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28/02/2020 Ciência atravessa uma crise de reprodutibilidade - 24/02/2020 - Marcelo Leite - Folha

Marcelo Leite (/colunas/marceloleite/)


mleite@uol.com.br (mailto:mleite@uol.com.br)

Ciência atravessa uma crise de reprodutibilidade


Edifício do conhecimento seguro sofre abalo quando pesquisas não podem
ser repetidas por terceiros

24.fev.2020 às 2h00

Ia escrever sobre coronavírus (https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/01/veja-o-


que-se-sabe-ate-agora-sobre-o-coronavirus-chines.shtml)e crise climática

(https://arte.folha.uol.com.br/ciencia/2018/crise-do-clima/introducao/), mas é bom mudar de

assunto. Ainda em estado de choque com a notícia de que o impacto da


epidemia na produção chinesa está reduzindo em 25% as emissões de
carbono da potência asiática, de momento, pela paralisação de
transportes e atividades industriais.
 
E tem gente que considera a covid-19
(https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/01/numero-de-mortos-por-coronavirus-chines-chega-a-

81.shtml)uma
doença menor, que o alarme inicial teria sido injustificado,
que “a mídia exagerou” etc. Talvez seja uma manifestação de
insensibilidade perante o drama na China, onde se concentram 99,5%
(2.348) das 2.359 mortes registradas até sábado (22)
(https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/01/numero-de-mortos-por-coronavirus-chines-chega-a-

81.shtml). Para comparação: o surto de coronavírus da SARS, em 2002/3,

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causou 774 óbitos.


 
O restante do planeta deveria dar graças aos céus por haver uma
ditadura no poder na China. Sua drástica reação, após hesitação inicial,
e as restrições impostas à liberdade individual, impensáveis numa
democracia de estilo ocidental, estão a provar-se eficazes ao menos
para impedir que a mortífera epidemia doméstica se converta numa
pandemia global.
 
Mudando então de assunto: a ciência biomédica de estilo ocidental
também está doente. O diagnóstico aponta uma crise séria de
reprodutibilidade, isto é, um de seus órgãos vitais se encontra
gravemente comprometido.
 
A situação talvez não se afigure tão ameaçadora quanto a metástase
que espalha notícias fraudulentas (“fake news”) pela opinião pública
brasileira, mas faz temer pela saúde do conhecimento seguro. Há
indicações crescentes de que estudos relevantes para a medicina se
apoiam em experimentos que ninguém pode ou consegue reproduzir.

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Há cientistas que escondem, falsificam ou até mesmo inventam dados de pesquisas -


Francois Lenoir/Reuters

São requisitos básicos da boa ciência, como a conhecemos até aqui.


Publicam-se os resultados, depois de passarem por revisão de outros
cientistas (“peer review”), com informação suficiente para que se possa
repetir o experimento em qualquer laboratório capacitado, de maneira
a confirmar o achado.
 
Só que não: há pesquisadores escondendo os dados (para não falar dos
que os falsificam ou inventam). Uma amostra clara disso surgiu num
editorial de Tsuyoshi Miyakawa no periódico Molecular Brain, do qual é
o editor-chefe, publicado sexta-feira (21).
 
Nos dois anos em que esteve na função, ele recebeu 181 submissões de
artigos. Em 41 casos os resultados lhe pareceram “bonitos demais para
ser verdade”. Em lugar de enviar o manuscrito para revisão
especializada, devolveu-os aos autores com um pedido para fornecerem
os dados brutos a apoiar suas análises e conclusões.

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Metade deles (21) retirou a submissão, indicação provável de que os
dados ou não existem ou não sustentariam as alegações. Outra
hipótese: a negativa pode significar que o pesquisador pretende
resguardá-los para aproveitamento em futuras publicações (a “tática do
salame”, fatiar um estudo para emplacar mais de um artigo e, assim,
embelezar indicadores de produtividade).
 
Dos 20 que acataram o pedido do editor, 19 tiveram o manuscrito
recusado por uma de duas razões: os dados oferecidos não eram
suficientes ou estavam em desacordo com as conclusões. Resumindo:
de 41 artigos que levantaram suspeitas, só 1 terminou publicado em
Molecular Brain.
 
Miyakawa verificou depois que 14 dos 40 artigos descartados por ele
acabaram editados em outros periódicos. Voltou a fazer contato com 12
desses autores e pediu os dados brutos por correio eletrônico. Ficou
sem resposta de 10, teve negativa de 1, e o outro só lhe enviou dados
parciais.
 
Não faltam levantamentos como esse a sugerir que os alicerces do
edifício da ciência contemporânea têm lá suas fissuras. Incomoda não
saber o quanto de fato se encontram comprometidos, mas já há quem
se proponha a sondá-los.
 
Aqui mesmo apareceu uma proposta nessa direção, a
(https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/01/projeto-quer-responder-a-pergunta-quao-confiavel-e-a-ciencia-

brasileira.shtml)Iniciativa Brasileira de Reprodutibilidade


(https://reprodutibilidade.bio.br). O grupo da Universidade Federal do Rio de

Janeiro (UFRJ) (https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2019/01/projeto-quer-responder-a-pergunta-quao-


confiavel-e-a-ciencia-brasileira.shtml)obteve recursos do Instituto Serrapilheira

(https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2020/02/pesquisas-com-dobras-de-cerebros-e-informacoes-quanticas-

para tentar reproduzir 50 a 100 experimentos


ganham-r-1-milhao-cada.shtml)

biomédicos do país em três laboratórios.

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Mais importante que os achados individuais, a iniciativa servirá para
dar ideia da confiabilidade da ciência nacional e contribuirá, decerto,
para melhorar as práticas laboratoriais e editoriais, de modo a reduzir a
incidência de manipulações. Afinal, na comunidade científica,
diferentemente das redes sociais e do Planalto, evidências e fatos
concretos ainda produzem luz e consequências.
 

Marcelo Leite
Jornalista especializado em ciência e ambiente, autor de “Ciência - Use com Cuidado”.
tter.com/MarceloNLeite)

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