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Zero
O motivo não poderia ser mais claro. Corpos. Cadáveres cobertos pelo frio e
solitário saco preto fechado por um mero e enfadonho nó de corda. Alinhados como
um time fúnebre, sem vida e expressão, formavam um grupo de quatorze mortos.
Logo, o resto do time chegaria, sendo carregados pelos homens da perícia. Os fiscais
da morte, trajados do inverso tom branco e capas de chuva sob as vestes policiais e
siglas estampando o ombro e costas. O tom azul e vermelho das luzes que emanavam
dos carros da polícia era visto de longe, e os oficiais apenas se mantiveram ao lado
de suas viaturas dando carta branca ao trabalho da perícia. Alguns empunhavam seus
rádios, atualizando a situação. Outros apenas trocavam comentários entre si
especulando o ocorrido, sem ideias concretas.
Localizou-se rapidamente em meio a cena, para ele nada era uma surpresa.
Um suspiro pesado toma conta ao pensar nos próximos e exaustivos passos.
Ignorando a chuva ele dirige os passos até o local, saltando pelas fitas e bloqueios.
Policiais olham desconfiados por um instante, porém o distintivo sob o pescoço mata
a suspeita. Seu caminhar o leva próximo à entrada principal ao lado dos cadáveres.
Outro homem estava a sua espera.
Seu aspecto era mais juvenil, casa dos vinte e cinco anos. Apesar do semblante
novato o tempo de experiência era contrário. Passava as mãos no cabelo curto e liso,
ajeitou os óculos fundo de garrafa, e limpou os dedos sob o traje social, de coloração
preta. O mesmo coldre e distintivo faziam parte de seu trajar. Segurando o guarda-
chuva, distraído, envolto dos próprios pensamentos, interrompidos pela voz grave
do companheiro.
- Ah, Koji. – Ele suspira. – Acredite, ela incomoda mais do que esse bando de
cadáveres.
- Eu adoraria estragar sua surpresa, mas o problema é que ela não existe.
- Quantos foram dessa vez? Além do mais, por que já estão jogando esses pobres
diabos aqui fora? Não deviam nem mexer neles.
- Ordem daquele cabeça de vento do Tatsuo, a cadelinha acata tudo que ele fala sem
questionar. Eu disse pra ele não mexer em nada, mas entra por um ouvido e sai pelo
outro.
- Ele quer impressionar o chefe, se achando o fodão, ou só quer fazer cena pra comer
a assistente Akemi. – Ambos dão mais uma tragada longa e relaxada, e Koji retorna
após expelir a fumaça. – E faltou me dizer quantos foram.
- Talvez tenha uma surpresa. Seu canalha preferido bateu o recorde hoje.
- Que nos pariu. Estou quase engolindo a história que o Yoshiaki nos contou semana
passada.
- Quero quebrar o gelo, colega. É foda, não é qualquer dia que você encontra a porra
de um psicopata fazendo trinta e sete vitimas em um dia. – Uma última tragada mata
o cigarro de Koji, Takeda opta por reservar a última. – Já identificaram os corpos? –
Pergunta enquanto arremessa o cigarro ao chão.
- E o resto?
- E quando foi a última vez que teve um almoço tranquilo depois desse emprego?
- Nunca. – Ele suspira. – Tô com uma fome miserável, mas não quero jogar tudo pra
fora de cara. Vamos logo com isso, o que acha?
Uma grande sala de estar, uma espécie de lounge improvisado. Grandes sofás
e colchões rasgados por todos os lados, estantes e mobília rachadas e quebrada,
mesas partidas ao meio, vidros estilhaçados pelo chão. A grande janela ao fundo
estava completamente aos cacos e o cabo da cortina arrancado. Várias velas
estranhas ao redor apagadas, ao lado do ínfimo odor de incenso, sequestrado pelo
cheiro de morte e podridão. Círculos, de giz surrado, davam vida a formas e
simbologias estranhas, animais deformados e imagens humanas. As caricaturas
bizarras cobriam teto, paredes e piso.
- Olha o estrago que esse filho da puta fez. – Takeda não esconde o choque, mas
responde no mesmo volume.
- Pensei que você já tivesse subido aqui. Qual era piada? Não teríamos surpresas, e
agora você parece uma criança.
- Sabe outra piada Koji? Dá última vez falamos a mesma coisa e deu na mesma.
- Foda. – Engole em seco. – Com trinta e sete eles querem dizer corpos ou partes de
corpos? Eu tô confuso.
- Oficial Yashiro Hamada, chefe de perícia. – Ele se apresenta. – Suponho que sejam
os detetives que Tatsuo tenha se referido.
- Perfeito. Imagino que já estejam anestesiados com tamanho “capricho”, por assim
dizer, do suspeito de vocês.
- Ele tem um charme e jeito único, nós conhecemos. Mas assumo que ele supera as
expectativas. Aliás, não acredito que tenha quarenta e duas pessoas dentro dessa
casa, os outros corpos, ou restos, foram encontrados do lado de fora? – Pergunta
Takeda.
- Tsuchi é uma área bem residencial, geralmente casarões assim são alugáveis para
festas e eventos de tal porte. – Completa o perito. – Mas nunca pensei ter atividade
dos plenilunistas por aqui. Descobriram algo sobre a proprietária? Ouvi dizer que
era uma senhora.
- Morta. – Koji responde em seco. – Senhora Fumiko e seu marido Kenji foram
encontrados mortos em sua caminhonete duas semanas atrás na fronteira com Noroi.
Executados, dois tiros de nove milímetros na cabeça, cada.
- Isso explica essa apropriação repentina. – Assente o perito. – O Tigre também não
demorou para descobrir.
- Senhores, por favor. – O perito retira seu boné, revelando os cabelos grisalhos e
rugas na testa. – Um casarão em uma região pacata, a proprietária e marido
assassinados e milhares de corpos de cultistas mortos brutalmente. As histórias
circulam, vocês sabem disso. Mas, por gentileza, não tomem isso como uma ofensa.
Minha afirmação vem na pura intenção de reconhecer o caso e ajuda-los.
Conhecimento prévio auxilia ao extremo, ainda mais se tratando de um serial killer
como o Tigre.
- Ah – Takeda e Koji, mesmo no cenário catastrófico, deixam uma risada escapar. –
Não ofendeu, senhor. Sabemos desse tipo de situação e agradecemos todos os dias
por cada ajuda nesse caso.
- Imagino, cada mão conta. Estamos falando de um bastardo de marca maior, mas
ele é esperto, tendo em vista que até agora não temos nenhum traço diferente das
vítimas. Esqueci de ressaltar, a maioria deles estavam armados. Em suma, armas
brancas improvisadas, canos, facas de cozinha, agulhas. De resto, poucas de fogo,
um par de escopetas, três pistolas nove milímetros e alguns cartuchos ao chão.
- Por nada. Por mais estranho que seja, fiquem à vontade, mesmo nesse bando de
órgãos e membros. Preciso ir, com licença.
- Ah só mais uma coisa, senhores. Boa sorte quando subirem ao quarto da mulher
grávida. Eu não desprezaria. – Sem dizer mais nada, o perito se ausenta.
- Olhando por cima esses corpos, igual das outras vezes, os cortes profundos e
certeiros. Ele não deve portar uma mera espada ilegal, duvido que um criminoso
amador performaria golpes tão precisos e letais. Ele deve ser no mínimo…
- Porra cara, pensa. Mesmo um psicopata ou qualquer maluco da cabeça não ia ser
capaz de matar quarenta e duas pessoas, de maioria armada, em um espaço fechado.
- Talvez não seja só ele. Deve ser mais de um, ele recebe ajuda.
- Qual é Koji? Eu sei que o Yoshiaki é um merda corrupto, mas o palpite dele é bom,
acredite. Digo mais, ele não deve ser só veterano, como devia ser de forças especiais.
- Que seja. Retornemos ao trabalho, não quero ouvir mais nenhum pio do seu
namoradinho.
Eles seguem até a próxima porta. Seus passos são quase trêmulos e
desequilibrados. Koji toma a frente mais um vez, e com a mão suada, agarra a
maçaneta com o fervor, em falso gesto de valentia. Takeda se mantém atrás, agora
explicitamente abalado e assustado, com os olhos arregalados. Eles respiram fundo,
e em uma contagem, Koji conforta seu amigo. No um. No dois. No três.
Escancarando a porta. A cena não era o que eles imaginavam. Era muito pior.
- Não está ouvindo? – Ele pergunta de novo e adentra o quarto em passos cautelosos.
- Sai dai cara! Que diabo de som é esse que você tá ouvindo? Ela…ela tá morta,
imbecil.
Takeda leva o foco aos ouvidos, relutando-se a acreditar no aliado. Como uma
voz pequena em sua mente, ele escuta o som que Koji alegou ouvir. Parecia um ruido
de vento, bem pequeno e tímido. Aos poucos tomando forma. A sonoridade se
formou, e logo um som aterrador e cruel veio a seus ouvidos.
- Isso é…
- O bebê…está vivo.