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zumbidos
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Não fosse pelo barulho feito por sua mãe - e mais estridentemente
por sua severíssima avó Cristina, mãe da sua mãe - , o episódio
talvez nem tivesse registro na memória de Elza. Para aquela garota
que andava livre pelas ruas e casas dos vizinhos, a chegada do animal
não pareceu nada espetacular. Tanto que nem se deu conta da vaca
ao receber as primeiras lambidas no rosto - não se preocupou nem
mesmo parou de brincar, mergulhada na sua imaginação infantil,
provavelmente um pouco mais fértil que a da média das outras crianças.
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Era desses lençóis que seu pai vinha resgatá-la cedinho. "Meu pai era
severo, mas era um ótimo pai, extremamente carinhoso com as filhas
e em especial comigo." Seu Avelino almoçava cedo - um reforço 24
para o trabalhador que saía para a pedreira e só iria bater uma 25
marmita fria várias horas depois - e no início da tarde comia um
pão já meio murcho com um café ... Vida dura, de muito trabalho,
era a vida da família de Elza. E ligada a esta pedreira começaria uma
rotina que faria parte da vida de Elza por anos - e que seria palco de
eventos que mudaram sua vida definitivamente. Mas ali, na cozinha,
pela manhã, enquanto a mãe preparava a refeição do pai, Ilza
ficava brincando no colo dele, tagarelando sem parar, enquanto ele
comia. Depois, seu Avelino a levava de volta à esteira, fazia mais um
carinho nela e saía para o seu dia.
Seu pai até que tocava bem um violão, e ainda era bom no trompete.
Cantava um pouco também, e talvez por conta disso tinha. pelo
menos enquanto ela era criança, o maior orgulho da filha que tinha a
voz afinada. Elza morava numa casa musical: os sons chegavam pelo
rádio e ninguém tinha um estilo favorito. Além das estrelas da época
- aqueles grandes nomes que fizeram os anos de ouro do rádio,
e eram a maior inspiração de Elza (sobretudo Dalva de Oliveira,
mas ela idolatrava também Ângela Maria, Sílvio Elzo em
reportagem
Caldas, Orlando Silva) - ela se lembra também
especial poro
de ouvir, quando passava perto de algum rádio O Cruzeiro,
ligado, as bíg bands e as orquestras americanas. Pode em 1967.
C hegar em casa com uns trocados da rua era certamente pedir para
tomar um castigo. Se o dinheiro era difícil para os adultos, como é
que aquela menina chegava com um dinheiro, por menor que fosse.
em casa, como acontecia de vez cm quando? Devia ser porque tinha
feito alguma coisa errada e a surra era inevitavcl. Mas tudo o que ela
queria. quando arranjava um jeito de conseguir um troco, era encher
a sua barriga e a de sua familia. Elza garante que nunca passou fome
enquanto crescia com os pais. nem ela nem suas irmãs. Mas havia
sempre um apetite para mais comida, além de uma percepção, ainda
que infantil, de que nem todo o trabalho dos pais poderia abastecer
a casa suficientemente. Assim, cada oportunidade de conseguir
um "dindin1 a mais" (como ela e suas irmãs brincavam) não era
desperdiçada - como naquela tarde quente em que ela andava com
Malvina, que a famfüa apelidou carinhosamente de Bibina, e as duas
se depararam com um homem muito bem-vestido, com um terno
bem engomado, uma pasta "séria" debaixo do braço, no outro lado
da calçada.
Para uma criança, ela já tinha uma ótima noção de quanto as coisas
custavam - e o fato de ser boa em matemática no colégio ajudava. "Eu
era uma ótima aluna, especialmente boa com os números. Comecei
minhas aulas com cinco anos, numa escola particular simples, com
uma professora que eu adorava, dona Maria Augusta." Elza lembra-
-se até do nome da diretora do colégio, dona Eulália, a quem ela
surpreendeu, já nos tenros cinco anos, escrevendo corretamente o
nome do pai. Ela gostava tanto de ir à escola que nem se importava
de acordar uma hora mais cedo - por volta das cinco horas da manhã
- para pegar lá no poço a água para a rotina diária de sua casa, antes
de sair com seu uniforme limpinho e os cadernos na mão. Cada dia
da semana era a vez de uma das irmãs que punha uma lata na cabeça
e a trazia de volta cheia, em várias viagens. para dona Rosária poder
lavar a roupa. "Acho que pesava uns 20 quilos na cabeça da gente. No
começo parecia impossível carregar aquilo. mas a gente aprendeu logo
que era só fazer um rodilho com o lenço no alto da cabeça, achar um
ponto de equilíbrio e ir em frente.''
Apenas dona Rosária usava salto, não sem uma meia baixa, com
as bordas rendadas, como mandava a moda de então. As meninas
acompanhavam a mãe no acessório, mas dispensavam o salto: os
sapatos, certamente reservados para missas (ou ladainhas) e outras
ocasiões especiais (sim, era um tempo em que uma foto de família
era uma dessas ocasiões). Para o momento da fotografia da
famüia, as meninas daquela época se transformavam em bonecas
faceiramente enfeitadas. A imagem de um comportamento
exemplar, porém, não combinava muito com Elza: "Meu pai dizia,
não bota vestido nela, que ela não tem modos; minha mãe acabava
concordando com ele e por isso eu custei muito para usar outra
coisa que não fosse short e suspensório." Com esse visual, Elza se
confundia com os meninos na rua e ficava feliz quando alguém
achava que ela era um moleque. Seu olhar fica um pouco perdido,
quando recorda desse tempo: "Vivia com uma atiradeira no pescoço,
saía matando passarinho - o Mané nunca soube disso..."
Elzo beijo
Gorrincho, no
apresentação
do atleta ao
Corinthions, em
1966.
que certamente se deliciavam também com os quitutes - , ousavam
abrir a boca para contar qualquer coisa que fosse.
Desde criança. Elza tinha esse instinto de querer proteger toda sua
família e essa preocupação ia além da despensa - manifestava-se num
carinho do dia a dia. A cantora Alaíde Costa, que era sua vizinha no
bairro de Água Santa quando as duas ainda eram meninas, sentiu
na pele o que era mexer com a familia de Elza. Um dia dona Rosária
deixou cair um balde de roupas que estava carregando e o balde raspou
em sua perna. O metal fez um corte fundo, abrindo imediatamente
uma ferida que, por falta de cuidados, infeccionou. Dona Rosária
passou a andar com uma faixa amarrada bem forte acima do tornozelo.
A ferida, em apenas alguns <Las, se encheu de pus - situação que
deixava mãe e filha envergonhadas. Mas, como lembra Elza, dona
Rosária não podia parar de trabalhar - não existia a possibilidade de
tirar uns dias para repousar. E a ferida só piorava. "Q__uando minha mãe
passava na rua, Alaíde sempre ria dela por causa do pano na perna,
e um dia eu prometi para mim mesma que Alaíde não riria mais da
minha mãe." Numa manhã, Elza esperou Alaíde passar em frente a
sua casa e acertou a perna dela com uma varinha que tinha escolhido
especialmente para isso. "Era para doer mesmo e eu fiz isso pela minha
mãe. Ela pode não lembrar por que eu dei essa varada nela, mas eu
tenho certeza que ela nunca esqueceu do jeito que eu acertei ela."