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Art. 52, Parágrafo Único. Nos casos previstos nos incisos I e II,
funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal,
limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois
terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com
inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública,
sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.25
Aparece aqui um critério ainda mais restrito para definir a sanção que
expressa a coercitividade e autoriza a coação: não somente a sanção é
estatal, mas exige “a presença da atividade jurisdicional na exigência
coativa da prestação”. Recusa-se não só a coercitividade extraestatal como
também aquela que, mesmo chancelada pelo Estado, não teve proteção
jurisdicional.
Observe-se que tanto os positivistas “sociologistas”, que defendem a
existência de direito além do Estado, como os estatalistas, podem ser
contestados com o mesmo argumento: ambas as tendências reduzem a
coercitividade à coercitividade estatal. Parecem esquecer que essas relações
que os sociólogos chamam de direito infraestatal (coronéis de regiões do
interior do Brasil, traficantes nas comunidades etc.) são também coercitivas.
Isso vai contra os estatalistas, para os quais a coercitividade dos costumes
contra a lei do Estado não é coercitividade, porém pura violência, e contra
os sociologistas, para os quais há um direito fora do Estado, mas ele não é
coercitivo.
O problema de todas as visões anticoercitivistas, se não oferecem um
critério para distinguir especificamente o direito, é que fica confusa a
relação entre direito e moral, religião, etiqueta e outras esferas normativas.
Pelo próprio conceito de ciência, o estudo do direito estará tanto mais
acurado quanto mais bem isolado esteja seu objeto.
6.5. UNILATERALIDADE E BILATERALIDADE
Este critério também leva a mal-entendidos porque a tradição jurídica
só menciona esses dois termos, porém quer significar três situações e três
tipos de normas diferentes: na primeira, unilateral, a relação se dá entre o
indivíduo e ele mesmo. No segundo tipo de relação, há pelo menos dois
sujeitos, mas apenas um é vinculado pela norma, o outro é somente parte do
contexto. No terceiro tipo, há também pelo menos dois lados, só que ambos
são vinculados pela norma, isto é, a cada dever de um corresponde um
poder de outro, no sentido de exigir o cumprimento desse dever.
Exemplificando: no primeiro tipo, a norma incide sobre um polo
(sujeito, indivíduo, parte, lado) e um vínculo: “a pessoa deve ser coerente
consigo mesma”. No segundo, há dois polos, contudo apenas um vínculo:
“a pessoa deve amar o próximo”, pois não é possível obrigar alguém a amar
o próximo. Na terceira situação, apresentam-se dois polos e dois vínculos,
para cada dever alguém tem o direito (subjetivo) de fazer o direito
(objetivo) obrigar o cumprimento (dever jurídico) da norma: “o comprador
deve pagar o preço acertado”.
Diante do problema de haver duas palavras significantes para três
situações significadas, a doutrina criou variações por meio de adjetivos
como os sentidos “forte” e “fraco” ou “amplo” e “estrito”: unilateralidade,
bilateralidade em sentido fraco ou amplo, bilateralidade em sentido forte ou
estrito. É nesse sentido estrito que a bilateralidade é apresentada como um
critério distintivo do direito: com dois polos e dois vínculos, ela é chamada
de “atributiva”20.
A bilateralidade atributiva consiste em o direito situar sempre o
indivíduo perante outro, estabelecendo a relação jurídica, numa união
necessária de direitos e deveres. Essa é, assim, uma bilateralidade não
apenas de polos mas também de vínculos, pois não somente envolve dois
sujeitos, como o fazem muitas normas morais e religiosas de bilateralidade
simples, mas também dois vínculos jurídicos, uma vez que um polo tem o
dever e outro, a faculdade de exigir sua satisfação. Nesse conceito amplo, a
doutrina inseriu outras expressões equivalentes, como interferência
intersubjetiva, exigibilidade ou impedibilidade. Embora possam fazer
referências a outros sujeitos, as demais ordens normativas não configuram
sua conduta de forma necessária, reduzindo-os a um papel meramente
passivo.
Depois de examinar as tentativas de encontrar os critérios distintivos
do direito, seus caracteres essenciais, o próximo item vai estudar agora dois
atributos, características que podem ou não estar presentes, como dito.
Natural perguntar por que apenas esses dois, generalidade e imperatividade,
se o direito e suas normas apresentam muitos outros como oralidade, estrita
legalidade, caráter tutelar, formalidade etc. A resposta é simples: por serem
atributos apontados por muitos autores como caracteres gerais, essenciais ao
direito, presentes em qualquer norma jurídica, que viriam se somar aos
caracteres já apresentados. Por isso interessam à teoria geral, mesmo que
aqui se argumente que são atributos.
6.6. GENERALIDADE: UNIVERSALIDADE E
IMPESSOALIDADE
O critério da generalidade tem um histórico importante desde que
aparece na modernidade, associado ao debate sobre a separação de poderes
e à relação entre as atividades do Legislativo e do Judiciário, com a questão
de se o Judiciário pode “criar” direito ou apenas “declará-lo”. O positivismo
inicial, da Escola da Exegese francesa, defende que toda norma jurídica é
geral e criada pelo legislador, pois o juiz é um aplicador vinculado
exclusivamente ao caso concreto. Daí a denominação de escola legalista e
as palavras de ordem sobre o juiz ser a boca da lei e a interpretação ser
vedada diante da clareza.
Conforme já apontado, a essa ideia subjaz uma concepção iluminista
das capacidades humanas, a qual pressupõe um sentido estreito de “razão” e
uma competência comunicativa tão otimista quanto extremada: que o
discurso corretamente elaborado transmitirá inequivocamente significados
determinados e que ambiguidade e vagueza da linguagem são “defeitos”
que podem ser corrigidos. Na parte da ética prática, a justiça do legalismo é
garantida pelo princípio da maioria.
Essa suposta clareza dos textos legais, coroados pelo Código Civil
Francês de 1804, logo se mostrou insuficiente para explicar a complexidade
crescente e a evolução do direito para acompanhá-la. As Escolas Histórica,
de Friedrich Savigny, a da Livre Investigação do Direito, de François Gény,
a do Direito Livre, de Herman Kantorowicz, e outras aparecem para mostrar
que a lei não é a única fonte do direito e que a generalidade não é um dado
necessário na definição da norma jurídica.
O normativismo posterior, do qual Hans Kelsen é um exemplo, ensina
que as normas jurídicas são genéricas ou individualizadas em seu âmbito
pessoal de validade e por isso admite expressamente que o Judiciário cria
direito21. A princípio fala-se de o Judiciário criar direito no caso concreto,
mas logo se admite que cria normas gerais mesmo.
Conforme visto no capítulo passado, a importância da lei diminui. Os
positivistas normativistas consideram que a interpretação é necessária e que
todo caso concreto, diante da lei, jamais pode levar a uma só resposta
adequada; daí admitem algumas decisões distintas, todas igualmente
corretas. A lei é somente um dos fatores que compõem a “moldura” da
decisão.
A antropologia filosófica não é mais iluminista e a vontade de quem
decide no caso concreto vale mais do que a razão generalizante. Na filosofia
política, o normativismo mostra o abandono da crença na competência do
Poder Legislativo como guardião do direito e no princípio da maioria como
base da justiça. A aplicação do direito é uma tarefa complexa e o juiz ou o
membro da administração, que decidem, não podem ser portadores amorfos
de uma suposta vontade legisladora abstrata. Modifica-se a maneira de
pensar: as inclinações pessoais dos envolvidos precisam ser levadas em
consideração tanto pela perspectiva empírica do observador quanto pela
perspectiva estratégica do participante.
Esse conjunto de procedimentos a partir dos textos, a moldura,
escrutina as decisões possíveis e delas destaca as corretas das incorretas,
porém não é possível dizer qual a decisão específica mais correta dentre
aquelas indicadas dentro da moldura, pois há as circunstâncias do caso, a
personalidade e a vontade de quem decide, o comportamento das partes e
assim por diante. A moldura é uma metáfora para a procedimentalização do
direito.
A possibilidade de várias decisões corretas é também admitida por
autores antipositivistas: após cumprido todo o procedimento, pode ser que
resultem decisões diversas de diferentes aplicadores e é requerida uma só
decisão. Todas estarão igualmente legitimadas para se efetivarem. Esses
autores se dizem contra o positivismo por uma característica clara: as regras
do que entendem por procedimento não estão “à disposição do legislador”
ou dos participantes, elas se impõem por si mesmas, tais como sinceridade e
coerência. É um procedimento idealizado.22
Para lidar com essas mudanças, na prática da separação de poderes
diante do crescimento do Judiciário, além de ampliar o entendimento sobre
as normas jurídicas, classificando-as em gerais e individuais e
reconhecendo que o Judiciário cria direito, a dogmática normativista
também elaborou os conceitos de lei em sentido formal e lei em sentido
material23. A lei em sentido somente formal seria aquela que segue os
procedimentos do processo legislativo, mas resulta em norma individual,
como aquelas que concedem comendas e títulos de cidadão. Note-se como a
resistência a essas modificações históricas e a tentativa de manter a
generalidade como essência da lei se mostram nas expressões “norma
individual legislada” e “lei em sentido formal”, para designar leis
individuais: lei, para merecer esse nome, tem que ser geral. Para uma visão
realista, lei é o resultado do procedimento legislador, seja genérica ou
individualizada.
Do outro lado de o legislativo criar normas individuais, tanto o
Executivo quanto o Judiciário passam a exarar normas jurídicas gerais; com
o trabalho normatizador de agências reguladoras e até de instâncias
decisórias terceirizadas, sepulta-se de vez a ideia de que toda norma jurídica
é geral e competência exclusiva do Poder Legislativo.
O positivismo realista já vai defender que toda norma jurídica é
individual, criada diante do caso concreto, e que o legislador faz
unicamente um texto que vai servir de dado de entrada para o processo de
concretização. O texto genérico da lei precisa ser levado em consideração,
mas há diversos outros fatores, fases e agentes na criação do direito. A
generalidade não é mais a característica que dignifica a norma jurídica,
aquilo que colocava a lei acima de tudo.
E essa maior indeterminação na comunicação se explica pelo
crescimento da complexidade, com sua heterogeneidade de condutas. Numa
comunidade mais homogênea, tal como a sociedade que os exegetas
observavam, a literalidade na comunicação é muito mais presente, inclusive
em relação ao texto genérico da lei. Expressões como “boa-fé” e “legítima
defesa” têm menos ambiguidade e vagueza diante dos casos concretos.
Quando os exegetas afirmam que interpretar é adequar norma e fato,
entendem que a lei significante é clara e só tem um significado. Com a
complexidade foi enfatizada a diferença onipresente entre significado e
significante, teorizada pela “virada linguística”.
Em sociedades menos diferenciadas, os significados éticos – chamados
“valores” pela filosofia tradicional – são mais próximos, há mais acordo
sobre o que significam “boa-fé” e “legítima defesa”, e tal homogeneidade
contribui para a literalidade hermenêutica. Nesse contexto funciona bem a
generalidade da lei.
Ao final dessa evolução, dois aspectos importantes estabelecem a
diferença entre os conceitos de universalidade e o de generalidade do texto
da norma: em primeiro lugar, o conceito que se opõe ao de universalidade é
o de individualidade, enquanto aquele que se opõe ao de generalidade é o de
especialidade;24 em segundo lugar, a universalidade exclui a individualidade
e vice-versa, ao passo que a diferença entre generalidade e especialidade é
de grau. Mais ainda, essas palavras – universal, individual, geral, especial –
são empregadas diferentemente pelos autores e adjetivos como abstrato e
concreto aparecem para dificultar.
Um texto de norma pode ser geral porque é universal. Todo universal é
geral, mas nem todo geral é universal. Uma lei pode ser geral para somente
uma classe de pessoas, sem se aplicar a todas elas.
O art. 5º, II, da Constituição Federal diz que: “ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” ora, textos
de norma universais como essa cláusula de legalidade ou o “direito à vida”
(em um Estado democrático de direito) pretendem se aplicar a todos os
seres humanos. Exemplificam o primeiro tipo, a generalidade por
universalidade, no qual generalidade e universalidade se confundem.
Os textos de norma gerais que não são universais, por sua vez, são
classificados em mais dois tipos diferentes.
O segundo tipo pode ser denominado generalidade por universalidade
relativa, aquele texto cujo alcance atinge classes de sujeitos. Por isso são
gerais textos que se dirigem somente aos médicos, aos idosos, às crianças,
aos trabalhadores da indústria, aos trabalhadores do comércio. Mas não são
universais.
O terceiro tipo é a generalidade abstrata, que se dirige a um cargo ou
função específico e que incide sobre apenas um sujeito individual. Difere do
texto individualizado propriamente dito, embora ambos se dirijam a uma só
pessoa. O teste para diferenciá-los é simples: a validade do texto desaparece
com o falecimento do sujeito, o texto deixa de fazer parte do ordenamento
jurídico?
Exemplos de normas individuais são as sentenças particulares, que só
valem para os envolvidos, assim como as obrigações pessoais: a norma que
condenou alguém à prisão desaparece se esse alguém morre, assim como a
norma que concedeu a alguém uma cidadania de país estrangeiro. Isso não
ocorre com as normas dotadas de generalidade abstrata.
Exemplos dessas normas gerais que só se dirigem a uma pessoa são o
art. 57, § 6º, I, da Constituição Federal:
Isso ocorre porque a opinião que se tem sobre o que o direito deve ser
(retórica estratégica) vai fazer, fabricar, constituir o próprio direito positivo
(retórica material, as concepções momentaneamente dominantes, as regras
efetivamente aplicadas aos conflitos naqueles tempo e lugar), conforme
colocado acima. E as opiniões derrotadas, mas não extintas, permanecem
interagindo com a retórica material eventualmente preponderante,
influenciando e sendo influenciadas, amalgamando-se. Daí a fluidez dessa
teia de ações, as quais interferem umas sobre as outras de maneira sempre
inusitada. Como explica Arendt, a esfera da ação humana corresponde à
pluralidade da vida em sociedade, na qual uma ação não pode ser separada
da outra e qualquer ação iniciada provoca reações em cadeia, que fazem
com que as relações sociais sejam não apenas imprevisíveis, mas também
irreversíveis. Mais ainda, essas cadeias de ações não possuem começo nem
fim definidos.49
Ora, o direito é parte de tais teias de ações. A observação de que varia
de modo imprevisível, no tempo e no espaço, como dito, provocou a crítica
de muitos pensadores. Uma reflexão também assaz conhecida é a seguinte:
A discussão sobre qual dos dois lados seria mais “primário”, no sentido
de mais importante e decisivo na identificação da norma jurídica, não
parece importante, pois os dois lados exigem-se reciprocamente, até de uma
perspectiva lógica, como disse Kelsen.
Do ponto de vista da observação sociológica, a maioria das pessoas
obedece às normas sem necessidade de serem aplicadas sanções,
privilegiando a norma lícita, ou seja, esta seria mais importante
(endonorma, de caráter endógeno), como quer Cossio.
Por outro lado, se o observador quer distinguir entre espécies de
normas, nunca é evidente, no cumprimento da conduta lícita, se a pessoa
cumpriu uma norma jurídica, religiosa ou moral, por exemplo. Só se pode
aferir a qualidade da conduta, isto é, saber se é juridicamente relevante e
está contemplada por norma jurídica, a partir do caráter coercitivamente
irresistível de sua sanção, ou seja, a partir do descumprimento. Se alguém
se abstém de dar bom dia e de matar, por exemplo, cumprindo as prestações
exigidas pelas respectivas normas, não se pode saber empiricamente se
cumpriu norma religiosa, moral ou jurídica. Se o agente opta por não
cumprir essas prestações, porém, vai-se perceber que não a primeira, mas a
última hipótese era objeto de norma jurídica, pois suas sanções serão
coercitivas. Assim privilegia-se a norma ilícita no processo de
conhecimento.
A retórica não lida com fatos, mas sim com expectativas. Aquilo
que, em toda sua tradição, se denominou “digno de crédito” ou
“verossímil” deve ser claramente diferenciado, em sua validade
prática, do que teoricamente se chama de “provável”58.
1. Adequação
2. Validade
2.1. Formal
2.1.1. Competência da autoridade
2.1.2. Rito de elaboração obedecido
2.2. Material
3. Vigência
3.1. Ausência total de vigência
3.1.1. Vacância
3.1.2. Vigência (“eficácia”) limitada
3.2. Ausência parcial de vigência
3.2.1. Vigência (“eficácia”) contida
3.2.2. Vigência (“eficácia”) programática
4. Incidência (união do texto com o fato, depois do sucesso em todos os
testes anteriores) e eficácia técnica
5. Eficácia jurídica (sua falta = caducidade)
6. Eficácia social
6.1. Falta pelo desuso
6.2. Falta pelo costume contra legem
10.2. ADEQUAÇÃO
Já foi dito que todo direito começa com algum tipo de conflito: mesmo
que não se trate de contencioso, ou seja, até um contrato entre amigos –
desde que procure regras jurídicas para se guiar – precisa ter a possibilidade
de conflito em seu horizonte. E regras consistem em projeções atuais para
conflitos futuros.
E todo conflito, enquanto acontecimento real, é único em suas
peculiaridades. Exatamente porque o principal dogma do direito dogmático
é embasar todo o procedimento nas fontes do direito, o primeiro passo é,
segundo aquelas características específicas daquele evento, escolher essas
fontes. Tal relação entre o conflito e as fontes escolhidas é aqui denominada
adequação. É a relevância das fontes escolhidas para o caso.
A adequação é o fio de Ariadne no labirinto do ordenamento jurídico.
É o constrangimento que guia a escolha das regras adequadas ao caso. Se é
necessário pleitear, argumentar e decidir sobre um conflito entre mulher e
marido, por exemplo, o critério da adequação vai mostrar que a
Consolidação das Leis do Trabalho, as leis sobre ICMS e um sem-número
de outras fontes serão ali irrelevantes. Por meio da adequação, o
profissional do direito consegue selecionar, dentre uma infinidade de fontes
cuja interpretação continuamente se modifica e outras que são diariamente
excluídas e acrescentadas no âmbito do ordenamento, aquelas que lhe
parecem apropriadas ao caso.
A adequação é entendida aqui como uma qualidade do significante
jurídico, da fonte do direito que, na opinião de cada participante do
discurso, o sistema dogmático determinou como apropriada a ser alegada no
caso em tela. Isso significa que as fontes do direito, pinçadas do
ordenamento jurídico para fundamentar a interpretação, a argumentação e a
decisão sugeridas por qualquer dos participantes em uma lide dogmática,
precisam corresponder ao caso concreto. Assim, numa questão trabalhista,
outro exemplo, o Código do Consumidor ou precedentes judiciais sobre
guarda de filhos não devem ser invocados pelos participantes, por serem
impertinentes. A dogmática jurídica, enquanto retórica estratégica,
desenvolve mecanismos para detectar e construir essa adequação.
Isso porque os ordenamentos jurídicos modernos se tornaram
literalmente infinitos, um vade mecum completo forma apenas a ponta do
iceberg. A todo momento são criadas novas fontes do direito, não apenas
leis. Mais numerosos ainda são decretos, regimentos, regulamentos,
portarias... Sem contar resoluções, atos, instruções normativas, decisões
judiciais, contratos e assim por diante. Imagine-se o número de sentenças
prolatadas hoje; tudo isso passa a fazer parte do ordenamento jurídico.
Note-se ademais que as fontes antigas não são retiradas do sistema por
revogações expressas, o que faz com que permaneçam no ordenamento e
façam parte da complexidade que o profissional precisa reduzir, tornando
mais árdua a tarefa de escolher as fontes tendo em vista quais as mais
pertinentes à lide.
Como há outra significação para a palavra pertinência, entendida como
sinônimo de validade, prefere-se aqui o sentido já exposto, de adequação da
fonte ao evento, ou seja, a análise de se uma fonte tem ou não relevância
jurídica para o caso é anterior ao teste da validade: adequação e validade ou
pertinência não se confundem.
Para o Constructivismo Lógico-Semântico, por exemplo, pertinência é
a relação entre um elemento e uma classe, é uma operação lógica3. Ao
inserir um elemento em uma classe, são necessários um ou mais critérios
quaisquer, escolhidos pelo observador, para separar o que tem ou não
pertinência à classe. Num sistema de regras de direito não é diferente: se
uma fonte do direito, por exemplo, uma lei, pertence ao ordenamento
jurídico brasileiro, são necessários parâmetros. O conjunto desses
parâmetros – o critério de pertinência – é a validade.
10.3. VALIDADE
Por isso, o teste da validade é o mais básico e daí porque muitos
autores, como será mencionado adiante, chegam a identificá-la com a
existência mesma da norma jurídica, posto que sua ausência implicaria um
nada jurídico.
Uma fonte do direito é válida quando termina seu rito de elaboração
realizado por autoridade competente. Aí ela passa a integrar o ordenamento
jurídico. No caso de uma lei ordinária, por exemplo, quando for publicada,
já que a publicação é supostamente a última fase de seu rito de elaboração.
Mas a exigência de validade impõe-se a qualquer ato jurídico, por mais
simples que seja, cada qual com seus ritos e competências determinados
pelas regras superiores do sistema. Até aqui tudo bem.
Mas a doutrina é tão unânime quanto acrítica ao dividir o conceito de
validade em formal e material, defendendo que a mera bipartição entre
competência e rito caracterizaria apenas a validade formal.4 Validade
material é definida como o acordo entre o “conteúdo” da fonte ou ato
jurídico sob exame e o “conteúdo” das regras superiores do sistema, em
cujo topo está a Constituição; com base nisso, apenas um exemplo, pode-se
argumentar que uma lei ordinária que discrimine homens e mulheres, ainda
que publicada sob os devidos rito e autoridade, será inválida por contrariar
“substancialmente” a regra constitucional da igualdade.
Esse conceito de validade material, porém, sob um olhar mais acurado
e realista, é frágil e não se sustenta, pois sempre vai demandar um
procedimento formal para sua determinação. Ficando no exemplo
imediatamente acima, para que se diga que o conteúdo de determinada lei
ordinária contraria a igualdade entre o homem e a mulher prevista na
Constituição, é necessária determinação da autoridade competente,
seguindo o rito prescrito para tanto. Então não é exagero dizer que, na
sociedade complexa em que todos discordam, validade é validade formal e
que os conteúdos fáticos e éticos, precisamente porque são percebidos e
avaliados de diferentes maneiras, em sua “substância”, pelos envolvidos no
discurso dogmático, simplesmente fornecem ornamentos para a
argumentação dentro do procedimento. Quem fala em validade material são
os insatisfeitos com o resultado material do procedimento.
Embora nunca se possa falar com certeza quanto ao resultado de um
conflito jurídico, a validade formal é mais facilmente detectável, reduzindo-
se à investigação de competência e rito, que manipulam desacordos sobre
fatos e posições éticas, sempre subordinando a validade material à formal.
Claro que, se não é viável para uma parte argumentar pela invalidade
formal de uma fonte ou ato invocada ou praticado pela parte contrária a
seus interesses, em caso de todos os envolvidos terem alegado fontes
pertinentes e formalmente válidas, ela sempre pode tentar trazer
incompatibilidades de conteúdos fáticos e éticos (inconstitucionalidade ou
ilegalidade material) à argumentação.
Contudo, repita-se, são a autoridade e o rito competentes que aceitarão
ou não esses argumentos materiais. Por isso as próprias regras se reportam a
argumentos materiais e com base neles um juiz pode decidir, mas só porque
é autoridade competente para tal alegação. Se houve ou não crime de
responsabilidade fiscal (juízo de fato) ou se alguém sabia sobre se a prática
era criminosa (juízo de valor), só o procedimento pode determinar. Outros
bons exemplos do direito brasileiro estão em que permanecem consideradas
constitucionais as regras que privilegiam as mulheres quanto a
aposentadoria, conscrição militar ou pensões com recursos públicos, regras
que aparentemente contrariam o direito constitucional fundamental à
igualdade, dentre outros.
10.4. VIGÊNCIA
Diz-se aqui que uma fonte do direito é vigente se, além de válida, ela
está pronta para ser aplicada, o que significa disponível para ser alegada
pelos envolvidos no debate dogmático. Isso porque não é incomum que
chegue ao fim o rito de elaboração e, ainda assim, apesar de válida (isto é,
completa, integrante do ordenamento e não mais passível de modificação), a
lei não possa ser alegada como base de uma argumentação ou decisão.
Embora a lei seja aqui tomada como exemplo, a análise do conceito de
vigência pode ser aplicada às fontes do direito em geral.
A vigência é um requisito a mais em relação à validade, um adendo
posterior à inserção da fonte no ordenamento jurídico. Em outras palavras,
uma fonte do direito pode ser atualmente válida sem ser vigente, mas não
pode ser vigente sem ser prévia ou simultaneamente válida. Na maioria dos
casos, hoje em dia, a validade e a vigência são simultâneas, a fonte do
direito entra em vigência no momento em que termina seu rito de
elaboração, mas para que isso ocorra é necessário um dispositivo que
expressamente o declare: “esta lei, portaria, parecer normativo, disposição
etc. entra em vigor na data de sua publicação”. E há muitas exceções.
Em dois casos, essa validade sem vigência é total, ou seja, a fonte do
direito não pode ser alegada em nenhum caso, de forma absoluta (porque é
às vezes possível a vigência parcial, relativa). É como se a fonte não
existisse, por isso autores como Kelsen realisticamente identificam validade
e existência, como se verá adiante.
No primeiro deles, quando a lei está em vacância (vacatio legis), ela
depende de um decurso de prazo para que possa vigorar ou viger, isto é, ser
alegada como base de uma argumentação ou decisão dogmática. A lei
precisa explicitar esse prazo, da mesma maneira que precisa dizer
expressamente que vai entrar em vigência na data de sua validade se for o
caso, como dito. Em não o fazendo, há uma metarregra no artigo 1º da Lei
de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, segundo a qual a vacância
será de 45 dias.
Repita-se que, mutatis mutandis, o mesmo vale para as demais fontes,
dentro do direito dogmaticamente organizado. Um contrato pode estar
perfeitamente pronto e acabado, mas depender de um decurso de prazo para
se tornar exigível e produzir efeitos. Não se diz que o contrato “está em
vacância”, mas, para o objetivo deste texto – compreender a função dos
conceitos jurídicos fundamentais no procedimento dogmaticamente
organizado – a ideia é muito semelhante.
No segundo caso, a fonte do direito está também pronta e acabada, mas
reclama a ocorrência de novo fato ou a elaboração de uma nova lei ou ato
jurídico qualquer para poder ser invocada. Enquanto não vier essa
complementação, da mesma maneira que na vacância, ela tampouco pode
ter qualquer papel na argumentação ou decisão, não vigora. No dogmática
contratual, há semelhança com o conceito de “termo”, evento futuro e certo
que condiciona o início dos efeitos do negócio jurídico. A diferença é que o
termo é certo e o advento da lei regulamentadora, pelo menos em países
periféricos como o Brasil, nem sempre.
Essa necessidade de regulamentação, em tese, deveria ser exigida pela
própria lei que demanda regulamentação, porém, pelo menos no Brasil,
pode ser exigida pelo Judiciário, como foi o caso dos juros máximos de
12%. Nos sonhos do constituinte de 1988, os bancos seriam obrigados a
limitar a cobrança de juros a 12% ao ano e, apesar de o texto constitucional
não exigir complemento para ser aplicado, e apesar do artigo 5º, § 1º, o
Supremo Tribunal Federal entendeu que a norma precisava de uma
regulamentação, que nunca veio. O mesmo se deu, durante muito tempo,
com o mandado de injunção.
Vê-se que essa validade sem vigência, pendente de regulamentação,
provavelmente imaginada para durar um mínimo de tempo, condicionada a
advento futuro e certo da regulamentação, com o objetivo de detalhar
procedimentos da norma principal, pode funcionar como expediente para
evitar seu cumprimento em países subdesenvolvidos como o Brasil. Tal
estudo, porém, por interessante que seja, é sociológico e foge ao âmbito da
dogmática jurídica.
Uma fonte torna-se então válida se foi completado o processo de sua
produção de acordo com os requisitos do ordenamento jurídico e cada tipo
de fonte (decreto, regulamento, sentença, jurisprudência, instrução
normativa etc.) tem diferentes autoridades competentes e ritos de
elaboração. Isso faz problemático distinguir validade de vigência a partir
das fases do processo legislativo, como sugere Tercio Ferraz Junior: