMO CRÍTICA AO POSITIVISMO: EXPONDO
CONCEITOS FUNDACIONAIS 88
3.1 Levando os direitos a sério: as críticas de Dworkin às teses
centrais do positivismo jurídico 92
3.2 A distinção fundamental entre regras e princípios 93
3.3 Os princípios, as regras e a regra de reconhecimento 101

PARTE II – REFLETINDO SOBRE OS ESPAÇOS DE


DISCRICIONARIEDADE A PARTIR DOS ELEMENTOS
FUNDACIONAIS: O DIREITO DECIDINDO 130

1. UM OLHAR CRÍTICO SOBRE O MODELO MITOLÓGICO


DO JUIZ HÉRCULES 132
1.1 Retomando mais atentamente a metáfora de Hércules 133
1.2 Refletindo criticamente e ampliando as dimensões
observáveis do modelo 140
1.3 É possível refletir a partir do modelo? 154

2 EXISTE ESPAÇO PARA UMA ARGUMENTAÇÃO QUE


CONSIDERE “ASPECTOS MORAIS” NA DECISÃO? 155
2.1 Lembrando o que “aprendemos” com o positivismo para
responder a essa pergunta 156
2.3 A crítica ao espaço da moral no positivismo: para Warat
apenas uma questão encoberta 166
2.4 Outras contribuição à análise dos argumentos morais: a
crítica de Ronald Dworkin x Richard Posner 170
PARTE III – RECORRENDO-SE A WARAT E ÀS
CONTRIBUIÇÕES DA SEMIÓTICA E DA SEMIOLOGIA
PARA DENUNCIAR OS EXPEDIENTES RETÓRICOS
POSITIVISTAS E SITUAR O PROBLEMA DA
DISCRICIONARIEDADE 180

1. Método 182
2. Semiologia e semiótica 183
3. Ciência da linguagem 185
4. Signos 190
5. Relações 194
6. Silogismo 202
7. Linguagem-objeto e metalinguagem 208
8. Definições 210
9. Falácias 218
10. Senso comum teórico dos juristas 223

CONCLUSÃO 228

REFERÊNCIAS 232
Prefácio

Em novembro de 1961, H. L. A. Hart, o mais expressivo


expoente da filosofia jurídica anglo-saxã de corte positivista, fez a
Hans Kelsen, na Universidade da Califórnia, uma visita acadêmica
motivada pelo desejo de aclarar vários pontos divergentes entre as
ideias de ambos. Na palestra, Kelsen, pensador de espírito aberto e
confessadamente antiabsolutista, declarou que a discussão entre ambos
seria bastante original, de um tipo inteiramente novo, pois embora ele
mesmo estivesse de inteiro acordo com Hart, o mesmo discordava das
ideias de Kelsen. A história divertiu Hart, que achou importante contá-
la em seu relato da viagem, publicado entre nós com o singelo título de
“Visita a Kelsen”.
Noutra história igualmente reveladora, Luis Recaséns Siches
conta-nos da visita que Kelsen fez à UNAM – Universidad Nacional
Autonoma de México –, em abril de 1960. Pouco antes da palestra,
ao perceber o auditório lotado, com três mil ouvintes aguardando
sua fala, Kelsen perguntou a Siches como era possível que no México
houvesse tantas pessoas interessadas em assunto tão árido e abstrato
como a Teoria Pura do Direito. Siches respondeu que na América
Hispânica havia três tipos de juristas: os kelsenianos fanáticos, que
defendiam com unhas e dentes a doutrina do mestre de Viena, os
antikelsenianos, igualmente fanáticos, que passam a vida combatendo
as ideias kelsenianas, consideradas como fruto de um grupo maligno, e
um último grupo, formado por juristas críticos, que absorvem aspectos
importantes da teoria do mestre de Viena, mas que buscam ângulos
novos, capazes de alargar os horizontes para a teoria do direito.
O relato nos mostra atitude espiritual do pensador vienense,
15 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

sempre atencioso com discípulos e colegas universitários e sempre


cuidadoso no exame de ideias alheias, buscando muito mais a
correta reconstrução de linhas argumentativas que a simplificação
e rebaixamento das opiniões alheias, processo de que foi vítima
durante décadas, na condição de vilão preferencial da teoria do
direito, responsabilizado (ele e sua teoria) pelos mais diversos desvios
tomados pela claudicante humanidade europeia (e não só!) durante o
conturbado século XX.
Igual espírito ilustrado e aberto encontramos em Hart. O
grande jurista anglo-saxão ministrou uma conferência, certa feita, na
Universidade de Jerusalém e lá um jovem estudante de nome Joseph
Raz pediu a palavra e apontou falhas na concepção do sistema jurídico
hartiano. Hart não somente convidou Raz para aprofundar os estudos
em Oxford como depois recomendou seu ingresso como professor na
multissecular universidade inglesa, num magistério que haveria de
durar 21 anos. Antes disso, Hart já havia indicado como seu sucessor
na cátedra ninguém menos que Ronald Dworkin, o jurista que dedicou
um esforço considerável de sua obra justamente em demonstrar os
equívocos teóricos de seu antecessor, naquele que ficaria conhecido
como “Hart-Dworkin debate”.
Na academia brasileira, tão cheia de escolinhas e grupos
fechados, onde as disputas de poder se sobressaem e por vezes sufocam
a livre investigação acadêmica, esses são exemplos que deveriam
ser seguidos. Se uma autêntica ação comunicativa, desprovida de
intenções manipulatórias e instrumentais, é tão difícil na sociedade
da diferenciação funcional estruturada, na academia, no entanto, esta
deveria ser a regra, pressupondo sempre que o interesse dos envolvidos
é tão somente no avanço da ciência e na problematização das teorias,
atitude cujo valor heurístico reside justamente na possibilidade de
suscitar novas leituras e novas soluções para os dilemas centrais da
teoria do direito.
Luis Warat, o terceiro convidado ao debate que o leitor
encontra nas páginas deste livro, tão bem escrito por Janriê Rodrigues
Teoria do Direito e discricionariedade 16

Reck, Caroline Müller Bitencourt e Eduardo Dante Calatayud, jovens


professores da Universidade de Santa Cruz do Sul, foi um leitor atento
das obras de Kelsen e Hart. Herdeiro das tradições da filosofia analítica
em sua melhor e mais rigorosa escola latino-americana, da Faculdade
de Direito da Universidade de Buenos Aires, Warat dedicou inúmeros
textos de compreensão do pensamento kelseniano, construindo uma
visão singular do pensamento do mestre de Viena, que buscava pensar
uma crítica da dogmática jurídica a partir da Teoria Pura do Direito,
lendo-a numa profundidade até então desconhecida entre nós. De
Warat emerge um Kelsen singular, único, que põe contra a parede
muitas das verdades canônicas do mundo jurídico.
Também Warat, como mestre e educador, mantinha a atitude
aberta e dialógica que pressupunha a relação mestre-aluno como uma
autêntica relação “amorosa”, em que o envolvimento pressupunha
o exercício da capacidade de seduzir. Nas suas provocações, sempre
carinhosas, Warat perguntava a seus discípulos mais próximos, que
tiveram a grata oportunidade de conviver com o autor do Manifesto
do Surrealismo Jurídico, porque se obstinavam “em querer salvar o
direito?” (entre outras de igual jaez)... Provocações que me lembravam,
pessoalmente, as sessões de psicanálise que frequentei, ao me deparar,
na casa dos trinta, com muitos dos dilemas existenciais que sufocamos
na primeira juventude. Ao invés da figura dominadora e controladora
dos professores tradicionais, Warat estendia a seus alunos um “tapete
mágico”, em que podiam viajar pelo conhecimento, adotando uma
postura socrática. Como bem observou Leonel Severo Rocha, seu mais
próximo colaborador e amigo dileto, Warat fazia com que todos os seus
alunos se sentissem especiais, mesmo que, de fato, não o fossem. De tal
sedução surgia uma imensa abertura para novas ideias.
Em seus últimos anos, Warat retomou os temas da sua
trajetória inicial e organizou um curso intitulado “Kelsen 30 x 30”
(trinta ideias-chave em trinta horas!), ministrado em salas de aula
abarrotadas de interessados. E o que se acompanhava em tais aulas
era uma leitura absolutamente heterodoxa do pensamento kelseniano.
17 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Num dos seus últimos escritos, “Kelsen e o Estado de Exceção”, Warat


apontava para um aspecto pouco lembrado da teoria do mestre de Viena:
a possibilidade de o juiz julgar “fora da moldura”, que teima em colocar
em xeque o próprio Estado de Direito, aquele que se diz “governo de
leis”, como se estas governassem sem o protagonismo humano, e, ao
fazê-lo, por conta das dobras da linguagem em que o direito trafega,
torna-se o seu contrário, o Estado de Exceção. Muito antes de Giorgio
Agamben ter tornado moda falar em Estado de Exceção, dizia Warat
que Kelsen já o havia feito décadas atrás. Como na metáfora platônica,
em que nos extremos do amor encontramos o ódio ou nos extremos
do prazer encontramos a dor, também no seu limite, no momento da
decisão, o Estado de Direito pode transmutar-se em Estado de Exceção,
não como um outro, mas simplesmente como a segunda face da mesma
moeda.
Entre esses três gigantes do pensamento jurídico
contemporâneo há um fio condutor temático que percorre os temas
clássicos da teoria do direito: a interpretação, a normatividade, o papel
da moral, a autonomia do jurídico. Tais temáticas são desenvolvidas
com maestria na obra que o leitor tem em mãos. Sentados nos ombros
de tais gigantes, os autores nos descortinam a cena grandiosa de uma
discussão ainda em aberto sobre a decisão jurídica. Vale a pena ler o
que segue.

Arnaldo Bastos Santos Neto


Doutor em Direito pela UNISINOS-RS

Professor adjunto da Universidade Federal de Goiás


Notas introdutórias

O livro que ora apresentamos ao leitor reflete muito das


angústias encontradas ao longo dos anos em que nos debruçamos
sobre alguns clássicos da Teoria do Direito. Podemos dizer que tais
autores e temas estiveram no centro de muitas discussões acadêmicas
que vivenciamos e compartilhamos enquanto inquietações teóricas.
Escrevemos nossas angústias para que a crítica gere o debate e o debate
traga avanços às inúmeras discussões que circundam a Teoria do Direito.
Se avançarmos minimamente nesse eterno debate, podemos então
dizer que nosso objetivo foi atingido. Não pretendemos resolver nada,
mas apenas clarear alguns pontos que em nosso entender merecem
ser referidos na academia em todos os seus níveis. Escrevemos juntos,
pensamos juntos e, mesmo quando discordamos, concordamos que
isso também faz parte da vida no Direito.
A primeira pergunta que essa obra poderia enfrentar é: para
que tratar de positivismo, quando a “moda” jurídica tanto se refere a
pós-positivismo, neopositivismo e outros “ismos”? A resposta é tão
simples que beira o absurdo. Os anos vivenciados nas salas de aulas
nos mostraram que existem tanto os positivismos quanto as confusões
que se reproduzem em torno de alguns de seus conceitos. Entendemos
que o positivismo não foi superado e muito menos compreendido, pois
acreditamos que os juristas estão submersos em conceitos, estereótipos
e crenças positivistas que desconhecem. Está ele tão impregnado na
cultura jurídica que passa despercebido. Não é novidade o que estamos
dizendo, mas reforçar as críticas tão denunciadas por Warat, Leonel
Severo Rocha, Roberto Lyra Filho, Tércio Sampaio e outros nunca é
demasiado. Nesse sentido é que achamos necessário compreender
19 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

o positivismo para criticá-lo, e criticá-lo naquilo que merece ser


criticado, bem como avançar naquilo que é possível, não a partir de
sua refutação, mas sim a partir de suas contribuições. Na verdade,
acreditamos que o positivismo propiciou muitas “bengalas” aos medos
dos juristas, que nada mais são do que humanos. Como é bom imaginar
o mito da segurança jurídica... Mas em algum momento precisamos
nos emancipar de determinados conceitos que nos enrijecem e nos
aprisionam. Necessário rever os dizeres de Rocha:

A teoria jurídica dominante encontra-se determinada por


uma metodologia positivista. As abordagens jurisdicistas
são eminentemente analíticas, voltadas aos aspectos
empírico-lógicos das normas. O normativismo, apesar do
fracasso da teoria purificadora de Hans Kelsen, continua
sendo a matriz teórica preferida dos juristas. Apenas
foram acrescentados alguns pressupostos teóricos
jusnaturalistas, com a necessidade de justiça social e
direitos humanos (que têm fornecido um importante
topos questionador do regime político-dominante),
para responder a questão da legitimidade. Ou seja, a
epistemologia jurídica dominante utiliza um instrumental
positivista, fundamentado em um jusnaturalismo crítico,
mas que, em última instância, privilegia a doxa – o senso
comum teórico dos juristas1.

Por essas e outras, o positivismo, mais uma vez, é um dos


temas centrais do debate que nos propomos. Mais especificamente, o
positivismo analítico, pois é ele o responsável pela eterna tentativa de
separar teoria e prática.
Entendemos também necessário antever e explicar outra
pergunta que pode estar na mente do leitor: o que levou à seleção
dos referidos autores?Parece-nos que, em se tratando de estudo
de Teoria do Direito na academia brasileira, dois nomes assumem
maior revelo nas obras publicadas em âmbito nacional: Hans Kelsen

1
ROCHA, Leonel. Epistemologia jurídica e democracia. São Leopoldo: Unisinos,
1995, p. 34.
Teoria do Direito e discricionariedade 20

e Herbert Hart. Por que não Austin ou Ross? Essa é uma indagação
a qual não conseguimos responder, e nem parece um resultado óbvio
pela adoção do sistema, haja vista termos instrumentos e mecanismos
que remontam às teorias austro-germânicas, bem como à americana,
como ocorre no controle de constitucionalidade, no misto controle
difuso e concentrado. Quiçá explicar a influência de Hart em nossas
reflexões quando o mesmo observa a realidade Inglesa, que em
muito se difere do “civil law” (se é que ainda podemos assim referir
o sistema brasileiro),o qual, em tese, rege nosso sistema. Se a escolha
doutrinária em algum momento justificou-se ou mesmo foi aleatória
para observar o sistema brasileiro (que, ao fim e ao cabo, encontra
mais “Pontes de Miranda” em sua fidelidade), não sabemos, mas é fato
que não podemos desconhecer e negar a importância que tais autores
assumiram na academia brasileira, enquanto ditos “precursores do
positivismo analítico”. Teorias modernas, como a de Neil MacCormick
em sua obra L.A Hart, chegam a classificá-lo como um possível pós-
positivista, dado o espaço de discricionariedade que o mesmo teria
atribuído a um Tribunal. No entanto, ressaltamos novamente: na
maioria dos manuais sobre teoria do direito no Brasil estão os referidos
positivistas Kelsen e Hart, influenciando nossos conceitos sobre norma
fundamental, normas primárias e secundárias e tantos outros.
E quanto a Dworkin? Qual seu papel em tudo isso? Mais uma
vez, impossível negar que a obra de Dworkin, cujo autor é classificado
como um “pós-positivista”, nasce de uma crítica ao sistema analítico/
descritivo de Hart, e daí segue sua importância e influência na doutrina
brasileira. O fato é que, para se falar em regras e princípios hoje, é
praticamente condição sine qua non falar nesse autor. Mas aqui seu
papel está um pouco além do senso comum, pois, como entendemos
que é o solipsismo o elo entre as teorias analisadas, acreditamos que
o combate à discricionariedade propiciou abertura ou margem à
própria discricionariedade. Sob esse aspecto, acreditamos que também
Dworkin (e seu Hércules solipsista) caiu no mesmo erro que fez questão
de apontar em Hart, ao buscar velar os argumentos morais, dando-lhes
21 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

jurisdicidade através dos princípios.


Daí entra o aspecto do espaço da discussão dos argumentos
morais para o positivismo, mostrando que os argumentos possíveis
para um sistema analítico assumem diferentes denominações, seja
“moldura”, seja “textura aberta”, sejam “princípios”– cada teoria adota
o argumento que melhor lhe convém. A importância de estudar Warat
é que ele, mais do que ninguém, denuncia essas questões através
dos expedientes retóricos que identificou por meio da semiótica e da
semiologia.
Assim, em uma primeira parte, o livro vai trazer os conceitos
fundamentais e fundacionais das selecionadas obras de Kelsen, Hart
e Dworkin, escolhidos pelo fio condutor da discricionariedade. Esse
será o momento mais analítico/descritivo. Na segunda parte, duas
questões centrais serão levantadas consegue o positivismo afastar
os argumentos morais? Dworkin incorre na mesma crítica que faz a
Hart, agindo solipsistamente ao dar resposta aos problemas da vida no
Direito? Impossível, após refletir tais questões, não recorrer a Warat
para organizar a crítica através das categorias por ele apresentadas.
Selecionamos esse autor para criticar, na terceira parte do livro, o
senso comum teórico dos juristas.
Em todos esses momentos o debate sobre o espaço e o controle
da discricionariedade conduz a discussão e passa tanto a denunciar
quanto a criticar como essa questão é tratada pelo positivismo analítico.
Eis a proposta do texto: criticar para ser criticado, com o
intuito de avançar.
PARTE I

ASPECTOS FUNDACIONAIS NA
LEITURA DE KELSEN, HART E
DWORKIN: CONHECENDO OS
ELEMENTOS CONCEITUAIS
Teoria do Direito e discricionariedade 24

Estudaremos o modelo teórico desenvolvido por Kelsen, na


sua célebre obra Teoria Pura do Direito, e mostraremos os problemas
decorrentes da concepção kelseniana em relação à interpretação
judicial. No segundo momento da primeira parte, a análise focalizará a
teoria jurídica de Hart, evidenciando um avanço em relação à primeira
teoria desenhada. A seguir, o estudo abordará a concepção de Dworkin
sobre a interpretação de regras e princípios, com o intuito de, segundo
o autor, obter um maior controle sobre a discricionariedade judicial.
Que o leitor não deixe de observar o fio condutor dos debates
25 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

propostos: o espaço da discricionariedade judicial nas referidas obras,


pois, em um segundo momento, esse espaço, antes descritivo, passa a
ter um caráter reflexivo e mais crítico.

1 A TEORIA DO DIREITO EM KELSEN E O PROBLEMA DA


DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

Hans Kelsen (1881-1973) é, sem sombra de dúvida, um dos


juristas mais influentes do século XX e sua obra, Teoria Pura do
Direito2, até os dias atuais, reverbera no horizonte jurídico. No dizer
de Tércio Sampaio Ferraz Jr., “jurista de extraordinário valor, dele
pode-se dizer que foi um divisor de águas para toda a teoria jurídica
contemporânea”3.
Sobre os três tipos de pensar o Direito, conforme Carl Schmitt4
- decisionismo, normativismo e instituição -, o pensamento kelseniano
se constitui, no século XX, como o maior expoente que define o Direito
como norma, de tal forma que a mesma ocupa um lugar central na sua
obra, notadamente na sua busca para desenvolver um projeto moderno
para a Ciência do Direito5.
Nesse sentido, o projeto kelseniano contrapõe-se frontalmente
ao jusnaturalismo moderno, na medida em que neste se busca
reconhecer o Direito como algo “dado” ao conhecimento humano, não
como fatos, mas como um projeto inteligível que poderia ser obtido
através da capacidade humana de pensar e conhecer racionalmente.

2
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
3
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Prólogo. In: COELHO, Fabio Uchoa. Para entender
Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2001, p. XIII.
4
RONALDO JR., Porto Macedo. Carl Schmitt e a fundamentação do Direito: Sobre os
três tipos do pensamento jurídico; o Führer protege o Direito de Carl Schmitt. Tradução
de Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 164-178.
5
MICHELON JR., Cláudio Fortunatto. Aceitação e objetividade: uma comparação entre
as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem e o conhecimento do
direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 92.
Teoria do Direito e discricionariedade 26

Daí resulta a distinção de que no Direito Natural não há a preocupação


de isolar o Direito do campo extranormativo, que é a inquietação
epistemológica basilar buscada pelo positivismo jurídico. Essa angústia
positivista, que vai ser traduzida na tentativa de isolar o Direito da Moral
(Justiça) e do Poder (Política)6, em última análise, permeabilizará in
totem as preocupações epistemológicas kelsenianas no seu projeto de
construção de uma Teoria Pura do Direito, como se observará a seguir.

1.1 Kelsen e o projeto de construção de uma Teoria Pura do Direito

O projeto kelseniano caracteriza-se por erigir-se como um


projeto epistemológico que tem por objetivo purificar a Ciência do
Direito, estabelecendo como premissa primeira a delimitação do seu
objeto de conhecimento, a saber, o Direito, para, a partir do mesmo,
ser capaz de descrevê-lo objetivamente. A aferição de tal assertiva
pode ser comprovada tanto no prefácio da primeira edição da Teoria
Pura do Direito7 (1934), como também no início de sua segunda edição
(1960), a qual, por se tratar de uma obra mais completa e enriquecida
pelo autor, utilizaremos para o presente trabalho.
É com esse objetivo que pontifica Kelsen:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma


teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda ideologia
política e de todos os elementos da ciência natural, uma
teoria jurídica consciente de sua especificidade porque
consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo,
desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência,
que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por
completo em raciocínios de política jurídica, à altura
de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito.
Importava explicar, não as suas tendências endereçadas
à formação do Direito, mas as suas tendências

6
Cf. BARZOTTO, Luis Fernando. O Positivismo Jurídico contemporâneo: uma
introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: UNISINOS, 1999, p. 29.
7
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998.
27 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e


aproximar tanto quanto possível os seus resultados do
ideal de toda ciência: objetividade e exatidão.8
O autor reafirma esse projeto na segunda edição da TPD, ao
explicitar:
Quando a si própria se designa como “pura” teoria do
Direito, isso significa que ela se propõe garantir um
conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste
conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto,
tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar
como Direito. Quer isso dizer que ela pretende libertar
a ciência jurídica de todos os elementos que lhe
são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico
fundamental.9

Como se depreende do pensamento de Kelsen, o mesmo


buscou, desde sua base, instituir na ciência jurídica um método e um
objeto próprio (direito positivo em geral) e, dessa forma, ao apartar-
se do sincretismo metodológico, permitir ao jurista uma autonomia
científica que o possibilitasse descrever o Direito, limitado à análise
do mesmo como sendo a única realidade jurídica. Daí o porquê do
desenvolvimento do princípio da pureza que se consubstancia na “tese
da separação” (de todos os elementos estranhos à ciência jurídica),
em que as demais ciências e suas questões alheias à Ciência do Direito
deverão ser respondidas e investigadas em suas próprias esferas de
adequação, que, embora legítimas, não pertencem ao campo da ciência
jurídica. Não é outra sua afirmativa:
De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência
tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a
ética e a teoria política. Essa confusão pode, porventura,
explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a
objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão
com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar
o conhecimento do Direito em face destas disciplinas,
fá-lo-á não por ignorar ou, muito menos, por negar esta

8
ibidem, p. 1.
9
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 1.
Teoria do Direito e discricionariedade 28

conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo


metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica
e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do
seu objeto.10
Para tal finalidade – a de construir um projeto autônomo
do Direito com um método e objeto próprio da ciência jurídica –,
Kelsen vai estabelecer uma concepção do Direito em que somente se
estabelecem tais condições através de um enfoque normativo. Em
outras palavras, o Direito, seja como objeto de análise para o jurista
ou como o método a ser aplicado por este, apenas se constitui como
referencial normativo, excluindo os fatos sociais (brutos), como
também uma axiologia transcendente. É desse modo que o enfoque
kelseniano coloca as normas como premissa básica do conhecimento
do Direito e de seu método.
Em síntese, situando-se o Direito no plano do “dever ser”,
sob o prisma do método purificador, será necessário diferenciá-lo
tanto do plano ontológico (ser) como também de outros fenômenos
que se incluem no plano do “dever ser”, mas que, contudo, não se
confundem com o mesmo. Uma vez realizada tal tarefa, nos deteremos
na análise do enfoque jurídico normativo e, por último, na teoria
da interpretação, como corolário da concepção kelseniana, e suas
implicações na problemática da discricionariedade judicial. Esse é o
traçado que percorreremos no caminho a seguir.

1.1.1 A purificação no domínio “daquilo que é”: a Sociologia

Com o propósito de separar o âmbito jurídico da sociologia,


preceitua o autor:

A sociologia do Direito não põe os fatos da ordem do ser


cujo conhecimento lhe compete em relação com normas
válidas, mas põe-nos em relação com outros fatos da
ordem do ser, como causas e efeitos. Ela pergunta, por
exemplo, por que causas foi determinado um legislador
a editar precisamente essas normas e não outras, e que

10
Ibid., pp. 1-2.
29 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

efeitos tiveram seus comandos. Pergunta por que forma


os fatos econômicos e as representações religiosas
influenciam, de fato, a atividade do legislador e dos
tribunais, por que motivos os indivíduos adaptam ou não
a sua conduta à ordem jurídica. Assim, não é, a bem dizer,
o próprio Direito que forma o objeto desse conhecimento:
são, antes, certos fenômenos paralelos da natureza.11

Na mesma linha de raciocínio, reafirma Kelsen:

A Teoria Pura do Direito, como específica Ciência


do Direito, concentra – como já se mostrou – a sua
visualização sobre normas jurídicas e não sobre os fatos
da ordem do ser, quer dizer: não a dirige para o querer
ou para o representar das normas jurídicas, mas para as
normas jurídicas como conteúdo de sentido – querido ou
representado.12

Percebe-se, na assertiva do autor, que, para o mesmo, há


um significado autônomo do Direito em relação à sociologia jurídica.
Nesse sentido, é necessário separar as duas ciências, na medida em que
a última não se relaciona com a primeira (com normas válidas) e sim
apenas estabelece uma relação de fatos concretos (como objeto de sua
investigação sociológica) com outros fatos concretos. Essa relação de
causa e efeito, para Kelsen, não se coaduna com a significação jurídica,
pois esta deve ser determinada apenas pelo sistema jurídico.

1.1.2 Purificação no domínio “daquilo que deve ser”

Ao dar continuidade ao seu método purificador, Kelsen


também passa a utilizá-lo para diferenciar o Direito das demais
ordens sociais que se constituem no domínio do “dever ser”, mas que,
entretanto, não se confundem com aquele. Nesse contexto, a finalidade
buscada pela concepção kelseniana, consubstanciada na “purificação”,

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed.
11

São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 113


12
idem, p. 113.
Teoria do Direito e discricionariedade 30

é delimitar o referencial que torne possível a cognição jurídica. Para


tanto, faz-se necessário articular as condições desse conhecimento
jurídico, contrapostas a outros planos do “dever ser” (Ética, Política e
Direito Natural). São os tópicos que desenvolveremos seguir.
1.1.3 Purificação no domínio da Ética (“dever ser” moral)

Kelsen afirma:

[...] A exigência de separar o Direito da Moral e a


ciência jurídica da Ética significa que a validade das
normas jurídicas positivas não depende do fato de
corresponderem à ordem moral, que, do ponto de vista
de um conhecimento dirigido ao Direito Positivo, uma
norma jurídica pode ser considerada válida ainda que
contrarie a ordem moral. [...] O que sobretudo importa,
porém – o que tem que ser sempre acentuado e nunca será
o suficiente – é a ideia de que não há uma única Moral,
“a” Moral, mas vários Sistemas de Moral profundamente
diferentes uns dos outros e muitas vezes antagônicos,
e que uma ordem jurídica positiva pode muito bem
corresponder [...] às concepções morais de determinado
grupo [...] e contrariar, ao mesmo tempo, as concepções
morais de outro grupo ou camada da população.13

No campo mencionado, verifica-se que, se por um lado, para


Kelsen, ao existir uma pluralidade de sistemas morais (díspares entre
si) e, portanto, relativos, essa relatividade torna iníqua a legitimação da
Ciência do Direito pela ordem moral, na medida em que tal valoração
dependeria do padrão moral que seria estabelecido. Por outro lado, ao
conceber o Direito como um sistema de normas que regula a conduta
humana, para esse modelo a norma jurídica torna-se o elemento central
do ordenamento jurídico.
Nesse diapasão, para a significação normativa, o decisivo é
a validade da mesma (conceito que abordaremos mais adiante). Daí
porque, estando uma norma em conformidade com a norma superior
e o órgão que a autoriza, o “dever ser” jurídico que a mesma implica

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
13

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 77.


31 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

é indiferente à ética e ao “dever ser” moral. Assim, se não é negada


pelo autor a legitimidade da moral ou da religião, é feita uma separação
contundente entre aquelas e o Direito, de tal forma que este não
depende do valor moral, mas apenas da validade, que é delimitada
intranormativamente (ou seja, conceituada no interior do sistema
jurídico), numa estrutura hierarquicamente escalonada até o ápice da
cadeia de validade – a norma fundante pressuposta.
Essa separação, que torna independente o Direito da Moral,
em que o valor desta não é condição de juridicidade de uma norma, se
constitui num dos alicerces epistemológicos do positivismo e sofre, até
o presente, críticas agudas (como se analisará na concepção de Direito
em Dworkin e na sua crítica ao modelo positivista em geral). De outro
lado, Kelsen preceitua inequivocamente que a coação (apesar de não
ser muito claro na distinção entre coação e sanção) é um elemento de
distinção essencial do Direito em relação a outras ordens sociais e,
portanto, frente à ordem moral. Nesse sentido, afirma o autor:

Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras


ordens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância
de que o ato instituído pela ordem como consequência de
uma situação de fato considerada socialmente prejudicial
pode ser executado mesmo contra a vontade da pessoa
atingida e – em caso de resistência – mediante o emprego
da força física, é o critério decisivo [sic].14

Por sua vez, esse critério da organização da força, determinado


pelo ordenamento jurídico, vai proteger os indivíduos a ele submetidos
do uso da força por parte dos outros.

1.1.4 Purificação em relação à Política Jurídica (“dever ser” político)

Nas palavras de Kelsen:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
14

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 37.


Teoria do Direito e discricionariedade 32

[...]. Como teoria, quer unicamente conhecer o seu


próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que
é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de
saber como deve ser o Direito, ou como deve ser feito. É
ciência jurídica e não política do Direito.15

No projeto de purificação relativo ao “dever ser” político,


são dois os objetivos principais da concepção kelseniana: alijar do
objeto teórico (Direito Positivo) todas as axiologias derivadas do
campo ideológico e imunizar a ciência jurídica de tais valorações
extranormativas, buscando que a mesma cumpra sua função de
analisar estruturalmente o Direito através de construções descritivas
sobre seu objeto.
Para tanto, percebe-se, no método purificador aplicado
ao plano em questão, o afastamento de um direito ideal, uma meta
da política, para aplicar no centro da questão unicamente o Direito
Positivo, real, que a Ciência do Direito toma como objeto de seu
conhecimento. Nesse contexto, se a política tem como um dos seus fins
primordiais a justiça e se não há uma norma de justiça unívoca, então há
a necessidade de isolá-la do conhecimento jurídico. Por consequência,
Kelsen reconhece a legitimidade do campo político, mas o circunscreve
à sua esfera própria.16
Também nesse plano do “dever ser” político, Kelsen opera
um reducionismo epistemológico. O Direito deve ser descrito “como
ele é”, em que apenas o direito positivado deve ser o objeto da Ciência
do Direito, afastando-se qualquer conteúdo ideológico. Objetivo que,
para inúmeros críticos de sua obra, não foram alcançados, pois valores
e conteúdos axiológicos entram sub-repticiamente numa pretensa
objetividade que, em última análise, depende de uma consideração
fática (eficácia) ou de um axioma metafísico (a norma fundamental).17

KELSEN, Hans. Fundamentos da Democracia. Trad. de Marcelo Brandão Cippola.


15

São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 1.


16
ibid., p. 264.
17
BARZOTTO, Luis Fernando, op. cit., p. 71. “A validade objetiva da ordem jurídica,
33 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

1.1.5 Purificação em relação ao Direito Natural (“dever ser” ideal)

Nos termos do autor: “Ela (TPD) quer representar o Direito


como ele é, não como deve ser: pergunta pelo Direito real e possível,
não sobre o Direito ideal ou justo”.18 Verificamos, através da assertiva
de Kelsen, que o Direito ideal ou justo relaciona-se com a indagação de
como o Direito deve ser. Entretanto, do ponto de vista kelseniano, que
busca elaborar uma teoria jurídica unicamente centralizada no Direito
Positivo, como expressão normativa, o Direito Natural (“dever ser”
ideal) é afastado de suas preocupações.
Dessa forma, todo o viés epistemológico volta-se a separar
nitidamente as concepções jusnaturalistas da validade normativa.
Assim, desenvolve-se uma fundamentação jurídica de tal forma que o
Direito se autofundamenta através de uma derivação jurídica positiva,
formando uma cadeia de validade que, no seu vértice, pressupõe a
norma fundamental. Nessa dinâmica, o critério de validade do Direito
Positivo em nada se relaciona com os postulados do Direito Natural,
que, em última instância, se identificam com a justiça, para assim
validar o Direito Positivo. Conforme Kelsen, essa situação é inaceitável
do ponto de vista do Direito Positivo.19

1.2 A Ciência do Direito

Como verificamos anteriormente, Kelsen, ao desenvolver e aplicar


seu “método de purificação” aos demais planos do “dever ser” e do “ser” que
não se confundem com o Direito, buscou essencialmente eliminar de sua TPD

diz Kelsen, está apoiada pela hipótese [...] de uma norma suprema, a Grundnorm,
mas esta norma não é outra coisa senão a hipótese [...] da validade objetiva da ordem
jurídica! A definição em círculos salta aos olhos”.
18
KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, p. 1.
19
KELSEN, Hans. O que é Justiça? A Justiça, o Direito e a Política no espelho da
ciência. Trad. de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 252.
Teoria do Direito e discricionariedade 34

toda e qualquer relação extranormativa, tanto no que se refere ao próprio


Direito como também em relação à Ciência do Direito, que o toma como objeto
de seu conhecimento. Em outras palavras, descreveu o Direito fundando sua
ciência num marco teórico independente dos valores morais ou políticos.
Nesse recorte efetuado, sua finalidade foi, antes de tudo, a de
delimitar com precisão o objeto de conhecimento da ciência jurídica (normas
jurídicas) para definir com clareza sua função. Esse foi o corte epistemológico
utilizado por Kelsen, em que unicamente o foco no “dever ser” prescritivo do
Direito (entendido como sistema normativo) se torna o objeto da Ciência do
Direito e passa a ser descrito pela mesma através de proposições jurídicas.20
Daí destacaram-se três características fundamentais da Ciência do
Direito:

a) Caráter descritivo:

Nas palavras do autor:

A ciência jurídica, porém, apenas pode descrever o Direito;


ela não pode, como o Direito produzido pela autoridade
jurídica (através de normas gerais ou individuais),
prescrever seja o que for. Nenhum jurista pode negar a
distinção essencial que existe entre uma lei publicada no
jornal oficial e um comentário jurídico a essa lei, entre o
código penal e um tratado de Direito Penal.21

Como se observa, para a concepção kelseniana a ciência


jurídica deve não apenas isolar o Direito Positivo como seu objeto de
conhecimento, mas também não confundir as proposições jurídicas
(descritivas) enunciadas sobre o Direito com as proposições prescritivas
de um sistema de normas positivas (prescritivas). A Ciência do Direito
descreve o Direito Positivo através de enunciados (proposições)

20
KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito. 6. ed, p. 89. Conforme o autor, particularmente,
a proposição jurídica não é um imperativo, mas um juízo: a afirmação sobre um objeto
dado ao conhecimento. E também não implica qualquer espécie de aprovação da
norma jurídica por ela descrita. O jurista científico que descreve o Direito não se
identifica com a autoridade que põe a norma jurídica.
21
Ibid., p. 82.
35 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

jurídicos; o Direito Positivo válido, por seu turno, prescreve normas


jurídicas. 22

b) Caráter neutro:

Observa o autor:

Se bem que a ciência jurídica tenha por objeto normas


jurídicas e, portanto, os valores jurídicos através delas
constituídos, as suas proposições são, no entanto, uma
descrição do seu objeto alheia aos valores (wert freie).
Quer dizer: essa descrição se realiza sem qualquer
aprovação ou desaprovação emocional.23

De acordo com Kelsen, a Ciência do Direito, ao ser “purificada”


dos elementos extrajurídicos, incumbiria ao jurista apenas a tarefa de
descrever normas jurídicas de forma objetiva e axiologicamente neutra
sobre o Direito vigente.

c) Caráter produtivo:

Pontifica o autor da TPD:

[...] No sentido da teoria do conhecimento de Kant, a


ciência jurídica como conhecimento do Direito, assim
como todo conhecimento, tem caráter constitutivo e, por
conseguinte, “produz” o seu objeto na medida em que o
apreende como um todo com sentido. Assim como o caos
das sensações, que só através do conhecimento ordenador
da ciência se transforma em cosmos, isto é, em natureza
como um sistema unitário, assim também a pluralidade
de normas jurídicas gerais e individuais postas pelos
órgãos jurídicos, isto é, o material dado à ciência do
Direito, só através do conhecimento da ciência jurídica se
transforma num sistema unitário isento de contradições,
ou seja, numa ordem jurídica.24

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
22

Paulo: Martins Fontes, 1998.


23
Ibid., p. 89.
24
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed.
Teoria do Direito e discricionariedade 36

Nesse tópico, observa-se que Kelsen determina como


missão da ciência jurídica sistematizar o conteúdo das normas
jurídicas dispersas, construindo um sistema consistente e coerente
nas relações das partes com o todo. Em síntese: construir, através
da Ciência do Direito, um sistema completo e, portanto, organizado
hierarquicamente. Essas três características principais da ciência
jurídica (descritiva, neutra e produtiva) coadunam-se para diferenciá-
la do Direito Positivo, que, sendo seu objeto, não se confunde com
aquela. Observa-se, dessa forma, que esses dois campos (Ciência do
Direito e Direito Positivo) compartilham sua intenção metodológica
mas diferenciam-se nitidamente.
A função da ciência jurídica é conhecer. Para tanto, formula
proposições jurídicas que são juízos: enunciados relacionados a um
objeto de conhecimento. Já o Direito não descreve normas (não possui
uma função descritiva). Por outro lado, enuncia normas jurídicas
em que a função não é conhecer,mas prescrever, em sentido amplo
(ordem, imperativos, assim como permissões e habilitações). Assim,
se a Ciência do Direito tem como função o conhecimento, o Direito
evidencia-se, em Kelsen, como decisão, autoridade. A primeira opera
pelo binômio verdadeiro/falso; o segundo, pela validade (normas
jurídicas não podem ser verdadeiras ou falsas, mas apenas válidas ou
inválidas).

1.3 Os conceitos fundamentais do aparato conceitual da TPD

No projeto de desvelamento do conhecimento jurídico


realizado através do método purificador, que Kelsen desenvolveu na
TPD, verificou-se que o mesmo se detém precipuamente em definir
o Direito de tal forma que este encontre seu fundamento no âmbito

São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 81-82.


37 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

estritamente jurídico. Desse modo, torna-se fundamental, para o


modelo kelseniano, a definição de norma jurídica, bem como de seu
pressuposto de validade, ao buscar responder por que a mesma é válida,
até chegar ao “fechamento” do sistema normativo (a norma fundante
pressuposta). São os tópicos abordados a seguir, na continuação do
tema proposto.

1.3.1 Norma

A norma jurídica é definida, em Kelsen, como “o sentido


objetivo de um ato de vontade”25. Conforme o autor:

O fato externo [...] não constitui objeto de um


conhecimento especificamente jurídico [...]. O que
transforma esse fato num ato jurídico (lícito ou ilícito)
não é sua facticidade, não é o seu ser natural, isto é,
o seu ser tal como determinado pela lei da casualidade
[...] mas o sentido objetivo que está ligado a esse ato, a
significação que ele possui. O sentido jurídico específico,
a sua particular significação jurídica, recebe o fato
em questão por intermédio de uma norma que a ele se
refere com seu conteúdo, que lhe empresta a significação
jurídica, por forma que pode ser interpretado segundo
esta norma. A norma jurídica funciona como esquema de
interpretação.26

Note-se, na compreensão do autor, que, para um sentido de


“ser jurídico” (objetivo), este deve ser dado por uma norma jurídica que,
ao prever um fato, lhe atribua efeitos jurídicos. Em outras palavras, o
ato humano que se dirige à conduta de outrem (“dever ser” subjetivo),
para se tornar jurídico (objetivo), exige uma previsão normativa. Assim,
a norma jurídica pressupõe que o ato de vontade realizado (sentido
subjetivo) coincida com uma previsão normativa, pois não é qualquer

25
Seguimos aqui a lição da tradução lusitana: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.
Trad. da 2ª edição alemã de 1960 por João Baptista Machado. 3. ed. Coimbra: Arménio
Amado, 1974. p. 3.
26
KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1998, p. 4.
Teoria do Direito e discricionariedade 38

ato de vontade que tem como sentido uma norma.

1.3.2 Sentido subjetivo e sentido objetivo

Esses termos, na acepção kelseniana, tornam-se mais claros a


partir das seguintes afirmações do autor:

Na verdade, o indivíduo que, atuando racionalmente,


põe o ato, liga a este um determinado sentido que se
exprime de qualquer modo e é entendido pelos outros.
Esse sentido subjetivo, porém, pode coincidir com o
significado objetivo que o ato tem do ponto de vista do
Direito, mas não tem que necessariamente ser assim.27

Tal assertiva entrelaça-se com o seguinte exemplo dado por


Kelsen:
A ordem para um gangster para que lhe seja entregue
uma determinada soma de dinheiro tem o mesmo sentido
subjetivo que a ordem de um funcionário de finanças,
a saber, que o indivíduo a quem a ordem é dirigida
deve entregar uma determinada soma de dinheiro. No
entanto, só a ordem do funcionário de finanças, e não a do
gangster, tem o sentido de uma norma válida, vinculante
para o destinatário; apenas o ato do primeiro, e não o do
segundo, é um ato produtor de uma norma, pois o ato do
funcionário de finanças é fundamentado numa lei fiscal,
enquanto o ato do gangster não se apoia em qualquer
norma que para tal lhe atribua competência.28

Com essa afirmação, Kelsen busca documentar que não


é necessário utilizar a dimensão ética para diferenciar a ordem de
um bandido das normas válidas que pertencem a um determinado
ordenamento jurídico. Desse modo, por derivação hierárquica da ordem
de um fiscal, pode-se chegar à Constituição e à norma fundamental
que a autoriza. Fica implícita a ideia do Direito como um sistema de
normas. O ato do bandido não pode ter um sentido objetivo, pois, ao

27
KELSEN, Hans, Teoria Pura do Direito, 1998, p. 3.
28
Ibid., p. 9.
39 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

não estar integrado num sistema jurídico, não é norma válida.

1.3.3 Ato de vontade

Trata-se de um conceito que se relaciona com a norma e pode


ser traduzido através da seguinte pontificação de Kelsen:

A função específica da razão é o conhecimento dos objetos


que lhe são dados ou propostos. A criação de normas não
é, porém, uma função do conhecimento. Com a criação de
uma norma não se conhece um objeto já dado, tal como
ele é, mas exige-se algo que deve ser. Nesse sentido, a
norma é uma função do querer ser, não do conhecer.29

Desse modo, ao definir norma como sentido objetivo de um


ato de vontade, Kelsen passa a desenvolver o conceito de validade.

1.3.4 Validade

Coerente com os fundamentos epistemológicos desenvolvidos


na TPD, Kelsen vai buscar elaborar um conceito de validade das
normas jurídicas de tal forma que o mesmo se “imunize” das
concepções extranormativas. Para tanto, o autor buscou estabelecer
um fundamento objetivo de validade para as normas jurídico-positivas,
com referência apenas ao próprio sistema normativo. Nesse contexto,
o conceito de validade apresenta quatro notas distintivas, a saber:

a) Existência:

Compreendida como o modo específico de existência da


norma. Dessa forma, afirma Kelsen:

29
KELSEN, Hans. Justiça e Direito Natural. Trad. de João Baptista Machado, do
Apêndice da 2ª edição alemã da Reine Rechtslere. 2. ed. Coimbra: Arménio Amado,
1970, p. 115.
Teoria do Direito e discricionariedade 40

[...] Podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma


dizendo que certa coisa deve ou não deve ser, deve ou não
deve ser feita. Com a palavra “vigência” designamos a
existência específica de uma norma, [...] diferentemente
do ser dos fatos naturais.30

b) Pertinência:

Aqui se trata de perceber que as normas não possuem uma


existência isolada, mas fazem parte de um todo que é o ordenamento
jurídico. Pontifica o autor: “Uma norma singular é uma norma jurídica
enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica [...]”.31

c) Obrigatoriedade:

Essa noção é explicitada no sentido de que a norma válida é


a norma obrigatória. Nesse intuito, assevera: “Dizer que uma norma
que se refira à conduta de um indivíduo ‘vale’ (é vigente) significa que
é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela
norma”.32

d) Legalidade:

Aqui o essencial é perceber que uma norma jurídica só é


jurídica se foi produzida em conformidade com outra norma de
ordenamento. É o que estabelece Kelsen:

O fundamento de validade de uma norma apenas pode ser


a validade de outra norma. Uma norma que representa
o fundamento de validade de uma outra norma é
figurativamente designada como norma superior, por

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
30

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 11.


31
Ibid., p. 33
32
Ibid., p. 215.
41 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

confronto com uma norma que é, em relação a ela,


inferior.33
Adicionalmente, Kelsen considera que a eficácia geral das
normas é outra condição necessária para reconhecer a existência de um
sistema jurídico. Desse modo, torna-se necessário fazer uma relação
entre validade e eficácia, como exposto na continuação a seguir.

1.3.5 Validade e eficácia

No referencial teórico kelseniano, um sistema normativo


é eficaz se, em geral, suas normas são eficazes, isto é, se obedecidas
por seus destinatários ou, no caso de descumprimento, aplicadas
pelos órgãos habilitados. Assim, o fato de que uma norma se aplique
ou se cumpra não é, em princípio, um critério para estabelecer sua
pertinência ao sistema. Contudo, um sistema não poderia ser válido,
existente e real sem um mínimo de eficácia. Assim, a eficácia também
se torna condição de validade, como aclara o autor:

Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada


e respeitada, isto é, uma norma que – como costuma
dizer-se – não é eficaz em uma certa medida, não será
considerada como norma válida (vigente). Um mínimo
de eficácia (como se costuma dizer) é a condição de sua
vigência.34

Sem adentrar em especificidades e duras batalhas teóricas


travadas até o presente, diante dessa tentativa de isolar o Direito em
uma simples estrutura normativa, em que todos os problemas devem
ser postos e solucionados intranormativamente, observa-se que a
validade torna-se um conceito essencial, demarcatório, na TPD.
Na obra extensa e densa que é a TPD, para o objetivo do

33
Ibid., p. 215.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed.
34

São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 12.


Teoria do Direito e discricionariedade 42

presente trabalho (o problema da discricionariedade na concepção


kelseniana de interpretação), são suficientes os seguintes aspectos
da validade como critério decisório das normas jurídicas: a validade
é a relação que comporta as normas como elementos de um sistema
jurídico. Assim, afirmar que uma norma existe é o equivalente a afirmar
que uma norma é válida e, por sua vez, afirmar que uma norma é válida
equivale a dizer que pertence a um determinado sistema, porque
nenhuma norma é válida por si só. Temos, então, que, na concepção
kelseniana, uma norma pode pertencer ao sistema, seja porque se
deduz de outra norma que pertence ao sistema (relação estática) ou
porque foi produzida de acordo com o procedimento estabelecido por
uma norma superior (relação dinâmica). Contudo, a nota relevante
nesta sua concepção do Direito é que, em ambos os casos, deve existir
uma norma última que determina a validade das normas restantes (a
cadeia de validação).35
Essa norma Kelsen denominou de “norma fundamental”
(Grundnorm), e seu procedimento de criação e pertinência ao sistema
torna-a não posta, mas pressuposta, tendo uma função equivalente à
dos axiomas na geometria. Esse é o plano de análise sobre o qual nos
deteremos a seguir.

1.4 A estrutura escalonada do ordenamento jurídico: norma


superior e inferior

A distinção das normas jurídicas em superiores e inferiores


encontrou sua fundamentação na concepção de um sistema jurídico
estruturado em hierarquias distintas. Daí decorre a afirmação de que
o ordenamento jurídico se compõe de normas de superior ou inferior
hierarquia. Entretanto, é preciso analisar, no modelo proposto por
Kelsen, qual o critério que as diferencia. Como ponto de partida na

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed.
35

São Paulo: Martins Fontes, 1998.


43 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

busca a essa resposta, é necessário ressaltar que, para esse autor,


o Direito tem uma peculiaridade essencial: ele regula sua própria
produção e aplicação36. Dessa forma, se algumas normas regulam o
processo de produção de outras normas, a norma reguladora, conforme
a qual outra norma é produzida, representa o fundamento de validade
desta última.
É esse o sentido da afirmação do autor:

[...] Dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma


somente é válida porque e na medida em que foi
produzida de determinada maneira, isto é, pela maneira
determinada por outra norma. Esta outra norma
representa o fundamento imediato de validade daquela.37

No mesmo diapasão, complementa Kelsen:

A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas


ordenadas no mesmo plano, situadas uma ao lado das
outras, mas é uma construção escalonada de diferentes
camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade
é produto da conexão de dependência que resultado
do fato de a validade de uma norma, que foi produzida
de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra
norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por
outra; e assim por diante, abicar finalmente na norma
fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o
fundamento de validade último que constitui a unidade
dessa interconexão criadora.38

Assim, observa-se que, conforme o modelo de Kelsen, o


ordenamento jurídico é um sistema de normas em que as mesmas
encontram-se dispostas numa estrutura escalonada, sendo que o
último fundamento de validade (o ápice da pirâmide numa imagem

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
36

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 80. Segundo Kelsen: “É, com efeito, uma característica
muito significativa do Direito regular sua própria produção” [...].
37
Ibid., p. 246.
38
ibid., p. 246.
Teoria do Direito e discricionariedade 44

virtual) repousa na norma fundamental, que é meramente pressuposta.


Retendo essas ideias, neste momento é possível analisar a cadeia de
validade, que tem por decorrência, no modelo kelseniano, o limite
dado pela norma fundamental.

1.5 A cadeia de validade e seu limite: a norma fundamental

Como analisado anteriormente, segundo Kelsen o Direito


regula sua própria produção de tal forma que uma norma regula
como outra norma é produzida e a norma reguladora, por sua vez, é
regulada por outra (na medida em que o fundamento de validade de
uma norma somente pode ser outra norma). Desse modo, essa cadeia
de validade (processo de validação) deve ter um fim. Vale dizer, a
cadeia formada por normas superiores (reguladoras) e inferiores
(reguladas) deve encontrar um limite nesta busca pelo fundamento
de validade, sob pena de tornar inviável a delimitação do Direito. A
solução encontrada por Kelsen para tal problemática, coerente com
o seu “princípio metodológico fundamental” de delimitar com rigor o
campo do Direito, foi instituir, como fechamento do sistema de normas,
a norma fundamental. Dito de outra forma, a norma fundamental é o
fundamento da unidade e da validade de um ordenamento jurídico.
Ela é a resposta de Kelsen para as seguintes questões que ele próprio
formulou:

O que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade


de normas, por que é que uma norma determinada
pertence a uma determinada ordem? Essa questão está
intimamente ligada com esta outra: por que é que uma
norma vale, o que é que constitui o seu fundamento de
validade?39

Dessa forma, se indagarmos sobre o fundamento de validade

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
39

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 215


45 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

da experiência jurídica, poderíamos recorrer aos seguintes degraus


escalonados: Por que uma sentença é válida? Porque foi produzida
em conformidade com um decreto. Por que o decreto é válido? Porque
foi produzido em conformidade com uma lei. Por que a lei é válida?
Porque foi produzida em conformidade com a Constituição. Por que a
Constituição é válida? Este é o momento em que surge, de acordo com
o modelo kelseniano, a norma fundamental como último fundamento
de validade. Nesse sentido, pontifica o autor: “Apenas uma autoridade
competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência
somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar
normas [...]”40. Complementando:

Todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a


uma e mesma norma fundamental formam um sistema de
normas, uma ordem normativa. A norma fundamental é a
fonte comum de validade de todas as normas pertencentes
a uma mesma ordem normativa, o seu fundamento de
validade comum. O fato de uma norma pertencer a uma
determinada ordem normativa baseia-se em que o seu
último fundamento de validade é a norma fundamental
dessa ordem. É a norma fundamental que constitui
a unidade de uma pluralidade de normas enquanto
representa o fundamento de validade de todas as normas
pertencentes a essa ordem normativa.41

Como se nota, a resposta para “por que devemos obedecer à


Constituição de um ordenamento jurídico?” é dada por Kelsen através
da formulação da norma fundamental, sendo esta a que, em última
instância, autoriza o constituinte.

1.5.1 Características da norma fundamental

Na análise da TPD, depreendem-se quatro notas distintivas


que consubstanciam a norma fundamental. São elas:

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
40

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 216-217.


41
Ibid., p. 217.
Teoria do Direito e discricionariedade 46

a) Norma pensada:

O próprio autor afirma: “Como a norma mais elevada, ela tem


de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma autoridade,
cuja competência seria de se fundar numa norma ainda mais elevada
[...]”42
Verifica-se que, ao não ser uma norma posta, mas
pressuposta, a mesma não é uma norma positiva, mas uma norma
pensada.43Contudo, é importante ressaltar que, se por um lado a
norma fundamental é pensada, por outro lado isso não significa que
há liberdade para pressupô-la de qualquer modo.44Nesse sentido, é
possível afirmar que a mesma é pressuposta em relação a uma ordem
coercitiva globalmente eficaz.

b) Norma hipotética:

É hipotética no sentido de ter um caráter fictício45, embora


tenha a finalidade de analisar uma determinada ordem jurídica como
um sistema de normas válidas que determine o sujeito a pressupor a
norma fundamental. Daí porque não é uma mera opinião política ou
momentânea;

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
42

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 217.


43
Ibid., p. 10. Nesse raciocínio, “deve notar-se que uma norma pode ser não só o
sentido de um ato de vontade, mas também – como conteúdo de sentido – o conteúdo
de um ato de pensamento [...]. Quer isto dizer que uma norma não tem de ser
efetivamente posta – pode estar pressuposta no pensamento”.
44
Ibid., p. 224. Conforme Kelsen, “se queremos conhecer a natureza da norma
fundamental, devemos ter em mente que ela se refere imediatamente a uma
Constituição determinada, efetivamente estabelecida, [...] eficaz em termos globais,
enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de
acordo com ela criada [...]”.
45
Ibid., p. 221-243, passim. No mesmo sentido, afirma o autor: “[...] Todo e qualquer
conteúdo pode ser Direito. [...] A norma fundamental, como norma pensada ao
fundamentar a validade do Direito Positivo, é apenas a condição lógico-transcendental”.
47 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

c) Norma formal:

Sobre esse tópico, Kelsen predica:

[...] A norma fundamental, como norma pensada ao


fundamentar a validade do Direito Positivo, é apenas
a condição lógico-transcendental desta interpretação
normativa; ela não exerce qualquer função ético-política,
mas tão só uma função teorético-gnoseológica.46

Nesse mesmo raciocínio, afirma:

O sistema de normas que se apresenta como uma ordem


jurídica tem essencialmente caráter dinâmico. Uma
norma jurídica não vale porque tem um determinado
conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser
deduzido pela via de um raciocínio lógico de uma norma
fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso,
pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas
em conformidade com esta norma fundamental. Por isso,
todo e qualquer conteúdo pode ser Direito.47

Nesse contexto, percebe-se que, para o autor, a norma


fundamental de uma ordem jurídica não é uma norma material, e sim
o ponto de partida de um processo que vai permitir a criação do Direito
Positivo.

d) Norma jurídica:

Se o Direito deve buscar seu fundamento no próprio Direito48 e


a ciência jurídica deve descrevê-lo de maneira a compreender seu objeto

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
46

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 243.


47
Ibid., p. 221.
48
Ibid., p. 80. Pontifica Kelsen, como já afirmado anteriormente: “É, com efeito, uma
característica muito significativa do Direito regular a sua própria produção [...]”.
Teoria do Direito e discricionariedade 48

“juridicamente”49, por decorrência a norma fundamental também pode


ser considerada uma norma jurídica. Como acabamos de verificar, a
cadeia de validade construída no modelo kelseniano para identificar a
validade de uma norma inferior remonta até à Constituição, que, por
sua vez, é referenciada por uma norma básica pressuposta – a norma
fundamental. Assim, essa norma fundante do ordenamento jurídico
cumpre sua função de conferir poderes jurídicos aos constituintes para
que a estrutura hierárquica encontre um limite, sob pena de ser infinita.
Note-se que, para Kelsen, a norma fundamental não é uma
questão subjetiva de preferência momentânea (política) ou moral
(justiça), mas a condição jurídico-gnoseológica que possibilita fundar
a cadeia de validade e descrever um sistema jurídico diante de uma
ordem globalmente eficaz. A ideia de norma fundamental apresenta, no
entanto, uma série de complicações. A principal delas consiste em uma
mera suposição do discurso jurídico, ainda que estabelecida por razões
objetivas. Isso levou os juristas a buscarem outras soluções, como se
verificará em Hart. Por ora, adentraremos no tópico da interpretação
da TPD, no qual nos parece haver aguda discrepância entre seu “projeto
purificador” e as concepções desenvolvidas por Kelsen a respeito da
hermenêutica.

1.6 A interpretação na TPD

Conforme vimos anteriormente, para Kelsen o Direito é


concebido como um sistema de normas que regula a conduta humana.
Assim, a norma é o elemento básico do sistema jurídico. Por sua vez,
norma é o sentido objetivo de um ato de aplicação (vontade). É objetivo

49
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 79. Nesse entendimento, predica o autor: “A ciência
jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente”, isto é, do ponto de vista do
Direito. Aprender algo juridicamente não pode, porém, significar senão aprender algo
como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica, como determinado através de
uma norma jurídica [...]”.
49 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

porque é o sentido que um fato tem, na medida em que é o conteúdo


de uma norma, que, por seu turno, é o conteúdo de sentido de outra
norma que lhe dá validade. Aí, através da cadeia de validade dessa
estrutura escalonada, se chega ao conceito de norma fundamental, no
vértice da pirâmide.
Por outro lado, Kelsen, ao sustentar a integridade do sistema
jurídico sem indagar acercados valores e fatos que não tenham uma
previsão normativa, faz uma distinção entre normas gerais e abstratas
e norma individual e concreta, mas admitindo as últimas como também
fazendo parte do ordenamento jurídico como um todo. Nesse sentido,
afirma o autor:

A norma geral, que liga a um fato abstratamente


determinado uma consequência igualmente abstrata,
precisa, para poder ser aplicada, de individuação. [...]
Portanto, a aplicação de uma norma geral em um caso
concreto consiste na produção de uma individual, na
individualização (ou concretização) da norma geral [sic]50.

Para Kelsen, as normas gerais estabelecem uma moldura


em que, no seu interior, podem ser verificadas várias possibilidades
de aplicação51. Quando o juiz aplica o Direito, pode optar por mais de
um sentido autorizado pela norma. Contudo, Kelsen é enfático quando
afirma que não há uma única vinculação a ser determinada dentro da
moldura, mas uma “pluralidade de determinações a fazer”. É este o
caminho traçado pelo autor:

Esta determinação nunca é, porém, completa. A norma


do escalão superior não pode vincular em todas as
direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é
aplicada. Tem sempre de ficar uma margem ora maior,
ora menor, de livre apreciação [...]. Mesmo uma ordem
o mais pormenorizada possível tem de deixar àquele que

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
50

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 256.


51
Ibid., p. 390. Kelsen afirma: “O Direito a aplicar forma [...] uma moldura dentro da
qual existem várias possibilidades de aplicação [...]”.
Teoria do Direito e discricionariedade 50

a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações


a fazer.52

Daí o porquê de afirmar a liberdade relativa do juiz:

[...] Também este último é um criador de Direito e também


ele é, nesta função, relativamente livre. Justamente por
isso, a obtenção da norma individual no processo de
aplicação da Lei é, na medida em que nesse processo
seja preenchida a moldura da norma geral, uma função
voluntária.53

Por outro lado, Kelsen critica a jurisprudência tradicional


(formalista), que acreditaria na possibilidade de a norma abstrata
oferecer condições que a vinculariam de tal forma – na qual a mesma
pudesse oferecer, em todos os casos, apenas uma solução e, portanto,
a solução correta. Esse é o sentido de sua assertiva: “De um ponto de
vista orientado para o Direito Positivo, não há qualquer critério no qual
uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa
ser preferida em lugar de outra [...]”.54
No mesmo entendimento, para esse jurista as decisões dos
juízes são também decisões políticas, na medida em que, ao constituí-
las, os mesmos implementam uma lei, assim como o legislador a
elabora em nível diferente. Daí afirmar:

A questão de saber qual é, entre as possibilidades que se


apresentam nos quadros do Direito a aplicar, “a correta”,
não é sequer – segundo o próprio pressuposto de que se
parte – uma questão de conhecimento dirigido ao Direito
Positivo – não é um problema de Teoria do Direito, mas
um problema de Política do Direito. A tarefa que consiste
em obter, a partir da lei, a única sentença justa (certa)
ou o único ato administrativo correto é, no essencial,
idêntica à tarefa de quem se proponha, nos quadros da

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
52

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 388.


53
Ibid., p. 393.
54
Ibid., p. 391.
51 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Constituição, a criar as únicas leis justas (certas).55

Com tal concepção da interpretação, ao permitir que os


órgãos habilitados a aplicar as normas gerais (juízes) possam escolher
(relativamente livres) entre várias significações possíveis, Kelsen
soluciona a problemática em relação à específica discricionariedade
do magistrado, mas permanece aberta a questão sob a ótica material.
É o que se analisará a seguir. Interpretar, para este jurista, consiste
em determinar a significação de um texto. Como a determinação dessa
significação pode ser realizada de duas formas, Kelsen as diferencia,
denominando-as de interpretação científica e interpretação autêntica.
A interpretação científica é aquela realizada por toda a
pessoa que tem um ponto de vista sobre a significação do Direito
(especialmente o cientista do Direito), buscando determinar todas as
significações possíveis de um texto. Desse modo, ela consiste num ato
de conhecimento. A interpretação autêntica é aquela produzida por um
órgão habilitado pelo sistema normativo a determinar sua significação
e, portanto, institui-se não como um ato de conhecimento, mas como
ato de vontade. Daí resulta sua validade, independentemente de estar
ou não em conformidade com a significação insinuada pelo texto, ou
com a vontade conhecida do legislador.
Essa teoria da interpretação tem consequências graves
no modelo kelseniano. Em primeiro lugar, porque a interpretação
realizada pelo juiz (interpretação autêntica) se torna literalmente livre,
na medida em que será instituída, seja qual for o método selecionado no
processo de escolha. De tal premissa decorre que toda a análise sobre
os métodos de interpretação utilizados no Direito se torna sem objeto.
Vale dizer, qualquer que seja o método empregado pelo aplicador do
Direito (juiz), assim que sua interpretação for instituída será válida e
passará a fazer parte da ordem jurídica. Essa consequência é percebida
por Kelsen, embora não veja nenhuma contradição nesse processo, por

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed.
55

São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 393.


Teoria do Direito e discricionariedade 52

considerar que a função da Ciência do Direito não é a de prescrever.


Por outro lado, se a norma jurídica funciona como esquema de
interpretação, operando através da significação jurídica de um ato de
vontade, por consequência a interpretação, em tal modelo, consistirá
em determinar a significação de um texto normativo a ser atribuída
por um ato de vontade aplicado. Daí resulta que a norma jurídica, em
última análise, não vai ser determinada pelo autor aparente do texto.
Dito de outra forma, nessa dinâmica não será o legislador (autoridade
legislativa) que vai estabelecer a norma, mas o aplicador (intérprete
autêntico), na medida em que a determinação de sentido atribuída pelo
juiz se incorpora à norma e inclui sua validade na ordem jurídica.
Tal ordem de coisas parece subverter o conjunto da obra na
TPD. Isso porque traz uma segunda consequência (não prevista por
Kelsen): a cadeia de validade (o processo de validação) das normas não
se verifica, como afirma Kelsen, do ápice para baixo, mas, em realidade,
de baixo para cima. Tal problemática apresentará a questão do controle
de constitucionalidade. Nesse sentido, a crítica de Troper:

A ideia de um controle de constitucionalidade das leis


pressupõe que a constituição é um standart de referência
objetivo em relação ao qual examinamos as leis. Ora,
se adotamos até o fim a teoria da interpretação de
Kelsen, perceberemos que é o intérprete que determina
a significação da constituição. A norma constitucional
não é posta, pois, de modo objetivo, intangível pelo
poder constituinte, e, sim, uma norma que é recriada
permanentemente pelo intérprete autêntico, isto é, pelo
controlador da constituição. É por isso que a ideia de um
controle é muito mais difícil de justificar com essa teoria
da interpretação.56

A resposta kelseniana a tal crítica poderia passar pela construção


de um raciocínio segundo o qual o controle da constitucionalidade da lei
é um ato político e, portanto, em última instância, o órgão de controle
também se caracterizaria como um órgão político que, por sua vez,

56
TROPER, Michel. Un système pur du droit: le positivisme de Kelsen. In: BOURETZ,
Pièrre (Diy.). La Force du Droit. Trad. de Alfredo Storck. Paris: Éditions Esprit, 1991,
pp. 133-134.
53 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

retiraria sua legitimidade de outros órgãos políticos que o designariam.


Contudo, mesmo admitindo que a função do órgão controlador (juiz
constitucional) é uma função política, como Kelsen dispõe, o problema
do controle material da discricionariedade permanece.
Dito de outro modo, o fato de o órgão controlador ser
político não elide a necessidade de que a corte constitucional julgue
as controvérsias, respeitando um núcleo objetivo de sentido colocado
pelo constituinte, em relação ao qual a lei deve ser mensurada. Assim,
o órgão controlador tem por finalidade primordial manter o respeito
a este núcleo duro, não devendo desbordar do cânone constitucional
estabelecido por esse núcleo irredutível de sentido.
Dessa forma, se admitirmos que não há mais esse núcleo duro
de sentido, como o faz implicitamente a teoria da interpretação na
TPD, o problema da legitimidade das cortes constitucionais se torna
intransponível e, com ele, se fragiliza toda a concepção do Estado
Democrático de Direito. Em última análise, o método purificador se
contamina e se subverte de baixo para cima, aproximando Kelsen dos
realistas, na problemática hermenêutica, para os quais o Direito será
o que os juízes afirmarem que é. Premissa que proporciona enorme
insegurança jurídica.
Em nosso entender, coube ao jurista inglês H. L. A. Hart
desenvolver esse ponto, razão pela qual passaremos a expor sua
doutrina no próximo capítulo.

2 A REFORMULAÇÃO POSITIVISTA EM HART: OS


CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE SUA TEORIA ANALÍTICA
E O PROBLEMA DA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL

H. L. A. Hart57(1907-1994), jusfilósofo inglês, professor de

ARGÜELES, Juan Ramon de Pavamo. H. L. A. Hart e a Teoria Analítica do Direito.


57

Madrid: Centro de Estudos Constitucionais, 1984, p. 5, nota 12. Segundo o autor,


Teoria do Direito e discricionariedade 54

Oxford, esclarece desde logo, na sua obra máxima, O Conceito de


Direito58, que seu objetivo foi “aprofundar a compreensão do Direito, da
coerção e da moral como fenômenos sociais diferentes mas relacionados
[...]”.59Nessa sua assertiva encontra-se delimitado o propósito de
descrever analiticamente60 o Direito (não como um sistema particular,
mas sim em termos de sistemas jurídicos em geral), relacionando-o
com as ordens coercitivas e com a moral. Nesse horizonte conceitual,
três questões recorrentes permeiam sua teoria jurídica, como afirma o
autor:

Como difere o direito de ordens baseadas em ameaças e


como se relaciona com estas? Como difere a obrigação
jurídica da obrigação moral e como está relacionada com
esta? O que são regras e em que medida é o direito uma
questão de regras?61

Na elaboração das respostas a tais indagações, o jurista vai


construir uma teoria jurídico-analítica que reformula o positivismo
jurídico ao introduzir na descrição de um sistema normativo a noção
de que o mesmo se fundamenta numa prática social institucionalizada
de aceitação das regras. Assim, se por um lado Hart visualiza o Direito
como um sistema de normas (aproximando-se da concepção de
Kelsen), por outro lado o rigor analítico de suas ponderações sobre a
natureza do Direito não prescinde de uma premissa fática, ao incluí-

Herbert L. A. Hart não deve ser confundido com outros estudiosos do Direito, como H.
Hart e H. L. Hart. Portanto, o hábito de Hart antepor ao seu sobrenome as três iniciais
não é devido a nenhum esnobismo, nem tampouco a uma imitação do costume norte-
americano, mas simplesmente por uma questão de identificação.

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:


58

Calouste Gulbenkian, 1961. De agora em diante, CD.


59
Ibid., prefácio.
60
Idem. “O jurista considerará o livro como um ensaio sobre teoria analítica, porque diz
respeito à clarificação do quadro geral do pensamento jurídico, em vez de respeitar a
crítica do direito ou da prática legislativa”.
61
Ibid., p. 18.
55 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

la na descrição e fundamentação do Direito (afastando-se da “pureza”


pretendida por Kelsen). Hart reelabora o positivismo jurídico ao buscar
manter uma objetividade analítica na descrição do sistema jurídico,
embora não abra mão de mantê-la centrada numa prática social. Em
outras palavras, o jurista vai edificar uma teoria jurídica buscando
visualizar o Direito como um sistema de regras jurídicas, organizadas
hierarquicamente, sem contudo desarticulá-lo da sua realidade social
subjacente refletida no campo normativo.62
Essa concepção de Hart permeia toda a dinâmica conceitual
desenvolvida no seu modelo teórico, ao estabelecer profundas raízes
numa base sociológica na qual se detém seu olhar e se desenvolve sua
Teoria do Direito. A partir desse ponto convergente, que entrelaça a
descrição do sistema de regras jurídicas com sua base social, derivam
as questões centrais de seu modelo jurídico, como se observará na
exposição de seu pensamento. E, mais especificamente, as implicações
de sua Teoria do Direito com a decisão judicial e, no interior desta, o
tema proposto da discricionariedade.
De outro lado, nessa mesma base conceitual convergentee
paralelamente ao seu enfoque analítico, o autor também inclui, em sua
teoria jurídica, investigações sobre o significado das palavras, através
da averiguação do uso padrão de expressões relevantes do contexto
social. Desse modo, desvela distintas situações sociais (como, por
exemplo, a diferença de meros comportamentos sociais convergentes –
hábitos – e de uma regra social). Daí seu entendimento de que a teoria
analítica também pode ser percebida como um ensaio de Sociologia
Descritiva.63
Nesse denso panorama conceitual, o jurista dedicará boa
parte de sua obra a demonstrar as insuficiências e incapacidades de

62
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961.
63
Ibid., prefácio. “Não obstante sua preocupação com a análise, o livro pode ser
também encarado como um ensaio de sociologia descritiva; porque a sugestão de
que as investigações sobre os significados das palavras apenas lançam luz sobre as
palavras é falsa [...]”.
Teoria do Direito e discricionariedade 56

um modelo de Direito baseado essencialmente em regras simples,


conforme Austin constituiu em sua Teoria Imperativa do Direito.64Na
crítica a esse modelo, Hart elabora respostas que vão compor os
alicerces de sua Teoria Analítica do Direito, como se verificará a seguir.

2.1 A crítica ao modelo paradigmático de Austin65

Hart, como já apontado inicialmente66, ao analisar as três


questões subjacentes à recorrente indagação sobre “o que é o Direito?”67,
reconhece que nenhuma resposta suficientemente concisa e definitiva
possa ser dada. Entretanto, pondera que é possível agrupar um núcleo
de elementos formando um denominador comum nas respostas a essas
três questões (relações do Direito com a coerção, com a moral e com as
regras). Nesse sentido, para realizar essa tarefa, relevando o lugar que
ocupa em sua obra, vai analisar as deficiências do modelo imperativo
proposto por Austin. Portanto, para a compreensão de sua crítica e
das soluções que serão elaboradas posteriormente, faz-se necessário
um entendimento preliminar da significação do modelo em questão.
Assim, essa teoria consiste na tese de que, segundo Hart:

[...] devem existir, sempre que exista um sistema jurídico,


algumas pessoas ou corpos de pessoas que emitem
ordens gerais baseadas em ameaças, que são geralmente
obedecidas, e deve acreditar-se em geral que estas
ameaças serão geralmente levadas a cabo, em caso de

64
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 21. Conforme Hart, [...] os erros da teoria
imperativa simples são uma melhor bússola para a verdade, do que os de suas rivais
mais complexas [...]”.
65
ARGÜELES, Juan Ramon de Pavamo, op. cit. Segundo este autor, John Austin
(1790-1859) foi o fundador oficial da Teoria Analítica do Direito durante os séculos XIX
e XX. Nesse sentido, o nome de John Austin não pode ser confundido com o de J. L.
Austin, filósofo da linguagem que teve uma influência direta na obra de Hart.
66
Ver nota de rodapé nº 57.
67
HART, Herbert L. A., O Conceito de Direito, op. cit., p. 21.
57 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

desobediência.68

Explicitando: “Essa teoria consiste na pretensão de que


a chave para a compreensão do direito se encontra na noção
simples de uma ordem baseada em ameaças, que o próprio Austin
denominou ‘comandos’”.69Esse é o ponto de partida utilizado por
Hart para demonstrar, ao longo de sua obra (na crítica a esse modelo
explicativo), que o conceito de regra é fundamental para descrever o
Direito analiticamente. Para tanto, inicialmente Hart vai elaborar três
críticas dirigidas à concepção de Austin, em que o Direito somente se
caracterizaria por ordens baseadas em ameaças. A primeira refere-
se ao conteúdo das leis, ao demonstrar que o Direito não pode se
fundamentar, num Estado Moderno, apenas em regras jurídicas
simples, de ordem coercitiva, na medida em que existem outros tipos
de regras (por exemplo, leis que estabelecem condições de validade a
negócios jurídicos ou as que conferem poderes de jurisdição).70 Desse
modo, afirma o autor:

[...] Isto porque a preocupação das regras que conferem


tais poderes não consiste em impedir aos juízes a prática
de vetos impróprios, mas em definir as condições e limites
em que as decisões do tribunal serão válidas.71

Assim, verifica-se que as funções dessas regras são totalmente


distintas e não podem ser explicadas no modelo de Austin. A segunda
crítica é dirigida ao âmbito de aplicação das regras jurídicas. Nesta,
como se trata também de interpretação das regras ao se aplicarem,
Hart define como alvo a concepção de um caráter auto-obrigatório da

68
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 31.
69
Ibid., p. 21.
70
Ibid.
71
Ibid., p. 37.
Teoria do Direito e discricionariedade 58

legislação, ao entender que o legislador também deve se autovincular


às ordens dadas aos súditos.
Daí afirmar o autor:

[...] As palavras ditas ou escritas pelas pessoas para tal


qualificadas por estas regras, e que seguem o procedimento
nelas especificado, criam obrigações para todos dentro
do âmbito explícita ou implicitamente designado pelas
palavras.72

Para Hart, no modelo de ordens coercitivas o soberano


(pessoa ou conjunto de pessoas)73não tem caráter autovinculativo e,
sem o mesmo, não se pode compreender o Estado Moderno (ao não
se submeter, a própria autoridade legislativa, às regras que cria). A
terceira crítica ao modelo imperativo de Austin dirige-se ao modo de
origem das regras jurídicas. Ela diz respeito à questão do costume, com
o intuito de criticar o referido modelo em questão, na medida em que
a produção normativa, ao ser concebida como o conjunto de ordens
coercitivas emanadas do soberano, não explica essa situação.
Explicitados esses alvos da crítica ao modelo de Austin, o
autor passa a analisar suas insuficiências derivadas do conceito de
hábito, que não dá conta de dois problemas fundamentais do sistema
jurídico. O primeiro trata da incapacidade de descrever a continuidade
da autoridade, “qual seja, a inaptidão da ideia de ‘obediência habitual’
para explicar o fenômeno da sucessão da autoridade legislativa”74,
dramatizado por Hart na sucessão de um rei imaginário – Rex I – por
seu filho Rex II.Nesse sentido, a elegante síntese de Michelon Jr.:

Em qualquer sistema político o hábito de obediência a um


legislador ou a um corpo legislativo não explica por que as
normas editadas por seu sucessor são normas jurídicas.

72
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 52.
73
Ibid., p. 54. “[...] O direito é não só a ordem do soberano, como a dos subordinados
que aquele pode escolher para darem ordens em seu nome [...]”.
74
MICHELON JR., Cláudio Fortunatto, op. cit., p. 144.
59 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Quando da primeira “ordem” da nova legislatura não


existe qualquer hábito de obedecer alguém que jamais foi
obedecido (porque todos obedeciam a Rex I).75

Dessa forma, verifica-se que o modelo de ordens coercitivas de


Austin não consegue explicar o caráter contínuo da autoridade que cria
o Direito. Assim, a ideia de hábito fracassa diante do entendimento da
sucessão de diferentes legisladores. O segundo problema diz respeito
à questão da persistência do Direito. Nessa problemática, o ponto
nevrálgico atingido por Hart é que a persistência das regras possui uma
existência válida – na maioria das vezes muito maior que a de seus
criadores –, em que os indivíduos que prestavam a obediência habitual
podem não estar presentes. Daí decorre que se torna inexplicável (sob
a ótica de um modelo simples de regras coercitivas) o fato de novos
indivíduos obedecê-las habitualmente, quando estes até mesmo não
existiam.
Em síntese, Hart, ao tomar como ponto de partida as críticas
ao modelo paradigmático de Austin, evidencia suas insuficiências e
incapacidades teóricas, demonstrando a necessidade de construir o
Direito sobre outra base conceitual, que nada mais é que o conceito de
regra, ocupando um lugar central no seu modelo teórico e buscando
dar conta dos problemas apontados, ao diferenciar o Direito da simples
coerção (unicamente respaldada por ameaças). Para tanto, Hart vai
primeiramente diferenciar regras sociais de hábitos, fundamentalmente
por três razões, sistematizadas a seguir.76

2.2 A diferenciação entre hábitos e regras: uma distinção


fundamental

(1) Os hábitos são mera convergência de condutas; as

75
MICHELON JR., Cláudio Fortunatto, op. cit., p. 144.
76
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961.
Teoria do Direito e discricionariedade 60

regras, além da convergência geral, servem como guia para o


comportamento dos indivíduos e, nesse sentido, são suscetíveis
a críticas para o desvio do padrão de convergência (pressão
social).77
(2) As regras permitem que a crítica diante do desvio
possa ser justificada e legítima (até mesmo pelos que violam as
regras).78
(3) A existência da regra pressupõe uma internalização
do comportamento vetorizado, ao menos por uma parte do seu
grupo social, que Hart denomina “ponto de vista interno”.79Os
hábitos são observados de um ponto de vista externo, como uma
conduta regular.

2.2.1 O ponto de vista interno e o ponto de vista externo

Essa fundamental distinção que Hart elabora acerca das


regras sociais e hábitos permite ser ilustrada da seguinte forma.
Pode-se observar, na região Sul do Brasil, que há certa regularidade
comportamental em “assar carnes na brasa” aos finais de semana. Mas,
o que pode se observar nessa idiossincrasia culinária regional? Um
visitante, ou até mesmo um habitante do lugar, apenas verificaria, nessa
convergência de comportamentos, um hábito cultural regionalizado.
Desse fato regional não pode ser derivada nenhuma conduta que “guie”
os indivíduos dessa região, exercendo uma pressão organizada aos
que se desviem desse padrão comportamental (aos vegetarianos, por
exemplo).
Em suma, essa situação caracteriza um hábito e não uma

77
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 64.
78
Ibid., p. 65.
79
Ibid., p. 65. “[...] Para que uma regra social exista, alguns membros, pelo menos,
devem ver no comportamento em questão um padrão geral a ser observado pelo
grupo como um todo. Uma regra geral tem um aspecto interno para além do aspecto
externo que partilha com o hábito social [...]” (grifo do autor).
61 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

regra social e, portanto, não permite uma crítica justificada a um


comportamento diferenciado. Todavia, no exemplo de um jogo
de futebol, a situação muda. Nesse esporte (como em outros), os
participantes conhecem as regras e, embora possam adaptá-las, as
mesmas serão válidas para todos que atuarem. Assim, ao aplicá-las no
curso do jogo, as usam e as aceitam. Nessa situação, qualquer desvio
do padrão regular de conduta (gol feito com as mãos) será invalidado
e criticado justificadamente. Nesse caso, fica claro que há uma regra
social. Esta, por sua vez, pode ser observada de dois modos: de um
“ponto de vista externo” (para um observador que desconheça as
regras, o jogo apenas pode ser descrito em termos de regularidade
dos comportamentos) e de um “ponto de vista interno”80, que pode
ser expressado na crítica ou nas exigências feitas a outros sujeitos em
relação ao desvio real ou possível.
É o ponto de vista interno que caracteriza a nota mais relevante
na diferenciação entre o hábito e a regra, permitindo, no exemplo em
questão, a legitimação da invalidação do gol ou, até mesmo, a expulsão
do jogador faltoso (que pode vir a reconhecer sua falta, ou seja, a violação
da regra) por meio da pressão social organizada do grupo. Esse exemplo
pode ser matizado para compreender a concepção de Hart em relação
a um sistema jurídico. Nesse sentido, nas regras jurídicas a pressão
social é centralizada pelo Estado através dos órgãos habilitados pelo
sistema. Contudo, quando os próprios órgãos aplicam a regra também
a aceitam de um “ponto de vista interno”. Essa atitude social diante
da regra jurídica a converte num critério público compartilhado. Para
Hart, as regras não apenas servem de “guias para os participantes do
jogo” (indivíduos de uma coletividade), como também para os árbitros
(juízes que aplicam as regras – funcionários –, na terminologia de
Hart).

80
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1961, p. 65. Conforme Hart, “uma regra social tem um aspecto
interno para além do aspecto externo que partilha com o hábito social e que consiste
no comportamento regular e uniforme que qualquer observador pode registrar [...]”
(grifo do autor).
Teoria do Direito e discricionariedade 62

Assim, observa-se que as regras jurídicas também autovinculam


(“ponto de vista interno”), servindo de base tanto para criticar os que se
afastam da mesma como para uma justificativa suficiente dessa crítica.
Nesse contexto, Hart, ao desvelar as insuficiências e incapacidades do
modelo paradigmático de Austin baseado apenas em ordens coercitivas,
vai elaborar outra concepção do Direito, estabelecendo como conceito
central, em sua teoria, a noção de regra jurídica.81
Para tanto, ao diferenciar as regras em primárias e secundárias,
Hart vai buscar um “remédio”82para cada insuficiência detectada na
Teoria Imperativa de Austin. É o que se verificará a seguir.

2.2.2 A classificação do Direito em regras primárias e secundárias

Hart tratou de resolver os problemas apontados (derivados


das insuficiências do modelo de Austin, que se estrutura apenas em
ordens coercitivas emanadas de um comando soberano) concebendo
o Direito como um sistema normativo composto por dois tipos de
regras jurídicas: as primárias (que impõem obrigações ou proibições)
e as secundárias (que conferem poderes), pontificando: “As regras do
primeiro tipo impõem deveres; as regras do segundo tipo atribuem
poderes públicos ou privados”.83
Assim, as regras primárias regulam diretamente as condutas
ao prescreverem que se faça ou se deixe de fazer alguma ação. As
secundárias, por sua vez, ao se subdividirem em três, desempenham

81
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 90. Como afirma o autor, “a causa da raiz da
derrota reside no facto de que os elementos a partir dos quais a teoria foi construída,
nomeadamente as ideias de ordens, obediências, hábitos e ameaças, não incluem
e não podem originar, pela sua combinação, a ideia de uma regra, sem a qual não
podemos esperar elucidar mesmo as formas mais elementares de direito [...]”.
82
Ibid., p. 103. Para o autor, “o remédio para cada um destes três defeitos principais,
nesta forma mais simples de estrutura social, consiste em complementar as regras
primárias de obrigação com regras secundárias, as quais são regras de diferente
espécie [...]” (grifos do autor).
83
Ibid., p. 99.
63 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

funções diferenciadas em relação às regras primárias, a saber:


determinando o modo pelo qual as regras primárias podem ser
identificadas como regras jurídicas (regras de reconhecimento);
proferindo determinações em casos de dúvida da violação ou não
do cumprimento das regras primárias (regras de julgamento), e, por
último, determinando o modo pelo qual as regras primárias podem ser
criadas, eliminadas ou alteradas (regras de alteração).
Nesse panorama, Hart, ao ter estabelecido na crítica efetuada
a um sistema social – estruturado apenas com base em regras primárias
– três defeitos principais, no passo subsequente elabora as alternativas
de superação. Nesse sentido, predica o autor:

O remédio para cada um destes três defeitos principais,


nesta forma mais simples de estrutura social, consiste
em complementar as regras primárias de obrigação
com regras secundárias, as quais são regras de diferente
espécie. A introdução de um corretivo para cada defeito
poderia em si ser considerada um passo na passagem
do modo pré-jurídico para o jurídico, uma vez que cada
um desses remédios traz consigo muitos elementos que
vão permear o direito: os três remédios em conjunto são,
sem dúvida, o bastante para converter o regime de regras
primárias naquilo que é indiscutivelmente um sistema
jurídico.84(grifos do autor)

Desse modo, a necessidade das regras secundárias fica


evidenciada a partir das incapacidades centrais detectadas por Hart
num sistema elaborado somente pela existência das regras primárias.
E, nesse sentido, as regras secundárias vão operar como corretivos
destes “três defeitos principais” da seguinte maneira: saneando a
“incerteza” do regime simples de regras primárias através das regras
de reconhecimento, ao definir critérios identificadores das regras
jurídicas; modificando a rigidez e imutabilidade, ou seja, o caráter
“estático” do regime das regras primárias, ao introduzirem-se as regras
de alteração, e, por último, ao conferir a um poder exclusivo a tarefa

84
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 103.
Teoria do Direito e discricionariedade 64

de dirimir conflitos, operada pelas regras de julgamento diante da


“ineficácia” do regime das regras primárias.
Assim, se por um lado percebe-se, na teoria jurídica de Hart,
que o ordenamento jurídico está composto pelo entrelaçamento dessas
duas classes de regras (primárias e secundárias), por outro é fundamental
perceber também que no referido modelo ambos os tipos de regras
jurídicas dependem, definitivamente, da regra de reconhecimento –
regra que, em última instância, vai permitir identificar quais as regras
que pertencem ou não ao sistema jurídico. Daí, para Hart, ser a regra
de reconhecimento o fundamento de validade de todo o ordenamento
jurídico, como se verá a seguir.

2.2.3 A regra do reconhecimento como último fundamento de


validade, na teoria de Herbert L. A. Hart

Hart, assim como Kelsen, sublinha, em sua teoria, o ponto


de partida estabelecido para fundamentar a construção de um
sistema jurídico ao conceber o Direito como a conjugação de regras
primárias e secundárias, estabelecendo que, entre as últimas, a regra
de reconhecimento é aquela que institui os requisitos essenciais para
que uma regra de uma determinada sociedade seja identificada como
regra do sistema jurídico. Nesse sentido, ao explicitar os fundamentos
dos modernos sistemas jurídicos, observa que, em função de existir
nos mesmos uma pluralidade de “fontes” de Direito, a regra de
reconhecimento se complexifica, sendo normalmente não enunciada,
embora possa ter comumente vários critérios de identificação. Assim,
segundo o autor:

Num moderno sistema jurídico, em que existe uma


variedade de “fontes” de direito, a regra de reconhecimento
é correspondentemente mais complexa: os critérios para
identificar o direito são múltiplos e comumente incluem
uma constituição escrita, a aprovação por uma assembleia
legislativa e precedentes judiciais. Na maior parte dos
casos, estabelece-se uma sanção para conflitos possíveis
através da ordenação desses critérios numa hierarquia de
65 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

subordinação [...].85

Complementa, em relação à sua não enunciação:

Na maior parte dos casos a regra de reconhecimento não


é enunciada, mas a sua existência manifesta-se do modo
como as regras são identificadas, tanto por tribunais
ou outros funcionários como pelos particulares ou
consultores.86(grifo do autor)

Nessa concepção, insinua-se o conceito de validade jurídica


desenvolvido pelo autor, na medida em que esta manifestação está
implicada com a relação entre a validade e a regra de reconhecimento
(o último fundamento de validade de um sistema jurídico), sendo
evidenciada através do modo pelo qual as regras concretas, em última
instância, são identificadas numa prática social compartilhada.
Simplificando: numa prática geral de identificação das regras,
determinada pelos critérios identificadores estabelecidos na regra
de reconhecimento. De outro lado, há uma diferença substancial na
maneira como são identificadas essas regras concretas,87 como pontifica
Hart:

Naturalmente que existe uma diferença entre o uso feito


pelos tribunais dos critérios facultados pela regra e o uso
que os outros fazem deles: porque quando os tribunais
chegam a uma conclusão concreta com o fundamento
de que uma regra concreta foi corretamente identificada
como regra de direito, o que eles dizem tem um estatuto
de autoridade especial que lhes é conferido por outras
regras.88

85
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 112.
86
Ibid., p. 113.
87
Ibid.
88
Ibid., p. 113.
Teoria do Direito e discricionariedade 66

Essa distinção, como já se observou anteriormente, Hart vai


denominar “ponto de vista interno”. Por ora, a tarefa subsequente deste
trabalho se deterá em analisar as implicações conceituais implicadas
na compreensão da regra de reconhecimento, segundo o autor.

2.3 A estrutura hierarquizada do ordenamento jurídico em Hart: a regra


de reconhecimento e suas implicações conceituais

Hart, ao analisar os sistemas jurídicos, assim como Kelsen,


entende que os ordenamentos jurídicos possuem uma estrutura
hierárquica na qual a validade de uma norma depende de outra que
lhe sirva de fundamento, até chegar-se à última norma: regra de
reconhecimento para Hart, norma pressuposta (pensada) para Kelsen.
Essas diferenciadas terminologias vetorizam diferenciados modelos
jurídicos, como se verá a seguir.
De acordo com o modelo já analisado em Kelsen, o critério
decisivo de pertinência de uma norma ao sistema jurídico é a remissão,
em última instância, a uma mesma norma superior que, por sua vez,
determina o processo de produção de todas as normas jurídicas.
Desse modo, para tal modelo a identificação de uma norma jurídica
a um ordenamento jurídico é possível quando todas as normas
dependerem do mesmo fundamento de validade. Esse critério aplica-
se essencialmente a um sistema dinâmico de normas (cuja derivação
normativa se dá através de uma produção positiva regida por normas
superiores). Todavia, cada norma positivada é, por sua vez, fonte
estática (a derivação é meramente dedutiva e não requer positivação)
de todas as normas que dela se deduzem. Por essa via traçada, Kelsen
chega à última norma, pressuposta (pensada), que o autor denomina
“norma fundamental”, como já verificado anteriormente.
Nos alongamos nessa explanação, já apontada no estudo de
Kelsen, porque, diante da mesma, é possível diferenciar com maior
clareza a outra proposta teórica em questão: descrever o sistema
67 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

jurídico e sua identificação, conforme a elaboração de Hart. Nesse


sentido, o jurista, diferentemente de Kelsen, admite descrever a
existência de regras jurídicas sem ter por base uma norma fundamental
pressuposta – norma pensada, na concepção kelseniana. Para tanto,
o jusfilósofo inglês vai sustentar, na sua concepção de Direito como
sistema normativo, que a base do mesmo (ou o seu ponto de partida)
está formada por um conjunto de critérios dotados de autoridade e
derivados da prática social – que os órgãos de aplicação do sistema
jurídico aceitam e usam para identificar as regras jurídicas pertencentes
ao referido sistema. O conjunto desses critérios, que se expressam
numa regra de reconhecimento, permite a identificação das regras
jurídicas e, em última análise, a sua remissão como último critério de
validade. Essa relação entre a validade e a regra de reconhecimento se
evidencia quando Hart assevera:

Dizer que uma dada regra é válida é reconhecê-la como


tendo passado todos os testes facultados pela regra
de reconhecimento e, portanto, como uma regra do
sistema. Podemos, na verdade, dizer simplesmente que
a afirmação de que uma regra concreta é válida significa
que ela satisfaz todos os critérios facultados pela regra de
reconhecimento.89

Entretanto, um dos pontos cruciais para compreender a


regra de reconhecimento é não deixar de perceber que, para Hart,
tanto o conjunto de critérios identificadores como a autoridade dela
expressada derivam de uma prática social e, portanto, ao contrário
do modelo kelseniano, a regra de reconhecimento não é uma norma
pressuposta, pensada, e, sim, uma questão fática.
Desse modo, os funcionários que aplicam as regras aplicam,
de fato, um conjunto de critérios na identificação das regras que
pertencem ao sistema jurídico (através da regra de reconhecimento que
contém e fornece esses critérios). Mas aplicam esses critérios porque

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:


89

Calouste Gulbenkian, 1961, p. 116.


Teoria do Direito e discricionariedade 68

os aceitam e usam através de uma prática social compartilhada que se


consubstancia na regra de reconhecimento. Assim, para Hart90, uma
regra será válida quando pertencer a um diferenciado sistema jurídico,
e, na medida em que os modernos sistemas são formados por regras
primárias (regras de conduta) e secundárias (regras que atribuem
poder), dentre as últimas é a regra de reconhecimento que contém os
critérios identificadores, especificando as características que devem
possuir as regras.
Importa salientar que uma das particularidades do sistema
jurídico moderno envolve a presença de critérios para identificar e
reconhecer as regras que pertencem ao sistema. Essa primordial função
é exercida pela regra de reconhecimento. Contudo, como afirmado no
parágrafo anterior, é preciso notar, no modelo de Hart, que, se por um
lado a regra de reconhecimento estabelece o critério (ou o conjunto
de critérios) que permite determinar a pertinência das regras, por
outro lado esses critérios são públicos e compartilhados. Essa é a nota
distintiva mais relevante para o conceito de Direito deste jurista, ao
estabelecer uma condição fática como critério de identificação da
existência de um sistema jurídico.
Mas qual é essa condição fática para Hart? É a de que as
regras de um ordenamento jurídico sejam, em geral, obedecidas pelos
indivíduos e aplicadas (aceitas) pelos órgãos habilitados do sistema,
como se verificará detalhadamente mais adiante. Por ora, o importante
é não perder de vista o fato de que o conjunto de critérios contidos
na regra de reconhecimento, uma vezque públicos e compartilhados, é
usado na prática social como critério de correção. Dito de outra forma,
os critérios identificadores da regra de reconhecimento, ao serem
utilizados na prática social, permitem identificar corretamente uma
regra jurídica como fazendo parte de um sistema jurídico. Portanto,
para Hart, a regra de reconhecimento, ao especificar as características
de pertinência a um ordenamento jurídico eao constituir-se em um

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:


90

Calouste Gulbenkian, 1961.


69 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

critério público compartilhado, referencia, em última instância, a


validade, relacionando-a a uma questão fática.
Daí porque, no modelo teórico deste jurista, a afirmação de
que uma regra é válida porque pertence ao sistema equivale a dizer que
a mesma possui validade na medida em que os critérios determinados
pela regra de reconhecimento são aceitos por uma prática social. Neste
momento é preciso averiguar a significação dessa prática social. Em
outras palavras, é preciso analisar, na teoria jurídica do autor, as
condições necessárias e suficientes para a existência de um sistema
jurídico. Para tanto, importa lapidar a seguinte afirmação:

Há, portanto, duas condições mínimas necessárias e


suficientes para a existência de um sistema jurídico. Por
um lado, as regras de comportamento que são válidas
segundo os critérios últimos de validade do sistema devem
geralmente ser obedecidas e, por outro lado, as suas regras
de reconhecimento especificando os critérios de validade
jurídica e as suas regras de alteração e de julgamento
devem ser efetivamente aceitas como padrões públicos e
comuns de comportamento oficial pelos seus funcionários.
A primeira condição é a única que os cidadãos privados
necessitam satisfazer: podem obedecer, cada qual “por
sua conta apenas”, e sejam quais forem os motivos porque
o façam; embora numa sociedade sã eles aceitem, de fato,
frequentemente estas regras como padrões comuns de
comportamento e reconheçam uma obrigação de lhes
obedecer, ou reconduzam esta obrigação à obrigação mais
geral de respeitar a constituição. A segunda condição
deve também ser satisfeita pelos funcionários do sistema.
Eles devem encarar essas regras como padrões comuns
de comportamento oficial e considerar criticamente
como lapsos os seus próprios desvios e os de cada um
dos outros. Naturalmente, é também verdade que, além
destas, haverá muitas regras primárias que se aplicam
aos funcionários na sua capacidade meramente pessoal,
a que eles necessitam apenas obedecer. A asserção
de que um sistema jurídico existe é, portanto, uma
afirmação bifronte, que visa tanto à obediência pelos
cidadãos comuns como à aceitação pelos funcionários
das regras secundárias como padrões críticos comuns de
comportamento oficial. Não precisamos nos surpreender
com esta dualidade. É meramente o reflexo do caráter
compósito de um sistema jurídico, por comparação com
uma forma pré-jurídica descentralizada e mais simples de
Teoria do Direito e discricionariedade 70

estrutura social que consiste apenas em regras primárias


[sic]91.

Como se observa, a concepção de Hart exige duas condições


necessárias e suficientes para a existência de um sistema jurídico. Em
primeiro lugar, que as regras de comportamento válidas conforme a
regra de reconhecimento sejam geralmente obedecidas. Em segundo
lugar, que as regras que especificam os critérios de pertinência ao
sistema (regra de reconhecimento), como as que determinam a
mudança das regras (regras de alteração) e as regras que determinam
os órgãos e procedimentos de aplicação das regras válidas (regras de
julgamento) sejam efetivamente aceitas pelos seus funcionários como
pautas públicas e comuns de conduta. O primeiro requisito diz respeito
às condutas dos cidadãos diante de regras válidas e se relaciona com a
temática da eficácia, na medida em que, se as regras jurídicas não forem
geralmente obedecidas, ao não existir uma prática social contínua, não
pode constituir-se um sistema jurídico. Entretanto, é preciso precaução
na análise da relação da validade com a eficácia, no modelo de Hart.92
Nesse raciocínio, o próprio autor afirma:

Se por eficácia se quer dizer que o fato de que uma regra


de direito exigindo um certo comportamento é mais
frequentemente obedecida que desobedecida, é evidente
que não há relação necessária entre a validade de uma
regra concreta e sua eficácia93, a menos que a regra de
reconhecimento do sistema inclua entre os seus critérios
[...] que nenhuma regra é considerada regra do sistema se

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:


91

Calouste Gulbenkian, 1961, p. 128.


92
Ibid.
93
Ibid., p. 65. Nesse sentido, Hart esclarece: “Quantos membros do grupo deverão
considerar [...] o modo regular de comportamento como um padrão de crítica, e com
que frequência e durante quanto tempo o devem fazer, para fundamentar a afirmação
de que o grupo tem uma regra, não são questões definidas; não precisamos preocupar-
nos mais com elas do que com o problema de saber quantos cabelos pode um homem
ter e ainda assim ser careca [...]”.
71 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

tiver cessado há muito de ser eficaz.94

A relação da validade com a eficácia das regras traz à tona dois


tipos de enunciados propostos por Hart, já descritos anteriormente,
na perspectiva da distinção entre hábitos e regras, a saber: um
enunciado do ponto de vista exterior (“afirmação externa”), através
do qual um observador não comprometido com as regras jurídicas
pode (empregando algum critério empírico) descrevê-las, enunciando-
as como fatos, sem contudo ter a sua aceitação95;e outro enunciado
(“afirmação interna”) em oposição aos enunciados externos, “porque
manifesta o ponto de vista interno e é naturalmente usado por quem,
aceitando a regra de reconhecimento e sem declarar o fato de que é
aceite, aplica a regra ao reconhecer qualquer regra do sistema como
válida [...]”96. Assim, nesses últimos, se faz necessária a presença da
aceitação, como assevera Hart:

Afirmações de validade jurídica pronunciadas acerca das


regras concretas no dia a dia de um sistema jurídico, quer
o sejam por juízes, por juristas ou por cidadãos comuns,
arrastam consigo certos pressupostos. São aplicações
internas de direito expressando o ponto de vista daqueles
que aceitam a regra de reconhecimento do sistema [...].97

No exemplo do jogo de futebol, seguido da distinção dos


hábitos e das regras, se perguntássemos a um jogador por que um gol é
válido, a resposta que afirmasse “porque é válido conforme as regras do
futebol” é a que conformaria os enunciados do “ponto de vista interno”.

HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. Lisboa:


94

Calouste Gulbenkian, 1961, p. 115.

Ibid., p. 114. Conforme Hart, “a segunda forma de expressão chamaremos afirmação


95

externa, porque é a linguagem natural de um observador externo ao sistema que, sem


aceitar ele próprio a regra de reconhecimento desse sistema, enuncia o fato de que
os outros a aceitam”.
96
Ibid., p. 114.
97
Ibid., p. 119. Grifo nosso.
Teoria do Direito e discricionariedade 72

Analogicamente, um juiz (“funcionário”, na terminologia de Hart),


ao aplicar as regras jurídicas, se indagado sobre tal fundamentação,
poderia responder: “porque é direito”, ou “porque são regras válidas”,
percorrendo suas respostas o mesmo sentido anterior (“ponto de
vista interno”). Nessa direção, tanto o jogador como o juiz aceitam
a prática social. O primeiro como procedimento legítimo no jogo
utilizado; o segundo porque aceita a regra jurídica como pertencente
a um determinado sistema jurídico. Sob essa mesma ótica verifica-se a
conotação da expressão exemplificada por Hart: “O direito dispõe que
[...] podemos ouvir da boca não só dos juízes, mas até de homens comuns
vivendo sob o domínio de um sistema jurídico, quando identificam
determinada regra do sistema”.98 Complementando, segundo o autor:

Essa atitude de aceitação compartilhada de regras deve


ser contraposta à de um observador que registra ab extra
o fato de que um grupo social aceita tais regras, mas ele
próprio não aceita. A expressão natural deste ponto de
vista externo não é “o direito dispõe que [...]”, mas “na
Inglaterra reconhecem como direito [...] tudo o que a
Rainha no Parlamento aprova”.99

Assim posto, poder-se-ia indagar sobre a relevância desses


distintos enunciados e sua relação com as duas condições necessárias
e suficientes da existência de um sistema jurídico. A relação é
fundamental na medida em que, ao adotar os órgãos do sistema – um
“ponto de vista interno” a respeito da regra de reconhecimento –, essa
atitude a converte num critério público compartilhado. Vale dizer, não
apenas guia a conduta dos funcionários habilitados por tais órgãos
como também permite a crítica daqueles que se afastam dela (regra de
reconhecimento).
Assim, para Hart, se o primeiro requisito da existência de
um sistema jurídico se dirige à conduta dos cidadãos em geral, o

98
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 116.
99
Ibid., p. 114.
73 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

segundo requisito – que as regras de reconhecimento e de alteração


e julgamento sejam também aceitas (de um “ponto de vista interno”)
pelos funcionários como pautas de conduta oficial – é mais restrito.
Isso porque, na concepção de Hart, os funcionários não podem
simplesmente obedecer às regras, pois, ao depender de uma premissa
fática, o sistema jurídico demanda também que os mesmos as aceitem
como critérios públicos,ou seja, como um fato social que sirva de guia
e justificação para suas próprias atitudes. 100
Em síntese, o modelo deste jurista para a identificação de
um ordenamento jurídico exige não apenas a aplicação das regras,
no caso de seu descumprimento (como em Kelsen), mas também que
essa aplicação das regras seja aceita pelos funcionários (não como
mera obediência) e, ainda, que os indivíduos as obedeçam em termos
gerais. De outro lado, na exposição de Hart, uma passagem merece
ser realçada em função do ponto que se está analisando: a referência
ao que denominou “regra última de reconhecimento”. Nesse sentido,
Hart aduz de forma esclarecedora sobre a necessidade de se ter um
limite – um ponto de partida – do sistema jurídico, como esclarece seu
pensamento:

O sentido em que a regra de reconhecimento é a regra


última de um sistema é melhor compreendido se
seguirmos uma cadeia muito familiar de raciocínio
jurídico. Se for levantada a questão de saber se uma
certa regra é juridicamente válida, devemos, para lhe
responder, usar um critério de realidade facultado por
uma regra qualquer. Será válida esta pretensa postura
do Conselho de Condado de Oxfordshire? Sim, porque
foi elaborada no exercício dos poderes conferidos e
conforme o procedimento especificado por um decreto
do Ministério da Saúde. Neste primeiro estádio, o decreto
faculta os critérios, nos termos dos quais a validade da
postura é apreciada. Pode não haver necessidade prática
de ir mais além; mas há uma necessidade permanente
de o fazer. Podemos questionar a validade do Decreto e
apreciar a sua validade, nos termos da Lei que concede
poderes ao ministro para fazer tais decretos. Por fim,

100
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961.
Teoria do Direito e discricionariedade 74

quando a validade dessa Lei foi questionada e apreciada


por referência à regra de que aquilo que a Rainha do
Parlamento aprova é direito, chegamos a uma paragem
nas indagações a respeito da validade: porque alcançamos
uma regra que, tal como o decreto e a lei intermédios,
faculta critérios para a apreciação da validade de outras
regras; mas é ao mesmo tempo diferente deles, na medida
em que não há regra que faculte critérios para a apreciação
da sua própria validade jurídica.101

Nessa explanação, visualiza-se todo o processo de validação das


regras jurídicas (cadeia de validade). Contudo, no horizonte conceitual
proposto pelo modelo deste jurista subjaz a seguinte indagação: uma
vez aceita a regra de reconhecimento como critério último, em qual
base repousaria esse critério supremo?102A resposta de Hart aponta
na direção em que não há sentido em perguntar pela validade desse
critério último, pois, por definição, tudo o que se identifique com os
critérios de pertinência da regra de reconhecimento (que podem variar
de ordenamento a ordenamento) pertence ao sistema jurídico. Nesse
sentido, esclarece o autor:

Só necessitamos da palavra validade e só a usamos


comumente para responder a questões que se colocam
dentro de um sistema de regras onde o estatuto de
uma regra como elemento do sistema depende de que
ela satisfaça certos critérios facultados pela regra de
reconhecimento. Uma tal questão não pode ser posta
quanto à validade da própria regra de reconhecimento
que faculta os critérios; esta não pode ser válida ou
inválida, mas é simplesmente aceita como apropriada
para tal utilização. Expressar este simples fato dizendo
de forma pouco clara que a sua validade é “suposta”, mas
não pode ser demonstrada, é como dizer que supomos,
mas não podemos demonstrar, que a barra metro-padrão
em Paris, que é o teste último de correção de toda medida

101
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 118.
102
Ibid., p. 117. Segundo Hart, “a regra de reconhecimento, que faculta os critérios
através dos quais a validade das outras regras do sistema é avaliada, é, num sentido
importante que tentaremos clarificar, uma regra última: e onde, como é usual, há
vários critérios ordenados segundo a subordinação e primazia relativa, um deles é
supremo” (grifos do autor).
75 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

métrica, é ela própria correta.103(grifo do autor)

Como se percebe na compreensão de Hart104 sobre a natureza


jurídica da regra de reconhecimento, não faz sentido a indagação sobre
sua validade na medida em que a mesma é aceita e compartilhada
numa prática social. Desse modo, questionar seu critério último seria,
conforme o autor, a mesma coisa que indagar se a barra metro-padrão
de Paris mede realmente um metro. Em outras palavras, essa medida
é o padrão de um metro porque assim foi aceita como medida padrão
utilizada para uma distância convencionada. Daí que tal indagação
apenas evidenciaria a falta de compreensão sobre a definição da medida
métrica estipulada.
Nessa compreensão jurídica, Hart conclui que a existência
de uma regra de reconhecimento apenas se verifica como “uma
prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos
funcionários e dos particulares”105 ao serem satisfeitos os critérios
estabelecidos pela mesma. Em suma, para Hart, a existência da regra
de reconhecimento é, em última análise, “uma questão de fato”.106
A seguir, adentrar-se-á na problemática específica do tema
da discricionariedade judicial, ou seja, na análise empreendida por
este jurista em relação às regras que apresentam uma textura mais
aberta e, portanto, se encontram na “zona de penumbra”107, como as
denomina Hart. Entretanto, para uma melhor compreensão da análise
a ser realizada é preciso tecer algumas considerações preliminares
ao passo delineado. Nesse sentido, contrapondo os modelos teóricos
de Hart e Kelsen, verificou-se que o fundamento do sistema jurídico,

103
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 120.
104
Ibid.
105
Ibid., p. 121.
106
Ibid., p. 121.
107
Ibid., p. 134.
Teoria do Direito e discricionariedade 76

para ambos os juristas, repousa numa norma suprema que estabelece


o último critério de validade, respectivamente denominado “regra
de reconhecimento”, para o primeiro autor, e “norma fundamental”,
para o segundo. Contudo, como já apontado anteriormente, em Kelsen
esse fundamento de validade do ordenamento jurídico é uma norma
pressuposta (pensada). Em outras palavras, um postulado. No entanto,
para Hart, esse critério decisivo do fundamento da validade de um
sistema jurídico é uma questão fática, estabelecida por uma prática
social compartilhada.
Dessa diferença decorrem relevantes implicações. Na medida
em que Hart desenvolve dois pontos de vista sobre as regras jurídicas,
a regra de reconhecimento, quando observada de um ponto de vista
externo”, pode ser visualizada como uma “questão de fato”. Todavia, de
um “ponto de vista interno” a significação da regra de reconhecimento
relaciona o critério de validade, que fundamenta o sistema, com
sua aceitação. Vale dizer: os indivíduos não apenas obedecem a
determinada normatividade emanada das regras jurídicas como têm
convicção de que essa normatividade é legítima, de acordo com uma
regra última que é aceita pela maioria dos cidadãos.108 Esses dois
modos de perceber as regras vão possibilitar a Hart um afastamento,
tanto da “pureza” buscada por Kelsen como do ceticismo dos realistas.
Em relação à “concepção kelseniana”, o distanciamento efetua-se
fazendo referência ao “ponto de vista externo”. Quer dizer: Hart, ao
introduzir uma premissa fática no fundamento do sistema jurídico,
afasta-se de Kelsen ao não reconhecer nesse jurista uma base empírica
como condição de validade do ordenamento jurídico. E, em relação ao
ceticismo dos realistas109, se afasta dos mesmos, densificando o “ponto
de vista interno”. Vale dizer: separa Holmes o Direito vai ser designado
como

108
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961
109
Ibid., p. 6.
77 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

[...] as profecias que os tribunais farão”110e, portanto,


nessa percepção, a normatividade das regras jurídicas vai
depender de uma decisão futura dos tribunais, para Hart
há, nesse ceticismo, um exagero inaceitável. Precisamente
porque, sob o “ponto de vista interno” (rechaçado pelos
realistas), as regras jurídicas têm um significado fixo e
determinável.111

Daí resulta que, embora o jurista admita uma “estrutura aberta”


da linguagem jurídica, a posição do juiz não se encontra desvinculada
das significações estabelecidas pelas regras jurídicas. Ao contrário, a
posição do tribunal vincula-se a esse núcleo referendado de sentido, do
qual deriva a relevante função normativa do Direito, servindo de guia
e diretriz das condutas sociais. De outro modo, Hart vai admitir que há
casos marginais (casos difíceis), nos quais não é possível estabelecer
inequivocamente o sentido da regra jurídica porque não se sabe com
certeza se o caso está coberto claramente por uma regra jurídica.
Nesses “casos difíceis” (hard cases), como denominará Dworkin, os
juízes poderiam exercer uma discricionariedade no sentido de suas
decisões não estarem condicionadas por nenhuma pauta jurídica
determinada e encontrarem-se na “zona de penumbra”. Esse é o tema
que estudaremos a seguir.

2.4 A teoria da interpretação de Hart e a discricionariedade judicial

Na análise dos conceitos jurídicos fundamentais de Hart,


verificou-se que a originalidade do seu pensamento pode ser centralizada

110
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 6. Citação de Holmes, feita por Hart. O. W.
Holmes, The path of law, 1920, p. 173: “Aquilo que designo como direito [...] são as
profecias que os tribunais farão”.

Ibid., p. VII. Nessa linha argumentativa, é conclusivo o pensamento de Hart: “Se


111

não fosse possível comunicar padrões gerais de conduta que multidões de indivíduos
pudessem perceber, sem ulteriores diretivas, padrões estes exigindo deles certa
conduta, conforme as ocasiões, nada daquilo que agora reconhecemos como direito
poderia existir [...]”.
Teoria do Direito e discricionariedade 78

no que diz respeito ao problema do reconhecimento das regras de um


ordenamento jurídico. Dito de outra forma, se cada regra do sistema
é reconhecida por outra regra, que por sua vez a permite identificar,
interpretando e fixando seu sentido, chega-se à última regra (regra de
reconhecimento), que é a que vai condicionar a validade de todas as
regras que pertencem ao sistema jurídico.
Nessa dinâmica do Direito, do ponto de vista descritivo
o modelo de Hart pode ser caracterizado como uma reformulação
das teses positivistas que o antecedem, notadamente em relação ao
último critério de validade jurídica formulado por Kelsen (a norma
fundamental). Com efeito, ao compreender a regra última que
fundamenta a validade de um sistema jurídico como aceita por uma
prática social compartilhada, o autor dá um esclarecimento novo à
questão da obrigatoriedade jurídica.
Assim, ao trazer para a esfera da regra de reconhecimento os
fatos sociais, a “pureza” almejada por Kelsen é substituída em razão de
uma realidade empírica exterior a ela. Contudo, não podendo pensar
a fundação do Direito senão numa premissa fática, em relação ao
“ideal kelseniano”, de um sistema sem falhas, a ideia do Direito como
textura aberta torna menos rígido o modelo de Hart. Isso porque, ao
admitir a necessidadede conceder que a pirâmide do sistema jurídico
seja formada por uma textura das regras – que permanece aberta e
relativamente indeterminada–, sua concepção se flexibiliza em relação
a Kelsen. De outro lado, esta vagueza potencial de significado não vai
inviabilizar, para sua teoria jurídica, a determinação de um núcleo
de significação central das regras jurídicas. É precisamente sobre
a análise dessas duas características essenciais das regras jurídicas
(textura aberta e núcleo fixo determinado) que se estrutura sua teoria
da interpretação, como se verá a seguir.
Em relação às características apontadas, Hart as situa da
seguinte maneira:

Todas as regras envolvem o reconhecimento ou


classificação de casos particulares como exemplos de
79 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

termos gerais e, considerando tudo aquilo que nós


aceitamos chamar de regra, é possível distinguir casos
centrais nítidos em que se aplica certamente e outros em
que há razões, tanto para afirmar, como para negar que
se aplique. Nada pode eliminar esta dualidade de um
núcleo de certeza e de uma penumbra de dúvida, quando
nos empenhamos em colocar situações concretas sob as
regras gerais. Tal atribui a todas as regras uma orla de
imprecisão, ou uma “textura aberta” [...]112.

Desse modo, ao reconhecer Hart que todas as regras possuem


um núcleo de significado fixo, concomitantemente com uma “zona de
penumbra” na linha de fronteira, afasta-se de uma concepção do Direito
visualizada como um sistema puro autorreferenciado. Isso posto, o
autor passa a analisar as duas causas principais de “imperfeições” no
Direito, como se verificará no passo subsequente.
A primeira “imperfeição” diz respeito ao fato de que o Direito
usa necessariamente a linguagem ordinária e, portanto, sofre também
de sua imperfeição.113Esse é o caso dos textos normativos que possuem
uma formulação mais geral e abstrata, daí resultando sua inadaptação,
de forma direta, a situações concretas de sua aplicação. Assim, para
este jurista, mesmo as regras jurídicas bem construídas vão apresentar
sempre uma incerteza quanto ao seu sentido.
A segunda “imperfeição” diz respeito à finitude humana, e é em
razão desta que o Direito deve negar seu “ideal de pureza”. O motivo,
como identifica Hart, é que “[...] a razão reside em que tal escolha é
lançada sobre nós porque somos homens, não deuses”.114 Isso implica,
sobretudo, numa relativa indeterminação ao nível dos fins. Desse
modo, a autoridade legislativa não pode, a priori, visualizar todas as

112
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 134.

Ibid., p. 139. Conforme Hart, “[...] a incerteza na linha de fronteira é o preço que
113

deve ser pago pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de
comunicação que respeite as questões de fato [...]”.
114
Ibid., p. 141.
Teoria do Direito e discricionariedade 80

situações possíveis do emprego da regra que pode supor.


Essas duas causas de “imperfeições”, que Hart denomina
“desvantagens”115, exigem que a aplicação do Direito seja operada por
mediações que, dependendo do seu teor, podem pôr em “xeque” o
objetivismo buscado pelo positivismo jurídico ao descrever o Direito
como um sistema de norma, especialmente nos casos em que se
encontram na “fronteira” da regra jurídica, sujeitos à discussão, ou
até mesmo pela omissão à regra. Nesses, a gravidade das mediações
se acentua. Diante dessas situações, Hart não deixou de perceber as
dificuldades:

A textura aberta do direito significa que há, na verdade,


áreas de conduta em que muitas coisas devem ser
deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou
pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à
luz das circunstâncias, entre interesses conflitantes que
variam em peso, de caso para caso.116

Diante desses casos difíceis (em que a regra jurídica é


obscura ou ausente), Hart é forçado a conceder um verdadeiro poder
discricionário atribuído aos juízes117, percebendo, além disso, o dilema
do qual ele próprio indica a forma: “Ou as regras são o que seriam no
paraíso de um formalista e então vinculam tanto como grilhões, ou não
há regras, mas só decisões ou padrões de comportamento suscetíveis

115
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 141. Segundo Hart, “a primeira desvantagem
é a nossa relativa ignorância de fato; a segunda, a nossa relativa indeterminação de
finalidade [...]”.
116
Ibid., pp. 138-139. Conforme Hart, “haverá na verdade casos simples que estão
sempre a ocorrer em contextos semelhantes, aos quais as expressões gerais são
claramente aplicáveis [...] mas haverá casos em que não é claro se se aplicam ou
não [...]”.
117
Ibid., p. 119. Segundo Hart, “em qualquer sistema jurídico deixa-se aberto um vasto
e importante domínio para o exercício do poder discricionário pelos tribunais e por
outros funcionários, ao fornecerem precisos padrões que eram inicialmente vagos, ao
resolverem as incertezas das leis [...]”.
81 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

de predição”.118
É precisamente rechaçando essas duas posições
extremadas119que Hart constrói uma posição intermediária entre o
“paraíso dos formalistas” e o “absolutismo dos céticos”. Nesse contexto,
embora para esse jurista o dilema apontado seja afirmado como um
“falso dilema”120, tal assertiva não alude à necessidade de que o autor
construa uma teoria da interpretação, superando o formalismo e o
ceticismo, para dar conta dos problemas que surgem à efetiva realização
do Direito. Dito de outra forma, ou chega-se a resolver teoricamente
o problema da indeterminação das regras gerais, ou arrisca-se a dar
guarida a um ceticismo relativo à natureza das regras jurídicas.
Essa última opção também é inaceitável para Hart, na medida
em que seu modelo jurídico busca descrever o Direito, superando
as tradicionais definições que se fundamentam na força ou no
pragmatismo. Portanto, o dilema é real e deve ser respondido – e é
assim que este jurista fará, seja porque “os homens não podem viver
unicamente de deduções”121, como querem os formalistas, ou porque
a posição dos céticos ameaça a compreensão do sistema jurídico
como um todo. A ameaça é tanto mais séria, que aquele que se mostra
cético em relação à natureza das regras vai ser chamado por Hart
de “absolutista desapontado”.122 De outro lado, como já verificado, o
modelo dos formalistas tampouco serve para Hart, ao não dar conta

118
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 152.
119
Ibid., p. 143. Nesse sentido, conforme Hart: “A teoria jurídica tem nessa matéria uma
história curiosa; porque está apta, quer a ignorar, quer exagerar as indeterminações
das regras jurídicas”.
120
Ibid , pp. 152-153. Hart constrói o exemplo da visita prometida a um amigo, não
cumprida por alguma razão de maior gravidade, afirmando que daí não decorre que
“não haja regra que exija que as promessas sejam cumpridas”.
121
HART, H. L. A. Positivism and the Separation of Law and Morals. Law Review,
Harvard, n. 71, pp. 593-629, 1958. Tradução para o espanhol de CARRIÓ, G.R.
El Positivismo Jurídico y la Separación entre el Derecho e la Moral. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1970, p. 27. Tradução livre.
122
Ibid., p. 152.
Teoria do Direito e discricionariedade 82

da complexidade do Direito. Assim, na busca por uma resposta diante


dessa dupla insatisfação conceitual, ou seja, na crítica a esses dois
pontos extremos, o autor vai “temperar” uma solução que caracteriza
seu modelo de interpretação. Dessa forma, em relação ao “vício
formalista”123 no “paraíso dos conceitos”124, a recusa do autor a esse
ponto de vista interpretativo é traduzida por sua afirmação lapidar:

Se todas as regras de Direito fossem circundadas por


uma penumbra de incerteza, então sua aplicação a casos
específicos na área de penumbra não pode ser matéria
de dedução lógica e, portanto [...], não pode servir como
modelo dos juízes [...].125

Ou seja, o modelo formalista é recusado por Hart, na medida


em que se caracteriza como um modelo de raciocínio silogístico,
buscando subsumir os fatos de uma espécie sobre uma regra geral.
Essa posição é inaceitável para Hart, ao admitir que as regras possuem
uma textura aberta de indeterminação e, portanto, irredutível de se
“encaixarem” mecanicamente126 no “paraíso dos conceitos”. A aceitação
desse modelo para todos os casos transforma o juiz num autômato,
“engessando” as mudanças necessárias para a dinâmica social.
De outro lado, Hart tampouco aceita a posição dos céticos

123
HART, H. L. A. Positivism and the Separation of Law and Morals. Law Review,
Harvard, n. 71, pp. 593-629, 1958. Tradução para o espanhol de CARRIÓ, G.R.
El Positivismo Jurídico y la Separación entre el Derecho e la Moral. Buenos Aires:
Abeledo-Perrot, 1970, p. 142. Hart assim o define: “O vício conhecido na teoria
jurídica como formalismo ou conceptualismo consiste numa atitude para com as
regras formuladas [...], que [...] procura disfarçar e minimizar a necessidade de tal
escolha, uma vez editada a regra geral”.

Ibid., p. 143. Conforme Hart, “a perfeição desse processo é o ‘paraíso dos conceitos’
124

dos juristas; atinge-se quando a um termo geral é dado o mesmo significado, não só
em cada aplicação de uma dada regra, mas sempre que aparece em qualquer regra
do sistema jurídico [...]” (grifo nosso).
125
CARRIÓ, G.R, op. cit., p. 27.

A concepção da onisciência e onicompreensão da função judicial foi desenvolvida


126

por Montesquieu. Nesse sentido, ver: MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Brasília:
Universidade de Brasília, 1982. [Livro Décimo Primeiro, VI].
83 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

(“absolutistas desapontados”), para quem “as regras não são tudo


o que seriam no paraíso de um formalista, ou num mundo em que
os homens fossem iguais aos deuses e pudessem prever todas as
combinações possíveis de fato, de tal forma que a textura aberta não
seria um aspecto necessário das regras”127. O jurista conclui que, para
os céticos, “as regras são importantes na medida em que nos ajudam a
predizer o que os juízes farão. Tal é a sua única importância à parte do
fato de que se constituem lindos brinquedos”.128A ironia fina e a crítica
contundente de Hart aos céticos se estabelece ao não reconhecerem o
fato de que há um núcleo de significação central das regras jurídicas. Tal
característica, que admite um núcleo de sentido fixo das regras, é muito
importante para o funcionamento de uma sociedade contemporânea
complexa.
Caso contrário, se a cada momento as regras jurídicas
suscitassem controvérsias, a realidade do Direito como percebido na
contemporaneidade se inviabilizaria. Nesse sentido, definindo a posição
do autor por contraposição, o fato de que o Direito seja constituído pela
linguagem e que se verifique uma relativa indeterminação ao nível dos
fins não significa que todas as regras jurídicas (nem tampouco a maior
parte dessas) não possam ser compreendidas e aplicadas com uma
certa margem de segurança. Daí porque todas as questões legais não
vão ser semelhantes aos casos duvidosos, como insinuam os céticos.
Dessa forma, para Hart129, contrapostas à “zona de penumbra”, as
regras jurídicas mantêm uma regularidade de sentido, como assevera
o jurista:

A textura aberta do direito significa que há, na verdade,


áreas de conduta em que muitas coisas devem ser
deixadas para serem resolvidas pelos tribunais ou pelos
funcionários [...]. Seja como for, a vida do direito traduz-se

127
HART, Herbert L. A, O Conceito de Direito, Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 152.
128
Ibid., p. 152.
129
Ibid.
Teoria do Direito e discricionariedade 84

em larga medida na orientação quer das autoridades, quer


dos indivíduos privados, através de regras determinadas
que, diferentemente das aplicações dos padrões variáveis,
não exigem deles uma apreciação nova de caso para
caso.130(grifos nossos)

A partir de outra ótica, consoante estabelece Hart, a ideia


da negação das regras pelos céticos também não pode ser combinada
com o fato da existência de um tribunal que as aplique apenas se
verifica porque outra regra jurídica lhe confere jurisdição.131 Assim, das
razões já aduzidas pelo autor se soma o fato de que as regras jurídicas
também possuem uma função organizadora da conduta social. E, nesse
sentido, atuam como “guia de comportamento”132, sob um “ponto de
vista interno”133, já analisado anteriormente. Em síntese, pela crítica
efetuada através dos argumentos relacionados por esse jurista,
verifica-se seu afastamento em relação à posição dos realistas, na qual
toda a pretensão de compreender o Direito resume-se a problemas
pragmáticos – na solução do caso –, que poderá ou não se relacionar
com as regras jurídicas a serem aplicadas.
Neste momento, faz-se necessário uma recapitulação do
modelo interpretativo de Kelsen, contrapondo-o ao de Hart. Para o autor
da TPD, a teoria interpretativa não pressupõe um núcleo de sentido
central no texto normativo. Daí resulta que todo o sistema jurídico
acaba, em última análise, subordinado às decisões judiciais que criam
o Direito. Sob a “ótica kelseniana” de uma teoria da interpretação, ao

130
HART, Herbert L. A, O Conceito de Direito, Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 148.
131
Ibid., p. 150.
132
Ibid., p. 151. Segundo Hart, “[...] os indivíduos não se limitam ao ponto de vista
externo [...]. Ao contrário, exprimem continuamente em termos normativos a sua
aceitação partilhada do direito como guia de conduta [...]”.
133
Ibid., p. 151. Conforme o autor, “não se pode pôr em dúvida que, em qualquer
caso, em relação a certos domínios da conduta de um Estado moderno, os indivíduos
efetivamente mostram toda a série de condutas e atitudes que designamos como
ponto de vista interno [...]”.
85 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

não existir um método capaz de articular a única resposta, as decisões


pela via adjudicativa vão ser sempre decisões políticas. Daí decorre que
a interpretação, no modelo enfocado, sempre comportará uma margem
de discricionariedade concedida ao aplicador do Direito ao vincular a
norma individual no marco estabelecido pelas normas gerais. Contudo,
como já analisado anteriormente em Kelsen, o que não é sublinhado no
modelo em questão é que a escolha de uma significação pelo intérprete
autêntico (juiz), embora realizado “dentro da moldura”, depende de
uma decisão valorativa, que, sob esse modelo, acaba não tendo quase
nenhum controle subjetivo.
Desse modo, o problema material da discricionariedade
permanece aberto, pois qualquer decisão de sentido dentro do marco
pode ser tomada– ou mesmo fora dele, na situação de “coisa julgada”
ou da decisão de última instância. Dessa forma, verifica-se, em
Kelsen, que seu modelo mantém o “governo das leis”, mas a um custo
teórico alto: ao suprimir substancialmente a influência da autoridade
legislativa, permitindo um afastamento que essa vincula e, portanto,
deixando-a à deriva da instabilidade subjetiva do juízo “dos homens”.
No modelo de Kelsen, a ideia da estrutura piramidal é subvertida
quando o controlador da constituição determina o que será parte da
moldura, mas sem controle nenhum sobre as possíveis significações
das normas. Daí que seu sentido é invertido na figura geométrica da
pirâmide, ao ser efetivamente construído “de baixo para cima” e não
do vértice para baixo, como quer decisivamente Kelsen. Em Hart,
esse grave problema é antecipado e “solucionado”, conforme aponta a
seguinte compreensão do autor:

Como pode uma constituição atribuir autoridade


para dizer o que é uma constituição? Mas o paradoxo
desaparece, se nos lembrarmos que, embora cada regra
possa ser de teor duvidoso em certos pontos, é, na
verdade, uma condição necessária de um sistema jurídico
existente que nem toda a regra esteja sujeita a dúvida em
todos os pontos.134

134
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 166.
Teoria do Direito e discricionariedade 86

Ou seja, o que Hart não aceita é que, para a grande maioria


dos casos de um determinado sistema jurídico, o Direito seja “aquilo
que predizem os juízes”, justamente porque há uma regularidade do
Direito, derivada de um núcleo de sentido fixo – de um núcleo central de
sentido nas regras jurídicas –, apontando convergentemente para uma
determinada direção. Nesse raciocínio, é extremamente esclarecedora
sua afirmação textual: “[...] Em qualquer momento dado, os juízes,
mesmo os do Supremo Tribunal, são partes de um sistema cujas regras
são suficientemente determinadas na parte central para fornecer
padrões de decisão judicial correta [...]”135, complementando: “[...]
Esses padrões são considerados pelo Tribunal como algo que não pode
ser desrespeitado livremente por eles no exercício de sua autoridade
para proferir essas decisões, que não podem ser contestadas dentro do
sistema [...]”.136
Portanto, para o modelo de Hart, a vinculação a um núcleo
de sentido fixo, que a maior parte das regras jurídicas apresenta, torna
o Direito regularmente predizível para a maioria dos casos. Subtraída
essa regularidade, restariam limitadamente as margens da “zona
de penumbra” dos casos duvidosos, não previstos ou não regulados
completamente pelo ordenamento jurídico. Nessa área limitada,
abre-se um espaço, entre várias escolhas possíveis aos tribunais e
funcionários, na determinação da significação das regras jurídicas com
maior textura aberta. Nessa “fronteira”, que exige maior densificação,
Hart concede aos juízes discricionariedade, criando até mesmo um
direito não previsto no sistema jurídico.
Dessa forma, para esse jurista a discricionariedade judicial fica
circunscrita a esses casos menos predizíveis, situados fora do núcleo
de significação das regras jurídicas, ou não sendo pautados pelas
mesmas. Assim, apenas nos casos difíceis, em que a lei é omissa ou
confusa, é que a atividade interpretativa atribuiria aos juízes um poder

135
HART, Herbert L. A, O Conceito de Direito, Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 159. Grifos nossos.
136
Ibid., p. 159.
87 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

discricionário. Vale ressaltar que, nessas circunstâncias excepcionais, o


juiz não está aplicando o Direito, na medida em que as regras jurídicas
não permitem indicar uma direção certeira. Assim, se estaria criando
o direito para o caso concreto. Nesses fenômenos jurídicos, na “franja
da regra”, Hart aceita que as ponderações dos céticos tenham lugar
num sistema jurídico, sem contudo afastaros argumentos anteriores
da regularidade vinculada pelo núcleo predizível das regras jurídicas.137
Nesse caminho é lapidar seu pensamento jurídico:

Aqui, na franja dessas questões muito fundamentais,


devemos saudar o céptico acerca das regras, desde que ele
não esqueça que é na zona da franja que ele é bem-vindo;
e desde que ele não nos torne incapazes de ver o fato de
que aquilo que torna possível estes desenvolvimentos
notáveis pelos tribunais das regras mais fundamentais
é, em grande medida, o prestígio obtido pelos tribunais
a partir dos atos indiscutivelmente regidos pelas regras
sobre as zonas vastas e centrais do direito.138(grifos
nossos)

Como se verifica, Hart dá razão aos céticos, mas em relação a


pequenas e limitadas situações em que, na “zona de penumbra”, não é
possível indicar um único caminho. Contudo, tal situação não invalida
a maioria dos demais casos, desqualificando o Direito no seu conjunto.
Portanto, embora Hart reconheça que, em alguns casos, a linguagem
utilizada pelas regras gerais e abstratas não oferece muita segurança,
facultando um poder discricionário ao magistrado, tal faceta do Direito
não o torna um refém da predição de decisões judiciais.
Dessa forma, no seu modelo teórico, o Direito continua
sendo uma construção de continuidade na prática social e, se em
alguns casos não há um único caminho (sendo as decisões, nesses
casos, discricionárias), não se invalida a prática dos critérios de
reconhecimento (dando razão aos formalistas, nessa regularidade),

137
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961.
138
Ibid., p. 168.
Teoria do Direito e discricionariedade 88

mesmo que o juiz, ao decidir casos difíceis, crie direito novo. Em


suma, em relação a Kelsen, o modelo de interpretação de Hart é mais
consistente, na medida em que a presença de um núcleo de sentido
central possibilita um maior controle intersubjetivo na regularidade da
maioria dos casos.
Contudo, a questão da problemática permanece aberta em
relação aos casos em que a textura aberta das regras é maior – ou mesmo
na ausência destas. Para essas situações, mesmo sendo limitadas, Hart
não tem uma resposta, permanecendo sem nenhum controle o poder
discricionário dos juízes. É essa situação, e suas implicações, que
Dworkin vai atacar, como se verá no terceiro capítulo.

3 DWORKIN E O CONTROLE DA DISCRICIONARIEDADE


JUDICIAL COMO CRÍTICA AO POSITIVISMO: EXPONDO
CONCEITOS FUNDACIONAIS

O jusfilósofo norte-americano Ronald Dworkin foi sucessor


de Hart em sua cátedra da Universidade de Oxford. O conjunto
de sua obra constitui um impressionante arcabouço jurídico da
contemporaneidade. Em relação ao seu pensamento jurídico, pode-
se afirmar, sem sombra de dúvida, que o mesmo condensa as críticas
mais relevantes ao positivismo jurídico. Entretanto, este jurista não
desenvolveu uma concepção sistematizada do Direito (como Kelsen e
Hart), mas uma concepção integrada do Direito – articulada a partir
de sua crítica rigorosa ao positivismo jurídico e ao utilitarismo. Nesse
caminho teórico percorrido pelo autor, para evidenciar as insuficiências
dos modelos apontados é desenvolvida uma complexa Teoria da
Justiça, na qual o Direito e a Moral se encontram necessariamente
entrelaçados.
Esse é o ponto de partida de sua teoria interpretativa, que se
relaciona com o presente tema desenvolvido na medida em que suas
críticas ao modelo positivista em geral podem ser compreendidas
89 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

como um esforço para solapar a base positivista da discricionariedade


judicial. Nesse contexto, não é possível entender sua Teoria do Direito
sem relacioná-la com a prestação jurisdicional. Essa teoria se articula
em vários pontos centrais complexos, que serão aprofundados mais
adiante. Entretanto, desde logo é possível afirmar que a decisão judicial
é o ponto nevrálgico do modelo teórico de Dworkin. Nesse sentido,
importa ressaltar que sua concepção do Direito transcende os direitos
positivados, compreendendo também os direitos que podem ser
derivados dos princípios morais que consubstanciam a teoria política
de uma determinada comunidade139.
Feitas essas considerações iniciais, se faz necessário situar
o alvo das críticas efetuadas por esse jurista. Para tanto, o exemplo
delineado a seguir é paradigmático em relação ao objetivo proposto.
Nesse intuito esboçado, suponhamos que um cidadão (demandante),
em razão de determinada conduta de outrem, sinta-se lesado e busque
pela via judicial uma determinada indenização pecuniária. Contudo, a
parte demandada se opõe, argumentando em juízo que não há nenhum
embasamento legal para tal pretensão, porque a regra jurídica a ser
aplicada é dúbia ou inexistente. Como deveria o juiz competente julgar
esse caso?
De acordo com o modelo jurídico analisado em Hart, se
admite que nos casos de “zona de penumbra”, na “franja da regra
jurídica”, em que a textura é mais aberta, o juiz possa exercer um poder
discricionário e até mesmo criar Direito. Ou seja, para esse jurista, no
ponto de abertura da regra, o magistrado, ao não estar vinculado a um
núcleo central normativo, pode optar por uma nova norma tuteladora,
resolvendo o caso como se já existisse anteriormente esse direito.
Todavia, essa solução é desconcertante para o positivismo jurídico, na
medida em que esse modelo teórico busca descrever o Direito como um
sistema de normas. Ou seja, como explicar que, no caso em questão,
possa haver um direito concedido ao demandante se não preexistir

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


139

São Paulo: Martins Fontes, 2002.


Teoria do Direito e discricionariedade 90

uma regra jurídica que legitime tal pretensão?


A resposta de Hart para tal questão nos é conhecida da
seguinte maneira: na maioria dos casos o Direito se apresenta como
um sistema jurídico regular, não demandando maior complexidade de
interpretação aos juízes. Mas há também os casos menos predizíveis,
em que a vagueza potencial das regras jurídicas se acentua. Aí, na “zona
de penumbra” das regras de maior textura aberta (ou pela omissão das
mesmas), Hart concede um poder discricionário aos juízes que lhes
permite, inclusive, elaborar um Direito novo. Nesse diapasão, segundo
Hart, a faculdade de exercer um poder discricionário não inviabiliza
a condição de descrever o Direito como um sistema normativo, dado
o número reduzido desses casos difíceis. Dessa forma, a solução
encontrada por esse jurista ao admitir a discricionariedade judicial se
aproxima, conforme a visão de Dworkin, da posição dos realistas.140
Em outras palavras, nesses casos polêmicos, que são objeto
de aguda controvérsia, o Direito se confunde com uma atividade
adjudicativae decisionista, reduzindo-se a uma “predição de o que os
juízes farão”. Como se observa, essa solução para os “casos difíceis”
torna a influência normativa praticamente inexistente. Desse modo,
a problemática da discricionariedade judicial subsiste, uma vez que
as razões que vão fundamentar as decisões desses “casos difíceis”
permanecem sem um controle intersubjetivo mais eficaz. Tal concepção
é inaceitável para Dworkin, pelos motivos que serão expostos no
decorrer da análise de sua Teoria do Direito.
Neste momento convém apontar uma grave implicação
jurídica,a qual, segundo esse jurista norte-americano, o modelo

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. de Nelson Boeira. São Paulo:
140

Martins Fontes, 2002. pp. 6-7. Conforme o autor, os realistas “argumentavam que a
teoria ortodoxa fracassara pelo fato de ser adotada uma [...] teoria do direito, tentando
descrever o que os juízes fazem, concentrando-se apenas nas regras que eles
mencionavam em suas decisões. Trata-se de um erro, argumentavam os realistas,
pois na verdade os juízes tomam suas decisões de acordo com as suas próprias
preferências [...] e então escolhem uma regra apropriada como uma racionalização”.
91 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

do positivismo jurídico não dá conta141: o fato de que, ao exercer a


discricionariedade judicial, a “boca do juiz”, ao criar direito novo, usurpa
a função da autoridade legislativa. Isso porque o direito novo criado pelo
aplicador – habilitado pelo órgão competente – acaba retrocedendo
e, assim, alcançando fatos ocorridos sem remissão a regras jurídicas
que o alicercem. Tal “legislação” retroativa é inadmissível para um
Estado de Direito, pois fratura a harmonia e mutila a relação autônoma
dos três poderes. Por outro lado, para Dworkin tais decorrências não
são apenas parte de uma concepção particular da discricionariedade
judicial aplicada aos casos difíceis (hard cases), mas consequência
de uma teoria positivista mais geral. É sobre essa teoria positivista,
que busca definir o Direito como um sistema de regras jurídicas, que
Dworkin estabelece sua crítica contundente. E, para tanto, escolhe
como representante mais consistente desse positivismo jurídico “a
forma poderosa que lhe foi dada pelo professor H.L.A. Hart”.142
Neste momento, antes de discutir a crítica desenvolvida por
Dworkin cabe ressaltar que sua obra é extensa e não sistematizada,
tratando-se inúmeras vezes de coletâneas de artigos articuladas em
livros. Daí porque as análises sobre sua teoria jurídica se concentrarão
especialmente na sua obra Levando os direitos a sério143, sem dispensar
as contribuições de suas outras obras, em especial O Império do Direito.
Assim posto, no contexto delineado anteriormente emerge
a problemática da discricionariedade judicial – não como um
desdobramento circunstancial do modelo positivista, mas, conforme
Dworkin, como consequência derivada dessa teoria jurídica. Nesse
panorama conceitual é que se estabelece a crítica do autor, como se
verificará a seguir.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


141

São Paulo: Martins Fontes, 2002.


142
Ibid., p. 27.
143
Ibid., p. 27. Especialmente no artigo “Modelo de Regras I”, ao cumprir, esse texto,
um papel predominante no problema da discricionariedade judicial, abordado neste
livro.
Teoria do Direito e discricionariedade 92

3.1 Levando os direitos a sério: as críticas de Dworkin às teses


centrais do positivismo jurídico

Sob esse título provocativo, que reúne uma coleção de


ensaios, a obra de Dworkin ainda hoje instiga agudas discussões
filosófico-jurídicas em relação aos temas abordados. Trata-se, em
essência, de uma linha teórica da Filosofia do Direito Contemporâneo
fortemente marcada por uma tendência antipositivista. Dito de outro
modo, apresenta uma postura frontalmente contrária à tentativa
do positivismo jurídico em descrever o Direito como um sistema de
regras jurídicas, autofundamentado por uma cadeia de validade de
regras jurídicas que encontram sua validação em um critério último
supremo (o soberano em Austin, a norma fundamental em Kelsen e a
regra de reconhecimento em Hart). Nesse sentido, a crítica contra os
elementos conceituais nucleares do positivismo jurídico vai rechaçar
toda a tentativa de descrição absoluta sobre o Direito, renegando esse
modelo jurídico sob uma perspectiva metodológica ao não admitir uma
rígida separação entre o Direito e a Moral.
Para tanto, Dworkin vai polemizar com Hart144, atacando suas
respostas às três principais indagações que esse jurista desenvolveu na
sua obra O Conceito de Direito. Tal ponto de partida não foi explicitado
por Dworkin, mas se encontra interconexo, como se observará a seguir.
Desse modo, a teoria desse jurista exige, para sua compreensão, a prévia
exposição das proposições centrais do positivismo jurídico, formuladas
pelo autor da seguinte forma:
a) O direito de uma comunidade é um conjunto de
regras especiais utilizado direta ou indiretamente
pela comunidade com o propósito de determinar qual
comportamento será punido ou coagido pelo poder

144
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 35. Conforme o autor: “Resolvi concentrar-me
na sua posição [...] porque o pensamento que visa construir deve começar com um
exame das concepções de Hart” (p. 27). No mesmo sentido: “Quero lançar um ataque
geral contra o positivismo e usarei a versão de H. L. A. Hart como alvo, quando um
alvo específico se fizer necessário”.
93 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

público. Essas regras especiais podem ser identificadas


e distinguidas com o auxílio de critérios específicos, de
testes que não têm a ver com seu conteúdo, mas com
seu pedigree ou maneira pela qual foram adotadas ou
formuladas. Estes testes de pedigree podem ser usados
para distinguir regras jurídicas válidas de regras jurídicas
espúrias (regras que advogados e litigantes erroneamente
argumentam ser regras de direito) e também de outros
tipos de regras sociais (em geral agrupadas como “regras
morais”) que a comunidade segue mas não faz cumprir
através do poder público.145

No pano de fundo de sua análise, Dworkin situa o primeiro


pilar conceitual do positivismo jurídico, que se consubstancia em
duas teses principais: a separação genética entre o Direito e a Moral
e a possibilidade de descrever o Direito através de um teste específico,
capaz de determinar ou não o caráter jurídico das regras. Como já
analisado anteriormente, essas duas teses são caras ao pensamento
jurídico de Hart. Nesse contexto, para situar com maior clareza a crítica
de Dworkin a esse ponto de partida, é preciso retomar pontualmente
as três questões recorrentes que permeiam a obra jurídica de Hart.
Recapitulando as indagações do jusfilósofo inglês, são elas:
Como difere o direito de ordens baseadas em ameaças e
como se relaciona com estas? Como difere a obrigação
jurídica da obrigação moral e como se relaciona com esta?
O que são regras e em que medida é o direito uma questão
de regras?146
Ao responder essas questões, Hart elabora as duas teses
apontadas acima, e são precisamente essas teses que Dworkin irá
inicialmente atacar: em síntese, a separação conceitual do Direito e a
Moral e a regra hartiana de reconhecimento. Em relação à primeira,
o jurista apenas admite uma relação contingente entre o Direito e a
moralidade. Ou seja, a relação não é necessária, no sentido de que a
validade jurídica apenas pode ser dada em conexão com a exigência do
âmbito moral. Desse modo, Hart, apartando-as, contingencia a relação:

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


145

São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 27-28.


146
HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito. op. cit., p. 18.
Teoria do Direito e discricionariedade 94

[...] Existem numerosas importantes conexões entre o


Direito e a Moralidade, de modo que frequentemente
há uma coincidência ou ruptura de “fato” entre o Direito
de algum sistema e as exigências da Moralidade, tais
conexões são contingentes, não necessárias lógica nem
conceitualmente.147

Como se verifica, Hart admite uma relação contingente


(negada peremptoriamente em Kelsen) entre Direito e Moral, mas
não reconhece entre os dois campos uma relação estrutural. De outro
lado, para compreender a crítica de Dworkin a essa rígida separação
conceitual é preciso primeiramente analisar sua crítica no que diz
respeito à regra de reconhecimento de Hart (tese da fonte social do
Direito). Nesse raciocínio, o Direito apenas pode existir num Estado
Moderno se dois critérios forem atendidos: a obediência em geral dos
indivíduos a regras jurídicas numa determinada prática social e, mais
restritamente, não só a obediência, mas a aceitação e aplicação dessas
regras jurídicas pelos funcionários (juízes). Assim, para Hart, o último
critério de validade jurídica é dado pela regra de reconhecimento, que,
ao advir de uma prática social compartilhada, inclui juízes e cidadãos
numa cooperação que legitima a autoridade criada.
Portanto, esse último critério de validade jurídica deriva da
prática dos tribunais ao aceitarem a regra de reconhecimento que,
por sua vez, identifica o critério (ou o conjunto de critérios) que os
juízes devem aplicar na decisão de determinar se uma regra pertence
ou não a um sistema jurídico. Quais são esses critérios? Depende do
sistema normativo. Existem diferentes critérios de identidade da regra
de reconhecimento, como, por exemplo, os precedentes, os costumes
ou uma constituição escrita. Relevante é não perder de vista que,
embora Hart atribua uma premissa fática à regra de reconhecimento
(prática social compartilhada), para sua concepção é possível
distinguir claramente quais as regras que não pertencem ao sistema

147
CARRIÓ, G. R, op. cit., p. 339. Tradução livre. Grifos nossos.
95 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

jurídico (especialmente as regras morais). Isso porque os critérios


identificadores da regra de reconhecimento operam como standards,
identificando ou não os critérios que devem ser satisfeitos, através de
um teste de validade formal.
Para Dworkin, isso não só não é possível como consistiria no
erro fundamental do positivismo jurídico, na medida em que não há
um teste fundamental capaz de identificar padrões que não funcionam
como regras, ou seja, princípios. Desse modo, o autor introduz na
arena do campo da teoria da interpretação judicial a força vinculante
dos princípios, como se verá a seguir.

3.2 A distinção fundamental entre regras e princípios

Ronald Dworkin, ao introduzir a diferenciação entre regras,


princípios e políticas na sua obra Levando os direitos a sério, coloca a
problemática anterior de forma lapidar:

Minha estratégia será organizada em torno do fato de


que, quando os juristas raciocinam ou debatem a respeito
de direitos e obrigações jurídicas, particularmente
naqueles casos difíceis nos quais nossos problemas com
esses conceitos parecem mais agudos, eles recorrem a
padrões que não funcionam como regras, mas operam
diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos
de padrões. Argumentarei que o positivismo é um modelo
de e para um sistema de regras e que sua noção central
de um único teste fundamental para o direito nos força
a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos
padrões que não são regras.148

No contexto da distinção dos padrões que não funcionam


como regras, se torna necessário, para sua melhor compreensão,
retomar sinteticamente a classificação das regras jurídicas efetuada

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


148

São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 35-36.


Teoria do Direito e discricionariedade 96

por Hart. Para este jurista, conforme analisado anteriormente, as


regras primárias são as regras de comportamento – as que prescrevem
condutas. As secundárias regulam o modo como as regras podem ser
criadas, modificadas ou eliminadas do sistema jurídico. Além disso,
cumprem as funções de julgamento e de reconhecimento das demais
regras primárias. Com essa distinção, Hart, por um lado, superou as
insuficiências teóricas do modelo simples de ordem coercitivas de
Austin. No entanto,por outro lado essa classificação não permite uma
distinção clara sobre os dois tipos de normas que juízes e advogados
utilizam, de forma diferenciada, na prática jurídica. Nesse sentido, o
seguinte exemplo pode auxiliar no esclarecimento dessa dificuldade.
Do ponto de vista do estabelecimento de direitos e deveres
correlatos, a regra jurídica que prescreve que “é proibido trafegar no
acostamento” e a que assegura que “é livre a expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente
de censura ou licença” são iguais. Assim, sob essa ótica, ambas são
regras primárias. Contudo, salta aos olhos que a primeira permite
uma significação bem mais concreta e precisa que a segunda regra.
Isso porque, num primeiro momento, fica evidente que a última regra
utiliza expressões de “textura aberta” (“livre”, “censura artística”), que
exigem não apenas maior densidade conceitual para sua significação
como também elementos concretos para o lugar e modo de aplicação.
Segundo Dworkin, essa espécie normativa comporta princípios, e a
diferença destes com a regra de trânsito não pode ser explicada pela
divisão de regras primárias e secundárias. Daí porque é preciso averiguar
suas fundamentais distinções.É o que se observará subsequentemente.
Para o jurista norte-americano, a distinção entre regras e
princípios é a “pedra de toque” através da qual vai se estabelecer sua
crítica à função judicial positivista. Nesse sentido, regras e princípios se
diferenciam, em primeiro lugar, por um nível lógico, segundo preceitua
o autor:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas


é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões
97 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

apontam para decisões particulares acerca da obrigação


jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se
quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras
são aplicáveis à maneira de tudo ou nada. Dados os fatos
que uma regra estipula, então ou a regra jurídica é válida,
e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita,
ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a
decisão.149

Como se percebe, de acordo com o pensamento de Dworkin as


regras são prescrições que se dirigem mais concretamente a condutas,
buscando alcançar um resultado mais preciso. Desse modo, as regras
jurídicas ditam o que devem fazer ou deixar de fazer as pessoas. Assim,
no exemplo da regra de trânsito utilizado anteriormente, um motorista
que parasse no acostamento caracterizaria um fato diretamente
associado à consequência jurídica prevista. Nessa situação, não
havendo exceção à regra de trânsito prevista, a mesma deve ser
aplicada (estabelecendo como consequência jurídica, por exemplo,
multa pecuniária ou retenção do veículo, a ser aplicada através de
autoridade competente).
Os princípios, por sua vez, não funcionam da forma “tudo ou
nada”, na medida em que não estabelecem uma consequência jurídica
precisa na presença de uma circunstância igualmente precisa.150
Vale dizer ainda que são mais genéricos, assegurando
prescritivamente certos bens ou estados de coisas que é preciso
proteger ou alcançar, sem assinalar concretamente as ações a serem
desenvolvidas para cumprir esses objetivos. Nesse nível lógico de
distinção com as regras jurídicas, o primeiro aspecto de diferenciação é
que os princípios apresentam um conteúdo mais indeterminado. Nesse
sentido, retomando o exemplo anterior, o princípio da liberdade de
expressão não está predeterminado, ou seja, em abstrato não se pode

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


149

São Paulo: Martins Fontes, 2002., p. 39.


150
Ibid., p. 40. Segundo Dworkin, “[...] não é assim que funcionam os princípios [...].
Mesmo aqueles que mais se assemelhem às regras não apresentam consequências
jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições estão dadas”.
Teoria do Direito e discricionariedade 98

prever quais ações podem ou não ser permitidas para seu exercício.
Nessa linha, o caráter não conclusivo dos princípios pode ser melhor
visualizado através do seguinte caso hipotético.
A maior parte de uma comunidade pode estar de acordo que o
horário matinal nas férias escolares é inadequado para a transmissão de
filmes de forte apelo sexual na “TV aberta”. Todavia, essa concordância
pode não se verificar em relação ao horário noturno. Nesse último
período poderia estabelecer-se um conflito entre o princípio da
liberdade de expressão e o princípio da dignidade humana (podendo ser
compreendido, nesse caso, como proteção à infância). Como resolver
esse conflito entre princípios? A resposta, na concepção de Dworkin,
introduz uma segunda distinção substancial entre princípios e regras:
a ponderação. Esse é o segundo aspecto de distinção entre princípios e
regras, derivado de um nível lógico.
Assim, se o primeiro aspecto, como analisado acima, é a
indeterminação e generalidade dos princípios – contraposta ao “tudo ou
nada” da lógica das regras jurídicas –, a segunda diferenciação decorre
da comparação entre os princípios. Dito de outro modo, os princípios
estão providos de uma dimensão de peso ou de importância relativa,
conforme o caso concreto, de que as regras jurídicas carecem.151Desse
modo, a importância de todo princípio é controvertida, na medida em
que não existe nenhum teste a prioripara determiná-la.Especialmente
porque em toda controvérsia são aplicáveis sempre diversos princípios
que podem estabelecer um conflito entre si, de tal forma que, para
decidir o caso, é preciso valorar o peso relativo dos princípios
implicados. Essa valoração pode ser compreendida como a ponderação
dos princípios em jogo, e traz como resultado a solução de que um
dos princípios envolvidos prevalecerá sobre os outros. Contudo, os
princípios preteridos conservarão sua validade. Daí porque deve ser
escolhida a solução que menos fere a aplicação dos demais princípios.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


151

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 42. Afirma Dworkin: “Essa primeira diferença
entre regras e princípios traz consigo outra. Os princípios possuem uma dimensão
que as regras não têm – a dimensão de peso ou importância”.
99 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

O conflito entre as regras tem uma solução diferente, como afirma o


autor:

Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode


ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual
deve ser abandonada ou reformulada deve ser tomada
recorrendo-se a considerações que estão além das
próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses
conflitos através de outras regras, que dão preferência
à regra promulgada pela autoridade de grau superior
à regra promulgada mais recentemente, à regra mais
específica ou outra coisa do gênero.152

Assim, outra distinção relevante é que os princípios e as regras


admitem exceções153.Entretanto, os princípios as admitem em maior
número e, ao contrário das regras, as exceções não estão numeradas
(o que, aliás, forma a completude da norma154). De outro lado, além
dos padrões apontados como princípios e regras, consoante Dworkin
também existem outros: as policies155(diretrizes políticas). Estas se
referenciam com objetivos sociais que podem trazer benefício para uma
comunidade, do ponto de vista social. Contudo, para sua crítica geral
ao sistema de descrição positivista, Dworkin vale-se dos princípios de

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


152

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 43.


153
Ibid., p. 40. Conforme Dworkin, “a regra pode ter exceções, mas se tiver será
impreciso e incompleto simplesmente enunciar a regra, sem enumerar as exceções.
Pelo menos em teoria, todas as exceções podem ser arroladas e, quanto mais o
forem, mais completo será o significado da regra. [...] Mas não é assim que funcionam
os princípios [...]”.
154
Nesse sentido, seguimos a lição de Guastini apud ÁVILA, Humberto. Teoria dos
Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros,
2003, p. 22, segundo o qual “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os
sentidos, construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí
se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação, e as normas
no seu resultado”. Por outro lado, Kelsen e Hart não fazem uma distinção expressa
sobre texto normativo (dispositivo) e norma (resultado da interpretação). Todavia,
tanto nesses autores como em Dworkin, é inequívoca essa diferenciação.
155
DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 36. Conforme o autor: “Denomino ‘política’ aquele
tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria
em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade [...]”.
Teoria do Direito e discricionariedade 100

forma genérica.156Em síntese, as distinções mais importantes entre


regras e princípios são as duas diferenciações centrais analisadas
anteriormente: o caráter conclusivo das regras e o não conclusivo dos
princípios, e a ponderação exigida no conflito entre princípios pela
dimensão de peso que os mesmos possuem e que é própria de sua
característica – dimensão esta que as regras desconhecem.
Através dessa diferenciação estrutural entre princípios e
regras jurídicas, Dworkin vai atacar as duas primeiras teses positivistas
de Hart, consubstanciadas no primeiro pilar positivista: a tese da
separação conceitual entre o Direito e a Moral e a tese da regra de
reconhecimento, compreendida como um teste fundamental, capaz de
identificar as regras jurídicas pela sua origem, sem relação específica
com o conteúdo.
Entretanto, previamente ao exame crítico-teórico dessa
decisiva questão, é necessário sublinhar duas matizações, sem as
quais a distinção efetuada entre regras e princípios resulta, mais do
que excessiva, incompreendida. A primeira é que nem sempre se pode
definir com clareza se uma norma é um princípio ou uma regra. Nesse
sentido, tanto os princípios podem ser formulados hipoteticamente
como regras – “se o poder estatal for exercido, então deve ser garantida
a participação democrática (princípio democrático)”157 – quanto as
regras podem ser formuladas como princípios, como no caso em que a
regra que proíbe o enriquecimento ilícito se desdobraria no princípio de
que “ninguém pode beneficiar-se do seu próprio dolo”. A segunda é que
poderão se dar não apenas conflitos entre princípios, ou entre regras,
mas também entre regras e princípios. Nesse caso, conforme Dworkin,
a solução não se dá pela prevalência da regra (ao ser mais específica),
como tampouco pelo fato do princípio possuir um maior peso relativo.

156
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36. Segundo Dworkin: “Com muita frequência,
utilizarei o termo princípio de maneira genérica, para indicar todo esse conjunto de
padrões que não são regras; eventualmente, porém, serei mais preciso e estabelecerei
uma distinção entre princípios e políticas”.
157
ÁVILA, Humberto, op. cit., p. 32.
101 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

O deslinde se encontra na ponderação que se opera entre o princípio


e o que subjaz à regra. Nessa segunda matização é possível perceber
que também as regras podem ser não conclusivas e, portanto, exigirem
uma ponderação (embora restrita a circunstâncias limitadas).158
Essas nuanças acarretam complexas questões hermenêuticas159,
daí porque, para alguns juristas, a diferença entre princípios e regras
não é predominantemente lógica ou linguística (no contraste das
expressões), mas fundamentalmente funcional. Em outras palavras,
a definição sobre o que é uma regra ou um princípio vai depender,
em última análise, do papel que as normas cumpram em cada caso
concreto – matização que Dworkin não deixou de perceber.160 Contudo,
para o objetivo do presente estudo, o fato de que em Hart não há uma
avaliação suficiente da ênfase dos princípios não apenas viabiliza a
crítica de Dworkin, como a legitima. Isso posto, no passo a seguir a
análise concentrar-se-á no ataque do jurista norte-americano à regra
social de reconhecimento em Hart e na tese da separação conceitual do
Direito e da Moral que a fundamenta.

3.3 Os princípios, as regras e a regra de reconhecimento

Das considerações conceituais efetuadas anteriormente


(diferenças estruturais entre princípios e regras jurídicas), decorre que,
para Dworkin, o modelo de Hart é insuficiente para explicar a complexa

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


158

São Paulo: Martins Fontes, 2002.


159
Ibid., p. 32. Como percebe, com acuidade, o autor: “O critério referente ao caráter
hipotético-condicional é relevante na medida em que permite verificar que as regras
possuem um elemento frontalmente descritivo. Esse critério não é, porém, infenso a
críticas.

Ibid., pp. 43-44. Segundo o autor, “a forma de um padrão nem sempre deixa claro
160

se ele é uma regra ou um princípio. [...] Em muitos casos, a distinção é difícil de


estabelecer [...]. Às vezes, regras ou princípios podem desempenhar papéis bastante
semelhantes e a diferença entre eles reduz-se quase a uma questão de forma”.
Teoria do Direito e discricionariedade 102

dinâmica operada pelos princípios. Nesse contexto, para uma melhor


compreensão da crítica de Dworkin, é preciso recapitular a formulação
de Hart sobre a última regra de validade do sistema jurídico: a regra
de reconhecimento. Nesse sentido, Hart, ao buscar descrever o Direito,
estabeleceu uma distinção fundamental sobre a obrigatoriedade
jurídica de uma regra, qual seja: uma regra é obrigatória ou porque
o grupo social de uma determinada comunidade a aceita, ou porque
foi promulgada de acordo com uma regra secundária que estipula sua
validade – vale dizer, a torna obrigatória.
Assim, para Hart duas são as fontes possíveis de autoridade
de uma regra: a aceitação e a validade. Em suma, uma regra jurídica
é obrigatória porque é aceita ou válida.161 Essa última característica (a
validade) pode ser obtida por uma derivação hierárquica, refazendo
uma complexa cadeia de validade de regras jurídicas, até chegar à regra
fundamental (regra de reconhecimento). Contudo, Hart – a diferença
do modelo de Kelsen e Austin – estabelece uma base empírica para o
critério supremo de identificação das regras jurídicas. Assim, embora
sua solução seja análoga aos modelos apontados, há uma reformulação
no último critério de validade jurídica. Ou seja, para este jurista o critério
superior não é percebido como uma norma fundamental pressuposta
ou comoo comando de um soberano, mas como uma prática social de
aceitação de um critério supremo de validade.
Nesse sentido, certos problemas recorrentes do positivismo
jurídico (notadamente a relação do Direito com o âmbito da Moral
e do Poder) encontram, no modelo desse jurista, uma solução mais
adequada. Reflexo adequado de tal concepção é a ideia de uma
constituição estabelecendo padrões constitucionais “previamente
aceitos pela comunidade que é por eles governada, na forma de uma
regra de reconhecimento fundamental”.162Contudo, para Dworkin,
mesmo com essa base sociológica que Hart inclui na regra de

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


161

São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 32-33.


162
Ibid., p. 35.
103 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

reconhecimento, sua visão é parcial e insuficiente para dar conta das


explicações de outros padrões (princípios e policies) que emergem da
prática jurídica dos tribunais. Nessa linha, Dworkin fornece alguns
exemplos de casos paradigmáticos, entre os quais o famoso caso “Riggs
contra Palmer”163, sobre o qual se fará um breve comentário.
Trata-se de um herdeiro que, havendo assassinado o avô,
buscava com o homicídio habilitar-se a receber sua parte na herança,
uma vez que tinha sido nomeado no testamento. A primeira dificuldade
desse julgamento residia no fato de que não havia, de acordo com
as leis de sucessões de Nova Iorque, regras jurídicas que tratassem
diretamente da matéria.164Assim, uma “interpretação literal” sobre
o caso permitiria uma solução favorável ao assassino. Contudo, o
homicida não recebeu sua herança, pois o tribunal decidiu que: “A
ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude, beneficiar-se
com seus próprios atos ilícitos, basear qualquer reivindicação na sua
própria iniquidade ou adquirir bens em decorrência de seu próprio
crime”.165Qual a característica desse julgamento? Dworkin vai afirmar:

Os padrões especificados [...] não são do tipo que tomamos


como regras jurídicas. Parecem muito diferentes de
proposições como “A máxima velocidade legalmente
permitida na autoestrada é noventa quilômetros por hora”
[...]. Eles são diferentes porque são princípios jurídicos e
não regras jurídicas.166

Desse modo, embora o jurista norte-americano reconheça


em Hart o representante da teoria jurídica positivista mais bem
estruturada, por outro lado entende como insuficiente o esquema

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


163

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 37. Ver nota nº 134.


164
Nosso Código Civil de 1916 já regrava essa situação como caso de indignidade,
retirando a possibilidade testamentária em favor do homicida (art. 1.595, I, C.C.B.).
Atualmente, no novo Código Civil, art. 1.814.
165
DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 37
166
Ibid., p. 39.
Teoria do Direito e discricionariedade 104

de “validade e aceitação” desenvolvido pelo jusfilósofo inglês. Isso


porque esse aparato analítico não dá conta da existência de princípios
que operam por padrões diferenciados das regras jurídicas, como o
utilizado no caso “Riggs contra Palmer”. Daí afirmar o autor:

Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado,


não porque vá promover ou assegurar uma situação
econômica, política ou social considerada desejável, mas
porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma
outra dimensão da moralidade.167

Assim, é justamente diante da “temática principiológica”


que as condições de descrição de um sistema jurídico pelo “teste de
pedigree” se tornam, para Dworkin, insuficientes. Nesse raciocínio,
para esse jurista os princípios não são frutos de atos de promulgação
de uma autoridade normativa qualquer, na medida em que se baseiam,
em última instância, em sentimentos de justiça. Sentimentos esses
que são compartilhados pela comunidade política ao reconhecer um
determinado sistema jurídico. Segue-se daí que os princípios não
podem ser identificados por um teste básico fundamental, apenas pela
origem; portanto, carecem de uma validade formal. Como se verifica,
na concepção de Dworkin os princípios constituem a justificação
moral e política do direito vigente e, por consequência, os direitos
conferidos pelos princípios não são suscetíveis de serem identificados
pela “linhagem” do modelo positivista – viabilizado pela regra de
reconhecimento em Hart.
Nesse diapasão, para o jurista norte-americano a tese da
existência de um critério de identificação das regras de um sistema
jurídico desatrelado de seu conteúdo (apenas identificado pela origem)
se fundamenta na tese da separação conceitual do Direito e da Moral.
Entretanto, para Dworkin essa separação rígida não
é consequente, pois, na análise dos princípios, se entrelaçam a

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


167

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.


105 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

argumentação jurídica e a argumentação moral. Dito de outra forma,


se os princípios constituem a justificação política e moral do direito
positivado, sua identificação requer uma “Teoria do Direito” que melhor
justifique o sistema jurídico existente. E, para tanto, o Direito não pode
ser distinguido de forma rígida da Moral. Ao contrário, os princípios
consubstanciam uma “ponte” que vai unir um e outro domínio. Por
outro lado, a vingar a tese de que há um parâmetro independente da
moral, daí decorre que uma regra jurídica, mesmo sendo injusta, será
válida. Tal situação é inaceitável para Dworkin, sendo que, sob esse
prisma, também se acentua a debilidade do modelo positivista. Em
síntese, para o autor, a regra de reconhecimento, ao fixar as condições
de validade jurídica das restantes regras do sistema normativo, não é
capaz de reconhecer padrões que funcionam diferentemente das regras
jurídicas. E, portanto, os princípios não podem ser reconduzidos à regra
fundamental de Hart. Assim, ao se fundamentarem os princípios em
sentimentos de justiça, Dworkin não reconhece os direitos vinculados
pelos princípios como oriundos genuinamente da legislação ou da
jurisprudência e, sim, como preexistente à sua positivação.
Tal concepção tem levado muitos críticos de Dworkin a
conceber sua Teoria do Direito como uma teoria jusnaturalista.
Contudo, o próprio autor renega tal posição, ao afirmar:

Os direitos individuais são triunfos políticos que os


indivíduos detêm. Os indivíduos têm direitos quando,
por alguma razão, um objetivo comum não configura
uma justificativa suficiente para negar-lhes aquilo que,
enquanto indivíduos, desejam ter ou fazer, ou quando não
há uma justificativa suficiente para lhes impor uma pena
ou um dano. Sem dúvida, essa caracterização de direito
é formal, no sentido de que não indica quais direitos as
pessoas têm nem garante que de fato elas tenham algum.
Mas não pressupõe que os direitos tenham alguma
característica metafísica especial.168

Nesse sentido, a concepção da Teoria do Direito, em Dworkin,

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


168

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XV. Grifos nossos.


Teoria do Direito e discricionariedade 106

parece percorrer uma via intermediária entre o positivismo e o


jusnaturalismo. Contudo, a realidade do Direito é que seu exercício
não pode prescindir da Moral – e, quando os positivistas a expulsam
pela porta principal, ela aflora na interpretação. Essa tensão, exercida
no polo entre o Direito e a Moral, se acentua na contemporaneidade e,
de certa maneira, a temática principiológica a potencializa ao refletir
uma angústia que acompanha os juristas desde a modernidade: buscar
descrever as normas e, ao mesmo tempo, ambicionar que determinadas
preferências éticas prevaleçam. Nesse horizonte, a teoria de Dworkin
amplia consideravelmente essa percepção, ao deter seu olhar em
razões argumentativas da prática jurídica que se articulam como um
compromisso consciente com os princípios políticos subjacentes ao
sistema jurídico e, vale dizer, com argumentos que incluem a dimensão
moral.169
Nesse contexto, Dworkin, ao lançar um ataque ao primeiro
pilar da tese positivista, emerge com força a questão dos princípios,
evidenciando que nem todas as normas jurídicas são regras precisas.
Assim, na prática jurídica dos tribunais também se verifica a existência
de princípios, como o que estabelece que “a ninguém será permitido
beneficiar-se de seu próprio dolo”. Tais normas possuem estrutura
e função diferentes das regras jurídicas. Daí que, para Dworkin, a
noção de derivação hierárquica do teste de pedigree – para explicar a

169
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre factividade e validade. Trad. de
Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I, pp. 256-257.
Para este autor, é preciso prudência diante dessa premissa estabelecida por Dworkin
na teoria adjudicativa. Ou seja, do fato de que, para este jurista, o Direito e a Moral se
entrelaçam no campo argumentativo não decorre de que esta usurpe a função daquele
e, sim, sobretudo, que a reflexão moral deve ser articulada no plano jurídico como
elemento do Direito. É nesse contexto que se evidencia a temática dos princípios.
Esse também parece ser o sentido empregado por Habermas, ao dispor: “Quando
Dworkin trata em argumentos de princípio que são tomados para a justificação
externa de decisões judiciais, ele tem em mente, na maioria das vezes, princípios
do direito que resultam da aplicação do princípio do discurso no código jurídico [...]”.
Complementando: “O conteúdo moral de direitos fundamentais e princípios do Estado
de Direito se explica pelo fato de que os conteúdos das normas fundamentais do
direito e da moral, às quais subjaz o princípio do discurso, se cruzam”.
107 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

validade das regras jurídicas – não dá conta da complexidade dinâmica


dos princípios. E, portanto, o jurista entende que, por decorrência
dessa teoria positivista mais geral, Hart vai admitir, para os casos de
textura mais aberta das regras ou na sua omissão, um verdadeiro poder
discricionário aos juízes. É essa a tese da discricionariedade judicial
que Dworkin atacará, conforme veremos a seguir.
A tese positivista da discricionariedade judicial pressupõe
que um caso seja difícil, ou seja, que as regras jurídicas aplicadas ao
caso em questão sejam incertas, contraditórias ou carentes de uma
regra exatamente aplicável. Nesse contexto, quando uma demanda
judicial não se submete a uma regra de Direito clara, o juiz possui,
para o modelo teórico positivista, o “poder discricionário de decidir o
caso de uma forma ou outra”. Desse modo, ao não existir uma resposta
prévia correta, a decisão a ser tomada pelo juiz pode ser discricionária,
no sentido de decidir por uma ou outra parte, sem remissão a regras
jurídicas. Dworkin vai criticar essa concepção, atacando a tese
positivista da discricionariedade judicial.170 Para tanto, este jurista
vai expor as duas restantes proposições positivistas, que, por sua vez,
conformam a tese da discricionariedade judicial. São elas:

O conjunto dessas regras jurídicas é “coextensivo” com o


“direito”, de modo que, se o caso de alguma pessoa não
estiver claramente coberto por uma regra dessas (ou
porque não existe nenhuma que pareça apropriada ou
porque as que parecem apropriadas são vagas por alguma
outra razão), então esse caso não pode ser decidido
mediante “a aplicação do direito”. Ele deve ser decidido
por alguma autoridade pública, como um juiz, “exercendo
seu discernimento pessoal”171, o que significa ir além
do direito na busca por algum outro tipo de padrão
que oriente na confecção de nova regra jurídica ou na

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


170

São Paulo: Martins Fontes, 2002.


171
Ibid., p. 28. Respeitamos a tradução do autor, todavia, o termo mais adequado nos
parece ser “discricionariedade”, ao invés de “discernimento”, como foi utilizado. Isso
porque Dworkin, ao criticar a teoria positivista jurídica (na qual o Direito é concebido
como um “sistema de regras”), questiona recorrentemente o “poder discricionário do
juiz” e não propriamente seu “discernimento”.
Teoria do Direito e discricionariedade 108

complementação de uma regra já existente.172

Esta é a tese da discricionariedade judicial do positivismo


jurídico, que se entrelaça e se complementa com a que virá a seguir,
conforme justifica o autor:

Dizer que alguém tem uma “obrigação jurídica” é dizer


que seu caso se enquadra em uma regra jurídica válida
que exige que ele faça ou se abstenha de fazer alguma
coisa. (Dizer que ele tem um direito jurídico, ou um poder
jurídico de algum tipo, ou um privilégio, ou imunidades
jurídicas é asseverar de maneira taquigráfica que outras
pessoas têm obrigações jurídicas reais ou hipotéticas de
agir ou não agir de determinadas maneiras que o afetem.)
Na ausência de uma tal regra jurídica válida não existe
obrigação jurídica; segue-se que quando o juiz decide
uma matéria controversa exercendo sua discrição, ele não
está fazendo valer um direito jurídico correspondente a
essa matéria.173

As duas últimas teses positivistas descritas por Dworkin são


decorrentes da primeira tese analisada. Entretanto, para compreender
a crítica deste jurista aos dois últimos pilares do positivismo jurídico é
preciso inicialmente retomar a posição de Hart. Assim, para esse último
autor, na medida em que o conjunto das regras jurídicas válidas (sob
uma ótica jurídica) abarca todo o campo do Direito, os casos difíceis
também se enquadram nessa concepção. Ou seja, no modelo de Hart,
a tese da discricionariedade judicial pode ser vista como a resposta
formulada aos formalistas, no sentido de que o Direito não pode ser
apenas elaborado por regras que permitiriam uma interpretação
unívoca.
Por outro lado, este jurista apenas se identifica com os céticos

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


172

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 28.


173
Ibid., pp. 28-29. Nesse sentido, ao sintetizar as três proposições centrais do
positivismo jurídico, Dworkin vai afirmar: “Este é apenas o esqueleto do positivismo. A
carne é distribuída diferentemente por diferentes positivistas e alguns chegam mesmo
a rearranjar os ossos”.
109 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

(realistas) em relação aos casos menos predizíveis. Desse modo, ao


responder Hart à indagação “o que são regras e em que medida o
direito é uma questão de regras?”, o autor vai admitir que, na zona de
penumbra ou na ausência de regras jurídicas específicas, o juiz dispõe
de um verdadeiro poder discricionário. Esta é a segunda proposição: a
tese da discricionariedade judicial dos juízes diante dos casos difíceis.
Dessa forma, ao exercer o poder discricionário sem uma remissão legal
que o fundamente (indo “além do Direito”), o juiz não está impondo
uma obrigação jurídica preexistente ao caso e, sim, criando um Direito
novo. Essa é a terceira proposição, a tese do “direito novo”, criada pelo
fator discricionário. Ambas as teses são inaceitáveis para Dworkin, por
várias razões que serão analisadas mais adiante.
Contudo, desde seu primeiro ataque estabelecido à primeira
tese da teoria positivista (teste de “pedigree” e separação conceitual
entre o Direito e a Moral), é possível perceber que, para este jurista,
há um hiato contundente na descrição do Direito como um sistema de
regras e a questão dos princípios. Em outras palavras, o teste básico da
regra de reconhecimento não dá conta da “temática principiológica”,
uma vez que os princípios não permitem sua recondução por derivação
hierárquica ao critério supremo de validade (regra de reconhecimento).
Desse modo, o modelo positivista deixa ao relento uma importante
parte do Direito e, por consequência, vai ter que sustentar a
discricionariedade da deliberação judicial.
Nesse momento, antes de focalizar a solução proposta por
Dworkin, é preciso responder à seguinte e importante indagação: por
que os princípios não podem ser positivados e, portanto, sanada sua
inegável importância, que não resulta clara na regra de reconhecimento
em Hart? A resposta de Dworkin a essa solução (que manteria sem
fissura a teoria positivista) se estabelece por três razões principais e
duas razões complementares, analisadas a seguir. Em primeiro lugar,
porque a positivação dos princípios não significa necessariamente um
requisito para sua aplicação. Nesse sentido, como no caso “Riggs contra
Palmer”, a prática dos tribunais os aplica mesmo sem positivação.
Teoria do Direito e discricionariedade 110

Em segundo lugar, porque os princípios apresentam uma matização


variada, não havendo uma forma de produção geral dos mesmos
no sentido de que pode haver mais de um princípio operando como
standard de racionalização para um conjunto de regras jurídicas.
Vale dizer que os princípios podem se estabelecer para um caso e não
necessariamente para outro.
Em terceiro lugar, e por decorrência das razões apontadas
acima, para Dworkin os princípios jurídicos não formam um conjunto
completo, exauridos na sua positivação. Dito de outra forma, sempre será
possível articular princípios novos diante de determinadas situações
concretas. As duas razões complementares se dão da seguinte forma:
para este jurista, quando os juízes aceitam a regra de reconhecimento
com a consequente obrigação de aplicar o Direito válido não apenas
se fundamentam em argumentos jurídicos como também em razões
morais que subjazem ao ordenamento jurídico. Daí decorre que, para
o autor, os juízes também têm um compromisso consciente com os
princípios políticos que fundamentam determinada comunidade e,
portanto, não existe uma separação nítida entre validade e aceitação.
Por outro lado, para Dworkin também é uma ilusão a ideia
de que existe um consenso sobre o que a “Constituição diz”, ou seja,
também não há neutralidade e tampouco homogeneidade na regra de
reconhecimento estabelecida por Hart. Pelos motivos evidenciados
conforme este autor, a resposta dos positivistas de que bastaria
incluir os princípios no sistema jurídico com o intuito de apreendê-
los e instrumentalizá-los não é suficiente. Assim, evidencia-se que, nas
práticas dos tribunais, quando juízes e advogados usam standards que
não operam como regras jurídicas (princípios, policies e outros tipos
de standards morais), a noção fundamental do teste único da regra de
reconhecimento para determinar a existência do Direito não funciona.
Daí decorre que, para o jurista norte-americano, o positivismo jurídico
é um sistema de regras que não permite identificar importantes funções
daqueles outros standards que não consistem em regras jurídicas.
Dessa forma, para Dworkin a tentativa de positivá-los não salva a
111 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

teoria positivista de sua descrição insuficiente do Direito, ao percebê-la


como um sistema de regras autorreferenciado pelo standard da regra
de reconhecimento.
Por essas razões, para Dworkin os princípios não passam
pelo “teste de pedigree” e, portanto, ao aceitar uma margem de
discricionariedade que não encontra solução nos princípios, fragiliza-
se o fundamento de generalidade da teoria positivista – mesmo na
versão mais consistente, como a apresentada por Hart. Ressalta-se que,
para este último autor, a discricionariedade judicial não representa a
contradição apontada por Dworkin, na medida em que se circunscreve
a casos muito reduzidos. Assim, o jusfilósofo inglês admite essa
possibilidade na suposição de que não haveria respostas certas, apenas
decisões alternativas. Para Dworkin, não apenas há a resposta correta,
como também a mesma pode ser construída pelo próprio Direito;
mas, para tanto, é preciso abandonar a concepção de Direito como um
sistema de regras, introduzindo a questão primordial dos princípios.
Assim, para o autor, toda a controvérsia, incluindo os casos difíceis,
pode ser resolvida sobre a base do Direito existente – mas desde que
compreendido como uma composição de regras e princípios jurídicos.
Isso significa que a liberdade dos juízes, mesmo diante dos
hard cases – embora não esteja vinculada por regras jurídicas–, é
vinculada pelos princípios. Desse modo, a concepção de Dworkin
permite trazer ao debate critérios decisionais significativos que não
foram percebidos com relevância adequada pelo positivismo jurídico.
Nesse contexto, como analisado no juízo crítico de Dworkin, a primeira
tese do positivismo jurídico se fundamentou na distinção lógica de
dois tipos de standards jurídicos (regras e princípios). Através dessa
diferenciação, o jurista norte-americano estabeleceu que os princípios,
contrariamente às regras, não são aplicados como “tudo ou nada”, nem
tampouco implicam um mandato específico para a tomada de decisão.
Nesse sentido, apenas proporcionam pautas argumentativas que
devem ser levadas em conta para chegar a uma conclusão e, na colisão
de princípios, a solução a ser estabelecida deve ser a ponderação.
Teoria do Direito e discricionariedade 112

Sucintamente e em retrospectiva, são essas as distinções


relevantes entre princípios e regras. Por outro lado, para Dworkin
essas duas espécies de standards jurídicos do gênero “norma” se
assemelham ao estabelecerem igualmente direitos e deveres jurídicos.
Essa característica apontada pelo autor nos leva a analisar o conceito
de obrigação jurídica, averiguando a função desempenhada pelos
princípios nas decisões jurídicas. Nesse desiderato, o jurista situa duas
orientações diferenciadas. Na primeira, os princípios jurídicos podem
ser tratados “da mesma maneira que tratamos as regas jurídicas, e dizer
que alguns princípios possuem obrigatoriedade de lei deve ser levado
em conta por juízes e juristas que tomam decisões sobre obrigações
jurídicas”.174Na segunda, “podemos negar que tais princípios possam
ser obrigatórios no mesmo sentido que algumas regras o são”.175 Nesse
último entendimento, o juiz iria “além do Direito” e das regras que está
obrigado a aplicar.
Desse modo, como no caso “Riggs contra Palmer”, o magistrado
estaria “lançando mão de princípios extralegais que ele tem liberdade
de aplicar, se assim o desejar”.176 Feitas essas duas distinções sobre
o conceito de obrigação jurídica em relação aos princípios, Dworkin
acentua: “Trata-se de uma escolha entre dois conceitos de um princípio
jurídico, uma escolha que podemos esclarecer comparando-a a uma
escolha que podemos fazer entre dois conceitos de regra jurídica”.177 Tal
escolha pode ser melhor compreendida utilizando o aparato conceitual
de Hart – o ponto de vista interno e externo das regras. Ou seja, pode-
se conceber uma regra como obrigatória de um modo em que a conduta
contrária implique na crítica ou censura, ou pode-se adotá-la como
um comportamento habitual. Para Dworkin, essa diferenciação não

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


174

São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 46-47.


175
Ibid., p. 47.
176
Idem.
177
Idem. Grifos do autor.
113 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

é apenas uma “questão verbal”, mas, ao contrário, traz implicações


decisivas para a análise da obrigação jurídica.
É essa a tese da discricionariedade judicial que Dworkin
vai veementemente rechaçar ao propor que o juiz pode superar a
ambiguidade ou omissão do texto normativo quando fundamenta
sua decisão em argumentos de princípios e respeita a integridade do
Direito como um todo. Por outro lado, quando o magistrado exerce
a discricionariedade adjudicativa, extrapolando as decisões políticas
tomadas pelo legislador, a obrigação jurídica que decorre de tal ato
discricionário não teria lugar num modelo democrático em que todos
os poderes se submetem à Constituição. Assim, para Dworkin, se a
segunda tese do positivismo jurídico também é falsa, ao não reconhecer
que os princípios são igualmente obrigatórios (tanto quanto as regras
jurídicas), a terceira também não se sustenta, pois os juízes, mesmo
nos casos difíceis, não têm discricionariedade para criar Direito. Ao
contrário, os magistrados devem, acima de tudo, tomar uma decisão
introduzindo uma razão prática argumentativa que, por sua vez, é
vinculada pelos princípios.
Dessa forma, para Dworkin há uma importante conexão entre
a discricionariedade judicial e a doutrina positivista, que lança mão dos
princípios como se os mesmos estivessem “além do Direito” e fossem
utilizados como argumentos extrajurídicos. Essa abordagem, para o
autor, é equivocada, pois, ainda que não existam regras aplicáveis ao
caso concreto, sempre será possível instrumentalizar os princípios.
Nesse sentido, a sentença que deles deriva não cria direito para uma
das partes, mas, acima de tudo, os reconhece, na medida em que os
princípios lhe dão razão. Sob um ponto de vista interno, os princípios
se tornam obrigatórios para os juízes e, nesse sentido, seria um erro
não aplicá-los quando pertinentes a um caso concreto.
No entanto, para a línea da segunda alternativa os princípios
apenas poderiam ser adotados quando os juízes não encontram outros
padrões a eles vinculados. A diferença entre essas concepções, segundo
Dworkin, é brutal, pois a última forma de compreender os princípios
Teoria do Direito e discricionariedade 114

nos levaria a reconhecer que, como dispõe literalmente o jurista: “[...]


a família do assassino no caso “Riggs” [...] foi privada de seus bens
por um ato de poder discricionário do juiz, aplicado ex post facto”178. E
complementa:

Muitos leitores talvez não se choquem com isso – a ideia do


poder discricionário infiltrou-se na comunidade jurídica
– mas ilustra uma das perplexidades mais exasperantes
que levam os filósofos a ocupar-se da obrigação jurídica.
Se o confisco da propriedade em casos como esse não
pode ser justificado através do apelo a uma obrigação
instituída, então outra justificativa deve ser encontrada,
mas até agora nenhuma satisfatória foi apresentada.179

Importante não deixar de perceber que a decisão judicial que


reconhece os direitos e deveres de cada parte identifica os princípios no
interior do Direito; o que não significa que estejam sempre positivados
ou meramente implícitos. Nesse sentido, é esclarecedora a seguinte
afirmação de Dworkin:

Se as pessoas aceitam que são governadas não apenas


por regras explícitas, estabelecidas por decisões políticas
tomadas no passado, mas por quaisquer outras regras que
decorrem dos princípios que essas decisões pressupõem,
então o conjunto de normas públicas reconhecidas pode
expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que
as pessoas se tornem mais sofisticadas em perceber e
explorar aquilo que esses princípios exigem sob novas
circunstâncias, sem a necessidade de um detalhamento da
legislação ou da jurisprudência de cada um dos possíveis
pontos de conflito.180

Portanto, ao contrário de tal percepção, o modelo positivista vai


sustentar que é possível identificar os standards jurídicos, na medida
em que satisfazem um teste fundamental – como o que está contido

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


178

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 49.


179
Ibid., p. 49. Grifos do autor.
180
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 229.
115 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

na regra de reconhecimento de Hart. Para Dworkin, essa pretensão


básica do positivismo jurídico não se sustenta, pois os princípios não
podem ser reconhecidos por tal teste, na medida em que não podem ser
reconhecidos por sua origem, pelas razões anteriormente apontadas.
Assim, para Dworkin, ao ignorar essa parte relevante do Direito, à
teoria positivista só resta conceder um verdadeiro poder discricionário
aos juízes, inclusive para criar Direito. Em síntese, a existência dos
princípios, para esse autor, solapa o esquema de validade e aceitação
proposto por Hart, na sua versão mais apurada do positivismo jurídico.
Na sequência a tais considerações, Dworkin “situa” o conceito de poder
discricionário no seu habitat, para precisar o sentido que acompanha
a discricionariedade judicial no positivismo jurídico.181Desse modo,
pontifica esse jurista:

Faz sentido falar do poder discricionário de um sargento


que deve submeter-se às ordens de seus superiores ou
do poder discricionário de uma autoridade esportiva
ou de um juiz de competição que são governados por
um regulamento [...]. Tal como o espaço vazio de uma
rosca, o poder discricionário não existe a não ser como
um espaço vazio, circundado por uma faixa de restrições.
Trata-se, portanto, de um conceito relativo. Sempre faz
sentido perguntar: “Poder discricionário de acordo com
que padrões?”, ou “poder discricionário com relação a
qual autoridade?”.182

A partir dessa explanação, o autor vai estabelecer três sentidos


para a expressão “discricionariedade”: dois sentidos fracos e um forte.
Num primeiro sentido débil, discricionariedade denota a situação de
quem está circunscrito a um determinado padrão, como no caso do
sargento que recebe ordens para escolher os quatro homens mais

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira. São
181

Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 50. Nas palavras do autor: “Tentarei mostrar de que
modo estas confusões a respeito desse conceito e, em particular, uma incapacidade
de discriminar os diferentes sentidos nos quais é empregado, explicam a popularidade
da doutrina do poder discricionário”.
182
Ibid., p. 51.
Teoria do Direito e discricionariedade 116

experientes para realizar determinada tarefa. Nessa línea, o sargento


poderá usar sua “discricionariedade” como discernimento para a
escolha de quem são os mais experientes. Contudo, encontra-se adstrito
ao padrão determinado como “experiência”. Num segundo sentido
fraco, “discricionariedade” denota a posição de quem pode tomar uma
decisão inapelável, ou seja, definitiva, significando, no âmbito jurídico,
uma decisão irrecorrível (como a de última instância). E, por último,
num terceiro sentido, que é o sentido forte, denotando a situação de
quem pode decidir arbitrariamente e, portanto, não sendo vinculado
por um padrão preexistente.
Nesse contexto, interessa averiguar em qual dos sentidos
apontados o juiz dispõe de um poder discricionário, especialmente
nos casos difíceis, em que a incerteza se acentua. Para Dworkin, na
“zona de penumbra” o juiz apenas tem esse poder discricionário nos
dois primeiros sentidos fracos – isso se, para o segundo sentido fraco,
for um juiz de última instância. Por outro lado, o fato de ser a última
decisão – e isso deve ficar claro – não significa que está desvinculado de
padrões para tomar determinada decisão.183 Nesse último caso (embora
como última decisão), os princípios operam como critérios vinculantes
para os juízes. Feitas essas ponderações sobre as distintas expressões
com que pode ser utilizado o sentido de poder discricionário, o autor
percebe que nem sempre os positivistas atribuem os dois sentidos
fracos à sua doutrina. Daí afirmar:

[...] Parece que os positivistas, pelo menos algumas


vezes, entendem a sua doutrina no terceiro sentido, o
sentido forte de poder discricionário. Nesse sentido,
ela tem relevância para a análise dos princípios; [...] ela

183
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.
São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 53-54. Conforme o autor: “Devemos evitar
uma confusão tentadora. O sentido forte de poder discricionário não é equivalente à
licenciosidade e não exclui a crítica”. Complementando: “O poder discricionário de um
funcionário não significa que ele esteja livre para decidir sem recorrer de bom senso
e equidade, mas apenas que sua decisão não é controlada por um padrão formulado
por autoridade particular que temos em mente quando colocamos a questão do poder
discricionário. Sem dúvida, esse último tipo de discricionariedade é importante; é por
isso que falamos de um sentido forte de poder discricionário”.
117 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

nada mais é [...] que dizer que, quando um juiz esgota as


regras à sua disposição, ele possui o poder discricionário,
no sentido de que ele não está obrigado por quaisquer
padrões derivados da autoridade da lei. Ou para dizer de
outro modo: os padrões jurídicos que não são regras e são
citados pelos juízes não impõem obrigações a estes.184

Essa é a segunda tese do positivismo, que Dworkin também


vai rechaçar, atacando a teoria positivista da função discricionária
dos juízes através da elaboração da tese da resposta correta nos casos
difíceis.185Nesse desiderato, pontifica:

Em minha argumentação, afirmarei que, mesmo quando


nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda
assim, ter o direito de ganhar a causa. O juiz continua
tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir
quais são os direitos das partes, e não de inventar novos
direitos retroativamente.186

Nesse contexto, a partir da tese da discricionariedade judicial,


o jurista vai dirigir seus esforços teóricos no sentido de evidenciar que
o poder discricionário concedido aos juízes deriva, em última instância,
da concepção que pensa o Direito como um sistema de regras. Isso
porque, para Dworkin, a distinção lógica entre princípios e regras não
permite ao modelo positivista de Hart a recondução dos princípios à
regra de reconhecimento que estabelece o critério que identifica um
sistema jurídico. Por outro lado, a objeção positivista, que propõe uma
complexa regra de reconhecimento, capaz de identificar os princípios,
também é inviável para Dworkin, pelas razões já apontadas.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


184

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 55.


185
Ibid., capítulo 4. Segundo o autor, “o positivismo jurídico fornece uma teoria dos
casos difíceis. Quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma
regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem,
segundo tal teoria, o ‘poder discricionário’ para decidir o caso de uma maneira ou de
outra”.
186
Ibid., capítulo 4.
Teoria do Direito e discricionariedade 118

Dessa forma, compreende este jurista que o positivismo


jurídico, ao descrever o Direito como um sistema de regras, é insuficiente
para dar conta da complexidade do Direito. Essa insuficiência se faz
notar mais acentuadamente nos casos difíceis (como em “Riggs contra
Palmer”), em que a argumentação jurídica se apresenta umbilicalmente
interligada à argumentação moral. Daí porque, conforme este autor,
também não procede a separação conceitual entre o Direito e a Moral
e, portanto, não se pode segmentar os argumentos que se articulam
nesses dois domínios. É nesse pano de fundo que Dworkin vai elaborar
a tese da resposta correta, na medida em que entende que a aplicação
dos princípios pode construí-la, mesmo diante da ausência de regras
ou de sua indeterminação.
Desse modo, em contraposição à argumentação positivista
que sustenta o caráter discricionário das decisões judiciais nos casos
difíceis, o autor propõe a resposta certa, instrumentalizada pelos
princípios. Contudo, ao não haver uma hierarquia preestabelecida de
princípios e diante do caráter nãoconclusivo dos mesmos, estes, na sua
aplicação, vão depender de uma argumentação judicial. Na intenção de
desenvolver uma teoria que integra essa argumentação judicial, o autor
vai propor um modelo paradigmático de um juiz onisciente. A este
denominará “Hércules”, que terá como missão primordial encontrar a
solução correta para todos os casos difíceis. Dessa forma, a elaboração
da resposta certa passa a ser articulada, em Dworkin, pela metáfora de
um juiz fictício, dotado de condições sobre-humanas, que será capaz de
apreender o Direito em toda a sua complexidade. Assim, a figura do juiz
Hércules simboliza a tarefa “hercúlea” de encontrar a resposta correta
para os casos difíceis. Entretanto, diante desse objetivo proposto pelo
autor para desenvolver sua teoria da argumentação judicial, cabe a
indagação: seria viável essa tarefa, na medida em que a resposta correta
não é demonstrável?
Dworkin responde afirmativamente, pois, para o mesmo,
numa comunidade governada por princípios a medula da integridade
constitucional é justamente a busca incessante pela melhor resposta –
119 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

ainda que esta seja nãodemonstrável. Nesse sentido, é possível buscar


a resposta certa, mesmo aceitando e assumindo a limitação inerente
ao conhecimento humano e, especialmente, ao conhecimento jurídico.
Assim, para Dworkin, a atitude “hercúlea” do guardião da Constituição
– a busca do melhor argumento derivado dos princípios – sintetiza
o papel da Corte Constitucional numa democracia. Portanto, nesse
contexto a resposta correta pressupõe a figura do magistrado como
um protetor de princípios que conferem densidade moral às decisões
tomadas. Daí porque, embora a decisão possa estar equivocada (juízes
também erram), a busca pelo argumento de princípio a legitima. Tal
compreensão sobre a resposta correta, elaborada na teoria adjudicativa
de Dworkin, avança em relação ao modelo positivista ao se permitir,
nesse enfoque teórico, a discricionariedade judicial para os casos
difíceis, de forma relativamente aleatória.
Feitas essas considerações sobre a teoria desse jurista, se
percebe que, para o mesmo, nos casos difíceis o juiz apenas dispõe de
discricionariedade nos dois sentidos fracos utilizados pelo autor. Vale
dizer, não no sentido de que sua decisão se encontre desvinculada de
qualquer critério pré-constituído. Em síntese, os princípios constituem
critérios de juízos vinculantes para os juízes. Portanto, para Dworkin
a decisão correta pode ser encontrada, mesmo nos casos difíceis,
sobre a base de um Direito existente, compreendido não mais como
um sistema de regras, mas como regras e princípios. Desse modo,
a instrumentalização dos princípios deve permitir ao juiz escolher
a resposta correta, ainda que as regras sejam indeterminadas ou
inexistentes. Por outro lado, para esse jurista a decisão correta deve ser
aquela que é mais coerente com a filosofia política que fundamenta o
sistema jurídico na sua totalidade.
Todavia, o que fazer no caso em que a ponderação no
conflito de princípios também não permite uma solução? A resposta
para esse problema vai ser elaborada por Dworkin ao desenvolver a
formulação da Teoria do Direito como integridade, conforme se verá a
seguir. De acordo com o que já foi analisado anteriormente, para esse
Teoria do Direito e discricionariedade 120

autor os juízes não têm discricionariedade nos casos difíceis porque


essencialmente têm obrigação de buscar, num compromisso com a
comunidade de princípios, a melhor resposta numa teoria substantiva
da representatividade. Para justificar essa concepção, Dworkin vai
desenvolver um aparato conceitual com o qual possa racionalizar o
conjunto de princípios defendidos pela teoria que melhor explica e
justifica as práticas jurídicas de uma determinada comunidade.
Essa teoria vai ser a “concepção do Direito como integridade”
e, no seu desenvolvimento, o papel de Hércules será fundamental. Em
outras palavras, se Hércules, como juiz imaginário onisciente, tem o
poder de escolher a melhor teoria para resolver os casos difíceis, ele
não apenas a formula (descreve), como também a prescreve. Desse
modo, o autor vai atacar a separação tradicional do positivismo
jurídico entre descrição e justificação. Vale dizer, a Teoria do Direito
como integridade não apenas busca conhecer o Direito vigente como
também será instrumentalizada para que o juiz possa decidir sobre os
casos difíceis, alicerçado pelo seu fundamento racional.
Em síntese, para Dworkin essa teoria deve não apenas permitir
descrever e conhecer o Direito como também fundamentar a validez
da tese da resposta correta. Para tanto, a concepção do Direito como
integridade se subdivide em dois momentos, que desvelam as facetas
descritivas e prescritivas da teoria da adjudicação judicial. O primeiro
é denominado “adequação”187, compreendido como uma prática
jurídica que é essencialmente interpretativa. Ou seja,ao descrever o
Direito há um teste de ajuste em que o juiz deve encontrar uma solução
harmonizada com a experiência constitucional – como se reescrevesse
um romance em cadeia (no qual cada autor parte do capítulo anterior).
Na adequação, a argumentação judicial se desvela como uma
forma de interpretar, na qual está presente uma atitude epistemológica
que nos permite conhecer188o Direito. Nesse sentido, a análise de

187
DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, p. 277.

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. Trad. de Luís Carlos Borges. São
188

Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 220. Conforme o autor: “[...] Estudar a interpretação
121 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

como a interpretação literária se assemelha à interpretação jurídica,


em termos de congruência narrativa, pode servir de teoria modelo
para uma interpretação mais geral. O que subjaz na relação feita por
Dworkin entre Direito e Literatura é a busca da unidade no ato de criar
e interpretar – unidade essa que se relaciona à história constitucional
e seus precedentes. Em suma, a adequação implica na concepção da
interpretação judicial análoga à narrativa de um texto.
O segundo momento da teoria da interpretação, compreendido
na concepção do Direito como integridade, diz respeito à dimensão
prescritiva no plano da justificação189. Desse modo, se do teste de
ajuste adequado à experiência constitucional extraírem-se diversas
interpretações (ou pelo menos mais de uma), o magistrado terá que
escolher aquela que melhor se coadune com os princípios implicados.
Entretanto, encontrando-se os princípios em conflito e não sendo
a ponderação suficiente para estabelecer uma solução adequada,
como resolver a questão? Em outras palavras, se a ponderação sobre
a dimensão de peso entre os princípios envolvidos não encontra um
ponto de inclinação argumentativo consistente, como decidir o caso?
Aqui ressurge a problemática levantada anteriormente, em
que a resposta elaborada por Dworkin introduz sua Teoria dos Direitos:
neste caso em que os argumentos “empatam”, o juiz deve escolher a
leitura que privilegie os Direitos individuais. Dessa forma, ao utilizar, na
argumentação judicial, descrição e prescrição, a teoria interpretativa de
Dworkin busca acentuar a sindicabilidade dos fundamentos racionais
para averiguar se a resposta foi a melhor possível (a resposta correta).
Assim, nos casos difíceis (este é o aspecto prescritivo da teoria de
Dworkin) os juízes devem fundamentar suas decisões sobre princípios,
respeitando os direitos individuais das partes. Essa é sua “Tese dos
Direitos”, e, nesse sentido, para o autor, não há nenhuma finalidade
que possa privar um indivíduo de seus direitos.

como atividade geral, como um modo de conhecimento, atentando para outros


contextos dessa atividade”.
189
DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, p. 275 e 286.
Teoria do Direito e discricionariedade 122

Como se observa, a “Tese dos Direitos” também constitui


uma crítica implícita às orientações jurisprudenciais que buscam se
orientar ou por argumentações utilitaristas ou pela via customizada
do Direito. Em suma, o Direito como integridade exige, para este
jurista, adequação e justificação na argumentação judicial. A primeira
permite um teste de ajuste narrativo com a história e os precedentes
que compõem a experiência constitucional. A segunda pondera os
princípios envolvidos, relevando os Direitos individuais. Dessa forma,
descrição e prescrição se entrelaçam como forma e substância – como
congruência narrativa e valores fundamentais –, formando um anel
que circunscreve e constrange a discricionariedade judicial. Desse
modo, o autor vai elaborar uma concepção do Direito como integridade,
consubstanciada numa teoria da justiça em que valores comunitários
e direitos individuais se interpenetram, articulando-a. Por outro lado,
a concepção do Direito como integridade não exclui a participação dos
cidadãos para o bem da comunidade, como afirma o autor:

A integridade expande e aprofunda o papel que os cidadãos


podem desempenhar individualmente para desenvolver
as normas públicas de sua comunidade, pois exigem que
tratem as relações entre si mesmos como se estas fossem
regidas de modo característico, e não espasmódico, por
essas normas.190

Daí porque, numa comunidade de princípios, direitos e deveres


não se esgotam nas instituições que produzem os textos normativos,
pois, por sua vez, estes também dependem da moralidade política191da
própria comunidade. Nesse contexto, os princípios operam como

190
DWORKIN, Ronald, O Império do Direito, p. 229.
191
CHUERI, Vera Karan de. Filosofia do Direito e Modernidade: Dworkin e a possibilidade
de um discurso instituinte de direitos. Curitiba: JM, 1995, p. 101. Conforme a autora,
“[...] o ato de interpretação do juiz acompanha uma teoria política cujo fundamento
está na história e em cuja base se assenta uma teoria das decisões judiciais. O que
retira o possível senso de aleatoriedade que o interpretar sugere. Quando ocorre dos
princípios conflitarem é a teoria política que vai ser decisiva ao sugerir que princípio
se ajusta a um sentido mais agudo de justiça no qual seguirá, em consequência, a
interpretação do juiz”.
123 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

ponte, permitindo a junção desses dois domínios (o que a comunidade


considera como valor moral e jurídico). Portanto, esses direitos e
deveres devem ser garantidos numa ótica de justiça e equidade que é
articulada pelos princípios. Nessa línea, preceitua Dworkin:

Segundo o direito como integridade, as proposições


jurídicas são verdadeiras se constam ou se derivam dos
princípios de justiça, equidade e devido processo legal
que ofereçam a melhor prática jurídica da comunidade.
[sic]192

Dessa concepção, segundo o autor estudado, percebe-se


que equidade e justiça, juntamente com a integridade, perfazem os
elementos a serem utilizados na interpretação do Direito. A equidade,
de acordo com Dworkin, constitui uma adequada distribuição do
poder político na sociedade, assegurando a participação igualitária
nas decisões políticas das instituições públicas. A justiça, por sua vez,
exige que as instituições almejem uma justa distribuição de recursos
e oportunidades. E o Direito como integridade implica uma teoria
interpretativa em que a equidade e a justiça, conjuntamente com a
moralidade política que subjaz aos valores da comunidade, permitam
formular a melhor concepção de Direito.193
Dessa maneira, verifica-se, pelas razões até então apresentadas,
que o Direito como integridade se traduz, para Dworkin, num ideal
político que permeia toda a sociedade. Ou seja, nesse sentido amplo,
juízes, legisladores, governantes e cidadãos devem estar comprometidos
com uma comunidade de princípios. Assim, a exigência da integridade
impõe não apenas leis moralmente coerentes e juízes comprometidos
com os princípios, mas também governantes que os exerçam na sua
atuação e cidadãos que os respeitem. Desse modo, o campo do Direito
se alarga, e a teoria interpretativa do autor vai representar o esforço

192
DWORKIN, Ronald, op. cit., p. 272.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


193

São Paulo: Martins Fontes, 2002.


Teoria do Direito e discricionariedade 124

do jurista para elaborar a resposta correta. Dessa forma, a tarefa


pela busca da melhor solução para os casos difíceis é delegada ao juiz
Hércules, que, interpretando o Direito como integridade, vai defini-la
coerentemente. Nessa busca incessante, os princípios detêm um papel
fundamental, ao verificar o passado e o futuro, a tradição e acrítica.
Nesse sentido, a acepção textual desse jurista:

O direito como integridade insiste em que as afirmações


jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse
motivo, combinam elementos que se voltam tanto para
o passado quanto para o futuro; interpretam a prática
jurídica contemporânea como uma política em processo
de desenvolvimento.194

De posse dessas informações, é possível compreender a razão


de a tese da discricionariedade judicial, num sentido forte, ser falsa,
segundo Dworkin. Isso porque os princípios vigentes no ordenamento
jurídico devem ser aplicados pelos juízes e, desse modo, as partes
terão direito a obter uma solução compatível com o sistema jurídico
existente. Daí porque, conforme o autor, é um equívoco supor que os
juízes possuem discricionariedade judicial, na medida em que a ênfase
nos princípios amplia o conceito de Direito e proporciona, em última
análise, uma resposta correta.
Nesse sentido, mesmo diante dos casos difíceis o magistrado
deve manter-se no domínio da aplicação do Direito – ao invés de criá-lo
para o caso concreto, como permite o positivismo jurídico. Assim, para
esse jurista a temática principiológica vai operar seja em relação aos
casos fáceis (na claridade da regra) como também para os difíceis (na
zona de penumbra). E, neste último caso, mesmo quando as regras não
indicam uma ou outra direção, o juiz não pode criar regras jurídicas,
devendo se ater à aplicação dos princípios.
Portanto, para Dworkin a terceira tese do modelo positivista
também se inviabiliza: a de que, diante da obscuridade da Lei, o

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. e notas de Nelson Boeira.


194

São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 271.


125 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

magistrado não teria outro caminho senão criar Direito. Nesse


sentido, além das razões contrárias já aduzidas, o autor adiciona mais
um argumento: se o Direito validado não decorre de uma previsão
normativa, mas do poder discricionário exercido pelo juiz, isso significa
que a nova regra criada retrocede aos fatos. E, por seu turno, tal
remissão, segundo o autor, atenta contra o Estado de Direito, porque a
função dos juízes numa democracia não é criar Direito, mas aplicá-lo.
Nesse contexto, a proposta de Dworkin - da resposta correta
- se contrapõe ao sentido forte de discricionariedade na medida em
que reconhece a existência de direitos e deveres preexistentes à decisão
judicial. Assim, instrumentalizando enfaticamente os princípios,
Dworkin rechaça a possibilidade de o magistrado ditar normas
livremente no exercício da discricionariedade judicial, mesmo diante
dos casos em que a lei é obscura, omissa ou insuficiente. Vale dizer, a
discricionariedade adjudicativa, se existente, apenas se verifica, para
o autor, num sentido fraco, especialmente no primeiro sentido fraco
atribuído por esse jurista: de que toda decisão judicial se encontra
vinculada a standards jurídicos que não operam como regras.
Desse modo, para o jurista norte-americano toda interpretação
judicial se encontra vinculada não somente por textos normativos, mas
precipuamente por princípios. E estes, ao fazerem parte do Direito,
obrigam os magistrados a aplicá-los para encontrar a solução mais
adequada diante dos casos difíceis. Esse é o ponto central de discórdia
com o modelo positivista, o qual entende que esses casos não podem ser
decididos alicerçados no Direito existente, e, portanto, ao não existir
uma solução justa ou concreta (right answer), a decisão judicial, diante
de um caso difícil, somente pode ser encontrada além do Direito vigente.
Para Dworkin, essa categoria de juízos discricionários (sentido forte) é
injustificável, uma vez que fragiliza a legalidade e, por consequência, a
essência da democracia. Nesse sentido, o autor reafirma que existem
controles aplicáveis (padrões estabelecidos por princípios jurídicos)
capazes de levar à decisão correta – mesmo onde não opera a disciplina
legal específica.
Teoria do Direito e discricionariedade 126

Cabe agora, para finalizar, uma recapitulação. A medula da


qual parte o ataque de Dworkin ao positivismo jurídico se estabelece
diante da seguinte problemática: como os juízes devem decidir um caso,
quando a solução não se encontra no interior dos textos normativos?
Esse é o ponto de partida do autor em sua crítica ao referido modelo. Ou
seja, utilizando-se dos casos difíceis, Dworkin vai buscar demonstrar
as insuficiências da descrição positivista da decisão judicial, segundo a
qual não haveria resposta correta para tais casos, mas apenas soluções
alternativas. Assim, para o jurista norte-americano essa solução, que
permite um verdadeiro poder discricionário aos magistrados, apenas
se verifica na medida em que tal teoria descreve o Direito como um
sistema de regras. Como tal assertiva não procede, para o autor, pelas
razões anteriormente assinaladas, esse jurista busca articular uma
Teoria do Direito que reduza a subjetividade do juiz na busca da solução
correta para os casos difíceis.
Dito de outro modo, para o autor a concepção do Direito
como integridade passa a ser a fundamentação que vai alicerçar a tese
da resposta certa, contraposta às respostas aleatórias diante dos hard
cases. Para tanto, a Teoria do Direito como integridade se articula
em duas dimensões: a descritiva e a prescritiva, utilizando como eixo
central a instrumentalização dos princípios. Esses, por sua vez, serão
esgrimidos pelo juiz Hércules na busca da melhor Teoria do Direito,
que será a que permita compreender o Direito como totalidade e,
portanto, capaz de reduzir a insegurança e a incerteza das decisões
judiciais diante dos casos difíceis. Em síntese, “levar o Direito a
sério”, para Dworkin, exige uma decisão valorativa que não pode ser
aleatória diante dos casos difíceis. E, para tanto, ela apenas pode ser
construída com maior segurança ao se alargar o campo de indagação
sobre o conflito, introduzindo na problemática da discricionariedade
judicial a ênfase necessária dos princípios sem, contudo, abandonar
a positividade do Direito e sem deixar de admitir as consequências
político-jurídicas aí implicadas. Essa é a concepção do Direito como
integridade.
127 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Por último, se, por um lado, a temática principiológica


estabelece critérios mais eficazes para constranger a discricionariedade
judicial diante dos casos difíceis, por outro lado o aparato analítico
desenvolvido por Dworkin, embora force uma argumentação mais
consequente, não significa, por sua vez, uma panaceia para suprimir a
tensão da pluralidade axiológica inerente aos sistemas democráticos.
Nesse sentido, cabe transcrever a acepção de Calsamiglia:

[...] O aparato analítico utilizado por Dworkin permite


propor e resolver os problemas de forma nova. Porém,
como qualquer método, tem suas limitações das quais o
próprio Dworkin é muito consciente. [...] Quem quer que
creia que com esse aparato analítico é possível resolver
qualquer problema confunde um método com uma
concepção de mundo.195

Embora não acolhendo a radicalidade da tese de Dworkin – da


única resposta jurídica correta para os casos difíceis –, deve-se salientar
que é inegável a contribuição desse jurista para um avanço teórico do
controle da discricionariedade judicial. Isso porque, sobretudo, sua
teoria da resposta correta força a busca pela melhor interpretação,
levando em conta o entrelaçamento dos princípios diante dos casos
difíceis. Nessa tensão dialética estabelecida pela relativização mútua
entre os princípios envolvidos, para Dworkin a solução não pode ser
deixada livremente ao poder discricionário do juiz. Ao contrário, este
deve fazer prevalecer, no conflito, o princípio que melhor possa ser
justificado racionalmente num dado momento histórico.
Nessa busca, mais de um sentido pode ser construído apoiando
a congruência narrativa da experiência constitucional. Contudo, isso é
bem diferente de deixar as coisas, tal como permite Hart, para os casos
difíceis, concedendo um verdadeiro poder discricionário ao magistrado.
E, se dessa concepção deriva a resolução de que o juiz possa criar
Direito, corre-se o risco de identificar a autoridade da Constituição com

195
CALSAMIGLIA, Albert. Derechos em Sério. Apresentação à edição espanhola
traduzida por Patrícia Sampaio. Barcelona: Ariel, 1984, p. 13.
Teoria do Direito e discricionariedade 128

a decisão tomada, seja ela mais adequada ou não, e confundir o Estado


de Direito com não importa qual seja a forma do sistema adotado no
quadro constitucional. Em suma, a teoria de Dworkin, nesse sentido,
permite avançar na problemática da discricionariedade judicial,
guardando em seu controle íntima conexão com o desenvolvimento do
Estado de Direito.
Não obstante, buscamos ainda abarcar uma crítica do modelo
mitológico de Hércules como intuito de verificar se o autor não se viu
diante da mesma problemática que o levou a ser expoente crítico do
positivismo: a ampla margem de discricionariedade.
PARTE II

REFLETINDO
SOBRE OS ESPAÇOS DE
DISCRICIONARIEDADE A
PARTIR DOS ELEMENTOS
FUNDACIONAIS: O DIREITO
DECIDINDO
Teoria do Direito e discricionariedade 132

1. UM OLHAR CRÍTICO SOBRE O MODELO MITOLÓGICO


DO JUIZ HÉRCULES

Na pretensão de discutir se há ou deve existir uma “forma


ideal” que tenha a função de guiar os juizes na tarefa de decidir o Direito,
doutrinadores têm se debruçado na busca da construção de modelos que
propiciem um certo “controle” da decisão judicial, travando ferrenhos
debates sobre se existe ou não uma resposta correta, especialmente em
se tratando de casos difíceis.
No entanto, pode-se indagar qual o fundamento de uma
doutrina,ou melhor, uma teoria que reconstrua a práxis judicial de
decidir? Dentre as várias respostas possíveis a esse questionamento,
a necessidade de produção de racionalidade argumentativa tende a
133 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

contribuir para uma melhor compreensão do Direito enquanto fruto


da interpretação e da decisão.
Com o intuito de contribuir para o problema da busca da
“resposta correta” na qual se aventuram cotidianamente os juizes,
o presente ensaio busca analisar as contribuições do modelo do juiz
Hércules formulado por Dworkin com novas conexões interdisciplinares
que potencializem o exercício de sua racionalidade prática – tendo
por pano de fundo a perspectiva de que uma das grandes funções da
decisão judicial é a emancipação do sujeito.

1.1 Retomando mais atentamente a metáfora de Hércules

Sob tais expectativas e partindo do que pode se chamar


de uma “crítica à dogmática jurídica”, ou melhor, uma crítica às
deficiências interpretativas do positivismo jurídico, Dworkin196cria um
juiz imaginário197, retomando o mito de Hércules como uma espécie de
modelo a ser seguido pelos juizes (common law) na tarefa de decidir
questões jurídicas. Em sua teoria, Dworkin apresenta Hércules como
um juiz que, na tarefa de realizar a interpretação construtivista do
Direito, é guiado pelos princípios da integridade e da equidade198, cuja
tradição e historicidade serão notas presentes para a decisão no Direito
vigente, sob a forma de um modelo hermenêutico que reconstrói e
critica a forma da decisão judicial, retroalimentando-a, sem tornar o

DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Trad. Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São
196

Paulo: Martins Fontes, 2007.

Por meio de Hércules, seu juiz imaginário, Dworkin pretende apenas demonstrar
197

um esquema de argumentos que deveria ser utilizado pelos juízes na práxis judicial e
que ultrapassasse os limites do deducionismo.
198
A integridade, para o autor, existe na verdade em dois níveis. Um nível é chamado
de princípio legislativo, que diz aos legisladores que simples barganhas entre justiça
e imparcialidade estão erradas; o outro é um princípio adjudicativo, que diz aos juízes
e advogados que façam suas decisões e argumentos se integrarem ao corpo do
direito existente. GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Trad. Luiz Carlos Borges. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2009. p.51.
Teoria do Direito e discricionariedade 134

Direito uma aplicação de um método ou de uma técnica.


Trata-se de, aplicando a terminologia habermasiana, tornar
explícito (know-that) algo que o juiz já faz de certo modo, mesmo
que de forma deficiente (know-how). Quando essa atividade se torna
explícita, é possível conceber sua analítica e sua retroalimentação sob
a forma de crítica, sem que ocorra o processo de tecnificação, mas sim
uma orientação de racionalidade prática.
O pensamento de Dworkin é marcado, notadamente, pela
vinculação entre Direito e Moral. Nesse sentido, o autor expõem seus
conceitos através do princípio da integridade:

Para Dworkin o direito é uma entidade real, viva, e isso


significa que o direito, adequadamente entendido, impõe
obrigações morais diretamente para que os indivíduos se
conformem a suas exigências. Como o direito é real nesse
sentido cotidiano e, portanto, tão impregnado em nossas
vidas (o “império” do direito) ele deve estar sujeito à forma
adequada de legitimação: a legitimação moral. Creio que
essa arrojada concentração do que é legitimidade no
direito, como a realidade de uma preocupação moral e
não uma realidade de descrição científica, é a marca da
teoria de Ronald Dworkin199.

No que concerne à tarefa de decidir questões envolvendo o


Direito, Dworkin desenvolve etapas da interpretação jurídica, partindo
do pressuposto de que o Direito200 é um conceito interpretativo. Logo,

DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Trad. Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São
199

Paulo: Martins Fontes, 2007, pp.1-2.


200
Para Dworkin, o conceito de Direito é composto por duas variáveis: regras e
princípios. As regras serão válidas ou inválidas dependendo da regra de conhecimento,
a qual o autor denomina “teste de pedigree”(o teste de pedigree referido por Dworkin
é um texto que é válido, segundo o autor, regras jurídicas válidas e regras jurídicas
espúrias – e, também, de outras regras sociais que são seguidas pela comunidade,
mas seu cumprimento não se dá através do poder público. Cf. DWORKIN, Ronald.
Levando os direitos a sério. 2. ed. Tradução Jeferson Luiz Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 28). O princípio, por sua vez, não obtém validade através da
recondução de uma norma fundamental ou valor fundamental, como pensa Esser; ele
é retirado da práxis dos tribunais e de um conjunto de regras que terá sua validade
declarada no caso concreto. A diferença primordial entre regras e princípios é a sua
natureza lógica, pois as regras são aplicadas segundo a lógica do “tudo ou nada”,
135 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

divergir201 sobre o direito é divergir acerca da interpretação. Assim, a


primeira etapa, denominada “pré-interpretativa”, é a que estabelece
as regras e os padrões sociais, e sobre elas é necessário haver um alto
grau de consenso. A segunda etapa é a de “justificativa geral”. Nessa
o intérprete deve concentrar-se para levantar os principais elementos
ou características identificadas na fase anterior, a fim de formar uma
argumentação acerca da conveniência ou inconveniência de buscar
uma prática como forma geral. A terceira e última etapa, chamada “pós-
interpretativa”, caracteriza-se como aquela em que o intérprete deverá
ajustar a ideia daquilo que a prática em si requer para melhor servir a
justificativa e a argumentação que ele aceita na etapa interpretativa202.
Contudo, uma indagação que se faz ao pensamento de
Dworkin é se o mesmo sustentava a tese deque eram os juízes, através
da interpretação, verdadeiros criadores do Direito. Nesse sentido,
cabe referir o pensamento de Posner, que compreende que, para
Dworkin, “os juízes não criam, mas simplesmente aplicam o direito ao
decidir uma causa;estão agindo dentro do âmbito de sua competência
profissional e da função que lhes é autorizada, por isso não precisam
agir com timidez”. Isso porque não seria o Direito somenteum resumo

enquanto os princípios podem ter uma aplicação gradativa, dependendo do caso


concreto. SAAVEDRA, Giovani Agostini. Jurisdição e Democracia: uma análise a partir
das teorias de Jürgen Habermas, Robert Alexy, Ronald Dworkin e Niklas Luhmann.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 71.
201
Em princípio, há dois tipos de divergências: a empírica, na qual a discordância pode
afetar os fundamentos do direito da proposição jurídica utilizada, ou ainda concordar
ou discordar acerca de o que a legislação e as decisões judiciais têm a dizer sobre
alguma questão específica, e a divergência teórica, relacionada à questão “se o corpo
do Direito escrito e as decisões judiciais esgotam ou não os fundamentos pertencentes
ao Direito”. Nessa esteira, Dworkin ensina que os juízes pouco refletem se devem
ou não observar o direito após decidirem seu sentido, e essa questão é de extrema
relevância, pois a cada decisão criam de certa forma um novo direito – com base nas
regras –, um princípio ou uma disposição. Eis aí uma grande distinção da teoria de
Dworkin, quando afirma que os juízes não se valem apenas de regras no momento
de decidir, mas também de princípios que juntos constituem o sistema jurídico. Cf.
DWORKIN, Ronald, op. cit., 2007, pp. 10-12.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito.Trad. Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São


202

Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 81-82.


Teoria do Direito e discricionariedade 136

das normas estabelecidas por assembleias jurídicas formais, mas


também os princípios– com destaque para os princípios morais –aos
quais os legisladores ou os juízes podem fazer referência quando criam
normas novas e decidem a partir de uma comunidade de princípios. Os
juízes têm o dever de atuarem como filósofos da Moral, e não podem
eximir-se de tal tarefa hercúlea, ainda que sejam acusados de “criarem
direitos”203. Destaca-se, segundo Posner, que esse é o valor fundamental
na oposição entre Dworkin e Hart:

Mesmo quando criam normas, os juízes não são


simplesmente legisladores togados. Diferem dos
legisladores propriamente ditos naquilo em que devem
tomar como base adequada para a criação das normas.
Dworkin afirma que, em sua função de criar normas, os
juízes devem baseá-las exclusivamente nos princípios, ao
passo que os legisladores podem baseá-las também nos
programas de ação política (policies).”204

Curiosamente, é no estabelecimento dos princípios


como parte integrante do Direito que inside talvez a maior de todas as
críticas desferidas contra o pensamento de Dworkin: que ali residiria
o espaço de total discricionariedade ou, para muitos, arbitrariedade
do juiz. Contudo, um estudo mais aprofundado do pensamento do
autor poderia conduzir justamente na linha oposta. Foi introduzindo
o princípio da integridade baseado na coerência interpretativa que
Dworkin buscou criar limites à atuação do Juiz, seja no chamado espaço
da “textura aberta da norma de Hart” ou na “moldura constitucional”
kelseniana. Embora não seja importante questionar se sua proposta
foi alcançada como forma de controle da discricionariedade do juiz,
há que se ressaltar que em grande parte de sua obra parece ter sido
tarefa central conceber o Direito como uma postura argumentativa.
Os princípios não seriam então a abertura para conduzir os juízes aos

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


203

Fontes, 2012, p.145.


204
Ibidem, p.148.
137 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

caminhos que bem entendessem, mas sim o fio condutor que manteria
a coerência argumentativa do direito na comunidade.
Note-se que, além do juiz Hércules ter de conhecer todos os
princípios para a justificação, deve possuir uma visão total do Direito
vigente, e suas referências devem se relacionar sempre de forma
coerente – exigência da própria equidade. Além disso, a comunidade
ideal para a atuação do juiz Hércules é a chamada comunidade de
princípios (equidade, justiça, legalidade e integridade), pois é a única
que preenche as exigências de uma comunidade associativa que
respeita a integridade e que está de acordo com as responsabilidades
de cidadania. Nessa forma de comunidade, seus membros aceitam ser
governados por princípios debatidos através da política, e as obrigações
e decisões não são tomadas por particulares. São princípios como os da
justiça e da igualdade que imperam nessa forma associativa, e a própria
exigência de integridade pressupõe que todas as pessoas são igualmente
dignas. O papel do juiz – que só existe concretamente na decisão
judicial – na interpretação terá influência direta na comunidade, afinal
o princípio da integridade na prestação da justiça “não é de maneira
alguma superior ao que os juízes devem fazer diariamente”. Em
termos práticos, isso significa que o direito é autoproduzido através da
interpretação, legitimando, assim, seu próprio procedimento205.
Cabe assim discorrer acerca do Direito como integridade,
uma vez que será determinante no modelo de atuação do juiz Hércules.
Dworkin cria um conceito de justiça como fórmula de redundância
do conceito de integridade, que ele prefere tratar como virtude da
integridade política. Esse, por sua vez, é um objetivo, um ideal político,
que deve ser perseguido pelo Estado através de um conjunto coerente
de princípios. Para tanto, as exigências da integridade são divididas
em dois princípios: os de integridade da legislação, que exigem que
os responsáveis pela criação da legislação a façam em julgamento, que
apela para que os que decidem o que é a lei a vejam como um todo e em

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São
205

Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 254-255.


Teoria do Direito e discricionariedade 138

conformidade com os princípios existentes, visando, assim, à unidade


e à coerência do sistema, e os da integridade não isoladamente206.
A integridade fará com que Hércules elabore, para cada lei que
aplique, uma justificativa que se amolde a ela e que tenha coerência
com o Direito vigente, considerando tanto as justificativas políticas
quanto as de princípio – porque, seguindo o modelo liberal americano,
a justificação pode e deve ser fundada em princípios políticos.
No entanto, a integridade enquanto conceito de justiça deve
ter por base a questão da equidade (cujo caráter é procedimental),
pois corresponde à formatação correta do sistema político – através
da distribuição correta de bens, de oportunidades e de recursos,
cumprindo, enfim, a ideia de igualdade207. A justificação da decisão em
Dworkin é de certo modo mais complexa que a usual, porque recorre
tanto a conexões com o sistema jurídico quanto a um sistema moral
e político de concepções sobre “justo”, o que leva ao incremento da
necessidade de uma formação mais eclética dos juízes e uma maior
riqueza tanto conceitual quanto filosófica nas discussões.
Note-se então que, ao determinar as práticas de Hércules,
Dworkin advoga a tese de que seria necessário mais do que analisar o
conjunto normativo que envolve o caso, mas também realizar o exame
de todas as questões fáticas que serão de extrema relevância para que
a decisão tomada pelo juiz esteja em consonância com a complexidade
do caso, ou seja, é necessário coerência em relação aos fatos e ao
ordenamento jurídico em si, bem comoo melhor enlace possível dos
fatos relevantes com o Direito aplicável. O autor postula ser necessário
examinar não só todas as normas pertinentes à questão, mas também
todos os fatos relevantes, gerando uma decisão que seja coerente com
o resto do ordenamento208. Por isso se diz que, para o pensamento de

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jeferson Luiz Camargo. 2. ed. São
206

Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 272-276.


207
Ibidem, pp.481-483.
208
Um dos exemplos mais elucidativos da obra de Dworkin acerca de tal assertiva é
o que compara a atuação do juiz Hércules à de um escritor romancista, que escreve
139 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Dworkin, nenhuma resposta correta não seria padrão:

No campo dos valores (e os fatos estão a eles relacionados),


Dworkin não diz que há sempre uma resposta correta. Ao
contrário, tampouco é o caso de que não haja uma resposta
correta. Então ele pensa que há respostas corretas para
todos os tipos de assuntos (ele pensa, como você e eu)
que é correto não torturar crianças, mas, em outros,
não há, como por exemplo na questão se o vinho tinto é
mais nobre do que o vinho branco. Não obstante do que
acima se disse segue-se que ele pensa que a questão de se
há uma resposta correta no campo avaliatório é, em si,
uma questão avaliatória. Mas muitos filósofos assumem
o ponto de vista em tais domínios, segue-se, por padrão,
da indeterminação – da capacidade de “nocautear”, como
requer a tese arquimediana – que não pode haver uma
resposta correta para esta matéria209.

uma obra literária em cadeia. Como Dworkin acredita que toda interpretação do
Direito é uma interpretação construtivista, no sentido de permitir uma atuação “criativa
dos juízes” para decidir os casos concretos como forma de atualização do próprio
ordenamento, não poderá desconsiderar as regras o ordenamento em si e nem as
interpretações que os outros juízes deram a casos semelhantes, sob pena de a “obra”
apresentar-se fragmentada, ou seja, sem coerência: “Decidir casos controversos
no Direito é mais ou menos como esse estranho exercício literário. A similaridade é
mais evidente quando os juízes examinam e decidem casos do Common Law, isto é,
quando nenhuma lei ocupa posição central da questão jurídica e o argumento gira em
torno de quais regras ou princípios de Direito “subjazem” a decisões de outros juízes,
no passado, sobre matéria semelhante. Cada juiz, então, é como um romancista na
corrente. Ele deve ler tudo o que outros juízes escreveram no passado, não apenas
para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para
chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira
como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo
escrito até então. Qualquer juiz obrigado a decidir uma demanda descobrirá, se olhar
nos livros adequados, registros de muitos casos plausivelmente similares, decididos
há décadas ou mesmo séculos por muitos outros juízes, de estilos,filosofias judiciais e
políticas diferentes, em períodos nos quais o processo e as convenções judiciais eram
diferentes. Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um
complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas e
convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro
por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem
a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em
alguma nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o
motivo das decisões anteriores, qual realmente é, tomado como um todo, o propósito
ou o tema da prática até então”. Cf. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio.
São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp.237-238.
209
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Trad .Luiz Carlos Borges. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009, pp. 159-160.
Teoria do Direito e discricionariedade 140

Ao investigar todas as normas que serão adequadas à aplicação,


considerando as questões fáticas que envolvem o caso (o que implica
justificar e argumentar o porquê da opção por determinadas normas),
outras normas deixam de ser aplicadas por não manterem coerência
com o ordenamento acerca das questões. Contudo, isso não afeta o
campo de validade dessas normas com relação ao ordenamento.Apenas
não serão aplicáveis, justamente em face das condições fáticas a serem
consideradas. Portanto, ainda que haja mais de uma resposta correta,
algumas, diante das circunstâncias argumentativas que envolvem a
comunidade, podem se mostrar mais adequadas.

1.2 Refletindo criticamente e ampliando as dimensões observáveis


do modelo

Expostos alguns elementos essenciais para o modelo de


atuação do juiz Hércules, pode-se dizer que a decisão judicial, nesse
modelo, apresenta uma resposta correta para cada caso que irá decidir
– como já dito, entre outras possíveis respostas corretas. Segundo seu
entendimento, sempre existirão princípios organizados coerentemente
no sistema jurídico vigente, capazes de fundamentar a decisão do
juiz. Como já referido anteriormente, esse princípio será construído
argumentativamente em conformidade com a práxis jurídica e social
da comunidade que vê o direito como integridade: a comunidade dos
princípios. Não é uma resposta correta antecipável – que se vislumbra
de antemão. Trata-se, isto sim, de uma resposta correta, porque é fruto
de uma prática reflexiva e criativa de produção do Direito.
Assim, o juiz não fica restrito a curvar-se ante o aguilhão
semântico ou ante o modo como outros juízes aplicam o Direito, uma
vez que os princípios lhe permitem ter uma visão crítica da História
e a integridade lhe indica de que forma deverá corrigir os erros
institucionais do passado, alterando o futuro. Na medida em que
está sempre vinculado e atua sobre uma “forma” de comunidade–
como um paradigma que lhe orienta–, a questão da complexidade de
141 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

decidir acerca do caso concreto e da amplitude dos seus significados é


significativamente reduzida nesse modelo, pois a resposta restringe-
se a um determinado “modelo” de decidir – modelo este um tanto
quanto simplificado se se considerar as possibilidades que uma leitura
interdisciplinar poderia proporcionar.
Essa alusão teve o intuito de apontar as bases que servirão
para os questionamentos acerca do modo de decidir o Direito na
perspectiva delineada por Dworkin. Assim, procurar-se-á levantar
alguns questionamentos a partir de uma visão mais crítica do modeloe,
assim,contribuircom o modo de os juízes decidirem matérias de
direitos fundamentais.
Dessa forma, pode-se apontar que o juiz Hércules deveria ter
especial atenção para os seguintes aspectos que surgem da necessidade
existencial de decidir, e decidir nos toca a uma dimensão de semântica210
histórica da linguagem: 1) os significados dos signos e sintagmas
utilizados no texto constitucional, uma vez que os significados não
aparecem explícitos, mas sim são frutos de uma semântica histórica
multifacetada; 2) se se constata, a partir da superação do paradigma
do sujeito-objeto pela reviravolta linguística, que o conhecimento só
é acessível a partir da linguagem, então os paradigmas de observação
do Direito devem ter pelo menos parte de suas preocupações
voltadas para a reconstrução e crítica dos significados; 3) a força dos
significados na psique social, pois as significações passam a abarcar
as expectativas e, consequentemente, o peso das suas respectivas
frustrações. Toda essa problemática encontra-se refletida na decisão
judicial, gerando consequências práticas, haja vista a unidade formada
entre conhecimento e linguagem211. Para Gadamer:

A partir deste modo semiótico do conhecimento resulta a imagem de um processo


210

de interpretação inteligentemente dirigido e no qual homens e palavras se educam,


reciprocamente, um ao outro. O mundo dos homens, redigido a nível semiótico,
reproduz e desenvolve-se por entre signos. Cf. HABERMAS, Jürgen. Textos e
contextos. Trad. Sandra Lippert Vieira. Lisboa: Instituto Piaget, 1991, p.25.

Wittgenstein entende a comunicação como a realização de um jogo em que


211

ambos conhecem as regras (formadas durante o operar do uso) e agem conforme


Teoria do Direito e discricionariedade 142

O mundo é a totalidade à qual se relaciona nossa


experiência linguisticamente esquematizada. Essa
plenitude de visões do mundo não significa a relativização
do mundo, pois o mundo não é diferente das visões nas
quais ele se manifesta. A constitucionalidade linguística
de nossa experiência de mundo está em condições de
abranger as relações vitais mais diferentes, inclusive as
mudanças que ocorre na vida humana. Assim, podemos,
por meio da decadência das palavras, tomar conhecimento
das mudanças de costumes e valores. A importância dessa
concepção é que a linguagem é capaz de tudo isso, porque
ela não é criação da razão refletente, mas efetiva a própria
relação ao mundo em que vivemos212.

No tocante à dimensão exposta, acredita-se que o estudo do


uso da linguagem permitiria chegar a algumas conclusões referentes
a um dos grandes embates entre os juristas: as palavras da lei podem
conter uma significação unívoca, resultando em sua impossibilidade?
O que na prática ocorre é uma falsa ilusão de univocidade existente
pela inalterabilidade sintática dos textos legais, combinada com uma
visão mecânica de Direito e sociedade, como se a alteração de uma
palavra da lei fosse capaz de alterar as práticas sociais e os sentidos
normativos de seu significado. Tal pretensão somente seria atingida a
partir da alteração dos significantes, ou seja, de seu modo de interpretar
e aplicar o Direito – o que pressupõe uma ação daqueles que lidam com
os signos: que os põem em uso e que têm de lidar com o paradoxo de
sua mutabilidade/imutabilidade social213.

modelos pré-estabelecidos na historicidade da comunidade, ou, melhor dizendo, nos


processos de aprendizado. Mas, mais importante, os jogos de linguagem permitem
a comunicação da linguagem com o mundo. Isoladamente, nada significa um signo.
“O que lhe confere vida? – Ele está vivo no uso. Ele tem em si o hálito da vida? – Ou
é o uso o seu hálito?” E a vida das palavras são seu uso: “o que é que designam
as palavras desta linguagem? – Como demonstrar o que designam a não ser pelo
modo como são usadas?”. Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas.
Petrópolis: Vozes, 2004, p.173.
212
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática da filosofia
contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996, p.239.

WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2.ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio
213

Fabris, 1995, pp. 67-68.


143 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

O Direito, sob a ótica de tal assertiva, não pode deixar de


considerar, no tocante aos conteúdos que abarca e às relações que
visa regular, que nada seria possível sem que houvesse entendimento
com respeito ao significado da fala, tanto em relação ao juiz quanto
em relação às partes. Quer dizer, a manifestação destes, no sentido de
que dizer algo é fazer algo214, deve atingir uma função, não somente do
significado, mas do papel da linguagem jurídica em si.
Isso implica adicionar mais uma possível crítica ao modelo: a
da pragmática da linguagem. É necessário ter categorias para observar
que tipo de ação social Hércules realiza a partir da linguagem, isto é, qual
o sentido dos atos de fala. Para tanto, é necessário estudar uma teoria
dos atos de fala, seu campo de racionalidade (adianta-se: comunicativa)
e sua função tanto geral (no caso dos atos de fala comunicativos,
gerar entendimento, isto é, planos de ação ou concordância acerca de
sentimentos sob a égide de significados socialmente partilhados sem
coação) quanto específica (isto é, dentro de um campo de racionalidade
prática).

É impossível falar de Direito sem fazer referência à


instituição imaginária da sociedade. A instituição do
social, como polo de imputação e atribuição, é estabelecida
segundo normas sem as quais não pode haver sociedade.
Assim, a grande parte das significações imaginárias
instituídas pode ser considerada como mediações
jurídicas. A validade efetiva de uma sociedade, seu imenso
edifício instituído, concerne ao Direito. Mas tudo isso não
é suficiente para nos aproximarmos da consideração do
Direito como significação imaginária instituída. Falta
a análise do papel que joga as significações imaginárias

214
Ressalta-se que “Austin denomina de ‘ato locucionário’ a totalidade da ação
linguística em todas as suas dimensões, e a teoria que trata desses atos sob essa
perspectiva de ‘pesquisa de locuções’.Cada procedimento linguístico é, pois, um
tipo de ação humana, isto é, um ato ilocucionário [...]. É considerando o próprio
ato locucionário que Austin descobre uma outra dimensão do ato de fala,a qual ele
denomina “ilocucionária”: no ato de dizer algo fazemos também algo. [...] Além disso,
executando atos locucionários e ilocucionários podemos realizar uma outra ação:
é a terceira dimensão dos atos de fala, que Austin denomina de ato ‘perlocutório’,
isto é, provocar, por meio de expressões linguísticas, certos efeitos nos sentimentos,
pensamentos e ações de outras pessoas. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de, op.
cit.,pp.157-160.
Teoria do Direito e discricionariedade 144

na própria mentalidade dos juristas; as significações


imaginárias que os mesmo juristas têm sobre a função
social do Direito e seu papel na organização da sociedade.
A autocompreensão dos juristas sobre o jurídico215.

Outra questão relevante a ser suscitada no tocante à prática


hercúlea diz respeito à forma das máximas de seu agir, que está baseado
em máximas de conduta216 amplamente semelhantes à razão prática
kantiana. A razão prática inaugura um campo de racionalidade voltada
à reflexão sobre a ação, e reflete um modo de pensar característico
da filosofia do sujeito. Ao se questionar sobre as questões morais
ou investigar as questões legais, e mesmo quando busca a coerência
do Direito através do princípio da integridade, o agir de Hércules
denota certo subjetivismo, pois, apesar de se mostrar extremamente
voltado para a comunidade, acaba por não dialogar com ela, agindo
individualmente – apenas através de uma leitura subjetiva dos fatos,
do ordenamento e das decisões passadas, como se conhecesse todas as
questões morais da sociedade sem sequer ouvi-la.
Kant, através do paradigma da filosofia da consciência,
acreditava que toda a prática deveria ter a pretensão de uma
universalidade abstrata – e, por isso, um fim em si mesma. Essa
moral universal estaria presente no ser humano por ser dotado de
razão. O conteúdo ético da “moral universal” – indissociável da
ideia de autonomia e liberdade - estaria acessível ao ser humano
individualmente. A noção de universalidade kantiana do sujeito

WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2.ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio
215

Fabris, 1995, p. 119.


216
Note-se aqui uma certa tradição alemã entre “união de conhecer” e “vontade de
conhecer”, a qual se reflete nas condutas. Para Kant, conhecimento e ação caminham
juntos. De certo modo, a Teoria dos Atos de Fala representa de modo mais moderno
e sofisticado dessa construção. Por outro lado, a ideia de máximas da ação é
interessante porque apresenta critérios de racionalidade prática que não se confundem
com uma perspectiva de método. Desse modo, não se deve confundir máximas da
racionalidade prática (que podem ser extraídas dos escritos de Dworkin e Günther,
por exemplo) com métodos do Direito, os quais representam uma tecnificação e um
velamento do caráter histórico do Direito.
145 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

cognoscente pode-se traduzir através de seu imperativo categórico:


“age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que
ela se torne universal”217.
Como é sabido, a contemporaneidade supera a tradicional
forma de sujeito/objeto da filosofia da consciência218, na medida
em que se “descobre” que o conhecimento só é acessível através de
uma linguagem compartilhada por sujeitos que possuam biografias
individuais e coletivas. A razão que deveria guiar Hércules é a de um
movimento que começa por um idealismo transcendental, passando
por uma linguagem ordinária e por uma matriz historicista até chegar
a uma retomada da razão a partir da segunda geração da escola
de Frankfurt – com Habermas e sua razão comunicativa e Apel e
sua retomada da transcendentalidade da filosofia. Com isso, suas
pretensões deveriam conquistar uma universalidade que não perdesse
vínculo com a história. Assim:

A pragmática transcendental emerge do contexto da


crise da razão, e sua pretensão fundamental é responder
os desafios que se levanta a partir desta crise. Por isso,
seu cerne vai consistir em mostrar que os relativistas
e céticos sempre pressupõem a verdade que negam:
eles não refletem sobre o que fazem ou supõem ter de

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos.


217

São Paulo: Martin Claret, 2005, p.51.


218
Uma teoria da linguagem pode levar em conta a autorreferência e a forma
da proposição e considerá-las equivalentes, a partir do momento em que ela
não se orienta mais semanticamente pela compreensão das proposições, mas,
pragmaticamente, pelos proferimentos através dos quais os falantes se entendem
mutuamente sobre algo. A fim de entender-se sobre algo os participantes não precisam
apenas compreender as proposições utilizadas nos proferimentos: eles têm de ser
capazes de se comportar uns com relação aos outros, assumindo o papel de falantes
e ouvintes – no círculo de membros não participantes de sua (ou de uma) comunidade
linguística. As relações recíprocas e interpessoais determinadas pelos papéis dos
falantes tornam possível uma autorrelação que não precisa mais pressupor a relação
solitária do sujeito agente ou cognoscente sobre si mesmo enquanto consciência
prévia. A autorreferência surge de um contexto interativo. Cf. HABERMAS, Jürgen.
Pensamento pós-metafísico:estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio
de Janeiro: Tempo Universitário, 1990, p.33.
Teoria do Direito e discricionariedade 146

fazer para poder afirmar o que afirmam. No entanto,


ele vai fazer isso incorporando, para dentro da reflexão
sobre os fundamentos, a dimensão que essa crise
da razão terminou pondo em relevo; a dimensão da
intersubjetividade. A filosofia transcendental elaborada
por Apel vai ser, como ele mesmo diz, uma transformação
da filosofia transcendental reflexiva da intersubjetividade.
Isso significa dizer que aqui vai começar a explicitar-se
a reviravolta característica da filosofia contemporânea:
não mais a subjetividade (filosofia moderna), mas a
intersubjetividade se mostra como o princípio último de
filosofar219.

Sem adentrar propriamente na problemática da


intersubjetividade na relação do sujeito e das condições linguísticas
da problemática da comunicação, impende retomar a ideia kantiana
acerca da pretensão de universalidade. Primeiro, da ação instrumental
(fim em si mesmo) do sujeito e, segundo, da universalidade do discurso
e da pretensão de acordos ou consensos. Isso porque a subjetividade
é algo que considera e privilegia a ideia da diversidade, logo, uma
vez que decidir denota a noção de unidade, a intersubjetividade será
imprescindível em face da participação do outro e da garantia de que
todos poderão participar do processo.
Dessa forma, a decisão a ser tomada pelo juiz Hércules para
que atinja a máxima da pretensão de universalidade como forma de
identificação do sujeito, atendendo, assim, ao critério de validade220

219
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia
contemporânea. São Paulo: Loyola, 2001, pp.253-254.
220
Aqui quer se atentar para a distinção necessária entre conceitos de verdade e
validade. A validade das normas “consiste” no reconhecimento universal que as normas
ganham, porque as exigências de validez morais falham em relação às conotações
ontológicas que são características para as exigências de verdade. A orientação para
o alargamento do mundo social, isto é, a inclusão sempre mais ampla de exigências
de verdade, se coloca no lugar dos referentes no mundo objetivo. A validez de uma
afirmação moral temo sentido epistêmico de que seria aceita sob condições ideais de
justificação. Entretanto, quando “correção moral” esgota seu sentido de aceitabilidade
racional, diferentemente de “verdade”, nossas convicções morais devem permitir
finalmente, a partir do potencial crítico do autoultrapassamento e da descentralização
que é construída com a “perturbação”, uma antecipação idealizadora da prática da
argumentação – e na autocompreensão dos seus participantes. Cf. HABERMAS,
Jürgen. Agir comunicativo e razão descentralizada. Trad. Lúcia Aragão. Rio de
147 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

(no sentido de que as únicas normas que podem reclamar a validade


são aquelas que podem obter a anuência dos participantes diante do
discurso prático em si), há que considerar as lições de Habermas quando
se refere aos princípios do discurso como pressupostos fundacionais
para a chamado agir comunicativo, os quais se manifestam tanto em
critérios procedimentais como em máximas de um agir intersubjetivo.
Esse agir comunicativo, no qual Hércules precisa estar inserido
em uma teoria discursiva da ética, consiste em uma fundamentação221
que defende teses universalistas. Fazendo-se uma analogia com o
imperativo categórico de Kant e da filosofia da consciência, poder-se-
ia dizer que é como se ele descesse ao nível de transformar-se em um
princípio da universalização “U”, que, nos discursos práticos, passa a
assumir o papel imprescindível de regra de argumentação – em uma
argumentação que poderia se dar de forma universal. Ao mesmo tempo,
o princípio de universalização ‘U’ assume, nos discursos práticos, o
papel de uma regra de argumentação (obviamente deve existir um agir
orientado ao entendimento mútuo, no sentido de coordenar as ações):
A esses argumentos não se pode atribuir o sentido
apriórico de uma dedução transcendental no sentido
da crítica kantiana da razão; eles fundamentam apenas
as circunstâncias de que não há nenhuma alternativa
identificável para a “nossa”maneira de argumentar.
Nessa medida, a ética do discurso também se apoia, como

Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 70.


221
Assim, mais uma ponto crucial no debate proposto é a distinção apresentada por
Günther acerca dos discursos de fundamentação e aplicação: “Para a fundamentação
é relevante exclusivamente a própria norma, independentemente de sua aplicação em
cada uma das situações. Importa se é do interesse de todos que cada um observe a
regra, visto que uma norma representa o interesse comum de todos e não depende
de sua aplicação, mas dos motivos que conseguimos apresentar para que ela tenha
de ser observada por todos como uma regra. Em contraposição, para a sua aplicação
cada uma das situações é relevante, não importando se a observância geral também
contempla o interesse de todos. Em vista de todas as circunstâncias especiais, o
fundamental é se e como a regra teria de ser observada em determinada situação.
Na aplicação devemos adotar, ‘como se estivéssemos naquela situação’, a pretensão
da norma de ser observada por todos em toda situação (isto é, como uma regra), e
confrontá-la com cada uma de suas características. Cf. GÜNTHER, Klaus. Teoria da
argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy, 2004,
pp.69-70.
Teoria do Direito e discricionariedade 148

as outras ciências reconstrutivas, exclusivamente em


reconstruções hipotéticas, para as quais temos que buscar
confirmações plausíveis – começando, naturalmente, no
plano em que elas concorrem com outras teorias morais.
Mas, além disso, uma teoria como essa também está
aberta a – e até mesmo depende de – uma confirmação
indireta por outras teorias concordantes222.

A argumentação de Hércules teria, portanto, de ultrapassar os


marcos de sua facticidade. Se se quer uma reflexão mais sofisticada, esta
terá de passar pelo teste do princípio da universalização. Hércules deve
saber disso, e apõe, em sua reflexão, uma máxima de fundamentação
que faz com que seu pensamento tenha parâmetro crítico para exame
de seus pré-juízos e seu modo de ser.
A busca do argumento que convence passa por uma
perspectiva reflexiva que envolve a problemática das proposições
assertóricas e não assertóricas. Enquanto que em problemas referentes
à verdade (assertóricas) é necessário, além de um vínculo com um
mundo objetivo, uma situação de fala que se assemelhe à ideal, nas
questões práticas esses critérios são menos rigorosos.Porém, ainda
assim pautam os parâmetros de uma decisão racional e capaz de gerar
emancipação. Esses parâmetros envolvem uma relação com o local
adequado e apropriado para a tomada de decisão: um procedimento
democrático como o centro para a discussão, a fim de que se configure
através da atuação intersubjetiva dos sujeitos envolvidos. Afinal, a
Constituição223 é uma construção diária cuja concretização não está
adstrita aos operados jurídicos: estende-se à participação social e
cidadã dos sujeitos conscientes e construtores dos seus direitos e
deveres na sociedade democrática. Assim, o paradigma norteador da

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2.ed. Rio de janeiro:


222

Tempo Universitário, 2003, pp. 143-144.


223
Dessa perspectiva, a autocompreensão ético-política do cidadão de uma
coletividade democrática não surge como elemento histórico-cultural primário que
possibilita a formação democrática da vontade, mas como grandeza de fluxo em um
processo circular que só se põe em movimento por meio da institucionalização jurídica
de uma comunicação entre cidadãos de um mesmo Estado. Cf. HABERMAS, Jürgen.
A inclusão do outro. Trad. Georg Sperber. São Paulo: Loyola, p. 183.
149 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

reconstrução do modelo a que este trabalho se propõe é o paradigma do


Estado Democrático de Direito – uma tradição histórica diferenciada
do commonlaw.
Um modelo de juiz ideal precisa ver a Constituição como algo
além de uma mera ordem jurídica que deve conduzir o exercício dos
cidadãos nos seus direitos e obrigações para com a sociedade: necessita
perceber que a Constituição é a expressão cultural de um povo –
sua autorrepresentação ética, seu legado cultural e também o que
fundamenta suas esperanças e desejos para o futuro. Pode-se dizer que
a realidade jurídica é apenas uma parte da Constituição; a autêntica
Constituição é composta pela letra viva, que é resultado da vivência dos
seus intérpretes na sociedade aberta – como expressão e instrumento
mediador da cultura e depósito de vivências, saberes, experiência para a
formação das identidades atuais e da geração futura. Ou seja, o modelo
de Hércules mostra-se fechado aos demais intérpretes da constituição.
A cultura constitucional é o somatório de toda a tradição das
experiências, vivências, esperanças e possibilidades reais de realização
futura numa escala de valores e expectativas tanto dos seus cidadãos
quanto das associações e órgãos estatais na tarefa de interpretar a
Constituição nessa sociedade aberta e pluralista. Qualquer modelo de
decisão judicial necessitaria contemplar essa perspectiva224.
Entende-se que o modelo do juiz Hércules não fez distinção
quanto às matérias de decisão, haja vista que se acredita que decidir em
matérias de direitos fundamentais tende a ser uma “tarefa diferenciada”
em face de sua derradeira vinculação ao conceito de democracia – a
co-originariedade antes trabalhada por Habermas. Além disso, pode
ser considerado como garantia e instrumento do princípio democrático
da autodeterminação de um povo em que cada indivíduo, ciente de
seu papel de participação e reconhecendo seu direito de igualdade na
construção comunitária e no processo político, pode ser considerado
como fundamento funcional da ordem democrática. Hércules terá que

HÄBERLE, Peter. Teoria de la Constituición como Ciencia de la Cultura. Trad. Emilio


224

Mikunda. Madrid: Tecnos, 2000, pp. 33-36,passim.


Teoria do Direito e discricionariedade 150

sair do Olimpo de sua corte e refletir acerca do papel da Constituição


na cotidianidade do cidadão. A liberdade de participação política que
possibilita ao cidadão interferir no processo decisório constitui um
direito capaz de influenciar os demais direitos fundamentais – e sua
eficácia – na sociedade.
É dessa forma que o discurso da pós-modernidade supera
a ideia de que as questões de interpretação e de aplicação do direito
devam ficar restritas unicamente aos órgãos jurisdicionais. O
pluralismo225 característico deste momento histórico requer ampla
discussão e debate acerca dos conteúdos, dos conceitos e das práticas
da comunidade que nos afetam coletiva e individualmente. Motivo pelo
qual Häberle entende que há duas formas de interpretação: sentido lato
e estrito. Além disso, não deixa de reconhecer a importância das duas
no processo de concretização da Constituição, mas chama a atenção
ao risco de se ficar adstrito apenas às formas tradicionais, no sentido
de enrijecer a Constituição junto ao pluralismo cultural, estratificando
seu próprio desenvolvimento. Por isso, devem as interpretações em
sentido lato e em sentido estrito coexistirem, muito embora considere
a segunda de maior importância, podendo englobar a primeira
no processo interpretativo. Mas sempre dependerá da jurisdição
constitucional fornecer a última interpretação da constituição, que,
para ser legítima, deve estar de acordo com a primeira.

225
“[...] Uma sociedade pluralista só pode subsistir enquanto sociedade pluralista se
for, também, uma sociedade tolerante. Pois somente em uma sociedade tolerante é
possível a coexistência de projetos distintos sobre realizar a vida boa e, mais que isto,
somente em uma tal sociedade é possível que tais projetos se atualizem na maior
medida possível. O pluralismo não é, de fato, uma mera coexistência de concepções
divergentes, mas uma convivência desses projetos, realizados e atualizados da melhor
forma exequível. Se um projeto não puder ser realizado de forma alguma, por limitações
impostas pelo grupo que assume o poder central, então os projetos minoritários estão
fadados a desaparecer e, com eles, o próprio pluralismo [...]. Evidentemente, a defesa
do pluralismo é uma característica do Estado Democrático de Direito, paradigma que
a Constituição do Brasil prescreve não só como modelo de Estado, mas também
como um projeto para a sociedade”. Cf. GALUPPO, Marcelo Campos.Hermenêutica
Constitucional e Pluralismo. In: Hermenêutica e Jurisdição Constitucional:estudos em
homenagem ao professor José Alfredo de Oliveira Baracho. Belo Horizonte: Del Rey,
2001, p. 53.
151 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Häberle, desse modo, satisfaz de maneira mais detalhada os


parâmetros de controle procedimentais defendidos por Habermas.
Este entende que devem existir meios de controle e interferência dos
fluxos comunicativos desde a esfera pública até a decisão final, em um
procedimento regido pela racionalidade comunicativa. Esses controles
são efetivados no sentido de formação de conteúdos corretos, isto
é, conforme a intersubjetividade e história dos participantes, bem
como a formação de solidariedades e identidades culturais através do
pertencimento a uma comunidade que se rege por direitos e deveres e
que permite a existência de projetos de felicidade individuais e coletivos
que se comunicam e se constroem democraticamente. Hércules,
evidentemente, é alguém que sabe da importância do procedimento
democrático e valoriza esse procedimento, fomentando-o e levando-o
em conta em sua decisão.
Partindo-se da constatação de que o juiz está imerso em um
mundo de direito cultural, pluralista e democrático, sob a bandeira da
realização de direitos fundamentais, a contribuição da hermenêutica
de Heidegger e Gadamer seria indispensável à discussão acerca da
questão da historicidade da compreensão, assim como o acontecer dos
atos de compreensão e interpretação.
Sob o aspecto da historicidade da compreensão, fundamental
para a tomada da decisão judicial, nota-se que o ser-aí, inserido no
mundo (Dasein226), aponta para um fundamento da compreensão
que não se baseia na subjetividade, mas sim na ideia de facticidade
do mundo e na historicidade da própria compreensão, a partir da
autenticidade do ser – uma revelação ontológica:

Heidegger foi mais longe, defendendo que toda


compreensão é temporal, intencional, histórica.

226
Nesse sentido, Hércules deve se mostrar um ser que vive a presença.No contexto
de sua obra, pode-se dizer que viver a presença é questionar a si próprio, a sua
tradição e, consequentemente, o próprio Direito. Daí sua autenticidade consigo e com
sua própria história – a história terá o condão de mostrar a autenticidade do ser.
HEIDEGGER, Martin. Ser e o tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante. Rio de janeiro:
Vozes, 2006, pp. 42-43.
Teoria do Direito e discricionariedade 152

Ultrapassou concepções anteriores ao encarar a


compreensão não como um processo mental, mas um
processo ontológico; não como um estudo de processos
consciente e inconscientes, mas como uma revelação
daquilo que é real para o homem [...]. Heidegger veio
provar que a compreensão é um passo prévio indicativo
do ato de fundamentação – revelação da realidade227.

Em tal perspectiva, o pano de fundo do paradigma em que


o juiz está submerso é imprescindível para sua tarefa de consciência
histórica228. No entanto, quando Dworkin critica a discricionariedade
judicial, atuando de forma a rejeitar todas as posições pessoais do
juiz, que deve decidir com base em questões legais e valores políticos,
demonstra sua superação com relação à fórmula sujeito/objeto – motivo
pelo qual a hermenêutica defende a ideia de que a resposta certa não
está no juiz /intérprete enquanto sujeito do esquema sujeito/objeto,
mas na concepção que baseia sua compreensão na intersubjetividade229.
Hércules terá de inserir não só em uma nova tradição jurídica, mas
também filosófica e epistemológica, representada na reviravolta

PALMER, Richard E. Hermenêutica. Trad.Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa:


227

Edições 70, 2007, p. 145.


228
Nesse aspecto, não se pode deixar de referir a questão da cura, apresentada no
capítulo sexto da obra Ser e o tempo, quando expõe a cura como uma crítica aos
pré-juízos em favor da coisa mesma, como cultivo de si mesmo e da coisa. Dessa
forma, certamente a cura pode ser entendida como o próprio cuidado que o Hércules
deve ter com o próprio direito – a partir de própria autenticidade, “porque, em sua
essência, o ser-no-mundo é cura.Pode-se compreender, nas análises precedentes, o
ser junto ao manual como ocupação e o ser como copresença nos encontros dentro
do mundo como preocupação. O ser-junto-a é ocupação porque, enquanto modo de
ser-em, determina-se por sua estrutura fundamental, que é a cura. A cura caracteriza
não somente a existencialidade separada da facticidade e decadência, como também
abrange a unidade dessas determinações ontológicas. A cura não indica, portanto,
primordial ou exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo. A expressão
“cura de si mesmo”, de acordo com a analogia de ocupação e preocupação, seria uma
tautologia. A cura não pode significar uma atitude especial para consigo mesma porque
essa atitude já se caracteriza ontologicamente como anteceder-a-si-mesma; nessa
determinação se acham também colocados os outros dois momentos estruturais da
cura, a saber, o já ser-em e o ser-junto a”. Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e o Tempo.
Trad. Márcia Sá Cavalcante. Rio de Janeiro: Vozes, 2006, pp. 42-43.
229
STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso:Constituição, Hermenêutica e Teorias
Discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp.93-95.
153 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

linguística. Isso vai impor a Hércules uma profunda revisão de seu


modo de pensar o Direito em interlocução com a comunidade.
Outra questão pertinente que merece menção é o fato de
que as decisões passadas que visam guiar, ou melhor, reconstruir as
decisões para o futuro, tem diferentes graus e formas de solução – no
caso de regras e no caso de conflitos. Na perspectiva de Dworkin, o juiz
sempre saberia “escolher” o melhor princípio diante do caso concreto.
Contudo, o caso concreto também depende de argumentos e discursos
que não são devidamente orientados, ou seja, reclamam pretensões
individuais, as quais certamente terão reflexo nos pré-juízos formativos
do processo de compreensão.
Dito isso, indaga-se se efetivamente existe total
incompatibilidade em entrelaçar-se a dogmática através das regras de
argumentação como forma de decidir – com critérios de validade –
e explicitar os argumentos que possam servir, senão para a resposta
“certa” em termos de uma lógica ou uma ontologia simples (não
hermenêutica), para permitir e facilitar o controle intersubjetivo das
decisões através da argumentação jurídica230 - que deve ocorrer da
forma mais democrática, propiciando o debate público acerca dos

230
A ideia de discurso prático geral ganhou importância na tese de Alexy, a qual surgiu
como resposta à crítica de Habermas, que afirmava não ser possível o discurso
jurídico ser um caso especial do discurso prático moral, já que o discurso moral, no
sentido de Habermas, se refere à universalização, e somente à universalização, de
normas, enquanto o discurso jurídico “precisa manter-se aberto a argumentos de
outras procedências, especialmente a argumentos pragmáticos, éticos e morais. Toda
proposição jurídica erige necessariamente uma pretensão de correção. Correção
significa aceitabilidade racional, apoiada em argumentos. Uma proposição que
se pretende correta nada mais é do que uma proposição que pode ser justificada
racionalmente através de uma argumentação racional e não arbitrária e despojada de
valor, ou seja, meramente subjetiva. Implícita na afirmação de que toda proposição
jurídica necessariamente erige uma pretensão de correção está algo mais além de
uma disputa acerca do caráter científico da jurisprudência”. Evidentemente, Alexy não
acredita que o juiz possa se despojar de toda a carga pessoal na fundamentação.
Há, por certo, na tomada de decisão, uma mistura entre a sua impressão inicial
com a necessidade de justificar a decisão. Mas essa justificação não se reduz a um
esclarecimento da psique do juiz. Ela deve ser feita à luz do ordenamento jurídico
vigente e vista como uma tentativa de ser a resposta mais adequada ao caso. Cf.
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: teoria do discurso racional como
teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2007, pp. 259-261.
Teoria do Direito e discricionariedade 154

conteúdos não justificados, em conformidade com a historicidade, com


a semântica, com a universalidade e com a autenticidade, por exemplo.
Pensar em um juiz mitológico é também pensar em
todas as dimensões que Hércules deve ser capaz de visitar e revisitar.

1.3 É possível refletir a partir do modelo?

A investigação da complexidade que envolve a decisão judicial


e suas formas de controle demonstra a verdadeira preocupação com a
busca de uma forma de decisão que contemple a dogmática jurídica
e, ao mesmo tempo, busque o ideal de justiça a partir de uma análise
dos casos. O tema é de suma importância, haja vista as inúmeras
decisões que demonstram cotidianamente o despreparo do poder
judiciário em lidar com demandas cada dia mais complexas – matérias
progressivamente discutidas nos tribunais, nas academias e na mídia
em geral.
Assim, nenhuma conclusão definitiva poderia ser extraída
de tal estudo, exceto a de que há muito a se discutir e pensar acerca
de como decidir em matéria de umDireito que contemple todos os
critérios a serem discutidos e considerados pelo juiz no momento da
decisão judicial, pois sequer poder-se-ia afirmar que a construção de
um modelo seria uma condição ideal.
Contudo, pode-se perceber que diferentes perspectivas,
como a semântica, a pragmática da linguagem intersubjetiva e a
hermenêutica, seriam de grande contribuição ao modelo do Hércules
mitológico, e que qualquer modelo que pretenda guiar juízes para
decidir o Direito não poderia deixar de considerar as contribuições
de cada um dos paradigmas expostos. O que certamente não nos
conduziria a uma forma correta de decidir, mas sim de condições
argumentativas clarificantes em relação aos caminhos percorridos,
capazes de permitir um controle mais intersubjetivo e democrático dos
critérios selecionados para decidir o Direito.
155 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

A pergunta que se impõe ao analisar os espaços da


discricionariedade nas referidas obras é: existe espaço para
argumentação moral? Pensando na construção de tal resposta,
revisitamos tais obras com o intuito de responder a essa indagação.

2 EXISTE ESPAÇO PARA UMA ARGUMENTAÇÃO QUE


CONSIDERE “ASPECTOS MORAIS” NA DECISÃO?

Essa é uma indagação que suscita, no mínimo, a falta de


aprofundamento teórico que subjaz no meio acadêmico e que se
reproduz largamente na práxis jurídica, em três níveis: o primeiro, a
eterna confusão da Teoria do Direito com o próprio positivismo jurídico;
a segunda, a confusão de que o Direito não comporta argumentos
morais; a terceira, a insistência em negar a força da argumentação
jurídica, de forma que é a única questão que pode ser “controlada”
na decisão judicial. Em pleno tempo de constitucionalismo – que, em
tese, nos remete a uma concepção mais apurada democraticamente,
falando em termos de interpretação e aplicação constitucional–, tais
problemas não apenas merecem como necessitam ser superados.
Assim, buscaremos investigar o espaço que a argumentação
moral encontraria na teoria positivista, através da análise do espaço
da discricionariedade em Kelsen e Hart, especialmente por sua
representatividade enquanto normativismo. Em um segundo momento,
denunciaremos a crítica de Warat a esses subterfúgios positivistas,a fim
de negar a carga moral da decisão judicial, compreendendo-se, então,
que a Teoria do Direito vai além da teoria que o positivismo constrói
para o Direito enquanto “teoria pura”. Finalmente, utilizaremos a crítica
americana de Dworkin e Posner (sem desconhecer as significativas
diferenças entre os dois pensadores norte-americanos) para denunciar
o quanto na verdade a Teoria do Direito encontra-se impregnada pela
teoria moral.
Teoria do Direito e discricionariedade 156

2.1 Lembrando o que “aprendemos” com o positivismo para


respondera essa pergunta

Antes propriamente de discutir as questões morais231 a partir


de Kelsen232e Hart233, importa esclarecer o porquê de se afirmar que
a Teoria Geral do Direito costuma ser confundida com o próprio
dogmatismo. Sabe-se que o saber dogmático é comumente caracterizado
por um saber dotado de preceitos técnicos e jurídicos:

As abordagens juridicistas são eminentemente


analíticas, voltadas aos aspectos empírico-lógicos
das normas. O normativismo, apesar do fracasso das
tentativas purificadoras de Hans Kelsen, continua
sendo a matriz teórica preferida pelos juristas. Apenas
foram acrescentados alguns pressupostos teóricos
jusnaturalistas, como a necessidade de justiça social
e a defesa dos Direitos Humanos [...], para responder
à questão da legitimidade. Ou seja, a epistemologia
jurídica dominante utiliza um instrumental positivista,
fundamentado em um jusnaturalismo critico, mas que,
em última instância, privilegia a doxa – o senso comum
teórico dos juristas.234

Não restam dúvidas de que, para a dogmática, há uma


tendência em associar o Direito com um tipo de produção técnica,
em que, dentro dessa ordem, os juristas podem explorar diferentes
combinações para determinação operacional de comportamentos
juridicamente possíveis. Nesse sentido é que os pressupostos

Diga-se que aqui, quando se utilizar questões ou argumentação moral, não se quer
231

adentrar na polêmica de definição moral, mas sim apenas referir-se a argumentos que
são reiteradamente criticados por “não ser jurídicos”, ou seja, que carregariam uma
gama de subjetividade do juiz em suas fundamentações e decisões. Logo, a questão
central é a discussão de como a dogmática tenta encobrir que estas questões não
apenas estão presentes como são partes necessárias do próprio Direito.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
232

Paulo: Martins Fontes, 1998.


233
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961.

ROCHA, Leonel Severo. Epistemologia Jurídica e Democracia. São Leopoldo:


234

Unisinos, 1998, p. 53.


157 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

positivistas, especialmente os kelsenianos, apontam que um sistema


escalonado de normas seria capaz de subtrair qualquer juízo de
valoração de uma questão iminentemente jurídica.
Contudo, se é problema extremamente complexo a definição
de o que é Direito, igualmente problemática é a sua possível separação
enquanto “ciência”. Jogados de lá para que cá nessa problemática
de definição do objeto, sem direção, os juristas pautam sua ação nos
velhos moldes do dogmatismo:

[...] A dogmática jurídica partiria do pressuposto de que


é possível descrever a ordem legal sem nenhum tipo de
referência de caráter sociológico, antropológico, político e
econômico. Portanto, se apresenta como uma construção
teórico-objetiva e rigorosa, uma elaboração conceitual do
Direito vigente sem nenhuma indagação acerca de sua
instância ideológica e política; uma mera ciência lógico-
formal dedicada ao estudo exclusivo das normas legais.
O texto legal é o dado imediato do qual parte o jurista em
seu trabalho científico.235

A Teoria do Direito irá contemplar essas questões – como a


definição do Direito – ao analisá-lo como um todo comum, estudando
os princípios e diretrizes que o orientam. O termo “Teoria do Direito”,
não muito conhecido, é distinto da Filosofia do Direito, como esclarece
Posner236. Para ele, “a Teoria do Direito inclui a Filosofia do Direito,
mas é mais ampla que esta, pois inclui também o uso de métodos não
jurídicos de investigação para elucidar questões jurídicas específicas.”237
Não há como não ser remetido aos diferentes enfoques com
que a ciência jurídica pode ser observada, como bem ressalta Ferraz
Junior238:“É óbvio que o Direito, enquanto objeto de conhecimento, há

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da


235

modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 16.

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


236

Fontes, 2012, p. 27.


237
Ibidem, p. 143.
238
Ibidem, p. 27.
Teoria do Direito e discricionariedade 158

que ser visto de forma diferente se o enfoque é dogmático ou zetético”.


É a zetética um dos principais empecilhos na confusão
entre a Teoria do Direito e o puro dogmatismo, pois implica uma
perda significativa de questões epistemológicas fundamentais. Como
bem leciona Warat239,“a zetética vem para questionar os dogmas
estabelecidos; a investigação zetética parte de evidências, sejam elas
frágeis ou plenas”. Portanto, para ela, uma premissa será evidente ao
estar relacionada com a verdade. Ela corresponde às áreas que não têm
apenas o Direito como objeto, mas também a Sociologia, a Filosofia ou
a Psicologia.
Sendo assim, para fins de responder à indagação inicial, a
Teoria do Direito, enquanto observação mais complexa, não se resume
ao dogmatismo – como uma produção “segura” do positivismo em que
o Direito passou a Ciência Jurídica.
O normativismo enquanto forma de observação sobre o que
é o Direito, mais precisamente a personificação que foi lhe outorgada
pelo positivismo jurídico kelseniano através de sua Teoria Pura, afastou
qualquer possibilidade da Moral como fundamento para a observação
do Direito. Se o critério de validade de uma norma é sempre outra norma
disposta no sistema escalonado hierarquicamente, isola-se o Direito
das demais influências como Moral e Política.Como se depreende do
pensamento de Kelsen, o mesmo buscou, desde sua base, instituir à
ciência jurídica um método e um objeto próprio (Direito Positivo em
geral) e, dessa forma, ao apartar-se do sincretismo metodológico,
permitir ao jurista uma autonomia científica que possibilitasse
descrever o Direito, limitado à análise do mesmo, como sendo a única
realidade jurídica – e não confundindo-se com o que ele deve ser:

Há mais de duas décadas que empreendi desenvolver uma


teoria jurídica pura, isto é, purificada de toda ideologia
política e de todos os elementos da ciência natural, uma
tória jurídica consciente de sua especificidade porque

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da


239

modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.


159 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

consciente da legalidade específica do seu objeto. Logo,


desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência,
que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por
completo em raciocínios de política jurídica, à altura
de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito.
Importava explicar, não as suas tendências endereçadas
à formação do Direito, mas as suas tendências
exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e
aproximar tanto quanto possível os seus resultados do
ideal de toda ciência: objetividade e exatidão.240

Em síntese, situando-se o Direito no plano do “dever ser”, sob


o prisma do método purificador, será necessário diferenciá-lo tanto
do plano ontológico (ser) como também de outros fenômenos que se
incluem no plano do “dever ser”, mas que, contudo, não se confundem
com o mesmo.
O positivismo kelseniano nos ensinou que o afastamento das
questões morais em relação às questões jurídicas seria capaz de criar
um campo seguro, no qual uma decisão jurídica estaria distante das
questões jogadas à moral. E, nesse sentido, o “dever ser” é um conceito
fundamental para compreender o que é uma norma e o porquê de esta
norma não pode ter seu conteúdo, que é jurídico, confundido com o
conteúdo moral. Bem ressalta Barzotto241que, para Kelsen242, a norma
consiste no sentido de “dever ser” de um ato humano intencionalmente
dirigido à conduta de outrem, porém esse sentido, para apresentar-se
como jurídico, deve ser objetivo. Logo, o “dever ser” (Sollen) é o sentido
subjetivo de qualquer ato de vontade dirigido à conduta de outrem.
Ressaltamos, contudo, que nem todo ato de vontade tem como sentido
uma norma, pois é necessário que este sentido subjetivo coincida com
o sentido objetivo. Nesse caso, estaremos diante de uma norma.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
240

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 1.

BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução


241

a Kelsen, Ross e Hart. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.


242
KELSEN, op. cit.
Teoria do Direito e discricionariedade 160

É justamente nessa atribuição de sentido objetivo que a


contrariedade ou não de uma norma jurídica em relação a moral pouco
importa enquanto critério de jurisdicidade:

[...] A exigência de separar o Direito da Moral e a


Ciência Jurídica da Ética significa que a validade das
normas jurídicas positivas não depende do fato de
corresponderem à ordem moral, que, do ponto de vista
de um conhecimento dirigido ao Direito Positivo, uma
norma jurídica pode ser considerada válida ainda que
contrarie a ordem moral. [...] O que sobretudo importa,
porém – o que tem que ser sempre acentuado e nunca será
o suficiente – é a ideia de que não há uma única Moral,
“a” Moral, mas vários Sistemas de Moral profundamente
diferentes uns dos outros e muitas vezes antagônicos,
e que uma ordem jurídica positiva pode muito bem
corresponder [...] às concepções morais de determinado
grupo [...] e contrariar ao mesmo tempo as concepções
morais de outro grupo ou camada da população [sic].243

Se por um lado, para o autor, existe uma pluralidade de


sistemas morais e, portanto, relativos, essa relatividade torna iníqua
a legitimação da Ciência do Direito pela ordem moral, na medida em
que tal valoração dependeria do padrão moral que seria estabelecido.
Contudo, no momento em que concebe o Direito como um sistema
de normas que regula a conduta humana, para este modelo a norma
jurídica torna-se o elemento central do ordenamento jurídico, sendo-
lhe conceito imprescindível para sua normatividade a validade – e não
os padrões morais.
Voltando ao raciocínio anterior: se uma norma está em
conformidade com a norma superior e há um órgão legítimo que a
autoriza, o “dever ser” jurídico não deve “explicação” à ética – ao “dever
ser” moral. O que não quer dizer que o autor rejeite a legitimidade da
moral ou da religião, embora lhe importe a cisão entre aquelas e o Direito,
de tal forma a tornar o Direito uma ciência jurídica independente de

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
243

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 77.


161 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

fatores externos, pois é sempre delimitado intranormativamente.

Vale vislumbrar a crítica de Bobbio:

De fato: a) um ordenamento jurídico não é necessariamente


coerente, porque podem existir, no âmbito do mesmo
ordenamento, duas normas incompatíveis e ambas
serem válidas; b) um ordenamento jurídico não é
necessariamente completo, porque a completude deriva
de norma geral exclusiva, ou de norma de clausura; c) a
interpretação do direito feita pelo juiz não consiste jamais
na simples aplicação da lei com base num procedimento
puramente lógico.244

Não é este o momento propício para tecer as críticas a essa


separação de Kelsen em relação à Moral e o Direito, haja vista que
nos recorreremos a Warat para tal tarefa em momento posterior. No
entanto, não se pode deixar de mencionar o grande “calcanhar de
Aquiles” dessa pretensão da Teoria Pura: a norma fundamental. Como,
hipotética e pressuposta245, dá validade às demais normas do sistema a
partir de uma cadeia normativa e assume a condição de possibilidade
do conhecimento jurídico, não há como não remeter a conteúdos à
mercê de concepções morais e políticas:

[...] Kelsen, para evitar derivar normas de fatos, colocou


no ápice do seu sistema uma norma que nada mais é do
que a expressão deôntica de uma assunção valorativa
da obrigatoriedade do sistema: ‘a fórmula: comporte-se
como manda a constituição, é, no fundo, uma proposição
ético-política’.246

Em seu capítulo “Da interpretação”, Kelsen descreve que


a atividade interpretativa dos juízes deve se dar dentro de uma

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico:lições de filosofia do direito. Trad. Márcio


244

Pugliese. São Paulo: Ícone, 1995, p. 237.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
245

Paulo: Martins Fontes, 1998.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. Rio de Janeiro: Forense,
246

1978, p. 128.
Teoria do Direito e discricionariedade 162

“moldura constitucional”, afirmando: “O Direito a aplicar forma


[...] uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de
aplicação [...]”.247 Ou seja, ao aplicar o direito, o Juiz pode optar por
mais de um sentido autorizado pela norma, não havendo uma única
vinculação a ser determinada dentro da moldura, mas uma pluralidade
de determinações a fazer. Do ponto de vista do Direito Positivo, não
se pode dizer que uma é preterida em relação à outra. Ao se referir ao
papel do Juiz:

[...] Também este último é um criador de Direito


e também ele é, nesta função, relativamente
livre. Justamente por isso, a obtenção da norma
individual no processo de aplicação da Lei é, na
medida em que nesse processo seja preenchida a
moldura da norma geral, uma função voluntária.
248

Enfim, sem mais delongas, eis que novamente poderá lá estar


a Moral como fundamento valorativo de decisão judicial, embora
jamais reconhecida pelo positivismo kelseniano.
Discorridas as breves considerações de Kelsen em relação
ao afastamento da Moral como argumento em relação ao Direito, o
mesmo caminho vamos percorrer em relação a Hart, nos limitando a
analisar como a Moral é recepcionada ou refutada, em sua obra chave,
O Conceito de Direito.
De certa forma, O Conceito de Direito não fugiu muito do
sistema de hierarquia normativa de Kelsen, mas pode-se observar
que organizou sua teoria, baseando-se na conceituação de normas
primárias e secundárias e de como estas interagem entre si. Contudo,
disso importa que no cerne de sua teoria normativa estaria o conceito
da norma de reconhecimento, que, apesar de não ser hipotética e
pressuposta, acaba remetendo à “norma fundamental”, na medida
em que ela possibilita a condição de validade do sistema normativo

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. de João Baptista Machado. 6. ed. São
247

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390.


248
Ibidem, p. 393.
163 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

hartiano. É um ponto de partida para sua cadeia de validade:

O sentido em que a regra de reconhecimento é a regra


última de um sistema é melhor compreendido se
seguirmos uma cadeia muito familiar de raciocínio
jurídico. Se for levantada a questão de saber se uma
certa regra é juridicamente válida, devemos, para lhe
responder, usar um critério de realidade facultado por
uma regra qualquer. Será válida esta pretensa postura
do Conselho de Condado de Oxfordshire? Sim, porque
foi elaborada no exercício dos poderes conferidos e
conforme o procedimento especificado por um decreto
do Ministério da Saúde. Neste primeiro estádio, o decreto
faculta os critérios, nos termos dos quais a validade da
postura é apreciada. Pode não haver necessidade prática
de ir mais além; mas há uma necessidade permanente
de o fazer. Podemos questionar a validade do Decreto e
apreciar a sua validade, nos termos da Lei que concede
poderes ao ministro para fazer tais decretos. Por fim,
quando a validade dessa Lei foi questionada e apreciada
por referência à regra de que aquilo que a Rainha do
Parlamento aprova é direito, chegamos a uma paragem
nas indagações a respeito da validade: porque alcançamos
uma regra que, tal como o decreto e a lei intermédios,
faculta critérios para a apreciação da validade de outras
regras; mas é ao mesmo tempo diferente deles, na medida
em que não há regra que faculte critérios para a apreciação
da sua própria validade jurídica.249

Aqui merece uma ressalva a distinção da norma fundamental


de Kelsen, pois, na compreensão de Hart acerca da natureza jurídica da
regra de reconhecimento, não faz sentido a indagação sobre sua validade,
na medida em que a mesma é aceita e compartilhada numa prática
social, bem como não faz sentido questionar sobre seu conteúdo– se o
mesmo é socialmente aceito. Daí uma relevante distinção, porque, no
final, é possível afirmar que a regra de reconhecimento é uma questão
de fato. Nesse sentido, a aproximação da ordem fática, assim como do
“social ou moralmente aceito” reconhecido por aquela comunidade,
impulsiona a ordem normativa – o que aniquila qualquer conclusão
em favor da “pureza” da Teoria do Direito.

249
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 181.
Teoria do Direito e discricionariedade 164

Hart foi enfático ao afirmar que o direito não deve incorporar


qualquer moral positiva em sua totalidade, nem mesmo afirma que se
tem a obrigação moral de cumprir os deveres jurídicos porque estes já
o são, a partir de algum ponto de vista moral, deveres morais inerentes.
Afirma, porém, que é uma violação moral, por exemplo, extrair
benefícios da submissão de outros para o que quer que o Direito possa
requerer e, posteriormente, não retribuir esse benefício. Para que o
direito garanta uma condição de progresso tanto individual quanto
comunitário, é necessário que alguns devam a outros a obrigação que
surge da mutualidade das restrições. E, conclui MacCormick acerca do
pensamento de Hart:
Não é porque o Direito não contém, pelo menos em
parte, uma moral, que ele está sujeito à crítica moral.
O fato de que ele contém, sempre e inevitavelmente,
alguns elementos da moral positiva é uma poderosa
razão adicional ele deve estar sempre sujeito à crítica
penetrante dos moralistas críticos. O Direito Positivo
sempre está relacionado à moral tanto por essa razão
quanto pela razão especial que o direito invoca a força e o
medo, ao menos em suas manifestações contemporâneas.
Se a aceitação da primeira razão vai contra a
interpretação literal dos escritos de Hart, parece-
me estar bem mais de acordo com seu espírito
geral do que as enunciações expressas que ele
formulou sobre essa questão.250

Outro ponto polêmico relacionado à teoria de Hart está


no reconhecimento de uma “zona de penumbra”, um espaço de
imprecisão no qual determinadas áreas de conduta devem ser deixadas
para ser desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais
determinam o equilíbrio e os interesses, variando suas decisões em
decorrência das ponderações resultantes da aplicação do Direito a
esses casos. É o espaço para a discricionariedade da decisão judicial:

Todas as regras envolvem o reconhecimento ou


classificação de casos particulares como exemplos de
termos gerais e, considerando tudo aquilo que nós

250
MACCORMICK, Neil. H.L.A Hart.Trad. Cláudia Santana Martins. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010, p. 206. Grifos do autor.
165 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

aceitamos chamar de regra, é possível distinguir casos


centrais nítidos, em que se aplica certamente, e outros,
em que há razões tanto para afirmar como para negar
que se aplique. Nada pode eliminar esta dualidade de um
núcleo de certeza e de uma penumbra de dúvida quando
nos empenhamos em colocar situações concretas sob as
regras gerais. Tal atribui a todas as regras uma orla de
imprecisão, ou uma “textura aberta” [...].251

Posner252 refere que tal situação seria, para Hart, a sua


teoria da atividade jurídica: “Quando deparam com causas que não
são, portanto, regulamentadas juridicamente, os juízes exercem
sua discricionariedade.” Na verdade, nessas causas eles atuam
como legisladores, criando normas e, como legisladores não eleitos
representativamente, nessa criação deveriam proceder com modéstia
quando percebem que suas decisões terão caráter legislativo.
Segue criticando:

O ponto importante é que, se boa parte da atividade


judicial consiste, não em “legislar”, no sentido de Hart
– ou seja, não em um exercício indiscriminado da
discricionariedade –, mas sim na aplicação metódica
de princípios e cursos de ação política derivados de
um universo de pensamentos e sentimentos que não
é circunscrito pelo conhecimento dos profissionais do
direito, a ideia do direito como um sistema de normas
perde sua força.253

Parece que a crítica de Posner ignora as afirmações de Hart de


que os juízes são partes de um sistema cujas regras são suficientemente
determinadas na parte central para fornecer padrões de decisão judicial
correta – padrões que, para Hart, não podem ser desrespeitados

251
HART, Herbert L. A. O Conceito de Direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1961, p. 139.

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


252

Fontes, 2012, p. 145.

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


253

Fontes, 2012, p. 149.


Teoria do Direito e discricionariedade 166

livremente por eles no exercício de sua autoridade para proferir


essas decisões, que não podem ser contestadas dentro do sistema,
funcionando como uma espécie de núcleo fixo, ou seja, na maioria dos
casos previsíveis.
Contudo, não se pode sublimar a “zona de penumbra” formada
pelos casos duvidosos em que se permitiria, por parte dos juízes, a
escolha de uma entre tantas respostas, atribuindo discricionariedade
à sua função judicial.
Seja qual for o momento da observação – no ponto fixo da
maioria das normas do sistema ou no ponto de penumbra–, em
ambas recorre-se a uma espécie de “acordo moral”: no primeiro os
juízes acessam esse acordo pré-estabelecido e, no segundo, possuem
liberdade para “criar”.
Enfim, essas breves considerações são suficientes para
responder que o projeto positivista, tanto em Hart quanto em Kelsen,
não concretizou o plano de afastamento completo entre Moral e Teoria
do Direito, especialmente em se tratando da decisão judicial. Ressalve-
se, é claro, as significativas diferenças entre as teorias aqui observadas.

2.3 A crítica ao espaço da moral no positivismo: para Warat apenas


uma questão encoberta

A crítica de Warat254 começa por um ponto óbvio que os


positivistas negaram enfrentar: não é preciso dizer não só qual é a
norma, mas o que ela significa. Essa significação normativa é que abarca
uma série de conteúdos que nem ao longe se encontram expressos.
Assim, é errado dizer que os dogmas trabalham com certezas; antes,
pelo contrário, seu objeto é a incerteza, que, justamente pela existência
dos dogmas, deixam de existir. Vende-se, assim, uma pseudocerteza
provisória. Denúncia essa bem textualizada por Oliveira:

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da


254

modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995.


167 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

O primeiro passo nessa nova experiência consiste


em superar a postura objetivante na consideração da
linguagem: a linguagem não é simplesmente um objeto
presente que está diante de nós, mas todo pensar já se
movimentou no seio da linguagem, ou seja, se articula
numa abertura, num espaço linguisticamente mediado,
no qual se abrem para nós perspectivas para a experiência
do mundo e das coisas. Quando falamos da linguagem, diz
Heidegger, nunca abandonamos a linguagem, mas sempre
falamos a partir dela. Nosso ser-no-mundo é, portanto,
sempre linguisticamente mediado, de tal maneira que é
por meio da linguagem que ocorre a manifestação dos
entes a nós [sic].255

Segundo Warat256, para os juristas ampliar incertezas não é


apenas criar dúvidas, mas criá-las tendo em vista a orientação da ação
do homem em sociedade.Os dogmáticos afirmam que sua atividade é
científica porque está baseada em raciocínios lógico-demonstrativos,
o que, segundo o autor, é absurdo, pois, epistemologicamente
falando, é inaceitável, uma vez que o discurso jurídico é persuasivo
e não demonstrativo:“[...] Os dogmáticos, que formulam uma teoria
geral do direito, expressam-na com os atributos da axiomatização
e cientificidade, através da afirmação de que o raciocínio jurídico
se amolda às regras da lógica estrita e formal, buscando recobrir
a atividade teórica do Direito com a auréola prestigiosa que essas
atividades envolvem”. Segundo os dogmáticos, assim seríamos capazes
de obter a objetividade dos juízos de valor, o que é epistemologicamente
questionável, uma vez que apresentam axiomas, postulados ou
dogmas às meras opiniões, ideológicas e politicamente determinadas
e metodologicamente discutíveis, por questões que não podem ser
enquadradas juridicamente, pois envolvem problemas e conflitos com
carga emotiva e ideologicamente valorados. Ao descrever o cenário,

255
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia
contemporânea. São Paulo: Loyola, 1995, p. 206.

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da


256

modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 16.


Teoria do Direito e discricionariedade 168

Warat se mostra cético acerca da atividade do dogmático positivista:

Deste modo, a dogmática jurídica se apresenta como


uma tentativa, uma teoria sistemática do direito
positivo, sem formular nenhum juízo de valor sobre o
mesmo, convertendo-se em uma mera ciência formal.
De acordo com o pensamento de Bielsa, a dogmática
partiria do pressuposto de que é possível descrever a
ordem legal sem nenhum tipo de referência de caráter
sociológico, antropológico, político e econômico.
Portanto, se apresenta como uma construção teórico-
objetiva e rigorosa, uma elaboração conceitual do direito
vigente sem nenhuma indagação acerca de sua instância
ideológica e política; uma mera ciência lógico-formal
dedicada ao estudo exclusivo das normas legais. O texto
é o dado imediato do qual parte o jurista em seu trabalho
científico.257

Contudo, Warat258 é extremamente crítico ao esquema


empírico-racional da pureza kelsiana, pois busca iludir os juristas
acerca da verdadeira função política e ideológica que o modelo exerce,
no sentido de que, partindo de critérios epistemológicos do positivismo
jurídico, acreditam exagerada (e, porque não, ingenuamente) no
projeto de exatidão e objetividade no qual se empreenderam as Ciências
Sociais. Tal objetivo cria uma ilusão perigosa, pois não basta deslocar a
questão da função social da ciência para o campo da sociologia. Ignorar
esse papel da Ciência Jurídica obscurece seus processos de significação,
propiciando um espaço retórico a serviço das funções que ilusoriamente
se quer afastar da construção de seu objeto de conhecimento. Em
verdade, isso conduziria a uma verdadeira autolimitação da Ciência
do Direito a conhecimentos produzidos fora das relações normativas,
logo, da facticidade e da complexidade que é a vida no Direito: “Dessa
forma, as teorias jurídicas adquirem o status de uma racionalização
ideológica através da qual se explicitam as duas funções básicas da

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da


257

modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 16.


258
Ibidem, p. 16.
169 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

ideologia: o controle social e a reconstrução cognoscitiva.”259


O inverso desejado pelos dogmáticos seria a incorporação
pela Ciência Jurídica, autorizando o ingresso dos valores, axiomas
e ideologias no campo sagrado do Direito. Contudo, para manterem
seu sistema fechado e afastado dos perigos da moral, buscam soluções
praticamente jusnaturalistas para critérios de significação jurídica,
como validade, completude e lacunas da lei. O que seria a ideia de
completude do sistema senão uma criação “metafísica” para rechaçar
qualquer possibilidade de resposta não prevista em seu esquema
lógico-jurídico?
De fato, parece que o papel da dogmática é tarefa
semelhante à desempenhada pela Teoria do Direito Natural, na
medida em que também busca a construção de um sistema ideal de
controle e, assim, passa a legitimá-lo, a fim de propiciar segurança,
com semelhantes características de necessidade, universalidade e
mutabilidade. As influências metapositivas não foram blindadas pelos
dogmáticos; adentram no sistema influências externas ao ordenamento
jurídico vigente, que se reafirmam em seu interior, muito embora
insistam em negá-las:

Por isso, sob o manto protetor de uma linguagem


ingenuamente descritiva se obtém modalidades
prescritivas. Assim, a dogmática jurídica cumpre a
importante função de reformular o direito positivo sem
provocar uma inquietude de que esteja realizando esta
tarefa. As transformações extralegislativas precisam
cumprir certos requisitos retóricos, isto é, o direito
positivo deve ser transformado em substrato para a
fixação de que as decisões legais sempre derivam de
uma norma vigente. O jurista consegue retoricamente
modificar a significação jurídica dos textos legais como
requisitos indispensáveis para a vigência e legitimação
das instâncias extralegislativas que introduzem o direito

WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da


259

modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995,, p. 42.


Teoria do Direito e discricionariedade 170

positivo. O conjunto de teorias e conceitos elaborados


pela dogmática jurídica permite a realização destas
formas de direito extralegislativas. Evidentemente que
a reformulação encoberta do sistema legislativo que a
dogmática encerra impõe a busca de novos estatutos por
ela. Assim, pode surpreender no pensamento jurídico
tradicional a aceitação da ideia de que as teorias são parte
integrante do direito positivo, que se legitima como tal,
apresentando-se articulado sobre uma série de discursos
descritivos. Isso ocorre porque a dogmática jurídica
consegue apresentar os problemas axiológicos como
problemas semânticos [sic].260

Exposta a crítica de Warat, buscou-se, nas obras de Ronald


Dworkin e Richard Posner, encontrar a forma com que suas teorias
conseguem ou não separar os argumentos morais das decisões judiciais.

2.4 Outras contribuição à análise dos argumentos morais: a crítica


de Ronald Dworkin x Richard Posner

Uma breve explicação sobre a eleição dos dois autores para


análise da questão dos argumentos morais. Ambos estão inseridos no
sistema Common Law como ex-juízes norte-americanos. Para muitos
críticos de suas obras, ambos foram chamados de pragmatistas, muito
embora qualquer leitura superficial de suas obras demonstraria a
gritante diferença entre eles. Tanto Dworkin quando Posner trocaram
inúmeras críticas às suas teorias acerca de como os juízes devem decidir
casos difíceis. Além disso, possuem concepções diferentes sobre o que
é o Direito. Assim, a pergunta que impõe é: por que então a eleição de
tais autores diante de tantas contradições?
Importa o fato de que, embora apresentem visões opostas,
com diferentes perspectivas, nenhum dos referidos juristas consegue

WARAT, Luis A. Introdução geral ao direito:epistemologia jurídica da modernidade.


260

Porto Alegre: SergioAntonio Fabris, 2002, p. 25.


171 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

afastar a influência de argumentos morais na hora de decidir o


Direito, muito embora possam chamar esses argumentos de sociais,
principiológicos, valorativos ou políticos. Na verdade, questiona-se até
que ponto tais autores não caem na crítica que eles mesmos constroem
em relação aos positivistas: de que criam uma teoria para encobrir
diferentes argumentos com a ideia da objetividade jurídica.
Destacou-se academicamente na obra de Ronald Dworkin261
justamente a crítica lançada contra Hart, especialmente em relação
ao isolamento que positivista pretendem do Direito em relação às
questões morais e às questões de justiça. Por isso, sua teoria não só
aceita a discricionariedade judicial como busca limitá-la a uma série de
preceitos, comoo “princípio da integridade”, que devem guiar o juiz em
sua práxis judicial.
Diferentemente do que seus críticos o acusam (de delegar ao
juiz uma ampla discricionariedade na aplicação dos princípios), é a
tese da discricionariedade judicial que Dworkin vai refutar, ao propor
que o juiz pode superar a ambiguidade ou omissão do texto normativo
ao fundamentar sua decisão em argumentos de princípios, respeitando
a integridade do Direito como um todo. Ressalta ainda que, quando
o magistrado exerce a discricionariedade adjudicativa, extrapolando
as decisões políticas tomadas pelo legislador, a obrigação jurídica
que decorre de tal ato discricionário não teria lugar num modelo
democrático em que todos os poderes se submetem à Constituição, e é
mergulhado na teoria constitucional que tal juiz produzirá sua resposta
nessa comunidade de princípios. Os magistrados devem, acima de tudo,
tomar uma decisão introduzindo uma razão prática argumentativa, que
é vinculada por princípios como o da equidade. Há uma inter-relação
entre a discricionariedade judicial e a doutrina positivista que lança
mão dos princípios como se os mesmos estivessem “além do Direito”
e fossem utilizados como argumentos extrajurídicos. Tal perspectiva é

261
Neste artigo, a abordagem sobre a obra de Dworkin limita-se à questão moral nos
fundamentos das decisões judiciais, muito embora sua teoria seja bem mais complexa
e ampla em relação à sua observação sobre o Direito – tema já enfrentado em outros
artigos da autora.
Teoria do Direito e discricionariedade 172

errônea, pois, ainda que não existam regras aplicáveis ao caso concreto,
sempre será possível instrumentalizar os princípios.262
Dworkin afirma que a controvérsia moral circunda o ambiente
da própria divergência sobre as tese da resposta certa em Direito – fato
que os positivistas tentam ocultar:

Durante muitos anos argumentei contra a alegação


positivista que não podem existir respostas “certas”
a questões juridicamente polêmicas, mas respostas
“diferentes”; insisti que na maioria dos casos difíceis
existem respostas certas a serem procuradas pela razão
da imaginação. Na interpretação de alguns críticos, o
que quis dizer é que, nesses casos, uma resposta poderia
ser demonstrada para todos como correta, de forma
incontestável, ainda que eu esteja enfatizando desde o
início que, se podemos ou não ter razão ao considerarmos
certa uma resposta, é diferente da questão de se
poder demonstrar ou não que tal resposta é certa. No
presente livro, sustento que os críticos não conseguem
compreender do que se trata, de fato, a controvérsia sobre
respostas certas. Afirmo que, na verdade, a controvérsia
diz respeito à moral, não à metafísica, e que, entendida
como uma questão moral, a tese da inexistência de
respostas certas é muito pouco convincente, tanto do
ponto de vista moral quanto jurídico.263

Na discussão acerca de o que é o Direito, ressalta a importância


do modo como o juiz decide seus casos. Isso porque fica no poder de
decisão de um juiz questões cruciais da vida das pessoas, que podem
ganhar ou perder muito em decorrência de sua decisão. Mais do que
decidir o que é direito de cada um, vai ser o responsável por dizer
quem agiu bem, quem exerceu corretamente sua cidadania e quem
cumpriu ou não suas responsabilidades para com a comunidade.
Devido à grande importância atribuída ao papel do juiz em sociedade,
é relevante saber o que eles pensam que é Direito, e, quando não
concordam, é importante conhecer quais são os pontos de divergência.

262
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
263
Ibid., p. XIII. Grifos do autor.
173 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Segundo o autor, os processos judiciais, no mínimo, abordam três


tipos de questões: a questão de fato, que diz respeito às divergências
que ocorrem no campo dos fatos concretos e históricos suscitados na
lide; a questão da moralidade e fidelidade refere-se às divergências
acerca de o que é certo e o que é errado, moralmente falando, e, por
fim, a questão de direito, à qual Dworkin atribui mais atenção, que diz
respeito às divergências que ocorrem entre advogados e juízes sobre a
lei que rege e que deve ser aplicada, bem como às formas de verificação
a serem utilizadas.
As divergências o autor chama de proposições jurídicas.
Tratam-se de todas as afirmações e alegações que as pessoas em geral
fazem acerca de o que é permitido ou proibido pela lei – o que ela
autoriza ou não. As pessoas acreditam que as proposições jurídicas
são verdadeiras ou falsas, o que não é uma verdade, uma vez que as
proposições jurídicas são parasitárias, ou seja, as proposições mais
conhecidas oferecem aquilo que se chama de fundamento do Direito.
Desse modo, advogados e juízes podem divergir a propósito da verdade
de uma proposição jurídica, conforme os fundamentos que foram
observados em cada caso – e não por desconhecerem os fundamentos
da proposição. Eis a questão suscitada, nas palavras do autor:
Porque então advogados, juízes às vezes, parecem ter
uma divergência teórica sobre o Direito?Porque quando
eles parecem estar divergindo teoricamente sobre o que
é o Direito, estão na verdade divergindo sobre aquilo que
ele deveria ser. Divergem, de fato, quanto às questões de
moralidade e fidelidade, não de Direito.264

A priori, há dois tipos de divergências: a empírica, em que


a discordância pode afetar os fundamentos do Direito da proposição
jurídica utilizada, ou ainda concordar ou discordar acerca de o que
a legislação e as decisões judiciais têm a dizer sobre alguma questão
específica, e a divergência teórica, envolvendo o corpo do Direito
escrito e as decisões judiciais e o esgotamento ou não dos fundamentos

DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 11.
264

Grifos do autor.
Teoria do Direito e discricionariedade 174

pertencentes ao Direito. Nessa esteira, ensina que os juízes pouco


refletem se devem ou não observar o Direito após decidirem seu
sentido. Essa questão é de extrema relevância, pois, a cada decisão,
criam de certa forma um novo Direito, com base nas regras, num
princípio ou numa disposição. Eis aí uma grande distinção da teoria de
Dworkin, quando afirma que os juízes não se valem apenas de regras no
momento de decidir, mas também de princípios que juntos constituem
o sistema jurídico.
Importa ao autor a questão do Direito em si, e não as razões
que os juízes podem ter para dizer o que é Direito, muito embora não
despreze sua compreensão. O Direito com certeza é um fenômeno social.
Da sua estrutura dependem sua complexidade, função e competência.
A prática do Direito é uma prática argumentativa, na qual todos os
envolvidos compreendem que aquilo que é permitido ou exigido por ela
dependerá da verdade de certas proposições que só adquirem sentido
em seu próprio âmbito, autoproduzindo-se e legitimando seu próprio
procedimento: “O juiz, portanto, não tem nenhuma opção a não ser
exercer seu discernimento para criar uma nova norma, preenchendo
as lacunas onde o Direito silencie e tornando-o mais preciso onde ele
for vago”.265
Ao discorrer sobre o emblemático “caso Elmer”266, que
envenenou seu avô para obter a herança, Dworkin deixa clara a presença
da dimensão moral, expondo que o argumento judicial baseou-se na
ideia de princípios e de coerência do sistema ao dizer que ninguém
deve beneficiar-se de seu próprio erro, de tal modo que a lei sucessória
deveria ser lida no sentido de negar uma herança a alguém que tivesse
cometido um homicídio com o propósito de obtê-la, beneficiando-se

265
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 12.
266
Ver o caso completo Dworkin (2007, p. 20). Um dos casos mais discutidos na Corte
Americana em 1882 foi o direito de herança de Elmer, que, após ter envenenado
propositalmente seu avô para se beneficiar da herança, valeu-se de uma “lacuna” do
direito, ou seja, como ele estava citado no testamento teria de ser aplicado o direito
positivo contratado, independente do fato do mesmo ser o causador da morte do
testamentário.
175 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

da própria torpeza. Nas palavras do autor: [...]Ou seja, que os juízes


deveriam interpretar uma lei de modo a poderem ajustá-la o máximo
possível aos princípios de justiça pressupostos em outras partes do
direito”.267
Nesse ponto, parece explícita a ideia de que o Direito não se
resume a um ordenamento escalonado normativo que ignora qualquer
ideia de princípio de justiça e de questões morais relevantes que
impõem sua presença na aplicação do Direito aos casos concretos, ou,
como diria o autor, no “mundo real”:

Os juízes não criam, mas simplesmente aplicam o direito


ao decidir uma causa. Estão agindo dentro do âmbito
de sua competência profissional e da função que lhes é
autorizada, por isso não precisam agir com timidez. [...] O
Direito não compreende somente as normas estabelecidas
por assembleias jurídicas formais, mas também os
princípios, com destaque para os princípios morais, a
que os legisladores ou os juízes podem fazer referência
quando criam normas novas. Os juízes têm o dever de ser
[sic] filósofos morais. 268

Richard Posner, que se intitula um defensor do pragmatismo,


não poupa esforços na crítica a Dworkin, e também a Hart, no que
diz respeito ao espaço que tal autor concede aos argumentos morais
na decisão judicial.Segundo ele, para os positivistas de primeiro tipo,
como Hart, uma das condições necessárias para que uma norma
primária de obrigação seja uma norma jurídica é a de que essa norma
seja identificada pela norma de reconhecimento do sistema – então,
para Hart, todas as leis nazistas faziam parte do Direito, mas o “direito”
que foi aplicado pelo Tribunal. Posner defende o ponto de vista de Hart
por ser mais exato, mas discorda com ele quando o mesmo diz que os
juízes saem do âmbito do Direito. Para o autor isso depende de o que se
espera dos juízes, ou seja, para Hart, na zona aberta em que as normas

267
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 25.
268
Ibid., p. 55.
Teoria do Direito e discricionariedade 176

se esgotam, ao decidir o que fazer o juiz é obrigado a fazer uma escolha


e, para essa, baseia-se na intuição e nas experiências pessoais – e não
somente pratica o “raciocínio jurídico”, ao qual Dworkin atribui uma
natureza exagerada. Nas palavras do autor, em sua crítica a Dworkin,
“o que ele deveria dizer é que os juízes não deixam de praticar o Direito
quando proferem decisões políticas, pois o Direito e a Política se
interpretam. O direito é simplesmente a atividade dos juízes, e essa
atividade frequentemente tem uma dimensão política”.269
Posner270 delimita a problemática ao questionar, de forma
direta, até onde o Direito é objetivo, impessoal e preciso. Imediatamente
propõe uma resposta “moderadamente cética”, dividida em duas
etapas. Na primeira, explica que muitas questões jurídicas não podem
ser respondidas fazendo uso de métodos do raciocínio jurídico, uma vez
que são pouco potentes como instrumentos de construção. Na segunda
etapa, indica que a resposta (ou solução) do conflito é seguidamente
indeterminada, pois, quando o raciocínio jurídico se esgota, o juiz tem
de recorrer a mecanismos pessoais, como valores, crenças e opinião
pública.
Partindo do pressuposto de que a indeterminabilidade é o
estado no qual quase sempre se encontra o Direito, Posner271procura
um termo intermediário entre o que seria a “resposta correta” e a
“razão artificial”, tendo em vista que nega as duas, fazendo oposição ao
ceticismo radical que iguala o Direito à política e também discordando
da posição que trata todas as questões jurídicas como indeterminadas.
Na verdade, segundo ele, o Direito não é algo que os juízes
descobrem, mas sim o próprio nome da atividade: “É o conjunto de
hipóteses que advogados e juízes de tribunais inferiores propõem a

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


269

Fontes, 2012, pp. 151-152.

POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes,


270

2007.

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


271

Fontes, 2012.
177 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

respeito da regularidade dos comportamentos dos juízes dos tribunais


superiores”.272Nessa esteira, o autor não só acredita que os juízes
decidem seus casos como criam a teoria do Direito. Assim, o Direito
é de certa forma o que os juízes fazem e o que eles também farão. Na
verdade, para o autor é “uma manobra do jogo política e ideológica”
os juízes se voltarem para uma questão política ou moral quando as
regras do Direito se esgotam, pois seu verdadeiro objetivo é ocultar a
discricionariedade, vendendo uma imagem de decisão objetiva – que
o autor denomina como “uma luta contra moinhos de vento” –, pois,
se o provo é indiferente ao processo de argumentação jurídica que
provoca a decisão, a esta ele não é indiferente. Logo, o público discute
seu resultado.273
A coincidência entre o Direito e a Moral estaria no fato de
que ambos são métodos que favorecem a cooperação que a sociedade
precisa para progredir, e é essa coincidência que induz algumas pessoas
a dizer que o Direito respalda a Moral, acrescentando-lhe sanções. O
autor defende que não seria útil descrever o Direito como respaldo
da Moral, pois temos muitos princípios morais que não são ligados
ao Direito e nem produzem sanções, como os seguintes exemplos,
mencionados pelo autor: mentir não é crime, e é um princípio moral,
assim como fazer caridade, que não é um dever legal. Ao mesmo tempo,
temos condutas que são moralmente indiferentes e são abarcadas pelo
Direito e cominadas por sanção. Outro ponto que o autor destaca é o de
que, no caso de conflitos entre princípios morais, os juízes não teriam
que escolher um lado para moldar e seguir.274
Segundo Posner, não haveria um momento em que se
delimitaria o esgotamento dos argumentos morais e, portanto, poderiam

POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins


272

Fontes, 2012, p. 301.

POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes,


273

2007, p. 302.

POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes,


274

2007, p. 301.
Teoria do Direito e discricionariedade 178

os juízes sair à caça de argumentos morais, políticos e jusnaturalistas.


O fato é que, indiferentemente de seus conteúdos, estando dentro de
suas jurisdições os juízes devem decidir seus casos, e, seja qual for sua
fonte, será legítima para a criação da decisão judicial:

Os juízes se defrontam rotineiramente com questões


que não podem ser resolvidas pela aplicação de um
algoritmo e que exigem, em vez disso, o emprego da razão
prática – aquele conjunto de métodos, entre os quais
as reações instintivas, que as pessoas usam para tomar
decisões quando o uso dos métodos da ciência e da lógica
não é possível ou produtivo. Isso não quer dizer que o
juiz enfrenta um “dilema moral” [...]. Assim também a
atividade judicial: os juízes só defrontam dilemas morais
quando o direito favorece um resultado que contradiz
suas mais profundas crenças morais. [...] Mas aplicar um
princípio moral a uma questão jurídica não é a mesma
coisa que tomar partido em questões morais controversas
e usar a filosofia moral normativa para resolver a disputa.
Essa é a relação problemática entre a moral e o direito”.275

Resumidamente, o Direito, para o autor, é um processo


inarticulado e sem rigor de decisão judicial, com múltiplas fontes,
inclusive não positivadas pelo Direito, devendo o juiz, nesse processo,
fazer o que melhor puder, valendo-se de todas as informações que lhe
são trazidas – o que exige uma Teoria do Direito muito mais flexível a
essa práxis, pois é uma atividade que somente pode ser compreendida
a partir de um contexto. Assim, não é a filosofia moral que terá resposta
para as questões jurídicas. Na verdade,o autor entende que os dilemas
morais é que tornam complexas essas questões difíceis. É então o
pragmatismo que ajuda a buscar melhores resultados desimpedidos de
dúvidas filosóficas ou morais, pois ele mesmo é compatível com essas
duas concepções, na medida em que o determinante de uma decisão a
priori deve ser os fins sociais avaliados no contexto decisório.
Enfim, de fato o positivismo jurídico da Teoria Pura de Hans
Kelsen buscou o total afastamento entreMoral eTeoria do Direito, cujas
decisões encontram seu fundamento em critérios intranormativos. Hart

275
Ibidem, p. 180.
179 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

evolui ao admitir um caráter mais factual, contudo também não explicita


com que base os juízes decidem no espaço da discricionariedade/zona
de penumbra, valendo-se de um aspecto de cunho quase “intuitivo”.
Há muito Warat denunciava a insuficiência teórica do
positivismo, criando estes espaços míticos em que cremos que o Direito
é capaz de autorreproduzir as respostas a problemas tão complexos
da vida no Direito. Para Warat, compramos tal falácia objetivista e
ficamos submersos no senso comum teórico, ignorando a pluralidade
semântica de significações: nos isolamos para nos proteger do que nos
deixa inseguros.
Dworkin, taxado com um pós-positivista por incorporar ao
Direito questões principiológicas e axiomáticas, não nega a influência
da comunidade na formação da convicção das decisões judiciais.
Admite uma dimensão de “moralidade valorativa”, preferindo, às vezes,
a justiça e a integridade do que o próprio texto. Na medida em que
busca atribuir normatividade ao sistema de regras e princípios, tenta,
por sua vez jurisdicizar, valendo-se, de certa forma, dos valores como
último recurso. Richard Posner, um dos seus mais ferrenhos críticos,
defende que não se trata de o Direito poder conceber, em última
instância, argumentos morais ou políticos, pois, na prática, o Direito
se confunde com o que os juízes dizem, logo, com a própria atividade
judicial. Seu modelo pragmatista quer traçar meios de um juiz decidir,
da melhor forma, conforme os “fins sociais”, analisando os prós e
contras de sua decisão. Como se tal tarefa não pudesse ser confundida
com a carga valorativa e moral que determina os fins sociais, mesmo
porque, poderíamos dizer, os próprios fins sociais incidem sobre uma
discussão moral.
Dito isso, resta evidente que nãoé apenas no constitucionalismo
contemporâneo, marcado pela pluralidade em todos seus aspectos, que
os argumentos morais circundam a decisão judicial, velados ou não
pelas mais diversas formas/doutrinas de se observar o que é o Direito.
Eles estão ali, sempre à sua sombra.
PARTE III

RECORRENDO-SE A
WARAT E ÀS CONTRIBUIÇÕES
DA SEMIÓTICA E DA
SEMIOLOGIA PARA
DENUNCIAR OS EXPEDIENTES
RETÓRICOS POSITIVISTAS
E SITUAR O PROBLEMA DA
DISCRICIONARIEDADE
Teoria do Direito e discricionariedade 182

1. MÉTODO

Há um método waratiano? Difícil dizer. Entretanto, é possível


responder que há duas matrizes principais de Crítica do Direito:
uma advém de uma reconstrução peculiar da semiologia e outra da
psicologia, na linha freudiana. Warat aproveita essas referências para
conectá-las a partir de seu profundo conhecimento das práticas dos
juristas. Existe certa linha de procedimento: primeiro, Warat explicita
o discurso oficial dos juristas; leva os argumentos a sério, examina-os.
Entretanto, não se identifica com o habitus. De fato, o modo pelo qual as
coisas se tornam invisíveis aos juristas (incluindo acadêmicos) advém
de uma identificação neurótica com um grupo – grupo que dá segurança
ao falante. Uma vez que Warat nunca se identificou, torna-se possível
183 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

observar as incertezas do Direito – já que as incertezas do Direito são


camufladas porque seus operadores não gostam de conviver com elas.
A incerteza é lançada quando o conhecimento aparentemente estável
do Direito é contrastado com a dúvida e a perplexidade que reinam
nos dois espaços que o Direito transita: a linguagem e a personalidade
humanas. Assim como defesas são criadas para desparadoxalizar
a linguagem e a personalidade, também o Direito o faz. As defesas
do Direito, contudo, são elaboradas recorrendo-se a um mundo de
fantasia – neurótico. A metodologia de Warat coloca luzes no fato de
que o Direito cria defesas para seus problemas, e que essas defesas
nem de longe são uma reconstrução saudável de seus problemas: pelo
contrário, são, sempre, um movimento mais para dentro ainda de
suas fábulas de controle e justiça estabelecidas de um modo lógico e
apriorístico.

2. SEMIOLOGIA E SEMIÓTICA

Warat acreditou, durante certo período, que uma das chaves


para a compreensão do Direito residiria em uma compreensão
interdisciplinar a partir da semiologia. Semiologia é uma ciência
preocupada com o conhecimento acerca dos signos e sua inserção em
um sistema. Um dos principais autores dessa ciência é Ferdinand de
Saussure.276 A semiologia é uma ciência desenvolvida nos moldes do
positivismo oitocentista, regida por “leis” e “princípios” próprios, os
quais caberia ao cientista descobrir.
É interessante, como primeira observação, que Warat utiliza
uma ciência moldada metafisicamente, isto é, baseada em pressupostos
de fantasia para justamente criticar o mesmo defeito do Direito. Isso
demonstra a necessidade de adaptação que Warat precisou realizar.

276
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 11.
Teoria do Direito e discricionariedade 184

Parte dessa adaptação advém da conjunção que faz com a semiótica de


Charles Sanders Pierce. Este autor trabalha a linguagem em seu uso
pela comunidade científica. Assim, Warat consegue aliar categorias de
análises formais em uma prática científica. Entretanto, as duas ciências
assumem exatamente o perfil positivista: através de um exame rigoroso
da linguagem, pretendem atingir categorias de análise rigorosamente
lógicas porque inseridas em um sistema de remissões recíprocas,
com absoluta coerência. Assim, a Ciência da Linguagem permitiria
explicar a linguagem, usando da linguagem mesma, em um sistema de
proposições que não é contraditório e que se expressa em leis estáveis.
Essas leis estáveis e não contraditórias são inseridas em um
sistema coerente, no qual não há espaço para a história. Como Warat
diz, trata-se de colocar em choque uma razão axiomatizante contra a
história – com prejuízos para esta última. Essa razão axiomatizante
cria categorias abstratas e exclui tudo aquilo que aparentemente não
se enquadrar nas categorias a priori (norma, princípio). A exclusão é
apontada como lógica, em um primeiro momento, mas facilmente é
percebível como ingênua e, quem sabe, até ideológica, em um exame
mais aprofundado.
Tal operação teórica é fundada na construção de linguagens
ideais, as quais separam radicalmente práxis e categorias abstratas
(ex.: separação língua-fala). Essas linguagens ideais são criadas
arbitrariamente, mas seus autores as justificam como necessárias,
com base na razão, segurança, empiria ou outro termo vago (e lhes dão
consequências normativas!). Criam-se mitos com função justificadora:
o discurso positivista justamente olvida a discussão sobre a justificação
com base em alguma lógica posta aprioristicamente.
Note-se que, quando Warat critica o positivismo justamente
por sua incapacidade de justificar racionalmente quaisquer argumentos,
coloca-se à parte de teorias céticas e adere à ideia de cognotivismo
racional, isto é, a possibilidade de existirem argumentos racionais,
intersubjetivamente fundados.
Warat equipa a semiologia e a semiótica, criticando-as a partir
185 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

das figuras da retórica e da semiologia do poder277. Assim, desnuda a


linguagem abstrata dos sistemas coerentes, demonstrando sua falta
de fundamentação e seu uso político e, com isso, implode as bases
do positivismo. Warat, quando faz Crítica do Direito, acaba fazendo
da linguagem, e vice-versa. Ambas as perspectivas de crítica serão
apresentadas simultaneamente, a seguir.

3. CIÊNCIA DA LINGUAGEM

O ideário teórico waratiano inicia a partir de uma


reconstrução saussuriana.278 Saussure assumiria uma postura teórica
comum ao neopositivismo oitocentista: a divisão “dados brutos/dados
reconstruídos”. Uma coisa seriam os dados brutos da linguagem;
outra, a sua reconstrução pela Ciência da Linguagem. Os dados brutos
careceriam de sentido, enquanto que a ciência daria sentido ao mundo.
Essa proposição teórica do positivismo é interessante para se perceber
três ingenuidades fundamentais da ciência jurídica do século 21:

1. visão dualista do mundo;

2. primado da “teoria”;

3. vinculação com a filosofia do sujeito.

Por ingenuidade entende-se uma posição epistemológica


que, sendo maldosamente consciente ou não, deixa de lado dados
fundamentais na percepção de sentidos do mundo em favor de mitos
sabidamente ingênuos, cuja sustentação é meramente retórica. Por
exemplo, a ideia de que as palavras da lei contêm toda a informação

277
WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito I: interpretação da lei, temas para uma
reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 19

WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica,


278

textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 120.


Teoria do Direito e discricionariedade 186

necessária para se tomar uma decisão.


Assim, a visão dualista de mundo divide-o em fatos e em
proposições, ou em pré-jurídico e jurídico, ou norma e enunciado sobre
a norma. Essas divisões não são postas como distinções possíveis pelo
positivismo, mas como condições únicas de entendimento do mundo.
Perde-se toda a complexidade de se analisar, por exemplo, como as
concepções de Direito influenciam no sentido da norma posta, ou como
diferentes grupos na sociedade produzem seus sentidos sobre o Direito
e provocam a reentrada no habitus dos juristas. Enfim, os fatos só
têm sentido porque se observam eles.Quem observa tem determinada
concepção de mundo que precisamente permite a distinção de qualquer
coisa. As concepções de mundo, por outro lado, só existem porque
há relações de comunicação na sociedade. Perder a complexidade
dessas relações é perder talvez o campo principal de justificações dos
sentidos do Direito. Além disso, com o dualismo perde-se o caráter de
decisão dos sentidos e, com isso, a desnecessidade de justificação da
interpretação.
De fato, quando os sentidos são percebidos como verdades
necessárias, advindas de uma mera cognição, e não decisão, o linguista
e o jurista veem-se aliviados da carga de justificação de uma decisão.
Ninguém decide nada, apenas se conhece o sentido necessário da
norma.
Quando só se “conhece”, e não se decide, imagina-se que o
objeto das relações sociais é meramente teórico – no sentido de que
os problemas se encontram em realizar construções verdadeiras ou
coerentes com o sistema. O primado da teoria, portanto, é o mito da
“não decisão”, ou ausência de razão prática no Direito, e que gera desde
teorias sofisticadas – como o Direito enquanto sistema escalonado de
normas justificado por uma norma pressuposta – até posições grotescas
– como imaginar que uma lei possa determinar um comportamento
social.
Esta distinção apriorística de comunicação social versus
comunicação científica está bem conforme o paradigma científico da
187 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

filosofia do sujeito, em que já se admite a inexistência de essências,


embora a realidade seja fundada a partir da reflexão pura do cientista, o
qual é visto como um ser que deve eticamente afastar-se das construções
sociais e que é detentor de um método que um dia será seguro e que se
expressa por meio de uma linguagem igualmente purificada.
O princípio purificador é o método de Saussure. Compreende
a ideia de um ato fundante que escolhe um objeto e que exclui outras
leituras a partir da escolha primeira do objeto. No caso do Direito,
muitos são os exemplos de autores que escolhem significados fundantes
e que purificam todo o Direito a partir da significação primeira. Não há
dúvidas de que a escolha kelseniana de ser e “dever ser” é um dualismo
popular, mas há outros, tais comoo fato jurídico/nãojurídico e assim por
diante. É como se os processos de comunicação fossem unidirecionais.
Em suma, como diz Warat, não são os fatos que emprestam sentido à
teoria, mas a teoria aos fatos279. Por exemplo, as noções de existência
e validade dos atos jurídicos. Uma sentença assinada por um servidor,
para a teoria tradicional, não existe porque não gera efeitos jurídicos,
muito embora possa gerar responsabilidade administrativa, penal
e civil para o servidor (!).Poder-se-ia dizer que não existe enquanto
ato regular, mas daí seria admitir que toda comunicação sofre uma
avaliação prático-jurídica de pronto e, assim, a teoria dos planos
estaria arruinada (ou seja, a ideia de algo primeiro “existe” para o
Direito para depois ser “avaliada” e sofrer certos graus de nulidade ou
anulabilidade). Pior ainda um ato administrativo emanado de alguém
que não é servidor (ex.: trabalhador sem concurso), que não existe, mas
que, por força do princípio da aparência e boa fé, poderia gerar efeitos.
Escolhendo distinções fundamentais e olvidando outras é
possível reduzir a complexidade e, assim, formatar leis invariáveis e
abstratas para um determinado campo da ciência, agora já constituído.
Como exemplo, a ideia de “fato jurídico”: toda vez que algo for amoldado
a uma norma, estar-se-á diante de um “fato jurídico”. A partir daí

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito III: o Direito não estudado pela Teoria
279

Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 137.


Teoria do Direito e discricionariedade 188

explica-se todo o Direito posto como necessário e não como carente de


justificação (lembrando que por Direito posto entende-se aquele fruto
de decisão e, é óbvio, não só os legisladores decidem, mas também o
sistema judiciário, os doutrinadores, etc.).
Note-se que o Direito organizado enquanto sistema coerente,
posto por primado da teoria, atende a necessidades neuróticas bem
típicas da personalidade dos juristas, de sua classe e da própria
sociedade. É como se o Direito reforçasse traços neuróticos dos seus
operadores e seus operadores reforçassem as características alienantes
do Direito, em um círculo doentio de manutenção da menoridade do
homem.
De fato, imaginar o Direito como um sistema sem contradições,
paradoxos ou incertezas é um tranquilizante para quem tem de decidir.
Disfarça-se a decisão como mero ato de conhecimento (enunciado sobre
uma norma) e, com isso, quem decide (doutrinadores, advogados, etc.)
livra-se da responsabilidade sobre a decisão. Além de se livrarem do
fardo da decisão, imaginar o sistema jurídico sem contradições atende
à neurose da dificuldade de se lidar com a frustração da incompletude
da vida. De fato, a vida adulta implica frustrações, derrotas, decepções
e incompletudes. No mundo do Direito, tais problemas não existiriam
e, assim, os operadores poderiam realizar a transferência do Direito a
suas vidas, dando-lhes a segurança que tanto lhes falta.
O Direito não permite operadores transgressores: é necessário
que eles assumam também uma postura “jurídica” ao aderir ao
habitus de pensamento de um determinado corpo social. Quem adere
ao corpo jurídico, imaginando o sistema jurídico de fantasia, ganha
reconhecimento e, assim, pode albergar-se no conforto de seus pares.
As recalcitrâncias são normalizadas ou a partir da omissão ou a partir
de sua categorização científica como exceção ou ineficácia do Direito280.
Além disso, o primado da teoria permite o “controle” da realidade
social: a sociedade é aquilo que os juristas descrevem que é, a partir

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito II: a epistemologia jurídica da


280

modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 58.


189 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

do Direito; o Direito é a imagem posta nos livros. Quando se cria uma


realidade paralela em um mundo fantasioso, tem-se controle sobre
este mesmo mundo. Assim, desde que se adira aos comportamentos
de grupo, quem pertence ao mundo jurídico é recompensado com um
mundo à parte de representações, que não só lhes dá reconhecimento,
mas a possibilidade de criá-lo e controlá-lo, em um exercício de
egocentrismo típico da filosofia do sujeito.
Quando a lógica não resolve de modo explícito, o melhor
mesmo é omitir ou usar outra aplicação lógica. Assim, o art. 7º contém
os direitos dos trabalhadores e, em seu parágrafo único, traz os direitos
do trabalhador doméstico mas não indica a limitação de idade mínima
para o trabalho. A solução seria, então, dizer que uma criança de oito
anos pode ser trabalhadora doméstica. Tal saída, evidentemente, é
absurda por critérios materiais. A lógica jurídica, entretanto, sempre
é salva recorrendo-se a um sistema de mitologias que tenta preservar
a regra lógica, mesmo que evidentemente inaplicável. Assim, o limite
de idade mínima seria aplicável diante da primazia do bem estar
da criança, contida em alguma outra norma – ou então o legislador
“cochilou”, muito embora há quem diga que realmente não há limite
de idade para trabalho doméstico.
O Direito, enquanto observado pelo positivismo, é, assim, uma
construção neurótica e infantil contra as frustrações, a incompletude e
o desamparo. Trata-se de um sistema de sentidos que dá ao jurista a
ilusão de lidar com uma vida que é lógica, necessária, controlável e
confortável – enfim, o positivismo pode ter sido popular pelo seu uso
político e econômico, entretanto é no campo das necessidades humanas
que o positivismo encontra seu maior eco. Trata-se de uma teoria que
se amolda perfeitamente aos anseios mais típicos da infantilidade
humana.
É de notar-se que a prática cotidiana dos tribunais engloba
o que há de pior nas teorias metafísicas sobre o Direito. De fato, se
as teorias representam ingenuidade, a prática do Direito é muito pior
pela falta de aprofundamento teórico e incompreensão dos autores
Teoria do Direito e discricionariedade 190

positivistas de base, redundando em ainda mais omissões de reflexões


possíveis.

4. SIGNOS

Para Saussure, a linguagem é um sistema de signos.281 Esse


sistema tem sua menor unidade no signo. O signo é uma unidade
formada por outras duas diferenças. Uma delas é uma imagem
(significante), seja acústica ou visual (palavra dita, gesto, letras escritas,
etc.) e a outra é o significado, ou seja, a expectativa de interação gerada
no intérprete. Signo, portanto, é a junção de significante e significado.
Importante, aqui, notar algo básico e fundamental: o significante não
contém nenhuma comunicação em si mesmo. De fato, seria absurdo
pensar que uma placa de trânsito ou uma palavra impressa em um
papel pudessem conter alguma comunicação em si mesma. Apenas a
partir de sua leitura é que o signo se forma. Isso é importante para
lembrar os juristas de que a letra da lei só possui sentido porque alguém
a interpreta. Quem interpreta o significante e gera o signo é alguém que
está inserido em um contexto social e que comunga de regras de uso
dos significantes. E isso abre uma porta para uma complexidade muito
grande de possibilidades de análise (fechada pelo positivismo). Note-
se que os juristas procuram o sentido (ou uma orientação à decisão)
justamente no lugar onde com certeza ele não está: no significante (na
letra da lei).
Ao contrário da máxima romana que diz que cada palavra da
lei deve ser interpretada em seu sentido próprio, sem contextualizá-la,
a semiologia mostra282 que o signo gera sentido quando colocado em

281
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 25.
282
WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito I: interpretação da lei, temas para uma
reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 35.
191 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

um jogo de associações, oposições, sucessões e inserções em contextos.


Veja-se, por exemplo, a palavra “dia”. Ela faz sentido não por ter uma
essência, mas pelo seu jogo de contraste com noite, com mês, com ano,
etc. Entretanto, só o jogo de oposições e semelhanças não resolve a
problemática do signo, uma vez que ele tem de estar inserido em um
sintagma (sucessão de signos), como por exemplo, uma norma. E
mesmo assim, isso não resolve: a Constituição, quando fala dia, fala
sempre no mesmo sentido? Não será em um sentido (24 horas) quando
fala do prazo de apreciação de uma medida provisória e outro quando
fala da busca domiciliar? E, nesse caso, o que determina que “dia” será
das 6h às 18h ou uma certa quantidade de luz solar? Note-se que foi
utilizada uma palavra fácil, como “dia”, para exemplificar. A análise
fica muito mais complicada se se imaginar algo como “segurança
jurídica” ou “dignidade humana”. Os juristas – mesmo no paradigma
do “Constitucionalismo Contemporâneo” – ainda acreditam na
possibilidade de uma “cópula” entre palavra e fato, a qual aconteceria
automaticamente, sob a orientação de um enunciado “verdadeiro”
sobre uma norma. No caso do Constitucionalismo Contemporâneo,
os princípios entram como expediente retórico para justificar decisões
cuja falta de sustentação na mitologia do silogismo é por demais nítida
– os princípios possuem forte carga emocional e nenhuma ou quase
nenhuma denotativa.
É sempre bom lembrar quão fantasiosa é a vida do jurista, ao
imaginar que dicionários resolvem algum problema de significado, ou
que o sentido emerge da lei isoladamente. Tais tranquilizantes, como
dito, são defesas neuróticas ante a excessiva complexidade e incerteza
dessas conclusões.
Os signos são arbitrários no que toca à constituição do
significante283. Não há laços naturais com uma realidade. Como os
signos são postos por convenções sociais, a palavra “dia” poderia ser
qualquer outra sucessão de letras (ex.: xyz), “mesa” poderia ser chamada

283
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 26.
Teoria do Direito e discricionariedade 192

de “relógio” e assim por diante. Apesar de a prática jurídica não fazer


uma menção expressa ao mundo das ideias no sentido platônico, ela
não leva em conta esse dado fundamental indicado por Saussure. O
imaginário jurídico é regido por um ideário de naturezas jurídicas, em
que uma palavra leva ao seu significado essencial posto na justiça ou
na ciência. Acredita-se na existência de um significado real, ou que faça
a correspondência entre signo e coisa. Busca a “vontade da lei” ou a
“vontade do legislador”.
É interessante notar que o neopositivismo do século XIX
conhecia o caráter arbitrário dos signos, mas o imaginário jurídico
preferiu ficar com a doutrina platônica. Entretanto, mesmo o
neopositivismo tirou consequências metafísicas das descobertas de sua
época. Explique-se. Ocorre que o neopositivismo acredita na construção
de uma linguagem perfeita, autorreferente e acabada. Assim, tanto a
linguagem natural quanto a científica seriam arbitrárias. Esta última,
contudo, porque construída de modo reflexivo, não teria os defeitos
da primeira. É um bordão conhecido dos juristas: “deve-se usar a
linguagem técnica”. A linguagem técnica daria mais precisão e controle.
Tais objetivos são facilmente desmascarados pelo fato de que qualquer
sentido é contextual, isto é, só forma seu sentido com remissões à sua
situação de fala e ao discurso em que está inserido – bem como à ideia
de que os signos técnicos só fazem sentido aos participantes quando,
precisamente, são traduzidos em equivalentes funcionais na linguagem
natural. Isso significa: por mais “técnico” que o Direito tente ser, as
decisões sempre serão impregnadas de linguagem natural. Isso porque
os termos técnicos precisam ser traduzidos, mesmo por quem neles
tem prática, para a linguagem natural (basta ler qualquer manual de
Direito: os conceitos são traduzidos de modo “fácil” ao leitor). Como
todo termo técnico pressupõe sua explicação em linguagem natural,
esta sempre acompanha aquele: com todos os seus defeitos (conteúdo).
O imaginário jurídico vigente combina o pior de todos os
mundos: platonismo, neopositivismo e arbitrariedade metafísica.
Platonismo e neopositivismo ao acreditar em silogismos, naturezas
193 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

jurídicas e assemelhados; arbitrariedade quando chama os princípios


para “curar” os defeitos de uma linguagem que é vista como defeituosa
porque imprecisa.
Os signos são imutáveis no sentido de que a ninguém é dado,
isoladamente, alterar o significado de um significante, uma vez que estas
relações são postas por convenções e práticas sociais.284 É interessante
que essa característica do signo, dentro da prática jurídica, é traduzida
não pela ideia de prática social, mas por algum outro mito qualquer.
Quer dizer: os juristas não gostam de pensar que um signo é estável
devido a uma convenção, porque isso significaria inserir prática em
sua teoria. Assim, as palavras da lei são estáveis ou porque utilizadas
neste ou naquele sentido no Direito romano, ou porque um grande
jurista as utilizou assim, ou porque as leis antigas apontavam naquele
ou outro sentido. Com isso, o Direito consegue manter uma ilusão de
completude e de relações apenas semânticas, nunca pragmáticas, com
a linguagem. Vive em uma bolha, longe dos conflitos que a prática social
de observância dos sentidos pode levar. Por outro lado, quando convém,
a prática jurídica sabe ser extremamente autoritária e, com isso, tenta
modificar o sentido das palavras sem respeito aos procedimentos
democráticos. Afinal, a partir de uma ou outra concepção de mundo
(ex.: serviço público), toma-se uma ou outra decisão. E isso remete a
outro caráter do signo: o signo também é mutável.
O caráter de mutabilidade do signo tem em seu sentido a ideia
de que evolui. De fato, o sentido dos significantes vai mudando com o
tempo. O imaginário jurídico conhece o fenômeno. Entretanto, coloca-
se sempre ao lado das mudanças sociais. Veja-se o caso da deturpação
dos serviços públicos nos anos 90: a doutrina administrativa tinha um
discurso de “reconhecimento” das mudanças que o serviço público
vinha passando. Era como se fosse por mágica: um conceito jurídico
sendo alterado não se sabe de onde. A doutrina, contudo, não se
dá conta de que ela mesma é um fator de alteração dos significados

284
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 27.
Teoria do Direito e discricionariedade 194

sociais. De fato, nem um doutrinador, tampouco um grupo (ainda


mais um grupo profissional), pode determinar modificações tão largas.
Entretanto, é evidente que a doutrina administrativista participou do
complexo de relações sociais que redundou na flexibilização do conceito
de serviço público e de seu regime jurídico. As decisões do Direito são
feitas através de múltiplas conexões. Uma dessas conexões – das mais
poderosas – é precisamente a doutrina. Houvesse a doutrina resistido
às tentações políticas e buscado a inconstitucionalidade das pretensões
políticas, estas não teriam tradução jurídica e, talvez, não teriam como
virar conceitos jurídicos.
A linearidade do signo tem a ver com a sua disposição no
tempo. De fato, os signos formam cadeias – sintagmas – que permitem
que, com um número limitado de significantes em forma de palavras,
por exemplo (algumas dezenas de milhares), seja possível comunicar-se
acerca de qualquer experiência (que, em uma vida, deve chegar na casa
de muitos bilhões). Novamente, uma explicação simples de como as
palavras não designam nada na realidade ou não possuem significado
em si, ao contrário do imaginário jurídico.

5. RELAÇÕES

As relações entre signos acontecem sintagmaticamente e


associativamente. Não só os signos relacionam-se uns com os outros
mas também com valores inseridos nos falantes. Warat cita o exemplo
da palavra mãe285, que se associa a ternura, carinho, cuidado e assim
por diante. Assim, os signos fazem conexões explícitas e implícitas.
O imaginário jurídico fantasia um Direito fora das relações
associativas. Assim, o Direito estaria contido “lá”, ou seja, em uma
instância fora das relações sociais presentes. O Direito estaria contido

285
WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito I: interpretação da lei, temas para uma
reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 68.
195 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

ou “dentro” das palavras da lei ou enquanto “valores” “dentro” de um


princípio. As relações que acontecem seriam meramente lógicas. Assim,
o jurista afirma que foi a “aplicação” de uma regra lógica a derrogação
de uma norma “permitindo fumar dentro de ambientes fechados” por
“proibido fumar dentro de ambientes fechados”. Esquecem os juristas,
contudo, que antes da decisão acerca da derrogação é necessário
acessar a razão prática: é preciso saber em que locais há permissão,
o que é permitido fumar (cigarros, charutos), se cigarros eletrônicos
estão abrangidos, se um galpão é um lugar fechado, se só colocar o
cigarro na boca... enfim, as variáveis que as relações associativas e
sintagmáticas têm de resolver são múltiplas. Desse modo, a derrogação
não é uma questão de lógica, mas sim de lidar prático com o Direito,
uma vez que é necessário construí-lo e decidir sobre a ocorrência ou
não de derrogação.
Veja-se um caso prático: é de todos conhecido que o art. 7º
da Constituição traz o rol de direitos mínimos dos trabalhadores.
A legislação em sentido amplo (contrato, regulamento, convenção)
pode ampliá-los. Trata-se de um consenso de fundo entre os juristas.
Por emenda constitucional, a prescrição dos trabalhadores rurais foi
alterada, em seu prejuízo. A lei ordinária, contudo, continuou em sua
redação mais benéfica. Nesse caso, parece claro que a lei ordinária deve
continuar sendo aplicada, porque mais benéfica. Os juristas, contudo,
pensam que a Constituição “revogou” a lei ordinária. Por que em todos
os casos a lei ordinária pode aumentar direitos e apenas neste não? Isso
é assim por razões materiais: os juristas consideraram que a decisão
mais nova é mais justa ou algo do gênero. Enfim, a decisão sobre as
relações associativas no Direito no mínimo sempre é de fundo– e
nunca de lógica. Warat, contudo, vai mais além ao explorar as relações
nãopráticas e nãoteóricas, isto é, as que envolvem o imaginário dos
juristas.
De todo modo, Saussure imagina a linguagem enquanto
sistema de relações recíprocas. Tal descoberta é útil se feita em paralelo
com o Direito, e foi utilizada tanto para matrizes críticas quanto para
Teoria do Direito e discricionariedade 196

o positivismo. De fato, é possível observar o Direito de modo mais


complexo se se tiver, enquanto instrumentos teóricos, as ideias de
relações sintagmáticas e associativas. Percebe-se toda a complexidade
da formação dos sentidos do Direito desse modo.
Saussure divide a análise da linguagem em diacronia e
sincronia. Sincrônico tem a ver com o aspecto estático da linguagem,
enquanto que a diacronia com o aspecto dinâmico. Kelsen produziu a
conhecida divisão do Direito em estática e dinâmica jurídica. A estática
jurídica examinaria as normas a partir dos conceitos fundamentais a
qualquer sistema jurídico, enquanto que a dinâmica jurídica observaria
a produção de normas a partir de atos de vontade e autorizações em
escala hierárquica. Tanto um quanto outro plano estão destituídos, de
todo modo, de historicidade, colocando-se facilmente no campo das
mitologias jurídicas.
O ideal neopositivista reduz a ciência a um sistema de
enunciados linguísticos. O rigor científico é caracterizado não pela
profundidade ou algo assemelhado (visão clássica), mas sim pela
observação linguisticamente pura de algum fato do mundo. Por
observação entenda-se uma construção de um sentido que se pretende
meramente descritivo. Significa dizer que o cientista e a ciência são
meros instrumentos de facilitação de algo que está “lá” (a priori), ou
seja, a normatividade. Essa facilitação dá-se pela mera enunciação
descritiva do Direito. O intérprete não participa da construção do
sentido do fenômeno, apenas “revela-o”, “tirando-o” de algum lugar
(subsunção, exegese ou algo assemelhado).
Conforme Rudolf Carnap e Charles Sanders Pierce, a
interpretação do mundo é possível através da categorização em
planos: sintaxe, semântica e pragmática.286 O positivismo faz uma
interpretação peculiar desses planos. Entretanto, eles são úteis para o
aprofundamento teórico.
A sintaxe estuda as relações dos signos entre si. Nesse campo,

286
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 39.
197 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

observam-se as regras de formação dos signos. Os signos devem ser


utilizados conforme os usos da gramática. Assim, a Consolidação
das Leis Trabalhistas brasileira usou a palavra “poderoso”, quando a
doutrina postula que deveria ter sido utilizada a palavra “ponderoso”,
porque é óbvio que “poderoso” não pode ser utilizado naquele contexto
gramatical.
As regras de uso, no neopositivismo, podem ser advindas
da derivação. Isso significa que um conjunto de signos pode advir
de um outro conjunto de signos. Assim, de um conjunto de signos
fundantes seria possível derivar outros. É o sistema jurídico nos
moldes kelsenianos. Muito embora a fantasia kelseniana de norma
pressuposta seja demais para os padrões da cultura jurídica ocidental,
o Direito ainda se estrutura a partir de um mito de que a norma inferior
adquire sua validez e significado única e exclusivamente pela derivação
da norma superior. Não só tal constatação é falaciosa, uma vez que o
processo de validação e atribuição de sentido é muito mais complexo
(pois envolve decisões como o reconhecimento das práticas sociais,
da influência da doutrina, dos pré-juízos do intérprete, da vigência
de um determinado paradigma de Direito e por aí vai), mas também
absolutamente irracional. Isso porque, como Hans Albert demonstrou
em seu Trilema de Münchausen, um sistema de derivações só funciona
se renunciar à sua própria pretensão de fundamentação suficiente.
Explica-se: o positivismo busca superar um empirismo tosco,
ou seja, uma observação ingênua sobre o Direito (Direito enquanto
verdade revelada por Deus, pela razão, enquanto essência, enquanto
prática justa, etc.). Para tanto, deveria oferecer uma explicação que
fosse verdadeira ou suficiente. Assim, suas afirmações deveriam ser
fundamentadas. Para fundamentar a aplicação de uma norma, recorre-
se a uma norma superior e a outras – e é necessário fazer parar a
cadeia. Para fazer parar a cadeia, só pressupondo uma norma última,
como Kelsen fez. O problema é que a pressuposição, justamente pelo
seu caráter mitológico, derruba a própria pretensão de fundamentação
suficiente. Um círculo infinito ou um regresso infinito recaem nos
Teoria do Direito e discricionariedade 198

mesmos problemas – como o “barão mentiroso”, um sistema lógico só


funciona se tiver um início (ou um fim) posto dogmaticamente.
A semântica referir-se-ia à relação da linguagem com seus
objetos. É importante lembrar que esses conceitos foram cunhados no
287

início do século XX, quando ainda se imaginava alguma possibilidade


de a linguagem se relacionar com algum objeto de algum modo. A partir
de Wittgenstein, contudo, descobriu-se que linguagem só se relaciona
com linguagem. Não há possibilidade alguma de interação entre objeto
e linguagem, uma vez que se trata de impossibilidade prática total. A
linguagem serve para coordenar algum tipo de ação com outra pessoa,
e sua compreensão ocorre através de suas experiências prévias em
forma de linguagem com este mesmo mundo. Assim, nunca existe
uma relação linguagem-objeto. Entretanto, na época da semântica,
compreendia-se possível tal questão.
É possível (re)traduzir a semântica não como uma relação
com a realidade, mas sim como a interação dos signos com os jogos de
linguagem intersubjetivamente compartilhados entre os participantes.
Assim, uma determinada frase, “Sócrates é mortal”, poderá ser ou
não semanticamente verdadeira dependendo do discurso em que está
inserida (satisfazendo também questões pragmáticas de comunicação,
tangenciadas mais adiante). Se se está dentro de um discurso sobre
questões biológicas, a frase é verdadeira porque está conforme os
padrões de verificação dos jogos de linguagem intersubjetivamente
compartilhados; se está inserida em um discurso sobre as contribuições
para o conhecimento da humanidade, a frase não é verdadeira, porque
Sócrates sempre será imortal na filosofia. Assim, a frase semanticamente
não é verdadeira porque não está conforme os padrões de uso da
linguagem. Mas é necessário lembrar que só se entende o sentido do
discurso se se entender a situação pragmática de fala.
O positivismo tenta estabelecer a condição semântica a partir
de regras absolutamente explícitas e controláveis. Essas regras teriam

287
WARAT, Luis Alberto. A definição jurídica: suas técnicas. Porto Alegre: Atrium, 1977,
p. 27.
199 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

relação não com o comportamento alheio (não há intersubjetividade),


mas sim com um mundo de realidades físicas ou lógicas. Isso quer
dizer: o positivismo acredita que há uma ligação entre signo e “mesa”
enquanto ente físico, ou entre signo e “mesa” através de um mundo
de relações lógicas. Se tal afirmativa, acerca de um ente físico, é difícil
de sustentar, a transferência de tal problemática para o Direito,
que é formulado a partir de uma comunicação de uma expectativa
comportamental, é ainda mais complexa.
Um dos caracteres mais metafísicos do positivismo advém da
sua crença na referência do signo a algo288. Para o positivismo seria
possível até utilizar o predicado “verdade” como característica de um
signo. Assim, ao dizer que o IPTU tem natureza real estar-se-ia dizendo
um enunciado capaz de verdade, e não explicitando uma crença ou
prática social, ou um enunciado passível de correção.
Desse modo, no nível semântico mantém-se o primado do
raciocínio teórico. Os juristas conseguem escapar de discussões de
fundo sobre o significado das práticas sociais ao acreditarem que a
instância de sentido das normas é uma instância somente vericativa,
com enunciados passíveis de verdade. Significa dizer: se existe laços
entre signo e dado empírico, basta uma teoria que dê conta desses
laços. Desse modo, não seria necessário entrar na “arbitrariedade” da
história. O jurista preocupar-se-ia, por exemplo, em provar o caráter
“verdadeiro” do enunciado sobre o IPTU, mas não precisaria debruçar-
se sobre a correção e incorreção de tal proposição.
A condição semântica do positivismo, portanto, tem de
encontrar um referencial de verificabilidade nos fatos. No caso de
Kelsen, o fato encontra-se nos gestos necessários à aprovação de uma
norma. O sentido da norma dependeria, portanto, de um fato. A partir
daí, o Direito em Kelsen ocorre de maneira análoga aos fatos, a partir
da ideia de “ser-dever-ser”. O sentido da norma adviria da derivação da
norma superior. O positivismo, desse modo, encontraria uma verdade

WARAT, Luis Alberto. A digna voz da majestade: linguística e argumentação jurídica,


288

textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 81.


Teoria do Direito e discricionariedade 200

“objetiva” que entraria em contraste com as “opiniões”, as quais são


“subjetivas” porque não possuem verificabilidade com o mundo.
O positivismo, portanto, divide o mundo em enunciados
verdadeiros e falsos sobre o Direito, e o critério seria a referência a algo
no mundo dos fatos. E essa opinião ainda persiste no Direito, apesar
de já fazer quase um século que a virada linguística ocorreu. É como
se na ciência jurídica não houvessem decisões, alternativas e história,
apenas constatações de relações inevitáveis.
O positivismo ataca o jusnaturalismo não porque este
acredita em uma referenciabilidade das normas ao mundo. De fato,
jusnaturalismo e positivismo bebem na mesma fonte metafísica:
acreditam que a linguagem é uma terceira coisa que se interpõe entre
sujeito e objeto. A linguagem faria relações com coisas, não com
pessoas – afirmação absolutamente absurda nos dias atuais, mas
plausível à época. Para o positivismo, contudo, seu modo de conhecer
seria superior porque admite o caráter de decisão das normas criadoras
do Direito, além de exigir uma metodologia rigorosa de observação do
Direito.
O problema do sentido ocorre em duas dimensões. Em uma
primeira dimensão, o enunciado é valido porque conforme a norma
superior. A validez corresponde à verdade, para o positivismo. Na outra
dimensão, o enunciado científico sobre a norma é, ele mesmo, passível
de verdade. Essas questões serão exploradas mais adiante.
A pragmática estudaria a relação da linguagem com seus
usuários.289 Quer dizer que a intenção do falante em ouvir e em falar
pode acionar um outro dispositivo de ordem semântica e sintática.
Assim, o modo como a frase “você não tem jeito” é dita tanto pode
trazer uma regra de linguagem relativa a um elogio quanto a uma
reprimenda. No campo pragmático, determinadas consequências
não nitidamente estabelecidas podem ser observáveis e efetivamente
ocorrem na prática judicial. Assim, determinado doutrinador

289
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 45.
201 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

pode apresentar o ITCMD como imposto real para fins de “mera”


classificação. Mais adiante, um juiz pode utilizar essa classificação não
para “meramente classificar”, mas sim para dar efeitos normativos de
não incidência do princípio fundamental da progressividade, ao arrepio
do texto constitucional, mas ao gosto de certas ideologias e concepções
pessoais de tributação. O doutrinador, contudo, pode antecipar as
decisões judiciais, controlando-as e, ainda por cima, disfarçando sua
concepção política como mero enunciado científico. Tais fatos são
recorrentes no Direito. O positivismo, contudo, recusa-se a observar
uma dimensão de pragmaticidade na linguagem, preferindo observar
os fenômenos jurídicos como mera relação entre língua e conteúdo
dado, sem relações com seus usuários. Com isso, tenta estabelecer
controlabilidade e previsibilidade. Como não há relação entre língua
e objeto, e como a dimensão pragmática sempre está presente, a
ciência positivista, para poder se salvar, necessariamente terá de se
socorrer de um conhecimento ideológico, isto é, de um conhecimento
que estabelece proposições cujo sentido é ocultar relações essenciais
para a compreensão de qualquer fenômeno. Isso significa dizer: o
positivismo (e a ciência jurídica que nele bebe) não consegue lidar com
determinados problemas epistemológicos; ao invés de investigá-los,
prefere escondê-los, recorrendo a mitologias.
O positivismo, portanto, encaixa-se perfeitamente nas
exigências neuróticas de seus usuários: controle e previsibilidade de um
mundo que, “infelizmente”, não se encaixa na percepção dos juristas,
mas que, com a criação de defesas neuróticas, torna-se suportável
através de mentiras autoinduzidas – mas que causam sofrimento
inconsciente. No caso do Direito, é mais grave ainda que o sofrimento
seja causado na sociedade e não apenas nos seus próprios operadores.
Warat postula, desse modo, uma semiologia do poder e dos
desejos, tendo como umas das diretrizes epistemológicas orientadoras
não só a interdisciplinaridade já trabalhada, mas também a análise
da pragmática, cuja observação deve trazer as relações dos usos dos
signos com as intenções políticas, ideológicas e existenciais de seus
Teoria do Direito e discricionariedade 202

usuários. Ele deseja mostrar290 como ao mesmo tempo é possível


gerar um efeito de despolitização da ciência, tornando-a, desse modo,
mais política que nunca, e como é possível gerar efeitos retóricos de
inquestionabilidade e realidade sobre um saber tão fluído como o
Direito. Quando se imagina que a classificação dos tributos em real-
pessoal é uma classificação baseada na “realidade”, gera-se um efeito
de nãopolitização, de modo que estaria acima de qualquer suspeita
que, em realidade, está-se a se achar um subterfúgio qualquer para não
dar materialidade à Constituição. Quando se sabe que tal classificação
é apenas uma observação possível entre tantas e que sequer aparece no
ordenamento, a politização é explícita.
O mesmo poderia se dizer dos direitos sociais e individuais. Os
primeiros não seriam facilmente concretizáveis porque gerariam custo,
enquanto que os segundos teriam aplicabilidade imediata – apesar da
contemporânea observação de quão insustentável é tal divisão teórica,
pois garantir os direitos de civis e políticos custa tanto ou mais que os
direitos sociais. Afinal, será que o Brasil gasta mais com direito social
à moradia que com a garantia do direito individual de propriedade ou
político de voto (com polícia, judiciário, eleições, etc.)?

6. SILOGISMO

A famosa “subsunção” jurídica seria um exemplo de derivação.


Enquanto que Aristóteles postula para o silogismo um caráter de
apresentação do conhecimento, o positivismo radicaliza ainda mais
a metafísica, trazendo para o raciocínio prático propriedades de
derivação e de lógica. Assim, para o positivismo lógico, o silogismo
teria caráter de um enunciado que traria uma relação necessária. O
caso clássico de silogismo: todo homem é mortal, Sócrates é homem,

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito II: a epistemologia jurídica da


290

modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 340.


203 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

logo Sócrates é mortal. O silogismo só funciona se existir consensos


de fundo e decisões práticas; aliás, mantenham-se os consensos de
fundo e as decisões práticas e tire-se o silogismo e a decisão permanece
a mesma, de modo que a noção de silogismo é completamente inútil
para o Direito. O silogismo pressupõe, antes, uma escolha acerca do
sentido e da validade das premissas, assim como uma ligação entre as
premissas.
No caso “todo homem é mortal”, se se considerar apenas um
aspecto da vida biológica, poder-se-ia considerar que Jesus Cristo
é homem, mas não é mortal; ou que existem homens que, devido à
sua obra e feitos, são imortais; ou então que os homens são imortais
porque deixam um pouco de si para os seus descendentes; ou então
que a palavra “homem”, no caso, abrange mulheres. Por mais que
pareça óbvio que homem inclui mulher e que a morte, no caso, está se
referindo ao fim de um ciclo biológico que inclui autoestabilização de
um sistema basal, é necessário, para se chegar a essa obviedade, uma
série de decisões que simplesmente não estão na premissa maior.
A premissa menor é igualmente problemática. Além da
questão de ser possível considerar, por exemplo, que Sócrates é imortal
devido à sua obra, está-se dando por certa a sua existência física, uma
vez que há dúvidas se este filósofo não fora uma criação de Platão.
Outros questionamentos poderiam ser levantados – o que importa é
a constatação, novamente, de que a premissa menor também depende
de uma série de outras decisões pressupostas para fazer algum sentido.
A conclusão, como não poderia deixar de ser, é fruto de uma
decisão (histórica, que se coloca diante de milhares de alternativas) e
não de uma necessidade lógica291. Poder-se-ia perfeitamente construir
um silogismo: todo homem é mortal; ora, Sherlock Holmes é homem,
logo Sherlock Holmes é mortal. Ocorre que o silogismo simplesmente
não traz a informação de que Sherlock Holmes é um personagem de
fantasia e, logo, não pode ser mortal no sentido da premissa maior. E o

291
WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito I: interpretação da lei, temas para uma
reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 77.
Teoria do Direito e discricionariedade 204

que impediria: todo homem é mortal, Sócrates é homem,logo Sócrates


é imortal? Desse jeito, a conclusão seria contrária à premissa maior,
mas estaria correta se partíssemos do pressuposto de que a obra de um
homem o torna imortal, uma vez que a premissa maior não é explícita.
Passando-se para o Direito, pode-se imaginar o seguinte
silogismo, utilizando-se a norma do Código de Trânsito Brasileiro:
“Art. 219. Transitar com o veículo em velocidade inferior à metade da
velocidade máxima estabelecida para a via, retardando ou obstruindo
o trânsito, a menos que as condições de tráfego e meteorológicas não
o permitam, salvo se estiver na faixa da direita: infração - média;
penalidade – multa”. “Ora, João estava transitando a 7 km/h em uma
estrada cuja máxima é de 80 km/h, logo, João deve ser multado”.
Em primeiro lugar, nesse silogismo seria necessário antes
existir um consenso sobre a validade do CTB e sobre o significado de
“veículo” (abrange bicicletas?). Passando-se por esse problema, sempre
existem exceções para deixar aberta a norma em certos casos – e as
exceções geralmente são formuladas em linguagem vaga. Novamente,
vê-se que o raciocínio jurídico usualmente depende de uma série de
decisões que nem de longe são alcançadas com a utilização do silogismo.
Um dos fatores mais importantes é a construção da premissa menor.
Geralmente os juristas imaginam um fato como a premissa menor. Ora,
fatos são difíceis de interpretar: dependem de sentidos, testemunhas,
etc. Novamente, é necessário decidir qual é o sentido do fato, dando-
lhe credibilidade. Além disso, a escolha dos fatos observados vai
determinar também a premissa maior. Repetindo-se: a premissa maior
é escolhida através da premissa menor. Observe-se o mesmo exemplo,
com a adição de mais um dado: “Art. 219. [...]”– “João estava dirigindo
um caminhão de som, em uma manifestação pacífica, a 7 km/h, em
uma estrada cuja máxima é de 80 km/h, logo João deve ser multado”.
Aqui foi adicionado o fato de que o motorista estava participando
de uma manifestação pacífica. As manifestações pacíficas, como se
sabe, são permitidas pela Constituição, inclusive em vias públicas e,
evidentemente, podem ser acompanhadas por caminhão de som.
205 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

Quando se descreveu o fato de modo diferente, atraiu-se a


aplicação de outra norma e, portanto, outro silogismo: “Art. 5º - todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes: [...]XVI - todos podem reunir-se pacificamente,
sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de
autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente
convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente”. Ora, João estava dirigindo um caminhão de
som, em uma manifestação pacífica, a 7 km/h em uma estrada cuja
máxima é de 80 km/h,logo João não deve ser importunado.
Assim, o silogismo muda conforme a premissa menor muda.
A maneira como o fato é narrado determina a maneira como o Direito é
aplicado. Escolhem-se alguns dados empíricos e tem-se uma conclusão;
escolhem-se outros e tem-se outra. Além disso, o fato sempre é
avaliado pelo Direito. Assim, para se fazer a conexão com uma outra
norma é necessário antes que a premissa menor seja qualificada como
exercício de uma liberdade fundamental ou como infração de trânsito.
Da maneira como se escolhe qualificar o fato juridicamente tem-se um
ou outro resultado. Isso derruba a ideia de que existiriam fatos “puros”.
Assim, um outro silogismo: “Todo aquele que mata alguém deve ser
punido, nos termos do Código Penal, exceto se em legítima defesa”.
Ora, João estava em legítima defesa, logo João deve ser absolvido. A
proposição de que João estava em legítima defesa é uma proposição
que avalia juridicamente um fato. Para se saber se havia legitima defesa
ou não, será necessário conectar o Direito com o fato para só depois
levá-lo ao silogismo. Enfim, de todas as operações, a prescindível é a
que veicula o silogismo.
Mas existe ainda a decisão fundamental, que é a ligação da
norma à consequência. Veja-se, no caso, não há nenhuma relação
necessária entre dirigir em uma manifestação pacífica e a Constituição,
Teoria do Direito e discricionariedade 206

ou entre o CTB292. O jurista terá de decidir qual norma aplicar ao fato.


É precisamente esta a afirmação: no Direito é muito comum (talvez na
totalidade dos casos) o jurista ter de escolher qual norma vai aplicar ao
fato. O jurista tem várias opções de norma aplicáveis ao fato, e escolhe
a que lhe parece mais correta. O jurista, enfim, decide historicamente
– utiliza da razão prática – e não meramente enuncia uma verdade
necessária.
Outro exemplo. É consenso que aquele que é pai deve
pagar pensão. Em um caso concreto, poder-se-ia pensar numa série
de variáveis, como capacidade econômica do pai, da mãe e idade do
filho para pôr em dúvida a simplicidade da afirmação. Novamente,
simplifique-se os dados e fique-se apenas com a ligação do fato à
norma. Por que escolher conectar o fato biológico pai-filho com uma
norma que manda pagar pensão? Por que não conectar essa relação
com o Direito de propriedade, com a liberdade e com a intimidade, de
modo a se desonerar o pai? É evidente que uma tese nesse sentido seria
absurda (em termos, porque é trazida naqueles momentos em que é
preciso decidir até quando a pensão será paga, ou então no conflito
paternidade biológica versus afetiva). Mas, mesmo assim, alternativas
existem. Assim, sempre há alternativas e possibilidades de conectar
um fato com mais de uma norma. No caso em discussão, as demais
alternativas são absurdas. Mas são absurdas não por critérios lógicos,
mas por critérios substanciais, isto é, porque é errado pensar que a
intimidade é forte o suficiente para olvidar o dever familiar de alimentos.
A sintaxe e a semântica, mesmo em uma situação óbvia como essa,
não ajudaram em nada. Esclarecer os sentidos dos termos, mediante
recorrência a dicionários ou algo assim em nenhum momento ajudou
na decisão.
É importante trazer aqui o ensinamento habermasiano.
O Direito é um meio linguístico cuja função é carregar argumentos
produzidos na comunidade. Esses argumentos são de ordem moral,

292
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 89.
207 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

ética e pragmática. Os argumentos são analisados e transformados


em jurídicos através do procedimento de criação do Direito. Assim, se
alguém tem o dever de pagar alimentos ou de ligar o pisca para fazer
uma conversão à esquerda, esse dever é jurídico, isto é, advém de uma
norma jurídica. Assim, faz-se ou deixa-se de fazer uma coisa por causa
de uma norma, ou seja, por causa do Direito. Entretanto, só se entende
a norma recorrendo-se às suas razões de base, e as razões de base
nunca podem ser jurídicas, porque simplesmente o Direito não tem
conteúdo próprio, uma vez que é um meio de veiculação das decisões
da comunidade (cujas razões são um amálgama de razões morais,
éticas e pragmáticas em um procedimento). Assim, deve-se pagar
alimentos porque a comunidade decidiu, utilizando-se de argumentos
morais; o pisca é útil como forma de organização do trânsito, logo é
pragmático. Fica explicado porque é tão difícil, a partir do positivismo,
achar um argumento “jurídico”: eles simplesmente não existem. A
solução positivista ou é um semanticismo ingênuo, tentando descobrir
o significado das palavras e fazendo associações lógicas, de modo a se
chegar a uma decisão sem examinar os argumentos de base, ou, como a
solução primeira nunca é suficiente, delega-se o poder ao juiz para que
decida como quiser (discricionariedade). Tudo isso para não admitir o
caráter de razão prática do Direito (isto é, uma razão que decide o certo
e o errado com base em razões substanciais).
É evidente que na prática dos foros não é assim. Os juristas
analisam os argumentos de base. Entretanto, a resposta neurótica da
prática comunitária não é revisar sua própria concepção de Direito,
mas sim manter defesas para ainda se pensar em critérios puramente
jurídicos. Não se pense que a teoria dos princípios é uma superação da
mitologia positivista. Pelo contrário, é apenas mais expediente retórico
para se manter as fantasias de silogismo nos casos fáceis e a ideia de
conteúdos puramente jurídicos. Sobre isso, caberá ver, mais adiante,
as falácias jurídicas.
Algumas vezes o silogismo é manipulável a partir de meros
expedientes retóricos. Assim, veja-se o caso do teto constitucional e o
Teoria do Direito e discricionariedade 208

subsídio. Uma vez que no conceito de subsídio estão abarcadas apenas


as parcelas remuneratórias, é possível (sintática e semanticamente)
transformar qualquer coisa em parcela indenizatória, escapar do
conceito de subsídio e, logo, do teto constitucional.
O problema não está na filosofia do silogismo, mas sim em
sua recepção pelo Direito. O silogismo, neste mundo carrolniano,
teria caráter constitutivo: a resposta estaria “nele”, e não na prática
comunitária. A ciência jurídica – na mitologia neopositivista – apenas
“enunciaria” a verdade contida no silogismo – verdade que seria
necessária. Isso é assim, repita-se, para mascarar o caráter de decisão
do Direito e imaginá-lo como um mundo seguro e controlável de
proposições sem nenhuma contradição.
Fica fácil de explicar também o desespero dos positivistas
quando percebem as insuficiências do silogismo. Uma vez que ele
não contém nenhuma informação, a mera colocação das premissas
em forma de silogismo não permite que nada seja feito, a não ser que
as premissas sejam tão consolidadas a ponto de parecer que não há
escolhas. Daí a recorrência do positivismo à ideia de autoridade, ou
seja, no limite, Direito é aquilo que uma autoridade tem capacidade de
dizer o que é.

7. LINGUAGEM-OBJETO E METALINGUAGEM

Segundo Rudolf Carnap, citado por Warat, a linguagem-objeto


é a linguagem sobre o que se fala, enquanto que a metalinguagem é a
linguagem que fala da linguagem-objeto.293 A metalinguagem, portanto,
observa a linguagem-objeto. Constrói-se um outro nível de linguagem
e, assim, consegue-se analisar o fenômeno.
Se se imaginar possível a aplicação de alguma lógica aos

293
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 48.
209 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

fenômenos sociais, então a metalinguagem ajudaria na preservação


dessa lógica. Assim, no exemplo dado por Warat, a frase dita por um
cretense – “os cretenses sempre mentem” – seria uma aporia se se
ficasse no nível da linguagem-objeto. Entretanto, se se saísse do nível da
linguagem-objeto para o da metalinguagem, a lógica poderia se salvar,
achando-se um lugar para as aporias enquanto um discurso à parte
como pertencente a um campo filosófico específico e peculiar. Assim, a
metalinguagem permitiria o controle da linguagem-objeto ao desfazer
os paradoxos que se manter no nível da linguagem-objeto provoca. A
troca de nível seria a garantia da pureza do discurso científico, uma vez
que, ao se abandonar a linguagem-objeto, deixar-se-ia, junto a ela, os
elementos impuros do Direito. Com a pureza conseguir-se-ia atingir as
demandas neuróticas de segurança, controlabilidade e suportabilidade
do status quo. Os juristas utilizam desse expediente quando falam,
por exemplo, em conflito aparente de normas. Na cabeça média dos
juristas, em um primeiro nível realmente é possível que mais de uma
norma possa se enlaçar a um fato. Entretanto, a partir da ciência
dissolver-se-iam os paradoxos e seria revelada a “verdadeira” norma
aplicável ao caso. Ou seja, a metalinguagem resolveu um problema
“aparente” da linguagem-objeto.
O discurso doutrinário é, desse modo, a metalinguagem das
normas. As normas são a linguagem-objeto diante das quais recai o
discurso dogmático. Este abstrai um nível para obter a pureza. Assim,
no nível da metalinguagem, apenas descreve-se fenômenos jurídicos ou
se atesta eles.294 Por exemplo, um enunciado sobre a validade de uma
lei abstrai toda a complexa prática social de se atribuir sentido, de se
aceitá-la, etc., para fazer uma ligação entre norma inferior e superior.
Falando de outro modo: é impossível derivar algo de algo dentro do
Direito, porque se trata de uma razão prática. Assim, quem decide que
o direito decorrente do aluguel é um direito pessoal o faz a partir de um
complexo de práticas jurídicas situadas historicamente. O discurso,

294
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 50.
Teoria do Direito e discricionariedade 210

entretanto, remete apenas à validade da norma. A ligação entre norma


superior e inferior, evidentemente, não está na norma; quem diz que
a norma inferior decorre da superior é a doutrina. Entretanto, com a
metalinguagem torna-se possível fazer essa ligação e, ao mesmo tempo,
disfarçar o caráter constitutivo/decisivo do discurso científico para o
Direito (da jurisprudência e das crenças sociais também).
A prática jurídica participa da validez do Direito. Entretanto,
o discurso científico utiliza a metalinguagem para disfarçar o caráter
de decisão da interpretação do Direito. A metalinguagem apenas
constataria a verdade/inverdade dos dados da linguagem-objeto.
Para Warat, Kelsen coloca a própria norma como
metalinguagem de atos do Estado e da sociedade. Assim, a norma seria
uma purificação do fato social, transformado em jurídico. O enunciado
doutrinário seria a purificação da norma. Os conflitos sociais, as
ideologias e os argumentos de base vão ficando para trás à medida que
se purifica o Direito através de metalinguagens sucessivas. As normas
falam da sociedade a partir de uma perspectiva única e possível; os
enunciados doutrinários, acerca das normas. Vê-se aí, portanto,uma
das razões da pobreza científica no Direito contemporâneo.
Como diz Warat, a doutrina, aqui, consegue fechar o círculo
de produção de sentido em volta da figura juiz-legislador. É como se
não houvesse cultura, história ou uma pluralidade de atores sociais no
processo de significação/produção da norma.

8. DEFINIÇÕES

Se se imaginar o sistema jurídico como um sistema que


contém todas as informações para a tomada de decisões em uma
quantidade pequena de normas, sem se recorrer a processos sociais e
históricos de produção de sentido, é necessário ter-se uma teoria das
definições própria, isto é, uma teoria dos conceitos que mantenha o
perfil positivista. A “missão” de uma teoria das definições positivista
211 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

seria criar categorias científicas que atribuam sentido às normas.


Assim, cabe à doutrina apenas “revelar”, através de conceitos, os
sentidos que estariam desde já sempre na norma. A norma conteria
em si toda a informação necessária para a tomada de uma decisão; a
doutrina apenas esclareceria os significados dos termos – termos esses
que possuiriam uma pureza jurídica, isto é, seriam termos “jurídicos” e
não morais, ou algo assim.295
Se a ciência só “revela” sentidos, mantém-se o circuito fechado
de norma-decisão judicial. Vários mitos são mantidos desta maneira: o
da existência de uma linguagem técnica; de completude do Direito; do
caráter enunciativo da doutrina; da não interferência da doutrina e da
sociedade na produção de sentidos, e por aí vai.
É evidente que é uma postura infantil, uma vez que os sentidos
no Direito são produzidos, em primeiro lugar, por decisões – e por
decisões altamente complexas, que envolvem muitas variáveis e atores.
Para se chegar nesse nível de ocultação de complexidade e manter-se
os ideais neuróticos de previsibilidade, controlabilidade total, entre
outros, é necessário o uso de diversos expedientes retóricos. Esses
expedientes retóricos causam sérios prejuízos para a seriedade da
ciência jurídica.
A teoria das significações positivista adota uma matriz
designativa. Através da descrição de elementos comuns, abstrai de
fatos e gera um conceito idealmente livre de perspectivas fáticas
acidentais e, portanto, puro. Sua certeza adviria de elementos lógicos:
a enunciação dos elementos comuns. Assim, o contrato de compra e
venda é caracterizado pelos elementos comuns a todos os contratos
de compra e venda, desprezando-se os elementos ocasionais (o que
efetivamente foi comprado, as partes, etc.).
Há várias fábulas em volta da teoria dos conceitos positivista:
1) o caráter de mera enunciação dos conceitos: a ciência
jurídica não faria parte da construção dos sentidos, apenas enunciaria

295
WARAT, Luis Alberto. A definição jurídica: suas técnicas. Porto Alegre: Atrium, 1977,
p. 55.
Teoria do Direito e discricionariedade 212

os sentidos existentes desde já e sempre na norma, sem constituí-los;


2) o caráter de mero esclarecimento acadêmicos dos conceitos:
como não há participação nas decisões, os conceitos são meramente
acadêmicos, sem repercussões nos direitos do cidadão;
3) o conceito identificaria o objeto designado: há uma cisão
entre conceito e objeto, sendo que, para se saber o que é algo em Direito,
o conceito apresenta-se como suficiente para a identificação do objeto;
conhece-se antes o conceito e depois o objeto. A ciência enunciaria o
conceito, observando o objeto a partir de métodos científicos. O jurista
comum, não cientista, utilizaria o conceito e, a partir daí, identificaria
os objetos;
4) o caráter “jurídico” dos conceitos: muito embora só a
norma seja “jurídica” para os positivistas, o conceito também seria
“jurídico”ou porque expresso em uma linguagem pura ou porque
seria uma mera decorrência da norma, isto é, só uma explicitação
de o que já está contido na norma, ou devido simplesmente a algum
dado jusnaturalista – algo que fora desde já sempre jurídico –, como
as famosas recorrências a brocardos do Direito romano em sede de
Direito e Processo Civil;
5) o caráter estável do conceito: em princípio, o conceito não
pode mudar porque o objeto não pode mudar, uma vez que seria um
princípio essencial da ciência a estabilidade das coisas. Se um conceito
mudou é porque ele estava errado – e não que houve evolução social296;
6) o caráter de atualidade do conceito: entretanto, nos casos
em que a lei muda ou a “realidade” se modifica, o conceito é modificado.
Ele é modificado, entretanto, para meramente “refletir” a realidade
social, sem participar desta;
7) o elemento da “precisão” do conceito: os conceitos
consagrados conteriam todos os elementos necessários para se
identificar o objeto e, se não se alcançou ainda a precisão, esse é um
ideal desejável e possível.

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito III: o Direito não estudado pela Teoria
296

Jurídica Moderna. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1997, p. 172.


213 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

O ideal de ciência positivista, por óbvio, não permite concatenar


posições ideológicas entre seus diversos espaços. Entretanto, é fácil
perceber que, sem se aceitar religiosamente os mitos acima, não é
possível pensar em sistema jurídico na forma positivista. Se as decisões
estão contidas nas normas, se uma norma deriva da outra e se a ciência
meramente revela as decisões contidas nas normas e os juristas da
práxis meramente as efetivam, então é necessário uma teoria dos
conceitos que mantenha toda essa série de crenças. Imaginar, por
exemplo, que a ciência jurídica é uma força social que participa da
produção do sentido na norma já derrubaria parte do ideário. Daí a
força axiomática dos postulados principais da ciência positivista para o
Direito e a necessidade de manutenção deles a qualquer custo. O atual
movimento “pós-positivista” ou “constitucionalista” ainda comunga de
boa parte dessa mitologia, de modo que a crítica ainda é atual.
Sobre a primeira fábula acima referida, é evidente que a
produção de sentido da norma dá-se socialmente. Não só a noção de
signo demonstra – em sua realidade bifásica – que o texto (enquanto
significante) não contém nenhuma informação em si mesmo, mas
também, como qualquer sentido, é produzido socialmente através de
uma pluralidade de atores. É fácil visualizar: uma norma é produzida
e vai aos poucos consolidando seu sentido a partir da participação
da doutrina e da jurisprudência. Um sentido é formado através de
múltiplas decisões de múltiplos atores. É necessário dizer também
que a doutrina não ajuda a atribuir sentido à norma apenas a partir
de um puro exercício de intelecto de um doutrinador independente. O
doutrinador, assim como o juiz, participa de um grupo profissional297 e
de uma sociedade, e interage com esta. Isso significa dizer que, mesmo
indiretamente, a produção de sentido sempre será social. Isso se não
se pensar em pressões sociais mais diretas, como mobilizações sociais
diante dos tribunais superiores para uma ou outra conceituação (células-
tronco como organismo vivo ou não). Assim, um sentido sempre é

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito II: a epistemologia jurídica da


297

modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 85.


Teoria do Direito e discricionariedade 214

formado através de uma multiplicidade de decisões e de interações


sociais. Essa multiplicidade é de difícil visualização e, menos ainda,
controle a priori ou a posteriori, ainda mais em se imaginando a figura
de um juiz super-herói, ou, ainda mais neurótico, um doutrinador capaz
de criar teorias e critérios de observar e controlar todas as decisões e
significações futuras.
Sobre a segunda: não só as decisões da doutrina participam da
produção do sentido da norma, mas também, é claro, comportamentos
dos agentes públicos são influenciados por essa mesma produção da
norma. Assim, apesar da inexistência de qualquer dado nesse sentido
na lei e na Constituição, conceituar um tributo como “pessoal” ou
“real” vai fazer com que seja possível, ou não, a progressividade. Assim,
raramente os conceitos são impunes. Todo aquele que conceitua algo
em Direito está decidindo e está se colocando dentro de uma cadeia de
decisões que vai repercutir no Direito do cidadão.
Sobre a terceira: a ciência jurídica adere ao platonismo. As
coisas existem per si, independentemente das práticas sociais298. Os
conceitos servem de terceira coisa entre o sujeito e a essência. Desse
modo, para se apreender a essência é necessário conhecer o conceito.
Apenas a ciência, observando “fontes” como o Direito romano ou
grandes juristas, poderia gerar enunciados. O conceito seria verdadeiro,
conforme Wittgenstein, se fosse um espelho dos fatos (da essência). Aos
demais juristas caberia apreender passivamente o conceito. Veja-se,
por exemplo, os juristas quando buscam a “morfologia” dos conceitos,
como se eles fossem coisas.
Na quarta fábula vê-se uma anedota ao imaginário positivista.
De fato, o positivismo quer observar o Direito de modo rigoroso e,
portanto, quer formar uma observação peculiar e pura, logo jurídica.
Entretanto, as decisões só estão contidas nas normas. Trata-se de
um caso típico de paradoxo: só as decisões legislativas são jurídicas.
Entretanto, os enunciados têm de ser puros, logo “jurídicos”. Essa

298
WARAT, Luis Alberto. A definição jurídica: suas técnicas. Porto Alegre: Atrium, 1977,
p. 33.
215 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

questão é resolvida pela dogmática tradicional recorrendo-se à noção


de linguagem-objeto e metalinguagem. Linguagem-objeto seriam as
normas, e estas seriam jurídicas a partir da ideia de que a norma superior
diz que quando deputados levantam a mão aprovando um projeto, este
se torna norma. A metalinguagem – a ciência jurídica –seria “jurídica”
porque revela a juridicidade da norma. Eis a questão: será suficiente
(para a ciência positiva) dizer que qualquer enunciado que se refira
a uma norma é “jurídico”? Não era a meta da ciência jurídica buscar
enunciados “puros”? Assim, seria necessário que a proposição sobre
a norma não mencionasse elementos político-ideológicos-metafísicos.
Isso os juristas podem fazer, mas a simples não menção garante a
inexistência destes? Diante de perguntas inconvenientes, os juristas
poderiam ainda dizer que os enunciados incorretos ou impuros não são
jurídicos a partir do surgimento de um enunciado correto. Quem detecta
os enunciados incorretos? Não seria necessária uma comunidade? E
não seria um caso de aprendizagem/evolução? Enfim, esse é um campo
efetivamente embaraçoso para o positivismo lógico.
Na quinta fábula mencionada aparece a inserção do conceito
dentro de um sistema de representação no qual o Direito seria uma
ordem lógica regida por leis estáveis, ao gosto do positivismo pré-
escola de Viena. Se o Direito é uma ordem estável, com leis de
derrogação, decisão, etc., bem conhecidas, formalizáveis e controláveis
logicamente, então é claro que os conceitos não podem ser flutuantes;
devem, isto sim, possuir estabilidade. Desse modo, os erros que a
prática jurídica vai apontando nos conceitos existentes não são frutos
de uma evolução ou mudança social, mas sim a mera substituição de
um conceito que não havia atingido a “verdade” por outro que tenha
atingido esse objetivo.
A sexta fábula trata de uma questão já trabalhada. A matriz
positivista trabalha com unifatorialismos: ou há influência da sociedade/
doutrina na ciência ou tem de ser o contrário ou simplesmente não é
algo digno de se pensar. As interações sociais são complexas demais
para serem lidas nessa perspectiva tão simples. É interessante notar
Teoria do Direito e discricionariedade 216

que, apesar da fantasia de que o Direito poderia controlar a sociedade,


os juristas não se consideram legitimados a pensar a doutrina e a
jurisprudência como fontes de decisão acerca do Direito. Outro aspecto
relevante é o de que, como a ciência positiva imagina a sociedade como
tendo alguns conteúdos cambiantes, mas com leis e lógicas cognoscíveis
e estabelecidas a priori, então somente em casos especiais (ex.:
relacionamentos homoafetivos) a ciência jurídica estaria “autorizada”
a “reconhecer” processos sociais. Fora desses eventos muito especiais,
o Direito seria aquela mesma estrutura cientificamente estruturada
desde o Direito romano. Sobre esse ponto, a ciência jurídica chega
até a ser hilária. Por exemplo, introduz-se, em livros de Direito Civil,
a necessidade de ler o Código Civil à luz da Constituição. Entretanto,
quando se chega ao livro referente ao Direito das coisas, há uma larga
digressão sobre quem seria o proprietário do álveo abandonado ou das
porções de terra em caso de aluvião e avulsão, sendo que, é sabido, as
margens dos rios são públicas, de modo que não há qualquer sentido
nesse tipo de discussão (mas havia no Direito romano e no Código de
Napoleão e, por isso, ela persiste até hoje – e os estudantes de Direito
pagam por esses livros).
Na sétima, o positivismo estabeleceu como fábula fundante
o caráter “preciso” dos conceitos299. Evidentemente, nunca um
conceito será preciso, uma vez que ele perderia sua capacidade de
enlace. Propositalmente é necessário que os conceitos sejam vagos
e elásticos para que não seja necessário convencionarem-se novos
nomes para cada detalhe nas comunicações que vão aparecendo. É
interessante que, na prática dogmática, essa necessidade é atendida.
Os doutrinadores sempre recorrem ao caráter “provisório” de seu
conceito, dando desculpas de antemão por não conseguirem atender às
exigências de precisão. Precisos e admiráveis seriam aqueles conceitos
de juristas de outras eras, como os romanos, Chiovenda ou Pontes
de Miranda. Entretanto, esses conceitos raramente se enlaçam com

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito II: a epistemologia jurídica da


299

modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 134.


217 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

facilidade no Direito contemporâneo. Assim, os conceitos modernos


são provisórios; os antigos, admiráveis, mas descompassados. Através
de pequenos expedientes, tais como exceções e desculpas, aceitam-se
conceitos que não atendem às exigências de precisão da própria ciência
jurídica positivista.
Por outro lado, às vezes certa precisão é tentada a custa
de capacidade de enlace. Assim, ou se criam novos conceitos
(desdobramentos) ou surgem correntes de doutrinadores criticando as
insuficiências da corrente contrária. O sistema jurídico é interessante
neste aspecto: de uma mesma construção social (ex.: administração
pública ou tributo) podem surgir diversos conceitos que coexistem no
ordenamento jurídico e que concorrem, sendo utilizados pelos juristas
para que tomem decisão. Repita-se: a pluralidade de conceitos sobre
algo é importante dentro do Direito porque permite que o Direito
resolva diferentes problemas. O mais curioso é que a pluralidade de
conceitos existe em um sistema social que possui uma ciência cujo
símbolo é uma adaptação forçada dos princípios da não contradição
e da identidade nas ciências duras (uma coisa não poderia ser duas
ao mesmo tempo), isto é, a ciência jurídica positivista exigiria, como
símbolo, apenas um conceito verdadeiro. Ocorre que o sistema jurídico
funciona justamente porque existem diferentes conceitos utilizáveis.
O sistema jurídico elaborou sua resposta neurótica com base nas
correntes. Assim, o jurista utiliza o conceito A da corrente 1 para
resolver o problema X, dizendo que a corrente 2 está errada, etc; outro
jurista pode utilizar um conceito B, da corrente 2, para resolver um
problema Y, e dizer que a corrente 1 está errada. Mantém-se, desse
modo, a necessária pluralidade de conceitos, mas também o símbolo
de univocidade da ciência positivista.
Assim, para se falar da necessidade de desafetação e
impossibilidade de penhora, é interessante conceituar bens públicos
como aqueles de titularidade da Administração Pública de Direito
Público, enquanto que os bens que não possuem essas características
seriam privados (das empresas públicas, por exemplo). Quando se tem
Teoria do Direito e discricionariedade 218

de responder um problema relativo à impossibilidade de usucapião,


contudo, dizem-se “bens públicos” todos aqueles pertencentes a
qualquer entidade da Administração. Desse modo, o conceito ajuda
a resolver problemas diferentes e vai mudando conforme outros
aparecem. Evidentemente, o conceito sempre poderia ser trabalhado
(ex.: inventar que existem bens públicos lato sensu e stricto sensu),
mas é um processo que enfrenta certas dificuldades, dado o platonismo
do positivismo (o conceito deveria ter base legal ou em algum grande
doutrinador do passado – estes saberiam a ligação do signo com a
“realidade”).
Com todos esses recursos, torna-se possível aos juristas decidir
usando os conceitos, mas, ainda sim, disfarçar que estão meramente
deduzindo.

9. FALÁCIAS

Warat vai chamar a atenção para as cargas emotivas contidas


no campo conotativo da linguagem. As cargas emotivas também contêm
a possibilidade de informação e, portanto, podem gerar comunicação
em um ou outro sentido, não podendo ser desprezadas. Warat dá
um exemplo muito claro: é diferente a carga emotiva que a frase “os
burocratas querem ganhar mais” tem em relação a “os servidores
públicos demandam remuneração mais justa”.300 A carga emotiva é
disfarçada pela aparente forma denotativa do discurso. Desse modo, o
emissor consegue aproximar o ouvinte de sua intenção desejada. Tanto
é melhor se se puder mascarar a afirmação como se fosse empírica (isto
é, correspondente a uma “realidade”).
Um tipo de definição emotiva é a que recorre a estereótipos.
Os estereótipos contêm forte carga emocional sob uma forma empírica

300
WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995,
p. 69.
219 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

para tentar passar uma ideia de precisão denotativa, mas, na verdade,


apresentam-se vagos e, portanto, manipuláveis. Um exemplo é
o tipo penal do estupro: extremamente repulsivo em termos de
conteúdo emocional, com aparência de descrever uma conduta, mas
absolutamente vago em informações para a ação, sendo praticamente
um “cheque em branco” para o juiz.
Os estereótipos “tecnicizam” a ideologia, retirando seu caráter
de conflito social. Assim, ganhar acima do teto constitucional vira
direito adquirido – direito fundamental do cidadão em um Estado
Democrático de Direito. Os estereótipos permitem a continuidade da
ordem (consensualmente injusta) atualmente posta. Através de sua
carga valorativa, têm o condão de, pela sua mera menção, gerar adesão.
Quem não se comove com a invocação dos direitos do cidadão?
Na visão de Warat, os estereótipos só são possíveis diante
de um longo processo de formação. Eles se baseiam em crenças
generalizadas, difundidas acriticamente na sociedade.
Os estereótipos são usados nas falácias nãoformais, isto é, nas
falácias de conteúdo. Falácias são os argumentos que, chegando a uma
conclusão, produzem persuasão sem, contudo, apresentarem enlace
com razões substanciais. Elas conseguem, pelo uso, produzir um efeito
de persuasão através da forma de uma conclusão lógica. O silogismo
geralmente é a forma de apresentação de uma falácia.
A falácia não formal parte de um valor que pretensamente
estaria generalizado na sociedade para se chegar a uma determinada
conclusão. Assim, de uma afirmativa aceita – de que o sigilo fiscal
deve ser preservado – vem a conclusão de que os diferentes entes da
Administração Pública não podem trocar informações.
As falácias geralmente fazem uso da ambiguidade natural
da linguagem. Trata-se de utilizar palavras ou frases cujo significado
muda a partir do seu uso. Como dentro do esquema do pensamento
positivista a solução seria adotar uma perspectiva semântica mais
precisa pela substituição da linguagem natural pela técnica, e não
clarificar as condições pragmáticas de fala, estão abertas ainda as portas
Teoria do Direito e discricionariedade 220

para que se mantenha o jogo retórico de ocultação das ideologias, uma


vez que o próprio recurso à imaginação de uma linguagem técnica já é
um elemento ideologicizante.
Um primeiro tipo de falácia vale-se de termos anfibiológicos.
Trata-se de um sintagma, ou seja, uma sucessão de signos que não é clara
em suas bases. Assim, no exemplo de Warat301, a palavra “democracia”
seria um termo anfibiológico, pois, uma vez colocado em um sintagma,
poderia legitimá-lo sem que necessariamente estivesse explicado o que
significa “democracia”. Assim, pode-se caracterizar como democrático
a supressão de direitos sociais porque o procedimento formal fora
seguido, muito embora justamente façam parte do núcleo das garantias
democráticas.
Já a polissemia, nos dizeres de Warat, serve para armar
esquemas demonstrativos de inferência a partir de um significado aceito
para outro. Por exemplo, dizer que determinado juiz seria um bom
político porque decidiu adequadamente algumas questões. É evidente
que as qualidades de um caso não se transferem automaticamente a
outro. Porém, sofre-se aí um efeito de persuasão a partir da polissemia
permitida pela linguagem.
Na falácia do processo produtivo a ambiguidade reside na
troca da qualidade por atividade e vice-versa. Por exemplo, pode-se
dizer que uma determinada decisão – por exemplo, a abertura, via lei,
de uma exceção às zonas de preservação ambiental para a construção
de um loteamento – tem qualidade democrática porque foi produzida
pelo debate dos vereadores. No caso o processo foi democrático, já o
produto é questionável.
A falácia da composição consiste em atribuir uma qualidade
de gênero a uma determinada espécie sem que exista tal relação. O
processo pode também ser contrário, ou seja, escolher-se um atributo
consensual de uma espécie e generalizá-lo ao grupo. Assim, por exemplo,
pode-se partir do consenso de que não é possível progressividade no

WARAT, Luis Alberto. A digna Voz da Majestade: linguística e argumentação jurídica,


301

textos didáticos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009, p. 237.


221 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

imposto sobre transmissão de bens imóveis e generalizar para toda a


gama de “impostos reais” e, com isso, atingir também o imposto causa
mortis.
A falácia do acidente, nos dizeres de Warat, tem por conteúdo
a aplicação de uma regra geral a um caso particular quando não é o
caso, dada uma exceção que estaria evidente não fosse a linguagem
técnica. Assim, no exemplo dado por Warat, a conduta de matar alguém
é proibida. Entretanto, se for a conduta do carrasco, não só é permitida
como também obrigatória.
A falácia mais comum é a da apelação à autoridade. Com
essa falácia, o falante atual pretende persuadir ao incorporar opiniões
do Direito de priscas eras ou de doutrinadores de renome. Ocorre
que, como é evidente, não só a situação datal é diferenciada, como
efetivamente o apelo à autoridade pode estar desconectado da situação
atual – como na prática usual de jurisprudência enlatada. Por fim,
mesmo que seja uma situação precisamente aplicável, nada autoriza
que, pelo simples fato de o Direito de outrora (ex.: Direito romano) –
ou de que um renomado doutrinador – tenha opinado em determinada
direção, que automaticamente, sem exame das razões de fundo, o
argumento seja verdadeiro.
A falácia da pró-causa é muito comum no Direito, dada a
pseudointeração dos operadores jurídicos com a realidade social.
Trata-se de atribuir a uma determinada consequência uma causa,
considerando a sucessão no tempo entre as duas comunicações. Por
exemplo, pode acontecer de um determinado índice de criminalidade
aumentar ou diminuir depois da criação de uma lei que pune de
modo mais brando ou mais rigoroso a conduta. A falácia consiste em
atribuir a lei como causa da consequência, sem maiores exames acerca
da complexidade possível de ser observada, tais como modificações
culturais, midiáticas e econômicas. Enfim, nada garante que o aumento/
diminuição fora consequência da lei; de fato, ela pode ser irrelevante.
Para estabelecer uma relação causa/efeito seriam necessários
mecanismos de observação muito sofisticados teoricamente, além de
Teoria do Direito e discricionariedade 222

pesquisa de campo, o que não é comum no Direito.


A falácia contrario sensu tem por significado o de que uma
afirmativa contrária a uma proposição aceita como verdadeira teria
algum efeito jurídico. Assim, é verdade que a Constituição estabelece
enunciativamente direitos para a doméstica, contrario sensu, os direitos
trabalhistas que não estiverem enunciados na Constituição Federal
para as domésticas não estarão contemplados, incluindo o direito à
idade mínima. Assim, do fato de uma afirmativa estar confirmada, o
seu contrário não é necessariamente correto, também dependendo de
uma avaliação material.
Poder-se-ia acrescentar, ainda, a título de contribuição para
Warat, algumas outras falácias.
A falácia da exceção tem por conteúdo o raciocínio de que, se
for aberta uma exceção para determinada situação, todas as situações
semelhantes serão abarcadas pela solução. Assim, por exemplo,
combate-se a relativização da coisa julgada para o caso de decisões
judiciais ocorridas sem que fosse feito prova por exame de DNA com
o argumento de que, se for relativizado naquele caso, todas as demais
situações de coisa julgada serão atingidas e, com isso, o final do próprio
instituto da coisa julgada. Ora, do fato de se abrir uma exceção para
uma regra não se gera, automaticamente, a revogação da regra. Não há
razões para se entender que automaticamente a regra estará superada
pela criação de uma exceção302.
Assim, existe a falácia topográfica. Trata-se de interpretar as
normas a partir da localização dela em um corpo normativo maior.
Assim, todos consentem que, por exemplo, a expressão “serviço público”
está dentro do capítulo atividade econômica. Isso significaria que, em
rompimento à tradição constitucional, o serviço público seria também
uma atividade econômica a ser regida por uma lógica capitalista.
Trata-se de uma construção que não é imediatamente autorizada pelo
consenso anterior. Nada autoriza a dizer que, da colocação de uma

302
WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito I: interpretação da lei, temas para uma
reformulação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1994, p. 148.
223 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

norma em um determinado capítulo, necessariamente aquela norma


teria características de algumas daquele referido capítulo.
Existe também a falácia comparada. Trata-se de descobrir a
tradição da qual adveio um determinado instituto e elaborar uma solução
interpretativa para aquele instituto a partir do Direito Comparado.
Por exemplo, sabe-se que há influência espanhola, portuguesa e
alemã na Constituição de 1988. É um elemento consensuado. Desse
consenso decorreria, na construção falaciosa, a mesma interpretação
das normas desses países. Por exemplo, a ideia de que existem normas
programáticas. Entretanto, nada no ordenamento obriga que se adotem
soluções estrangeiras. É como se esses institutos, ao se incorporarem
ao Direito brasileiro, não sofressem transformações. É como se não
tivesse existido processo democrático e não tivesse ocorrido interação
da cultura e da esfera pública brasileira naquele processo.
A falácia do isolamento é a falácia contrária. Trata-se de
absolutizar o sistema jurídico brasileiro. Significa dizer que, da
proposição aceita de que cada sistema tem algumas características
próprias, estaria isolado do desenvolvimento da cultura ocidental. Com
isso, poder-se-ia formular uma tese de que simplesmente não haveria
nenhuma repercussão das construções alienígenas no ordenamento –
o que evidentemente é um modo muito simplista de se pensar.

10. SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS

Warat interessou-se em saber como o conhecimento


produzido no campo jurídico poderia circular sem maiores denúncias.
O seu caráter ideológico é evidente, entretanto, a ciência jurídica
ainda contém uma aura de respeitabilidade e verdade. Como tal é
possível? Instiga ainda mais a circulação do saber: pessoas-chave
criam conceitos e interpretações. Tais interpretações, ato contínuo,
passam a ser respeitadas como verdades apriorísticas e consumidas
sem mais reflexões pelos operadores jurídicos. O acesso à produção
Teoria do Direito e discricionariedade 224

do conhecimento é fechado, e apenas quem tem uma rede de contatos


facilitadora é capaz de adentrar no mundo da ciência jurídica.
A ciência jurídica, através de um processo de neutralização dos
conflitos, gera massificação303. Não só isso era verdade na época de Warat
como também, mesmo após as construções do neoconstitucionalismo,
mantém-se sua verdade: através de recursos aos “direitos fundamentais”
e à “dignidade da pessoa humana” é possível discursar passando pelo
alto das diferenças sociais e levando o problema teórico a um patamar
científico. Se em outros tempos o recurso a uma regra era o expediente
normalizador do cotidiano, atualmente o recurso a princípios vagos
assume também o referido papel.
Assim, seria possível sistematizar as possíveis indagações de
uma teórica crítica da dogmática:
1. Quais as razões pelas quais existe e se sustenta
um sistema de reconhecimento e desprezo dentro da
academia, as quais moldam uma estrutura hierarquizada de
produção do saber?
2. Porque os operadores jurídicos consomem
tão avidamente enlatados jurídicos, isto é, opiniões
jurisprudenciais e doutrinárias, as quais muitas vezes
aparecem retoricamente sustentadas?

3. Como, diante do evidente fechamento do campo


dogmático, sustenta-se uma aura de respeitabilidade e bom
senso dentro da produção científica?

4. Quais os motivos que embasam discursos


evidentemente encantadores, em que, dentro do sistema
jurídico, sustentam-se fantasias (segurança jurídica,
democracia, etc.) que falaciosamente se mantêm no tempo?

5. Por que a sustentação de um ideário que passa

WARAT, Luis Alberto. Introdução ao Direito II: a epistemologia jurídica da


303

modernidade. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1995, p. 335.


225 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

uma imagem de uma sociedade homogeneizada, a qual


respeitaria pequenas diferenças marginais, e onde os conflitos
sociais aparecem como transgressões legais?

6. Por quea transformação de um saber prático,


como o Direito, em um espaço de proposições lógicas e
neutras?

Warat recorreu à psicanálise para construir um conceito


que ele chamou de “senso comum teórico dos juristas”.304 A partir da
conjunção dos medos e desejos comuns do ser humano, combinada com
a análise do discurso, Warat descobriu que dentro da ciência jurídica
também se encontra uma “ordem escalonada” – só que de cargos e
posições. Essa ordem escalonada permite o controle da produção do
conhecimento.
A ordem escalonada funciona a partir de processos
legitimadores que acontecem tanto de baixo para cima quanto de
cima para baixo. Ambos os processos abrangem um controle sobre os
modos de produção do conhecimento e envolvem comportamentos
éticos, morais, preconceitos, tabus e até mesmo questões sexuais. No
campo da ciência, o que mais chama a atenção é a manutenção da
percepção da ciência jurídica como um campo neutro, no qual, através
de um método, alcançar-se-iam verdades lógicas e objetivas, as quais
estariam colocadas fora da história.
De fato, trazendo novamente a distinção “impostos reais/
pessoais”, é possível notar que, ao invés de se discutir teorias da justiça
e, com isso, analisar os argumentos que podem levar a quem tem mais
renda e maior patrimônio uma tributação mais ou menos gravosa,
criou-se o expediente retórico de distinguir impostos que recaem
sobre “coisas” (como se a renda também não fosse uma coisa) e sobre
“pessoas” para, logo em seguida, conectar a uma ideia de que, se o
imposto recai sobre uma coisa, ele não pode ser progressivo. Com esse

WARAT, Luis Alberto. Mitos e teorias na interpretação da lei. Porto Alegre: Síntese,
304

1979, p. 17.
Teoria do Direito e discricionariedade 226

tipo de argumento foi possível atingir o objetivo político/ideológico


sem, contudo, adentrar questões de justiça. A argumentação moveu-
se em um plano aparentemente neutro e lógico. Tais qualidades são
facilmente desmascaradas pelo exame atento da Constituição, a qual
não faz essa distinção e tampouco atribui, como consequência para tal
distinção, a impossibilidade de progressão. Tal leitura é ainda mais
evidente se se pensar na materialidade e no sistema ideológico da
Constituição. Entretanto, é justamente para não entrar nesse tipo de
discussão que se mantém o senso comum teórico dos juristas.
O Direito é observado como uma tecnologia social. Um
mecanismo a-valorativo que carrega programas implementados
também por uma política e por um maquinismo administrativo
neutro, os quais seriam regidos por uma racionalidade autoevidente de
realização do “bem social” – termo vago e indefinível. Não se pense que
as concepções de ciência jurídica evoluíram muito desde que Warat
traçou o diagnóstico. A ciência jurídica brasileira ainda é um lugar
sem conflitos ideológicos. Saíram parcialmente de cena as regras (que,
ainda, na mentalidade dos juristas medianos, pode ser silogisticamente
aplicada) para entrar em cena os princípios, os quais são sopesados
e ponderados – além de todas as demais espécies de manobras
argumentativas que mantenham uma aparência de objetividade e
controle. Os conceitos são vistos como neutros – mera cognição, ao
invés de uma decisão que precisa ser fundamentada.
Os que estão na base da pirâmide de significações possuem o
conforto de acessar o conhecimento pronto e estreme de dúvidas. Ao
utilizar os conceitos produzidos nos patamares mais altos da pirâmide,
estão autorizando sua própria fala e, com isso, podem afastar o medo da
não aceitação pelo grupo. Além da superação do medo da não aceitação,
ganham também uma ideologia e uma forma de vida a aderir. Pagam o
preço por ter de prestar reverências ao monastério dos sábios.
CONCLUSÃO

Difícil saber o que caracteriza o positivismo. Se for para marcar


uma diferença simples para com o jusnaturalismo, praticamente todas
as teorias contemporâneas do Direito seriam positivistas. De fato, as
condições da modernidade e do pós-giro linguístico já não permitem
mais falar em uma ordem natural, acabada e coerente. Nesse sentido,
o positivismo de Kelsen – mas, muito antes dele, vários autores da
filosofia política – vai realçar a ideia de que o Direito é uma construção
histórica do ser humano.
Neste sentido fala-se em “positivismos” – no plural: para
demarcar diversas perspectivas jurídicas, as quais se encontram em
um ou outro dado fundamental. O pensamento positivista, contudo, é
marcado por uma certa simplicidade, e, por incrível que possa parecer,
uma semelhança grande com o Direito Natural e o pensamento clássico
gira em seu entorno. O positivismo admite a historicidade do Direito,
bem como seu caráter de decisão e não dedução (muito embora o
sistema de proposições que “conhece” o Direito pode ser objeto de
deduções). Entretanto, o positivismo vai se caracterizar por uma
abordagem jurídica que realiza disjunções simples, isto é, separações
entre categorias que se motivariam a partir de diferenças “essenciais”.
Na perspectiva positivista, há um elemento essencial que diferencia
fato e norma,além de distinguir direito posto, direito subjetivo e assim
por diante. Isso é assim devido à crença na formação de significados
puros, os quais poderiam ser totalmente transparentes e, portanto,
controláveis.
Evidentemente, tal perspectiva nega que os sentidos são
formados a partir de múltiplas diferenças, muitas delas invisíveis. É
a “unidade da pluralidade”, tão falada pela Teoria da Complexidade.
Desse modo, os positivistas puseram-se em uma busca desesperada
por um elemento definidor do Direito, sem perceber que os sentidos se
229 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

formam a partir de vários elementos fluídos – de nós em uma rede–,


os quais formam expectativas sociais de uso que se confirmam e se
atualizam a cada decisão.
Esses elementos definidores geralmente redundam em um
direcionamento a um ato inaugural, uma vez que os positivistas – tais
quais seus tão criticados colegas jusnaturalistas – buscam um sistema
coerente. Novamente, a filosofia iluminista mostra sua cara, ao legar
o ideário, abraçado pelo positivismo, de que o Direito poderia ser um
sistema de pensamento coerente e sem contradições. Não há espaço
para a criatividade do erro, do marginal, do incoerente. Há uma
importação “simples” das regras da física usual, as quais deveriam
ser aplicadas a fenômenos não físicos, como os comunicativos. Assim,
as concepções jurídicas positivistas são marcadas pela formação de
sistemas de certa forma fundamentados aprioristicamente. Ou é um
“sistema de autorizações para produção de normas” ou um “sistema
de regras para dar ordens e identificar quem dá ordens”. É necessário,
nessa perspectiva, que exista um ponto inaugural, e esse ponto
inaugural, como dito, deve ser marcado pela disjunção simples. Daí
a recorrência à “norma fundamental” ou ao “sentimento jurídico da
comunidade”. São elementos que seriam “desde já e sempre jurídicos”,
sem o problema das transições e das zonas cinzas que tanto marcam os
fenômenos sociais.
A ingenuidade na formação dos significados conecta-se com
o apriorismo. Desse modo, parece uma questão lógica ao positivista
– e não uma questão de reconhecimento e formação de expectativas
recíprocas socialmente conformadas e sujeitas à evolução – o significado
dos termos utilizados no Direito. Como o essencialismo – comum ao
positivismo e ao jusnaturalismo, posto que bebem nas mesmas fontes
epistemológicas – nega a complexidade da formação do significado,
campos inteiros do saber ficam desconectados da produção do Direito.
Isso gera não só uma pobreza de fundamentação, mas também, mais
gravemente, o problema da discricionariedade. Como não é possível
analisar socialmente os significados, os signos legais acabam sendo
Teoria do Direito e discricionariedade 230

oqueo aplicador da lei entende que são, redundando justamente em


contrariedade aos ideais de previsibilidade do positivismo.
Na perspectiva positivista, há um ponto de observação ótimo
e não cego. Significa dizer que a teoria positivista assume-se como
dotada de observações capazes de construir um sistema coerente e
não contraditório de proposições, dotado de categorias que algumas
vezes são até justificadas como “reais” ou “essenciais”. Tais ambições
foram abandonadas atualmente. Não há uma perspectiva totalizante
a partir da qual todo o resto possa ser explicado (ex.: norma como
centro, decisão judicial como centro, etc.). O que existe são observações
possíveis. A pluralidade de perspectivas é vista como algo positivo,
sendo que o conhecimento avança justamente quando se torna possível
cruzar as diferentes perspectivas. Cabe notar, ainda, nesse campo, o
chamado “ponto cego”. Cada observação tem um ponto cego. No
caso, quem interpreta a norma e tenta gerar coerência no sistema
é um dos observadores do sistema jurídico. Mas será ele capaz de
tornar transparentes todos os pressupostos que, como diz Gadamer,
fazem com que a interpretação “aconteça”? A admissão do ponto cego
faz com que se torne ainda mais fantasiosa a versão positivista de
controlabilidade e conhecimento de todas as possíveis variáveis.
Essas variáveis, na perspectiva positivista, estão geralmente
hierarquizadas dentro do sistema. Ocorre que, novamente, essas
hierarquias são vistas como as únicas possíveis dentro de um
determinado sistema, dada a recepção deturpada do princípio da
identidade e da não contradição. É evidente que, a partir de uma
perspectiva, a Constituição é a norma mais importante de um
determinado ordenamento. Ocorre que, sem atos administrativos
para materializá-la, torna-se letra morta. Nessa perspectiva, portanto,
os atos administrativos têm mais importância que a Constituição. Do
mesmo modo, o direito pré-constitucional ajuda a interpretar os signos
utilizados pela Constituição, ao mesmo passo que visa inaugurar
uma nova ordem normativa. Note-se, nas construções acima, uma
série de proposições que aparentemente estão em contradição. Tal
231 Caroline Müller Bitencourt, Eduardo Dante Calatayud, Janriê Rodrigues Reck

contradição, contudo, só é observada se se partir de uma perspectiva de


absolutização dos pontos de vista – e não de uma perspectiva sistêmica
de formação de significados em rede. O positivismo é cego e refratário
aos paradoxos.
Não estava disponível aos positivistas o aparato teórico do
giro linguístico. Além das dificuldades usuais de conversação entre as
ciências e do autoritarismo específico do juristas, o Direito demorou
a se perceber enquanto fenômeno social complexo. Os ferramentais
ainda estão sendo desenvolvidos. Com Wittgenstein foi possível obter
o extraordinário avanço dos jogos de linguagem. Os sentidos jurídicos
são formados por expectativas recíprocas de comportamento, as quais
são apreendidas pelo uso. Não são passíveis de construção artificial,
e tampouco de plena visibilidade, pois, como Wittgenstein diz, é
como subir e jogar a escada fora: não se sabe como foi realizada a
absurdamente complexa tarefa de atribuição social de sentido. Com
Habermas avança-se na descrição das funções do Direito enquanto
meio de coordenação da ação através da linguagem e de como se
selam os acordos linguísticos, com os quais se pode denotar algo no
mundo, mas também – e aí interessando ao Direito–, coordenar ações.
Finalmente, com a moderna teoria dos sistemas consegue-se perceber
a forma em rede das instituições sociais, bem como o encadeamento de
diversas decisões formando os sentidos, a ausência de hierarquias e a
pluralidade de perspectivas.
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