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Negritudes

Protagonismos, culturas e territorialidades


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Dr. Bruno A. A. Nunes | UCSF 1 PRÊMIO BALOGUN ABDIAS DO NASCIMENTO
o

Negritudes
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Protagonismos, culturas e territorialidades
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www.terraescrita.com Balogun)
Marcelo Alonso Morais
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Marco Aurélio da Conceição Côrrea
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
R484n Ribeiro, Jair J. P. Paulo Henrique de Moura
(Universidade de São Paulo)
Negritudes: protagonismos, culturas e territorialidades Rafael da Silva Nunes
/ organização Jair J. P. Ribeiro... [et al.] – 1a ed. - Rio de (Pontifícia Universidade Católica – RJ)
Janeiro: Terra Escrita, 2022. Rafael Haddock-Lobo
412 p. ; 21 cm. (Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Revisão Técnica
ISBN 978-65-995742-5-2
Leonardo Bhering
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro)
Inclui bibliografia.
1. Ciências Sociais. 2. Antropologia. 3. Etnografia. 4. negri- Coletivo Balogun
tudes.
Jair José Pereira Ribeiro
I. Título. II. Autor. (Coletivo Balogun)
João Teodoro Ribeiro
CDD 301 (Coletivo Balogun)
Leonardo Mattos da Costa
(Universidade Federal do Rio de Janeiro/Coletivo Balogun)
Impresso no Brasil Marco Casemiro
Printed in Brazil (Coletivo Balogun)
A Visibilidade das Religiões Afro-Brasileiras no Cenário Polí-
tico: O Caso da Regularização dos Terreiros de Umbanda no
Distrito Federal ................................................................................ 75
Thaynara Godoi dos Santos
Sumário Brenda Oliveira Sousa
Caroline Sousa Ribeiro
Incorporando o Espírito Científico: Colonizações nas e das
Umbandas.......................................................................................... 99
Apresentação..................................................................................... 11 João Victor Moreira Gonçalves
Jair José Pereira Ribeiro
Cultura, Imoralidade e Etnografia: As Ressignificações das
Daniel A. de Azevedo Casas de “Dar Fortuna” ...............................................................121
Leonardo Mattos da Costa Carolina Cabral Ribeiro de Almeida
Marcelo Alonso Morais
Rafael da Silva Nunes “Quem Entra Tem Que Ler a Cartilha do Candomblé!”: Quan-
do a Ideia de Tradição se Transforma em Opressão .............141
Prefácio ............................................................................................... 15 Aline de Jesus da Cruz
Alan Pacífico
Marco Aurélio Côrrea
A Feira Livre Como Espaço de Preservação das Subjetivida-
des Negras na Cidade...................................................................153
Rafael Haddock-Lobo Fábio Macedo Velame
Gabriel Silva Menezes
Seção I Vitória Maria Mato
O protagonismo negro na produção do conhecimento científico
24 Seção III
Literaturas e narrativas
Cultura Histórica e Protagonismo Negro: A Trajetória de Ab- 176
dias Nascimento na Luta Antirracista (1944-1999) .............. 25
Danilo Santos da Silva
Autoria Feminina Negra: As Religiosidades de Matrizes Afri-
O Olhar Visionário de Virgínia Bicudo Atento à Primei- canas Ficcionalizadas na Literatura de Mãe Beata de Yemonjá
ra Propaganda Enganosa da Europa ao Mundo: O Negro .............................................................................................................177
“Inferior” ........................................................................................... 47 Rodrigo Monteiro dos Santos
Tainan Conrado de Sousa Fernanda Felisberto da Silva
Literatura e Formação de Leitores: Proposta de Leitura e
Seção II Análise de O Mundo no Black Power de Tayó para o Quarto
Religiosidades e suas territorialidades
Ano do Ensino Fundamental ........................................................ 201
Fernanda Rodrigues da Siva
73
Ernani Mügge
O Racismo e a Discriminação Social: Os Padrões de Beleza e
a Pessoa Negra................................................................................229
Laís da Cruz Picolo
Matheus Filipe de Queiroz

Seção IV
Musicalidades e expressões teatrais
245

A Macumbização da Dança/Arte no Currículo: Por Entre


Encruzilhadas e (En) Cantos Performáticos Afro-Brasileiros
em Contextos Educacionais Franciscanos .............................. 247
Leonardo das Chagas Silva
Ler (Kawe), Dizer (Wéfun), Transformar (Yépada): A Tríade
do Teatro Negro Brasileiro .........................................................271
Régia Mabel da Silva Freitas
Abajur Cor de Carne - Cartografia pela Dança ...................293
Maicom Souza e Silva
Elaine Augusta da Silva Vieira
A Brincadeira do Cavalo Marinho de Pernambuco: Reflexões
Sobre uma Possível Prática Cultural Decolonial Afro-Brasi-
leira e as Artes Cênicas ................................................................321
Erico José Souza de Oliveira
O Corpo em Estado de Encantamento como Criador de Ar-
timanhas Epistemológicas em Dança .....................................345
Cleyce Silva Colins
Celina Nunes de Alcântara
O Samba na Serrinha e Seu Devir Expressivo......................361
Filipi Silva de Oliveira
Representatividade Negra na Construção de Novas Narrati-
vas: O Resgate do Owo Ti Ara Agbara Através da Dramatur-
gia dos Orixás e o Espetáculo Histórias Bordadas Em Mim
.............................................................................................................385
Agrinez Diana de Melo
Posfácio ............................................................................................405
Verônica Lima
APRESENTAÇÃO

Jair José Pereira Ribeiro


Daniel A. de Azevedo
Leonardo Mattos da Costa
Marcelo Alonso Morais
Rafael da Silva Nunes

Este livro foi uma iniciativa promovida pelo coletivo BALO-


GUN – Compartilhando Ancestralidade, criado em maio de 2020, a
partir da iniciativa de Jair José Pereira Ribeiro, do Professor Leonar-
do Mattos, do administrador Marco Casemiro e do publicitário João
Teodoro Ribeiro. O BALOGUN é um projeto de impacto social que
procura desenvolver competências e habilidades educacionais, psicoló-
gicas, sociais e holísticas com os seus clientes, parceiros e grupos em re-
lação. Desse modo, o objetivo principal do BALOGUN é compartilhar
ancestralidade(s), isto é, valorizar, ressignificar, sistematizar e refletir a
respeito de práticas dos nossos ancestrais, negros, índios, povos tradi-
cionais que sofreram em tempos passados para construir o presente.
O BALOGUN, fundamentalmente, dispõe de cursos de for-
mação, bancos de trabalhos científicos, além de concursos e prêmios que
valorizem a cultura, a História e a Geografia Afro-Brasileira. O Labora-
tório de Pesquisas e Ancestralidade do BALOGUN desenvolve ações
integradoras entre universidades e institutos de pesquisa em consonância
com os governos, conselhos sociais, institutos, organizações não-gover-
namentais, organizações privadas e a sociedade civil como um todo. O
coletivo tem como missão a promoção da criação de territórios solidários,
sustentáveis e criativos a partir da cidadania preta e do axé, com base no
desenvolvimento científico e na valorização dos saberes tradicionais.
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES APRESENTAÇÃO

O I Prêmio BALOGUN Abdias do Nascimento de Artigos e em conjunto, conseguiram construir o Edital, divulgar, montar uma
Pesquisas Científicas em Culturas e Religiões Afro-Brasileiras surge, comissão científica de qualidade, encontrar uma editora interessada e
junto com o BALOGUN, no contexto do brutal assassinato de Geor- organizar os textos aprovados. Dois organizadores ligados ao coletivo,
ge Floyd, homem negro que foi sufocado, de bruços, por um policial outros relacionados às religiões afro-brasileiras, e alguns sem nenhuma
branco que colocou o seu joelho no pescoço do cidadão norte-ame- relação direta com o tema em questão, os convites aos profissionais fo-
ricano durante oito minutos e quarenta e seis segundos. Ao mesmo ram pensados de modo que abrangessem a necessidade que o BALO-
tempo que em São Gonçalo, município da região metropolitana do GUN sentiu na hora de promover um projeto tão audacioso como esse.
Rio de Janeiro, o menino João Pedro Mattos Pinto foi assassinado por Construir uma chamada pública de artigos científicos nessa área neces-
um tiro, durante operação policial, no Complexo do Salgueiro. Além sitava um grupo coeso, com vontade de trabalhar e experiência na pro-
da negritude, o mês de maio foi a sincronia temporal que marcou es- dução científica. Acreditamos que esse objetivo tenha sido alcançado
sas duas tristes, lamentáveis e revoltantes mortes. com este grupo que, depois de mais de um ano de trabalho, conseguiu
Em 2020, também, completaram-se 2 anos sem Marielle e entregar esse trabalho ora disponibilizado ao público.
Anderson, assassinados na cidade do Rio de Janeiro. Marielle, João Por outro lado, a organização se restringiu a coordenar o pro-
Pedro e George Floyd são símbolos recentes do racismo estrutural jeto, mas a avaliação dos artigos ficou a cargo da Comissão Científica
porque passam as sociedades e que é desvelado em diversas ações, composta por professores de diferentes universidades públicas e privadas
legislações e no cotidiano. A outra face do racismo é o preconceito brasileiras e institutos de educação. Mesmo sendo um trabalho sem ne-
religioso, principalmente, destinado a fiéis das religiões de matrizes nhuma remuneração financeira, os avaliadores abraçaram a ideia e se de-
africanas, com o Candomblé e a Umbanda, por exemplo. O racismo dicaram enormemente à difícil tarefa de mensurar a qualidade dos mais
religioso que se concretiza em terreiros queimados, destruídos e em de setenta trabalhos que recebemos. Não foi fácil, mas os dezessete textos
mortes de dirigentes espirituais e filhos de santo por exercer o direito dessa coletânea (produzidos por autores de diferentes áreas e com dife-
constitucional de processar, livremente, a sua fé. rentes graus de escolaridade) passaram pelo crivo dos avaliadores depois
O BALOGUN foi criado a partir dessas e de diversas outras de muitas mudanças e adaptações. Destaca-se, entretanto, que a responsa-
inquietações, principalmente, tendo a sociedade civil, o conhecimen- bilidade final dos conteúdos e informações apresentadas em cada um dos
to científico e a cultura afro-brasileira como pilares fundamentais. capítulos são dos respectivos autores de cada um dos trabalhos.
O I Prêmio BALOGUN Abdias do Nascimento de Artigos e Pes- O BALOGUN espera que essa obra possa contribuir com o
quisas Científicas em Culturas e Religiões Afro-Brasileiras sintetiza debate relacionado às negritudes desse país. NegritudeS com “s” em
esses pilares e busca dar visibilidade e destaque aos negros, às negras destaque – já que é somente na pluralidade que esse debate faz sentido.
e à produção de ciência afro-centrada no Brasil. As ações afirmativas Nossos valores são baseados em quatro linhas: da comunidade para as co-
de ingresso ao ensino superior, aumentaram o percentual de negros munidades; ubuntu, eu sou porque somos; solidariedade como pilar; e
e negras nas universidades, mas é preciso ir além. É preciso conferir sustentabilidade(s) dos projetos, das pessoas e dos territórios. O Balogun
protagonismo e voz aos cientistas e às cientistas pretos e pretas do busca, com essa iniciativa e outros projetos que podem ser acompanhados
país. Esse livro, portanto, é um objeto de reparação e fruto de muito no website do grupo, ser referência como instituição de organização da
trabalho ancestral. George Floyd, presente! Marielle, presente! João sociedade civil para o campo afro-brasileiro e cultural, a partir da colabo-
Pedro, presente! Umbanda, presente! Candomblé, presente! ração, cooperação e transversalidade de práticas, conceitos e temas.
Para tanto, profissionais de diferentes origens, perspectivas e
expertises foram chamados para ajudar na construção do Edital Abdias
do Nascimento. Assim, os organizadores possuem raízes distintas que,

12 13
PREFÁCIO

Alan Pacífico
Doutorando em Geografia pela UFRJ e Mestre e Graduado
em Geografia pela PUC-Rio
Marco Aurélio Côrrea
Mestrando em educação no Programa de Pós-Graduação em
Educação da UERJ
Rafael Haddock-Lobo
Doutor e Mestre em Filosofia pela PUC-Rio.

O livro ora apresentado ao público se constitui de quatro par-


tes independentes entre si, que podem ser lidas segundo o interesse do
leitor. A primeira parte é uma homenagem a dois grandes nomes da his-
tória do movimento negro brasileiro – sendo o primeiro aquele que ba-
tizou o Edital de convocação de artigos que compõem essa obra. Abdias
do Nascimento e Virgínia Bicudo são os nomes que abrem alas para
as seções que revelam componentes importantes para compreensão do
que aqui denominamos como “Negritudes: protagonismo, culturas e
territorialidades”. Esperamos que a existência desse livro possa ajudar a
contar histórias que a História insiste em marginalizar.

* * *

“O principal, para nós, era a edu-


cação e esclarecimento do povo”
(Abdias do Nascimento[*])

[*] Em entrevista ao jornal Diário de Notícias em 1946.


NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES PREFÁCIO

A frase acima, na qual Abdias do Nascimento apresenta a corpos pretos, ou seja, que são produtor corporais que ultrapassam a
função pedagógica da arte, aparece quando ele, em entrevista ao jor- dicotomia corpo x mente tão marcante das culturas ocidentais.
nal Diário de Notícias, descreve a importância da criação em 1944 Pensar o corpo preto como produtor de saberes que se expres-
do Teatro Experimental Negro (TEN). Abdias afirmava que parecia sam nas músicas, nos teatros, nas giras, nas capoeiras, nas telas e nas
não importar tanto o fato de não entender muito de teorias teatrais, letras é tentar compreender a formação cultural afro-brasileira em sua
pois, segundo o próprio, “ficou desde logo estabelecido que o espe- dimensão mais ampla, para além das fragmentações acadêmico-institu-
táculo, a pura representação, seria coisa secundária” e o principal, cionais que terminam por configurar uma nova forma de agrilhoar tais
como aponta a epígrafe, seria seu caráter educativo. saberes. Vejamos, por exemplo, as análises fundamentais que o escritor,
Renato Noguera (2014), em seu livro O ensino de filosofia artesão, músico, compositor e criador do Grupo Vissungo, Spirito San-
e a lei 10.639, lançado setenta anos após a criação do TEN, aponta to (2016) (Antonio José do Espírito Santo), apresenta em seu livro Do
que, apesar da referida lei, de 2003, o ensino da História e Cultura samba ao funk do Jorjão. Em que área do saber seriam enquadradas?
Afro-Brasileira ainda não ocupa, nem de longe, o lugar que deveria Aliás, enquadrar talvez seja a melhor figura para o tratamento
em nossos currículos e na formação de nossa sociedade. As sete déca- disciplinar que os saberes das culturas afro-brasileiras recebem: o encar-
das que separam essas constatações, e mesmo em textos mais recen- ceramento, o aprisionamento. Mas para fugir dessa armadilha, portan-
tes, como as pesquisas do ator e filósofo Rodrigo dos Santos (2020), to, é preciso aprender não apenas o “quê” os grandes pensadores e pen-
parecem mostrar que ainda há um problema central no modo pelo sadoras negros nos ensinam, mas também o “como” eles nos ensinam. A
qual os saberes populares das culturas negras são tratados pela acade- escrita de um Abdias do Nascimento ou de uma Mãe Beata de Iemanjá
mia. Lendo os grandes nomes do pensamento negro brasileiro, como (2002) nos mostra que, para eles, para fazer justiça a essa amplidão para
Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Hele- além dos cárceres disciplinares, é preciso tecer uma outra escrita, uma
na Theodoro, Sueli Carneiro, Mãe Beata de Iemanjá, Alex Ratts, e escrita fugidia e resistente, que não apenas mostre que não é possível se-
mesmo a mais recente geração de pensadores da cultura negra como parar música, dança, teatro e religiosidade, mas, mais do que isso, que as
Eduardo Oliveira, Wanderson Flor do Nascimento, Renato Noguera, produções culturais dos corpos pretos também ultrapassam em muito
Sandra Petit, Adilbênia Freire Machado, Katiúscia Ribeiro, Marcelo as fronteiras entre educação, cultura e política.
José Derzi Moraes, Fábio Borges-Rosário ou Lorena Silva Oliveira, Desse modo, a divisão que esse livro apresenta é, apenas, para
entre tantas e tantos outros, podemos compreender que o gesto epis- fins expositivos e metodológicos, mas não possui justificativa onto-
temicida ainda em curso na forma como as disciplinas acadêmicas li- lógica. Na parte “Literatura e narrativas” encontramos um dos prin-
dam com as produções e saberes culturais afro-brasileiros pode ter a cípios tradicionais africanos em ação: a contação de histórias. Como
ver justamente com a divisão desses saberes em disciplinas. o mestre Abdias Nascimento (1980) nos pontuou, são os arokin,
Teatro, dança, música, religiosidade, não podem ser com- akpalo, griot, mais velhos e os demais sábios portadores da tradição
preendidos de modo estanque e, muito menos, isolado. A divisão entre oral que tecem o sentido de suas comunidades com a arte da palavra
áreas de saber sempre limitará qualquer compreensão mais profunda narrada. Bibliotecas vivas e ambulantes, bastiões das ancestralidades
e justa da amplidão dessas manifestações. Isso porque, como propõe de seus povos, africanas e africanos mantém vivos os conhecimentos
Abdias nas encenações do TEN, a produção artística do povo negro de outras gerações pela oralidade. Lendas, mitos, biografias de ante-
emerge de um corpo político, politizado desde sua existência, em uma passados, contos, fábulas e diversos outros tipos de narrativas são a
cultura de racismos e privilégios. Nesse sentido, compreender a pro- matéria prima que constitui a estrutura social das civilidades africanas
dução musical e teatral nas culturas afro-brasileiras, precisa partir do e diaspóricas. E tal argamassa social não se limita somente a palavra
princípio de que, em todas, trata-se de uma produção proveniente dos narrada, principalmente porque em África e suas diásporas nada está

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES PREFÁCIO

sozinho e tudo está conectado. A palavra narrada é um desdobramen- narrarem uma outra oportunidade de vida. Cada vez mais as africanidades
to da palavra cantada, escrita, escutada e sentida. se tornam presentes em nossos cotidianos brasileiros. Seja em espaços tra-
Apesar de ser um cenário de controvérsias – algumas até ten- dicionais de representação, como cadeiras das universidades, catálogos de
tando manter as sociedades de origem africana em uma possível infân- editoras e prateleiras de livrarias ou principalmente em posições à margem,
cia ahistórica –, a palavra escrita é uma manifestação potente e presen- como feeds de redes sociais, projetos sociais comunitários e espaços de cul-
te em muitas civilizações. Desde os hieróglifos keméticos, o amárico tura não hegemônicos, como coletivos, cineclubes, grupos de leituras, ro-
etíope e os adinkras akan-ashantis, a escrita, diferentemente de nossa das de conversas dentre outros. É a atualização do quilombismo de Abdias
concepção ocidental contemporânea, é uma das maneiras que africanas para as novas demandas sociais dos tempos de mídias líquidas e digitais.
e africanos usaram para registrar sua história e narrar suas vidas. Escritoras e escritores negros, de diferentes categorias, conse-
Outra gramática muito incisiva nos cotidianos africanos é a guem literaturizar suas vidas, como na escrevivência de Conceição Eva-
gramática dos tambores, como nos conta Luiz Antonio Simas. Agindo risto; rodopiar a ciência acadêmica, como na teoria de Renato Noguera;
tanto como indutor de elevações espirituais, ou como corpo cifrado de empretecer o audiovisual, como no cinema de Milena Manfredini; ma-
informações codificadas, o tambor, é um dos principais instrumentos cumbizar a música popular, como o canto de Jessica Ellen. Assim como
das musicalidades africanas, principalmente nas diásporas. A cultura de muitas outras referências das mais diferentes áreas que estão narrando
sincope dos atlânticos reverbera um dos princípios criativos mais es- uma vida onde o sentido é coletivo. Precisamos proporcionar a con-
senciais para nós das diásporas: a criação no vazio. Como no samba fluência desses saberes narrativos para escrever agora uma história que
que vemos um ritmado no contratempo entre duas notas, as culturas de dê orgulho a nossos ancestrais e esperança à nossas próximas gerações.
sincope da diáspora criaram no vazio para dar sentido novamente a suas Análises que abordam o entrelaçamento entre práticas reli-
vidas. No vazio deixado pela ausência de uma terra mãe, no vazio de giosas e territorialidades não se constituem exatamente como uma
uma cultura familiar, no vazio que tentava desumanizar para dominar, novidade no âmbito das ciências sociais. Um conjunto numeroso de
no vazio que era viver em um território totalmente hostil. pesquisas, livros, artigos acadêmicos e demais produções intelectuais
É por isso que as narrativas se tornam cada vez mais importantes dos diferentes campos do conhecimento, notadamente nas chamadas
nos dias de hoje. Em tempo em que a verdade está constantemente em dis- ciências humanas, tratam de forma competente os desdobramentos
puta, tecer narrativas é uma das formas de nos manter convictos em nossos políticos, econômicos, culturais, ambientais e pedagógicos (entre ou-
sentidos de mundo. Diferentemente do que acreditavam nossos ancestrais, tras dimensões) resultantes da imbricação entre religiosidades e terri-
a palavra e a verdade não são levadas a sério por muitos de nossas figuras torialidades, com maior destaque para o avanço conceitual e metodo-
públicas, o que desvia muitos dos nossos do caminho de uma humanidade lógico da referida temática nas últimas duas décadas.
sadia, as aproximando ao negacionismo, a competitividade e a individuali- No entanto, quando consideramos o contexto historicamente ins-
dade. Ou seja, tornando cúmplice de uma humanidade hostil a nossa vida taurado nas pesquisas acadêmicas das universidades brasileiras (apenas para
em sociedade. Desse modo, precisamos ainda mais do que antes narrar um citar o nosso caso como um exemplo) de uma forte tendência eurocêntrica
mundo que vibre por uma vida saudável e em comunidade. Precisamos não só nos conteúdos e temas abordados, mas como nos métodos, objetos
narrar com encanto, afinco e ousadia uma vida que encare o coletivo como de pesquisa e bases epistemológicas de análise, chama atenção uma notória
prioritário, ao invés de uma vida escassa, egoísta e terrorífica. Coletivo aqui escassez de pesquisas que destaquem a centralidade das práticas religiosas
não como unidade, mas como diversidade plural. de matriz africana no Brasil (candomblé, umbanda, ifá, dentre outras) em
Acalentando nossos corações esperançosos acompanhamos o sua numerosa extensão de variações e derivações relacionadas às configura-
crescimento desse sentido de mundo tacanho com um movimento à sua ções de suas territorialidades. Eis um problema importante a ser considera-
contramão. Cada vez mais pessoas negras estão alcançando espaço para do, debatido e enfrentado, do ponto de vista ético e epistemológico.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES PREFÁCIO

Deste modo, partindo de uma percepção relacional – material e, ao a desarticulação do ser africano e de sua noção de ancestralidade e espiri-
mesmo tempo, simbólica – sobre o conceito de territorialidade[*], não é pos- tualidade desencadeados por fenômenos de sequestro, cárcere, escravidão,
sível desconsiderarmos o contexto histórico nem a dinâmica entre espaço e colonização, objetificação, guetificação e genocídio que a população negra
poder que instrumentalizaram a escravidão transatlântica, a maciça migração sofre diretamente, independente da territorialidade (NJERI, 2019). Um
forçada de mulheres e homens africanos para o Brasil e, consequentemente processo intergeracional, multidimensional, contínuo e destrutivo que
ao longo dos séculos, na constituição das religiosidades afro-brasileiras. impõe interdições de diferentes naturezas para a população negra através
Convém, nesse sentido, resgatar o termo apresentado pela intelec- do poder do paradigma eurocêntrico universalizante.
tual Marimba Ani (1998) como estado de Maafa[**], enquanto fenômeno Por outro lado, e felizmente, esse processo não ocorreu sem resistên-
multiescalar, secular e sem paralelo, definidor de territorialidades negras em cias. Um conjunto de estratégias implementadas pela população de an-
função do deslocamento forçado conhecido como afrodiáspora. O termo cestralidade africana no Brasil ao longo dos séculos garantiu a sobre-
em swahili, Maafa, designa o longo processo de violência vivido pelos afri- vivência e permanência de tradições filosóficas e práticas religiosas de
canos que parte desde a colonização árabe e europeia até os dias atuais. matriz africana até os dias de hoje, manifestando-se em maior ou me-
Para a autora, a desintegração dos africanos continentais e da diás- nor escala nas diferentes regiões do país e contribuindo decisivamente
pora foi resultado da estruturação e sofisticação do racismo e do neocolo- para constituição de uma sociedade mais diversa e complexa em seu
nialismo epistêmicos reproduzidos nos meios de comunicação, científicos, aspecto cultural, influenciando fortemente elementos como a música,
políticos e institucionais. Essa desintegração atingiu primeiro o corpo ne- a gastronomia, a mitologia, as formas de falar e escrever, as marcas na
gro no processo de migração forçada proporcionada pelo “progresso” do paisagem urbana entre outras centenas de exemplos possíveis.
comércio atlântico europeu. Depois, o elo familiar ou comunitário. Em Assim, compreendemos as práticas religiosas de matriz africana
sequência, a desintegração histórica, econômica, cultural, mental e por fim no Brasil como uma estratégia político-cultural de adaptações e resistên-
cias ao longo dos séculos através de manifestações éticas e estéticas funda-
[*] Nossa compreensão a respeito do conceito de territorialidade fundamenta-se no diálo- mentadas em valores ontológicos de sociedades do continente africano.
go entre três autores: Sack (1986), afasta a territorialidade humana das disciplinas de ca- É impressionante observar como este complexo de expressões culturais
ráter biológico que buscam explicar o conceito como uma espécie de instinto, comparado
ao dos outros animais que demarcam e defendem seu território. Segundo o autor, a territo- sobrevive (no continente africano e no Brasil) e se fortalece, contra todos
rialidade humana é, portanto, mais “sofisticada” do que uma mera manifestação instintiva. os impedimentos, especialmente considerando do processo contínuo e
Ela é “[...] a tentativa de um indivíduo ou grupo de afetar, influenciar, ou controlar pessoas, constante de desintegração, negação e anulação da humanidade dos afri-
fenômenos, e relações, delimitando e afirmando o controle sobre uma área geográfica” (p.
19). Tal perspectiva se aproxima dos conceitos apresentados por Raffestin (1993), quando canos continentais e da diáspora africana apontados anteriormente.
o autor afirma que o território é, portanto, um sistema físico e também sêmico (uma vez Ora, feitas essas importantes considerações, o presente livro
que comunicado pela linguagem e por símbolos), que permeia as relações entre as pessoas ocupa um lugar importantíssimo na construção de uma pedagogia polí-
e o espaço, contribuindo para a definição dessas relações e também sendo definido por elas
em um processo que é eminentemente relacional. Assim, a simples demarcação ou delimi- tica de combate ao racismo em suas diferentes dimensões, e chega num
tação de um espaço geográfico não caracteriza a existência de um território. momento decisivo de ampliação desse debate. A partir de uma organiza-
Para Haesbaert (2007), a territorialidade: “[...] não é apenas “algo abstrato”, num sen-
tido que muitas vezes se reduz ao caráter de abstração analítica, epistemológica. Ela é ção coletiva, criteriosa e responsável, os textos aqui presentes reforçam,
também uma dimensão imaterial, no sentido ontológico de que, enquanto “imagem” de forma didática, criativa e inovadora a potência da inserção dos valores
ou símbolo de um território, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratégia africanos na composição da sociedade brasileira, bem como nos aspectos
político-cultural, mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente
manifestado - como no conhecido exemplo da “Terra Prometida” dos judeus, territoria- do nosso cotidiano, dentro de uma teoria ética e sensível que aponta para
lidade que os acompanhou e impulsionou através dos tempos, ainda que não houvesse, caminhos pluriversais (NOGUERA, 2012) de análise, problematizan-
concretamente, uma construção territorial correspondente” (p.7). do questões fundamentais e graves, como o racismo religioso, porém,
[**] O uso do termo Maafa também aparece na obra de Maulana Karenga (2009) e
Marimba Ani (1994) sob outras acepções como: “holocausto africano”, “grande infor- proporcionando uma leitura fluida, interessante e, mais do que nunca
túnio”, “grande tragédia” e “grande desintegração”.

20 21
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES PREFÁCIO

necessária, contribuindo para uma série de reflexões e aplicações práticas SANTOS, R. A experiência do Teatro Negro e a ideia de um Teatro de
no campo pedagógico, por exemplo, como sugere a lei 10.639/2003. Nação através do Baraperspectivismo. Revista Calundu, v.4, n.2, 2020.
Desta maneira, concordando com Simas e Rufino (2019, p.5)
SIMAS, L. A.; RUFINO, L. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Ed.
que: “o contrário da vida não é a morte, mas o desencanto”, desejamos
Mórula, 2019.
que a leitura desse livro desperte a inquietação e o encantamento do
pensamento em você, prezado leitor, e que ao concluí-la, estejamos SPIRITO SANTO. Do samba ao funk do Jorjão: ritmos, mitos e ledos
todos nós positivamente influenciados em prol da construção de uma enganos no enredo de um samba chamado Brasil. Rio de Janeiro: Escola
sociedade menos desigual. Sesc de Ensino Médio, 2016.
Excelente leitura! YEMONJÁ, Mãe Beata. Caroço de dendê: a sabedoria dos terreiros.
Como as ialorixás e babalorixás passam conhecimento a seus filhos. Rio
Referências Bibliográficas de Janeiro: Pallas, 2002.
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rituality in the Diaspora. New York: Nkonimfo Publications, 1998.
HAESBAERT, R. Território e Multiterritorialidade: Um Debate. Re-
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NJERI, A. Educação afrocêntrica como via de luta antirracista e sobre-
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RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ed. Ática,
1993 [1980].
SACK, R. Human Territoriality: its theory and history. Cambridge:
Cambridge University Press, 1986.

22 23
CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO:
A TRAJETÓRIA DE ABDIAS NASCIMENTO NA LUTA ANTIRRACISTA
(1944-1999)

Danilo Santos da Silva


Mestre e Graduado em História pela UFPB.

Introdução
Seção I Em consequência do racismo estrutural, a população negra não
O protagonismo negro na produção
do conhecimento científico teve acesso ao poder econômico e ao poder político, fazendo com que ti-
vesse que buscar outros mecanismos para legitimar o seu discurso e justi-
ficar suas ações na sociedade brasileira. Desse modo, teve que mensurar a
sua experiência e transformá-la em conhecimento histórico, criando, as-
sim, as condições necessárias para sua orientação social, política e cultural.
Assumiu para si a responsabilidade de trazer luz ao conhecimen-
to produzido no passado, atribuindo-lhe um sentido histórico (FLO-
RES, 2007). Sistematizou a experiência como subsídio para a formação
da identidade e como meio para agir de forma intencional (RÜSEN,
2007). Destarte, a população negra desenvolveu conhecimento permea-
do por relações práticas, através do processo que associou cultura e políti-
ca, visando a construção da unicidade negro-africana universal.
Dentro dessa perspectiva, o estudo da trajetória de Abdias Nasci-
mento ajuda a materializar as formas utilizadas pela população negra para
mensurar a sua experiência em prol do seu ativismo antirracista. Ele foi
escritor, artista plástico, teatrólogo, poeta, professor, político e ativista do
movimento negro e dos direitos humanos. Em todos esses campos, sempre
teve como fonte de inspiração as questões relacionadas à população negra.
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

Como ativista negro, participou das três grandes fases do cação e da esquematização que denominamos de momentos abdisianos:
movimento sociocultural negro do século XX[*]: na década de 1930, da pedagogia negritudinista (1944-1968), do quilombismo panafrica-
militou na Frente Negra Brasileira (FNB); da década 1940 a dé- nista (1968-1983) e do quilombismo parlamentar (1983-1999).
cada 1960, fundou e participou do Teatro Experimental do Negro
(TEN) e contribuiu direta e indiretamente, a partir do final da dé- Primeiro momento: a pedagogia negritudinista do
cada 1970 para o Movimento Negro Unificado (MNU), seguindo Teatro Experimental do Negro (1944-1968)
com seu ativismo até o final da década de 1990.
Desempenhou ainda papel importante na difusão das propos- O primeiro momento abdisiano tem início em 1944 e se encerra
tas dos Movimentos da Negritude e do Pan-africanismo na luta contra em 1968, representando o início e o final das atividades do Teatro Expe-
o racismo, no Brasil. Criou, em 1981, o Instituto de Pesquisas e Estudos rimental do Negro (TEN). Uma geração que se deteve na criação de me-
Afro-Brasileiros (IPEAFRO), no Rio de Janeiro, com o propósito de canismos que visavam a integração da população negra na sociedade bra-
recuperar a história e os valores culturais da população negra. Traba- sileira e a crítica à ineficácia da ideologia da democracia racial através das
lhou com fóruns, cursos, pesquisas, exposições, publicações, memória artes negras e de outras estratégias políticas, com o intuito de construir
e patrimônio, sobretudo nas áreas da educação e cultura. Foi um dos uma nova base para o desenvolvimento das condições materiais e mentais
maiores ativistas pelos direitos humanos e deixou um legado de lutas da população negra. Trata-se do momento no qual Abdias Nascimento
pela população negra, no Brasil e no mundo. reivindicou o reconhecimento da herança africana e da personalidade ne-
A sua trajetória de ativismo antirracista se confunde com a his- gra através da sua atuação política, social, cultural e educacional.
tória do protagonismo do negro contemporâneo e, por consequência, A partir do TEN, começa o processo que ressignificou a posição
possibilita-nos apresentar o esforço da população negra em transformar da população negra, no país, que deixou de ser vista como minoria popula-
a experiência histórica em conhecimento através da criação de condi- cional e passou a ser reconhecida como a maioria da população brasileira.
ções necessárias que promovam orientação na luta pelo reconhecimen- Tal movimento marcou o início da positivação e da transformação do ter-
to e valorização da identidade afro-brasileira na busca da cidadania e no mo negro/negra, em categoria analítica, com forte teor político, inauguran-
combate ao racismo durante todo o século XX. do uma nova perspectiva epistemológica, para além da ótica minimizadora,
Dessa forma, esse artigo foi pensado para ser desenvolvido com que analisava o termo apenas no plano cultural como objeto de estudo.
base no recorte temporal que tem início em 1944, com a criação do Dessa forma, a pedagogia do TEN pode ser apresentada
Teatro Experimental do Negro (1944) e se encerra em 1999, como fim como um dos meios de desenvolvimento de estratégias, que formam
de sua carreira política. O trabalho foi organizado a partir da identifi- a tradição contemporânea da luta contra a desigualdade racial e o
[*] Utilizaremos as expressões movimento e (ou) ativismo sociocultural negro com o
racismo, no Brasil. Estratégias essas que utilizavam o método da
intuito de contemplar tanto o cunho social como o cunho cultural, que de maneira contradição histórica (RÜSEN, 2007) para refletir e questionar as
conjunta atuaram na formação e manutenção da história população negra no século interpretações sobre a realização do passado.
XX. Essa relacionado com a ideia de que [...] todas as entidades, de qualquer nature-
za e todas as ações de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que visam a A perspectiva reflexiva e questionadora esteve presente tanto
autodefesa física e cultural), fundadas e promovidas por pretos (as) e negros (as) [...]. na sua atividade dramatúrgica e política como também em seu próprio
Entidades religiosas (como terreiros de candomblé, por exemplo), assistenciais (como nome, assumindo cunho pedagógico de formação histórica. Sem as
as confrarias imperiais e republicanas), recreativas (como “clubes de negros”), artísticas
(como os inúmeros grupos de dança, capoeira, teatro, poesia), culturais (os diversos derivações comumente utilizadas para descrever a identidade negra, a
“centros de pesquisa”) e políticas (como o Movimento Negro Unificado); e ações de proposta de um teatro, que se autointitulava de negros(as) e para ne-
mobilização política, de protesto anti-discriminatória, de aquilombamento, de rebeldia gros(as), soava como ameaça à cultura nacional de um país, que tinha o
armada, de movimentos artísticos, literários e “folclóricos” - toda essa complexa dinâ-
mica, ostensiva ou encoberta extemporânea ou cotidiana, constitui o movimento negro mundo branco europeu como referencial.
(BARBOSA & SANTOS, 1994, p. 157).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

A definição do nome do TEN apresentou-se como “[...] Nessa peça, o autor exemplifica as características desse tipo
estratégia semântica, que reverteu a carga negativa da palavra para de dramaturgia. Dividida em três atos, a trama passa-se em um terrei-
torná-la arma simbólica na construção de um novo sentido positivo ro de candomblé e explora o conflito de emoções e a dificuldade de
como base para uma identidade impregnada de conteúdos históricos enquadramento social de Emanuel; um advogado negro que enfrenta
e culturais” (NASCIMENTO, 2014, p.155). No contexto adverso dificuldades para ser aceito como cidadão e profissional na sociedade
às suas ideias, o TEN teve que agir entre “a negociação e o conflito” brasileira. Casado com Margarida, uma mulher branca, ele vive sob o
(ROSA, 2013, p. 116). Desse modo, foi preciso buscar mecanismos peso do racismo, agravado pela convicção de que Margarida só se casara
que contribuíssem para elevação das condições materiais e subjetivas com ele por haver perdido a virgindade antes do casamento, um fato
da população negra, além da promoção de processo de conscientiza- ainda grave na sociedade do começo do século XX.
ção da população branca para o problema racial no Brasil. Num acesso de raiva, ao questionar a fidelidade de Margari-
Abdias Nascimento acreditava e defendia que tal empreendi- da, Emanuel estrangula a sua esposa na intenção de assustá-la. Contu-
mento só seria possível a partir de um processo formativo pautado na do, acaba matando-a e fugindo para um terreiro de candomblé. Nesse
história de longa duração (BRAUDEL, 1992) que, por consequência, espaço, ele coloca-se aos pés de um pejí[*]. Após fugir da polícia pelo
possibilitaria uma nova consciência que pusesse fim aos resquícios da assassinato de sua mulher, o advogado depara-se com filhas de santo
escravidão e da colonização, na sociedade brasileira do século XX. (sacerdotisas e porta-vozes dos orixás), que dão início a um ritual que
Por outro lado, a formação de uma nova consciência produziu um causa a libertação de sentimentos reprimidos.
processo de confrontação e de transformação da produção do conhe- Durante o ritual, Emanuel começa a questionar sua formação
cimento e do ensino de história. Assim, o TEN assumiu para si uma judaico-cristã e etnocêntrica, fato que o leva a renegar totalmente o cris-
postura pedagógica a respeito da questão racial e de suas implicações tianismo. Assim, despoja-se de toda sua roupa e reintegra-se à cultura e à
para a sociedade, apresentando o combate ao racismo como uma res- religiosidade negro-africana através de seu sacrifício: é brutalmente atraves-
ponsabilidade não só da população negra, mas de toda a nação brasi- sado pela lança de Exú, empunhada pelas filhas de santo. É uma narrativa
leira, reivindicando a cidadania da população negra sem renunciar à dramática, ambientada em um espaço de misticismo e religiosidade. A peça
herança negro-africana e da identidade afro-brasileira. não se desenvolve linearmente, mas em torno das narrativas que remontam
as lembranças de Emanuel e das intervenções dos fantasmas de Margarida
A dramaturgia do TEN e de Ifigênia (outra personagem, a qual não se sabe se está mesmo morta).
O termo mistério, presente no título da peça, evoca o culto às di-
Para tentar compreender como a dramaturgia do TEN abor- vindades ancestrais, ao passo que o adjetivo negro aponta para uma dupla
dou a verdade dramática da população negra, analisaremos a peça Sor- referência: à mística firmada nas divindades e nos ritos negro-africanos e à
tilégio (Mistério negro). Escrita por Abdias Nascimento em 1955, teve estética vinculada ao gênero teatral da Idade Média e ao teatro ritual africa-
sua estreia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro ano de 1957. Foi no (SANTOS, 2012). O texto é uma fábula moral que cria uma metáfora
publicada em 1961 no livro Drama para negros e prólogo para branco[*], da situação da população negra no Brasil. Uma peça revestida de mistério –
organizado pelo Teatro Experimental do Negro (TEN). palavras entrecortadas, sentidos figurados, metáforas e dubiedade nas ações
– colocando-a no limite entre a realidade e a lenda, a vida e o culto.
[*] Compêndio com peças nacionais que problematizam a situação social da população
negra e o lugar que a cultura negro-africana ocupava na sociedade brasileira. As peças são:
O filho pródigo, de Lúcio Cardoso (1947); Além do rio, de Agostinho Olavo (1957); O [*] No rito do candomblé, é o santuário onde são colocados os fetiches dos orixás e
Castigo de Oxalá, de Romeu Crusoé (1961); O auto da Noiva de Rosário Fusco (1946), diante dos quais se colocam tigelas com a comida especial de cada um, ou outras oferen-
Filhos de Santo de José (1948), de Morais Pinho; Aruanda, de Joaquim Ribeiro (1946), das. O pejí pode ser externo (sob árvores sagradas ou em casinholas) ou interno (arma-
Anjo negro, de Nelson Rodrigues (1946), O Emparedado, de Tasso Silveira (1949) e Sor- do no interior da casa do candomblé). A pessoa encarregada de olhar por ele recebe o tí-
tilégio, de Abdias Nascimento (1951). tulo de pejigã e deve ser escolhida entre os ogãs (protetores ou patrocinadores) da casa..

28 29
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

Inicialmente, Emanuel rejeita sua própria cultura e sua reli- A personalidade de Emanuel está dividida. Oscila entre a acei-
gião por desejo de ascensão social. Vê o signo negro/africano como o tação e a não aceitação da religiosidade, dos valores e da cultura negro-
paradigma do “mal” e do perverso e, por isso, supervaloriza a cultura -africana, que faz com que, durante toda a peça, ele viva dividido entre
branca e menospreza a cultura negro-africana, mascarando a si mes- dois mundos antagônicos. Além disso, promove a reflexão de que a po-
mo e criando uma falsa noção de auto embranquecimento. O termo lítica e a ideologia do branqueamento exercem uma pressão psicológica
embranquecimento traduz uma forma de alienação da condição de ser intensa sobre os africanos e seus descendentes.
negro/a (MARTINS, 1995). Seria uma substituição da herança cultu- A ambiguidade cor/classe social e branqueamento constitui
ral negro-africana por uma cultura definida como “civilizada” ou “supe- mecanismos estratégicos que impactam na aceitação da população ne-
rior”. Atordoado com a pressão de ser negado no mundo dos brancos, gra na sociedade brasileira. Essa tendência fica evidente no diálogo en-
mesmo negando suas origens, torna-se emissor e receptor do racismo, tre Dr. Emanuel e Ifigênia, sua amada negra: “[...] não discutimos o as-
que está impregnado no imaginário social. sunto tantas vezes antes? E a conclusão não foi sempre: ballet clássico?
O trecho da peça, expresso abaixo, ajuda-nos a compreender, Você não me queria misturada aos sambas de morros ou de gafieira. Me
através do personagem Emanuel, como esse imaginário social tem in- proibiu frequentar os terreiros e apreender a dançar o ritmo dos pontos
fluência na vida da população negra: sagrados” (NASCIMENTO, 1961, p. 173).
Sortilégio representa o modo como a população negra usou (e usa)
É por isso que essa negrada não vai para frente. Tantos sé-
culos no meio da civilização [...] e o que adiantou? Ainda a dramaturgia como instrumento de combate ao racismo ao questionar uma
acreditando em feitiçaria [...] praticando macumba [...] sociedade construída a partir do modelo hegemônico eurocêntrico. A trama
evocando deuses selvagens [...] Deuses?! Por acaso serão apresenta um dos temas principais do movimento negro contemporâneo:
deuses essas coisas que baixam nesses negros boçais? [..]
Deuses! A ciência já estudou esse fenômeno: tudo não a discussão em torno do fator psicológico através da colonização mental e
passa de histeria coletiva, de qualquer forma é um estado suas consequências para a população negro-africana pós-abolição[*].
de patologia [...] (NASCIMENTO, 1961, p. 167). Abdias Nascimento, a partir da perspectiva pedagógica do
TEN, utilizou as artes, através da busca pela transformação do contexto
A peça Sortilégio é construída sobre base dicotômica: negro/ vivenciado pela população negra, como um caminho para ressignifica-
branco, matriz africana/cristianismo, primitivo/civilizado, dentro da ção das formas de expressão e de representação da população negra em
perspectiva do método da contradição histórica que visa mostrar que nem sociedade, possibilitando uma releitura do passado ao questionar o pre-
os/as negros/as com qualificação profissional estavam livres do racismo. sente a partir daquilo que era posto em cena. Defendeu a necessidade
Diploma, dinheiro, riqueza e respeito profissional não eram suficientes de representação da população negra como sujeitos históricos, como
para a população negra deixar de ser negra. Mesmo se “mascarando”, fin- alternativa para construção de uma nova perspectiva de educação, atra-
gindo para si e para os outros, Emanuel sempre se mostra em conflito in- vés da linguagem pedagógica para a produção do conhecimento como
terno consigo mesmo. O personagem vive dividido entre o cristianismo, processo de aprendizagem histórica através de sua dramaturgia.
a religião dos “civilizados”, e o candomblé, a “crendice dos primitivos”:
À meia-noite desce Exu. O pessoal vem cumprir obriga- Outros instrumentos sociopolítico-pedagógicos na experiência do TEN
ções aí no pegi [...] então eu aproveito para o caminho
livre. Exu é um boa-vida. Não pode ouvir doze badaladas Ao mesmo tempo em que o TEN se mostrava pre cupado com
[...] sem sair atrás de charutos e cachaça. Imagine, eu fa-
lando como se também acreditasse nessa bobagem. Eu, a transformação das bases epistemológicas que sustentavam a cultura
o doutor Emanuel, negro formado [...] que apreendeu o
catecismo [...] que em criança fez até a primeira comu- [*] Resumo da peça baseado na síntese da obra Sortilégio II: mistério negro de Zumbi
nhão! (NASCIMENTO, 1961, p. 167-169). redivivo (1979).

30 31
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

e os valores de uma sociedade, cujo foco era o processo de branquea- sentimentos, expurgando de sua personalidade os estereótipos raciais e
mento, também desenvolveu atividades voltadas à valorização social da as visões autodepreciativas incorporadas desde a infância. Tratava-se da
população negra através da educação, da cultura e da arte. “transposição para o palco de situações de preconceito e conflitos con-
Além da dramaturgia como instrumento pedagógico, dos cursos cretos, tais como eram vivenciadas pelo indivíduo” (MAIO, 2015, p. 82).
de iniciação teatral (1944 e 1945), o TEN também desenvolveu cursos de Dentro da perspectiva de criar mecanismos que visavam o en-
alfabetização e de iniciação cultural, chegando a reunir 600 participantes: fretamento dos temores e dos ressentimentos da população negra, o
TEN desenvolveu os Seminários de Grupo terapia, com a pretensão
Quando fundamos o Teatro Experimental do Negro, fi-
cou desde logo estabelecido que o espetáculo, a pura repre- de “qualificar pessoas no intuito de organizar grupos de teatro que
sentação seria coisa secundária. O principal para nós era pudessem combater os complexos emocionais nos morros, terreiros e
a educação, e esclarecimento do povo. Pretendíamos dar associações, utilizando o psicodrama — um método terapêutico que
ocasião aos negros de alfabetizar-se com conhecimentos
gerais sobre história, geografia, matemática, línguas, litera- produz efeitos catárticos no indivíduo” (DOMINGUES, 2011, p. 54).
tura e assim por diante (NASCIMENTO, 2014, p. 153). Tratava-se de um projeto de psicoterapia voltado à promoção de opor-
tunidades para a população negra eliminar suas tensões e recalques pro-
As aulas, as palestras e as discussões tinham intenção de res- venientes do racismo e da vulnerabilidade social aos quais estava sujeita.
gatar a cultura e a história negro-africana como estratégias tanto para Fazia parte da proposta de mudança social que levava em conside-
elevação da autoestima desse recorte populacional quanto como meca- ração o aspecto psicológico para elaboração de um plano de reconstrução
nismo de orientação para transformação da experiência histórica, com da personalidade negra na sociedade brasileira, cujas iniciativas eram volta-
o intuito de desnaturalizar as ideias de subalternidade e de complexo de das para reabilitação subjetiva da população negra. Tal reabilitação foi pla-
inferioridade, introduzidas no imaginário social da população negra. nejada a partir da educação, não da educação tradicional institucionalizada,
Proporcionou, ainda, atividades que visavam enaltecer os pa- mas de uma educação não-institucionalizada que se desenvolveu a partir de
drões estéticos da mulher negra para além da exploração sexual: “promo- uma formação que utilizou o método da contradição histórica.
veu concursos de beleza com objetivo de combater essa exploração, dando Dentro dessa perspectiva, Abdias Nascimento denunciou a
uma resposta objetiva ao critério racista pelo qual os concursos de belezas produção do conhecimento histórico oficial:
só admitiam mulheres brancas” (NASCIMENTO, 2014, p. 162).
[...] a história cultural oficial brasileira pouco se im-
Também na mesma perspectiva, o concurso de artes plásticas, portou, até recentemente, com este tema essencial à
denominado O Cristo Negro, no ano de 1955, foi uma crítica à cultura nossa formação como povo e uma nação. Ela tem obe-
de arianização da representação do Cristo Redentor. Vejamos o que um decido às normas da visão greco-romana do mundo,
dos jornais mais lidos da década de 1950, o Jornal do Brasil, fala da que define a cultura exclusivamente a partir da expe-
riência europeia, assim omitindo mais de dois terços
iniciativa: “[...] as autoridades eclesiásticas devem, quanto antes, tomar do globo [...] (NASCIMENTO, 1982, p. 36).
providências para impedir a realização desse atentado feito à Religião e
às Artes. O próprio povo brasileiro se sentirá chocado pela afronta fei- Fez também a crítica aos estudos que focalizavam a população
ta” (NASCIMENTO, 2003, p. 301). O concurso de artes plásticas O negra como um elemento estático ou mumificado (RAMOS, 1957).
Cristo Negro mostra como TEN utilizou a contradição histórica, com De maneira geral, criticou os “estudos afro-brasileiros”, que apresenta-
o intuito de proporcionar tratamento de choque como estratégia peda- vam a população negra apenas como objeto de estudo e curiosidade por
gógica para denunciar o racismo na sociedade brasileira. parte de eruditas divagações científicas.
Através de suas iniciativas, o TEN viu a oportunidade para Dentro da perspectiva pedagógica do TEN, a ciência tinha
a população negra denunciar o racismo e enfrentar seus temores e res- papel importante no processo de desenvolvimento das condições ma-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

teriais e ontológicas da população negra. Dessa forma, o primeiro mo- Recusou tanto o comunismo quanto o capitalismo como so-
mento do ativismo de Abdias Nascimento, focalizou o fortalecimento luções para os problemas da população negro-africana. Identificou-se
físico e mental da população negra através da defesa de que suas ques- de maneira natural com a corrente nacionalista (Pan-africanismo da
tões e demandas mais urgentes deveriam fazer parte da pauta da ciência, Negritude), por defender que o mundo africano deveria encontrar
visando criar as condições concretas para efetivação da cidadania desses sua própria identidade ideológica, baseada na experiência histórica
indivíduos e para o combate ao racismo na sociedade brasileira. dos povos africanos do continente, assim como na experiência das
suas diásporas das Américas, do Caribe e do Pacífico.
Segundo momento: o quilombismo pan-africanista versus No momento em que Abdias Nascimento começa a atuar na
a ideologia da democracia racial (1968-1983) arena pan-africana, o movimento passava por um processo de redefi-
nição da linha de conduta política e cultural de sustentação das lutas
O segundo momento abdisiano tem início em 1968, com específicas da comunidade negro-africana mundial. A sua primeira
sua partida para o exílio e fim em 1983, com o início de sua carreira contribuição para esse processo de renovação ideológica foi a intro-
política, quando se tornou deputado federal. Esse recorte temporal dução da experiência diferenciada da população negra da América
é tido pelos especialistas como o período “menos produtivo” do mo- Latina no debate sobre a composição pan-africana.
vimento sociocultural negro contemporâneo devido ao auge do re- Outra contribuição foi a valorização da diáspora no jogo
gime civil-militar instaurado no país. Todavia, representa o momen- pan-africano. Defensor de um pan-africanismo mundial, lutou contra
to inicial da internacionalização da denúncia do racismo brasileiro, a noção de que as diásporas teriam de desempenhar um papel secun-
através da voz de Abdias Nascimento, o primeiro negro brasileiro a dário, colocando as Américas, o Caribe e o Pacífico no mesmo ní-
participar do Movimento Pan-Africanista. vel de urgência estratégica dos povos do continente africano. Abdias
O momento do exílio é marcado de escritos políticos, de Nascimento contribuiu para a reintrodução do mundo simbólico na
produção acadêmica, “dos embates políticos em torno da produção política pan-africana, ou seja, ele traz ao movimento do século XX a
do conhecimento histórico, da negação da ideologia da democracia ideia de que um futuro político libertário também deve ser construí-
racial[*] reinante no Brasil e exportada para o resto mundo” (SILVIA, do artisticamente, mostrando, assim, paixão pela denúncia das opres-
2016, p.86-87). O intelectual, através do movimento pan-africanista, sões sem desconsiderar as múltiplas diferenças.
estabeleceu novas relações com os movimentos antirracistas dos Esta- Durante sua trajetória internacional, Abdias Nascimento tri-
dos Unidos e do continente Africano. lhou dois horizontes que se complementaram:
Esse exílio estabelece-se, então, como um longo e intenso inter-
o caminho do ativismo pan-africano, importante tan-
câmbio da luta antirracista através do qual Abdias Nascimento avança no to para o intelectual confirmar suas bases ideológicas,
desenvolvimento de seu pensamento. No exílio, depara-se com o Movi- como para o próprio movimento pan-africano, uma
mento Pan-africanista fortemente dividido em três grupos ideológicos: vez que contribuiu para uma nova perspectiva ideo-
lógica do movimento que aglutinou continente e
pró-comunistas, pró-capitalistas e “nacionalistas”. Opta, então, pela ver- diáspora africana, no que poderíamos denominar de
tente nacionalista cujas lideranças eram Patrice Lumumba, Aimé Césaire, pan-africanismo mundial e o caminho da sua carreira
Cheikh Anta Diop, Malcolm X, Steve Biko, entre outros. acadêmica (SILVIA, 2016, p. 92).

[*] Uma distorção do padrão das relações raciais no Brasil, construído ideologicamen- Foi através do desenvolvimento e da reflexão da prática pan-
te por uma elite considerada branca, intencional ou involuntariamente, para maquiar -africana que se configurou sua militância política e intelectual no
a opressiva realidade de desigualdade entre negros (as) e brancos (as). Ver: COSTA, âmbito internacional, concentrando-se em torno da continuidade da
Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Ciência
Humanas, 1979. crítica à ideologia da democracia racial brasileira. Por essas e outras, a

34 35
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

notícia do idealizador do Teatro Experimental Negro (TEN) no II Fes- que o trabalho de A. N. seja reconhecido no plená-
tival Mundial das Artes e da Cultura Negra (FESTAC 77) causou insa- rio, isto com base no regulamento. Caso este o per-
mita, solicitará ao comandante Fingesi fazer pressão
tisfação ao governo militar e aos representantes brasileiros do Festival. sobre a comissão do Colóquio, a fim de manter a re-
O governo militar, com intuito de camuflar a conjuntura viven- jeição do estudo de A. N. Que instruiu os delegados
ciada pela população negra e, consequentemente, a promover a manuten- brasileiros no Colóquio para cassar a palavra de A.
N., caso ele tente falar nos debates. Caso o regula-
ção da ideologia da democracia racial diante do mundo, interveio junto à mento assegure a A. N. o direito de “intervenção ver-
UNESCO e à direção do Festival, pedindo a anulação da participação de bal”, os delegados deverão, individualmente, dar-lhe
Abdias Nascimento. O intelectual teve, então, sua participação anulada resposta à altura (NASCIMENTO, 1981, p. 33).
sob alegação de que seu trabalho não era de natureza acadêmica.
Abdias Nascimento escreveu as seguintes palavras sobre esse Esses telegramas, além de revelar o lado oculto do racismo siste-
contexto que envolvia o Festival: mático e institucional praticado no Brasil, demonstram a preocupação do
governo brasileiro ditatorial em manter a impressão de democracia racial.
Naquele contexto de dúvidas, pressões, manipulações Também, cabe ressaltar o surgimento do fundamento crítico do “racismo
políticas, e atos de força de países participantes contra vá- institucional”. Pela primeira vez foi denunciado o racismo desenvolvido
rios dos prospectivos convidados ao Colóquio, ficou se-
lada a minha sorte. Vetado como delegado oficial, só me pelas instituições brasileiras, com grande repercussão internacional.
restava a alternativa de participação como observador. A ideia e o conceito de uma nova “modalidade” de racismo
Não tinha o direito a voto e nem apresentar propostas, estão presentes na obra Sitiado em Lagos (1978). Posteriormente, na
mas poderia intervir nas discussões. Tomei esse caminho
e tirei dele todo o proveito possível, face das circunstân- década de 1980, o Movimento Negro Unificado (MNU) desenvolve
cias que me rodeavam (NASCIMENTO, 1981, p. 26). a ideia e o conceito, substanciados pelos estudos de Carlos Hasenbalg
(2005), que resultam na publicação do livro “Discriminação e desigual-
Perdeu a sua condição de delegado oficial com direito a dades raciais no Brasil” (1979), como base para reivindicar as políticas
voto, restando-o apenas a participação na condição de observador, do públicas para população e a criminalização do racismo.
Colóquio Internacional (Festival). Na concepção do intelectual, o go- Além disso, no decorrer de suas atividades pan-africanas, Ab-
verno militar, provavelmente, valera-se das relações e dos interesses eco- dias Nascimento faz duras críticas à ideologia do luso-tropicalismo. Na
nômicos entre o Brasil e a Nigéria como instrumento de pressão para sua visão, tal ideologia teve como função levar a elite intelectual a crer
silenciar Abdias Nascimento no FESTAC 77. que os portugueses tiveram o mérito de colonizar o Brasil e parte do
Todavia, a ditadura brasileira não conseguira silenciá-lo, continente africano, expondo ao mundo um novo modelo de sociedade
pois, não só lhe foi garantido o direito a voz durante o Festival, como baseada na superioridade portuguesa e na concepção de uma civilização
também apoio implícito dos participantes para uma investigação sobre avançada, fundada na mestiçagem. Segundo Abdias Nascimento:
as condições da população negra no Brasil, para saber se havia ou não
racismo contra a população negra no país. Freyre cunha eufemismos raciais tendo em vista racio-
nalizar as relações de raça no nosso país, como exempli-
Como a estratégia de silenciar Abdias Nascimento fora frus- fica sua ênfase e insistência no termo modernidade; não
trada, o Itamarati desenvolve um monitoramento através do uso privile- se trata de ingênuo jogo de palavras, mas de proposta,
giado de todas as informações referentes aos seus passos no FESTAC 77. visando uma [...] perigosa mística racista, cujo objetivo
é o desaparecimento inapelável do descendente africa-
Vejamos o teor de alguns fragmentos de telegramas trocados entre mem- no, tanto fisicamente, quanto espiritualmente, através
bros da comissão brasileira que participavam do Festival e o Itamarati: do malicioso processo do embranquecer a pele negra
e a cultura do negro. (NASCIMENTO, 2002, p. 81).
[...] fará “intervenção discreta” junto ao comandante
Fingesi, presidente do Festac, no sentido de impedir

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

Um dos pontos centrais da análise de Abdias Nascimento acerca campanhas eleitorais tinham apelo antirracista e de busca por igualdade
da formação social do Brasil diz respeito à ideologia do branqueamento. racial. Como deputado federal, defendeu a plataforma política de comba-
Em sua visão, a elite intelectual dominante, ao eleger o “mulato(a)” como te ao racismo e a luta pelos direitos civis e humanos da população negra.
símbolo de brasilidade e pilar da democracia racial, estabelece o primeiro Durante toda a sua carreira parlamentar, Abdias Nascimento
degrau na escala do branqueamento sistemático do povo brasileiro. denunciou a ausência da população negra nos altos escalões do poder
Abdias Nascimento coloca-se contra o cânone tradicional, que civil, militar, cultural e eclesiástico e nos poderes Legislativo, Execu-
se baseava nos pressupostos freyrianos. Através de seus discursos nos con- tivo e Judiciário. Em outras palavras, nas instituições do Estado em
gressos pan-africanos e de seus escritos, contribui de forma direta no pla- geral, nunca ou raramente a população negra ocupava cargo de co-
no teórico e político para elaboração de uma interpretação do Brasil a mando, direção ou primeiro escalão.
partir da perspectiva da experiência negro-africana no país, propiciando Através de seus mandatos parlamentares, tratou de temas rela-
uma leitura que ressalta as especificidades das relações raciais brasileiras. cionados aos direitos humanos. Abordou, no plenário, as condições de
Para além, desenvolveu crítica ao pensamento social brasilei- vida da população negra na sociedade brasileira, sempre utilizando o mé-
ro com o objetivo de se opor à ideologia oficial da democracia racial todo da contradição histórica, principalmente, com o intuito de questio-
patrocinada e propagada pelo governo militar. Como contraponto, nar e denunciar a situação desta população naquele momento histórico:
buscou caracterizar o Brasil como o segundo maior país em população
As desigualdades raciais no setor educacional foram ade-
negra do mundo, chamando atenção para a dominação da população quadamente percebidas pelo Relator Especial da ONU:
majoritária de origem africana por uma elite branca minoritária, que “A discriminação vivenciada pelos afro-brasileiros na
praticava uma forma de racismo caracterizado pela não formalidade, educação é parte do círculo vicioso de pobreza em que a
maioria deles está envolvida e que assume a seguinte for-
um racismo do tipo informal e institucional. ma: pobreza material– baixo nível educacional, fracasso
escolar, falta de treinamento, desemprego ou trabalho
Terceiro momento: o quilombismo na vida parlamentar não especializado, baixos salários (...); o sistema brasileiro
de Abdias Nascimento (1983/1999) de educação não leva em conta a presença, a história e a
cultura dos afro-brasileiros e tende a lhes passar um sen-
tido de inferioridade. Atribui-se isso, em parte, ao fato
O terceiro momento abdisiano tem início com a volta de Ab- de os materiais didáticos não retratarem os afro-brasilei-
dias Nascimento ao Brasil, quando assume o cargo de Deputado Fede- ros de maneira favorável: estes são apenas mencionados
como escravos, serviçais ou trabalhadores braçais. Em
ral, em 1983, e termina em 1999, com o fim do mandato de Senador. É resultado, as crianças negras não conseguem identificar-
um momento marcado por empoderamento, pela institucionalização -se com a educação que recebem e não têm satisfação em
de uma nova perspectiva epistemológica, que foi sendo construída no frequentar a escola [...] (NASCIMENTO, 1998, p. 72).
decorrer dos momentos anteriores, e que passa ser a base, o fundamento
da agência da população negra. As conquistas jurídicas e o empodera- Fez duras críticas ao modelo tradicional de educação, ao ensino
mento político da população negra tornaram possível o desenvolvi- e à produção do conhecimento histórico. Apresentou o sistema educa-
mento da luta antirracista por dentro das instituições do Estado. cional como elemento importante para reforçar os estereótipos legados
Abdias Nascimento foi figura importante para esse processo. pela cultura escravocrata, presente em tempos contemporâneos de nossa
Contribuiu como referência, sendo o primeiro deputado (1983-1986) e sociedade. Além disso, apontou a educação como um instrumento im-
o primeiro senador (1997-1999) a dedicar o seu mandato a questões re- portante para travar o desenvolvimento material e psicológico da popu-
lacionadas à população negra brasileira. Além disso, foi deputado e sena- lação negra brasileira. Na sua visão, a educação foi fundamental para a
dor pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) do Rio de Janeiro. Suas engenharia de demarcação, convencimento e naturalização do posiciona-
mento dos indivíduos e dos grupos sociais a partir do fator racial.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

Na visão de Florestan Fernandes, seria inevitável uma espécie dução de conhecimento, cobrou mudanças no currículo escolar em prol
de suplementação da condição humana e da posição social da popula- de uma educação pluricultural e plurirracial como arma contra o racismo,
ção negra. Dentro dessa perspectiva, escreve: substanciada pela cultura histórica de resistência negro-africana.
Através de Projeto de Lei, Abdias Nascimento lançou a proposta
A oferta de ensino público não é suficiente para integrar
e reter extratos da população negra nas escolas. O Poder de inscrição dos líderes da Conjuração Baiana (1798) no Livro dos Heróis:
público corrigirá esta contradição oferecendo às crianças,
jovens e adultos negros oportunidades escolares persisten- Em memória aos duzentos anos da Conjuração Baiana
tes e em constante aumento através de bolsas escolares, de 1798, serão inscritos no “Livro dos Heróis da Pátria”,
destinadas à manutenção pessoal dos estudantes enquanto que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democra-
durar sua escolarização (FERNANDES, 2007, p. 192). cia, os nomes de seus líderes: João de Deus Nascimento,
Manuel Faustino dos Santos Lira, Luís Gonzaga das Vir-
gens e Lucas Dantas Torres (PL 234, Art. 1º, 1997).
A ideia do autor se alinhava à perspectiva política e epistemológica
construída pelos movimentos socioculturais negros no decorrer do século O autor apresenta a Conjuração Baiana como um dos mais im-
XX. Tal perspectiva caracterizou-se por reivindicar a cidadania brasileira portantes movimentos sociais de contestação do Brasil Colônia contra a
sem abrir mão da herança africana e por reconhecer e cobrar do Estado a metrópole portuguesa e que, como tal, historicamente não recebeu aten-
responsabilidade dos prejuízos provenientes da negação da humanidade da ção que merecia da historiografia brasileira. Na sua visão, a conjuração
população negra no decorrer do processo histórico brasileiro. representou um movimento popular que lutou pela emancipação da po-
Essa perspectiva política e epistemológica foi baseada no reco- pulação escravizada e pela instalação de um governo competente que não
nhecimento da situação histórica da população negra, que precisava ser fizesse distinção de raça entre os cidadãos brasileiros. Segundo o autor:
compreendida a partir de uma educação antirracista voltada para uma
sociedade multicultural e pluriétnica, como pressuposto para construção A intenção da presente iniciativa, portanto, reside, sobre-
tudo, no resgate desses humildes heróis brasileiros, que,
de um país justo e democrático. Embasado, nessa perspectiva, Abdias tanto quanto Tiradentes, simbolizam o espírito republica-
Nascimento e Eliza Larkin Nascimento, expressam-se da seguinte forma: no. Mais que isso, materializam a luta contra o preconceito
racial e o lançamento das bases de uma sociedade demo-
Nós do Ipeafro temos trabalhado para modificar os currí- crática. Uma das suas proclamações, divulgada em plena
culos escolares que reforçam os estereótipos antiafricanos revolução, declarava: “Quer o povo que todos os membros
e solapam a autoestima de nossos filhos. Organizações afri- militares de linha, milícia e ordenanças, homens brancos,
canas de outras partes do mundo têm muito a contribuir a pardos e pretos concorram para a liberdade popular”. A
esse respeito. Até que os africanos no Brasil compreendam inscrição dos líderes da Conjuração Baiana no “Livro
que são parte de uma comunidade africana mais ampla dos Heróis da Pátria”, permanentemente depositado no
que compartilha muitas das mesmas preocupações, não Panteão da Liberdade e da Democracia, promove o justo
seremos capazes de construir a projeção política de que resgate, para a cena brasileira, de um importante episódio
precisa nosso povo para superar o genocídio e a escravidão da história nacional, no momento em que ele completa
(NASCIMENTO & NASCIMENTO, 1997, p.182). duzentos anos (NASCIMENTO, 1998, p.70).

Quando os autores falam de modificação de currículo, tal ati- Através do referido projeto, Abdias Nascimento apresenta-nos a
tude pode ser entendida como empoderamento político da população intenção de reavivar e oficializar uma parte do passado que, de certa forma,
negra. A discussão sobre currículo representa disputa por espaço na pro- não mereceu a atenção da historiografia, na perspectiva de uma nova pro-
dução do conhecimento, que reflete diretamente no desenvolvimento do posta para produção de conhecimento e de ensino de História no Brasil.
ensino e da educação do país. Foi o momento histórico em que a popula- Além disso, o autor também propôs o Projeto de Lei nº 75
ção negra, no âmbito institucional de disputa por espaço político na pro- (1997) que pensou um plano de ações compensatórias com base no

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

princípio da isonomia social, que se fundamentou na ideia de compen- te, através da revista Thoth, escriba dos deuses: pensamento dos povos
sação histórica diante da manutenção e atualização das diferenças so- Africanos e Afrodescendentes (1997-1998).
ciais pautadas no fator racial e foi pensado para atingir três dimensões Por intermédio da revista, Abdias Nascimento, fazendo uso de
de combate ao racismo no Brasil, quais sejam: as oportunidades e a re- suas atribuições parlamentares, não só confirmou como também ajudou a
muneração do trabalho, a educação e o tratamento policial: institucionalizar a perspectiva que se baseou na experiência histórica negro-
-africano através de uma abordagem epistemológica, que fundamentou a
1-Art. 1º Todos os órgãos da administração pública di-
reta e indireta, as empresas públicas e as sociedades de crítica à produção do conhecimento e do ensino de história no Brasil.
economia mista são obrigados a manter, nos seus res- De maneira geral, ao analisar a discussão que se baseia no fator
pectivos quadros de servidores, 20% (vinte por cento) histórico, fundamentado no princípio jurídico contido e proporciona-
de homens negros e 20% (vinte por cento) de mulheres
negras, em todos os postos de trabalho e de direção. do pelos seus discursos, projetos de leis e de outras atividades que desen-
2-Art. 6º Serão destinadas a estudantes negros 40% volveu na função de parlamentar no Congresso Nacional, podemos en-
(quarenta por cento) das bolsas de estudo concedidas contrar o germe, o princípio do que se convencionou a chamar de ações
em todos os níveis de ensino. 3-Art. 8º As forças po- afirmativas. Dentro da perspectiva de ações afirmativas, que é mantida
liciais estão obrigadas a incluir nos currículos de seus
cursos e em seus programas de treinamento conteúdos por uma ideia de compensação histórica e fundamentada no princípio
de orientação que visem a impedir qualquer compor- da isonomia social, o ensino de história assume um papel importante na
tamento de discriminação étnica. Art. 7º O Ministério formação da consciência histórica da população negra.
da Educação implementará medidas propostas por
grupo de trabalho constituído para estudar modifica-
ções nos currículos escolares de todos os níveis de ensi- Considerações Finais
no [...] (NASCIMENTO, 2008, p. 31-33).
Ao analisar os momentos abdisianos (1944-1999), podemos per-
O autor organizou projetos que tinham como objetivo o com- ceber como a trajetória do ativismo antirracista de Abdias Nascimento,
bate ao racismo a partir da perspectiva da educação antirracista, que ti- dentro do movimento sociocultural negro no século XX, contribuiu para
nham como parâmetro o conhecimento e o ensino de história baseado estruturar a crítica às formas precárias nas quais se deu a “integração” da po-
em longa, média e curta duração, ou seja, fundamentado na experiência pulação negra na sociedade brasileira, além da busca pelo desenvolvimento
do antes, durante e do pós período da escravização negro-africana. de uma perspectiva pedagógica que visava criar condições psicológicas e
Dentro da perspectiva de embate político em torno da cons- materiais para que a população negra pudesse lutar por sua cidadania.
trução de outro parâmetro histórico, em contrapartida ao parâmetro Ajuda, ainda, a compreender o embate político em torno da
eurocêntrico, que alicerçou o ensino de história no Brasil, Abdias Nas- questão racial que possibilitou a denúncia internacional do racismo bra-
cimento, através de Projeto de Lei nº 1.550 (1983), propôs a data 20 de sileiro e o fundamento crítico do “racismo institucional” ao caracterizar e
novembro como feriado nacional que, no futuro, viria a ser instituído denunciar o racismo desenvolvido pelas instituições brasileiras. A disputa
como o Dia da Consciência Negra, símbolo da cultura histórica de re- de narrativas no campo epistemológico em defesa de uma história que
sistência negro-africana, com papel fundamental para a consciência de levasse em consideração a experiência negro-africana, traz à baila a forma
organização política da população negra nos últimos séculos no Brasil. como a população negra atribuiu uma função prática ao conhecimento
Essa interpretação sociohistórica do Brasil não só foi apresen- histórico para legitimar o discurso que caracterizou à ideologia da demo-
tada em sua produção intelectual, de maneira subjetiva, mas também de cracia racial como subterfúgio do racismo na sociedade brasileira.
maneira prática, ou seja, ela substanciou e gerou práxis social, que pôde Possibilita o entendimento do processo de empoderamento
ser comprovada na análise dos seus discursos e dos projetos de leis de- político da população negra, que teve como ponto alto das conquistas
senvolvidos durante sua carreira parlamentar, expressa, principalmen-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA HISTÓRICA E PROTAGONISMO NEGRO

jurídicas, a formulação de uma legislação antirracista, principalmente DOMINGUES, Petrônio. A cor na ribalta. Cienc. Cult., ano 19, v.
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FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. São
E permite, por fim, mapear o percurso das lutas políticas e ju-
Paulo: Global, 2007.
rídicas da população negra, visando fazer valer essa legislação antirra-
cista, não só de fora, mas no cerne das instituições do Estado, ajudando FLORES, Elio Chaves. Dos feitos e dos ditos: história e cultura histó-
a concretizar e oficializar uma perspectiva epistemológica que se estru- rica. Saeculum - Revista de História, João Pessoa, UFPB/DH/PPGH,
turou com base na experiência histórica negro-aficana no século XX. n. 16, p. 83-102, jan/julho 2007.
Dessa forma, esse passeio panorâmico pelos momentos abdi- HASENBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Bra-
sianos é apenas um ponta pé inicial, um esforço intelectual na tentativa sil. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Universitária/UFMG, 2005.
de apresentar Abdias Nascimento, para além de sua biografia como um
interprete do Brasil, que desenvolveu uma interpretação do país a par- MAIO, Marcos Chor. Cor, intelectuais e nação na sociologia de Guerreiro
tir da perspectiva negra, possibilitando a materialização da consciência Ramos. Cad. EBAPE. BR, Rio de Janeiro, v. 13, Edição Especial, set. 2015.
histórica dessa população e sempre buscando proporcionar uma nova MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Editora Pers-
opção epistemológica para produção do conhecimento, visando corri- pectiva, 1995.
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de, cultura histórica e ensino de história na trajetória de Abdias Nasci- negrinha, negrinha. Quando eu
mento (1944-1999). 2016. 181 f. Dissetação (Mestrado em História) estava em casa, eu nunca tinha
– Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2016. ouvido. Então eu levei um susto.
(Virgínia Leone Bicudo)

A reflexão contida na epígrafe acima foi retirada de uma


entrevista que Virgínia Leone Bicudo concedeu à psicanalista Anna
Mautner para a Folha de S. Paulo em 1983. É evidente o susto e a
indignação de uma criança diante de uma opressão. A este respeito,
a filósofa Angela Davis escreveu que: “[...] há entre crianças um es-
pírito que se recusa a ser subjugado” (DAVIS, 2017, p. 96). Virgínia
Bicudo, ao ingressar na Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP)
como única mulher e negra da turma, faz o movimento sankofa:
vivenciando circunstâncias racistas ao longo da vida, sua mente é
movida pela pulsão palmarina (NOBLES, 2009) – o desejo de ser

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O OLHAR VISIONÁRIO DE VIRGÍNIA BICUDO

africano, livre, de ser valorizado – então, escreve sua dissertação de Em 1945, Virgínia Bicudo apresentou sua dissertação de mestra-
mestrado recuperando o passado, os retalhos do seu ser diaspórico do intitulada Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo,
e ressignifica um presente mais glorioso, dando um passo ao futuro sob a orientação do sociólogo Donald Pierson. Essa foi a primeira disser-
na reconstrução emocional do negro. tação de mestrado sobre relações raciais no Brasil, inaugurando o debate
Depois de muito caminhar entre passos que a discriminavam, sobre racismo na academia, e debate sobre o racismo em um país tropical
Virgínia Bicudo repousou em sua sensibilidade e escutou o mundo que venta o mito da democracia racial. O sociólogo Gilberto Freyre, em
criando fronteiras em que quinhões de subalternidade eram mirados Casa Grande & Senzala, foi um dos que colaborou com a disseminação
em seres que são considerados “inferiores”. Assim fez Freud tardiamen- do mito da democracia racial e defendeu que a miscigenação é: “Híbrida
te, segundo Peter Gay (1989), quando foi interrompido pela paciente desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se cons-
Emmy von N., quando esta, a partir de sua posição subalterna diante do tituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um
profissional da psiquiatria, solicitou que ele parasse com os questiona- ambiente de quase reciprocidade cultural” (FREYRE, 2004, p. 160). O
mentos e escutasse uma paciente com sintomas, pois somente ela, que problema é que o autor se agarra ao fator biológico da miscigenação sem
vivia aquela experiência, poderia iluminar o caminho da cura. A par- considerar sua dimensão política e ideológica.
tir daí, Freud entende que seu lugar é o da escuta. Esse episódio ilustra O sociólogo Clóvis Moura, em Sociologia do Negro Brasileiro
bem o que a filósofa Djamila Ribeiro compreende como lugar de fala (1988), enfatiza que a miscigenação é um fato biológico e a democrati-
e o quanto este conceito possibilitou a Virgínia Bicudo a escuta dessas zação é um fato sociopolítico, portanto, é necessário considerar os me-
vozes marginalizadas. Segundo a autora, o lugar de fala consiste em: canismos ideológicos de barragem aos negros no sistema escravocrata
“[...] refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes e no sistema capitalista. Assim, aqueles que defendem a democracia ra-
consequentes da hierarquia social” (RIBEIRO, 2019, p. 64). cial identificam como semelhantes esses fatos, mas são independentes.
Os passos que o ocidente (compreendendo a força da cons- Moura (1988) ao se debruçar nos mecanismos ideológicos que se es-
ciência coletiva produzida pelo poder da linguística – neste artigo opto truturam para barrar a ascensão social da população negra observa que
pela força da consciência descolonizada, portanto, a ausência da letra a literatura sobre as relações interétnicas: “[...] na maioria dos estudos
maiúscula neste substantivo próprio não reconhece o poder simbólico sobre o assunto esses mecanismos não são avaliados” (MOURA, 1988,
da arma cultural dominante) tem dado em nossa direção para a zoo- p. 62). Por exemplo, o autor traz que a classe operária expeliu seu ra-
morfização de nossos corpos negros exige de nós atenção ao racismo es- cismo na imprensa anarquista estampando artigos que não almejavam
trutural que não provoca imediatamente uma reflexão crítica em negros lutar com negros e por negros, ou seja, o negro saiu da senzala e não
e brancos; ao contrário, como observa o filósofo Silvio Almeida, o ra- pisou o chão das fábricas com os imigrantes (MOURA, 1988). Dessa
cismo estrutural é uma razão que constitui subjetividades coloniais para forma, a filósofa Simone Beauvoir desmistifica o mito da democracia
normalizar a desigualdade racial nas relações políticas, econômicas, racial ao visitar o Brasil: “[...] nas favelas, os brancos pobres se sentem
jurídicas e familiares (ALMEIDA, 2018). Veremos na dissertação de superiores aos negros” (BEAUVOIR, 2009, n.p).
mestrado de Virgínia Bicudo os negros envoltos mentalmente no escar- Nosso objetivo é valorizar e viabilizar a contribuição da Virgínia
ro introjetado pelos brancos, roubando suas identidades e seu futuro. Bicudo, o que nos leva a compreender os valores de dominação introje-
O desafio que nos é colocado, portanto, é o de construir coletivamente tados no povo negro, além dos muros ideológicos de discriminação que
nossa consciência para que acendamos o sol do nosso povo, primeira impedem a sua consciência étnica. Veremos em muitos entrevistados o
e urgentemente, retornando simbólica e/ou fisicamente à África. Sem mito de se sentirem protegidos do racismo da classe dominante e a fuga
esse retorno, explica a antropóloga Marimba Ani, não despertaremos em aproximar-se da brancura. É o que o Clóvis Moura (1988) identifica
do sono que nos é imposto (ANI, 1994). na pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O OLHAR VISIONÁRIO DE VIRGÍNIA BICUDO

que os negros se identificam com inúmeras cores como uma forma de se depoentes 16 ex-militantes da Frente Negra Brasileira
desvencilharem de seus traços negróides: “[...] burro-quando-foge, azul- (FNB), organização política de ampla visibilidade nos
anos 1930 em São Paulo (MAIO, 2010b, p. 320).
-marinho, branca suja, cor de rosa, enxofrada…” (MOURA, 1988, p. 63).
Um entrevistado da Virgínia Bicudo relatou que a empregada doméstica
As análises sobre a militância da Frente Negra Brasileira não
matou a patroa por ela a ter chamado de “negra” (MAIO, 2010b).
trouxeram resultados muito distintos: a “barreira de cor” era respon-
Virgínia Bicudo, depois de apresentar em sua dissertação de
sável pela precária inserção da população negra na sociedade brasileira.
mestrado os negros ajoelhados, recorre ao empoderamento da Frente
Numa tentativa de evitar o confronto com o branco, a FNB adotou ou-
Negra para apontar a revolta organizada da época contra a tranquilidade
tra estratégia para criar uma solidariedade entre os negros e ultrapassar
confortável da branquitude que, com sucesso, culpabilizava o negro por
os obstáculos por meio “da educação, do trabalho, da valorização pro-
sua inferioridade e propagava estar tudo bem entre nós. Como escreveu
fissional e da ação política, os negros seriam reconhecidos pelo grupo
a intelectual Joice Berth, em O que é Empoderamento?, podemos tran-
branco dominante” (MAIO, 2010b, p. 322).
quilamente dizer que a Frente Negra é um exemplo de que Zumbi vive e
O que fica evidente nos estudos da Virgínia Bicudo é a alie-
que continuava em andamento a articulação de: “[...] um entendimento
nação de si, que ocorre por meio de um sentimento de inferioridade
sobre sua condição social e política e, por sua vez, um estado psicológico
e pela falta de uma consciência racial. Desse modo, o presente artigo
perceptivo do que se passa ao seu redor” (BERTH, 2018, p.14).
está subdividido em quatro tópicos: no primeiro momento, é realizada
Tomaremos como mote o método de pesquisa da Virgínia Bicu-
a conscientização pela memória ancestral sobre uma das raízes do geno-
do: o estudo de caso e a entrevista, que denuncia o apartheid sofisticado no
cídio da população negra, ou seja, o pensamento filosófico europeu que
Brasil para atender as demandas do sistema capitalista e o racismo que não
moderniza a escravidão e a guerra que tomba nossos corpos. No segun-
era o centro das discussões. Entrevistas com mais de 30 pessoas, com cida-
do tópico, traçamos brevemente o percurso da vida da Virgínia Bicudo.
dãos negros, com a Frente Negra e publicações do jornal A Voz da Raça. A
No terceiro tópico, apresenta-se o aporte teórico da intelectualidade da
dissertação de mestrado foi dividida em pretos de classe social “inferior” e
Virgínia Bicudo. Por fim, no quarto tópico, queremos dar visibilidade
intermediária, mulatos de classe social “inferior” e intermediária, entrevis-
a um esforço coletivo sobre a pesquisa pioneira da intelectual Virgínia
tados da Frente Negra e publicações do jornal da Frente Negra. No texto,
Bicudo em estudos raciais na psicanálise.
a psicanalista “combina análise sociológica (estrutura de classes, mobilida-
de social, status, valores sociais, preconceito de cor) com psicologia social
Virgínia Leone Bicudo: ocultada por velhas mãos brancas
(atitudes sociais)” (MAIO, 2010b, p. 319). Segundo Marcos Chor Maio
(2010b), as pesquisas sobre atitudes raciais, isto é, os preconceitos e os es-
Nós devemos ser capazes de
tereótipos, eram críticas ao determinismo biológico. O que se procurava
separar o nosso pensamento do
compreender eram quais os motivos psicossociológicos das hostilidades en-
pensamento europeu, de modo
tre grupos sociais. Adotando como metodologia o estudo de caso e entre-
a visualizar um futuro que não
vistas, o autor observa que em sua pesquisa de mestrado, Virginia Bicudo:
seja dominado pela Europa. Isto
Elegeu relatos de pais de alunos de escolas públicas, re- é exigido por uma visão Africano-
sidentes em quatro bairros populares (Bela Vista, San- -centrada porque somos africanos,
tana, Barra Funda e Mooca) e um de classe média (Vila
Mariana). As entrevistas foram realizadas com familia- e porque o futuro para o qual a
res que frequentavam a Clínica de Orientação Infantil, Europa nos leva é genocida
da Seção de Higiene Mental da Secretaria de Saúde do (Marimba Ani)
Estado de São Paulo. Constaram ainda do conjunto de

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Dialogaremos brevemente sobre um dos tentáculos que ori- AmériKKKa (AmeriKKKa com três K refere-se a Klu Klux Klan, organi-
ginaram a rejeição que o povo negro sofre, portanto, antes de conhe- zação da supremacia branca, apresentada pela Assata Shakur, ex membra
cermos Virgínia Bicudo e batermos o tambor sobre os resultados das do Partido Pantera Negra) sendo rotulados como “negros”. Atualmente,
entrevistas que ela fez, é imprescindível que compreendamos uma das o processo da maafa ainda está em movimento e aproxima-nos da morte
fábricas da desumanização do negro que produziu falas como aquela todos os dias. É importante descolonizarmos as palavras e é fundamental
que Virgínia Bicudo apresenta em sua pesquisa: o sistema filosófico da que conheçamos o conceito afrocêntrico maafa para nomear nossa des-
Europa. Assim, é importante esclarecer o utamawazo (termo swahili, graça coletiva. Se somos nós que agonizamos, nós que nomeamos.
idioma bantu falado pela maioria das pessoas no continente africano) Infelizmente, muitos estão morrendo sem saber que são africa-
ocidental que vem moldando o pensamento culturalmente estrutura- nos da diáspora, ou seja, não pensam em reivindicar nossa herança por
do, objeto de estudo da invisível mulher negra que usou como método não conhecerem nossa história, devido ao apagamento sistemático do
de estudo analisar as atitudes sociais, pois “expressam o aspecto subje- nosso saber cultuado na carnificina do processo de colonização. O tan-
tivo da cultura e conduzem ao conhecimento das condições sociais que que de guerra é produzido no mundo inteiro para estraçalhar o corpo
concorreram para sua formação” (MAIO, 2010b, p. 63). do inimigo de outra nacionalidade. Logo, quando vemos esse mesmo
Marimba Ani explica que utamawazo é: “[...] a maneira em tanque caçando corpos negros que persistem em viver e resistir em cam-
que a cognição é determinada por um Asili cultural. É a forma na qual pos de batalha urbanos (periferias e favelas), o Estado colonial saudoso
o pensamento de membros de uma cultura deve ser modelado se o Asili do navio negreiro lembra-nos que não somos brasileiros porque nós
estiver para ser cumprido” (ANI, 1994, n.p). Logo, a base dos tentácu- somos africanos renascidos no Brasil, pois ainda exalamos o cheiro fé-
los do racismo estrutural é o pensamento filosófico europeu. O filósofo tido do porão. Os herdeiros dos navios negreiros sabem disso; nós, que
sul-africano Mogobe Ramose leva-nos a refletir sobre dois pilares do somos negros, ainda não sabemos (NJERI, 2018).
colonialismo que instrumentalizaram o racismo: a filosofia, que susten- E o que não sabem a ponto de nossos irmãos envergonharem-se
tava a ideia de que somente os seres humanos do ocidente eram dotados da sua cor que remete ao povo da África, segundo uma das conclusões da
de razão; e a religião, que providenciou o milagre racial de um Jesus Virgínia Bicudo? Muitos ainda não conhecem a racionalidade dos anti-
branco etíope para todos, você aceitando ou não (RAMOSE, 2011). gos africanos: é pregado a nós que os africanos vegetavam literalmente,
Atentaremo-nos brevemente sobre a filosofia ocidental, especificamen- que não raciocinavam antes da carnificina do processo colonial, portan-
te ao epistemicídio teorizado por Platão e nos apoiaremos nos estudos to, o surgimento do pensamento humano é um milagre grego, um mila-
da antropóloga Marimba Ani para pensarmos Platão. gre concebido à filosofia ocidental e não aos africanos, ou seja, a razão foi
Nós que fomos sequestrados, encarcerados e arrastados para o um dom concedido aos humanos ocidentais. Assim, criou-se o mito fun-
Brasil, sofremos com o processo da maafa (palavra swahili). Maafa foi dador de que os europeus tudo criaram, sendo o modelo para o mundo.
conceituado pela antropóloga Marimba Ani (1994) como o grande ho- O epistemicídio, conforme a filósofa Sueli Carneiro, vai “[...]
locausto africano. Também podemos pensar no significado dado pelo para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos
professor Wade Nobles (2009), que nos diz que os africanos e seus des- subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultu-
cendentes sofrem com o processo da maafa como um grande descarri- ral: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade” (CAR-
lhamento do seu eixo civilizatório, ou seja, os africanos construíam para NEIRO, 2005, p. 97). As raízes do epistemicídio foram formuladas por
o mundo o valor da filosofia que nasce com todos os seres humanos: a es- um grande pensador, segundo a antropóloga Marimba Ani: Platão. Ma-
crita, a matemática, a engenharia, a astronomia, a medicina etc. e, inima- rimba Ani, em seu livro Yurugu, nos diz que Platão, ao criar o impor-
ginavelmente, eles sofreram um acidente, e o trem saiu do trilho, saiu da tante sistema de racionalidade, plantou as raízes do racismo moderno
África, mas continuou o desastre em movimento e muitos acordaram na ao dizer que o ser humano não deve se relacionar com o mundo cósmi-

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co, deve abandonar a caverna para alcançar o mundo inteligível, pois o universidade europeia. A época urgia por trabalhos intelectuais que
conhecimento intuitivo cósmico lhe engana e é menos confiável. Ou justificassem a necessidade de escravizar para produzir riqueza a ho-
seja, Platão é o fim do mundo cósmico para o controle social de pessoas mens brancos, mas não foi alheia ao preconceito, portanto, é injus-
africanas. Ao dizer isso, naturalizou-se o genocídio do povo africano, tificável que Kant diga que: “[...] negros são muito vaidosos, mas à
pois os africanos não descolam o ser cósmico da razão. A partir daí, sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los
o africano não tinha alma, não tinha razão e precisava ser dominado a pauladas” (KANT apud PRAXEDES, 2008, n.p) ou que Max We-
(ANI, 1994). Portanto, Platão foi monorracional. Segundo o filósofo ber nos diga que a aparência dos negros é mais estranha que a dos
queniano Dismas Masolo, há pessoas monorracionais e polirracionais. índios (WEBER apud PRAXEDES, 2008, n.p).
Pessoas monorracionais aceitam apenas um modelo de racionalidade O epistemicídio apagou nossa autoestima e embaçou o nosso
e pessoas polirracionais aceitam mais modelos de racionalidade (MA- olhar, impedindo-nos de avistarmos nossa história, nossa herança. Os
SOLO, 2010). Marimba Ani, em suas palavras, diz que: africanos criaram a yoga, a primeira universidade do mundo (a Univer-
sidade de Sankore que, aliás, ainda existe e tem convênio com a Univer-
Qualquer discussão sobre a natureza e origem da epis-
temologia europeia deve concentrar-se, se não começar, sidade Federal do Rio de Janeiro), a medicina de Imhotep (o verdadeiro
com Platão. Isso não quer dizer que ele não foi influen- pai da medicina), a astronomia do povo Dogon, a religião, o Estado, a
ciado pelas filosofias Africanas pré-socráticas que o pre- engenharia, a arquitetura, a matemática (ora, seria impossível construir
cederam… Platão parece ter feito é ter estabelecido uma
base rigorosamente construída para o repúdio do senti- pirâmides sem engenheiros, arquitetos e matemáticos), a navegação an-
do simbólico – a negação do conhecimento intuitivo tes dos portugueses, enfim, criamos muito mais e não caberia no limite
cósmico. É este processo que nós temos de traçar, este deste artigo. A inferioridade que constataremos na dissertação de mes-
desenvolvimento no pensamento Europeu formativo trado da psicanalista Virgínia Bicudo e a imagem distorcida que o bran-
que iria, eventualmente, a ter um efeito tão devastador
sobre os aspectos não-técnicos da cultura. Ele levou à co tem de si mesmo, o fechando em sua brancura, como nos diz Fanon
materialização do universo como concebido pela men- (2008), é pauta urgente no palácio de nossos ancestrais.
te Europeia – uma materialização que complementou e Se o sucesso imperialista foi conquistado mais pela arma da
apoiou a intensa necessidade psico-cultural por contro-
le de si e dos outros (ANI, 1994, p. 29-30). cultura do que pelo poder militar, como nos diz Marimba Ani (1994),
é fulcral que haja um movimento antirracista como do nosso ancestral
O filósofo Mogobe Ramose nos alerta para o nosso desafio George James, que se dedicou para acender nosso sol com sua obra Sto-
de lutar pela razão, visto que a filosofia ocidental tenha aniquilado o len Legacy (2005), denunciando os filósofos gregos para então anunciar
conhecimento de outros povos por não serem iluminados pela razão a verdadeira história. Desse modo, devemos buscar conhecimento para
(RAMOSE, 1999). O epistemicídio, justificado também por tantos que continuemos a desnudar a face monstruosa dos pensadores que
outros filósofos, não anula a importância destes com outras contri- conceituaram e conceituam filosoficamente o racismo estrutural, para
buições. Contudo, também não nos consolamos com a ideia de que que conquistemos alforrias ideológicas que estremeçam o navio negrei-
a época era favorável para que pensassem assim. Por exemplo, o fi- ro no qual estamos a bordo, por exemplo, com a implementação da Lei
lósofo Anton Wilhelm Amo que, quando criança, foi presenteado 10.639/03. Que tenhamos o ardor da paixão em levantarmos a poeira da
como “escravo” para nobres europeus, numa época em que intelec- terra dos homens pretos (Kemet) que virou lei em 2003. Que desejemos
tuais filosofavam a “feiura” e a irracionalidade dos africanos, escrevia a projeção dos olhos da Carne de Ra (é um termo dos antigos africanos
sobre o preconceito intelectual já em 1703. Anton Amo se tornou em Kemet que significa a melanina da pele) em nós, não tão somente o
um respeitado professor da universidade de Halle an der Saale, na brilho do falso palácio intelectual que não reflete nossos passos pretos.
Alemanha, sendo o primeiro africano subsaariano a circular em uma Sendo assim, como diz Marimba Ani, é urgente começarmos: “[...] um

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doloroso desmame dos próprios pressupostos epistemológicos que nos Melanin: A Key To Freedom, traz um trecho dos estudos dos africanos
estrangulam” para o início da liberdade (ANI, 1994, p. 1-2). na área da psicologia e comenta, logo depois:
O colonialismo, depois de ser constituído pelas veias do euro-
[...] mais de 4.000 anos antes da redescoberta da análise
centrismo intelectual e religioso, pôde então estourar as veias de milha- do inconsciente e dos sonhos pelo psiquiatra e médico,
res de africanos. O sociólogo Aníbal Quijano tece a nós a blindagem Sigmund Freud (estudante e colecionador de psicosimbo-
epistêmica do conhecimento ocidental: lismo Kemético), estes antigos Africanos estavam bastante
familiarizados com o conceito do inconsciente e o proces-
[...] a modernidade e a racionalidade foram imaginadas so psicológico de projeção. Além disso, eles parecem ter
como experiências e produtos exclusivamente euro- sido familiarizados com os conceitos de Visão Interior, o
peus. Desse ponto de vista , as relações intersubjetivas e Olho de Heru (Glândula Pineal), e as relações do sistema
culturais entre a europa, ou, melhor dizendo, a Europa endócrino à visualização de Simbolismo Preto. Estes são
Ocidental, e o restante do mundo, foram codificadas assuntos que foram perdidos e apenas parcialmente recu-
num jogo inteiro de novas categorias: Oriente-Oci- perados pela ciência moderna (KING, 2001, p. 14-15).
dente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico,
irracional-racional, tradicional-moderno. Em suma, Agora, quantos conhecem outro segredo: o segredo da existên-
Europa e não-Europa. Mesmo assim, a única categoria cia da psicanalista Virgínia Bicudo, como bem apontado pela Janaína
com a devida honra de ser reconhecida como o Outro
da Europa ou ‘Ocidente’, foi ‘Oriente’. Não os ‘índios’ Damaceno em sua tese de doutorado? Quantos de nós sabemos que a
da América, tampouco os ‘negros’ da África. Estes eram primeira mulher que fez análise na América Latina, em 1937, deitan-
simplesmente ‘primitivos’. Sob essa codificação das re- do-se no divã de uma mulher alemã judia, a psicanalista Adelheid Koch
lações entre europeu/não europeu, raça é, sem dúvida,
a categoria básica. Essa perspectiva binária, dualista, de que fugiu do nazismo, foi uma mulher negra? Que a primeira pessoa
conhecimento, peculiar ao eurocentrismo, impôs-se a escrever uma dissertação de mestrado sobre relações raciais, no Bra-
como mundialmente hegemônica no mesmo fluxo da sil, foi uma mulher negra? Que a primeira psicanalista não médica, no
expansão do domínio colonial da Europa sobre o mun-
do […] (QUIJANO, 2005, p. 122). Brasil, pavimentou o caminho dos psicanalistas não médicos, foi uma
mulher negra? Que uma das primeiras mestras em sociologia, no Brasil,
Tomamos o remo dos brancos, foi uma mulher negra? Que foi essencial para a implantação da psica-
quem foi Virgínia Leone Bicudo? nálise, no Brasil, foi uma mulher negra? Uma das primeiras professoras
universitárias negras do país? Que inaugurou o debate sobre racismo
A subordinação sexista na vida na academia, foi uma mulher negra? Estamos falando da Virgínia Leo-
intelectual negra continua a obs- ne Bicudo. Fazendo uma analogia à dedicatória do livro do psiquiatra
curecer e desvalorizar a obra das Richard King, agora sim podemos caminhar de cabeça erguida sobre os
intelectuais negras… ombros de mais um ancestral (KING, 2001).
(Bell Hooks) Virgínia Leone Bicudo nasceu em São Paulo, no dia 21 de
novembro de 1910, um dia antes de explodir A Revolta da Chibata, e
Quantas vezes ao longo da nossa existência já não ouvimos faleceu em 2003. Filha de Giovanna Leone, uma imigrante italiana, e
falar do criador da psicanálise: Sigmund Freud? Indubitavelmente, de Theofilo Júlio Bicudo, um jovem negro, e neta de Virgínia Júlio (avó
centenas de vezes. O segredo que se movimentava livremente no pen- paterna), que fora escravizada e posteriormente alforriada na fazenda
samento dos africanos em Kemet antes de sumir no tempo colonial é Matto Dentro do Jaguari, Campinas. Theofilo Júlio tentará entrar no
revelado a nós ao nascer do dia: o de que eles já desenvolviam estudos curso de medicina, mas mesmo tendo uma das melhores notas no giná-
na área da psicologia. O psiquiatra Richard King (2001), em sua obra sio, fora impedido por um professor de ingressar na faculdade que ale-

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gou que pretos não ocupavam esse espaço. Colecionou essa frustração um dos programas de rádio mais ouvido, a Rádio Excelsior, em que pro-
e seguiu, sendo afilhado do fazendeiro de café, Coronel Bento Bicudo, duzia conhecimento para a população que não podia estar em sua clínica
recebeu apoio para o seu ingresso na companhia de Correios e Telégra- e discutia casos via carta. O programa levava o mesmo nome do seu livro
fos, ocupando alto cargo ao tornar-se gerente. “Nosso Mundo Mental”. Também se dedicou ao jornal Folha da Manhã.
Impulsionada pela filosofia do pai que a orientou a estudar para Enriqueceu com a psicanálise, pôde ser uma das primeiras mulheres a di-
escapar da pobreza naturalizada aos que tem a cor preta, Virgínia Bicudo rigir seu carro na década de 1950 e investiu em imóveis (GONÇALVES,
se forma na Escola Normal Caetano de Campos, em 1930, e se forma no 2017). Entretanto, de acordo com Janaína Damaceno (2013), experi-
curso de Educação Sanitária, em 1932, que a permite trabalhar como edu- mentou, no final da sua vida, o que os negros experimentam ao longo da
cadora sanitária na Seção de Higiene Mental e logo depois como visitadora vida, o “esquecimento” da humanidade de seus corpos negros, o enlou-
psiquiátrica e, por fim, ocupa um cargo que não foi pensado aos negros: su- quecimento e é abandonada numa instituição para doentes mentais.
pervisora das visitadoras na Clínica de Orientação Infantil de São Paulo. As Outro momento desloca Virgínia Bicudo do centro à invisi-
crianças que foram acompanhadas por Virgínia Bicudo nessa instituição bilidade. O projeto Unesco-Anhembi, com sua agenda antirracista,
são estigmatizadas por “problemáticas” pelo movimento higienista e euge- propõe que pesquisadores façam leitura sobre o mito da democracia
nista, mas Virgínia Bicudo se distanciou da conotação eugênica. racial. Logo, o olhar da Virgínia Bicudo derrubaria a tese que escamo-
Virgínia Bicudo, ao ingressar em 1936 na ELSP, decide aquilom- teia a ideologia escravocrata. Entretanto, a pesquisa da Virgínia Bicudo
bar-se e escolhe o curso de Sociologia para compreender e enfrentar o racis- foi publicada em 1955 como um “apêndice”; já na segunda edição, em
mo: “[...] se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia 1959, sua pesquisa foi retirada da publicação. Florestan Fernandes, um
para me proteger do preconceito” (BICUDO apud GOMES, 2013, p. 49). dos organizadores do projeto, décadas depois, argumenta que foi um
Cursa mestrado também na ELSP, onde inaugura a primeira turma. Com lapso editorial. Fernandes justifica no prefácio de seu livro juntamente
o término do mestrado, ultrapassa mais uma barragem e passa a lecionar na com Roger Bastide, Brancos e Negros em São Paulo:
ELSP, tornando-se uma das primeiras professoras universitárias negras no
A rigidez revelada pela UNESCO na exigência do
país. Anos mais tarde, desiste de sociologia e decide mergulhar em outras cumprimento de prazos cuja dilatação nós não havía-
fontes. Avista o futuro nos passos de Freud e torna-se psicanalista: “[...] não mos provocado foi a principal causa dessa ocorrência,
é sociologia que eu tenho que estudar, eu tenho que estudar psicanálise e que nos impediu de pôr ao alcance do público inte-
ressado todas as conclusões teóricas a que chegamos
Freud” (BICUDO apud GOMES, 2013, p. 49). (FERNANDES, 1959, p. VIII).
Aquela criança que ouviu “negrinha, negrinha”, depara-se nova-
mente com gritos que a lincham publicamente. Durante o I Congresso La- Ao descobrirmos Virgínia Bicudo, é impossível que não fique-
tino Americano de Saúde Mental, em 1954, Virgínia Bicudo, por ser uma mos indignados com a sua invisibilidade, dada a sua trajetória marcada
psicanalista não médica, assiste atônita os barulhos dos grilhões que ques- por pioneirismos e sensibilidade. Estamos falando de uma intelectual
tionam o lugar que ocupa: ”[...]todos gritando: ‘Absurdo! Psicanalistas não que se antecipou a Fanon, ao denunciar as estruturas sociais e mentais
médicos!’ Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir tecidas pelas mãos brancas do colonizador (bandeira que Fanon carre-
outras pessoas dizendo: você é charlatã! Ah! Você não fica de pé! Você vai gou em Pele Negra, Máscaras Brancas). Janaína Damaceno (2013) diz
pra casa e quer morrer” (BICUDO apud GOMES, 2013, p. 60). Injustiça- que Fanon se dedicou a pensar as atitudes do negro num mundo criado
da pelo ego masculino branco, parte para Londres em 1955 e se nutre com para os de pele branca e as atitudes do negro ao espelho de sua alma ao
os analistas mais importantes da época no Tavistock Institute. revelar sua raça. É impossível não ficarmos maravilhados e perplexos
Consolidada a importância da sua história, retorna em 1959 e por Virgínia Bicudo ser a primeira pesquisadora a levar à academia a
passa a atender a elite paulistana, por exemplo, Eduardo Suplicy. Liderou voz da Frente Negra e o seu jornal e, ainda assim, não ser citada ou lida.

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Uma acadêmica negra que se esbarrava em uma época que cla- Estudo de Atitudes Raciais em São Paulo (1945-1955), Virgínia foi: “[...]
mava por luta de classes e não por luta pela igualdade racial. Uma inte- educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, assistente social psiquiátrica,
lectual negra que era tragada por seu orientador, pela sociedade brasilei- visitadora social, psicologista, socióloga e psicanalista” (GOMES, 2013,
ra e por partidos políticos. Donald Pierson, seu orientador, alegava que p. 52). A inquietação da alma da Virgínia Bicudo buscou saídas para a luz
o negro baiano não sofria preconceitos raciais (MAIO, 2010b). Em ou- do dia. Vamos conhecer um pouco do movimento do seu ib (Ib significa
tro momento, conclui que: “existe preconceito no Brasil, mas é precon- coração. Os africanos do Egito nomeiam o coração por ib e o ib move a
ceito antes de classe que de raça [...]” (PIERSON apud MAIO, 2010b, razão) ao analisar a subjetividade das artimanhas do preconceito que a
p. 40). Podemos imaginar a situação embaraçosa com seu orientador? feriu e fere os sequestrados da África em sua dissertação de mestrado.
Uma época que ainda apontava para o caminho seguido, por
exemplo, pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), que demorou para As contribuições de Virgínia Bicudo:
desconfiar do olhar do negro, como nos diz Sartre: “Estas cabeças que aos efeitos da maafa nas subjetividades negras
nossos pais haviam dobrado pela força até o chão, pensáveis, quando se
reerguessem, que leríeis a adoração em seus olhos?” (SARTRE, 1965, Se é que existe reencarnação, eu
p. 89). Segundo o historiador Augusto C. Buonicore, em O Partido quero voltar sempre preta.
Comunista e o Problema Racial no Brasil, os comunistas, numa carta (Carolina Maria de Jesus)
em resposta à Internacional Comunista que questionava os brasileiros
sobre a questão racial no Brasil, defenderam a ideia de que o racismo Virgínia Bicudo se apoia em vários intelectuais para direcio-
era uma questão “[...] absolutamente estranha ao Brasil, onde jamais se ná-la em sua dissertação, mas vamos conhecer brevemente apenas dois
manifestaram quaisquer preconceitos de raça” (BUONICORE, 2015, deles: Robert Park e Ellsworth Faris, que norteiam o olhar da Virgínia
n.p), enquanto Lênin entoava no I Congresso da Internacional Comu- Bicudo ao negro que se movimenta ora em insignificância introjetada,
nista: “[...] a falsa promessa de igualdade racial, religiosa e sexual das ora batendo nas portas e pedindo para entrar. Como declama a voz
democracias burguesas” (CHADAREVIAN, 2007, p. 83). doce de Mateus Aleluia na música Despreconceituosamente/ Ogum
Tardiamente, os comunistas se atentaram ao óbvio. Essa distân- Pa: “[...] por favor não feche a porta me aceite como eu sou, eu sou filho
cia da realidade por setores progressistas é notada por Lélia Gonzalez: da poeira sinto o pó em minha volta” (ALELUIA, 2009).
O sociólogo Ellsworth Faris configura a atitude em indivi-
[...] a partir do período 1945-1948 em diante que
vamos encontrar a presença de representantes dos se- duais e sociais. As atitudes sociais denunciam o embrião da cultura
tores progressistas brancos junto às entidades negras, que é movido pelas condições sociais da estrutura da sociedade, ou
efetivando um tipo de aliança que se prolongaria, de seja, pela atitude social conheceremos as relações raciais e a forma-
maneira mais ou menos constante, aos dias atuais
(GONZALEZ, 1982, p. 24). ção estrutural da sociedade (FARIS apud MAIO, 2010b). Faris com-
preende que as atitudes são respostas às realidades vivenciadas pelas
Ou seja, esse temporal de consciência alienada é vivenciado subjetividades (FARIS apud MAIO, 2010b), ou seja, as atitudes dos
por Virgínia Bicudo. Dessa maneira, diante dos enfrentamentos colo- entrevistados levam Virgínia Bicudo ao seu objeto de estudo.
cados a Virgínia Bicudo, nosso espanto quanto à sua invisibilidade, a O sociólogo Robert Park concebe as atitudes sociais expressando
demora em honrá-la deixa-nos em silêncio, sem reação aparente. vivências problemáticas, ou seja, nota-se a disputa por espaço, a acomoda-
A vida profissional de Virgínia Bicudo foi marcada por horizon- ção, a união etc. As atitudes desse contato social são movidas por motiva-
tes que a afastaram da condição social destinada ao negro. Segundo Janaí- ções religiosas, econômicas, ações discriminatórias etc., e considera que a
na Damaceno Gomes, em sua tese de doutorado Os Segredos de Virgínia: marginalidade das pessoas é incorporada pelos tentáculos da cultura que

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os levam a uma mudança social. Park analisa que, quando as atitudes são gem e infantil, que deveria alimentar o Asili (ANI, 1994) da Europa em
mudadas, a estrutura social se transforma (PARK apud MAIO, 2010b). matar, roubar e destruir. Moore nos diz muito bem que: “Dê a um ca-
A voz embranquecida dos brancos não é escutada por Bicudo, chorro um nome ruim e você não precisará matá-lo, basta gritar cachor-
mas, diante das falas dos negros, ela analisa as atitudes dos brancos ro louco!” (MOORE, 1992, p. 33). Essa fala do Moore expressa muitís-
presos em sua superioridade e os negros presos em sua inferioridade, simo bem como o aparato policial do Estado brasileiro age, a sociedade
como nos aponta Fanon (2008). Virgínia Bicudo nos atentará para as grita “cachorro louco” e autoriza a polícia a nos caçar e nos matar.
dores negras em um mundo que se atenta às dores brancas, e nos faz Na análise da Virgínia Bicudo (MAIO, 2010b), os sete casos
questionar o não lugar do negro pós-abolição que, não podendo se de pretos da classe social inferior evidenciam a disputa entre os pretos,
desfazer da sua cor de pele, amputa sua existência no solo sangrento o desprezo por aqueles que ascenderam socialmente, o antagonismo
da brancura (VEIGA, 2019). Vamos escutar! pelos pretos serem contra outros pretos etc. Virgínia Bicudo afirma que
há pretos que se sentem menos ofendidos quando são destratados por
Entrevistas realizadas com pretos da classe social “inferior” brancos do que por pretos e argumenta que isso é resultado do seu sen-
timento de inferioridade. Ela conclui a hipótese que:
Virgínia Bicudo entrevistou sete pretos da classe social “inferior”.
[…] as atitudes do preto da classe social inferior para o pre-
Atentaremo-nos em um caso: “O branco faz pouco caso do preto, por cau- to e para o branco estariam baseadas em sentimento de in-
sa da cor. Quando me mudei do interior para São Paulo [há 10 anos], sofri ferioridade, o qual determinaria sentimento de antagonis-
muito, porque na rua me xingavam de negra” (MAIO, 2010b, p. 71). mo contra o preto e de simpatia para o branco. A atitude
de antagonismo do negro resultaria em falta de solidarie-
Acordamos na AmériKKKa sendo rotulados por “negros”. Hoje, dade entre pretos (BICUDO apud MAIO, 2010b, p. 72).
o termo “negro” foi ressignificado no Brasil, mas, no passado, o rótulo
“negro” foi designado aos nossos ancestrais para imobilizá-los, moldar Quando lemos Virgínia Bicudo avistamos à nossa frente Fa-
uma nova consciência, ou seja, fazê-los esquecer o passado glorioso e ge- non, que diz: “O negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante
rar o que somos hoje sem consciência africana; ainda damos passos nessa e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o
direção. Yosef A.A. ben Jochannan (1971), em seu livro Africa: Mother of branco e com outro negro” (FANON, 2008, p. 33).
Western Civilization, obra extraordinária em amor à justiça, nos diz que,
quando recebemos a nomenclatura “negro”, no sistema escravocrata, rou- Entrevistas realizadas com pretos das classes sociais intermediárias
baram nosso passado, nossa história, “[...] um negro por nenhum outro
nome não tem nenhuma história antes do português lhe dar este nome Foram entrevistadas seis pessoas por Virgínia Bicudo. Atenta-
durante sua escravização” (JOCHANNAN, 1971, p. 4). remo-nos em um caso:
Outro intelectual que nos ajuda a limpar o caminho e refletir-
mos no caso da entrevistada que é “xingada” por ser “negra” é Richard [...] comecei a providenciar ingresso numa escola livre
de odontologia, noutra cidade… Procurei estudar para
B. Moore. Moore era organizador comunista, partícipe da organização me pôr por cima, porque eu sentia que queriam me in-
secreta Irmandade de Sangue Africano, com cerca de três mil membros feriorizar e meu esforço era para não me sentir inferior...
negros, para fortalecer o orgulho, o autocuidado e a autodeterminação. Certa vez um enfermeiro, durante todo o seu tratamen-
to, manifestava desconfiança em minha especialidade
Considerado um dos grandes oradores, foi porta-voz dos nove jovens profissional, percebia pelas perguntas que fazia sobre o
conhecidos como os “Scottsboro Boys”. A partir do processo de escra- tratamento (MAIO, 2010b, p. 86-87).
vização, o rótulo “negro” foi carregado de significados para animalizar
o africano e estava associado a uma mercadoria de cor preta, feia, selva- Quando ouvimos o entrevistado dizer que o enfermeiro des-
confiava de sua especialidade por ser negro, constatamos o pensar oci-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O OLHAR VISIONÁRIO DE VIRGÍNIA BICUDO

dental cristalizando-se por incontáveis gerações. A brutalidade do colo- Nesse caso, Virgínia Bicudo analisa que:
nialismo, apoiado por uma pujante literatura que decepava a mente e o
Esbatidos os traços físicos da raça dominada, ao mesmo
corpo do negro, ainda resulta e resultará na estereotipização de homens tempo em que apresenta traços negróides, o híbrido te-
negros e mulheres negras. O enfermeiro que desconfia da racionalidade ria o conflito mental exacerbado. Por um lado, é mais
do entrevistado nos lembra de voltar ao passado para a atualidade de Jo- intenso o processo de identificação com o branco, ten-
do mais oportunidades para se aproximar do branco do
seph Gobineau, que diz: “Deixe-nos traduzir para eles (para os negros), que o preto (BICUDO apud MAIO, 2010b, p. 109).
versos da Odisseia, especialmente o encontro de Ulisses e Nausicaa, o
exemplo mais sublime de inspiração pensativa, e ele vai cair no sono” Entrevistas realizadas com mulatos das classes intermediárias
(GOBINEUAU apud DIOP, 1974, n.p).
Nesse caso, Virgínia Bicudo analisa que ainda que o negro as- Foram entrevistadas 10 pessoas. Atentaremo-nos em um caso:
cenda socialmente, isso não lhe confere igualdade ao branco, ou seja,
não se anula o preconceito de cor, e nos diz: Evito a companhia de preto e do mulato, por ser um
deles, por vergonha. Ninguém quer a companhia deles,
O preto que sentia dele se exigirem maiores esforços a gente também fica acanhada de andar com eles. Não
para cursar escolas superiores ou obter um ‘bom’ em- seria capaz de amar um preto ou um mulato, mas, desde
prego novamente se traumatiza com as restrições que que não se percebam traços de ascendência preta, eu me
sofre na esfera social do branco. Sente-se considerado casaria com uma tal pessoa (MAIO, 2010b, p. 111).
apenas como ‘profissional’, não como ‘pessoa’. A con-
quista de um diploma de escola superior ou de um car- Em Pele negra, máscaras brancas, no capítulo “A mulher de
go de responsabilidade não garante ao negro a satisfa- cor e o branco”, Fanon debruça-se nos conflitos mentais da mulher
ção do desejo de ser aceito socialmente sem restrições
(BICUDO apud MAIO, 2010b, p. 102). negra ou mulata em sua obstinação na espera de um homem branco
que a pedirá em casamento. Fanon apela para concepção do mundo
Entrevistas realizadas com mulatos da classe social “inferior” submisso do homem de cor: “[...] a tara deve ser extirpada de uma
vez por todas” (FANON, 2008, p. 68). Neste capítulo, Fanon refle-
Foram entrevistadas oito pessoas por Virgínia Bicudo. Atenta- te bastante a Mayotte Capécia, que escreveu seu romance intitulado
remo-nos em um caso: “Há pessoas que nos desprezam por a gente ser de Je suis Martiniquaise. Fanon conta que Mayotte, quando criança, jo-
cor, e têm razão: os de cor são relaxados” (MAIO, 2010b, p. 105). gava o tinteiro em colegas brancos na intenção de transformá-los em
O planeta Terra é testemunha dos crimes bestiais cometidos negros. Não podendo transformar o mundo, aceita esperar o salva-
pela supremacia branca e que padronizaram o embranquecimento dos dor da brancura e “[...] correr o risco, porque precisam da brancura
povos diaspóricos, causando-lhes doenças mentais. Sobre o entrevista- a qualquer preço” (FANON, 2008, p. 58-59).
do, podemos refletir o que um dos fundadores da psicologia africana A inferioridade escraviza as Mayottes, que sacrificam suas vidas
o psicólogo afro-estadunidense Wade Nobles nos diz. Wade Nobles no objetivo de degustar um pedacinho da brancura:
(2009) cita Na’im Akbar, que desenvolveu quatro desordens da perso- Quase todas esperam durante toda a vida, esta boa e
nalidade, resultado do terrorismo psicológico que os negros sofrem. No improvável sorte. E é nessa espera que a velhice as sur-
caso apresentado, cabe refletirmos a “desordem do ego alienado”, em preende e as encurrala no fundo de sombrias aposen-
que o indivíduo cumpre o objetivo da supremacia branca: age contra si tadorias, onde o sonho transforma-se finalmente em
orgulhosa resignação (FANON, 2008, p. 65).
mesmo, não reflete sua sobrevivência. Nobles diz que: “Desagrada-lhe
seu fenótipo natural e tudo aquilo que lhe recorde a aparência física de Virgínia Bicudo dialoga com Fanon. Nesse caso, Virgínia Bi-
um africano” (NOBLES, 2009, p. 289). cudo observa a tendência das mulheres em esperarem por homens de

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O OLHAR VISIONÁRIO DE VIRGÍNIA BICUDO

posição superior, ou seja, brancos. Identifica esse sintoma por hiper- Também podemos contemplar a questão do lugar do negro
gamia (MAIO, 2010b). A pensadora descreve o sucesso alcançado do colocado pela historiadora Beatriz Nascimento, que penetra na densa
processo de embranquecimento: e profunda superficialidade e traz à tona a realidade: “Se somos parte
integrante de uma democracia racial, por que nossas oportunidades
Os mestiços das classes sociais intermediárias manifestam
atitudes que revelam sentimento de inferioridade, vergo- sociais são mínimas em comparação com os brancos?” (NASCI-
nha de sua origem e marcada sensibilidade relacionada MENTO apud RATTS, 2006, p. 108). Outro entrevistado explicita
com a consciência de cor. Esforçam-se no sentido de es- os conflitos no interior da Frente Negra:
capar da categoria de preto ou mesmo mulato, evitando
a companhia daqueles e se aproximando do branco. Pos- [...] o negro não confiava no próprio negro ‒ quan-
suem intenso desejo de passar por brancos, chegando a se do um branco tomava a palavra, era apoiado, mas,
verem brancos (BICUDO apud MAIO, 2010b, p. 120). quando o negro falava, era rejeitado. Dentro da so-
ciedade, o negro manifestava a mesma atitude de
Entrevistas e documentos da Frente Negra menosprezo e falta de espírito de cooperação que se
e do jornal A Voz da Raça observa diariamente em face de negros intelectuais
(MAIO, 2010b, p. 132).

Virgínia Bicudo presenteia-nos com muitas entrevistas dos Virgínia Bicudo diz que: “Os líderes negros tiveram de lu-
membros da Frente Negra e também com muitos artigos do jornal tar contra a falta de sentimento de solidariedade entre eles” (MAIO,
A Voz da Raça. Um entrevistado explica a urgência da organização 2010b, p. 154). Essas trincheiras dentro do movimento negro são ve-
política da Frente Negra: lhas táticas de dominação que tiveram sucesso; estamos nos referindo
Procedendo a um inquérito, encontramos a maioria a Willie Lynch. Lynch foi um proprietário de negros escravizados que
dos negros passando privações terríveis: grande nú- vivia tranquilamente com seus “escravos”. No entanto, a maioria dos
mero de desempregados, morando mal acomodados europeus enfrentavam fugas e revoltas. Os fazendeiros ficaram curio-
em porões imundos, na promiscuidade que favorece
a destruição moral da família. Pelas pesquisas realiza- sos para saber qual era o segredo de Lynch. Então, ele decide escrever
das por nós, 80% dos negros da Capital não exercem uma carta sobre como evitar insurreições:
profissão definida. O negro é meio carpinteiro, meio
mecânico (MAIO, 2010b, p. 126). Verifiquei que entre os escravos existem uma série
de diferenças. Eu tiro partido destas diferenças,
aumentando-as. Eu uso o medo, a desconfiança e
Lélia Gonzalez protestou, em Lugar de negro, a situação do negro: a inveja para mantê-los debaixo do meu controle.
Eu vos asseguro que a desconfiança é mais forte que
[...] trabalhador negro fortemente representado, sobre- a confiança e a inveja mais forte que a concórdia,
tudo em atividades menos qualificadas tais como lim- respeito ou admiração. Deveis usar os escravos mais
peza urbana, serviços domésticos, correios, segurança, velhos contra os escravos mais jovens e os mais jo-
transportes urbanos etc. Sua presença era pequena, por vens contra os mais velhos. Deveis usar os escravos
exemplo, num tipo de polo industrial como o do ABC mais escuros contra os mais claros e os mais claros
paulista… As condições de existência material dessa contra os mais escuros. Deveis usar as fêmeas con-
população negra remetem a condicionamentos psico-
lógicos que devem ser atacados e desmascarados. Os tra os machos e os machos contra as fêmeas. Deveis
usar os vossos capatazes para semear a desunião en-
diferentes modos de dominação das diferentes fases de tre os negros, mas é necessário que eles confiem e
produção econômica no Brasil parecem coincidir num dependam apenas de nós. Meus senhores, estas fer-
mesmo ponto; a reinterpretação da teoria do lugar na- ramentas são a vossa chave para o domínio, usem-
tural de Aristóteles (GONZALEZ, 1982 p. 14-15). -nas (GELEDÉS, 2012, p.15).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O OLHAR VISIONÁRIO DE VIRGÍNIA BICUDO

Talvez esse projeto de dominação explique o porquê de os tivos, o jornal A Voz da Raça, o fornecimento de livros etc. Pesquisando a
mulatos das classes intermediárias não participarem da Frente Negra, Frente Negra e o Jornal A Voz da Raça, Bicudo conclui que:
segundo a constatação da Virgínia Bicudo (MAIO, 2010b). A ‘Associação de Negros Brasileiros’, segundo nosso en-
trevistado, e as publicações do mensário daquela entida-
Entre tantos artigos do Jornal A Voz da Raça, destacamos um de, resultaram do esforço de pretos conscientes no senti-
levante: do de reunir os pretos e despertar a consciência de grupo,
a fim de eliminar a concepção de inferioridades ligadas às
Não relembremos a época gigantesca do ‘tinir de ferros pessoas de cor e, deste modo, vencer as barreiras para a
e estalar de açoites’ dos negreiros e das senzalas, pelo ascensão social do negro (MAIO, 2010b, p. 160).
prisma horripilante dos quadros que nos desenham à
memória. Tenhamos apenas por histórico o martírio de Como podemos ver acima, Virgínia Bicudo não cita a Frente
nossa gente. Por razões do coração, tenhamos um gesto
de horror. Por lição de vida, que se precavenha[sic] o Negra nem o Jornal A Voz da Raça. Ela substitui por nomes fictícios por
futuro na dor do passado. Não tenhamos medo ao tinir motivos óbvios, dada a repressão da época aos movimentos sociais. A nos-
de novos ferros, ao estalar de outros açoites. Construa- sa ancestral Virgínia Bicudo deixou documentado em sua dissertação de
mos o futuro. Mocidade, aprendamos… Bebemos no
passado a inexperiência do presente e sustamos a nossa mestrado os passos da Frente Negra, ou seja, seu aquilombamento urbano
aljava de lutadores. Legiões inquietas e irrequietas. a em São Paulo. Uma contribuição que não foi apagada pelo braço opressor
mocidade negra quer ver realizada a liberdade auroral do Estado. A Frente Negra Brasileira foi criada no dia 16 de setembro de
de 88… Não mais se acena com a famosa igualdade que
fez dormir a raça, pois ela já compreendeu que há gra- 1931 e foi um dos quilombos institucionalizados mais importantes do
dações e desigualdade (MAIO, 2010b, p. 140). Brasil. A Frente Negra Brasileira se espraiou por todo o país e propor-
cionou enfrentamentos que viabilizaram negros e negras para conquistas
Lélia Gonzalez nota o processo que provoca consciência em sociais, econômicas e políticas. Portanto, Virgínia Bicudo nos dedica a
homens negros e mulheres negras em sentirem a necessidade de se or- virtude cívica do nosso povo: a organização política da Frente Negra.
ganizarem: Outra contribuição da Virgínia Bicudo é nos ajudar a pensar
numa linha de tempo que traz a linha de raciocínio normalizadora da bran-
[...] A FNB surgiu exatamente no grande centro eco-
nômico do país que era e é São Paulo. Mais exatamen- quitude para tecer o racismo estrutural na década de 1940, em suas relações
te, na cidade de São Paulo, estendendo-se para outras sociais, econômicas e políticas. Nós fomos presenteados com o esforço in-
cidades do interior. Com isso estamos querendo res- telectual de uma pesquisadora que nos traz a situação emocional do negro
saltar o seu caráter eminentemente urbano, uma vez
que é o negro da cidade que, mais exposto às pressões que, para ascender, busca o embranquecimento, que nega a humanidade do
do sistema dominante, aprofunda sua consciência ra- irmão negro o impedindo de experimentar uma consciência emancipató-
cial (GONZALEZ, 1982, p. 22-23). ria, já que os mecanismos ideológicos estão impedindo que negros acessem
direitos de sobrevivência a um mundo que nega sua humanidade. Portanto,
Virgínia Bicudo pontua lutas muito importantes da Frente Ne- sua dissertação de mestrado contribui para a discussão que nos atravessa e
gra, como um entrevistado que pontua o embrião da nossa conquista nos adoece ou mata: gênero, raça e classe. Virgínia Bicudo grita em defesa
com a Lei nº 10.639/03. Ele diz: “O negro brasileiro deve cessar de ter do nosso estado emocional, então, não conhecê-la é darmos um passo atrás.
vergonha de seu componente racial. Este problema somente se resolverá
por esforço geral, uma educação nossa, em que se cancele aquele sistema Referências Bibliográficas
estulto de menosprezar e negar o negro” (MAIO, 2010b, p. 130). Bicudo
aponta o passo a passo da luta da Frente Negra: como se organizaram, a A CARTA de Willie Lynch. Portal Geledés. São Paulo, 10 de novem-
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72
A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS NO CENÁRIO
POLÍTICO: O CASO DA REGULARIZAÇÃO DOS TERREIROS
DE UMBANDA NO DISTRITO FEDERAL

Thaynara Godoi dos Santos


Graduanda em Geografia na UnB
Brenda Oliveira Sousa
Graduanda em Geografia na UnB
Caroline Sousa Ribeiro
Graduanda em Geografia na UnB

Introdução[*]

Fruto de expressões coletivas, a religião é revelada como um


elemento básico da vida social, cujo sentimento do sagrado imprime a
realidade desses grupos, a sua maneira de agir e a forma como se man-
têm (DURKHEIM, 1996). Tal como outras expressões culturais que
coexistem em um determinado espaço, a religião também pode ser im-
posta de forma hegemônica. Deste modo, as trajetórias sociais, políti-
cas, econômicas e históricas de um povo podem explicar porque deter-
minadas visões de mundo se impõem sobre outras. Esses percursos de
dominação e subjugação, tornando a coexistência muitas vezes confliti-
va, fornecem subsídios para refletir sobre as possíveis razões de algumas
religiões sofrerem mais ataques de intolerância religiosa que outras.
[*]Agradecemos o apoio e o incentivo do Grupo de Estudos e Pesquisa em Espaço e
Democracia (GEPEDEM) da Universidade de Brasília - UnB.
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

A Umbanda, fruto do sincretismo religioso, “genuinamente bra- das Atas Circunstanciada da 29.ª e 30.ª das Sessões Ordinárias em 2009,
sileira” (SILVA, 2005), situa-se como religião de matriz africana e é repre- realizadas nas Câmara Legislativa do DF[*], podem nos dar pistas sobre as
sentada nas políticas públicas como uma religião que preserva a ancestra- razões da baixa eficácia na aplicabilidade desta Lei para os templos um-
lidade negra (MORAIS, 2012). Organiza-se em torno de uma identidade bandistas. A partir da Lei Complementar 806/2009, realizamos entrevis-
cultural e religiosa; manifesta suas crenças, valores e símbolos no espaço. tas com o primeiro terreiro umbandista legalizado por esta política públi-
A Geografia incorpora, em suas análises, o desafio de compreender as di- ca. Em seu preâmbulo, essa política pública teria garantido a formalização
nâmicas espaciais do sagrado, apresentando reflexões teórico-conceituais de instituições religiosas de qualquer culto e/ou organizações de assistên-
de como pensar sobre as práticas religiosas e entender a sua manifestação cias sociais e similares, porém, a pesquisa revelou que a regularização do
hierofânica. Assim, o espaço sagrado e os grupos religiosos constroem-se primeiro terreiro, o templo Espiritualista Umbandista e Tempo de Unir–
mutuamente. Entretanto, para o umbandista, marcado por perseguições TEUTU, o correu somente após dez anos da implementação da Lei.
e repressão de intolerância religiosa ao longo de sua história (SILVA,
2005), necessita-se, muitas vezes, da atuação do Estado para reafirmar es- Casos de Intolerância Religiosa no Distrito Federal
tes espaços sagrados por meio do reconhecimento e legitimidade.
O objetivo central deste trabalho é analisar o processo de re- A religião surge no contexto social como uma das várias ma-
gularização fundiária dos terreiros umbandistas no Distrito Federal neiras de um indivíduo se expressar, podendo ser também imposta de
através da política pública n.º 806/2009, revelando a importância do modo hegemônico, como sabemos em diferentes exemplos ao longo
espaço sagrado para o umbandista como elo identitário-simbólico e o da história. Entretanto, esse fenômeno ainda pode ser sentido atual-
papel fundamental do Estado em sociedades democráticas na defesa de mente, inclusive na moderna capital do Brasil. Notícias veiculadas em
grupos religiosos minoritários. A escolha pelo Distrito Federal se dá diferentes meios de comunicação do Distrito Federal (DF) apontam
por sua autonomia política-administrativa, no qual os poderes do Go- essa problemática ao longo dos 60 anos de Brasília, mostrando números
verno do Distrito Federal (GDF) são organizados entre os de Municí- preocupantes de casos, como incêndios criminosos em terreiros.
pio e Estado para planejamento territorial. O Brasil tem um vasto território e sua construção histórico-
Para tanto, o estudo está dividido em três seções: no primeiro -cultural é resultante de distintas influências de pensamentos, hábitos
momento, serão apresentados os casos de intolerância religiosa no Dis- e culturas. Mesmo sendo um país onde pessoas que seguem religiões
trito Federal, com a espacialização dos terreiros de umbanda por habi- de origem cristã compõem mais de 80% da população total (IBGE,
tantes nas Regiões Administrativas e a incidência de casos de intolerância 2010[**]), há uma diversidade enorme que permitiu o surgimento de re-
religiosa a esse grupo, através de dados obtidos na Delegacia Especial de ligiões distintas àquelas dos colonizadores. É o caso dos brasileiros que
Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orien- são adeptos de religiões de raiz africana, que sobreviveram há séculos
tação Sexual, ou Contra a Pessoa Idosa, ou com Deficiência (Decrin); de discriminação e de marginalização, não só no território nacional.
em seguida, recorrendo às contribuições teóricas desenvolvidas pela Geo- Analisar a intolerância religiosa contra essas religiões é analisar, tam-
grafia Cultural, refletiremos sobre a importância do terreiro como um bém, a história da colonização da América Latina. Nesse processo, a fé,
espaço sagrado para os umbandistas, a fim de entender de que modo a mais especificamente a católica, desempenhou papel fundamental de
construção do elo identitário-simbólico se dá também espacialmente.
[*] Disponível para Consulta em: <http://www.cl.df.gov.br/web/guest/sessoes-plenarias>.
Por último, analisaremos a importância da regularização fundiá- [**] IBGE: Censo 2010, Censo Demográfico: população residente por religião. Dis-
ria dos terreiros a partir do processo legislativo da Lei Complementar n.º ponível em: <https://agenciadencias.Ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-a-
806/2009. Junto a isso, o processo legislativo que discutiu e aprovou a lei gencia-de-noticias/Releases/14244-asi-censo-2010-44-censo-2010--numero-de-
-catolicos-cai-e-aumenta-o-de-evangelicos-espiritas-e-semreligiao#:~:text=Em%20
colocada em análise, já que os votos dos Deputados Distritais apanhados 20102C%2%20a%2022,64%2C6%25%20em%2020>. Acesso em: 12/08/2020

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

consolidação a hegemonia cultural europeia, marginalizando ou exter- instituída a Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Dis-
minando povos com crenças diferentes, em um processo de assimilação criminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual, ou Contra
e imposição cultural comum na história das civilizações. O cenário de a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin). Criada em 2016, após
preconceito contra religiões de matriz africana permanece até hoje, no um incêndio no terreiro de candomblé Axé Oyá Bagan, situado no
qual a fé ligada a elementos da cultura africana é, em geral, associada à Paranoá, região Administrativa do DF, cerca de 20 km do centro de
figura de um demônio, algo que fere a moral e os bons costumes e que Brasília, ocupa nove salas do Departamento de Polícia Especializada.
são comumente enxergadas como práticas primitivas (CEHILA, 1987; O documento oficial disponibilizado pela Decrin aponta que o moti-
FRISOTTI, 1992; ROCHA,1998). vo de sua criação seria o “resultado de pressões da sociedade civil para
A não interferência de uma religião em outra é certamente a existência de uma delegacia especializada na investigação de crimes
importante para a concepção da tolerância (SALTANAT et al., 2016), de intolerância, motivada por um possível incêndio criminoso e mum
todavia não garante que religiões viverão em harmonia e que não haverá templo de uma religião afrodescendente no Distrito Federal”. Dados
nenhum tipo de desconforto social. Abdullah Latuapo e Muhammad computados pela delegacia, com base no sistema da Polícia Civil,
Farid (2019) destacam três componentes principais da prática da in- mostram umbandistas como principais vítimas de intolerância (Ta-
tolerância: (1) a inabilidade de evitar a desaprovação de outros, (2) a bela 1), ainda que os adeptos estejam em menor número em relação as
interferência em suas práticas e (3) a intencionalidade em atrapalhar demais religiões na Capital Federal (Tabela2).
o grupo com o qual não concorda. Silva (2009) também pontua que o
resultado da intolerância pode ser acompanhado pelo uso de violência: Tabela 1 – Número de ocorrências relacionadas à intolerância religiosa e
a religião envolvida no Distrito Federal (Janeiro/2016 a Setembro/2019)
Uma expressão que descreve atitudes fundadas nos pre-
conceitos caracterizadas pela falta de respeito às diferen-
ças de credos religiosos praticados por terceiros, poden- Tipo de religião Incidências
do resultar em atos de discriminações violentas dirigidas
a indivíduos específicos ou em atos de perseguição reli- Umbanda 22
giosa, cujo alvo é a coletividade (SILVA, 2009, p.23).
Candomblé 19
A intolerância religiosa direcionada aos grupos de matriz afri- Protestante/Evangélica lato sensu 10
cana torna essa análise mais complexa ao passo que essa discriminação
está ligada a outros fatores, como o racismo. Como muitos adeptos des- Católica Romana 5
sas religiões são compostos pela população preta e parda (especialmen- Espírita lato sensu 5
te o candomblé), esses crimes de intolerância produzem danos também Sem indicação na ocorrência 4
à dignidade da população afro-brasileira causando traumas e estigma-
tizando as vítimas (ROCHA, 2011). Por mais que dados censitários Wicca 2
apontem para uma maior diversificação social no caso da Umbanda Católica Ortodoxa 1
(IBGE, 2010), é possível afirmar que no imaginário social essa religião Judaísmo 1
ainda é vincula majoritariamente à população negra (MORAIS, 2012). Fonte: Sistema Millenium, PCDF. Elaborado pelas autoras.
Na tentativa de apurar especificamente os crescentes casos
de intolerância religiosa no Brasil, foram criadas diversas delegacias
regiões administrativas (RAs), já que a Constituição proíbe sua divisão em municípios.
especializadas nesse tipo de crime. No Distrito Federal (DF)[*], foi A divisão em RAs tem por finalidade otimizar a gestão governamental, visto que cada
uma dessas áreas possui seus próprios limites físicos, tornando-se mera divisão adminis-
[*] Diferente das outras unidades da Federação, o Distrito Federal é dividido em 33 trativa (SEGOV,https://segov.df.gov.br/category/administracoes-regionais/).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Tabela 2 - Representatividade das religiões mencionadas nas ocorrên- grupo. Vale destacar que os dados catalogados para a realização do
cias na população do Distrito Federal (Censo/2010) mapa foram utilizados a partir da Pesquisa Distrital por Amostra de
Domicílios de 2015 e 2018[*], para obtenção do número de habitantes
por RA. A escolha pela análise proporcional por 100 mil habitantes
Quantidade de Porcentagem
Religião ajuda-nos a tecer comparações em locais com diferentes tamanhos
adeptos declarados do total
populacionais, como ocorre no Distrito Federal. Já para o número
Católica Romana 1.455.134 56,6% de terreiros, utilizamos o mapeamento realizado pelo Centro de Car-
tografia Aplicada da Universidade de Brasília, por meio do projeto
Protestante/Evangélica Geoafro da Fundação Cultural Palmares[**]. Esta última pesquisa re-
690.982 26,8%
lato sensu
velou que existem no total 330 terreiros de Umbanda e Candomblé
Sem religião 236.528 9,2% no DF, sendo destes 188 terreiros de Umbanda, seguido por Can-
Espírita 89.836 3,4% domblé, e em menor porcentagem os que professam às duas religiões.
De acordo com o mapa, a Região Administrativa do Park Way
Umbanda e Candomblé 5.775 0,2% apresenta a maior taxa de terreiros por habitantes. São 20 terreiros a
cada 100 mil pessoas, em uma área predominantemente residencial e
Católica Ortodoxa 5.760 0,2%
coma menor densidade urbana, conforme analisado no estudo feito
Religiões esotéricas 4.487 0,1% pela Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) em 2017[***]. O
Não sabe 3.341 0,1% Park Way é seguido por Sobradinho, Núcleo Bandeirante, Paranoá,
Umbanda 3.331 0,1% Lago Norte,Varjão e Itapoã, que possuem entre 9 a 15 terreiros por 100
mil habitantes. Importante ressaltar que os terreiros nessas RAs encon-
Candomblé 2.204 0,1%
tram-se em áreas com predominância de imóveis residenciais e baixa
Judaísmo 1.103 0,0% densidade urbana, o que pode indicar também uma possível razão pela
Fonte: Censo 2010. Elaborado pelas autoras. falta de incidência de violência contra esses religiosos no Park Way –
essa constatação nega, portanto, uma relação direta entre maior quan-
Assim, mesmo com o baixo número de adeptos à umbanda, tidade de terreiros e maior violência. Apesar de novos estudos serem
é essa parcela da população a maior vítima nos casos de denúncias de necessários para entender melhor a assimetria tanto de terreiros quanto
intolerância religiosa na Decrin. Segundo dados fornecidos pela equipe de práticas de intolerância no território distrital, salta aos olhos uma re-
da delegacia, de janeiro de 2016 a setembro de 2019, foram registradas
verno como uma instituição que preserva a ancestralidade negra. O foco deste trabalho
mais de 20 ocorrências de intolerância contra umbandistas, enquanto é, portanto, trabalhar com a religião da Umbanda.
para católicos foram apenas cinco, mesmo a religião tendo mais de um [*] Elencamos a necessidade da junção de dados do PDAD 2015 e a Nota Técnica -
milhão de adeptos só na Capital do país. Sol Nascente/Pôr do Sol: Um retrato Demográfico e Socioeconômico de 2018, este
apresenta a demografia sobre a população do Sol Nascente/Pôr do Sol e Arniqueiras.
O mapa abaixo (Mapa 1) tem como objetivo espacializar os Posterior ao ano de publicação da Nota técnica ambas passaram a compor o quadro de
terreiros de Umbanda e os que sincretizam Umbanda e Candomblé Regiões Administrativas do DF.Link de acesso:<http://www.codeplan.df.gov.br/wp-
(proporcionalmente a cada 100 mil habitantes), buscando traçar re- content/uploads/2018/03/NT_Sol_Nascente_Por_do_Sol-compactado.pdf>
[**] RelatórioTécnicodomapeamentodosterreirosdoDistritoFederal.Linkdeacesso:<//
lações com os dados fornecidos pela Decrin[*] de violência contra o www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/ 2018/04/rel-tec -mapeamento- terreiros-
-df-1a-etapa-2018.pdf>
[*] Vale ressaltar que, neste estudo, os dados da Decrin identificaram tanto o Candom- [***] Densidades Urbanas nas Regiões Administrativas do Distrito Federal. Disponível
blé quanto a Umbanda como instituições religiosas afro-brasileiras.Como já menciona- em: < http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/TD_22_Densi-
do no texto, a Umbanda, mesmo sendo uma religião brasileira, é considerada pelo go- dades_Urbanas_nas_Regi%C3%B5es_Administrativas_DF.pdf>. Acesso:09/10/2020.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

lação entre maior densidade demográfica e maior violência contra um- A forma como os terreiros se reproduzem, no Distrito Federal,
bandistas/candomblecistas, como no caso da região Administrativa de pode ser explicada pela própria criação da capital do país, já que os ter-
Ceilândia. Em seguida, as RAs com maior número de casos são Guará, reiros foram instalados ao redor do Plano Piloto, nas próprias residên-
Samambaia, Paranoá, Plano Piloto e Taguatinga. cias dos adeptos, em chácaras ou em terrenos menores na zona urbana
das Regiões Administrativas (IPHAN, 2012), visto que o espaço sa-
Mapa 1: Densidade de terreiros de umbanda a cada 100 mil habitantes grado dos umbandistas não possui uma arquitetura específica, sendo os
x ocorrências de intolerância religiosa contra praticantes de candom- terreiros, em geral, os próprios espaços domiciliares (BARROS, 2007).
blé/umbanda no Distrito Federal
Os números de casos de intolerância e violência religiosa, tanto
do DF, quanto do Brasil, apontam que o país ainda tem uma longa es-
trada a percorrer contra o preconceito religioso. As injúrias e as ofensas
buscam diminuir o indivíduo usando a sua religião; os envolvidos nesses
ataques tentam minimizar a importância desses grupos, seus pensamen-
tos e moral. Outra face da intolerância são os ataques a objetos e lugares
considerados sagrados para determinados grupos. A depredação desses
locais acentua a desigualdade e a falta da liberdade religiosa que esses gru-
pos religiosos possuem. Como exemplo, podemos citar o conhecido in-
cêndio na Praça dos Orixás em Brasília no ano de 2016[*]. O respeito, não
só ao indivíduo, mas também ao espaço que o grupo considera sagrado, é
importante dentro do debate sobre a intolerância religiosa.
É importante destacar que já é conhecida dentro da Geografia
Cultural a necessidade de uma rede de espaços sagrados que umbandis-
tas utilizam para expressar a sua hierofania, sejam públicos ou privados
(MORAIS, 2020). Para não fugir dos objetivos deste trabalho, a seção
seguinte discute a importância especificamente dos terreiros para o fiel.

Espaço e Umbanda:
relações do Homem Religioso com o Terreiro

Os Terreiros de matriz africana, localizados em todo o país, es-


tão presentes no espaço brasileiro desde a colonização portuguesa. A sua
gênese é vinculada à resistência originária dos povos que foram escravi-
zados, possibilitando que suas organizações apoiassem a luta pela liber-
tação e promovessem suas atividades religiosas (SILVA, 2005). Para os
umbandistas, os terreiros também tornam-se um espaço de construção

[*] RODRIGUES, Matheus. Incêndio destrói imagem de Oxalá na Praça dos Orixás,
em Brasília. G1 DF, 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/no-
ticia/2016/04/incendio-destroi-imagem- de-oxala-na-praca-dos-orixas-em-brasilia.
html. Acesso em: 21 set. 2020.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

de sua identidade, locais de vivência social e de afirmação religiosa (MO- autor, esses espaços também constituem para os fiéis o sentimento
RAIS, 2020). Por essa razão, nessa seção, buscamos apresentar a impor- de afetividade, de vínculos identitários e de pertencimento.
tância do Terreiro para os umbandistas a partir de duas perspectivas: Ao considerarmos o significado do Terreiro para os próprios
em primeiro lugar, em um sentido mais simbólico-identitário, isto é, as umbandistas, encontramos nos escritos de Rubens Saraceni, umbandis-
práticas umbandistas constroem-se por e a partir de espaços geográficos ta e escritor brasileiro, o significado de templo atrelado a duas expe-
definidos; em segundo lugar, apontar de que modo as políticas públicas riências espaciais: de um lado, o espaço físico, sendo a casa onde ocorre
que atendam às necessidades de grupos que professam religiões de raiz não apenas a manifestação da fé dos adeptos, mas também o local da
africana são fundamentais para o combate à intolerância religiosa. moradia; de outro, o sentido do espaço imaterial, conforme visto acima,
Na ciência geográfica, o estudo das religiões tem sido debatido como espaço mítico, que nos revela a sua sacralidade. Em suas palavras:
por diversos teóricos que lidam com o fenômeno religioso espacialmen-
Todo templo tem seu espaço físico, dentro do qual se
te (CLAVAL, 2011; CORRÊA, 1995; ROSENDAHL, 1995). É pela acomodam as pessoas que o frequentam e as que mo-
análise das dimensões ritualísticas e crenças, que as religiões se expres- ram e trabalham nele. Mas também tem o espaço etéri-
sam no espaço. Dessa forma, revela muito mais que uma superstição, co ou espiritual, cuja finalida de é encapsular todos os
pensamentos e todas as ações religiosas realizadas den-
representa uma visão de mundo do homem religioso, em um espaço tro do espaço físico pelos seus sacerdotes e pelos seus
não homogêneo, qualificado por sua manifestação hierofânica no espa- frequentadores (SARACENI, 2014, p.220).
ço sagrado e o outro circundado pelo espaço profano (ELIADE, 1992).
A partir dessas considerações, os próprios Terreiros, como es- Como pesquisas na área de Geografia da Religião apontam,
paços sagrados, traduzem elementos culturais, imaterial e materialmen- espaço físico e espaço espiritual não podem ser vistos de modo estan-
te de uma maneira muito própria no espaço. Rosendahl (2018, p.199) que, ao contrário, constroem-se em constante relação. Deste modo, o
argumenta que o espaço sagrado é“ caracterizado por sua sacralidade Terreiro também é uma residência, um espaço físico repleto de simbo-
máxima, expressa por uma materialidade à qual se atribui grande valor lismo: “composto de um salão (que comporte os médiuns); em uma das
simbólico” e sugere, ainda, que “para o homem religioso essa manifesta- paredes fica o Congá (altar) com as imagens, flores, guias e demais ape-
ção pode estar contida num objeto, numa pessoa, em inúmeros lugares” trechos utilizados pelos médiuns” (VAINI, 2008, p. 51), mas, ao mes-
(op.cit., p.63). Das suas afirmações, é necessário reconhecer e identificar mo tempo, é marcada por sua sacralidade que se estabelece no “mundus
expressões ritualísticas simbólicas da estrutura umbandista e como a sua imaginalis” (ROSENDAHL, 2018, p. 255), de modo a diferenciar de
sacralidade expressa-se na dimensão espacial. Nessa perspectiva, enten- outros espaços porque mostra, em um nível espiritual, o lugar que os
demos por Terreiros um espaço de convivência, vivência íntima e sacra- umbandistas cultuam seu Deus e suas divindades.
lidade, existência fundamental para a própria construção identitária do Em seus estudos, Corrêa (2012) enfatiza que as formas sim-
grupo. Argumentamos que atacar um terreiro é, portanto, um atentado bólicas espaciais são fixas e fluxos, dotada de uma certa espacialidade.
não “apenas” ao espaço físico, mas a própria identidade do umbandista. Os fixos simbólicos como os templos umbandistas imprimem marcas
Segundo Serra (2001, p.217) os “centros, tendas, gongás, no espaço urbano, local de realização ritualísticas e da manifestação do
canzuás ou terreiros, como são chamados os templos de umbanda, sagrado. Por sua vez, entendem-se por fluxos, por exemplo, as procissões
realizam sessões, festas dentro e fora dos centros umbandistas”. No religiosas, no caso da Umbanda, podemos citar manifestações culturais
plano espiritual, os templos representam para seus frequentadores de seus orixás, como a procissão que homenageia São Jorge no Distri-
o espaço mítico, termo abordado pelo geógrafo humanista Yi-Fu to Federal[*]. Além dessas considerações, “as formas simbólicas espaciais
Tuan e refere-se à “resposta do sentimento e da imaginação às ne- constituem importantes elementos no processo de criação e manutenção
cessidades humanas fundamentais” (TUAN, 1983, p.112). Para o [*]A umbanda sincretiza vários santos e divindades de outras religiões, como, por exem-
plo, São Jorge que representa para seus adeptos o Orixá da Guerra, Ogum.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

da identidade” (CORRÊA, 2007, p.11) e pensar o terreiro umbandista é uma política pública fundamental na luta contra a forte discriminação
repleto de adereços e símbolos que constroem o sentido de identidade sofrida por esse grupo, como apresentada na Seção 1.
do grupo, com “uma infinidade de combinações de símbolos e de signos Ao discorrer sobre as políticas públicas como estratégias de in-
comuns na Umbanda, mas que dispostos de formas específicas signifi- tegração social democrática da liberdade religiosa e da cidadania, enten-
cam coisas diferentes para finalidades diferentes” (VAINI, 2008, p.80). demos por políticas públicas nesse tema a necessidade de ações do poder
Todo esse repertório teórico não só impacta na compreensão público em atuar no sentido de fortalecer os direitos humanos, para que
dos fenômenos estudados na dimensão espacial religiosa, mas também seja possível o exercício efetivo da cidadania, proporcionando espaços de
significa entender a importância do Terreiro para as práticas umbandis- diálogos que reflitam a diversidade das religiões e protejam os direitos
tas, isto é, o terreiro como espaço livremente usado para processar a fé. constitucionais, em apoio à diversidade e contra a discriminação religiosa
Dessa forma, “o lugar simbólico não é meramente descoberto, fundado (GUIDOTTI, 2015). Assim, as ações do governo podem ser utilizadas
ou construído. Ele é reivindicado, possuído e operado pela comunidade para legitimar a existência das práticas religiosas afro-brasileiras que, em
religiosa” (ROSENDAHL, 2018, p.100). grande medida, são praticadas por grupos que não possuem representan-
Nessa perspectiva, o processo de regularização das instituições tes que defendam seus interesses no processo político brasileiro, historica-
religiosas dos terreiros de umbanda, no Distrito Federal, objeto de nos- mente exposto pela “repressão e anatematização” (IPHAN, 2012, p.56).
sa pesquisa, possibilita o reconhecimento do Estado dos grupos orga- Portanto, a implementação da lei complementar n.º 806/2009,
nizados em torno de uma identidade cultural e religiosa, já que, como que garante o direito fundiário de templos religiosos, formalizando-os
apresentamos, a existência do Terreiro é fundamental para o funciona- no Distrito Federal, seria, se colocada em prática, uma medida funda-
mento religioso e para a manutenção da diversidade de crença e de rito. mental para os umbandistas como alternativa de reafirmação de suas
Por outro lado, a demanda e a reivindicação de espaço para o umban- identidades religiosas, culturais e luta pelo direito constitucional de li-
dista e o aceite legal dos Terreiros, para além da sua importância simbó- berdade religiosa, muitas vezes apagadas e pouco viabilizada na nossa
lica-identitária, ajudam no combate à intolerância, já que muitas vezes sociedade. Nessa perspectiva, é fundamental reconhecer a pluralidade
esses espaços ficam à mercê de incertezas e conflitos pelo “poder públi- religiosa que pode e deve ser constituída no cenário brasileiro, assumin-
co ou por particulares, gerando uma série de desrespeito aos preceitos do a aceitação e legitimidade desses grupos religiosos com construções
religiosos, seus espaços e ao povo de terreiro” (DPE–BA,2016,p.1). de políticas públicas e sociais de forma mais democrática possível. A
Quando trabalhamos no caso do Distrito Federal e sua par- seguir traçamos o panorama do processo legislativo desta lei comple-
ticularidade político-jurídica e territorial, cabe destacar que esse ente mentar até chegar no primeiro terreiro de umbanda legalizado.
federativo funciona, em linhas gerais, como uma fusão das atribuições
do município e do estado. Assim, uma das funções constitucionais do Implementação da Lei n.º 806/2009 e o primeiro terreiro
Distrito Federal é legislar e planejar o uso e ocupação do solo prevista de umbanda legalizado no Distrito Federal
na Lei Orgânica n.º49,de 2007[*], através do ordenamento territorial,
de valores ambientais e uso adequado do solo urbano. A autonomia Parte importante da luta contra a intolerância religiosa é contar
político-administrativa do Distrito Federal permite que o seu governo com o aparato das leis e suas devidas aplicações para comportar e buscar
(GDF) defina a implementação de políticas habitacionais e políticas caminhos de combate às injúrias e às injustiças sociais. Ter assegurado por
públicas que busquem melhorias para a população. Como já menciona- lei o direito à liberdade religiosa não resolve o cenário de discriminação
do, o reconhecimento do Estado dos espaços sagrados dos umbandistas e de marginalização de algumas religiões, mas é um avanço significativo
para essa mudança essencial. Nesse contexto, a Constituição de 1988, in-
[*]Lei Orgânica do Distrito Federal. Disponível em: <http://www.sinj.df.gov.br/sinj/ titulada “Constituição Cidadã”, dá um importante passo no sentido de
Norma/666 34/LeiOrganica08061993.html>. Acesso: 09/10/2020

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

estabelecer uma agenda política de defesa constitucional da liberdade re- Os dados oferecidos no anexo do documento legislativo da Lei
ligiosa e de crença, prevista no inciso VI do art.5.º. Além disso, conforme 806/2009 apontam as áreas que eram/são passíveis de regularização: 407
o art. 19 da Constituição, é responsabilidade dos governos estaduais e pertenciam à Terracap e já eram passíveis de regulamentação; outros 585
municipais garantir a laicidade do Estado, sendo vedada praticar relações lotes estavam em áreas públicas ocupadas por entidades religiosas ainda
diretas em cultos religiosos, exceto pelas colaborações de interesses pú- sem registro imobiliário, mas que poderiam solicitar a análise inicial de
blicos previstas em lei. Soma-se a isso o código penal brasileiro, no qual o verificação de modo a iniciar o processo de formalização; e havia, ainda,
art. 208 cita como crime de intolerância religiosa quaisquer categorias de 58 terrenos relacionados que pertenciam ao Distrito Federal, onde não são
prática que intervém na pessoa religiosa e/ou em cultos. permitidas atividades religiosas no local, mas audiências públicas poderiam
Nem mesmo o respaldo legal foi suficiente para garantir o res- ser realizadas para que fosse apresentado o laudo de viabilidade urbanística
peito às práticas religiosas aos indivíduos, especialmente aqueles liga- e, assim, cumprir as condições de regulamentação. Dessa forma, totalizam-
dos às religiões de matriz africana. Ainda assim, é válido destacar que -se 1050 áreas de entidades religiosas que, de algum modo, seriam capazes
gradualmente esse cenário é modificado a partir do reconhecimento de passar pelo processo de regulamentação através dessa política pública.
pautado pela legislação e o processo de legalização de espaços conside- Como podemos perceber na análise do processo legislativo que
rados sagrados para grupos religiosos. a construiu, a lei passou a ser conhecida como Lei das Igrejas, ganhando
Nesse sentido, abordaremos a lei complementar distrital esse apelido ainda no processo de tramitação, quando já era tratada como o
N.º806/2009, que assegura a regularização fundiária dos templos re- “Projeto das Igrejas”. É possível notar essa referência em diferentes discursos
ligiosos de qualquer culto ou instituição que exerça atividades sociais. dos deputados distritais durante as sessões ordinárias, como na fala do de-
Ressaltamos que apenas serão considerados os processos regulatórios putado Wilson Lima (PSD): “as entidades sociais que aguardam a votação
de organizações religiosas, em particular o caso da umbanda, com o ob- do projeto das igrejas em segundo turno e redação final”[*]. Deve-se observar
jetivo de apresentar as principais ações até o primeiro terreiro umban- que este nome “Projetos das Igrejas” difere de como outros projetos de lei
dista legalizado no Distrito Federal. No que tange a Lei complementar são, em geral, denominados e mencionados em plenária, isto é, pelo núme-
806/2009, essa se propõe como uma: ro do projeto antecedido por “PL” (Projeto de Lei). A denominação “Lei
das Igrejas” destaca o tipo de espaço sagrado vinculado às religiões cristãs
Política pública de regularização urbanística e fundiá-
ria das unidades imobiliárias ocupadas por entidades que são majoritárias no Distrito Federal, excluindo instituições religiosas
religiosas de qualquer culto para celebrações públicas que não utilizam essa etimologia quando se referem às suas próprias crenças
ou entidades de assistência social, e dá outras providên- e identidades – no caso do umbandista, o seu espaço sagrado é denominado
cias.[*] (Epígrafe da Lei Complementar 806/2009). como templo, casa, terreiro, etc., mas nunca “igreja”.
A Lei Complementar garante que terrenos ocupados até 31 Ao adentramos no processo de votação para efetivar a Lei n.º
de dezembro de 2006, pertencentes à Companhia Imobiliária de Brasí- 806/2009, presente nas sessões ordinárias 29.ºe 30.º do ano de 2009,
lia (Terracap) e realizando atividades efetivamente no local, podem ser nota-se que o projeto de lei complementar passou por dois turnos, sen-
adquiridos em licitação pública, por compra e venda ou concessão de do aprovada em ambos. No primeiro turno, foi aprovado com 16 votos
direito real de uso. Em outras palavras, esta lei versa sobre os terrenos positivos dos 24, tendo apenas um voto contra e sete ausências. Já em
religiosos e/ou de assistência social, ocupados nessas áreas e que cum- segundo turno, foram 21 votos no total, sendo 19 favoráveis, dois con-
pramos requisitos necessários para regulamentação. tra e três ausências na casa. O Quadro 1 revela de que modo votou cada
parlamentar nas duas seções necessárias para a aprovação da lei.
[*] EPÍGRAFE DA LEI COMPLEMENTAR 806, DE 12 DE JUNHO DE 2009. [*] ATA CIRCUNSTANCIADA DA 30ª (TRIGÉSIMA) SESSÃO ORDINÁRIA,
Disponível para consulta em:<http://www2.terracap.df.gov.br/sist.emasInternet/ 2009, p.03. Disponível em: <http://www.cl.df.gov.br/documents/5744407/3984699/
TERRACAPMANUAL/8 806.pdf>Acesso em:03/10/2020 Ord+30a+-+16-04-09.pdf ?version=1.1>

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Quadro 1: Votos dos Deputados Distritais no Projeto de Lei A lei foi acolhida de maneira quase unânime dentro da Câ-
n.806/2009 mara Legislativa do Distrito Federal (CLDF). Os dois deputados que
foram contra na segunda seção[*] justificaram seus votos baseados em
questões fundiárias, alegando que poderiam atingir a Lei Orgânica do
Distrito Federal, tornando-a inconstitucional e aprimorada depois via
decreto. Deve-se observar que houve, em primeiro momento, aspectos
inconstitucionais na Lei Complementar, posteriormente, outros de-
cretos e normas aplicáveis foram implementados para a sua constitu-
cionalidade. De tal forma, a Procuradora-Geral de Justiça do Distrito
Federal e Território considerou esta Lei inconstitucional, devido a seu
caráter fundiário. Nele se aplica que a desafetação de áreas públicas
sem a análise sistemática realizada pela Lei Orgânica do Distrito Fede-
ral (LODF), no qual se faz necessária a aprovação dos estudos urbanís-
ticos para a cidade, audiências públicas e então a edição da lei, para que
seja evitado as irregularidades sobre o processo de licitação[**].
O Deputado Distrital Reguffe (PDT), ao pronunciar seu
voto, mostrou-se preocupado em dizer que era um homem religioso,
não sendo contrário ao papel da Igreja, mas votaria contra por não
ser favorável à legalização de áreas públicas que foram invadidas. A
Deputada Distrital Erika Kokay (PT) expressou seu voto contra o
projeto seguindo a mesma linha acerca da questão fundiária.
No entanto, para a maioria que votou a favor, percebemos em
seus discursos que a lei seria uma medida capaz de resolver os problemas
fundiários das entidades religiosas no DF. Durante a Sessão Ordinária
29.º, o Bispo Renato (PR) discursou sobre sua luta e a dificuldade do
processo de regularização fundiária das instituições religiosas, princi-
palmente pela falta de um instrumento jurídico que possibilitasse tal
formalização: “quantas vezes tivemos que entrar na frente de máquinas
para impedir a derrubada de templos e agora se vislumbra que esses tí-
tulos sejam entregues às igrejas para que elas edifiquem seus templos”[***].
Por sua vez, o Deputado Brunelli (DEM), na Sessão Ordinária 30.º,

[*] Na primeira sessão, o deputado Reguffe - PDT manteve seu posicionamento contra
a proposta da Lei Complementar e Erika Kokay - PT estava ausente em primeiro turno.
[**] Documento disponível para consulta em: <https://www.mpdft.mp.br/portal/
index.php/component/adi/?act=visualizar_processo&id=576#:~:text=DECR
Fonte: Síntese dos registros de votação nominal das proposições em plenário, ETO%20N%C2%BA%2035.738%2C%20DE%2018,DECRETA%3A%20(...)>
disponível nas Atas Circunstâncias 29° e 30°, das Sessões Ordinárias ocorridas [***] ATA CIRCUNSTANCIADA DA 29.ª (TRIGÉSIMA) SESSÃO OR-
em abril de 2009. Elaboração: das autoras DINÁRIA, 2009, p.34. Disponível em: <http://www.cl.df.gov.br/documen-
ts/5744407/3984698/Ord+29a+-+15-04-09.pdf ?version=1.2

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

afirmou que a Lei representaria interesses legítimos e que “a escritura Dada as diferenciações de um mesmo instrumento jurídico a
nada mais é do que a garantia de dizer que você veio para ficar”[*]. grupos religiosos distintos, o sociólogo Claus Offe (1984) propõe que
Depois da implementação da Lei Complementar 806/2009, há certa seletividade no desempenho das instituições políticas durante o
mais de mil entidades (como aponta o anexo da Lei) religiosas poderiam processo de tomada de decisões de políticas públicas, ou, em outras pa-
ser formalizadas pela política pública, mas, até o momento, apenas 230 lavras, na seleção das políticas públicas que seriam implementadas, um
entidades foram regulamentadas, conforme esclarece o coordenador da sistema de filtros em que poderia incluir ou excluir das agendas os atos
Unidade de Assuntos Religiosos (UNAR), Kildare Meira, em uma entre- determinantes estruturais, ideológicos, processuais e repressivas. A apli-
vista concedida à Agência de Brasília[**]. Essa disparidade entre instituições cação tanto da Lei 806/2009 quanto do programa “Igreja Legal” do atual
que poderiam ser regulamentadas e aquelas que de fato ganharam o título Governo sugere que as instituições de matriz africana estão em segundo
de propriedade, motivou o atual Governador Ibaneis Rocha (MDB) em plano nesse processo de regularização fundiária, mesmo sendo os prati-
parceria com a Terracap, a desenvolver o programa denominado Igreja cantes dessas religiões e seus templos os principais alvos de práticas de
Legal[***] em 2019, cujo conjunto de ações facilitaria ainda mais a regulari- intolerância religiosa, conforme já apontado ao longo desta pesquisa.
zação fundiária de entidades que ocupam terrenos da Terracap. O reconhecimento, através de ações legais, ajudaria a garantir
No âmbito das instituições religiosas de matriz africana no a visibilidade dessas religiões e reforçaria o combate à intolerância reli-
Distrito Federal, o primeiro terreiro a receber sua escritura ocorre após giosa, conforme propõe o coordenador da Unidade de Assuntos Reli-
10 anos da publicação da Lei n.º 806/2009, totalizando, hoje, apenas giosos em outra entrevista concedida à Agência de Brasília. No mesmo
dois regulamentados e mais um em processo de formalização. Kildare periódico, Leonardo Mundim, Diretor de Regularização Social e De-
Meira, na mesma reportagem já citada acima, destacou a necessidade de senvolvimento Econômico da Terracap, complementa e afirma que es-
medidas com resoluções legais para amparar essas instituições religiosas sas iniciativas permitiriam a manutenção e a preservação da diversidade
e o seu processo de regularização, visto que constata a exclusão de terre- religiosa no DF: “esse pleito despertou a necessidade de maior atenção
nos de matrizes africanas nesse processo legislativo. em nome do princípio da diversidade que é inerente à sociedade brasi-
Através do requerimento público solicitado à Terracap para leira e também à sociedade do Distrito Federal” (MUNDIM, 2019).[*]
construção desse artigo, recebido no dia 16/09/2020, o documento Das instituições Umbandistas, o primeiro regulamentado foi o
disponibilizado revela o número e o tipo de instituição religiosa que Templo Espiritualista Umbandista é Tempo de Unir (TEUTU) em janeiro
foi regulamentada: dentre o total de 146 imóveis escriturados de insti- de 2020, seguido pelo Centro Espírita Lua e Verdade Cabocla Juremá (SEA-
tuições católicas e evangélicas, conforme dispõe a Lei Complementar RA). Ambos já possuem escritura pública de compra e venda nos termos da
no 806/2009. Em 2019, em uma entrevista divulgada pelo jornal G1, Lei Complementar N°. 806/2009, enquanto o processo de regulamentação
o coordenador já havia criticado a falta de iniciativa de outros governos do Centro Espírita de Estudos e Umbanda Caboclo Serra Negra segue em
em não adotar medidas que viabilizassem os cultos afro-brasileiros para fase de instrução para regularização, conforme as disposições da Lei.
esse segmento, pois, até então não havia nenhuma instituição de matriz Em 12 de agosto de 2020, realizamos uma entrevista com a
africana regulamentada pela política pública[****]. dirigente do primeiro terreiro regulamentado pela Lei, Templo Espiri-
[*] ATA CIRCUNSTANCIADA DA 30.ª (TRIGÉSIMA) SESSÃO ORDINÁRIA, tualista Umbandista é Tempo de Unir (TEUTU), localizado na região
2009, p.29. Disponível em: <http://www.cl.df.gov.br/documents/5744407/3984699/ administrativa do Guará. Cleide Maria Ribeiro, a dirigente do terreiro,
Ord+30a+-+16-04-09.pdf ?version=1.1> no decorrer do encontro ajudou-nos a compreender a precarização de
[**] Entrevista disponível em: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2019/08/30/kilda-
re-meira-uma-igreja-nao- pode-ser-tratada-como-uma-empresa/> Acesso em: 03/10/2020. políticas afirmativas que possibilitariam o direito fundiário dos templos
[***] Das ações do Programa Igreja Legal e sua implementação; disponível em:
<https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2019/08/27/gdf-e-terracap-lancam-progra- cia/2019/06/20/terreiros-de-umbanda-serao- regularizados-no-df.ghtml>.
ma-igreja-legal/> Acesso em: 03/10/2020. [*] Link da entrevista: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2019/06/18/terreiro-
[****] Entrevista disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noti- -de-umbanda-contra-a-intolerancia-religiosa/>.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A VISIBILIDADE DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

umbandistas. Ela afirmou que havia tentado regulamentar o terreiro di- A ciência geográfica amparou-nos a caracterizar e interpretar
versas vezes ao longo dos anos. Como o terreiro está localizado em uma os fenômenos espacialmente, refletindo sobre a importância do terreiro
região privilegiada do Distrito Federal e, portanto, de alto interesse para o umbandista a partir de suas manifestações materiais e simbólicas
imobiliário, era iminente o medo da perda do lote, sendo relatado pela nos múltiplos contextos sociais. Compreender esses espaços revelam a
própria dirigente que houve inúmeros casos de solicitação com abertura necessidade de tornar essas identidades culturais notórias no mosaico
da licitação pela Terracap, chegando, inclusive, a ser colocado à venda social em que vivemos. Assim, a identidade da umbanda como espaço
sem que a entidade ocupante sequer soubesse. A dirigente afirmou que específico deve ser continuamente determinada e reconhecida, afir-
a sensação após a regulamentação foi de “ter vencido uma guerra”, pois mando assim sua identidade e simbologia religiosa no espaço brasileiro.
o direito à escritura garantiu a posse sobre o terreno e reforçou a conti- No decorrer desta pesquisa, reafirmamos a importância de ins-
nuidade do trabalho espiritual e de caridade que o terreiro desempenha. trumentos jurídicos capazes de amparar as ambiguidades religiosas sociais
A regularização fundiária prevê a efetivação da terra com titula- existentes; a partir do reconhecimento do Estado e suas diferentes escalas
ridade de posse, portanto, garante condições fundamentais para a estabi- políticas (AZEVEDO, 2020) que reavalia as condições desiguais presentes
lidade das organizações, exemplificado pelo caso do TEUTU, que após sobre a entidade religiosa e afirme a sua crença. Ressaltamos que a regulari-
sua regulamentação ficou livre de disputas territoriais. Apesar de ser uma zação dos templos favorece o direito legal dos espaços religiosos e propor-
legislação recente, a lei complementar N.º 806/2009 institui instrumen- ciona aos adeptos dessas instituições o direito de permanecer no território
tos facilitadores para o processo de formalização de áreas com atividades e continuar os trabalhos em prol de uma construção cultural mais plural.
religiosas e sociais no Distrito Federal, mas a omissão em integralizar ins- A política pública fundiária, viabilizada pela Lei Complemen-
tituições de matriz africana, conforme apresentamos nesta seção, mesmo tar 806 de 2009, institui instrumentos facilitadores para as titularida-
após a publicação da lei, revela a interpretação parcial dos órgãos e ins- des fundiárias de áreas com atividades religiosas e sociais. Foi necessária
tituições, colocando em xeque as ideias de isonomia e laicidade que são uma década para que o primeiro terreiro umbandista fosse contempla-
fundamentais para a consolidação de um Estado democrático de Direito. do por intermédio da Lei. Apesar de a legislação ser recente, a pesquisa
apontou que existe certa fraqueza na aplicabilidade do procedimento,
Considerações Finais tornando vital novos instrumentos que não apenas facilitam o proces-
so, mas que promovam ações que viabilizem políticas que visem contri-
Em território nacional, a luta por legitimação das religiões de ma- buir de maneira significativa para os terreiros afro-brasileiros.
trizes africanas é histórica. Neste artigo, utilizamos a Umbanda, no Distrito
Federal, como objeto de estudo, discorrendo sobre a esfera de um segmento Referências Bibliográficas
marginalizado pela sociedade, onde são fortemente expressos os conflitos
no âmbito político e no cotidiano, atrelados às suas práticas religiosas que ABDULLAH, L.; MUHAMMAD, F. Religiuos Peacebuilding in a
são silenciadas e escondidas, deixando-a ao misticismo e ao imaginário po- plural society: A Fundamentalist Perspectives. In: International Con-
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dada por esses grupos que sincretizam a ancestralidade negra e imprimem www.researchga te.net/publication/337683466_RELIGIOUS_PEA-
no espaço a diversidade brasileira. Assim, faz-se necessário movimentar os CEBUILDINGIN_A_PLURAL_SOCIETY_A_Fund amentalist_
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DIFEL, 1983. p. 260. vos da população oprimida” (SANTOS, 2020, p.520). 
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banda. 2008. p.358 . Dissertação (Doutorado em Ciências Sociais) - espaços, ameaças e agressões[***]  a praticantes e a sacerdotes (SILVA,
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais, Pontifícia 2019) são produções seletivas de espaços de morte, territórios e vidas
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008. precarizadas. Necropolítica, como diria Mbembe (2018), não enquanto

[*] Sobre a apreensão de mais de 200 peças de religiões de matriz afro-brasileira, entre 1889
e 1945, conferir:  https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/08/10/pecas-his-
toricas-de-religioes-afro-brasileiras-apreendidas-irao-para-o-museu-da-republica-rio.ghtml
[**] Atualmente, há somente 11 terreiros de Candomblé tombados pelo IPHAN. 1%
em benefício de 40% de matriz católica (SANTOS, W. C. S, 2020).
[***] Segundo a Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio, 91% das queixas de
preconceito religioso são realizadas por fiéis de credos afro-brasileiros. Para aprofundar
“os números da intolerância”, conferir: Religiões Afro - as origens, as divindades, os
rituais. Super Interessante, v.385-A, 2019.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES INCORPORANDO O ESPÍRITO CIENTÍFICO

dano colateral, mas como projeto desenhado a partir do epistemicídio Para tamponar o temor e as maledicências dos seus cultos, evi-
que nega às populações negras à “condição de sujeitos de conhecimen- tando ameaças de vizinhos, problemas no ambiente escolar, acadêmico
to, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das condições ou de trabalho, por exemplo, apagam os traços étnico-raciais, princi-
do continente africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da palmente, africanos, que constituem suas epistemologias e trabalhos
humanidade” (CARNEIRO, 2005, p.56). espirituais. Ações produzidas-produtoras do pacto narcísico da bran-
Desdobramentos, segundo Fanon (2008), da produção mo- quitude que implica a negação das questões problemáticas, visando a
derna-colonial europeia da racialização do outro e sua significação en- manutenção dos privilégios raciais (BENTO, 2002). 
quanto sub-humano, para assegurar as expropriações e explorações de Nesse contexto, na medida em que “a reprodução ampliada
milhares de povos do continente africano, asiático e das américas. To- das desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavização cres-
mando-os como não-ser, suas terras ocupadas não equivaleriam a “pro- cente das atitudes e dos comportamentos racistas”, como nos alerta
priedade” - bem maior do “homem da mercadoria” -, seus corpos não Guimarães (2004), este trabalho destaca a simultaneidade “desses
gozariam do direito à liberdade iluminista e seu conhecimento seria dois fatos aparentemente contraditórios” com o objetivo de explorar,
irracional.  Expressões do racismo enquanto “materialização do próprio brevemente, as demandas – esforços energéticos-discursivos desagre-
epistemicídio, sendo o mediador de qualquer forma de dominação e in- gadores – que esvaziam de cor, história e fundamentos, as umbandas e
feriorização dos povos africanos, invalidando seus percursos humanos, seus ingredientes afro-brasileiros. Como nos ensina Ogum, o “vence-
culturais, religiosos e intelectuais” (PONTES, 2017, p.49). dor de demandas”, só é possível enfrentar trabalhos negativos a partir
Na contramão do célebre “mito da Revolução Científi- do conhecimento das condições que os possibilitaram e dos efeitos
ca” (LATOUR, 2016), do qual decorre a construção e defesa da gerados – no caso, o cientificismo colonial-racista e sua reprodução
ciência como desveladora da verdade sobre a natureza, e, poste- no campo discursivo e litúrgico dos terreiros de umbandas.
riormente, em particular, da psicologia sobre a pretensa natureza Para explorar as demandas colonizantes das e nas umban-
humana, às voltas com a urgência de Montero (2004) por “des- das, este trabalho utiliza-se de revisões bibliográficas nas áreas de
colonizar a psicologia”, estas linhas sublinham a seletividade do antropologia, sociologia, psicologia e filosofia e de produções de sa-
campo psi que continua recortando dimensões fundamentais das cerdotes umbandistas, oxigenadas por elaborações autoetnográficas
experiências dos sujeitos, principalmente vivências mágico-reli- a partir do compartilhamento das experiências vivenciadas em um
giosas afro-brasileiras. O que, a partir de um recorte temático para terreiro umbandista situado no município do Rio de Janeiro. Com
análise, chamaremos aqui de colonizações das umbandas.  o cuidado de respeitar a sacralidade e intimidade das relações entre
Movimento que não é separado das colonizações nas umban- encarnados e desencarnados, sem incorrer na exotização do mani-
das, mas permanentemente (re)costurado pelo racismo estrutural (AL- festado nesse espaço e sem a pretensão arrogante de reunir todas as
MEIDA, 2018), fonte de preocupações e medos dos praticantes que vertentes das umbandas em um quadro total e enrijecido.   
temem levar uma pedrada na cabeça[*], simplesmente por vestir o branco Isso porque a autoetnografia, nas palavras de Anderson
– seguir os fundamentos dos processos iniciáticos – por exemplo. Nessas (2006, p.40), “expressa a consciência de sua conexão necessária com a
encruzilhadas, muitos intelectuais, praticantes e, inclusive, sacerdotes – situação de pesquisa e, portanto, seus efeitos sobre o sujeito pesquisa-
principalmente brancos – das umbandas, frequentemente, lançam-se, de dor”. Nesse sentido, o modelo triádico de Chang (2008) afirma o re-
forma mais ou menos consciente, em armadilhas coloniais. lato autoetnográfico, mais analítico e interpretativo, dentre as formas
de autonarrativas, como método balizado na experiência pessoal, va-
[*] Agressão sofrida por Kaylane Coelho, ao sair de um terreiro de Candomblé, em junho lorização das relações com sujeitos do campo – não enquanto objetos
de 2015, então com 11 anos, atingida por uma pedra disparada por dois homens car-
regando bíblias debaixo do braço. Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/ da pesquisa, mas com quem se pesquisa – e reflexividade na elabora-
noticia/2015/06/rio-tem-protesto-contra-intolerancia-religiosa-na-zona-norte.html

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ção do texto e organização do vivenciado, sendo esses três princípios 8-9), ao apagar sistematicamente referências não euro-americanas,
fundamentais compartilhados pelas práticas umbandistas.   aniquilando “maneiras de conhecer e agir” não brancas.
Desta forma, o presente artigo está subdividido em três partes. A Na contramão do cientificismo, que apresenta a ciência como
primeira busca abordar a produção de conhecimento científico em articu- aquilo que silenciou as divindades em prol da vocalização daqueles nos
lação com as noções de colonização e colonialidade. Em seguida, será apre- laboratórios, na pretensão de pôr fim a todas as controvérsias, Latour
sentada a manifestação da lógica colonial pela simplificação e depreciação (2016, p.81) afirma que “um enunciado (científico) certo não é senão
das experiências mágico-religiosas pela figura dos experts, por exemplo, da a etapa final de uma controvérsia e, de maneira alguma, seu início”, ga-
psicologia. Na última parte, por fim, discorre-se sobre a reprodução do es- nhando robustez na medida em que se sujeita a muitos desvios, só sen-
pírito científico colonial nos discursos e práticas dos terreiros de umbandas. do acolhido depois de muito transformado.
Ao conceber, nas ciências, o indiscutível como fruto de muitas
“A representação do mundo” ou a imposição de um mundo   discussões – sendo possível, retrospectivamente, traçar tal percurso e
explicar os casos em que não se culminam nos mesmos resultados – as
Ao mesmo tempo em que nos textos pré-socráticos ao Co- tradicionais distinções entre tipos de enunciado (rumor, opinião, pa-
gito Cartesiano é evidenciado o descolamento das realidades para recer, disputa, proposição, descoberta, fato) não seriam categorias ex-
além do físico e o ser passa a ser (apresentado como) fundamen- cludentes, mas “etapas sucessivas da mesma fonte de controvérsia” (LA-
talmente racional, de acordo com Pontes (2017), a modernidade TOUR, 2016, p.83). Nesse sentido, entrar pela cozinha e investigar o
emerge enquanto expectativa do “futuro radiante” em que o cientí- que Latour (2017) chama de “ciência em curso”, em vez de apenas nos
fico romperá com o “passado odioso” das dimensões políticas, senti- servirmos à mesa dos manuais e dos artigos científicos – pratos apre-
mentais, emotivas e das paixões (LATOUR, 2016).  sentados em sua versão mais estabilizada como puramente racionais e
Nesse cenário, a Revolução Científica marcaria uma nova era incontestáveis – subverteria as concepções teórico-metodológicas de
de conhecimentos verdadeiros em oposição à pluralidade de versões obviedades para campos históricos de disputas. 
sobre a realidade do submundo da arte, da religião e da política, apre- Ainda que (ou justamente por isso) os acontecimentos histó-
sentando produções que envolveriam apenas equações racionais e de ricos visibilizem as controvérsias em detrimento de sua aniquilação, os
progressões lineares, de uma origem inequívoca na Grécia Antiga, até homens de ciência repetem para si mesmos que “basta ignorar a história
o presente. Isso se explicita na perseguição de desvelar “a origem grega” das ciências com bastante afinco para que as ciências deixem de ter al-
das preocupações conceituais-metodológicas anacrônicas de muitos guma história” (LATOUR, 2016). Historicídio explicitado pela enor-
manuais de psicologia, como o famoso “História da Psicologia Moder- me dívida que a Grécia antiga tem para com o conhecimento africano,
na” (SCHULTZ & SCHULTZ, 2006). Tal construção resultaria , por já que se sabe que “Platão, Homero, Deodoro, Demócrito, Anaximan-
exemplo, em Vidal e Foucault revirarem-se no túmulo por apontarem dro, Sócrates, Tales, Pitágoras, Anaxágoras e muitos outros gregos estu-
traços embrionários da psicologia enquanto, respectivamente, conteú- daram e viveram na África” (ASANTE, 2009). Tencionando a famosa
do da Filosofia Natural no século XVI (VIDAL, 2005) e práticas da “paternidade grega”, Molefe Kete Asante prossegue:
episteme moderna, a partir do século XIX (FERREIRA, 2005).
Um dos mitos permanentes a sustentar a hegemonia
Nesse contexto, é preciso sublinhar a representação fide- europeia talvez seja o da origem grega da civilização.
digna do mundo pela ciência com um problema mal colocado: por Agora se tem demonstrado que esse exagero cometido
um lado, desonesto com o movimento histórico que não aniquila, por intelectuais desejosos de provar a superioridade eu-
ropeia. A obra Atena Negra, de Martin Bernal (1987),
mas visibiliza controvérsias que produzem o conhecimento científi- demoliu a ideia de que Grécia antecedeu a África, par-
co ocidental; e, por outro, epistemicida, segundo Ramose (2011, p. ticularmente o Egito, em termos de civilização. O que

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Bernal fez em relação à origem grega da civilização, A imposição de uma versão de mundo eurocêntrica, além
Cheick Anta Diop já havia feito com respeito à civiliza- de tornar os  colonizados seres “incapazes de contribuir com o pre-
ção em geral (DIOP,1974). Em outras palavras, Diop
demonstrou que a origem africana da civilização era um tenso pensamento crítico” (PONTES, 2017, p.48), pesa sobre o
fato, não uma ficção (ASANTE, 2009, p.100). próprio campo científico. Da separação entre hard e soft sciences, em
detrimento das segundas, passando pelo desinteresse dos jovens pelo
O apagamento e a invisibilização das iniciações de diversos fi- ensino-aprendizagem das ciências, à “esquizofrenia do pesquisador”
lósofos gregos no Egito Antigo e das referências africanas de suas teori- figura, segundo Gaston Bachelard, que luta consigo mesma, buscando
zações responde ao período colonial ( JAMES, 2010), em que “o papel sempre anular um passado obscuro que ameaça engoli-lo em direção
da escravização dos povos africanos foi determinante na invisibilização à redenção proporcionada pelo espírito científico (LATOUR, 2016).
do legado africano”, como acentua Pontes (2017, p.48).
Isso porque o “futuro radiante” da modernidade possui uma O “espírito científico” sufocando (des)encarnados
“contraparte obscura”: a colonização e colonialidade. A primeira, en-
quanto processo histórico de domínio dos territórios e corpos africa- Paulatinamente, engrossam-se tensionamentos da origem
nos, asiáticos e americanos, durante os séculos XV e XVI, foi sustenta- do  pensamento racional no surgimento da filosofia grega, no sécu-
da, principalmente, pela cristianização compulsória e a ideia filosófica lo VI. a.C, na medida em que se afastavam do pensamento mítico
de que somente os homens eram dotados de razão, sendo que essa racio- (PONTES, 2017), mas cabe ressaltar que as críticas ao cientificismo
nalidade “não se referia aos africanos, aos ameríndios, aos australasianos não imunizam os experts de reproduzirem a lógica colonial. A afirma-
e, muito menos, às mulheres” (RAMOSE, 2011, p.23). ção das condições sócio-técnicas das ciências pode, inclusive, atuali-
A colonização dos não europeus deslegitimou outras visões de zar o prestígio do “espírito científico”. Basta que esse seja celebrado
mundo que não partem da centralidade da racionalidade europeia e que enquanto conhecimento localizado e específico, depreciando as re-
destacam o sensível, eliminando a subjetividade-humanidade de todos ligiões como sacos de respostas prontas a todos os problemas, redu-
os povos não-brancos. Nesse contexto em que a razão precisa dominar o zindo as complexidades, versões e contradições dos exercícios de fiés. 
sentido, e os racionais, os irracionais, a produção de “sub-humanos” fano- Assim como as ciências, as religiões não apresentam soluções
nianos é o que sustenta a colonização dos povos de África, Ásia e Amé- instantâneas para todos os sofrimentos, como destaca Vittor (2008).
ricas, e não uma condição a ser superada pela civilização-cristianização. O que é positivado, quando se afirma uma produção de conhecimento
Já a colonialidade, enquanto desdobramento da colonização, constante e “devagar, devagarinho”, como canta Martinho da Vila[*],
nas sociedades modernas, alude à composição de distintas matrizes de e sublinha a doutrina espírita kardecista ao conceber a encarnação
dominação e subalternização por meio de um “sistema de classifica- como possibilidade de aprendizado, que pode continuar no desencar-
ção mundial marcadamente étnico-racial, de gênero, sexual”, segundo ne ou prosseguir em novas reencarnações (KARDEC, 1974).
Nogueira (2011, p.0.3), que, em meio a disputas, controla as dimen- O mistério, como aquilo a ser respeitado e sentido, não a
sões do trabalho, sexo, reprodução, subjetividade, conhecimentos ser desvelado, também é significado como dimensão constitutiva
circulantes nos territórios e a autoridade nas relações sociais (QUI- das práticas dos cultos afro-brasileiros. Esse laço indissociável en-
JANO, 2010). A capilarização e o aprofundamento da colonialidade tre aprendizado e mistério pode ser destacado em uma passagem de
que reclama um conhecimento, de origem grega, cumulativo, linear uma história sobre Orunmilá, a primeira divindade criada por Oló-
e puramente racional, operando por dicotomização, racialização e dùmarè - o ser supremo yorubá. Sobre a figura que testemunhou
fabricação de sub-humanos, fomenta a legitimação do pensamento
científico euro-americano, em detrimento do saber-fazer não-branco [*] Devagar, devagarinho: composição Eraldo Devagar e Martinho da Vila. Em “Tá
e de fora das universidades e laboratórios. Delícia, Tá Gostoso”, Sony Music, 1995.

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toda criação e a quem foi confiada toda a sabedoria dos mundos que a priori buscaram tratamentos psicológicos, tratando a sensibilida-
habitados e não habitados, Delfino nos conta:  de para experiências mágico-religiosas como um interruptor liga-desli-
ga a mercê da vontade e da racionalidade (VITTOR, 2008). 
Nessa porta, ao bater, Orunmilá se identificou e disse
que desejava conhecer Ikú (morte), aprender sobre as Imediatismo que não ressoa com a preocupação umbandista
almas ou seus mistérios e horrores. Aqui se presume a em desenvolver a mediunidade – “o exercício de expansão da consciên-
ideia de que estar diante dos mistérios e horrores se faz cia, trabalhando para melhorar-se à medida que também melhora a ex-
necessário como um estágio a ser superado ou passo ne-
cessário à evolução. O fato de essa ideia estar atrelada à periência de vida do outro” (QUEIROZ, 2019, p.83) – pelos estudos
morte significa que para que haja superação ou evolu- coletivos, em dias específicos, dos fundamentos do terreiro em que res-
ção se faz necessária a relação do homem com seu lado pectivo coletivo de médiuns trabalha, disponibilização pessoal para ex-
metafísico (DELFINO, 2016, p.51).   perimentações no dia a dia e rituais cotidianos. Aqui, vale ressaltar que
a afirmação de que “todos são médiuns”, pelo fundamento umbandista,
Sem conceber o universo como banhado pelo sagrado e que o
não implica na coerção para que a mediunidade seja sequer desenvolvi-
“segredo faz parte do universo tanto quanto o revelado” (OLIVEIRA,
da ou desenvolvida, necessariamente, nesses espaços. 
2003, p.18), como exemplo de demanda colonial que reduz o exercício
Contudo, uma vez que o sujeito escolhe compor uma corrente,
religioso como tamponamento da angústia (em vez de sustentação e tra-
necessitará conhecer os princípios litúrgicos e praticar cotidianamente
balho da angústia), destacamos o “racionalismo positivista” de Freud. O
a concentração e a sensibilidade em experimentações para além da téc-
“pai da psicanálise” aborda a religião a partir da dicotomização “real” e
nica. Para ogãs em desenvolvimento, por exemplo, é fundamental saber
“ilusório”, relegando a religião ao segundo como tentativa, desdobrada do
diferenciar cada um dos toques, mas sem a presença no “aqui e agora”
desamparo infantil, de sustentar o real insuportável. Felizmente, outras
na gira, os sons, do ijexá ao barravento, seriam opacos. O que se faria,
versões, de acordo com Filho (2020), como a de Lou Andreas-Salomé,
sem intuição, somente com a técnica, quando uma nova entidade se
reclamam a religião como “expressão de uma confiança inata na vida”,
apresenta e não é sabido qual ponto deve se tocar no atabaque?
sendo as ações mágico-religiosas realizadas com vistas a experimentar “a
A experiência de entrega durante uma gira, de oferendar-se, den-
felicidade e uma longa vida na terra’ (WEBER, 1995, p.145-146).
tro e fora do terreiro, disponibilizando tempo e abrindo-se para experi-
Os trabalhos de caridade nas giras que transformam encarna-
mentações para além do tecnicismo e da racionalidade colonial, sacodem
dos, ao receberem acolhimento e escuta, compartilharem angústias, re-
a concepção europeia hegemônica de religião como conjunto de tradições,
ceberem conselhos e, sobretudo, diretrizes para agência e mudança de
de crenças e de hábitos circunscritos em determinado espaço e tempo bem
posturas, por parte das entidades, além da reconfiguração do sujeito no
definido. Diferente das igrejas cristãs, por exemplo, que “separam da vida
trato consigo e com os irmãos da corrente e de fora dela, o reconheci-
profana o espaço sagrado - a igreja - Casa de Deus”, na cosmovisão africana,
mento e a valorização dos ancestrais e seu saber-fazer, por exemplo, em
o mesmo espaço pode expressar o tempo profano e o sagrado, sendo esta
disputas políticas, são sinônimos, nos terreiros de umbandas, do exer-
a manifestação dos rituais e atos iniciáticos. Esses tempos distintos não se-
cício religioso como engajamento no real, e não da defesa frente a ele. 
riam excludentes, mas a transmutação de um no outro, sempre interligados,
Nessas disputas de versões, por apresentar diversas noções dis-
assim como tudo na “teia de aranha” do universo (OLIVEIRA, 2003).   
tintas sobre subjetividade, corpo e identidade, por exemplo, desafian-
Nesse contexto, partindo da necessidade de descolonizar, in-
do limitações modernas-cientificistas da psicologia, frequentemente,
clusive (e sobretudo) a linguagem, proponho abordar os cultos afro-
os discursos religiosos são tratados no raso e não são explorados pelo
-brasileiros como “sistemas encantados de vida”. Não apenas em termos
profissional psi. Ou estes fecham a escuta atenta para significações má-
de impressões e sensações intensas ao participar das giras e suas celebra-
gico-religiosas, enquadrando essas narrativas apenas em seus quadros
ções da vida, como destaca o pai de santo e filósofo Rodrigo Queiroz
teórico-clínicos, ou recomendam um “trabalho espiritual” para sujeitos

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(2019), mas no encanto enquanto conjunto de fundamentos, práticas Havia outro corpo consigo, e o peso em seus ombros tornava-
e sensibilidades que (in)formam umbandistas ao se deslocarem princí- -se maior. Corpo esse, em especial, muito velho, muito sabido, muito
pios modernos-colonizadores, como a separação sentir/pensar, sujeito/ sobrevivente e que há muitos ajudou a sobreviver. O irmão tinha a hon-
objeto, mente/corpo, indivíduo/coletivo (PONTES, 2017).  ra de abrigar, por algum momento, todas as histórias de luta de um cor-
 Na contramão da mercantilização que subordina os seres, quan- po negro que liderou encarnados e ainda protegia desencarnados. Um
tifica dados e acelera o tempo, as descentralizações da figura do “eu”, que de seus braços estava para trás, imóvel. O outro, com a mão em forma de
“o evidenciam como algo que jamais será total, mas sim ecológico e ina- concha, estava tateando o ar, como a segurar uma bengala. 
cabado” (SIMAS & RUFINO, 2020, p.14), celebram a teia de conexões Meus olhos encheram d’água, quando os abri. No momento de
interdependentes e dinâmicas que é a vida, cruzando a dimensão mineral, maior sintonia, quando o cavalo recebia o guia, eu ainda estava com os
vegetal, animal em conexão com energias milenares e presenças ancestrais olhos fechados, com o corpo despensativo, confiando que as mãos, os bra-
em experiências singulares-coletivas para transformação de toda a corrente.   ços, as pernas, saberiam o que tocar e como tocar. Que meu rítmo fosse
Nesse caminho, mais interessante do que buscar uma defi- atabaque e o instrumento, não fosse uma extensão de mim, mas as pró-
nição para esse encantamento é compartilhar uma cena que expressa prias batidas de meu coração. Que a madeira, o metal e o couro fossem
um destes momentos em que nosso espírito científico se suspende meu corpo pulsando, ao ver, de olhos fechados, a imagem do velho que
em que a racionalidade científica respeita algo sagrado, delicado de- havia marcado algumas de minhas meditações antes de dormir: um se-
mais, que só se deixa sentir se muito mergulhado.  nhor negro retinto, com algumas manchas de idade na pele enrugada, de
No final de um sábado, a certa altura da gira, quando o guia cabelos e barba branca, trajando camisa de manga branca, calça de pano
chefe da Casa, falando pelo pai de santo, pediu para que eu repetisse um bege bem clarinho, com os pés descalços, uma bengala de madeira escura
formoso ponto da linha das almas para que um irmão, médium de incor- e o rosto carrancudo, não de raiva, mas de quem medita com seriedade. 
poração novo na casa, sintonizasse com a energia do preto-velho que nos Quando abri os olhos estava o médium-entidade, curvo, pro-
acompanhava, eu sabia que o guia se manifestaria em seu corpo. Certeza curando a bengala que eu não via, mas sentia. Em todo esse tempo, as
que não é lógica, encadeada por pistas, mas pela emoção de quem escuta, palavras saiam de minha garganta sem que fosse preciso pensar em cada
a passos distantes, alguém amado aproximando-se da porta de casa. Em estrofe da cantiga. Elas pediam para serem cantadas. Meu corpo pedia
toda gira, abrem-se várias portas, e, naquele momento, convidávamos o para ser ponto cantado. E aproveitando que eu era música, mas também
vovô a manifestar-se de uma maneira mais explícita para a corrente, para consciência, agradeci numa prece silenciosa pela chegada do guia. 
nos atentarmos a sua presença que descarregava nossos corpos e o espaço.      O encanto sentido nessa respectiva gira tem aproximações com
Minhas mãos passam a tocar com mais peso o atabaque, mas o experienciado em todas as outras e, de forma mais sutil, nas intuições
um peso que produz leveza, que traz um cheiro de cravo, rosa e flor e amparos do cotidiano pelas entidades, mas não é o mesmo. Defen-
de laranjeira, como na letra do ponto cantado. A medida que a cor- der a identidade da conexão com o divino, em detrimento da diferença,
rente cantava, o espaço ficava mais leve, como o brilho de uma casa alimentaria a tradução, pelo cientificismo, das giras e umbandas como
arrumada para receber alguém especial. Repetindo, cada vez com dogmatismo e a tradição como sinônimo de engessamento. 
mais vigor, com brilho nos olhos, o nome do preto-velho, o corpo O espírito científico – que, no período colonial, racializou-
do médiun começou a chacoalhar e encurvar. Ele estava apreensivo, -desumanizou todos os povos não europeus, negando-lhes uma alma
como compartilhou no final da gira, com medo de perder o controle – ainda hoje, a partir da colonialidade, sufoca as especificidades dos
sobre o corpo, que tanto aprendemos a buscar. O corpo dele foi en- conhecimentos dos encarnados com seus antepassados, guias e ori-
curvando na medida em que controle dava lugar à entrega, em que xás. Aglutinando como farinhas do mesmo saco, inclusive, umbandas,
medo abraçava a confiança naqueles que nos guiam.  quimbandas, cambindas, candomblés, catimbós, cabulas, xangôs, baba-

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çuês, parás, torés, pajelanças, linhas de mesa, tambores-de-minas, entre fico, nos terreiros, pelos próprios umbandistas, é, em grande medida,
outros cultos afro-brasileiros distintos (BASTOS, 1979).  efeito da “alienação mental” instaurada na e para colonização dos não
O esvaziamento das singularidades de cada um desses sistemas europeus. Captura pela vigência da colonialidade que ainda incita à
encantados e, em cada exercício, não reconhece a vida como potência predisposição dos colonizados para trilhar os passos mentais arquiteta-
criadora de diferir de si própria, em que o que se repete é a própria dife- dos pelo colonizador (PONTES, 2017).   
rença, que ao se repetir, difere de si própria. A repetição autêntica, defen- Muitos iniciados e, inclusive, dirigentes e intelectuais que ver-
dida na contemporaneidade por Deleuze (2018), que ao se vincular com sam sobre os fundamentos umbandistas, incorrem na armadilha colonial
o passado, o diferencia e cria algo novo, ressoa com a cosmovisão africana de tomar a valorização da umbanda que praticam pelo uso de termos con-
milenar que afirma os descendentes como protagonistas do tempo vivi- sagrados das ciências e ênfase do adjetivo “científico”. Como ilustração,
do: aqueles que, pelo respeito, culto e escuta dos ancestrais, abrirão cami- ao apostar na obtenção de resultados de curas de obsidiação, de forma,
nhos para tempos novos (OLIVEIRA, 2003). A tradição enquanto “fun- inclusive, mais rápida que o kardecismo, Neto (1967) afirma que, para
damento da atualização e novidade” é manifestada pelas vivências nas e descobrir e criar métodos que respondem a cada caso específico, é preciso
das umbandas, como esta experiência compartilhada de minha deitada.  um conjunto de observações e investigações que denomina de “ciência”. 
O preto-velho dirigente da Casa havia solicitado que eu, o ogã Nessa direção, vale pensar na reivindicação do uso de substan-
apontado, o cambone em formação e outra irmã da corrente, fôssemos tivos como “método”, “resultado” e “ciência” com a intenção de conferir
devidamente iniciados. A tradição de 24 horas em silêncio, em estado robustez para determinados saberes-práticas em detrimento de outros.
de atenção deitado sobre um pano branco, tomando, em intervalos, ba- Ao serem secundarizados e deslegitimados pelos experts, reproduzindo o
nhos de ervas dos orixás, em jejum, foi construída como menos do que problema representacional, o umbandista afirma: “minha fé pode não fi-
um dia, já que a irmã morava longe, e com alimentação singela de uma gurar no hall das ciências, mas, dentro do quartinho das religiões, é a mais
sopa rala, para que a fome não fosse um problema. Assim como o preto- científica”. Contudo, reclamar a fé como desveladora dos mistérios não se
-velho não achou que fosse necessária a obrigação de deitar no chão, no alinha aos ensinamentos dos guias que nos convocam a saber pelo sabor,
caso dela, devido a problemas de peso, dores nas articulações.  produzir conhecimento pela agência e sensibilidade, a ensinar-aprender
Ele não via problema dela, em sua condição singular, deitar em um com vistas ao aprimoramento singular-coletivo, e não a formular um qua-
sofá coberto pelo pano branco. Eu e o cambone, jovens e sem problemas de dro explicativo total de cada e todo elemento no universo. 
mobilidade, no chão. Com isso, o guia chefe da casa apontava o respeito Ávidos pela legitimação das (in)formações de terreiros, umban-
pela singularidade de cada irmã(o), já que, em seu entendimento, o objetivo distas podem reclamar o vocabulário científico sem interrogar seus concei-
do ritual se mantinha: um tempo de entrega, sensibilização-reflexão, sem tos-chave. O que seria fundamental, uma vez que um exame crítico das afir-
pressupor desconfortos e sofrimentos que podiam ser contornados.  mações científicas racionais conduz, em última instância, para um domínio
imaterial ou metafísico, segundo Jung (1983). Dessa maneira, a potência da
De farinhas do mesmo saco a panelas encantadas de vida  noção de “força” na física, na psicologia ou na cosmovisão africana – como
“a própria manifestação do sagrado que sustenta o universo e permeia a re-
O sufocamento dos cultos afro-brasileiros dentro de um mes- lação entre os homens e entre eles e a natureza” (OLIVEIRA, 2003, p.20-
mo saco, por sua vez, perpetua-se entre cada um desses sistemas encan- 21) – não está em sua definição, na captura conceitual, mas na abertura, nas
tados de vida. O problema mal colocado (e desonesto) da origem do possibilidades dos processos que ela condiciona. 
conhecimento verdadeiro, cumulativo e linear, bem como sua represen- As experiências ritualísticas e iniciáticas das umbandas são
tação fidedigna, é capilarizado para espaços não acadêmico-científicos pontos de inflexão na crítica ao modelo computacional, que defende a
de produção de modos de saber-fazer. A reprodução do espírito cientí- realidade como a ser processado internamente a partir de informações

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externas, culminando em representações e definições mais ou menos de algo conhecido - e alegoria - paráfrase ou transformação proposital
precisas, a depender do estado e (da falta) de déficits do sistema de de algo conhecido -, o simbólico expressa sentidos mais amplos e pro-
processamento cognitivo do sujeito. fundos do que podemos interpretar ( JUNG, 2016).
Durante meus breves banhos na deitada, em que eu jogava do A busca pela origem, de forma mais ou menos sutil, também
pescoço para baixo, a água morna com uma planta específica, era evoca- aparece nos terreiros, como extensão do problema computacional
da certa vibração energética de um(a) orixá. Mais do que isso, a planta colonial. Nesse contexto de frequente esvaziamento da polifonia das
era a(o) própria(o) orixá, e seu contato com a pele, o tato, o cheiro, a tradições umbandistas, das práticas e dos discursos de cada terreiro,
visão, o som do banho, assim como as sensações - de limpeza, leveza, podemos citar, a partir das falas de Benjamim Figueiredo[*], a defesa
proteção, segurança, fortificação, alegria, amorosidade, gratidão, entre de que a Umbanda seria originária da Atlântida[**] ou Lemúria[***]. Am-
tantas outras - mais do que representar o orixá, eram o orixá.  bas as origens funcionariam para “justificar uma suposta superiorida-
Essa sensibilidade para atenção à própria carne durante o banho, de da religião” (SILVA, 2019, p.19), em detrimento de outras versões
não dispensava rezas faladas ou cantadas. Demandava acolhimento e re- que destacam a ancestralidade africana, como a derivação etimológica
flexão sobre os sentimentos provocados, bem como as cenas, os pensa- de “Umbanda” a partir da palavra bantu “Nbandla” - “a congregação
mentos, visões e audições recebidos do astral para que se reunisse elemen- mais antiga” -, entre 1850 e 1913. Anteriormente ao que Barbosa
tos sobre cada orixá e sua emanação, sem vistas a um quadro definitivo.  (2008) chama de Umbanda Empretecida - 1913 a 1960 - e Umbanda
Qualquer contorno sobre Xangô, suas aproximações e diferen- Embranquecida - 1960 a 1990.
ciações vibratórias com outros orixás não cabem em palavras. Pai, pedrei- Ainda sobre as tentativas de unificar as controvérsias em torno
ra, fogo e trovão ou “meu protetor”, “kabisilé”, “oba ko so”, “a lei da terra”, da origem das umbandas, não se pode deixar de mencionar que o mito
“justiceiro da nação nagô”, como canta Salgueiro[*], serão eternamente in- fundador de Zélio Fernandino de Moraes estaria para os terreiros, assim
suficientes para apontar uma dimensão da vida, pois se trata disso: cada como a Revolução Científica estaria para as ciências. Aqui, não se trata
orixá, desdobramento de Olorum - Olodumaré, Tupã, Zambi ou Deus de questionar a veracidade do famoso caso[****] conhecido pela maioria
-, a força criadora de tudo, é uma dimensão da vida, maior do que tudo, de umbandistas, mas tomar o episódio como uma certa visibilização e
transgressora de qualquer tentativa representacional, sobretudo, racional.  organização dos exercícios praticados nas distintas regiões do país e que
Todos os adjetivos e substantivos que se possa dar a Xangô, Ye- viriam a proclamar-se como práticas umbandistas (QUEIROZ, 2019).  
manjá, Oxalá, Oxum, Oxumaré, Iansã, Oxóssi, Ogum, Nanã, Omolu e Por um lado, legitimar a anunciação do Caboclo das 7 Encruzi-
todos aqueles que sua casa celebra, são, antes de tudo, convites para que lhadas, não como o nascimento do trabalho de caridade, mas pelo enfren-
o sujeito busque conhecer e se conectar com a(o) orixá. Pontes para que tamento e evidenciação das insatisfações de (des)encarnados com o elitis-
se deixe sentir as diferentes energias que (in)formam a tudo e a todos.    mo e racismo do kardecismo ortodoxo de matrizes europeias. Por outro,
Tratando-se da fruição das plurais vibrações em distintos ar- sem deixar de reconhecer mudanças nas mesas espíritas e sua polifonia
ranjos, as forças divinas não devem ser escalonadas como representa- com o passar do tempo, relegando o preconceito com corpos e saberes ra-
ções mais ou menos corretas. No limite, humildemente, os elementos li-
túrgicos e contornos discursivos sobre os orixás e entidades respondem [*] Fundador da Tenda Espírita Mirim, sob orientação do Caboclo Mirim.
à dimensão simbólica, que manifesta a combinação entre uma parte co- [**] Continente mitológico de lendas gregas antigas referenciadas por Platão.
[***] Continente localizado no Oceano Pacífico que teria desaparecido há milhares de
nhecida - um aspecto que a consciência possa identificar - e uma parte anos, segundo versões do século XIX.
misteriosa. Diferente de semiótica - analogia ou designação abreviada [****] Na Federação Espírita de Niterói, em 15 de novembro de 1908, o Caboclo das 7
Encruzilhadas, falando por meio de Zélio, anunciou que, no dia seguinte, daria início a
uma religião em que caboclos e pretos velhos, espíritos até então considerados “atrasa-
[*] Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro: Samba-Enredo dos”, falariam aos humildes, “simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os
“Xangô”, 2019. irmãos, encarnados e desencarnados” (SILVA, 2019).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES INCORPORANDO O ESPÍRITO CIENTÍFICO

cializados apenas para outros exercícios religiosos, livrando umbandistas banda de Almas e Angola e Umbanda Sagrada, para citar algumas[*]
de avaliarem suas posturas e o posicionamento de seu terreiro.  - expressaria uma tradição singular, também em minúsculo.
A partir disso, não se trata de deslocar, com toda a arbitrariedade Nessa direção, é preciso, para além de ratificar o caráter de
que a definição de um marco implica, a origem das umbandas para outro sarapatel, destacar a dimensão de fractal das umbandas: cada um dos
médium, falangeiros, locais e datas que manifestaram práticas que hoje cultos que compõem as vertentes é composto, por sua vez, de diferen-
significaríamos como umbandistas, mas destacar, por exemplo, que antes tes versões em cada terreiro, sem que se chegue em mínimo divisor
da “anunciação da umbanda” pelo Caboclo 7 encruzilhadas, “o fenômeno comum isento de controvérsias. Fractalidade também verificada nos
da aparição de índios e pretos velhos em centros espíritas e casas de benze- demais sistemas encantados de vida.
deiras já era comum”, tendo o próprio Zélio consultado, algumas vezes, o Por mergulhos sucessivos, podemos partir dos cultos-afro-
espírito Tio Antônio pela curandeira Dona Cândida (SILVA, 2019, p.18).  brasileiros, adentrar os cultos de nação, para nos deparar com os
A incapacidade de precisar um evento - ou melhor, conjunto candomblés nagôs condicionados pelo tronco linguístico-cultural
de eventos - durante um período determinado, que teria marcado um Níger-Congo - abrangendo a região yorubana e bantu -, em inter-
novo sistema encantado de vida compõe os mistérios desse próprio sis- câmbio com seus troncos vizinhos Afro-Asiático, Nilo-Saariano,
tema. É isso que Simas (2020) aponta quando reconhece o Caboclo das Khoisan e Austronesian (GREENBERG, 1966).
7 Encruzilhadas, falando por meio de Zélio, como o provável codifica- Sendo essa formatação dos troncos-linguísticos apenas uma
dor mais famoso da história das umbandas, mas não o único. Apontan- versão em meio a outras organizações das “comunalidades cultu-
do que “o buraco é mais embaixo”, continua: rais”: filosofias e hábitos incorporados, não essencialistas, na me-
dida em que o que preservam atualmente, no continente africano e
A umbanda é um sarapatel que mistura ritos de ances-
tralidade dos bantos, calundus, pajelanças indígenas, na diáspora, não é uma interioridade abstrata encontrada em cada
catimbós (o culto de origem tapuia fundamentado na pessoa negra, mas transmissões de relações concretas com o outro e
bebida sagrada da Jurema), encantarias, elementos do a comunidade. Comunalidades, como afirma Nogueira (2014), que
cristianismo popular, do candomblé nagô, das magias e
dos sortilégios de ciganos, mouros e judeus, e do espiri- não são isentas de contradições e de pluralidades em função de diá-
tismo kardecista europeu (SIMAS, 2020, p.37). logos e conflitos com outras matrizes culturais.
Desse modo, após adentrarmos as “cozinhas dos laborató-
A partir do contato com esse sarapatel, não é possível falar rios” e experimentarmos o sarapatel fractalizado dos sistemas encan-
em maior ou menor aderência em relação à tradição, mas das práticas tados de vida, podemos explorar as umbandas, por exemplo, como
de determinado terreiro em relação às conduzidas pelos pais e mães panelas produtoras de saber pelo sabor. Fé que não espera a refeição
de santos antecedentes que educaram a(o) nova(o) dirigente (QUEI- ser preparada sozinha e, muito menos, estar pronta em minutos.  A
ROZ, 2019). Dessa maneira, não existiria a Umbanda, mas umban- ação de cozinhar que demanda agência do sujeito e experimentação
das, em minúsculo, alinhadas com a humildade - valor que atravessa junto a elementos vegetais, minerais e animais, humildade para ins-
a polifonia dos terreiros - de reconhecer a organização e mobilização truir-se com quem mexe os ingredientes há mais tempo e ensinar-
singular de modos de saber-fazer espaço-temporalmente distintos -aprender em um processo gradual sem vistas a acabar, já que o fogo
pela mãe ou pai de santo orientada(o) pelo espírito responsável da da panela é o que aquece todos os seres envolvidos. 
Casa. Dos povos do tronco linguístico-cultural Niger-Congo, como Assim, é possível alterar o movimento de mexer a panela, a or-
aponta Greenberg (1966), aos espíritas franceses. Assim como cada dem de alguns elementos, acrescentar outros temperos, a apresentação
vertente de umbanda - Umbanda Branca, Umbanda Esotérica, Um-
banda de Pai Guiné, Umbanda Popular, Umbanda Omolocô, Um- [*] Para um primeiro contato com cada uma das vertentes mais conhecidas, segundo
Douglas Rainho, consultar: https://perdido.co/2018/05/vertentes-de-umbanda

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES INCORPORANDO O ESPÍRITO CIENTÍFICO

do prato, mas não se pode subtrair  ingredientes fundamentais sem a desvelamento de uma origem, mas pela prática de um trabalho, que en-
descaracterização do gosto umbandista. Dentre tais ingredientes, pode- volve entrega, vínculo e esforços para transformar - e ser transformado -
mos citar: a) o desenvolvimento das mediunidades distintas, pelos estu- muitos irmãos e irmãs que necessitam de cuidado e aprendizado. Como
dos e experimentações; b) a presença de, pelo menos, um(a) médium de se ouve muito nas giras, “as entidades querem trabalhar”, independente
incorporação no terreiro, já que qualquer ritual umbandista acontece da tradição umbandista em que porventura o médium se lance, acom-
para manifestação dos espíritos de luz em nosso plano; c) a magia, en- panhando-o se houver uma mudança de terreiro e respeitando o enten-
quanto mobilização de elementos vegetais, minerais e animais, a partir dimento próprio de cada espaço sobre os fundamentos da fé. 
de uma intenção de limpeza, cura e vitalidade, entre outros, pelo con- Em vez de incorporar o espírito científico e defender a Um-
junto de (des)encarnados da corrente (QUEIROZ, 2019). banda - cuja origem inequívoca seria durante uma sessão espírita de
Tudo isso guiado pela ética da caridade, fundamentada, gros- fundamento europeu - como “religião tipicamente brasileira”, apagando
so modo, pela não-mercantilização dos trabalhos dentro dos terreiros carnes, histórias e saberes afro-brasileiros, este trabalho convoca um-
e, para além das giras, no cuidado do outro como cuidado de si e no bandistas a escutar um Samba-Enredo da Mangueira[*], questionando
acolhimento que busca aprender junto aos demais, em detrimento do “quem pintou essa aquarela” e não se esquecendo “de quem construiu as
corriqueiro julgamento apressado e punitivista.  riquezas de nosso Brasil” e dos fundamentos de nossos terreiros.
As panelas das umbandas, ao cozinhar princípios e práticas
Considerações finais para inícios do descarrego pela valorização e celebração de conhecimentos não científicos, pro-
duzem um descarrego colonial, cantando para o espírito científico su-
Contrários à advertência da impossibilidade de discutir sobre bir. Enfrentamentos que enfeitiçam, inebriam e criam sentidos outros
Deus pelo pensamento racional e de que a psicologia não se interessaria para a realidade, de acordo com Simas e Rufino (2020), convidando o
e ocuparia em provar “verdades metafísicas” dos pressupostos religiosos campo psi a perceber e interromper colonizações das umbandas e dos
( JUNG, 2018), tentativas de valorizar a própria fé, cientifizando o divi- demais sistemas encantados de vida.  
no, perseguindo uma origem idílica e menosprezando outras tradições, Às voltas com o racismo estrutural (ALMEIDA, 2018), reco-
esvaziam a riqueza polifônica dos terreiros.  Colonizações, nas umban- nhecer que a psicologia, muitas vezes, atua como saber moderno-colo-
das, que apagam a historicidade da racionalidade científica ocidental nial que produz instrumentos para naturalizar normas e padrões emba-
como construção localizada e interessada, braço direito da dominação sados em princípios discriminatórios de raça, é o primeiro passo para
e exploração do “colonizado” sobre o “primitivo”, do masculino sobre o quebrar demandas e desobsessões científicas que ainda sufocam (des)
feminino e do adulto sobre o infante.  encarnados e afirmar a vida que gira dentro e fora dos terreiros. 
Na contramaré das Grandes Navegações, que apresentam a ciên-
cia como conhecimento verdadeiro, fidedigna representação do mundo, Referências Bibliográficas
definido outras interpretações e engajamentos no/com o mundo como
frágeis castelos de areia, essas linhas se encantam com Exu: orixá mensa- ANDERSON, L. Analytic Autoethnography. Journal of Contempo-
geiro, senhor dos caminhos, da comunicação e da controvérsia. Esta não rary Ethnography, v. 35, 2006.
sendo negativada e descartada pelas cosmovisões africanas, que estão para
ALMEIDA, S. O que é Racismo Estrutural? Belo Horizonte: Letra-
além de maniqueísmos da tradição judaico-cristã, em que o branco domi-
mento, 2018.
nou o preto, para que os discursos parecessem preto no branco.
Como nos ensinam os exus, as pomba-giras, pretos e pretas-
[*] Grupo Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira: Samba-Enredo
-velhas e todos os guias nas umbandas, a necessidade não deve ser pelo “100 anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?”, 1988.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES INCORPORANDO O ESPÍRITO CIENTÍFICO

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Na segunda metade do século XIX, a ocupação de pessoas de
WEBER, M. Économie e société. v. 1. Paris: Editora Plon, 1995. cor na Corte era saliente. Com o grande número da população negra,
a necessidade de obter um controle sobre ela também crescia. Como
instrumento do governo, para manter um controle social e a ordem,
era utilizada pela polícia a repressão e a opressão. Segundo Grada
Kilomba, a opressão forma as condições de resistência (KILOMBA,
2019, p. 69). Tal resistência fora desenvolvida pelos escravizados, li-
vres e libertos nas áreas urbanas e semiurbanas do Rio de Janeiro.
Nas ruas da Corte, africanos e seus descendentes construíam
espaços onde conseguiam praticar e preservar suas culturas. Um dos
locais destinados à solidariedade e à sociabilidade de escravizados,
libertos e livres, alcunhava-se casa de “dar fortuna”. Investida pela
brutalidade, a Polícia da Corte estava presente nesses lugares, nas úl-
timas décadas do século XIX. As pessoas que frequentavam eram en-
tão presas, e os objetos que lá estavam eram apreendidos. Símbolo de
religiosidade, identidade e resistência negra, as casas fazem parte da
história carioca e, por infelicidade, e doses intensas de violência poli-
cial, permitiram que africanos e descendentes tivessem suas histórias
ressignificadas, guardadas e expostas em um museu científico.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

Neste trabalho, aprenderemos mais a respeitos desses recintos O desconforto e o desprezo no relato são evidentes. A no-
e dos objetos que pertenciam a esses lugares. Para isso, dividiremos este tícia revela que o público das casas não era exclusivamente negro.
artigo em duas partes: na primeira, analisaremos os documentos da im- Isso nos permite considerar a presença de pessoas brancas, da boa
prensa, assim como parte da historiografia a respeito dos locais e das sociedade, constituída, por livres e proprietários de escravizados no
religiosidades afro-brasileiras no século XIX. Com isso, mostraremos lugar. Quando fala sobre a dança em torno de ídolo, o articulista
um pouco do que eram esses espaços e como as autoridades policiais e ainda sugere que ali realizavam práticas religiosas.
os intelectuais, no caso o diretor do Museu Nacional, com o auxílio da Entre as muitas descrições e definições encontradas, havia tam-
imprensa, os julgavam. Já na segunda parte, iremos abordar as diversas bém aquelas mais perversas: “Ora aqui para que servem as casas de dar
ressignificações que os objetos apreendidos nas casas de “dar fortuna” fortuna! Para darem com uma pessoa no xilindró” (Gazeta de Notícias,
sofreram ao longo dos séculos. Nesse trecho iremos também analisá- 29 de novembro de 1875). A insatisfação com a existência dos recintos
-los, com base no significado atribuído a eles pelo Candomblé, nos dias estava presente na maioria das publicações, junto ao preconceito, ao
atuais, por razões que serão discutidas mais adiante. desprezo, e à marginalidade com que eram tratadas as casas.
O primeiro periódico e oficial da Corte, Gazeta do Rio[*], apre-
Significados das casas de “dar fortuna” senta-nos a visão de como a “população moralizada e sã” do Rio de Ja-
neiro lidava com a existência delas:
Ao folhear as páginas dos principais periódicos cariocas, en-
Se o honrado e enérgico Sr. desembargador chefe de
tre as décadas de 1850-1890, constatamos um considerável nível de polícia empregar o – arbítrio bementendido com as ca-
interesse dos redatores em levar os casos que abrangiam tais recintos ao sas de dar fortuna, - ocupadas por negras minas, e coutos
conhecimento público. Entre as notícias, encontramos visões e versões passageiros, mas muito perigosos, de escravos e libertos
recentes e gente ignorante e de maus costumes, merece-
sobre o que poderia ser uma casa de “dar fortuna”, além da noção de rá as bênçãos da população moralizada e sã d’esta gran-
frequência das batidas policiais realizadas nesses espaços. As informa- de capital (Gazeta do Rio, 26 de setembro de 1879).
ções contidas nestes relatos eram distintas, entretanto, em todas elas,
era percebida a violência contra a cultura afro-brasileira. Nesta publicação, encontramos mais uma associação à imora-
Era possível identificar a prisão de pessoas que estavam nestes lidade nesses recintos. Obtemos uma informação que até então não era
espaços e também a apreensão de objetos. Ambos os aprisionamentos notada. Este redator relata que tipo de gente poderia ser encontrado nas
refletiam o sentimento de que as autoridades tinham de dizimar os casas. Era uma “gente perigosa” e, sobretudo, negra. Mais que retratar uma
recintos e, consequentemente, a cultura e religiosidade das pessoas ação policial, esta notícia indica que os espaços “mereciam bênçãos de uma
de cor. Afinal, sem frequentadores e sem objetos de culto, as práticas população moralizada”. Deste modo, fica perceptível a insatisfação do re-
culturais não poderiam ser realizadas. dator com aquilo que era praticado nestes lugares, além do menosprezo
Já em 1857, O Correio da Tarde[*], anunciava que: com seus praticantes. Suponho que pensava o autor que a moralidade e
a sanidade poderiam salvá-los dos “perigos” de uma casa de “dar fortuna”.
(...) tais espeluncas existem aí por toda a cidade; e, for-
çoso é confessá-lo, não é a fortuna o seu forte, nem são A moralidade fazia parte das disputas políticas do cotidiano
os pretinhos os únicos frequentadores. Aí aparecem al- do Rio de Janeiro. Com base na religiosidade oficial da Corte, o ca-
guns devotos dançando em roda do ídolo, e... Por crédi- tolicismo, a moral era um pilar central na visão daqueles que estavam
to da civilização e por amor aos bons costumes pedimos empenhados em construir uma nação. Ela era fundamental para a cons-
o completo extermínio destas práticas imorais (Grifo
deles) (O Correio da Tarde – 10 de fevereiro de 1875). tituição de uma boa sociedade. Segundo o historiador André Castanha:
[*] Assim como o Gazeta de Notícias e os demais, faz parte dos periódicos que serão analisados
[*] Um jornal político, literário e comercial, que circulou no Rio de Janeiro no século XIX. ao longo deste artigo. Todos eles circulavam nas ruas cariocas nas últimas décadas do século XIX.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

Toda a ação individual ou coletiva que entrasse em da diretamente ao dinheiro[*]. Para melhor entendimento, é necessário
confronto com a autoridade, ou com a ordem estabe- olhar um pouco para o outro lado do Atlântico.
lecida, era um ato imoral, portanto, considerado uma
afronta à Nação merecendo, assim, uma ação enérgica Durante o tráfico de escravizados, muitos africanos da África Cen-
do Estado7 (CASTANHA, 2007, p.3). tro-Ocidental[**] vieram ao Rio de Janeiro, e um dos complexos utilizados
por eles, em suas religiões, reverberou nas casas cariocas. De lá do Atlântico,
Era essa ação enérgica do Estado que impulsionava as ações po- esses mesmos africanos, apesar de inúmeras religiões, tinham uma crença de
liciais. A década de 1880 foi a mais repressora nestes espaços. Contudo que se baseava no mesmo princípio, ligado ao complexo de “ventura e des-
também nos faz imaginar que essa intensidade pode ter sido causada ape- ventura”[***]. Por exemplo, para alguns povos, os ancestrais tinham um papel
nas pelo maior interesse dos redatores nestes casos. Ou ainda, que esse nú- de destaque na religião, enquanto outros atribuíam maior importância aos
mero é condizente com o intenso debate abolicionista que era estabeleci- “espíritos da natureza”. Contudo, tanto os ancestrais como os espíritos de-
do e que ganhava forças no país e principalmente na Corte neste período. sempenhavam papéis semelhantes no que diz respeito ao complexo “ventu-
O controle sobre a população negra e não-civilizada não caberia ra-desventura” (CRAEMER; VANSINA; FOX, 1976, p. 463).
mais aos senhores, e sim ao governo imperial e às autoridades policiais, o Vamos concordar com Robert Slenes (2011) quando diz que a
que poderia aumentar a repressão nas casas de “dar fortuna”. Nas últimas ideia de ventura se estabelece em torno da caracterização do universo pela
décadas do Império, houve um aumento na perseguição às práticas da po- harmonia, pelo bem-estar e pela saúde, e que o desequilíbrio, o infortú-
pulação mais pobre e negra. Esse movimento se dava em decorrência da nio e a doença são causados pela ação malévola de espíritos ou pessoas
postura de intelectuais, médicos, literatos, com o intuito de “moralizar e através da feitiçaria (SLENES, 2011). Está aí a desventura. Do lado de cá
civilizar, de acordo com padrões burgueses europeus, os trópicos consi- do Atlântico, a escravização e suas mazelas eram certamente os casos mais
derados bárbaros, atrasados e dominados por superstições e crenças atra- extremos de infortúnio. Se nesse complexo herdado da África de “ventura
sadas” (SAMPAIO, 2000, p.249). Apesar de diferentes hipóteses, uma e desventura” o principal objetivo seria evitar o infortúnio e maximizar a
questão é irrefutável: a existência de repressão nestes espaços. boa fortuna, torna-se possível estabelecer uma relação entre tal objetivo e
No Pharol,[*] encontramos nova publicação, desta vez mais di- a denominação dos espaços onde eram realizados rituais religiosos afro-
reta sobre uma possível definição destes espaços: “(...) a tal história do -brasileiros na Corte, as chamadas, casas de “dar fortuna”.
candomblé, que, se o leitor não sabe, pode ficar sabendo: é o que se chama Após analisar algumas das notícias encontradas nos periódi-
casa de dar fortuna” (Pharol, 22 de novembro de 1885). Acredito ser esta cos do final do século XIX, podemos notar que a presença das casas
a única das páginas cariocas do período que trata a definição de forma es- de “dar fortuna”, na Corte, incomodava. Muitos eram os apelos de
pecífica e aproxima os termos “candomblé” e casa de “dar fortuna”. Ainda intervenção das autoridades policiais nestes lugares tão multímodos,
sobre a relação entre as casas e o Candomblé, podemos ver outro estrei- marcados pela sociabilidade, solidariedade e religiosidade negra. O
tamento entre as duas quando Bamboxê Obitikô[**], um dos personagens desconforto vigente ia da ameaça que os recintos possibilitavam ao
mais destacados da história do Candomblé, é detido na Corte em um poder da Igreja Católica sobre o regime monárquico até o confronto
desses espaços em 24 de agosto de 1886 (CASTILLO, 2016, p.139). com a moralidade, os bons costumes e a ordem da cidade.
Depois de vermos o que achavam os redatores sobre as casas, Quando se trata das práticas religiosas africanas, é certo afirmar
tentaremos então compreender o significado do nome desses espaços que elas não eram proibidas no período Imperial. Segundo o Código
tão citados nas páginas da imprensa. A fortuna aqui tratada não era liga-
[*] Por isso, foi escolhido o uso de aspas ao tratar do local, na tentativa de desvencilhar
da imagem do dinheiro.
[*] Periódico fundado em 1866, na cidade de Paraíba do Sul, estado do Rio de Janeiro, [**] Abarcavam Norte de Angolae Zâmbia, República do Gabão e parte dos Camarões,
que posteriormente foi transferido para Juiz de Fora. incluindo a República Democrática do Congo.
[**] Era Babalaô e sacerdote de Xangô. Era considerado um ancestral de um dos terrei- [***] O complexo de “ventura e desventura” pode ser melhor entendido em CRAE-
ros mais famosos da Bahia, o Ilê Axé Iyá Nassô Oká. Cf. CASTILLO, 2016. MER;VANSINA; FOX, 1976.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

Criminal do Império de 1830, não deveriam ser considerados crimino- nem status e muito menos poder. Quando uma dessas pessoas que consti-
sos “aqueles que fizerem análises razoáveis dos princípios e usos religio- tuíam tal “classe inferior”, sendo ela escrava ou livre, quebrava as regras do
sos” (BRASIL, 1830). Afirmava ainda que ninguém poderia ser perse- comportamento público que eram aceitáveis pela alta sociedade, podia es-
guido por motivo de religião, uma vez que respeitasse a do Estado e não perar o confronto de instituições de repressão, como a polícia, criada pela
ofendesse a moral pública (BRASIL, 1830). Outra parte do mesmo do- elite, para mantê-las dentro de determinados limites (HOLLOWAY, 1997).
cumento informa que seria crime celebrar em casa ou edifício, que tenha Distante da negociação, o objetivo claro da ação da polí-
alguma forma exterior de templo, ou publicamente em qualquer lugar o cia através de ações impostas por ideais da elite, era o controle sobre
culto de outra religião, que não seja a do Estado (BRASIL, 1830). a maioria, composta por negros, escravizados e pardos, de forma que
Pode-se dizer que, nesse período, havia sim certa liberdade reli- a minoria elitizada permanecesse com o controle do poder e o domí-
giosa na Corte, desde que não fossem em locais públicos ou em lugares nio sobre aqueles que eram entendidos como “inimigos inconciliáveis”
que tivessem a arquitetura similar à de uma igreja. Porém, reforça-se a (MATTOS, 1987, p. 14). A presença dos negros na Corte e o seu “mau
ideia de que essas religiões não poderiam ofender a oficial da Corte, a comportamento”, faziam da cidade “impura, viciada, desconhecida,
moral e os bons costumes. Entretanto, segundo os textos dos redato- contrateatro de personagens perigosas” (CHALHOUB, 1988, p. 87).
res do Rio de Janeiro, toda aquela imoralidade, o cinismo, o crime e a
devassidão eram promovidos nos espaços onde negros poderiam, entre Apreendidos, invalidados e ressignificados:
tantas coisas, acobertar e esconder escravizados fugidos, lavar dinheiro, os objetos de “dar fortuna”
produzir perigosas epidemias e, por isso, deveriam ser controlados.
Era o medo do feitiço, da desordem social, da ameaça à moral e aos Após discorrer sobre a crueldade sofrida pelos frequentadores
bons costumes, de tudo aquilo que fugia do controle da polícia, do controle das casas de “dar fortuna” e, consequentemente, pelas práticas religio-
dos brancos, que os assombravam. Tais medos podiam ser considerados uns sas afro-brasileiras, é importante notar o destino dos objetos que foram
dos principais motivos que faziam com que estas casas fossem perseguidas apreendidos nesses recintos. Como foi noticiado pelo Gazeta da Tarde,
pela polícia. Era essa repressão que tentava impedir os africanos e seus des- em 01 de fevereiro de 1883, todos os objetos eram levados a um depósi-
cendentes de terem a liberdade de realizar suas práticas e costumes. to - certamente falavam do depósito da Polícia da Corte.
Sobre o medo da elite a respeito dessa classe marginalizada e Sabendo da permanência deles sob guarda da instituição po-
suas práticas, o historiador Luís Alberto Couceiro afirma: licial, Ladislau de Souza Mello e Netto[*] atribui a eles um novo sig-
nificado. Segundo documentação, Netto acreditava que esse material
segundo nossas pesquisas, a prática da feitiçaria e nem
mesmo a acusação de feitiçaria faziam parte do Códi- seria de grande importância para os desenvolvimentos da Ciência no
go Criminal do Império. Lembremos que a acusação Brasil e, por isso, os considerava de “grande interesse etnológico” (BR.
de feitiçaria é uma acusação de natureza moral, e que, MN.RA.7.D7 p. 154 – 23.08.1880). Certamente a Secretaria de Polí-
no bojo de um processo criminal, entra na esfera jurí-
dica pelo entendimento do que era um comportamen- cia da Corte viu, no apelo do intelectual, uma forma prática de se livrar
to negativo ou positivo por parte do Estado imperial daqueles objetos. A situação em que fora colocada o chefe da polícia
brasileiro. Para tanto, a elite senhorial devia acreditar pelo cientista alagoano era favorável. A Polícia da Corte manteria uma
na existência da feitiçaria, ao menos em sua eficácia boa relação com um intelectual renomado e com a instituição que fir-
(COUCEIRO apud SANTOS, 2013, p. 06).
mava fama internacional, o Museu Nacional, e, principalmente, dispen-
Conforme já foi notado, para a elite e membros da boa sociedade, saria todas as “bugigangas” (Gazeta da Tarde, 09 de maio de 1881).
essa “classe inferior”, que surgia com o aumento da população negra livre e [*] Alagoano, botânico, diretor do Museu Nacional entre 1874-1893. Ladislau Net-
liberta, era possuidora de valores totalmente negativos, não tinham riquezas, to, além de abolicionista, namorava com as teorias raciais e o darwinismo social. Cf.
CABRAL, 2017.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

Entre os anos de 1880-1887, após apelo do diretor do Museu diretor do Museu Nacional permitiram que os objetos fizessem parte de
Nacional, este material foi enviado ao museu. De acordo com a do- uma coleção e posteriormente se tornassem objeto(s) de estudo.
cumentação trocada entre Ladislau Netto e a Secretaria de Polícia da A coleção intitulada Polícia da Corte[*] tinha, aproximadamente,
Corte, os objetos pertenciam aos praticantes de rituais estabelecidos setenta peças, entre elas encontravam-se flechas, argolas, tambores, armas,
nas casas de “dar fortuna” (CORRESPONDÊNCIAS ENVIADAS colares, pentes e fetiches[**]. Tais objetos fazem parte da história da repressão
AO MUSEU NACIONAL). Em decorrência da truculenta repres- à cultura negra, na cidade do Rio de Janeiro, no final do século XIX. São
são policial nestes espaços, os objetos foram usurpados de seus donos coisas que foram apreendidas violentamente de seus donos num período
e assim caminharam para outro passo de sua história. Conforme as em que o Brasil caminhava para a abolição. Aqueles objetos que eram con-
ações da Polícia da Corte, havia motivos para que esses objetos fossem fiscados no intuito de impedir que as práticas das casas de “dar fortuna”
apreendidos. Frente a todos os medos que uma casa de “dar fortuna” perdurassem, faziam parte da cultura material dessa gente oprimida.
era capaz de causar, acredito que prender essas coisas era mais uma Para analisar brevemente as peças, será necessário dialogar com a
das formas de impedir que aqueles locais permanecessem em funcio- significação e utilização de objetos manuseados em rituais de Candomblé
namento. Tomar o objeto sagrado seria um jeito eficaz para extinguir nos dias de hoje. A historiografia que retrata o uso e significado de obje-
traços significativos da cultura africana e afro-brasileira. tos nos rituais das casas de “dar fortuna” é desconhecida, ou até mesmo
Quando analisa uma das batidas policiais ocorridas nas casas inexistente, e, por isso, é válido assumir o risco da comparação entre eles.
de “dar fortuna” no Rio de Janeiro, Eduardo Possidonion nos mostra O médico e antropólogo Nina Rodrigues, considerado o primeiro
que objetos apreendidos ficaram no edifício da polícia para serem quei- etnógrafo do Candomblé pelo geógrafo e historiador Roger Sansi possuem
mados (POSSIDONIO, 2015). Essa informação nos permite supor trabalhos que nos proporciona conteúdo sobre objetos africanos, mas já no
que, para a polícia, estes objetos não teriam outro significado. Deste século XX (RODRIGUES, 1904; SANSI, 2013). Em detrimento disso, o
modo, foram extintos de valor e deveriam ser destruídos. A mudança material que nos possibilita trabalhar com a análise desses objetos são aque-
de significados destes objetos nesta parte de sua história é notória. Se les produzidos em torno dos que fazem parte do cotidiano dos terreiros de
antes eram importantes na construção e estabilidade de uma cultura, Candomblé na Bahia e no Rio de Janeiro. Consequentemente, para melhor
agora, importante seria dissipá-los. Os objetos agora perdiam seu valor compreendermos as coisas apreendidas no século XIX, será necessário dia-
original e tornavam-se símbolo do poder dos brancos sobre os negros. logar com a cultura material do Candomblé nos séculos XX e XXI. Para
Era o reforço da supremacia da civilização contra a barbárie. manter esse diálogo foi fundamental estabelecer comparações especialmen-
Saindo de uma desvalorização por parte das autoridades poli- te estéticas entre as peças da Coleção Polícia da Corte, os objetos analisados
ciais, é no Museu Nacional que estes objetos voltam a ter valor. Um valor por Nina Rodrigues (1904) e por Raul Lody[***] e os utensílios que são utili-
distinto daquele proferido por quem os confeccionaram e os utilizaram, zados hoje nos terreiros das religiões afro-brasileiras.
mas ainda assim um valor. A relevância dada pelo museu era outra. En- Falar da história desses objetos é falar, também, mesmo que de
quanto os negros frequentadores das casas de “dar fortuna” tinham es- maneira breve, da história das religiões de origem africana no Rio de
tima e julgavam necessários tê-los por sua função nas práticas sociais e
religiosas, Ladislau Netto compartilhava uma visão distinta sobre eles. O [*] O nome da coleção foi escolhido pela Prof.ª Dr.ª Mariza Soares e foi respeitado ao longo
intelectual alagoano presumivelmente os enxergava como objetos teste- deste trabalho. A coleção foi descoberta em projeto que deu origem à exposição de longa du-
ração, Kumbukumbu: África, memória e patrimônio, inaugurada no Museu Nacional em 14
munhos de uma cultura bárbara e desconhecida, que talvez pudesse dei- de maio de 2014. A partir da descoberta de outras coleções que faziam parte do Setor de Et-
xar de existir e que precisava ser conhecida[*]. A curiosidade e o desejo do nologia e Etnografia do museu, o nome foi selecionado com base em seu coletor, no caso, a Se-
cretaria de Polícia da Corte. Alguns objetos desta coleção fizeram parte da mesma exposição.
[**] Classificações encontradas no Livro Tombo nº 3, do Setor de Etnologia e Etnogra-
[*] Para mais detalhes do desejo e dos motivos de Ladislau Netto em recolher os objetos fia do Museu Nacional.
apreendidos nas casas de “dar fortuna”, Cf. CABRAL, 2017. [***] Cf. LODY, 2005.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

Janeiro. Segundo Mary Karasch (2000), o que existia na cidade carioca como base. É provável que todos os espaços negros da cidade do Rio
em termos de religiões afro-brasileiras no século XIX aproximava-se de Janeiro tenham sido reduzidos à denominação de uma casa de “dar
das “raízes” africanas e das religiões populares do século XVIII[*]. fortuna”. Desta forma, diante de uma suposta generalização policial e
Conforme indicou a historiadora, “com o crescimento, depois como exibiu a historiadora, torna-se viável estabelecer a relação entre
de 1850, da migração de grupos do resto do Brasil e da Europa e, em os objetos apreendidos nas casas de “dar fortuna” no século XIX e os
especial, da venda de escravos baianos para o Rio, as religiões da cidade objetos encontrados nos Candomblés atuais.
passaram por muitas mudanças” (KARASH, 2000, p.351). As religiões Na lista de objetos apreendidos nas casas de “dar fortuna”, é co-
afro-brasileiras da cidade carioca, na segunda metade do século XIX, mum a aparição de tambores. Nas diferentes culturas da África Central
poderiam ser bem diferentes daquelas de cinco décadas anteriores. que serviram como base das religiões afro-brasileiras, os cerimoniais co-
Diante deste ponto de vista, podemos sugerir que as tradições letivos tinham a música como inspiração essencial para a comunicação
religiosas que vinham de diferentes regiões da África, dialogavam e com os espíritos e, consequentemente, a cura (SAMPAIO, 2000). Com
poderiam se fundir no Rio de Janeiro, a partir dos anos de 1850. A a crença de que os espíritos antepassados permaneciam neste mundo,
convivência de africanos de distintas nações e costumes permitiu que próximo aos vivos, os africanos utilizavam instrumentos musicais, prin-
práticas religiosas de diferentes tradições pudessem conviver lado a cipalmente o tambor, para que, através da música, entrassem em conta-
lado e, principalmente, que fossem reinventadas e criadas novas tra- to com os ancestrais e conseguissem a ajuda que precisavam.
dições. A tradição religiosa afro-brasileira que anteriormente tinha Mas não só os instrumentos musicais obtinham importância
como maior base tradições da região Centro-Oeste da África, agora nas práticas negras africanas. As religiões afro-brasileiras possuem ob-
era também vinculada à África Centro-Ocidental. jetos específicos utilizados em seus rituais. No candomblé, por exem-
Quando discorre sobre as imagens e objetos utilizados nas plo, os orixás não têm representação antropomórfica ou zoomórfica.
religiões afro-brasileiras, Karasch (2000) relata que “os orixás do can- Por isso, são representados por suas moradas e por objetos-símbolos,
domblé (deuses e entidades espirituais) estavam indiscutivelmente identificados como ferramentas dos Orixás (AMARAL, 2001). São
presentes antes de 1850 graças à minoria iorubá e jeje vivendo então eles quem ajudam os adeptos da religião a visualizarem e perceberem
no Rio” (KARASH, 2000, p.357). Ainda nesta obra, Karash assimi- seu deus, seus orixás. São objetos artesanais construídos de ferro, latão,
la práticas de negros minas que viviam na Corte ainda na década de cobre, barro, tecido, palha, madeira, búzios, contas, ou são os próprios
1840 com o candomblé. A historiadora reproduz um caso estudado elementos naturais, usados em estado puro, como pedras, vegetais,
por Thomas Ewbank[**], no qual o inglês teve a oportunidade de exa- água, terra (AMARAL, 2001, pp 191-192).
minar “o aparato do antro de um mago conhecido como um Can- Para ilustrar a coleção, faremos uma breve análise de um
dombe” (KARASH, 2000, p. 377). Neste caso foi preso um escravo Abebé de Oxume um Ofá de Oxóssi (Figura 1), ressaltando a im-
mina e foram apreendidos alguns de seus objetos. Após mostrar a portância deles na religiosidade afro-brasileira. Estes objetos fo-
apreensão estudada por Ewbank, Karash sugere que entre os objetos ram escolhidos também pela constante aparência na coleção, por
recolhidos poderiam ser discernidos objetos rituais de Candomblé. isso consideramos serem os mais representativos. Antes da tragédia
Acredito que os policiais que realizavam as batidas nas casas ocorrida no Museu Nacional, em 2 de setembro de 2018[*], tais pe-
de “dar fortuna” tinham pouca noção de que prática era aquela re- ças encontravam-se em ótimo estado de conservação.
produzida pelos negros. Dificilmente uma autoridade policial saberia [*] No dia 2 de setembro de 2018, o ano em que o Museu Nacional se tornou sam-
distinguir de que região da África aquela manifestação cultural tinha ba enredo da escola de samba carioca, Imperatriz Leopoldinense, e comemorava seu
bicentenário, ocorreu um incêndio em sua sede, na Quinta da Boa Vista. O fogo foi
intenso e destruiu a maioria do acervo, construído ao longo dos 200 anos da instituição.
[*] Cf. KARASH, 2000. Tratava-se de aproximadamente 20 milhões de objetos catalogados. Foi uma tragédia
[**] Cf. EWBANK, 1971. inenarrável para a Ciência e para a História do Brasil e da humanindade.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

Figura 1: Abebé de Oxum origem africana, principalmente da África Central e Ocidental que con-
sistia na crença no poder mágico de alguns objetos ou substâncias. Com
base nos estudos da historiadora americana, Sampaio sugere que essa crença
presente em diversas culturas africanas teria permanecido após a travessia
do Atlântico. Esse argumento nos mostra a importância desses objetos nas
religiões afro-brasileiras e, no nosso caso, nas casas de “dar fortuna”.
O material, nestas religiões, é utilizado para alcançar o imate-
rial. Dos objetos utilizados nos cultos afro-brasileiros, alguns são des-
tinados ao uso feminino, enquanto outros, ao uso masculino. Geral-
mente os de uso feminino são de formas arredondadas, comparadas à
anatomia da mulher – seios, nádegas e barriga (LODY, 2005). Já os de
uso masculino costumam ser verticais, eretos e expressivamente fálicos.
Exemplo dos instrumentos femininos, temos aqui o abe-
bé, identificação imediata das Iás. As Iás são as “mães ancestres, mães
d’água, relacionadas a vida e a morte” (LODY, 2005 p.171). Sendo elas
Nanã, deusa da chuva; Iemanjá, rainha do mar e Oxum. Destaca-se daí
Fonte: Coleção Polícia da Corte - Acervo do Setor de Etnologia e Etnografia
do Museu Nacional – SEE
Oxum, que representa o saber da sedução feminina, da gestação e do
erotismo. Costuma ser reconhecida como senhora da astúcia, da rique-
Feita de latão, dourado, a peça número 6308 do terceiro livro za, da política social, dos governos equilibrados e dos sucessos comer-
tombado SEE[*], descrita no mesmo como abano, chocalho ou enfeite, ciais. É popularmente chamada de dona do ouro, senhora de grandes
encontrava-se em bom estado de conservação. No Candomblé, o uten- riquezas; é a deusa da água doce, rios, riachos, lagos e lagoas.
sílio consegue manter sempre o aspecto físico arredondado e composto Distinto ao prateado de Iemanjá, os abebés de Oxum são dou-
por diversos metais, o que mostra o fácil acesso de seus artesãos (já que rados, em latão e até mesmo em ouro. Para exaltar o orixá mais vaido-
o objeto costuma ser produzido manualmente) à matéria-prima, ao la- so, neles também se encontram trabalhos extremamente elaborados.
tão, ao ouro, ao alumínio. Sempre muito bem decorado, por vezes é Conforme indicou Raul Lody (2005), o abebé é um objeto instrumen-
ornamentado com pingentes, fitas ou contas nas cores de seus orixás. to complementar da indumentária ritual, passando a representar um
Da tradução em português, leque é um objeto utilizado por utensílio ligado à beleza, possuindo espelhos ou desempenhando a fun-
africanos, crioulos e adeptos nos rituais religiosos afro-brasileiros. ção de abano. Peças indispensáveis, nas roupas cerimoniais identificam
Aproximando o objeto da coleção com os utilizados nas religiões afro- e marcam seus orixás. Ainda identificando suas Iás, os abebés podem ser
-brasileiras, podemos sugerir que seu uso é de extrema importância nas complementados com outras ferramentas como o alfanje (objeto seme-
principais religiões afro-brasileiras, como Candomblé e a Umbanda. lhante a uma espada) e o damatã (flecha), que representam qualidades
Segundo Gabriela Sampaio (SAMPAIO 2000, p.210), a também das deusas (LODY, 2005). No Museu Nacional só encontramos o abe-
historiadora Rachel Elizabeth Harding (HARDING, 1997), quando ana- bé, que ainda pode ser considerado como a arma de Oxum.
lisou a formação do Candomblé na Bahia, notou uma orientação básica de Podem ser interpretados como instrumento musical não for-
mal, por conta de seus penduricalhos, guizos, búzios. Os abebés, nas
danças rituais de Oxum, são utilizados de modo que possam emitir sons
[*] Livro onde são registrados todos os bens materiais tombados, e por isso, tem valor
histórico. Todos os objetos registrados nesse livro, fazem parte do acervo da instituição característicos que juntos aos atabaques, afoxés, agogôs, e completam as
da qual ele pertence. Neste caso, do Museu Nacional.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES CULTURA, IMORALIDADE E ETNOGRAFIA

canções tocadas. Lody (2005) sugere que quando é utilizado nos rituais ber da medicina voltada aos recursos naturais. De acordo com Agenor
como leques à moda europeia, os abebés conseguem demonstrar parte Miranda Rocha (ROCHA, 2000), o culto a Oxóssi veio para o Brasil
da herança e das trocas ocorridas pelo convívio entre as culturas euro- com a transferência de negros originários da cidade de Kêtu[*], em con-
peias e africanas no Brasil, enquanto tentavam firmar suas identidades. sequência das guerras que se instalaram no século XIX.
A peça de número 5308 é descrita no livro tombado como arpão Tais objetos se faziam presentes na exposição de longa dura-
de ferro (Figura 2). Novamente o metal aparece na composição dos objetos ção e é correto afirmar que eles ainda fazem parte da Coleção Polícia
desta coleção. Apesar do aspecto de ferrugem, a peça estava devidamente da Corte. Depois da catástrofe ocorrida, a equipe de resgate do mu-
higienizada. Há, na Coleção, outras peças similares. A peça delicada é feita seu conseguiu encontrá-los. Além do abebé e do ofá, outros objetos que
de metal, o material mais encontrado na composição dos objetos da Cole- também faziam parte dessa exposição foram resgatados e expostos no
ção Polícia da Corte, seguido pela madeira e pelas missangas (contas). Centro Cultural Banco do Brasil – CCBB entre os dias 26 de fevereiro
e 29 de abril de 2019 (Figura 3).
Figura 2: Ofá de Oxóssi Como a imagem abaixo faz parte de um acervo pessoal e foi feita
em um momento de lazer e muitos sentimentos, ao rever objetos que foram
estudados ao longo de cinco anos, peço a licença do leitor e demonstro foto
amadora feita nessa exposição por uma pesquisadora apaixonada[**].

Figura 3: Objetos Resgatados

Fonte: Coleção Polícia da Corte - Acervo do Setor de Etnologia e Etnografia


do Museu Nacional – SEE

O objeto mostra bastante similaridade a uma representação de um


ofá e, por isso, foi exposta sob essa denominação em Kumbukumbu: África,
memória e patrimônio[*]. Respeitando a dita exposição, podemos considerar
que o ofá consiste no arco e flecha que representam o orixá da caça.
O orixá caçador, Oxóssi, é conhecido, atualmente, por ser o Fonte: Arquivo pessoal
senhor da provisão da vida, quem abastece energias, aquele que pro- [*] A cidade fica em uma das regiões da República do Benim e foi uma das mais antigas
vê todas as espécies vivas de alimentação para a continuidade da vida. capitais dos iorubás.
[**] Depois do reencontro entre pesquisadora e objetos, pós-catástrofe, e de muita reflexão,
É o orixá que rege a reprodução, energia de viver e a manutenção de achamos necessário compartilhá-los em seu estado atual. Como foi tirada em um momento
uma dinâmica específica de vida, estabelecida entre o caçador e a caça de emoção, aproveitamos para nos desculpar pela qualidade da imagem, e pelo ângulo da foto,
(FILHO, 2010). Oxóssi também é reconhecido por ser o senhor do sa- que não se encontra digno dos objetos e nem de uma pesquisa séria. A fotografia não foi feita na
intenção de pesquisa. O registro foi realizado de forma afetiva, pela lembrança e memória dos
[*] Cf. nota 6. momentos vividos pela historiadora enquanto estagiária e pesquisadora no Museu Nacional.

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No canto superior direito da Figura 3 pode ser reconhecido o o intuito de impossibilitar a continuidade daquelas práticas. Além dis-
abebé, e, ao lado dele, o ofá. Aqueles que antes permaneciam em ótimo so, foram essas mesmas batidas, agressivas e repressoras, que, em favor da
estado de conservação, agora se encontram em “bom” estado, se compara- tentativa de suprimir aqueles costumes, possibilitaram uma importante
do aos objetos que foram perdidos. A foto também ilustra outras peças da instituição científica preservar e conservar parte daquela cultura.
mesma coleção, que resistiram e sobreviveram ao atroz incêndio. Todavia, Os objetos aqui apresentados hoje são peças fundamentais nos
podemos notar que a resistência deles não começou no fatídico episódio. rituais de Candomblé e também na Umbanda: sua história nos mostra
As peças que compõem a fotografia iniciaram sua trajetória de resistência o esplendor, a magnitude e o respeito, nas religiões afro-brasileiras sobre
enquanto ainda estavam sob posse de seus verdadeiros donos nas casas de seus orixás. Aqui eles também conseguiram nos mostrar a viagem que
“dar fortuna”, em seus primeiros passos, partes fundamentais na conserva- sofreram muitos dos objetos apreendidos nas casas de “dar fortuna” e
ção da religiosidade, da cultura de pessoas de cor no Rio de Janeiro. Ao se- que faziam parte da cultura material africana, exibindo um significativo
rem apreendidas, a resistência girava em torno da remanescência das práti- histórico de repressão sobre os costumes africanos no Rio de Janeiro do
cas e como vítima da estúpida violência das autoridades e da boa sociedade século XIX. Sob a guarda do Museu Nacional, as peças estavam seguras
sobre o espaço ao qual elas pertenciam. Hoje, eles conseguem representar das chamas, à época procedente da brutalidade policial. Ledo engano.
também a resistência da ciência e, sobretudo, de uma cultura que tanto O fogo às atingiu. Entretanto, a brutalidade era outra: ao grande desca-
sofreu, tanto foi reprimida, e que, contudo, segue enrijecida e rica. so à Ciência no Brasil, mais uma vez essas peças resistiram, mostrando a
força de uma cultura, religiosidade e das casas de “dar fortuna”.
Considerações Finais
Referências Bibliográficas
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necessário citar as casas de “dar fortuna”. Embora considerados espaços AMARAL, Ana Maria. Objetos rituais no candomblé da Bahia. In:
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Conhecendo a Exposição Kumbukumbu do Museu Nacional. Rio de Ja-
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neiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2016.
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truculência policial estava presente em seu cotidiano. _____. Da polícia ao museu: a formação da coleção africana do Mu-
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da feitiçaria em si, a polícia realizava batidas nas casas de “dar fortuna”. As CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious
batidas policiais relatadas nos jornais eram presentes, violentas e tinham Movements in CentralAfrica: a Theoretical Study, Comparative Stu-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES

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Ofá de Oxóssi - Coleção Polícia da Corte, Setor de Etnologia e Etno-
grafia do Museu Nacional Introdução

O vídeo de título “Candomblé - Gênero”[*], publicado no You-


Tube no dia 24 de fevereiro de 2019, é um compilado de fragmentos
do documentário “A Dona do Terreiro”[**], realizado de forma indepen-
dente por Deyse Anunciação[***] e publicado em seu canal na plataforma
supracitado. O trabalho audiovisual, com duração de 5 minutos e 43
segundos, contém partes da entrevista realizada com Valdina de Olivei-
ra Pinto – antiga líder religiosa do Terreiro Tanuri Junsara em Salvador
(BA) – no qual explica a divisão de funções, nas comunidades de terrei-
ro, que são baseadas em um determinismo biológico e faz declarações
transfóbicas sobre a participação de pessoas transgênero nesses espaços.
É importante citar a importância da Makota Valdina, como
ficou conhecida, para o movimento político das comunidades de terrei-
ro na cidade. Falecida no dia 19 de março, ela foi uma grande liderança
e ativista e se tornou referência na luta contra o racismo religioso. Em
homenagem ao seu legado como educadora, a Escola Municipal do En-
genho Velho da Federação agora leva seu nome. Além disso, foi criada
[*] Candomblé – Gênero <https://www.youtube.com/watch?v=yY0yzgtbbU0 >
[**] Documentário: A Dona do Terreiro <https://www.youtube.com/watch?v=6wP-
1Tg8MF2I&t=27>
[***] Jornalista. E-mail: deisyrasta@hotmail.com

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES “QUEM ENTRA TEM QUE LER A CARTILHA DO CANDOMBLÉ!”

também a Frente Nacional Makota Valdina, um espaço de organização dem reproduzir opressões de uma sociedade colonizada sob a justi-
e fortalecimento da luta contra as perseguições as religiões afro-brasilei- ficativa de fidelidade a uma tradição africana.
ras. Deixo registrado que não compactuo com nenhuma agressão ao seu Desta forma, o artigo está subdividido em duas partes: na primei-
legado e a sua comunidade religiosa em consequência do conteúdo do ra, abordo o conceito de transgeneridade, tema do vídeo que mais provo-
vídeo. O que trago aqui são reflexões sobre seu discurso, que tem sido cou debates, analisando trechos com base em autores que são referências
reproduzido em muitas comunidades tradicionais de terreiro. na temática; a segunda parte trata da ideia de tradição na religião, fazendo
Apesar de já ter sido publicado, no YouTube no início do ano uma reflexão acerca do que a protagonista do vídeo chama de “cartilha do
de 2019, o vídeo foi compartilhado em uma página do Facebook em 24 candomblé” e sobre como a colonialidade interfere nesses espaços.
de junho, dia de Ação Trans por Justiça Social e Econômica e também
período de Semana do Orgulho LGBT, o que foi interpretado por al- “Trans-isso, trans-aquilo, trans-aquilo-outro”
gumas pessoas como uma afronta à luta desse segmento, que, inclusive,
tem adeptos do candomblé, os quais vêm tentando de forma responsá- O candomblé, apesar de ser hoje uma religião universal, tem
vel levar essa discussão para os terreiros, tarefa que não tem sido fácil. uma série de regras quanto às vestimentas e à distribuição de funções
As redes sociais se tornaram um espaço em que as pessoas se que são baseadas em um determinismo biológico e uma visão hetero-
sentem instigadas e confortáveis para opinar sobre todo tipo de assun- normativa das identidades de gênero, promovendo, consequentemente,
to. No entanto, essas contribuições, na maioria das vezes, não têm uma nesses espaços, a exclusão e o constrangimento de pessoas transexuais e
qualidade analítica sobre as questões que envolvem a temática. No caso travestis, que englobo aqui na categoria transgênero[*].
do vídeo, ao ser publicado na página Candomblé Jeje Vodun[*], teve uma Entende-se por transgeneridade o não reconhecimento e a
repercussão maior, alcançando, até a data em que esse artigo foi envia- negação de uma pessoa quanto aos papéis de gênero impostos ao seu
do, cerca de 108 mil visualizações e mais de 2 mil compartilhamentos. sexo de nascimento. Esses papéis, considerados naturais, são estabele-
Dentre as reações e comentários, a maioria concordou com o conteúdo cidos social e historicamente como algo inerente ao corpo e ao sexo
e os que se manifestaram em desacordo foram rechaçados sob a acusa- biológico. O gênero, conforme Bento (2006) aponta, ganha sentido
ção de “modernizar a religião”. Em menor número, foi possível observar através de uma estilística definida como correta, ou seja, um conjunto
também ataques à antiga líder religiosa e ao Candomblé, além da repro- de comportamentos, modos de se vestir, gestos, forma de falar, andar,
dução de comentários transfóbicos. etc. Uma vez que, para a heteronormatividade, o gênero e a sexua-
Entre concordâncias e discordâncias, o que mais chama aten- lidade se complementam quando o indivíduo desassocia essas duas
ção, nos comentários, são os argumentos baseados na ideia de tradição. categorias ao não se identificar com os padrões de comportamento
Nesse sentido, refiro-me a esse processo como uma barreira, compreen- que lhe foi imposto, rompe-se com a lógica hegemômica.
dendo que, muitas vezes, não nos permite avançar nessa caminhada de
Nascemos e somos apresentados a uma única possibili-
pensar criticamente sobre passado, presente e futuro das práticas reli- dade de construirmos sentidos identitários para nossas
giosas afro-brasileiras, sobretudo em relação ao candomblé. sexualidades e gêneros. Há um controle minucioso na
Sem pretensão de fazer análises profundas sobre a comple- produção da heterossexualidade. E como as práticas se-
xuais se dão na esfera do privado, será através do gênero
xidade de temas que envolvem o conteúdo desse vídeo, este artigo que se tentará controlar e produzir a heterossexualida-
tem como objetivo apresentar algumas reflexões sobre o quanto as de. [...]. Daí o perigo que a transexualidade e a travesti-
comunidades de terreiro, espaços que frequento há sete anos, po-
[*] Não há um consenso quanto a utilização do termo transgênero nas organizações do
[*] Link da página: <https://www.facebook.com/associacaofieisdahomeana/>. movimento desse segmento que vem discutindo o conceito e o acusa de não dá conta de
Link da postagem: <https://www.facebook.com/associacaofieisdahomeana/vi- várias particularidades. Dias (2017), por exemplo, utiliza a denominação “identidades
deos/893530414333763/>. trans” para tratar todas as categorias que envolvem a questão.

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lidade representam para as normas de gênero, à medida domblé. Com isso não quero dizer que sou contra nada
que reivindicam o gênero em discordância com o cor- porque a opção, a escolha é de cada um, e hoje que os direi-
po-sexuado (BENTO, 2006, p.552) tos humanos ‘tão’ aí… Agora não venham impor modismos
no Candomblé! (Candomblé – Gênero. 00:44 - 1:20)
No que se refere às funções e às indumentárias estabelecidas para
homens e mulheres, no candomblé, quando a pessoa não se reconhece É importante destacar que, apesar da transgeneridade ser vista
na categoria de gênero que lhe foi atribuída pelo seu sexo de nascimento pela líder religiosa como “opção”, esse processo não é uma escolha para
e não segue esses papéis, surgem a divergência e a opressão. Nos comen- as pessoas transexuais e travestis, muito menos modismo, pois sempre
tários do vídeo, podemos perceber que algumas pessoas transgênero afir- existiu. A diferença é que hoje, com as conquistas decorrentes da luta
mam que aceitam as regras em respeito à tradição e em nome da fé. dos movimentos LGBTQI+ e os avanços tecnológicos na área da me-
Ao falar de tais funções, a líder religiosa cita o cargo do ogã e dicina, há diferentes procedimentos clínicos capazes de fazer com que
alagbé, dado aos homens que não entram em transe e são responsáveis possam ter uma fisiologia bem próxima da sua identidade de gênero.
por tocar os atabaques nas celebrações, e o cargo dado às mulheres res- Ao ouvir as declarações da Makota Valdina, é impossível não
ponsáveis pelos cuidados com os orixás, inkices e voduns[*], são as ekedis lembrar a afirmação de Simone de Beauvoir de que “não se nasce mulher:
e makotas. Dessa forma, um homem transgênero, além de se vestir com torna-se mulher” (2009, p. 361). Apesar de compreender os limites dos
uma indumentária que não condiz com sua identidade, mesmo que sai- seus estudos, uma vez que não se referia a todas as formas de vivenciar
ba tocar o atabaque, não poderá fazê-lo, pois “nasceu mulher”. o “tornar-se mulher”, é de se considerar que sua teoria contribuiu para
a compreensão dessa categoria como uma construção social e histórica.
No terreiro que eu faço parte, no terreiro que eu me con-
firmei, homem seja lá o que ele escolheu ser, ali ele tem que
botar calça, porque biologicamente ele é homem, pra gen- A “cartilha” do candomblé
te ele é homem. (Candomblé – Gênero. 2:50 - 3:01)
Como já foi citado, muitas discussões valiosas sobre as práticas
Por isso que eu critico os homens que hoje estão usando pano afro-religiosas acabam sendo encerradas sob o argumento de fidelidade
da costa. Pano da costa faz parte da indumentária feminina. Se ele é gay, à tradição. Nessa perspectiva, Makota Valdina declarou: “[…] o Can-
se ele é homossexual, é opção dele, mas ele não é mulher. Gay (...) ho- domblé apesar de acolher todo mundo, tem uma cartilha, e quem entra
mossexual, (...) é a escolha, mas nunca vai ser mulher! Nunca vai ser mu- tem que ler a cartilha do Candomblé; não é o Candomblé que tem que
lher! Da mesma maneira que uma lésbica nunca vai ser homem. Ela tem mudar pra ler a cartilha do outro que entra agora”. (Candomblé – Gê-
a opção dela, mas nunca vai ser homem! Porque você nasce homem, ou nero. 1:23 – 1:33). Ela afirma ainda que:
você nasce mulher (…) quando tem algumas coisas biologicamente já
ali. Mas você se mutilar pra ser isso pra ser aquilo e internamente como A opção que tem é um direito que se tem. E eu respeito eu
é, ‘cê’ vai mudar? (Candomblé – Gênero. 3:52 - 4:41) acho que estamos vivendo essa realidade, ninguém pode
mudar. Agora não venha querer mudar o candomblé. Ou
então bote outro nome e não venha dizer que é tradição
[…] no Candomblé, você tem funções pra homem, você porque não é tradição. Nossa tradição aqui, de candomblé,
tem funções pra mulher. Então essa realidade que a gente não é essa (Candomblé – Gênero. 4:46 – 5:06)
vive hoje, ‘né’, com “trans-isso, trans- aquilo, trans-aquilo-
-outro” muitas vezes estão distorcendo a tradição do Can-
A partir desse discurso e na tentativa de ultrapassar essa barrei-
[*] Os terreiros se identificam como pertencendo a uma das três principais nações: ra, pontuo aqui algumas questões que nos ajudam a pensar sobre o que
nagô, jeje ou angola, que cultuam respectivamente os três tipos de entidades espirituais: as lideranças, adeptos e iniciados, compreendem enquanto tradição no
orixás, os voduns e os enquices. Cada nação possui formas dialetais correspondentes Candomblé e qual a origem dessas percepções.
que derivam respectivamente do iorubá, do gbe e do banto. (PARÉS,2010:166)

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Inicialmente vale destacar que o Candomblé é uma religião duzia-se também um modo de vida com referências africanas, na ten-
brasileira de matrizes africanas. “Matriz” no sentido de referência a ele- tativa de reestabelecer laços rompidos pelo racismo e pela colonização.
mentos de regiões da África e não de uma religião importada. O que De acordo com Parés (2016), reivindicar o status de religião
hoje é reconhecido como uma religião é resultado de um processo de representou uma forma de resistência política, mas uma estratégia de
resistência de africanos escravizados e de seus descendentes, que, co- sobrevivência diante da proibição baseada na acusação de que eram prá-
mercializados no processo de dominação europeia, buscaram, em no- ticas tipificadas como crime no código penal[*]. É também um reflexo da
vas terras, reproduzir uma “cosmovivência” baseada em seus elementos colonialidade, pois a concepção de sociedade ocidental cristã, na tenta-
culturais de origem. A formação do Candomblé se dá, portanto, em tiva de desqualificar esses rituais, denominava de “baixo espiritismo” e
um contexto de colonialismo. Conforme Quijano (2000), esse sistema, “feitiçaria”. Enquanto isso, até os anos 1940 candomblecistas da Bahia
apesar de já findado, criou um processo de continuidade que embasou se reconheciam enquanto seitas, expressão que tem origem na África
as relações de poder a partir de uma concepção eurocêntrica. É o que o pré-colonial e que hoje tem um tom depreciativo:
autor denomina de colonialidade do poder.
Em muitas sociedades africanas pré-coloniais, por
Conforme Maldonado-Torres (2016), a colonialidade pode exemplo, embora houvesse instituições e práticas ocu-
se manifestar também a partir do saber e do ser. A colonialidade do padas na interação com um “outro mundo” habitado
saber se refere à produção do conhecimento e de epistemologias consi- por entidades espirituais, o conceito de “religião”,
como um âmbito separado da vida social, não parece
deradas válidas e superiores, enquanto a colonialidade do ser se expres- ter existido até o século XIX, com a chegada das mis-
sa a partir da cosmovisão dos sujeitos colonizados, seus valores, sub- sões cristãs europeias (PARÉS, 2016, p.532)
jetividades, relações interpessoais, dentre outros aspectos. Há ainda o
conceito de colonialidade do gênero proposto por Lugones (2016). A ideia de tradição no candomblé pode ser pensada a partir
A autora parte de uma perspectiva interseccional, referenciando-se na de dois aspectos: primeiro, a perpetuação de uma herança de práticas
teoria de interseccionalidade desenvolvida por Kimberley Crenshaw religiosas que resistiu da escravidão até a contemporaneidade, o que já
para compreender como o processo de colonização difundiu uma con- foi comprovado por estudos antropológicos conforme sinaliza Parés
cepção ocidental de gênero e como esse processo se relaciona com ou- (2010). Segundo, o fato de que esse processo de continuidade de um le-
tras categorias criadas nesse sistema, como raça e classe. gado africano sofreu tanto interferências do processo diaspórico quan-
Pode-se citar como exemplos de manifestação da coloniali- to das mudanças sociais, históricas e tecnológicas que condicionaram o
dade, na formação do Candomblé, a plurirreligiosidade. Em tal pro- Candomblé a recriar e adaptar suas práticas, ressignificando-as.
cesso, o escravizado assumia a religião católica obrigatoriamente, mas Podemos dizer, dessa forma, que, no contexto do candomblé, nem
não deixava de, escondido, cultuar sua crença de origem, em alguns tudo que é apresentado como tradição é herança africana pré-colonial. Mui-
casos, associando-a aos símbolos da religião dominante, o que ficou tas características dessa tradicionalidade foram incorporadas de uma África
conhecido como sincretismo religioso e hoje ainda é motivo de diver- pós dominação europeia, em alguns casos criadas a partir de um contexto de
gências no campo das religiões afro- brasileiras. colonialidade e que hoje são utilizadas como forma de hierarquizar as nações
Outro aspecto foi a necessidade de reivindicarem o status de de candomblé, bem como os diferentes aspectos dos rituais em terreiros.
religião. Conforme Nascimento (2017), os terreiros de Candomblé ul- As comunidades de terreiro se identificam a partir do que fi-
trapassam o conceito ocidental de religião por terem se desenvolvido cou denominado de nações. Os elementos étnicos que as diferenciam
como um importante espaço de resistência ao colonialismo, ainda que nessa interação compreendem aspectos da ritualística e a linguagem/
com limitações. Nestas comunidades, nas quais, muitas vezes se articu-
[*] O código penal de 1890, qualificava de crime contra a saúde pública a prática do espiritismo
lavam rebeliões e formavam-se quilombos, para além dos rituais, repro- (art. 157) e do curandeirismo(art.158), este último ainda é vigente no código atual que incluiu
também o charlatanismo (art. 283) termo utilizado para difamar lideranças do candomblé.

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dialeto do seu local de origem. Conforme Parés (2010), apesar de cada de gênero em sociedades Yorubás pré-coloniais. Esta organização se dava
comunidade reivindicar o reconhecimento da tradicionalidade de suas basicamente pela categoria geracional, ou seja, a partir do princípio da
práticas, a nação nagô-ketu, hoje dominante entre os candomblés da senhoridade, que faz com que as hierarquias sejam dinâmicas e relacio-
Bahia, é quem tem esse status e ocupa a posição de privilégio com base nadas ao parentesco, não ao corpo. A divisão social baseada no gênero é,
em uma ideia de purismo africano. Esse processo ficou conhecido como portanto, uma consequência da dominação imperialista ocidental.
“nagôização”. O autor afirma que tanto a atuação de lideranças na pro-
[...] previamente a la colonización de Occidente, el género
moção de suas práticas, a partir de viagens de retorno ao continente no era un principio organizativo de la sociedad Yorùbá, a
africano, quanto à produção de estudos antropológicos sobre as reli- pesar de que la voluminosa investigación diga lo contrario.
giões afro-brasileiras, tendo essa nação como referência, contribuíram Las categorías sociales “hombre” y “mujer” eran inexistentes
y, por lo tanto, no tuvo lugar ningún sistema de género. En
para a legitimação desses terreiros como os mais “tradicionais”. todo caso, el principio básico de la organización social fue
A categoria tradição, nesse sentido, é utilizada como forma de la senioridad, definida por la edad relativa. Las categorías
legitimar suas práticas consideradas mais puras e atemporais, como se sociales “mujer” y “hombre” son construcciones sociales
fossem preservadas e intocadas ao longo do tempo, ao contrário das derivadas del supuesto occidental según el cual “los cuerpos
físicos son cuerpos sociales” (OYÉWÙMÍ, 2017, p.84)
demais que, por permitirem ser penetradas pela cultura local, seriam
consideradas sincréticas e inferiores. É nesse contexto, e com o objetivo Pode-se dizer que o Candomblé segue a lógica de hierarquia
de defender essa tradicionalidade, que surge o movimento de reafrica- baseada na antiguidade. Como se diz popularmente nesses espaços,
nização. Alguns estudos têm tratado esse fenômeno a partir da teoria “idade é posto” e, em geral, um posto que não deve ser confrontado.
de Hobsbawn (1997) sobre “tradições inventadas”. Segundo esse autor: Torna-se então um tabu suscitar, nos terreiros, questões sobre o que é
(…) na medida em que há referência a um passado histó- definido como tradição. No entanto, alguns estudos mostram que isso
rico, as tradições inventadas caracterizam-se por estabe- vem sendo feito e que a produção acadêmica que ora contribuiu para
lecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em um movimento de valorização de práticas ditas puras, hoje busca refle-
poucas palavras, elas são reações a situações novas que
ou assumem a forma de referência a situações anteriores, tir sobre determinados aspectos dessa “tradição”.
ou estabelecem seu próprio passado através da repetição Rocha (2018), por exemplo, faz um estudo sobre a proibição
quase que obrigatória (HOBSBAWN, 1997, p. 10). de mulheres tocarem em atabaques e verifica que essa interdição está ba-
seada em itans (mitos) que relacionam a menstruação a algo ruim. Nos
Nesse sentido, é importante refletir como muitas práticas co- terreiros, esse período do ciclo da mulher é chamado de bajé, que, con-
nhecidas como tradições estão ancoradas em uma concepção ocidental forme a autora, é um termo yorubá que tem conotação negativa como
de papéis de gênero. Ao serem recriadas, no Brasil, mesmo tentando pre- estragar e apodrecer. No entanto, ela questiona a influência ocidental
servar elementos da cultura africana, não permaneceram isentas ao pro- nessas traduções ao relativizar os argumentos da proibição, ressaltan-
cesso de colonialidade, o que se reflete nas práticas e costumes que são do que existe um período menstrual e que nem toda mulher menstrua,
transmitidos, como o determinismo biológico das divisões de funções. como é o caso das transgênero. Além disso, alerta para o fato de que
Oyèrónké Oyéwùmí, a partir de estudos linguísticos dos diale- mitos são inventados a partir de disputas simbólicas de narrativas que
tos Yorubá, demonstra que, em diversas palavras, não havia especificida- ora valorizam o corrimento menstrual e ora o utiliza como algo nocivo,
de de gênero nem distinção sexual, e denuncia o impacto da imposição além de apresentar resultados de estudos que demonstram que a proi-
do inglês nessas sociedades, em que muitos pesquisadores se tornaram bição nem sempre foi uma realidade, o que é confirmado por Makota
bilíngues, comprometendo assim grande parte da produção intelectual. Valdina, no vídeo, ao assumir que mulheres tocavam atabaque, porém
Conforme a autora, não existia uma estrutura social fundada em papéis reafirmando a proibição e a divisão de funções generificadas.

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Apesar de quê muitas mulheres do passado sabiam to- inseridas, a recusa seletiva de discutir certas questões causa conflitos in-
car, ensinavam até aos homens. Mas numa festa pública ternos e desgasta o Candomblé. Até mesmo o movimento de reafrica-
quem tem o direito de subir lá no atabaque pra tocar
pra um inkice, pra um orixá, pra um vodum é o homem. nização se não for pensando sob uma concepção decolonial, será mais
Da mesma forma que eu nunca vi nenhum homem tá um processo embasado em reprodução de opressões.
na sala com a toalha enxugando nem assessorando um Questionar a origem de determinadas práticas no Candomblé
inkice, nem um orixá, nem um vodum. Isso é papel da
mulher! (Candomblé – Gênero. 1:42 - 2:12) chega a ser um tabu, ou até um desrespeito aos mais velhos, uma vez que o
conhecimento é transmitido oralmente de acordo com o tempo de inicia-
Conforme estudos de Landes (2002) já demonstravam, há uma ção e buscar certas informações é querer antecipar esse processo. Apesar
predominância de mulheres como lideranças de terreiros. Esse fato nos da tradição da oralidade, a produção acadêmica, sobretudo de iniciados
leva a refletir que esses cargos (alagbé e ogã), que colocam o sexo mascu- inseridos nas universidades, tem uma certa influência para o campo afro-
lino como o único autorizado a tocar os atabaques e, em alguns casos, a -religioso. Além de estimular essas discussões, nas comunidades de terrei-
fazer o sacrifício de animais nas oferendas, podem ter sido criados como ros, tarefa que não tem sido simples, é preciso convocar a intelectualidade
uma forma de estabelecer, nesses espaços, um lugar de destaque aos ho- dessa área a pensar suas produções com base em uma decolonização do
mens que vivenciam uma religião em que as mulheres têm uma posição saber para que possamos ultrapassar a barreira da tradição.
de liderança, ou seja, uma necessidade de demarcar um lugar de prestígio.
É importante refletir sobre tantas outras questões que cau- Referências Bibliográficas
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vivido ao projeto de extinção total. Hoje, mesmo que tenha sido recriada dor: entre aceitações e rejeições. Dissertação (mestrado) - Universidade
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Consejo Latinoamericano de Ciências Sociais, Buenos Aires, Argen- Graduanda da UFBA
tina, 2000. p.246.
ROCHA, S. No candomblé mulher toca! A tradição reinventada. VI Introdução
Congresso internacional sobre culturas. Memória e Sensibilidade. Ca-
choeira–Bahia–Brasil,21,22 e 23nov/2018. A proposta deste artigo é discorrer sobre as marcas que as subje-
tividades inscrevem, no espaço da feira livre, através dos corpos negros que
se fazem presente ao longo da história na conformação dessas e de como
esses atravessamentos, ligados à memória, à coletividade e à ancestralidade,
são fundamentais para a construção e a reconstrução de práticas afro-brasi-
leiras. Considerando o crescente número de espaços limitantes nas cidades
(desenvolvidos com base em códigos rígidos de posturas, com acessos cada
vez mais controlados, mantendo a lógica de construção de uma cidade ho-
mogênea e que se distancia das referências subjetivas que inscrevem na sua
materialidade uma série de importâncias que devem ser levadas em consi-
deração) é que a feira livre se apresenta- como um espaço em potencial para
se (re)pensar as relações de sociabilidade na cidade. Ademais, os mercados
de rua carregam em si referências que constituem o que Muniz Sodré veio a
chamar de forma social do negro brasileiro (SODRÉ, 2002).

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Aparecendo como “estrutura concreta necessária” (com o isso, a análise metodológica, para obter uma dimensão dos universos que
“aqui e agora” inelutáveis da existência do grupo), a forma constituem as feiras livres, foi contextualizada a partir de visitas à feira de
social é o que permite a apreensão sensível (onde possa in-
tervir, para além do puro intelectualismo, o mito, o símbo- São Joaquim, em Salvador, e a feira que ocorre em Riachão do Jacuípe,
lo e o imaginário) de um estilo de vida, com sua atmosfera município do interior da Bahia, levando em consideração as limitações
particular, sua multiplicidade numa unidade e seu relacio- colocadas no cotidiano social devido ao contexto de pandemia. Como
namento com o espaço (SODRÉ, 2002, p. 20).
complemento de análise, houve um debruçamento em estudos que cons-
Tais referências caracterizam os mercados de rua como um ter- tituíssem o elo entre as heranças culturais africanas e as feiras livres que
ritório tradicional de grande importância para a preservação das subje- ocorrem dentro da dinâmica dos espaços afrobaianos.
tividades negras nas cidades. Pensar o corpo negro, na vivência da feira Ao falar de espaço, faz-se necessário trazer à tona as concepções
livre, como um “território de muitos lugares” (SODRÉ, 2019), leva-nos idealizadas pelo geógrafo Milton Santos: de espaços opacos e espaço lu-
a trazer o terreiro como lugar importante de referência para a estrutura- minosos, bem como as ideias de homens lentos e circuitos inferior e supe-
ção da feira, visto que se pode ler a feira de São Joaquim, por exemplo, rior da economia urbana, a fim de sustentar a análise crítica do universo
como uma extensão dos terreiros de candomblé da Bahia. moderno que circunda e ameaça o tempo de algumas existências, pois, no
As relações sociais que percebemos nas feiras são atravessadas entendimento das novas diretrizes comerciais, políticas e sociais, quanto
por um apanhado de referências subjetivas que se caracterizam como mais rápido for o tempo de resposta de um organismo, mais valorizado
componentes essenciais à manutenção de alguns saberes afro-brasileiros ele será. Mas como ficam os feirantes que são postos à margem da ideia
nas cidades — sejam elas grandes metrópoles ou urbes interioranas —, a implantada de progresso por não terem a possibilidade de imprimirem
exemplo: a oralidade, a contação de histórias, os festejos, a ancestralidade, seus modos de vida às novas dinâmicas modernas nas cidades?
a transferência do ofício entre gerações da mesma família como artifício Nesse sentido, o estudo se divide em três frentes centrais de
de sobrevivência dos saberes e da própria vida. Além disso, através da pesquisa. Primeiro, foi necessário realizar uma revisão crítica da di-
análise desses espaços de mercado, busca-se desenvolver bases que contri- nâmica moderna comercial, política e socioespacial, com o intuito de
buam para uma expansão do olhar dentro da arquitetura e do urbanismo, situar as feiras livres na dimensão que abrange a segregação urbana, a
no que tange uma mudança nas lógicas do pensar, vinculado à conforma- qual esses espaços estão sujeitos. Nesse sentido, houve a necessidade
ção das cidades no futuro. Isto é, a partir deste estudo, tornar-se possível o de se debruçar sobre os conceitos de Milton Santos e outros autores
avanço de novas formatações urbanas que agreguem outras cosmologias que estudam a remodelação do espaço urbano na América Latina no
ou outras formas de estar no mundo, pois o pensamento moderno, oriun- século XXI. Na sequência, a nível de entendimento das origens da
do da linearidade colonizadora e exportadora das formas de construções cultura de feira e a estruturação de uma vida social baseada em saberes
sociais, por não possuir em sua formatação racional a ideia de congrega- subjetivos, traça-se um panorama de ligação afro referenciado entre
ção de saberes e formas variadas de se comunicar e viver em sociedade, os mercados que ocorrem em território baiano e as heranças africanas
encarrega-se de objetificar e marginalizar quaisquer que sejam os espaços deixadas pelos grupos étnicos que aqui aportaram. E, seguindo esse
que compartilhem de cosmovisões diferentes das impostas pelo motor fio, ergue-se uma análise mais concreta do que é estar e conviver em
do progresso. Já os povos africanos aportados em território baiano, pos- um ambiente como uma feira livre, a partir de um olhar de dentro,
suindo em suas formatações cosmológicas o compartilhamento de sabe- uma imersão na complexidade desses espaços, como aconselha Juana
res com outras etnias, funcionaliza o que Nego Bispo vem a chamar de Elbein (1986) — para apreender com mais respeito e propriedade o
confluência e transfluência de saberes (SANTOS, 2018). que se está pesquisando — trazendo a memória, o território, a orali-
Em decorrência da pandemia provocada pelo Coronavírus, não dade e o próprio corpo como instrumentos fundamentais na percep-
foi possível realizar um estudo mais concentrado em uma única feira, por ção da força de continuidade presente na feira livre.

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Revisão crítica do universo moderno novos empregos e, consequentemente, uma má distribuição da renda
que ameaça os espaços de feira entre as classes dos subsistemas (Sul Global).
Em seguida, essa nova demanda de produção importada
A compreensão sobre as lógicas de organização e reorganiza- se sobrepõe aos métodos regionais/locais de produção de capital,
ção dos espaços urbanos e não urbanos nos países em desenvolvimen- marginalizando os indivíduos que ainda conservam o modelo tra-
to, nos é permitido, também, a partir dos longos estudos analíticos/ dicional como única forma de sobrevivência, a exemplo dos mer-
críticos do geógrafo Milton Santos. Ao longo do processo “civilizató- cadores nas feiras livres. Assim, os grupos sociais que estão aquém
rio”, o Terceiro Mundo esteve submetido a não só um processo de mo- das requisições propostas pelos novos meios de produção de capi-
dernização, mas de algumas modernizações que foram modificando tal são automaticamente postos à margem do processo de progres-
as estruturas econômicas, sociais, políticas e espaciais desde o século são econômica local, tendo como única saída a informalidade, o
XV até o presente. Mais do que isso, é preciso compreender que cada que, consequentemente, priva o acesso ao consumo de bens e ser-
país colonizado foi afetado de forma diferente no decorrer dos proces- viços de alta qualidade (os quais requerem maiores quantias finan-
sos de modernizações, pois, para cada país do bloco dominado existiu ceiras). Deste modo, é estabelecido o que Milton Santos chama de
um sistema de poder que comandava e se movia (também de forma circuito inferior e circuito superior da economia urbana dos países
diferente) com a finalidade de organizar as estruturas dos territórios subdesenvolvidos (SANTOS, 1978).
roubados. Por exemplo, o estabelecimento de feiras livres, no Brasil, Paralelo a este entendimento, e aproveitando a contextua-
não ocorre da mesma forma em países como Argentina ou Chile exa- lização feita a respeito da modernidade que nos é imposta, vemos
tamente porque foram submetidos a diretrizes de nações dominantes surgir uma das características principais dessa nova era marcada pela
e com movimentações de ocupação diferentes. Ou seja, devido ao se- informação e consumo em larga escala: a noção de velocidade como
questro português de milhões de africanos, trazidos principalmente parâmetro ou indicador de desenvolvimento. Ou seja, no entendi-
da costa oeste de África (entre os séculos XVI e XIX), hoje é possível mento das novas diretrizes comerciais, políticas e sociais, quanto mais
identificarmos, no espaço urbano brasileiro, a relevante presença da rápido for o tempo de resposta de um organismo, mais valorizado o
descendência negra ocupando os espaços de feira. mesmo será. Nesse sentido, privados de todo acesso aos meios tec-
Atualmente, a revolução que o mundo presencia é a de base nológicos para um aperfeiçoamento da velocidade de processamento
tecnológica, na qual a informação e comunicação são os pivôs ou as das informações, nasce o que Milton Santos chama de “homens len-
engrenagens que dão partida às máquinas desta nova revolução dos tos”, obviamente lançando uma crítica contundente à ideia de veloci-
meios de produção e consumo. Com isso, novos modelos são incor- dade como parâmetro de avanço. Empurrados para os ambientes su-
porados à dinâmica dos países de Terceiro Mundo. Destarte, esses balternizados da cidade, os homens lentos, tendo suas alternativas de
mesmos meios de produção e de consumo importados dos países de- sobrevivência usurpadas, são obrigados a exercer, prioritariamente, a
senvolvidos requisitam uma mão de obra cada vez mais especializada criatividade e a solidariedade entre seus pares, uma vez que os recur-
destinada a dar conta das demandas contemporâneas, ou seja, a execu- sos, nas zonas onde habitam, são limitados e de péssima qualidade.
ção de um ofício com as características mais próximas do que é encon- Logo, esse é um caminho possível para garantir a permanência de
trado nos sistemas modernizadores (Norte Global). Todavia, o que se suas tradições e de um espaço onde possa realizar seus respectivos ofí-
encontra por aqui é uma escassez de trabalhadores com esse perfil de cios. A partir disso, vale refletir que os homens lentos, por possuírem
atuação, exatamente por já existir uma lacuna muito grande entre as no seu âmago a engenhosidade como ponto crucial à sobrevivência,
classes sociais, no sentido de acesso às estruturas de qualidade e ultra acabam por transformar os espaços em locais singulares, diferentes,
profissionalizantes. Logo, o que ocorre é uma limitação na geração de ou melhor dizendo, originais (RIBEIRO, 2012).

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Ainda sob esta perspectiva, trazemos à tona as concepções de atenção para os agentes históricos que deram a definição cultural dos
espaços opacos e espaços luminosos, a fim de sustentar a análise crítica do mercados de rua brasileiros. Estamos falando das levas intensas de
universo que circunda o ambiente das feiras livres. Nesse caso, é impor- africanos que foram sequestrados e trazidos para o Brasil do século
tante termos em mente que ao falar desses conceitos, o geógrafo não está XVI ao século XIX. Ao contrário do que defendem alguns histo-
discutindo a presença ou a ausência de energia elétrica/luminosidade. O riadores a respeito da centralização dos Jejes e Nagôs como grupos
que ele introduz, na realidade, é a existência de desigualdade nos níveis étnicos responsáveis pelos toques decisivos à cultura baiana, Mu-
de densidade educacional, de saúde pública, infraestrutura, acesso à tec- niz Sodré (2002), assim como outros teóricos à exemplo de Abdias
nologia de ponta, mobilidade urbana de qualidade etc., em determinados Nascimento (2019), Edson Carneiro (1950, 2008), Arthur Ramos
espaços, como consequência dos desnivelamentos sociais existentes nos (1968, 1971) e Manuel Querino (1955) explicitam que a Bahia foi
países em desenvolvimento. Nesse sentido, quanto menos favorecida uma sede de vários atravessamentos socioculturais promovidos, também,
área for no que tange à conservação e ao desenvolvimento, mais opaca ela pelos Bantos, Congos, Malês, Haussás, Bengalas, etc., estendendo
se torna. Por outro lado, quanto mais privilegiada em recursos que su- suas raízes da culinária à religião, como também da formação política
pram para além das necessidades humanas uma região for, mais luminosa dos mercados (objeto de estudo deste trabalho):
ela será. Além disso, torna-se necessário evidenciar que os espaços opacos
Havia, naturalmente, entre os negros, as diferenças étni-
(carentes de recursos básicos e tecnológicos) muitas vezes permeiam os cas, a diversidade das “nações” na diáspora. Isto se entre-
espaços luminosos (abastados de serviços públicos de qualidade), mas via especialmente na esfera do trabalho de “ganho” (...).
não se enquadram nas dinâmicas socioespaciais dos espaços luminosos. A Assim os descreve Verger: “Na Cidade Baixa, nos Arcos
de Santa Bárbara e o Hotel das Nações, alguns velhinhos
partir de uma breve visita à feira de São Joaquim, por exemplo, foi possí- cansados e modorrentos, últimos representantes da ou-
vel identificar precariedades sanitárias existentes e limitantes, no que tan- trora enérgica, belicosa e aguerrida colônia dos Haussás,
ge ao atendimento das necessidades fisiológicas humanas, concomitante ali diariamente se reúnem. Mais numerosos são os ‘can-
à omissão de responsabilidade por parte dos órgãos públicos da Bahia. tos’ dos Nagôs. No ‘canto’ do Mercado, Rua do Comér-
cio ao lado dos Cobertos Grandes, em mais de um ponto
Neste sentido, ainda que (ou quase) pertencendo a um dos bairros da Rua das Princesas em frente aos grandes escritórios
mais privilegiados do Estado, o Corredor da Vitória (BARRETO; SALES, comerciais, se congregam velhos nagôs. (...) No ‘canto’
2016), o mercado de São Joaquim não se caracteriza como espaço lumi- do Campo Grande (...), se reúnem uns três ou quatro
gêges.” A aparente competição comercial dos “cantos”, a
noso, exatamente por conta da carência em recursos que garantam o su- variedade étnica, poderiam suscitar uma forte diferencia-
primento das necessidades humanas dos indivíduos que fazem o mercado ção político- cultural (SODRÉ, 2002, p. 57).
acontecer. Logo, a noção de modernidade importada, amparada pela negli-
gência governamental no investir e infraestrutura ou ações de conservação Nessa perspectiva, surge, no território baiano, os movimen-
de determinados ambientes, acaba por aprofundar a desigualdade social já tos que Antônio Bispo (2018) chama de confluência e transfluência
existente na dinâmica dos países marginalizados e gera uma descontinuida- das cosmovisões de etnias diferentes. Em outras palavras, contextua-
de nas intangibilidades tão intrínsecas para o fazer das feiras livres. lizando os conceitos para estudo deste capítulo, o que se estabelece
é uma articulação (social, cultural, política e religiosa) dos diversos
Herança cultural africana povos aportados na Bahia para preservar suas identidades originais
e a conformação das feiras afro-baianas africanas. Entretanto, tais movimentos só foram possíveis a partir
de uma interação entre etnias que possuíam no âmago da sua raiz
Para se ter uma dimensão palpável da complexidade que é cosmológica a ideia de congregação de saberes. Assim, talvez por
um ambiente como uma feira livre afrobaiana, é preciso voltarmos a partilharem da mesma árvore ancestral africana, tornou-se possível
o estabelecimento das etnias (citadas anteriormente) em um mesmo

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território. Obviamente, e sem querer alongar muito este assunto, não Desta forma, ao serem transportadas para a Bahia, carregaram con-
se deve anular a existência de disputas étnicas nas terras Oestes do sigo essa herança cultural e imprimiram em solo baiano os alicerces
Atlântico Sul, até porque esses povos já disputavam por territórios simbólicos que fazem a feira acontecer hoje.
antes mesmo de virem para o Brasil. Assim, por mais que houvesse De outro ponto de vista, e aplacando qualquer romantis-
conflitos étnicos já em solos brasileiros, os africanos foram capazes mo que possa brotar, não podemos afirmar que a permanência dos
de coletivizar o espaço imprimindo marcas de subjetividades, trazi- afrodescendentes nos mercados de rua, hoje, se dá apenas por um
das do outro lado do Atlântico, tão importantes para a dinâmica dos prazer em continuar as vivências de seus antepassados, mas sim, e
mercados hoje, visto que a massa atuante nas feiras, na maioria das também, por conta das condições subumanas que esses indivíduos
vezes, excede o limite do próprio espaço, fazendo com que os indi- foram obrigados a estar desde que foram arrancados de África, até
víduos exercitem tal coletividade para manter vivas suas existências. a modernidade presente. O que se pontua, na realidade, é a artima-
Além da coletividade, é possível traçar alguns outros referen- nha ancestral que os grupos afrodiaspóricos aplicaram para manter
ciais de marcas subjetivas dos povos africanos nas atuais feiras livres, intactas as próprias vidas e, consequentemente, seus saberes. Como
a partir dos seus sistemas religiosos/ancestrais, como é o caso (a nível narra Ferreira Gullar no documentário de Juana Elbein dos Santos
de exemplo e sem tratar como caso genérico para as outras etnias afri- (1981) sobre as Ìyá-mi Agbá:
canas) das sociedades secretas denominadas Gèlèdés de origem Na-
— São milhões as brasileiras negras. Seguimento em
gô-Yorubá, que traziam consigo as Ìyá-mi, como símbolo coletivo do dilatação. Durante cinco séculos, multiplicam-se e
poder feminino ancestral (SANTOS, 1986). É nesse contexto, e sem labutam de sol a sol. Enfrentam e superam dramá-
aprofundar nessas questões, que Odudua — orixá-mãe que represen- ticas condições de existência material. A pressão
exercida por um sistema político, etnocêntrico e au-
ta a parte genitora feminina de todas as entidades-filhos — sucede a toritário. Escrava, camponesa, operária, libertária.
linhagem das Ìyá-mi (aquelas que, inclusive, não se deve pronunciar Cinco séculos de árdua batalha, de geração a geração.
dentro do sistema religioso dos terreiros). Nesse caso, a marcante pre- Neste contexto, a brasileira negra mantém intacto o
sença das mulheres negras nas feiras baianas, por exemplo, não é algo mítico poder das Ìyá-mi Agbá. O poder herdado de
suas mães ancestrais. Enchem as ruas e os carnavais.
ancorado na coincidência das coisas. Na forma de existir dos merca- Estão nas roças, nas fábricas, nas feiras. São Ìyás. O
dos tradicionais africanos, segundo Nathalia Grilo (2020), as Ìyá-mi significado mais profundo do poder feminino, é de-
ocupavam o lugar daquelas que comandavam os mercados exercen- sempenhado nas comunidades de terreiro e propaga-
se na rede que envolve as atividades da mulher negra
do o ofício de feirantes, chegando a ser consideradas (nos dizeres da e a sociedade global. (IYA..., 1981).
autora) como “aquelas que pariram o mercado”[*]. Nesta perspectiva,
a venda era um ofício estritamente feminino, baseado na forma de Outro fato que nos leva a pensar a possibilidade de um elo
existir dos mercados tradicionais africanos, enquanto aos homens era entre os mercados africanos e as feiras livres, que estão postas aqui
designado o papel de produzir alimentos e levar para o seio familiar. como objetos de estudo, é a condição atribuída à feira como um
Não é à toa que, já na entrada do século XVIII, as mulheres escra- lugar de disseminação de notícias que dizem respeito ao interesse
vizadas viviam nas vias urbanas da cidade de Salvador, buscando na coletivo, como também o lugar onde circulam as fabulações em tor-
própria rua uma brecha para garantir as compras das senhoras (estas no da própria existência. A feira aqui se mostra como fundamental
impedidas de sair pelos maridos opressores), ou para trabalhar na fei- para que circule no seio das cidades as narrativas outras que não
ra e ter condições de alcançar a sua própria alforria (RISÉRIO, 2004). estão escritas, como é possível perceber nas Figuras 1 e 2 e os objetos
comercializados, mas que são seladas pela potência que a feira tem
[*] Assistir Mercados Nagôs No Baixo Daomé: Mulher Negra e Empreendedorismo. de fazer emergir a força da oralidade.
Produção de Nathalia Grilo.

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Figura 1– Mercado de produtos tradicionais Iorubá Continuidade de traços subjetivos na construção e


reconstrução de práticas afro-brasileiras nas feiras de
Riachão do Jacuípe e São Joaquim

A feira livre, enquanto lugar atravessado por uma grande diver-


sidade de simbologias, apresenta o seu estilo próprio de existir. Isto se
dá, basicamente, pelas relações sociais que são intrínsecas à feira e que
movimentam as subjetividades presentes neste território, dando-lhe a
sua dimensão importante de espaço de preservação dessas imaterialida-
des. As memórias afetivas, que se constituem neste espaço livre de mer-
car, mostram-se capazes de ressignificar no tempo contemporâneo a
importância da vida em comunidade e da troca em suas variadas esferas.
O ofício atribuído aos mercados de rua, nos diz sobre um “presente que
atua como interlocutor do passado e, consecutivamente, como locutor
do futuro” (SANTOS, 2018, p.19) e é aqui, neste lugar de interlocu-
ção-locução entre o passado, o presente e o futuro (onde entendemos
que a feira se insere), que nos debruçaremos sobre quais são essas refe-
Fonte: fotografia de Fábio Velame, Nigéria, 2020 rências que marcam a importância da feira livre como este lugar de con-
tinuidade de uma experiência histórica ligada às subjetividades dos cor-
Figura 2 – Materiais em cerâmicas utilizados nas práticas religiosas de pos negros que dão a este lugar a dimensão de um território tradicional.
terreiro. Vale ressaltar que não generalizamos toda feira livre como um
espaço de preservação das subjetividades negras nas cidades, visto que
cada uma possui suas especificidades devido aos referenciais culturais,
sociais, históricos e políticos das cidades em que estão inscritas. Neste
trabalho apresentaremos duas feiras localizadas na Bahia, em municí-
pios distintos e com similaridades em sua constituição. Essas duas feiras
podem ser consideradas territórios negros, lugares afrocentrados, afro-
diaspóricos, por incorporarem em sua dimensão socioespacial as dinâ-
micas da oralidade negra, da ritualísitica (a partir do corpo negro), a
noção de família extensa oriunda das religiões de matrizes africanas, a
noção de ancestralidade afrobrasileira e, por fim, as dimensões simbóli-
cas com o cultivo orgânico através do uso consciente da terra.
Boa parte das feiras livres de Salvador, Região metropolitana,
Recôncavo Baiano e regiões do baixo sul da Bahia, possuem, na sua
constituição, espacialidades afrodiaspóricas, mantendo suas singulari-
dades e especificidades acumuladas. No entanto, foi escolhida a feira
de São Joaquim pelos seguintes aspectos: por ser a maior feira de Sal-
Fonte: fotografia de Gabriel Silva, Salvador, 2017

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vador, a cidade mais negra fora da África; por estar localizada na área consumo dos alimentos produzidos em suas roças, a relação de aten-
comercial da cidade, com fácil acesso e comunicação com o subúrbio ção dado ao tempo, as fases da lua, a sabedoria de lidar com as estações
ferroviário de Salvador; por ter uma rede histórica de articulação e fluxo do ano e saber o momento exato de arar a terra, de plantar as farturas
de mercadorias, produtos e corpos negros com o Recôncavo Baiano — da época, dá a feira de Riachão do Jacuípe sua devida importância por
sobretudo com a cidade de Cachoeira e o bairro da Liberdade, o maior inscrever neste território a continuidade de um modo de vida social, de
território negro da cidade; e, por fim, possui inúmeras lojas que aten- quem sempre comungou com a terra e o tempo da natureza, trazendo a
dem ao mercado religioso de matriz africana em Salvador, fornecendo dimensão do afeto, como Nego Bispo também pontua:
diversos produtos que viabilizam as práticas litúrgicas do Candomblé
Extraímos a vida da terra, lavrando a terra a partir dos
dentro do miolo urbano, constituindo-se, inclusive, como um entre- seus saberes tradicionais. É também poesia o modo de
posto de circulação de mercadorias advindas da África através do tran- fazer a pesca, a forma de lidar com a terra, no preparo da
sito afrodiaspórico, com exemplo da importação do Obí[*]. terra para o plantio, o cuidado, a colheita. Isso remete
a um sentido de vida que tem o cuidado, o amor como
A escolha dessas duas feiras partiu pela possibilidade mínima ética orientadora da vida (SANTOS, 2018, p.118).
de interação nesses territórios, vista a situação de isolamento social em
decorrência da pandemia da Covid-19. A feira livre, situada no muni- Nesse sentido somos, consequentemente, levados a pensar
cípio baiano de Riachão do Jacuípe[**], está acomodada sob uma grande sobre o tempo e como essa relação íntima com a roça leva ao espaço
cobertura localizada entre a Rua Dezesseis de Agosto e a Rua Joaquim de troca na feira uma outra dimensão temporal, que não se baseia na
Figueiredo. Uma informação importante que devemos levar em consi- concepção ocidental marcada por um tempo linear, mas por uma lógi-
deração, nesse primeiro momento, para a compreensão de como ela se ca que mostra a dinamicidade do tempo e de como é exigido, mesmo
estrutura e de quais referências cortam este espaço da feira, diz respeito subjetivamente, uma real presença no lugar, demandando um tempo
ao lugar de onde vem os mercadores que montam suas barracas sema- de escolha de bons produtos, o tempo de deixar circular as últimas no-
nalmente para comercializar os seus produtos. Boa parte dos trabalha- tícias, além do tempo de girar o afeto. No livro O Espírito da Intimida-
dores são oriundos da zona rural do município e que vê, na agricultura, a de, a autora Sobonfu Somé (2013, p.21) nos conta que “na vida tribal,
sua principal fonte de renda, coexistindo neste mesmo espaço, feirantes a pessoa é forçada a diminuir o ritmo, a vivenciar o momento e comun-
residentes da sede municipal, que revendem nesta feira produtos oriun- gar com a terra e a natureza. Paciência é fundamental. Ninguém, na
dos, principalmente, de Feira de Santana, grande entreposto comercial aldeia, parece compreender o sentido da pressa”. O que Sobonfu nos
da Bahia. Por ser um município do interior, na sua dimensão de sertão, diz, reflete a sabedoria do Povo Dagara, da África Ocidental, mas que
foi construído ao longo da história de ocupação do território a necessi- também nos conta sobre o presente que pode ser vivenciado na feira,
dade de se estabelecer uma intimidade com a terra, vendo nela a única mesmo no contexto do Sertão. A feira é um acontecimento e o tempo
possibilidade de dar continuidade a sua linhagem familiar. Essa relação [da feira] existe para construir e ressignificar afetos.
íntima estabelecida com a terra, com o plantar, com o colher, com o Uma característica muito marcante observada nesta feira livre
é a ausência de preços nos produtos (Figura 3), o que nos remete à ques-
[*] Fruto sagrado, de origem africana, muito utilizado em alguns rituais dos candom- tão do tempo e de como são criadas estratégias, por parte dos feirantes,
blés da Bahia. Por ser um elemento originário da África, o obí é largamente importado
e vendido em algumas feiras livres da Bahia, inclusive, na feira de São Joaquim.
para burlar a pressa e a tendência de se estabelecer trocas rápidas. São
[**] Riachão do Jacuípe está localizada no semiárido baiano, com uma população estratégias que de início podem parecer despretensiosas, mas que talvez
de 33.172 pessoas, de acordo com o último censo, de 2010, do Instituto Brasileiro sejam formas de fomentar relações de proximidade entre os envolvidos
de Geografia e Estatística (IBGE). A cidade faz parte do Território de Identidade
da Bacia do Jacuípe, junto a outros 15 municípios. Território de Identidade é um e a abertura de um campo onde possa fazer correr as vozes, um tem-
conjunto de cidades que apresentam entre si uma coesão social, cultural, econômi- po para além da rapidez das trocas, tão comum nas grandes redes de
ca e política, que dão a esse grande conglomerado uma identidade própria.

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supermercados. Essa nova temporalidade exige do cliente uma relação de relacionamentos, relações de proximidade e dis-
mais aproximada com o feirante, uma troca olho no olho e a tessitura tâncias. [A territorialização] é dotada de força ativa
(SODRÉ, 2002, p.14).
de palavras para que o negócio possa acontecer de acordo com as ex-
pectativas de ambos os envolvidos. A relação do tempo com a terra, Uma marca subjetiva muito presente na feira de Riachão
estabelecido entre o trabalhador, é transferido ao ato da venda, da troca. do Jacuípe é a ideia de perpetuação do ofício na história da família.
O trabalho com a terra, com o vender e a vivência na feira é passa-
Figura 3 – Feira de Riachão do Jacuípe: feirante Cláudia e sua banca do de geração em geração e, junto a essa transferência de ofício no
sem preços.
campo prático, vem a força da oralidade de fazer permanecer no
tempo as histórias que foram vivenciadas e escritas pelas pessoas
mais velhas de uma mesma família. É neste ponto que o potencial
da feira livre é reconhecido como contribuinte para o desenvolvi-
mento de uma família, seja no aspecto econômico, mas, sobretudo,
no aspecto da memória, esta que “é compilação de informações, ou
seja são documentos que nos fazem entrar em contato com nossa
ancestralidade e nossa cultura, é fazer lembrar o que foi esquecido
e fortalecer o que é lido e lembrado” (CAJÉ, 2015, p.2486), sendo
ela responsável por assegurar a história do povo negro da diáspora
partindo, entretanto, da força que emerge da oralidade.
A feira abastece o município com uma diversidade de produ-
Fonte: fotografia Vitória Matos, agosto 2020. tos, sejam eles alimentícios- barracas de hortifrutigranjeiros, em sua
maioria, a venda de manteigas de fazenda, queijo, requeijão, feitos
A subjetividade tem um espaço bem marcado neste lugar, fa- em fabricos[*] da região, além da presença de barracas que têm como
zendo-se um instrumento fundamental para configurar o estilo próprio produtos beijus e outros derivados da mandioca - até a presença de
de existir da feira livre, este imbuído de referência seja das performan- barracas de roupas e de utensílios para casa, acontecendo aos sábados
ces dos corpos negros neste espaço, seja da oralidade ou até mesmo do e estendendo-se desde a manhã até o final da tarde[**].
feminino como principiante dessa lógica de mercar. A subjetividade, Tratando-se de estrutura física, as barracas não se diferem
neste sentido, não poderá se resumir a uma conceitualização concreta, muito entre si. O suporte é feito em madeira, característica que cabe
até porque ela é também sinônimo de movimento capaz de construir e às bancas com produtos alimentícios e que estão dispostas sob uma
reconstruir essas nossas práticas afro-brasileiras. cobertura. Porém, existem outras barracas cobertas por lona dispostas
Sabemos que as feiras livres são agregadoras de diversos valores, se- em espaço aberto. Esta feira, assim como outras já vivenciadas por
jam eles tangíveis ou intangíveis, que classificam o seu lugar próprio como nós, apresenta um recorte muito forte da oralidade, da contação de
um território de grande expressão de práticas culturais coletivas baseadas histórias que nos remetem a um cotidiano que passa a pertencer, de
em “fluxos sociabilizantes [que] implicam em pluralidades de afetos que são
constitutivas dessa territorialização” (SODRÉ, 2002, p. 21). Além disso, [*] São os espaços onde os produtores rurais da região normalmente produzem requei-
jão, queijos, doces e outros derivados do leite.
A territorialização [se] define como força de apro- [**] Portanto, neste contexto de pandemia, a feira passou a acontecer todos os dias com
priação exclusiva do espaço (resultante de um or- o intuito de não gerar grandes aglomerações visto que, cotidianamente, existe o desloca-
denamento simbólico capaz de engendrar regimes mento da população residente da zona rural ou de povoados para a sede, seja para consu-
mir os produtos da feira, seja para acessar os serviços que estão dispostos na cidade sede.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A FEIRA LIVRE COMO ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO

certo jeito, também à feira, visto que ela se configura como este lugar artesanato e outro para materiais que servem de preparo às celebra-
de deslocamento dessas oralidades, estruturando-se como um lugar ções litúrgicas (animais de duas e quatro patas sacralizantes, cabaças,
de forte desenvolvimento da comunicação. quartinhas, agdá, ferramentas, ervas medicinais e folhas sagradas, com
destaque ao obí que vem da África). Estes últimos elementos comercia-
Dessa maneira, a feira se institui, antes de tudo, em um
espaço de mobilidades comerciais e sociais onde, por lizados na feira de São Joaquim, estão mais ligados ao Candomblé em
meio das diversificadas dinâmicas, ergue-se uma rede suas diversas nações (Ketu, Angola, Jeje, Ijexá, Caboclo, dentre outras).
de sociabilidades vivenciadas pelos agentes sociais Aliás, a comercialização de materiais sagrados é um ponto específico
no âmbito dos territórios construídos (MORAIS &
ARAÚJO, 2006, p. 247). que destaca a atuação da feira de São Joaquim em relação à feira de Ria-
chão. Discorreremos essa importância comercial no parágrafo seguinte,
Neste sentido, o que foi observado nas idas a campo é que se trazendo o comércio de folhas sagradas como exemplo e a relevância da
estabelece, por parte dos frequentadores da feira, sejam eles mercado- feira vinculada às religiões de matrizes africanas, as quais estão ligadas
res ou clientes, uma relação muito forte de pertença com o lugar que diretamente ao traço subjetivo da ancestralidade.
está diretamente ligado aos atravessamentos subjetivos que inscrevem Antes de abrir espaço para discorrer a respeito dessa importân-
na materialidade desta feira – enquanto um ponto absoluto, um espaço cia, é necessário que entendamos um pouco da realidade dos terreiros
puramente geométrico – os valores, os símbolos. O lugar, nesse sentido, de Candomblé localizados no ventre da cidade de Salvador. Com isso,
está quase que integralmente ligado às relações de afeto que são estimu- não é objetivo deste trabalho aprofundar sobre a história da fundação,
ladas neste território. O vínculo construído pelos feirantes, principal- nem sobre os rituais e celebrações que fazem a religião acontecer na
mente aqueles oriundos da zona rural do município, transfere à feira cidade, e sim como a feira de São Joaquim, que imprime sua impor-
livre uma relação de afeto que se principia no momento de semear a tância para a preservação das práticas litúrgicas do terreiro inserido no
terra até o gesto de trocar com os clientes. espaço urbano. Como já é claro, o estabelecimento de terreiros na ci-
Diferentemente da feira que ocorre no município de Riachão dade de Salvador se deve à transposição das práticas religiosas que os
do Jacuípe, interior da Bahia, a feira de São Joaquim é um mercado de negro-africanos trouxeram durante o período da escravização. Entre-
rua que está localizado no centro urbano da capital da Bahia, especifi- tanto, um fato importante precisa ser elencado para entendimento dos
camente na Avenida Engenheiro Oscar Pontes, sendo considerado um princípios dos terreiros. Na África, as entidades são cultuadas, muitas
dos maiores mercados livres do estado. A feira de São Joaquim ocupa vezes, em regiões e por nações diferentes. Desta forma, com o tráfico de
uma área privilegiada urbanisticamente, pois está localizada ao lado do várias etnias africanas para um mesmo território, os diferentes povos
mais importante porto marítimo do estado, com acesso fácil à Baía de afro-diaspóricos tiveram que se fundir (em alguns casos) com matrizes
Todos os Santos e ao Recôncavo Baiano. Por esta razão o espaço é pre- que cultuavam outras entidades religiosas, para manterem vivas suas
judicado muito fortemente pela especulação imobiliária. respectivas divindades, escrevendo o conceito de terreiro em solo baia-
Outra observação de destaque é o uso do artifício da revenda no. Vejamos um exemplo com Muniz Sodré:
de alguns produtos, pois, numa dinâmica de cidade grande, às vezes, A primeira concretização histórica dessa matriz é o can-
torna-se inviável o comércio de um produto manuseado ou produzido domblé da Casa Branca ou do Engenho Velho, Ilê Axé
pelo próprio feirante. A relação de tempo/espaço e as experiências dos Iyá Nassô Oká (em princípio localizado na Barroquinha,
mercadores residentes de Salvador são outras, sendo mais aceleradas depois no Engenho Velho - em Salvador, Bahia), funda-
do por africanos livres, dentre os quais Iya (Mãe) Nassô;
devido à grande demanda existente. A organização do espaço é divi- filha de uma escrava baiana retornada à África. Nele ope-
dida por setores de produtos, ou seja, existe um lugar específico para rou-se uma síntese original: a reunião de cultos a orixás
comercialização de hortifrutis, outro para animais e carnes, um para que, na África, se realizavam em separado, seja em tem-
plos, seja em cidades [...] (SODRÉ, 2002, p. 53-54).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A FEIRA LIVRE COMO ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO

Assim, o terreiro nasce como uma tática de sobrevivência do condições climáticas e geomorfológicas da cidade, o culto ao sagrado,
culto aos ancestrais e às divindades de algumas das etnias africanas que nos terreiros, também é ameaçado. As religiões de matrizes africanas, de
aportaram na Bahia, assim como espaço de conservação das línguas modo geral, não existem se também não existirem as plantas sagradas
africanas, culinária, hierarquias sociais, das cosmovisões e da ética/es- (Figura 4). Plantas estas que, há um tempo, eram muito mais fáceis de
tética africana. Só para que se tenha uma dimensão quantitativa da im- serem localizadas. Porém, com a implementação de métodos moderni-
pressão dos terreiros na cidade de Salvador, Santos aponta que: zadores na formação urbana de Salvador, tais elementos sagrados deixa-
ram de ser vistos com maior facilidade.
No início dos anos cinquenta Edison Carneiro dizia
haver cem candomblés. Na década de sessenta, o Ceao Nosso respeito pelas folhas ultrapassa essa questão
[Centro de estudos afro-orientais] realizou uma pes- ecológica que o ocidente está colocando tardiamente.
quisa, sob a coordenação de Vivaldo da Costa Lima, É das árvores que saiu a própria vida dos humanos. A
que registrou 756 terreiros; em 1983, a Secretaria da gente sabe quando colher, quando não colher, o que
Indústria e Comércio (SIC) publicou um estudo sobre guardar, a maneira de tocar, o que, e como dizer. Isso
o mercado informal de trabalho e nele consta a infor- é a liturgia e esses são segredos dominados pelo Babá
mação de que existiam 1.018 terreiros em Salvador ewé”, afirma o professor Félix Ayoh´OMIDIRE. [...]
(SANTOS, 2008, p.34). Nas minhas conversas com eles, percebi o quanto esses
conhecimentos estão enraizados na memória, porém
Somado a essa especulação quantitativa, destacamos a questão a tristeza brota no olhar, acompanhado por palavras
da devastação ambiental na capital baiana com o intuito de dar mais de conformidade, “Antigamente era assim que os mais
velhos faziam, agora temos que ir buscar na feira”.
corpo à feira de São Joaquim como um lugar importante para a manu- (CONCEIÇÃO, 2008, p. 56).
tenção das práticas religiosas dos terreiros.
Os efeitos das subsequências de modernidades, abordados em Figura 4- Banca de plantas sagradas na feira de São Joaquim
páginas anteriores, promovem impactos significativos nos espaços da
cidade no que diz respeito, também, à falta de preservação do meio am-
biente. Desmatamento de áreas verdes para construção de empreendi-
mentos, aberturas de novas vias, implantação de redes de esgoto em rios
que lutam para sobreviver, a imposição do concreto dentro da dinâmi-
ca do mercado imobiliário, são algumas das características importadas
para o meio urbano de uma cidade como Salvador.
No prefácio do livro O macroplanejamento da aglome-
ração de Salvador, Scheinowitz (1997) demonstra que
Salvador passou por uma revolução. Ela quase se torna-
ra uma grande cidade industrial antes do fim do século
XIX. Segundo Scheinowitz (1997), em fevereiro de
1967, assumia a prefeitura Antonio Carlos Magalhães,
que deflagra imediatamente a maior revolução urbana.
Em questão de meses, os vales virgens foram transfor-
mados em avenidas. Já em 1974, Salvador era irreco-
nhecível (CONCEIÇÃO, 2008, p. 35).

Dentro dessa perspectiva, para além da devastação ambiental e


de tudo o que envolve a importância das áreas verdes para o controle de Fonte: fotografia de Gabriel Silva, Salvador, 2020

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A FEIRA LIVRE COMO ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO

É nesse contexto que a feira de São Joaquim se apresenta como urbana. Contextualiza-se o feminino e o negro nas feiras, com a fina-
ponto de fuga para que as comunidades de terreiro (localizadas dentro do lidade de refletir sobre a estruturação de cidades baseadas em lógicas
espaço da cidade) possam encontrar algumas espécies de plantas que são antimachistas, como também antirracistas. Do mesmo modo, fazer
fundamentais para a continuação das atividades litúrgicas afro-brasileiras. emergir a ancestralidade e tudo o que envolve as religiões de matrizes
Ademais, por ser um porto seguro das religiões de matrizes africanas ocor- africanas, é influenciar uma corrente de pensamento urbanístico que se
ridas na capital baiana, a feira de São Joaquim acaba ganhando, como rever- sensibilize com a preservação do meio ambiente, respeitando todas as
beração do movimento que envolve o candomblé (por exemplo), cheiros, leis que regem o universo natural e o sobrenatural.
cores, sabores, texturas, olhares, todos coloridos, embebidos de mistério e
sensação de algo que somente a ancestralidade consegue transmitir. É a feira Referências bibliográficas
no seu sentido expandido dos terreiros candomblé na Bahia.
BARRETO, L. B.; SALES, M. Lista os 10 bairros com o m² mais caro
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cial, 18 out. 2016. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.
Este artigo principia o nosso pensar entorno das subjetividades br/noticia/nid/correio-lista-os-10-bairros- com-o-m2-mais-caro-e-os-
negras nas cidades e de como essa dimensão pode se tornar um aparato -mais-procurados-em-salvador/>. Acesso em: 3 ago. 2020.
necessário para pensar e planejar as nossas narrativas de futuro. Apesar do
CAJÉ, A. M. S. Contos afro-brasileiros de Mestre Didi: Guardiões da
contexto de pandemia em decorrência da Covid-19, a feira foi uma das
memória e da ancestralidade. VII Congresso internacional de história,
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[S. l.], p. 2479-2490, 6 out. 2015. Disponível em: <http://www.cih.
portância como abastecedora de alimentos, como também por ser a única
uem.br/anais/2015/trabalhos/715.pdf>. Acesso em: 30 jul. 2020.
forma de movimentação econômica de diversas famílias. Neste momento,
percebe-se a força da dinâmica da rua na vida das pessoas e de como este es- CARNEIRO, E. Antologia do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed.
paço também se configura como a possibilidade de manutenção de afetos Globo, 1950.
apesar de todos os atravessamentos violentos que o permeiam. _____. Os Candomblés da Bahia. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008.
Longe de qualquer perspectiva que romantize as condições de
insalubridade que permeiam os espaços de feira, tentamos trazer uma CONCEIÇÃO, S. S. O Processo De Urbanização Como Imperativo
abordagem que tangenciasse o campo da arquitetura e do urbanismo, Da Reestruturação Espacial E Litúrgica Das Religiões De Matriz Afri-
com o intuito de abrir o pensamento acerca de outras narrativas inscri- cana. 2008. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia,
tas na maioria das cidades brasileiras. É sobre expandir a percepção do [S. l.], 2008. Disponível em:
espaço para além das dimensões físicas, isto é, tomar como referências <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/23983/1/dissertacao_
as intangibilidades veiculadas nos espaços de feira livre, para materiali- SSConceicao.pdf>. Acesso em: 11 set. 2020.
zar formas urbanas que sejam capazes de agregar outras existências. Ou
seja, é desmistificar a ideia de formação do espaço urbano tendo como INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
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formação das cidades com valores subjetivos que podem ser encontra- IYA Mi Agbá - Mito e Metamorfoses Das Mães Nagô : Arte Sacra Ne-
dos nos espaços supracitados, por exemplo. Destacam-se a coletividade gra II. Direção: Juana Elbein dos Santos. Produção: Marco Aurélio
familiar, laços de solidariedade entre grupos africanos de diferentes et- Luz. Intérprete: Ferreira Gullar. Rio de Janeiro: SECNEB - Sociedade
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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A FEIRA LIVRE COMO ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO

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AUTORIA FEMININA NEGRA:
AS RELIGIOSIDADES DE MATRIZES AFRICANAS
FICCIONALIZADAS NA LITERATURA DE MÃE BEATA DE YEMONJÁ

Rodrigo Monteiro dos Santos


Mestrando em Literatura Brasileira e Teoria Literária da UFF
e Licenciado em Letras pela UFRRJ
Fernanda Felisberto da Silva
Seção III Doutora pelo Programa de Literatura Comparada da UERJ.
Mestre em Estudos Africanos pelo El Colegio de Mexico. Bacharel em
Literaturas e narrativas
Letras (Português-Francês) pela PUC-Rio

Agô, mojubá: abrindo os caminhos

A literatura de Mãe Beata de Yemon já regimenta uma escrita


de resistência, pois, em uma sociedade como a do Brasil, na qual o le-
gado africano é deslegitimado e desapropriado pela ordem do dia do
discurso branco hegemônico, através de práticas e crenças que desarti-
culam vivências não brancas e não europeias[*], escrever da posição de
quem não passou pelos letramentos da academia, que não ocupa cargo
de poder eclesiástico dentro da sociedade e que, contrário a isso, emerge

[*] A longa tradição do cientificismo e do eurocentrismo deu origem a uma ideia de uni-
versalismo abstrato, que marca decisivamente não somente a produção do conhecimento,
mas também outros âmbitos da vida: econômica, política, estética, subjetividade, relação
com a natureza, etc. Em todas essas esferas, nesses mais de 500 anos de história colonial/
moderna, os modelos advindos da Europa e de seu filho dileto – o modelo norte-ameri-
cano após a Segunda Guerra Mundial – são encarados como o ápice do desenvolvimento
humano, enquanto as outras formas de organização da vida são tratadas como pré-mo-
dernas, atrasadas e equivocadas (COSTA, TORRES e GROSFOGUEL, 2020, p. 12).
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES AUTORIA FEMININA NEGRA

de um lugar ainda marginalizado, com uma crença ainda marginalizada uma lei, 10.639/2003[*]4, para regulamentar a obrigatoriedade do ensi-
e um discurso que rompe com a hegemonia linguística prescritiva, é no de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas, mas não
certamente reescrever a história oficial ao seu passo. a cumpre, fundamentalmente por se tratar de narrativas literárias que
Em Caroço de dendê, Beata, filha de Exu e Yemonjá (2002), protagonizam as experiências de corpos negros cujas identidades e sub-
imprime seus valores étnicos e culturais em contos literários que jetividades sempre foram vilipendiadas.
operam na contramão da hegemonia canônica estabelecida no Bra- Dessa forma, o principal objetivo desta pesquisa foi deixar em
sil. Com elementos negro-estéticos-candomblecistas, a contista voga as confluências que a literatura oriunda dos terreiros evoca para a
atravessa o oceano que divide o Brasil e os 54 países negros africanos construção das subjetividades negras no Brasil e, também, provocar na
para, através da cosmogonia do Orixás, contar o legado ancestral academia a necessidade de olhar também para essas literaturas como par-
que une a população negra em forma de fé e sangue. tes integrantes do corpus literário que forma a nacionalidade brasileira.
Apresenta-se, portanto, na primeira seção do texto, a intensa Fazem-se, por isso, algumas considerações que justifiquem as
contribuição da intelectual negra Grada Kilomba (2019), com o livro escolhas que nortearam este estudo: a primeira foi o desejo de mos-
Memórias da plantação, a qual norteia as referências deste trabalho para trar a relevância social que uma pesquisa como esta desempenha, pois,
as reflexões sobre a autoria negro-feminina. Também há relevante inter- em uma sociedade estruturada por bases que colocam a mulher negra
dição do texto Negras, mulheres e mães lembranças de Olga de Alaketu, no limbo da subalternidade, leia-se racismo[**], é necessário se posicio-
da professora Teresinha Bernardo (2003), com um aparato que ela faz nar em um constante contra-argumento com as forças que insistem
sobre a trajetória das mulheres negras na sociedade. Essas teorias per- em perpetrar o encapsulamento dessas mulheres no lugar de repro-
mitem fundamentar a percepção sobre a literatura de Mãe Beata e, so- dutoras e objeto. Por isso, destacar o desenvolvimento intelectual de
bretudo, apresentá-la como uma, também, escritora e intelectual negra. Mãe Beata é, também, contribuir com a reconfiguração do imaginário
O trabalho também conta com a contribuição teórica de mulheres social estabelecido contra as mulheres negras.
e homens negros que operam uma escrita política e identitária, afro-centra- A segunda foi a vontade de explicitar qual o impacto que se
da e antirracista, que organiza um corpus referencial de narrativas negras, as espera que esta pesquisa cause na sociedade civil, uma vez que se pense
quais se regulam pela estratégia do autoamor como resistência, como argu- que todo trabalho de pesquisa deva ter uma finalidade coletivamente
menta Bell Hooks (2019), em seu livro Olhares negros raça e representação. útil. Sendo assim, trazer para a academia o debate de um tema que co-
Na segunda seção desta pesquisa, apresenta-se uma breve bio- mumente é tímido e restrito no ambiente acadêmico, significa mexer
grafia de Mãe Beata que, por escolha e crença, é narrada sem chegar ao com as estruturas ainda colonialistas que forjam este lugar.
momento de sua morte. Tanto porque, na perspectiva dos candomb- Outra intenção depositada nesta pesquisa foi a de legitimar
lés, a morte não é o fim, mas o recomeço da vida em um novo estado um trabalho político e social através da literatura, o qual parte dos
de energia. É também neste momento do texto que são apresentadas pressupostos de que a fruição do texto literário, a estética literária e
as construções estéticas da literatura de Beata, as quais se valem dos as escolhas lexicais e semânticas, em qualquer discurso, são todas de
valores e saberes dos povos de terreiro. caráter ideológico. O que faz com que se deposite na literatura a es-
Uma apresentação do livro propriamente dito é delineada na
terceira seção deste texto, na qual está a análise de seis contos, do total [*] LEI Nº 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para in-
de quarenta e três que o livro apresenta. Analisa-se, portanto, do ponto cluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
de vista da estética literária produzida por uma mulher negra, sacerdo- Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências.
tisa do candomblé, com a finalidade de contribuir para a observação [**] O racismo é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno patoló-
gico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O racismo fornece o sentido, a lógica
desta literatura que se veicula em um país que há quase vinte anos tem e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a
vida social contemporânea (ALMEIDA, 2019, p. 21).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES AUTORIA FEMININA NEGRA

colha de contribuição para um mundo que se posicione em favor das desempenhar trabalhos manuais, como cozinhar, limpar, amamentar e
perspectivas multiculturais e democráticas. cuidar do filho alheio, além de parir e ser objeto sexual. Sobre isso, An-
O procedimento metodológico adotado para a realização desta gela Davis, em Mulheres, Raça e Classe (2016), escreve:
pesquisa, para fins de observação, foi de caráter qualitativo e bibliográfi-
Proporcionalmente mais mulheres negras sempre tra-
co, cuja análise consistiu no levantamento de dados e na investigação dos balharam fora de casa do que as suas irmãs brancas. O
contos para que se comprovasse que as teses aqui defendidas cumpram o enorme espaço que o trabalho ocupou na vida das mu-
esperado sentido com as devidas coesão e coerência. Por último, é impor- lheres negras, segue hoje um modelo estabelecido des-
de o início da escravatura. Como escravas, o trabalho
tante dizer que o objetivo final deste labor é unir energias, com quem já compulsoriamente ofuscou qualquer outro aspecto da
o fez, abrir o caminho – ofício primeiro de Exu – para que as literaturas existência feminina. Parece assim, que o ponto de parti-
negras, oriundas dos candomblés, tenham seu lugar de prestígio como da de qualquer exploração da vida das mulheres negras
deve ser feito com toda e qualquer escrita literária que objetive ocupar um sob a escravatura começa com a apreciação do papel de
trabalhadoras (DAVIS, 2016, p. 10).
espaço de construção de um mundo plural e democraticamente coletivo.
Nessa perspectiva, a atividade escrevente de Lívia Natália na
Autoria feminina negra: infância anunciava um novo tempo, constituído sob a luta de tantas
descolonizando as epistemologias outras que vieram antes dela e que fundamentaram um legado de novas
possibilidades para estas que historicamente foram negadas dessa possi-
Mulher negra e escrita: autora e autoridade de sua própria história[*] bilidade de produção intelectual: as mulheres negras.
Destaca-se aqui um pouco da vida de Lívia Natália – uma mu-
A poeta e professora Lívia Natália (UFBA), em uma entrevista lher negra, soteropolitana, filha de Oxum (como é identificada no portal
para o periódico Estudos de literatura brasileira contemporânea (2017), Literafro) – como poderia se fazer com outra mulher contemporânea que
da Universidade de Brasília, relata que escreve desde muito pequena e tenha atravessado vivência similar. O intuito é único e exclusivo de fazer
que sua relação com a escrita se desenvolve fundamentalmente porque relações com a vida da também mulher negra, baiana e candomblecista,
ela, desde muito nova, tem uma relação intrínseca com o silêncio, como Mãe Beata de Yemonjá, cuja existência tem papel central nesta pesquisa, a
tem com poucas outras coisas na vida (NATÁLIA, 2017, p.281). Lívia fim de exemplificar que há uma (re)construção paulatina dessas histórias
Natália subverte a lógica racista-patriarcal – que é basicamente a lógica que foram subalternizadas e silenciadas durante séculos.
de um sistema que se estrutura sob bases que têm o racismo e o patriar- Ainda sobre o ato da escrita, Lívia Natália diz algo que recon-
cado como pilares – e constitui-se nesse status de uma mulher negra figura o ideário socioculturalmente imaginado sob os duros aspectos
que elabora seu silêncio através do exercício de escrever. escravagistas que estruturam as sociedades:
A atividade de escrita, ligada ao exercício da intelectualidade,
é uma atividade socialmente convencionada como um desempenho O que eu sou é uma mulher negra escrevendo. Então, toda
vez que eu escrevo, mesmo que eu não esteja falando dire-
cis-heteronormativo (ou seja, um desempenho historicamente ligado a tamente, frontalmente, sobre as questões relativas ao racis-
homens cisgêneros e heterossexuais), branco e masculino. Desse modo, mo, de alguma maneira, meu texto é um texto racialmente
a população negra – sobretudo a população feminina – é historicamen- marcado pelo lugar de fala (NATÁLIA, 2017, p.282)
te rechaçada da possibilidade de se imaginar nesse lugar. Essa tradição se
figura através de uma base escravagista, racista, patriarcal e colonialista, Essas palavras expressam significativa importância para o atual
na qual a mulher negra foi forjada sob a condição única e exclusiva de cenário social, porque trazem à tona a compreensão deu uma mulher
negra sobre o mundo e o seu lugar nele; sobre sua fala e sua escrita; sobre
[*] Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (KILOMBA, 2019) seu ato político existencial e seu papel na luta contra o racismo, o qual,

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES AUTORIA FEMININA NEGRA

durante séculos, oprimiu, desumanizou e desqualificou as mulheres ne- A intelectual negra Grada Kilomba, ao analisar o poema do
gras que hoje ocupam lugar nas cadeiras da produção intelectual do país. poeta negro Jacob Sam-la Rose, que reivindica o direito de escrever, em
Angela Davis, como forma de recuperar a memória sobre os fundamen- “Por que escrevo?”, analisa que um negro falando sobre a importância
tos mais dolorosos do passado colonial estadunidense, escreve: da escrita é um ato de resistência. Ela sentencia que o poema de Jacob
fala sobre “uma fome coletiva de ganhar a voz, escrever e recuperar
Como a maioria dos escravos homens, as mulheres escra-
vas, na sua maior parte,eram trabalhadoras do campo. En- nossa história escondida” (KILOMBA, 2019, p. 27). Essa ideia de que
quanto uma significante proporção de escravas nas fron- Grada Kilomba fala se fundamenta em uma perspectiva coletiva e afro-
teiras dos estados foram empregadas domésticas, no sul – a -diaspórica que opera em função do “tornar-se” sujeitos.
real terra da escravatura – eram predominantemente tra-
balhadoras agrícolas. Por volta de metade do século XIX, Eu sou quem descreve minha própria história, e não
7 em cada 8 escravos, homens e mulheres, eram igualmen- quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um
te trabalhadores no campo (DAVIS, 2016, p.11). ato político. O poema ilustra o ato da escrita como um
ato de tornar-se e, enquanto escrevo, eu me torno a nar-
Essa informação rompe com a ideia de que as mulheres escravi- radora e a escritora da minha própria realidade, a autora
zadas ocupavam exclusivamente o papel de “ama de leite”. Certamente e a autoridade na minha própria história. Nesse senti-
do, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto
não se pretende, aqui, lançar algum juízo de valor sobre qual lugar de colonial predeterminou (KILOMBA, 2019, p.28).
escravização fora mais ou menos doloroso e desumano, há de se obser-
var, no entanto, que o processo escravagista fundamentou uma imagem A possibilidade de se perceber no lugar de autora e autoridade
múltipla da violência para essas mulheres que, de diferentes formas, fo- da própria história, de que fala Kilomba, coloca em voga dois importan-
ram fisicamente brutalizadas e desumanizadas. tes pontos sobre os quais se fala aqui: o desmantelamento da imagem
Portanto, Mãe Beata, Lívia Natália, Conceição Evaristo e tantas estereotipada criada pelo racismo e a reconstrução de um novo olhar
outras mulheres negras fizeram, fazem e farão parte de uma composição sobre a história oficial. Nesse sentido, a escrita negra funciona como
política de reconstrução do imaginário social. Antes delas, vieram muitas, uma ferramenta de “oposição e reinvenção”: oposição ao racismo e re-
com elas, há tantas outras e, depois delas, virão outras mais. Desse modo, invenção da autoimagem de sujeito negro (KILOMBA, 2019, p.28).
escrever uma literatura que se afirme negra, feminina e antirracista signi- Kilomba (2019), no primeiro capítulo do seu livro Memórias
fica elaborar um novo lugar nos polos de ocupação social; sobretudo para da plantação, escreve sobre a máscara colonial que era colocada na boca
uma sociedade colonialista e patriarcal que ainda bloqueia a diversidade, da pessoa escravizada, cujas finalidades iniciais eram evitar que os es-
mas que – contrariada – abre espaço para novas e novos atores sociais. cravizados comessem cana-de-açúcar ou cacau das plantações em que
eram obrigados a trabalhar e, como principal finalidade, “implementar
Saberes partilhados: Grada e Beata em consonância um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silen-
ciamento e de tortura” (KILOMBA, 2019, p. 33).
A experiência racial, para as pessoas negras, durante muitos sécu- Ela também argumenta que todos esses processos de vio-
los, esteve enclausurada em um espaço-tempo de negação e silenciamentos. lência não dizem respeito à pessoa negra, mas à percepção da bran-
Uma história de corpos e vozes que foram violentados física, psíquica e epis- quitude sobre a pessoa negra.
temologicamente, com a finalidade de manter a visão eugenista da colonia-
(...) não é com o sujeito negro que estamos lidando, mas
lidade. Diante disso, afirmar a produção de escritas que se organizem numa com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria
pauta negro-feminina, funciona como a articulação de um fio condutor ser. Fantasias que não nos representam, mas, sim, o ima-
que nos remete às memórias ancestrais, mas que nos joga – como sociedade ginário branco. Tais fantasias são os aspectos negados do
eu branco reprojetados em nós, como se fossem retratos
– para um futuro que se organiza em busca da equanimidade.

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autoritários e objetivos de nós mesmas/os. Elas não são, tão não é a falta da possibilidade de fala para a pessoa negra. O elemen-
portanto, de nosso interesse (KILOMBA, 2019, p. 38). to castrador, segundo ela, é a desqualificação sistemática dessas falas.
Portanto, o processo de oposição ao racismo ou desmantela- Não é que nós não tenhamos falado, o fato é que nossas
mento da imagem estereotipada criada pelo racismo, de que se argu- vozes, graças a um sistema racista, têm sido sistemati-
camente desqualificadas, consideradas conhecimento
menta aqui, é um processo que desregulamenta fundamentalmente inválido; ou então representadas por pessoas brancas
a pauta do imaginário branco que classifica e personaliza a pessoa que, ironicamente, tornam-se “especialistas” em nossa
negra. Por isso, a importância de se defender um campo epistemo- cultura, e mesmo em nós (KILOMBA, 2019, p. 51).
lógico que seja genuinamente negro, ou seja, a defesa de uma episte-
mologia na qual o sujeito negro esteja envolvido desde a produção O que está no centro desta discussão, portanto, é a legitimidade
ao discurso. Isso ratifica, também, a escrita avaliada neste trabalho: dada ao discurso negro. Ao se pensar a escrita negro-feminina, por exem-
Caroço de dendê, de Mãe Beata de Yemonjá (2002). Uma escrita de plo, é importante questionar onde e como estão essas obras. No caso de
autoria feminina negra, que se organiza em torno dos valores cultu- Caroço de dendê (2002), que é o objeto de estudo apresentado aqui: em
rais que compreendem a negritude em múltiplos aspectos. quais livrarias se encontra esse livro? Qual a rotatividade que ele tem no
Essa escrita por si só já configura uma reinvenção da autoima- mercado editorial? Qual a visão sobre essa literatura no imaginário social?
gem de sujeito negro, pois ela coloca em cena novos atores, que tive- Essas perguntas dão conta de se fazer entender como a máquina
ram suas identidades excluídas do processo imagético formativo ou, de operação do racismo atua cruelmente nas sociedades. A quesito de curio-
ainda, por mais que estivessem em cena, estavam sob a condição de sidade, Caroço de dendê (2002) não se encontra mais disponível para venda
um olhar estigmatizado e subalternizado. Sobre isso, Grada argumen- no Brasil, o que indica que teve boa saída e não foi reeditado. Os últimos
ta, ainda em Memórias da plantação, “no racismo o indivíduo é cirur- exemplares disponíveis custam em torno do absurdo valor de R$280,00.
gicamente retirado e violentamente separado de qualquer identidade Não que a obra não valha, este não é o caso a ser discutido. A questão é
que ela/ele possa realmente ter” (KILOMBA, 2019, p.39). que durante todo o seu processo de disposição nas livrarias, enquanto Mãe
A autora declara, ainda, que a máscara impede o sujeito negro Beata estava viva, o livro custou um valor médio de R$20,00. Depois de sua
de elaborar qualquer discurso. Nessa perspectiva, é possível afirmar que as morte, o valor cresceu exponencialmente e chegou a R$280,00.
bases históricas que cerceiam a pessoa negra de estar inserida no processo Dessa forma, não há como não dizer que a voz dos negros, in-
de produção do saber – ou qualquer outro processo discursivo – são bases clusive quando é ouvida, neste sistema estruturalmente racista, é colo-
com fundamentos coloniais e escravagistas; que “protegem” a branquitu- cada para gerir os benefícios da branquitude[*].
de de entrar em um confronto discursivo com o sujeito negro.
Resgatando a ancestralidade de Mãe Beata com a escrita de Teresi-
A máscara vedando a boca do sujeito negro impede- nha Bernardo
-a/o de revelar tais verdades, das quais o senhor bran-
co quer “se desviar’, “manter à distância” nas margens,
invisíveis e “quietas”. Por assim dizer, esse método pro- A formação identitária das mulheres ocidentais obedece a pau-
tege o sujeito branco de reconhecer o conhecimento ta da ordem patriarcal e estabelece o lugar que deve ser ocupado pelo
da/o “outra/o” (KILOMBA, 2019, p. 42). sujeito feminino (BERNARDO, 2003). Nesse quadro, todas as leis so-
ciais que regulamentam o comportamento das mulheres dentro e fora
No segundo capítulo do mesmo livro, Grada Kilomba toma
como referência o livro Pode a subalterna falar?, de Gayatri Spivak [*] A omissão ou a abordagem simplista do papel que o branco ocupa, como branco,
(1995), para elaborar um pensamento sobre o direito da pessoa negra na perpetuação das desigualdades raciais (...) auxiliam a compreender alguns sinais da
branquitude (BENTO, 2003, p. 29).
falar ou não. A pensadora portuguesa argumenta que o cerne da ques-

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de seus lares partem historicamente de homens brancos. Assim, existem eram valorizadas pela sociedade abrangente. Assim,
determinados princípios que caracterizam esse comportamento femi- as próprias mulheres pensavam que, tanto suas ações,
quanto suas lembranças não eram merecedoras de im-
nino e que colocam a mulher como ocupante de um espaço exclusivo e portância (BERNARDO, 2003, p. 31).
previamente determinado: “o interior da casa” (BERNARDO, 2003).
Outro princípio patriarcal que organiza o senso comum em tor- Em seguida, a autora explica que essas histórias de vida não
no da identidade feminina é o olhar de mulher sensível, recatada e cuja abarcam todas as mulheres. Segundo ela, quando se trata das mulheres
sexualidade deve estar restrita ao espaço do lar. Sob os poderes e desejos afro-descendentes, o referencial de memórias é outro; são depoimentos
do marido. Desse modo, a sexualidade feminina acontece com a finalida- que geralmente “revelam a tradição oral como categoria explicativa [...]
de de gerar filhos e cuidar desse espaço sagrado instituído pelo conceito a oralidade africana seria responsável pela forma e pelo gostar de lem-
de família monogâmica, cristã e tradicional (BERNARDO, 2003). brar das mulheres negras” (BERNARDO, 2003, p.32).
O que tange a vida masculina, no entanto, é a manutenção do es- Outro fator determinante para a importância atribuída pelas
paço público, no qual o homem ministra a vida política e social enquanto a mulheres negras à sua memória, defende Teresinha, é a vida plural e eco-
mulher organiza os afazeres domésticos. Os referidos conceitos são os que nomicamente ativa dessas mulheres. Para exemplificar isso, a autora re-
introduzem o capítulo de Teresinha Bernardo na discussão sobre “A trajetó- constrói o passado dessas mulheres ainda no continente africano. Ela bus-
ria da mulher negra”. Para ela, não há dúvida de que os pensamentos supraci- ca referências em Pierre Verger para reconstituir a memória das atividades
tados estão comprometidos com a visão grega de manutenção da vida social. dessas mulheres negras africanas nas feiras iorubanas, nas quais tinham
um papel central e uma atividade negociante maior que a dos homens.
Não há dúvida de que somos herdeiros do pensamento
desenvolvido na Grécia antiga, além de termos sido mol- A atividade de troca que ocorre nas feiras parece ser de
dados pelo cristianismo. Essa herança marcou com ferro importância inconteste para as mulheres iorubas, pois elas
em brasa a memória feminina do Ocidente. A memória se submetem à separação de suas famílias: quando jovens,
coletiva se apoia no grupo que vive situações em comum. deixam seus lares para ir comerciar em mercados distantes;
A mulher, no mundo Ocidental, vive uma situação de sub- quando idosas, mandam suas filhas para as feiras importan-
missão, portanto, suas lembranças correspondem ao lugar tes e permanecem perto de suas casas com seus tabuleiros
que ela ocupa nessa realidade (BERNARDO, 2003, p.30). ou abrindo pequenas vendas. (BERNARDO, 2003, p.33)
Teresinha defende a tese de que o mundo ocidental, norteado Desse modo, quando se trata da trajetória de vida das mulheres
fundamentalmente por bases cristãs, trabalha sob uma dinâmica funda- negras, independentemente do passado escravagista, o fio condutor que
mentalista e normativa que reserva para a mulher o espaço privado, o costura suas histórias parte de um princípio de relação com o mundo
que sentencia às mulheres a “representar a permanência, a intimidade, a que não se configura a partir de Adão e, tão pouco, toma como legado
continuidade” (BERNARDO, 2003, p. 30). sócio-histórico o mito de Hermes e Héstia (BERNARDO,2003).
A professora explica, ainda, que Pierrot analisa a memória fe- Teresinha Bernardo argumenta, ainda, que o trabalho desem-
minina a partir da Europa no século XIX; tempo em que as discussões penhado pelas mulheres negras iorubanas tanto servia para subsistência
entre o espaço público e o privado já aconteciam de modo caloroso. como para acumulação de bens e que, sobretudo, elas trabalhavam por
Teresinha, sobre isso, defende que o espaço público – com suas ativi- si só, não para acompanhar e/ou servir aos seus maridos.
dades político-econômicas – ganhara destaque por ser exclusivamente
exercido pelo homem. Nessa perspectiva pode-se avaliar a autonomia da mulher
ioruba: deixa a própria família, embrenha-se em caminhos
Se na história há esse vazio, isso não significa que não distantes para chegar às feiras; compra a produção de seu
existissem lembranças femininas. Entretanto, por trata- próprio marido, revende e permanece com o lucro; é, en-
rem do vivido no espaço privado, essas lembranças não fim, uma ótima comerciante (BERNARDO, 2003, p.33).

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Referencia-se, pois, essa discussão, neste trabalho, como forma Yemonjá. Ainda menina, Beatriz mudou-se para a casa do tio, que era
de diferenciar a vivência das mulheres negras e das mulheres brancas babalorixá (sacerdote), em Salvador, cuja morada durou dezessete anos
e, também, em um discurso que não tenha como pauta a colonização, de trocas e aprendizados. O tempo passou e com a morte de Anísio de
mostrar um olhar sobre a perspectiva de mulheres negras antes do pro- Logun Edé (Orixá guerreiro) – seu tio – a menina, filha biológica de
cesso escravagista –para que a população negra não fique apenas refe- Sr.ª Do Carmo, procurara quem pudesse cuidar de sua espiritualidade
renciada pela régua da história colonial. e encontrara Mãe Olga de Alaketu, que, naquele momento, era a ialo-
Isso serve, inclusive, para denotar o caráter articulado, político e rixá (sacerdotisa) do terreiro “Ilê Maroia Laji”. Nessa casa, a menina da
empreendedor dessas mulheres negras que são constituintes da herança encruzilhada é iniciada no candomblé para Yemonjá (Orixá das águas
da diáspora africana pelo mundo. Através das quais se chega em mulheres salgadas) e dá início a umas das trajetórias mais emblemáticas, no Bra-
negras que inspiram esta pesquisa, como Mãe Beata, Conceição Evaristo, sil, para os ascendentes e descendentes das famílias de santo – nome po-
Lívia Natália, Angela Davis, Grada Kilomba e Teresinha Bernardo e, con- pular para os candomblés. Com o passar do tempo, Beata de Yemonjá,
sequentemente, outras de antes e depois que organizam a manutenção do como ficara conhecida Beatriz Moreira da Costa, mudou-se para o Rio
circuito que reconstrói a identidade negra e feminina pelo mundo. de Janeiro e alocou-se no bairro de Miguel Couto, Nova Iguaçu.
Para finalizar, notifica-se que a professora e escritora Teresi- Mãe Beata, em Miguel Couto, fundou sua casa de axé “Ilê
nha Bernardo não é uma mulher negra. No entanto, o seu trabalho Omiojuaro” e deu início à sua trajetória como sacerdotisa de Orixá,
minucioso e bem articulado organiza um discurso que se julga apra- tornando-se por volta da década de 1980, uma das mais celebradas per-
zível sobre as referidas questões e, sobretudo, analisou-se o contexto sonalidades do candomblé carioca (PARADISO, 2011, p.27).
histórico no qual a escritora estava inserida, pensando essas questões. Exu é o Orixá responsável pela comunicação, é o senhor do ca-
Por esses motivos, sua escrita foi introduzida neste trabalho como for- minho e da versatilidade nas palavras; ele é a divindade que transita entre
ma de colaborar com todas as demandas pautadas aqui. diferentes culturas, pois tem facilidade de estabelecer laços amistosos. É
um Orixá poliglota. Em consonância com isso, Mãe Beata se consolida,
Das mulheres negras, da ancestralidade e da encruzilhada: nos candomblés, como uma referência capaz de representar a religião em
beata, filha de exu e yemonjá diferentes espaços. Filha de Exu, falava o dialeto que fosse necessário para
transmitir os conhecimentos ancestrais das culturas de terreiro e, através
Beatriz Moreira da Costa: mulher negra, ialorixá e escritora disso, solidificar um espaço de visibilidade para as religiões dos orixás, nos
ambientes em que o discurso hegemônico transita como a academia. So-
Beatriz Moreira da Costa, nascida sob os cuidados de Tia bre isso, Silvio Ruiz Paradiso escreve, em seu artigo:
Afalá “uma velha africana que era parteira do engenho” (YEMON-
Com simplicidade, Mãe Beata escreve como quem con-
JÁ, 2002, p. 11), veio ao aiyê (mundo terreno) no dia 20 de janeiro ta histórias vividas e com a cumplicidade de falar com o
de 1931. No interior da Bahia, motivada pelo desejo de comer peixe, leitor/ouvinte histórias que só a narrativa afrobrasileira,
Maria do Carmo vai à beira do rio labutar pela própria refeição. Já cheia de oralidade, pode nos brindar. Um livro de me-
mórias tão ambíguo que chega a ser tanto coletivo como
dentro da morada de Oxum (rio),o movimento das vestes da deusa- individual, abordando um povo, um grupo social, e ao
-fértil (Oxum é o Orixá da fertilidade) anuncia a levigação entre o mesmo tempo, da vida de uma só pessoa: a escritora filha
líquido amniótico e as águas que trariam a boa nova naencruzilhada. de Exu e Yemonjá. (PARADISO, 2011, p.28)
Prometida, a criança escorrega-quase-dança nos braços da par-
turiente. Tia Afalá as acolhe, mãe e filha, com a notícia de que a nasci- Ativista das causas sociais das populações negras e desfavore-
da era filha de Exu (Orixá que representa o caminho e o destino) e de cidas, que sempre ocuparam lugar de subalternidade no Brasil, Beata
deYemon já foi presidente de honrada ONG “Criola”, conselheira do

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Movimento Inter-religioso (MIR), membra do Conselho Estadual dos forma, manifestações culturais como a música, a dança, a culinária, as
Direitos da Mulher, além de trabalhar em um projeto que realizava tra- crenças e, também, a literatura configuram o legado africano consti-
balhos com portadores de HIV (SILVA, 2018). tuído, no Brasil, como forma de subsistência.
Todas essas atividades certamente contribuíram para que a ialo- Conceição Evaristo (2009), em seu artigo epigrafado por Li-
rixá se constituísse em um processo formativo que perpassa por diferentes teratura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, problematiza o
sujeitos plurais, como uma comunicadora dentro e fora dos terreiros de modo como a população negra do Brasil é rechaçada da possibilidade
candomblé. Como afirma Pedro Henrique de Souza da Silva, em seu artigo de existir como produtora de saberes literários.
Entre a mensagem e a comunicação: A “oralitura” de Mãe Beata de Yemonjá:
Se, por um lado, tanto as elites letradas como o povo,
E como Yemanjá, a ialorixá é responsável por fazer a comu- dono de outras sabedorias, não revelem dificuldade al-
nicação entre o passado e o presente da cultura afro-brasi- guma em reconhecer, e mesmo em distinguir, os refe-
leira, através do registro e transmissão dessas histórias dos renciais negros em vários produtos culturais brasileiros,
terreiros até locais antes negados a essa cultura, como por quando se trata do campo literário, cria-se um impasse
exemplo, o universo letrado dos livros (SILVA, 2018, p.5). que vai da dúvida à negação (EVARISTO, 2009, p. 19).

Mãe Beata, então, configura-se como escritora e difusora dos Nessa perspectiva, produções literárias como as de Mãe
saberes ancestrais das comunidades tradicionais de terreiro (casas de Beata emergem como formas de contra-discursos ao que está esta-
candomblé), através de suas publicações. Com uma escrita que indicia belecido no imaginário social da literatura brasileira. Sob esse olhar,
suas origens iorubanas, a ialorixá conta e remonta os itáns (mitos afri- essas literaturas têm um papel fundamentalmente político para a re-
canos que contam as histórias dos Orixás) que fazem parte do universo configuração do status quo, pois, em um exercício de recuperação de
cultural candomblecista em dois livros; o primeiro é o objeto de estudo memórias, de subversão das imagens cristalizadas sobre um sujeito
desta pesquisa. Como afirma Paradiso (2011, p.27) Mãe Beata lança negro estereotipado e de afirmação da identidade negra intelectual,
em 1997, seu primeiro livro de contos: Caroço de Dendê. A sabedoria Beata de Yemonjá narra seus contos do ponto de vista da mulher-ne-
dos terreiros, pela Pallas editora e, em 2004, Histórias que a minha avó gra-mãe-de-santo que se apropria de uma estética literária negra que
contava pela editora Terceira Margem. valoriza e enaltece suas raízes étnicas.
A oralidade dos candomblés é a base da literatura de Caroço de Esse movimento de recuperação da memória e da ancestra-
Dendê (2002). No livro, Beata reúne 43 contos que nos fazem mergu- lidade se encontra, também exposto em outras literaturas negras
lhar em um universo coletivamente litúrgico e que, como quem exercita femininas– mas não só femininas. Conceição Evaristo (2017), no
a valorização de suas memórias, materializa essas oralidades múltiplas e livro Poemas da recordação e outros movimentos, cujo título já evoca
ricas que configuram a sabedoria dos terreiros. a recuperação da memória, apresenta, através do poema “Vozes-mu-
lheres”, a gradação presente na reconstrução da ancestralidade que
Negra memória, a ancestralidade recuperada pela escrita se renova a cada ente em uma geração de mulheres-meninas-ances-
tres que se interligam pelo legado ancestral:
As religiosidades de matrizes africanas são, para os “negro-
-brasileiros” (CUTI, 2010), como um baú que guarda solenemente VOZES-MULHERES
as tradições incorporadas à cultura brasileira pela diáspora africana. Conceição Evaristo
Nesse sentido, os terreiros de candomblé funcionaram e continuam
funcionando como quartéis de conservação e rememoração das expe- A voz de minha bisavó
riências de resistências e reexistências desses povos no Brasil. Dessa ecoou criança

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nos porões do navio. A estética literária negra e candomblecista de Mãe Beata


Ecoou lamentos
de uma infância perdida. O panteão dos Orixás das culturas nagô constitui uma estética
A voz de minha avó literária peculiar nos contos de Mãe Beata; retratados de modo orgânico
ecoou obediência e descontraído, os deuses que organizam a cosmogonia dos candomblés
aos brancos-donos de tudo. são apresentados de forma espontânea nos textos. No entanto, com isso, a
A voz de minha mãe escritora não diminui o caráter divino e sacralizado dos Orixás. A ialorixá
ecoou baixinho revolta do Ilê Omiojuaro articula a presença dos deuses com a dos humanos – e
no fundo das cozinhas alheias ora dos animais – sem permitir que eles percam suas características sacras.
debaixo das trouxas Mostra, contudo, que suas referências ancestrais são ligadas às matrizes
roupagens sujas dos brancos étnicas africanas e explicita, com isso, uma literatura marcada por essas
pelo caminho empoeirado matrizes que são intrínsecas à sua formação intelectual.
rumo à favela. A professora da Universidade PUC-SP, Teresinha Bernardo
A minha voz ainda (2003), em seu livro Negras, mulheres e mães lembranças de Olga de Ala-
ecoa versos perplexos ketu, ao dissertar sobre a trajetória das mulheres negras, faz uma recupe-
com rimas de sangue ração histórica sobre a formação das sociedades ocidentais e do papel da
e mulher neste aparato social. Ao falar das mulheres afro-descendentes,
fome. Teresinha dá o seguinte depoimento:
A voz de minha filha
No entanto, no Brasil, como em outros pontos do
recorre todas as nossas vozes planeta, vivem mulheres que não são descendentes de
recolhe em si Héstia; suas ascendentes são Iansã, Euá, Nanã, Oxum,
as vozes mudas caladas Iemanjá. São as mulheres afro-descendentes. A memó-
ria do vivido dessas mulheres é nítida, clara. Lembram
engasgadas nas gargantas. de detalhes de sua vida, dos grupos a que pertenceram
A voz de minha filha no passado e daqueles aquém pertencem no presente.
recolhe em si As lembranças herdadas também fazem parte de suas
a fala e oato. memórias e, sobretudo, dizem que gostam de lembrar
(BERNARDO, 2003, p. 32).
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha A estética literária de Mãe Beata, nessa perspectiva, é carregada
se fará ouvir a ressonância dessas lembranças herdadas por uma ascendência que remete aos deu-
O eco davida-liberdade. (EVARISTO, 2017) ses africanos, como descreve Teresinha Bernardo. A própria escolha do
nome pelo qual deseja ser conhecida – Beata de Yemonjá – aponta para
O poema de Conceição Evaristo, portanto, constitui a elabora- a valorização que a escritora dá ao seu legado ancestral.
ção de uma memória que se recupera com a finalidade de ressignificar a No desenrolar dos contos é possível identificar vários termos
vivência dessas mulheres negras, através da voz. Vozes que foram silen- em iorubá, os quais são escritos exatamente da forma como são apresen-
ciadas pelo processo de escravização e que agora se reconfiguram com tados na língua africana, sem tradução ou explicações paralelas; outra
a potencialidade da arte para, como instrumento de libertação, fazer marca característica de Caroço de Dendê (2002) são os elementos dis-
ouvir “o eco da vida liberdade” (EVARISTO, 2017, p.10-11). cursivos que denotam a oralidade – cuja presença, para o candomblé,

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ultrapassa o sentido estrito da fala e compreende a própria base da exis- JÁ, 2002) e tantos outros saberes populares, coletivamente compartilha-
tência sagrada candomblecista – isso também indicia uma performance dos pelas narrativas-vida dos mais velhos, que figuraram a personalidade
negra e candomblecista de fazer literatura, pela qual Mãe Beata preza da ialorixá. O depoimento da professora Vânia Zikán Cardoso, professora
com apreço e estima. Apresenta-se, para tanto, uma fala da própria ia- associada da UFSC, no livro do qual se fala aqui, traz essa reflexão:
lorixá que exemplifica isso: “Hoje, eu sou uma omorixá e uma lutadora
Sua voz invoca a memória da história de sua infância,
de minha religião e de minha raça. Meu nome: Beata de Yemonjá” (YE- de histórias contadas numa região fortemente marcada
MONJÁ, 2002, p.122). pela cultura afro-brasileira. Embebidas nessa memória
estão também as histórias e os mitos contados e ouvi-
dos na sua vivência em comunidades de candomblé
Caroço de Dendê: entre itáns, orikis e as formas de trans- (YEMONJÁ, 2002, p. 12).
mitir o conhecimento ancestral
A oralidade marcada nos contos de Caroço de dendê (2002) –
Apresentação da obra elemento estético que singulariza a escrita da literata filha de Yemonjá
– conserva de modo fundamental o exercício que estabelece a principal
O primeiro livro publicado por Mãe Beata (2002), Caroço de forma de transmissão de conhecimento nos terreiros de candomblé.
Dendê a sabedoria dos terreiros como ialorixás e babalorixás passam conhe- Vânia Cardoso, no prefácio do livro de Mãe Beata, também presta im-
cimentos a seus filhos, reúne quarenta e três contos que, conforme sugere o portante depoimento sobre isso:
título da obra, exemplificam o modo “como ialorixás e babalorixás passam
conhecimentos a seus filhos” (YEMONJÁ, 2002). Todas as narrativas ex- A dinâmica de transmissão oral destas histórias dentro
das comunidades-terreiro e a interação entre contado-
postas no exemplar remontam as tradições afro-brasileiras – e utiliza-se este res e ouvintes no dia a dia dos terreiros nos levam a pen-
termo porque as culturas africanas apresentadas no livro, em muitos mo- sar nos contos de Mãe Beata como, de certa forma, uma
mentos, estão difundidas com tradições de outras matrizes étnicas e, desse criação coletiva destas comunidades, individualizados
pela sua criatividade como contadora de histórias (YE-
modo, não é pertinente dizer que são exclusivamente tradições africanas – MONJÁ, 2002, p. 12-13)
de modo a apresentar as tessituras entre o texto oral e o texto escrito.
Sob a condição de uma mulher negra, descendente direta do O cotidiano das comunidades tradicionais de candomblé é
continente africano, iniciada para o Orixá, Beata de Yemonjá ilustra os atravessado por esse contar de histórias, em um circuito no qual o mais
valores litúrgicos e culturais do povo de santo sem perder o tom fabulo- velho geralmente conta, mas também ouve; também aprende. Os itáns
so necessário a uma boa literatura ficcional. Os “doces relatos que com- traduzem, em muitos momentos, os desejos dos Orixás para os mais
põem Caroço de dendê”, como descreve Júlio Braga, na apresentação novos e também funcionam como um mecanismo de letramentos para
do livro (YEMONJÁ, 2002), fazem o leitor mergulhar em um univer- os recém-chegados na religião. Na literatura de Beata de Yemonjá, por-
so onde deuses e humanos interagem diretamente. Sem a pretensão de tanto, ressoam vozes que ensinaram, aprenderam e continuarão conso-
catequizar alguém, mas repletas de mensagens de senso crítico e moral nantes a todos que, com prazer, a encontrarem no caminho.
que dão caráter civilizatório aos textos, as tramas presentes em Caroço
de dendê (2002) desempenham, também, uma função sócio-educativa. Alguns contos: análise e afetos
Os contos de Mãe Beata interseccionam diferentes saberes, os
quais passam pela literatura, pela sabedoria ancestral dos candomblés, pelo O livro de Mãe Beata de Yemonjá reúne contos, entre os quais
conhecimento de uma mulher negra que crescera dentro da cultura baiana, estão as narrativas míticas dos terreiros, a vida social e política de pessoas
acompanhada por familiares africanos, libertos da escravidão (YEMON- comuns que são ficcionalizadas por Beata e, inclusive, a própria vida da

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES AUTORIA FEMININA NEGRA

autora. A saborosa confluência literária que Caroço de dendê apresenta alguém que tenha mais tempo de vida seja compreendido como
permite, a quem lê, a possibilidade de sentir-se outorgado para exercer a mais novo que uma pessoa que tenha menor idade, pois, para o
industriosa atividade de contar histórias. Neste capítulo, faz-se a análise candomblé, o que determina a idade de uma pessoa é o tempo an-
de apenas seis desses contos, cuja escolha obedeceu aos seguintes crité- cestral – o qual é dado pelo caminho de Odu da pessoa ou, em ou-
rios: a noção sócio-formativa apresentada por eles, a presença de elemen- tros casos, pelo tempo de iniciação para o Orixá que um indivíduo
tos culturais que demonstram com maior afetividade a prática letrada dos tenha. Sobre isso, Nilma Lino Gomes teoriza, ao apresentar o livro
terreiros e a necessidade de não tornar extensa esta atividade de escrita. de Stela Guedes Caputo:
No candomblé, as hierarquias de idade são invertidas de
O samba na casa de Exu acordo com o tempo de feitura do santo. As responsabili-
dades são múltiplas e variadas. É possível ser uma criança
O samba na casa de Exu é a narrativa que abre o tecer da manta de na idade e um adulto no santo. Nesse caso, os lugares de
poder e a hierarquia são outros. Trata-se de uma outra
memórias de Mãe Beata. Como sacerdotisa de Orixá, a escritora faz referên- lógica, muito diferente do adultocentrismo que impera
cias à sua tradição candomblecista, na qual tudo começa por Exu e onde, em em nossa sociedade (CAPUTO, 2012, p. 20).
tudo, ele está presente. No conto, Exu – que é, sem dúvidas, a personagem
mais assídua no livro – aparece como o Orixá da correção. Ele vem para ad- Neste conto, o filho tinha uma espiritualidade elevada e, através
vertir uma mulher que desafiara os Orixás invocando seu nome em vão: de um sonho que tivera, alerta ao pai – cuja profissão é lenhador – que
não cortasse uma árvore naquele momento. Desacreditado, o pai corta
Ele começou a sambar e deu um estouro bem no meio
do samba e sumiu. A mulher caiu ali mesmo, desmaiada. a árvore e sofre um acidente. A ialorixá, nessa narrativa, apresenta duas
De manhã o marido não achou a mulher na cama e saiu à importantes mensagens: a necessidade de se ter humildade para sempre
sua procura. Ele achou a mulher caída numa encruzilha- aprender com o outro e a responsabilidade que se deve ter com a natureza.
da, falando bobagens. Ela nunca mais ficou perfeita nem
pôde mais sambar (YEMONJÁ, 2002, p.28).
O colhedor de folhas
Esse itán também revela o caráter sincrético que compreen-
de a conjuntura dos candomblés, pois relata um feriado católico – a O colhedor de folhas é o décimo oitavo conto de Caroço de
saber, a sexta-feira da paixão – como um feriado sacro e para o qual dendê e aborda uma questão elementar para as religiosidades de ma-
se deve respeito e compostura, compreensão comum entre os povos trizes africanas: a oferenda. Nessa narrativa, a ancestre maior do Ilê
de terreiro. Deste modo é que a filha de Exu com Yemonjá desenha Omiojuaro conta a história de um homem que colhia ervas na mata
sua aquarela literária, mostrando a perspectiva dos candomblés em para vender; no entanto o homem somente recolhia as folhas sem dar
uma interação entre deuses e humanos que brincam, dançam, se di- nada em troca para Ossaim (Orixá guardião das matas). Em um dado
vertem e também exortam quando necessário. momento, o homem não consegue mais encontrar as folhas e vai bus-
car ajuda com uma mulher africana que o ensina sobre como agradar
O menino que tinha muito saber Ossaim para conseguir o que queria na mata.
A oferenda representa o gesto de gratidão aos Orixás e reco-
O décimo primeiro conto do livro, O menino que tinha nhecimento de que é necessário oferecer-lhes algo para que se tenha
muito saber, apresenta a questão do tempo na perspectiva do can- êxito em determinada missão (OXALÁ, 1998). Por isso, Mãe Beata
domblé. Para a religiosidade de matrizes africanas, o tempo não se constrói a narrativa sob a sentença de que é preciso ter respeito aos Ori-
configura conforme a percepção Ocidental. Logo, é comum que xás para adquirir vitória em tudo quanto se fizer.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES AUTORIA FEMININA NEGRA

Exu e os dois irmãos que nascera na encruzilhada. Conto dedicado à minha mãe, Do Carmo
exemplifica uma vez mais a importância que se tem no reconhecimen-
O conto seguinte a ser analisado é Exu e os dois irmãos, tal- to da ancestralidade, para a cosmogonia dos Orixás. Mãe Beata narra
vez o conto mais emblemático do livro. Nele, Mãe Beata conta um itán novamente a sentença de Tia Afalá sobre quem seriam seus Orixás de
muito popular nos candomblés. A narrativa problematiza a história de cabeça, Exu e Yemanjá, e encerra reafirmando seu lugar de ocupação no
dois homens negros, irmãos, que eram agricultores e, para ter êxito em mundo “[...] uma omorixá e uma lutadora de minha religião e minha
sua atividade agropecuária, consultavam as crenças cristãs, as quais não raça. Meu nome: Beata de Yemonjá” (YEMONJÁ,2002).
faziam parte de seu universo étnico-cultural.
Exu, na trama, aparece como um deus que vem para problema- Olorum, modupé. Axé!
tizar as percepções dos irmãos sobre a espiritualidade:
O desenvolvimento desta pesquisa possibilitou encontrar cami-
Eu sou Exu. Eu quis mostrar para vocês dois que os
mitos das suas raízes, do país de que vocês chegaram nhos para pensar em uma literatura de autoria feminina negra e candomb-
até aqui, têm os mesmos valores que os outros, e talvez lecista, que seja atravessada por questões que somente uma mulher com os
até mais, pois são milenares. Como vocês acham que pressupostos dessa vivência é capaz de produzir. Isso porque os letramentos
os outros, não os da sua cultura, podem ter mais força?
De hoje em diante, vocês vão voltar ao que eram e a ter raciais e litúrgicos dos candomblés, através da relação com a ancestralidade,
tudo (YEMONJÁ, 2002, p. 100). com a memória, e até mesmo com as experiências traumáticas do racismo, é
que forjam uma estética singular dentro desse corpus literário.
Esse conto exemplifica o caráter político de Mãe Beata. A escri- Sendo assim, não há a menor pretensão de apresentar aqui al-
tora remonta o conto, tradicional nos candomblés, de modo a reivindicar guma conclusão. Inclusive porque acredita-se que nada se conclui, no
a questão identitária dos negros no Brasil. Ela ressignifica o conto para elu- entanto, as coisas mudam de ciclo. Portanto, é o que se fará desta pes-
cidar, sem proselitismo, os valores culturais da diáspora africana no país. quisa. Cada olhar é um novo caminho e cada interpretação uma nova
estrada. Tendo a possibilidade de continuar, ou não, ressoará em outra
O orgulho de obi e Conto dedicado à minha mãe, Do Carmo frequência. Tanto porque este trabalho surge erguido por muitas vozes,
recebe um nome, mas não é único. Começou antes disto e continuará
O orgulho de obi conta a história do fruto de origem africana – ressonante até quando quem o produziu não mais exista.
noz de cola – (ROCHA, 1999) que é utilizado em quase todos os rituais O que se construiu com esta pesquisa, portanto, foi um olhar para a
litúrgicos do candomblé. A história narra o porquê de obi ser partido em potencialidade das literaturas produzidas por mulheres negras e mães de san-
quatro partes todas as vezes em que precisa ser utilizado nos cultos. Obi é to que tematizam as experiências dos terreiros – como fizera Mãe Beata – e,
agraciado por Exu, que se compadeceu de sua condição de pobreza, e de- sobretudo, a referenciação de uma estética literária negra e candomblecista;
pois fica soberbo. Exu – que tanto dá como tira – solicita Orumilá (Orixá a qual é permeada pela valorização dos saberes, dos valores cosmogônicos, da
da sabedoria) para dar o devido castigo ao Obi. Esse conto desempenha filosofia e de todas as experiências que constituem as práticas dos terreiros.
uma função moral de mostrar que as pessoas devem ser gratas a quem lhes
oferta ajuda em momentos de dificuldades, mais uma característica que evi- Referências Bibliográficas
dencia a função, também, educativa dos terreiros de candomblé; e Beata de
Yemonjá novamente se apresenta nessa atividade, através da escrita. ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
O último conto do livro expressa uma linda homenagem de BENTO, M. A. . Branqueamento e branquitude no Brasil. In: BENTO,
Beata para sua mãe biológica. Ela narra outra vez a história do dia em M. A. S.; CARONE, Iray. (orgs.) Psicologia Social do Racismo. Estudos

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES

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BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães lembranças de Olga
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FOGUEL, Ramón (orgs.). Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
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to de Letras, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 1996. Doutor pela UFRGS, Docente na Universidade Feevale
_____. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro:
Malê, 2017. Introdução
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roz. Eu sou uma mulher negra escrevendo: entrevista com Lívia Natá- Ninguém nasce odiando o outro
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maio/ago. 2017 http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/571-li- origem, ou sua religião. Para
via-natalia odiar as pessoas precisam apren-
OXALÁ, Adilson de. Igbadu a cabaça da existência. Rio de Janeiro: der, e se elas aprendem a odiar,
Pallas, 1998. podem ser ensinadas a amar.
(Nelson Mandela)[*]
PARADISO, Silvio Ruiz. Caroço de Dendê (1997), de Beata de Ye-
monjá - A memória e identidade negra através das divindades iorubas. A epígrafe, afirmação de um dos maiores líderes que o mundo
Londrina, Vagão-volume 8, parte A, p. 25-33, dez. 2011. já conheceu, indica que o ódio ao outro, em função de sua diferença,
ROCHA, Agenor Miranda. Caminhos de Odu. Rio de Janeiro: Pallas, 1999. resulta de um condicionamento, ou seja, é produto de uma construção
sócio-cultural. Sendo assim, há a possibilidade da elaboração de um ca-
SILVA, Pedro Henrique Souza da. Entre a mensagem e a comunicação: minho que tome o percurso inverso, aquele em que o amor e a igualda-
A “oralitura” de Mãe Beata de Yemonjá. Belo Horizonte: Literafro, 2018. de constituam-se como fim último.
YEMONJÁ, Mãe Beata de. Caroço de dendê - a sabedoria dos terrei- O presente trabalho se associa à ideia de que é possível cons-
ros: como ialorixás e babalorixás passam conhecimentos a seus filhos. truir uma sociedade mais justa, igualitária, humana por meio de ações
Rio de Janeiro: Pallas, 1997.
[*] Da autobiografia “O longo caminho para a liberdade”, 1994.

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que desvelem seu próprio funcionamento, colocando em evidência suas são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, jor-
falhas, suas mazelas. E não há dúvida de que a escola, como instituição nalistas, artistas plásticos, cineastas, escritores”. Essa realidade pode ser vista
oficial, responsável pela formação de crianças e adolescentes, possa exer- em estatísticas sobre as desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, mes-
cer papel relevante nessa construção. Os próprios documentos oficiais mo que se perceba, nos últimos tempos, uma ligeira melhoria nos índices.
convergem para esse posicionamento, ao falar das atribuições do ensino. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
O Artigo 3º da Lei Nº 9.394/1996 (LDBEN)[*], por exemplo, em 2018, no Brasil, os estudantes pretos ou pardos passaram a compor a
aborda os princípios de ensino, tomando por base o respeito à liberda- maioria nas instituições de ensino superior da rede pública (50,3%). En-
de, o apreço à tolerância, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e tretanto, como formam 55,9% da população total do país, seguiram sub-
divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias -representações. Cabe ressaltar que o crescimento foi muito em função das
e de concepções pedagógicas, entre outros. políticas de cotas raciais e renda para acesso à universidade, como do Siste-
A Base Nacional Comum Curricular, por sua vez, docu- ma de Seleção Unificada – SISU e O Programa Universidade para Todos
mento que apresenta as aprendizagens essenciais a serem desenvol- – PROUNI. Entre 2016 e 2018, a taxa de analfabetismo das pessoas pretas
vidas na Educação Básica, igualmente aponta que um dos papéis da ou pardas de 15 anos ou mais passou de 9,8% para 9,1%, mas ainda é maior
escola é dialogar com a diversidade: que a de brancos (3,9%). Nesse mesmo período, a proporção de pessoas de
25 anos ou mais com pelo menos Ensino Médio completo subiu de 37,3%
Atenta a culturas distintas, não uniformes nem con-
tínuas dos estudantes dessa etapa, é necessário que a para 40,3%. Já entre a população branca, esse percentual era de 55,8%.
escola dialogue com a diversidade de formação e vi- Entretanto, o aumento das taxas de inserção não significa o fim
vências para enfrentar com sucesso os desafios de seus do discurso racista, muito pelo contrário, percebe-se a presença do discur-
propósitos educativos. A compreensão dos estudantes
como sujeitos com histórias e saberes construídos nas so de ódio e discriminação florescendo ainda mais na sociedade, muitas
interações com outras pessoas, tanto do entorno social vezes tonificado por representantes políticos que disseminam narrativas
mais próximo quanto do universo da cultura midiática preconceituosas, de forma a legitimar o racismo estrutural, este que, con-
e digital, fortalece o potencial da escola como espaço soante Almeida (2019), está incorporado à organização política e eco-
formador e orientador para a cidadania consciente, crí-
tica e participativa (BRASIL, 2018 p. 61). nômica da sociedade. Segundo o autor, “o racismo fornece o sentido, a
lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e vio-
O alcance desses objetivos pode se dar por meio de ações que co- lência que moldam a vida social comtemporânea” (2019, p.15).
loquem, no centro, o ser humano, sua organização e prática social. A litera- Por essa razão, faz-se necessário recorrer, sempre, a represen-
tura, nesse sentido, como manifestação cultural que se ancora na realidade, tações da realidade, entre elas, a literatura. Breve incurso pela literatura
para mostrá-la, transfigurada, ao leitor, pode contribuir significativamente afro-brasileira mostra que a representatividade de autores e personagens
para o reconhecimento de contextos de exploração, de exclusão. negros importa. Considerando a presença negra nestes espaços, é possível
O Brasil, infelizmente, ainda é um país extremamente racista e destacar suas contribuições na constituição da identidade brasileira, tanto
excludente. O escritor Luiz Ruffato (2013, np), em seu discurso na abertu- coletiva como individual. Essa literatura, ao valorizar sua cultura, con-
ra da Feira do Livro de Hannover, ao se referir ao descaso das autoridades trapõe-se às literaturas hegemônicas, proporcionando a reflexão sobre o
em relação ao oferecimento de condições dignas de vida após a abolição da papel das pessoas afrodescendentes na sociedade como protagonistas, de
escravatura, aponta que “até hoje, 132 anos depois, a grande maioria dos maneira a possibilitar a construção de imagens positivas dos negros e esti-
afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente mular o interesse por conhecer a cultura e literatura afro-brasileira.
Em função disso, ela vem tendo mais espaço em sala de
[*] Lei disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso aula atualmente, especialmente a partir da promulgação da Lei nº
em: 12 fev. 2021.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, in- Educação para as relações étnico-raciais
cluindo, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da
presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. A educação das relações étnicos-raciais se mostra essencial para
No Artigo 26-A, parágrafos 1º e 2º, lê-se o seguinte: um país tão diverso como o Brasil, no qual, em 2018, segundo dados do
IBGE, 43,1% da população brasileira declara-se como branca; 9,3%, preta;
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o
caput deste artigo incluirá o estudo da História da e 46,5%, parda. Esses três grupos, juntos, representavam, naquele ano, 99%
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, do total de moradores do país. Com isso, não há dúvidas de que vivemos
a cultura negra brasileira e o negro na formação da em um país multicultural com uma diversidade gigantesca, em que todas as
sociedade nacional, resgatando a contribuição do
povo negro nas áreas social, econômica e política origens e culturas devem ser preservadas, valorizadas e representadas.
pertinentes à História do Brasil. Conforme Gomes (2007, p. 18), “A diversidade é um compo-
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultu- nente do desenvolvimento biológico e cultural da humanidade. Ela se
ra Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de faz presente na produção de práticas, saberes, valores, linguagens, téc-
todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasi- nicas artísticas, científicas, representações do mundo, experiências de
leiras. (BRASIL, 2003) sociabilidade e de aprendizagem”. Cabe refletir, também, que a educa-
ção das relações étnico-raciais mostra-se desafiadora à escola, mesmo
O objetivo da lei é, além de aproximar o continente afri- quando a diversidade estiver presente nos corpos docente e discente.
cano do Brasil, desconstruir preconceitos que foram disseminados Gomes (2007) entende que as escolas públicas já vêm tendo uma nova
desde o período escravocrata até os dias de hoje, contribuindo, sensibilidade sobre a temática, mas que ainda é necessário que essa sen-
assim, com uma educação consciente de sua própria cultura e his- sibilidade se transforme em ações pedagógicas que possibilitem a mu-
tória, rica em diversidade, valorizando as origens africanas e sua dança do sistema educacional, tornando-o mais inclusivo, democrático
presente cultura afro-brasileira. O trabalho em sala de aula com e aberto à diversidade. Para Fernandes, Cinel e Lopes,
a literatura africana e afro-brasileira é de sentidos e significados,
pode resgatar histórias e aproximar o leitor a suas buscas indivi- Estamos buscando, no Brasil, um modelo de educação
não fechado, receptivo às mudanças que ocorrem na so-
duais por identidade, contribui com a visão de mundo diverso e ciedade, de modo particular às mudanças de comporta-
rico, possibilita problematizar questões raciais presentes na socie- mento que se fazem necessárias para o enfrentamento
dade, fortalecendo o protagonismo do leitor. dos desafios do século atual. Uma dessas mudanças diz
Nessa perspectiva, vale apostar na criação de propostas respeito à visão do novo homem brasileiro, qual se ins-
crevem o brando, o negro, o indígena e todos os demais
pedagógicas que poderão, de fato, contribuir com a reversão do étnicos presentes na composição do nosso povo (FER-
quadro, marcado pelo racismo e pela exclusão, a partir do proces- NANDES, CINEL e LOPES, 2016, p.217).
so educativo. A partir desse posicionamento, pretende-se analisar,
neste trabalho, uma obra infanto- juvenil de literatura afro-brasi- Nessa perspectiva, a escola deve se tornar capaz de abordar as-
leira e criar uma proposta de análise que evidencie a relação entre suntos que tratem da diversidade, da identidade, dos Direitos Huma-
os temas já citados: afro-brasilidade, formação de leitores e edu- nos, do racismo e da discriminação. É preciso considerar que muitas
cação das relações étnico-raciais. Portanto, a presente investiga- crianças só têm acesso a uma cultura mais ampla e diversificada e a um
ção propõe-se a discutir sobre a literatura afro-brasileira nos anos conhecimento formal na escola, pois os seus lares não têm condições
iniciais do Ensino Fundamental, com vistas à formação de leitores, para lhes dar esse suporte. Com isso, a escola se torna responsável por
e, consequentemente, à formação de uma sociedade em que discur- formar cidadãos, conscientes de suas histórias e origens, apresentan-
sos discriminatórios não encontrem eco. do aos alunos as diferentes culturas, literaturas e arte que compõem o

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Brasil: “especialmente a escola pública deve estar comprometida com Em conformidade com o exposto, cabe apresentar os objetivos
a construção de uma nação livre, soberana e solidária, onde o exercício da educação das relações étnico-raciais:
da cidadania não se constitua privilégio de uns poucos, mas direito de
[...] divulgar e produzir conhecimentos bem como
todos” (FERNANDES; CINEL; LOPES, 2016, p. 217). atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos
Cabe destacar que há legislação, políticas públicas, produções quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os ca-
teóricas, em considerável número, que defendem as relações étnicas-ra- pazes de interagir e de negociar objetivos comuns
que garantam, a todos respeitos aos direitos legais e
ciais na escola, tornando-as cada vez mais pauta prioritária, de interesse valorização de identidade, na busca de consolidação
e de responsabilidade de todos. Sendo assim, o professor não é o único da democracia brasileira. Os objetivos do Ensino de
responsável pela implementação das temáticas na escola, mas ele divide História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, por
a tarefa com a Direção, a Coordenação Pedagógica, a Orientação Edu- sua vez, são: reconhecer e valorizar a identidade, a
história e a cultura afro-brasileiras, bem como ga-
cacional. Além disso, a biblioteca da escola também deve estar articula- rantir o reconhecimento e a igualdade de valoriza-
da com o movimento negro, dispondo, em seu acervo, um significativo ção das raízes africanas da nação brasileira, ao lado
número de títulos relativos à temática. Os autores explicam que das indígenas, europeias e asiáticas (FERNANDES,
CINEL e LOPES, 2016, p. 233).
[...] é necessário um trabalho coletivo que comprome-
ta o Estado Brasileiro, em todas as instâncias, e nelas Nessa ordem, a educação das relações étnico-raciais impõe
as escolas, a concretizar as medidas de implementa- aprendizagens entre brancos e negros, promovendo trocas de conhe-
ção exigidas. Isto implica mudanças na postura dos
agentes educacionais, na concepção de escola, nos cimento cultural e histórico, valorização e afirmação da identidade in-
currículos escolares, ou seja, é um processo amplo de dividual e coletiva do povo brasileiro, garantindo a formação de indi-
mudanças em toda a estrutura até adentrar na sala de víduos conscientes da sua história, origens e da trajetória do seu país,
aula, para que se cumpra a finalidade da educação [...]
(FERNANDES, CINEL e LOPES, 2016, p. 125). sustentando políticas de tolerância em sala de aula. Entretanto, perce-
be-se que a educação brasileira ainda privilegia conteúdos de valores
Ainda segundo Fernandes, Cinel e Lopes (2016), o perfil eurocêntricos e, muitas vezes, discriminatórios.
do aluno do século XXI é de um aluno ativo, participativo, cida- Se consciência é memória e futuro, quando e onde
dão em construção e membro de uma sociedade democrática. Desse está a memória africana, parteinalienável da cons-
modo, a este aluno, a escola deve fornecer aprendizagens e saberes ciência brasileira? Onde e quando a história da
significativos que o levem a construir tanto sua própria identidade África, o desenvolvimento de suas culturas e civi-
lizações, as características, do seu povo, foram ou
quanto a nacional. Para isso, deve levar em conta elementos de sua são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há
ancestralidade; observar a realidade, estar atento ao que acontece alguma referência ao africano ou negro, é no senti-
ao seu redor, identificando situações, ideias, expressões e conceitos do do afastamento e da alienação da identidade ne-
gra. Tampouco na universidade brasileira o mundo
de posturas e práticas racistas e preconceituosas; respeitar todos os negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou
cidadãos, através do conhecimento de si próprio como dos outros, norte-americano se repete, e as populações afro-bra-
identificando especificidades étnicas-raciais, culturais e de gênero; sileiras são tangidas para longe do chão universitário
conviver em grupos, modificando-se para solucionar conflitos e como gado leproso (NASCIMENTO, 1978, p. 95).
melhorar as condições de vida de todos; valorizar a diversidade so- As indagações de Nascimento são necessárias ao se discutir a
ciocultural existente no Brasil, desenvolvendo atitudes de empatia educação, mas cabe ressaltar que o intuito das relações étnico-raciais, na
e solidariedade a todos; e denunciar atitudes e comportamentos de escola, não é mudar o foco etnocêntrico por um africano, mas promover
práticas racistas, preconceituosas e discriminatórias. a diversidade no currículo: “[...] cabe às escolas incluir no contexto dos

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

estudos e atividades, que proporciona diariamente, também as contri- gens. A busca por autoafirmação, por meio da história dos ancestrais, diz
buições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de respeito a muitos brasileiros. Se, durante muito tempo, a historiografia
asiáticos, além das de raiz africana e europeia” (BRASIL, 2004, p. 17). tradicional desconsiderou as agências e o protagonismo negro, hoje, a
partir de seus debates e reflexões, ela vem desvelando cada vez mais a cul-
Literatura africana e afro-brasileira nos tura negra, as lutas, resistências, as buscas pela liberdade e seus sentidos e
anos iniciais do ensino fundamental significados. Encontra-se, na atualidade, um bom número de textos que
tratam a sociedade brasileira sob o enfoque das relações étnico-raciais de
Encontrei minhas origens[*] identificação, da valorização e empatia. A presença dessas obras na escola
Oliveira Silveira é fundamental. A partir de sua leitura – e análise – as crianças podem se
identificar com as histórias de modo a criar relações autoafirmativas com
Encontrei minhas origens as narrativas; alunos não negros podem desconstruir seus preconceitos
em velhos arquivos e criar senso de empatia e, assim, contribuir com a construção de uma
...livros sociedade antirracista, plural e importante para todos.
encontrei
As obras comprometidas com a educação das relações
em malditos objetos étnico raciais representam os personagens negros como
troncos e grilhetas protagonistas em situações do cotidiano, enfrentando
encontrei minhas origens preconceitos para, de algum modo, resgatar a identi-
dade negra, ou, por outro, para revalorizar as tradições
no leste culturais e religiosas, por meio de divulgação de contos
no mar em imundos tumbeiros mitológicos africanos, ou por palavras das línguas dos
encontrei povos da África (ARENA & LOPES, 2013, p. 1153).
em doces palavras
...cantos Desse modo, percebe-se o quanto o trabalho com literaturas
em furiosos tambores que enfocam as relações étnico-raciais pode enriquecer a sala de aula.
...ritos Essas produções ficcionais possibilitam abordar diversos assuntos rela-
encontrei minhas origens tivos à questão da negritude. Jorge e Amânico destacam que
na cor de minha pele O trabalho com a Literatura ocupa um espaço privile-
nos lanhos de minha alma giado no atendimento dos objetivos da Lei 10.639/03,
em mim uma vez que a Literatura cria oportunidades diversas
para discutir aspectos culturais e históricos do conti-
em minha gente escura nente africano e do Brasil, bem como fomentar o pen-
em meus heróis altivos samento crítico acerca de realidades diversas. Assim,
encontrei para além de uma ação pedagógica que vise a diversi-
dade e a criticidade, reforça-se a implementação da Lei
encontrei-as enfim 10.639/2003, a qual muito já foi defendida nesta pes-
me encontrei. quisa ( JORGE & AMÂNICO, 2008, p.108).

No poema de Oliveira Silveira (1981), é possível observar que Muito se questiona de que forma é possível incentivar o gosto
o eu lírico encontra a si mesmo somente quando se depara com suas ori- das crianças pela leitura. Acredita-se que o ser humano se interessa
por aquilo com que identifica; talvez aí se encontre uma das respostas
[*] Roteiro dos tantãs. Porto Alegre: Edição do autor, 1981, p. 136.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

à questão. Parafraseando Saraiva, Mügge e Kaspari (2017), quando cujo objetivo é responder à questão “Qual a significação do texto?”;
se permite que o leitor de uma literatura fortaleça os laços de perten- a leitura analítica, que busca responder à questão “Como o texto diz
ça, reconheça-se como parte de uma comunidade e expõe-se como aquilo que diz?”; e a Leitura interpretativa, que se atém a responder à
uma experiência concreta, pode emergir um sujeito humanizado. A pergunta “Qual o sentido do texto?”. Por fim, na “etapa de aplicação”,
fim de contribuir com o assunto, Aguiar (1988, p.15) explica que “a projeta-se a ampliação da experiência literária do leitor, investindo
formação escolar do leitor passa pelo crivo da cultura em que este se na correlação do texto com conhecimentos de outras áreas e mani-
enquadra. Se a escola não efetua o vínculo entre a cultura grupal ou festações culturais diversas, de maneira a estabelecer o diálogo entre
de classe e o texto a ser lido o aluno não se reconhece na obra, porque o texto e o contexto estético-histórico e cultural, tanto do momento
a realidade representada não lhe diz respeito”. de sua produção quanto do de sua leitura. Nessa etapa, valoriza-se a
Diante disso, torna-se necessário estabelecer outra narrati- produção textual dos alunos: escrita de narrativas, poemas, diários,
va muito relevante à educação das relações étnico raciais: represen- cartas, e-mails, mensagens de whatsapp, etc. Também podem ser rea-
tatividade importa! A criança negra, no Brasil, vive em busca de seus lizadas entrevistas, elaborados painéis e produzidos desenhos.
iguais, de fazer parte de algo positivo, de fortalecer a admiração por Esclarecida a metodologia que sustenta a elaboração da pro-
seus pares, de manter viva a memória de seus antepassados. Porém, posta de trabalho com O Mundo no Black Power de Tayó, de Kiusam
não enxerga referências nas histórias de sua infância. “Ao olhar para de Oliveira, apresentamos o roteiro, dirigido a alunos do quarto ano
dentro de si com os olhos do outro branco, a identidade do ser ne- do ensino fundamental.
gro fica ainda mais fragmentada, na medida em que sua identidade As atividades do roteiro poderão ser integradas a um projeto
dilui- se na do branco, porque sem representações positivas da sua mais amplo, que envolva o desenvolvimento de uma temática, ou se-
etnia, vê no branco o espelho do que é socialmente considerado” rem aplicadas isoladamente, como mais uma tarefa entre as múltiplas
(ARENA & LOPES, 2013, p. 1159). atividades que compõem o fazer pedagógico. Assim, cabe ao professor
a decisão sobre como aplicar o roteiro, esclarecendo-se, também, que
Proposta de análise de O Mundo no Black Power de Tayó, ele pode sofrer adaptações, pela inclusão ou exclusão de tarefas. Com
de Kiusam de Oliveira efeito, o roteiro é um plano de trabalho, cujo sucesso depende da dispo-
sição do professor de preparar sua aplicação e do estímulo que ele vier a
A proposta de análise se sustenta na metodologia proposta dar aos alunos para que se envolvam com as questões propostas.
por Juracy Assmann Saraiva e Ernani Mügge (2006), tendo por base a
Estética da Recepção, prevê a exploração de um texto literário em três
etapas distintas: atividade introdutória à recepção do texto, leitura
compreensiva e interpretativa e transferência e aplicação da leitura.
A primeira etapa tem a função de sensibilizar, motivar o aluno para a
leitura do texto. Assim, ela é realizada antes do contato do leitor com
o texto e pode ancorar-se em estratégias variadas, tendo como suporte
outro texto como apelo; experiências pessoais; notícias, fatos da atua-
lidade; músicas, filmes, telenovelas, documentários; brincadeiras, etc.
A etapa seguinte, leitura compreensiva e interpretativa, tem como ob-
jetivo possibilitar a apreensão da significação do texto. Apresenta-se
em três níveis, sucessivos e complementares: a leitura compreensiva,

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

ROTEIRO DE LEITURA LEITURA COMPREENSIVA E INTERPRETATIVA


OLIVEIRA, Kiusam de. O Mundo no Black Power de Tayó.
Ilustrado por Taisa Borges. São Paulo: Petrópolis, 2013.
ATIVIDADE II: Explorando a linguagem
Autores
Fernanda Rodrigues da Silva
Ernani Mügge
ATIVIDADE INTRODUTÓRIA À RECEPÇÃO DO TEXTO A) Você percebeu que, no texto, há algumas palavras em des-
taque? Encontre-as no caça-palavras. Elas se encontram apenas na ho-
ATIVIDADE I: Contextualizando o leitor rizontal e na vertical.

A) Para iniciar as atividades, o professor solicita que os alu-


nos sentem em forma de círculo, seja na sala de aula, pátio ou biblioteca.
Uma vez acomodados, mostra a capa do livro e faz a seguinte pergunta:
Vocês sabem o que é black power? Depois de ouvir as possíveis respostas,
explica que, na tradução literal do inglês para o português, o termo sig-
nifica “poder negro”, mas que a expressão, na verdade, está relacionada a
um penteado que representa o povo negro, muito usado nas décadas de
1960 a 1980, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e que voltou
a ter força em nosso país nos tempos atuais.
Após esse diálogo inicial, o professor passa pela roda uma cai-
xa com um espelho ao fundo e solicita que os estudantes observem sua
imagem refletida nele e, depois, escrevam, em um pedaço de papel, o que
mais apreciam na sua aparência, justificando o porquê. Em seguida, pede
que o coloquem na caixa. Então, o professor solicita que um aluno por
vez retire um papel e leia em voz alta o que está escrito nele, esclarecendo
que os demais devem tentar adivinhar quem é o colega que fez o registro.
Depois da realização da atividade, o professor lê o texto da
contracapa do livro, de Oswaldo Faustino: “Tayó é uma princesinha
que chega em forma de espelho para que outras princesinhas se mirem,
se reconheçam e cresçam, cumprindo a única missão que nos foi dada,ao
virmos viver neste planeta: a de sermos felizes”. Lido o trecho, anuncia
que a turma fará aleitura do livro O mundo no Black Power de Tayó, que
tem Tayó como personagem principal.
Depois de feita a leitura da obra, encaminha as atividades
do roteiro.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

B) Relacione as palavras dentro do quadro com sua significa- C) Ligue, com um traçado colorido, as palavras às imagens
ção, colocando a letra decada uma no espaço correspondente. que as identificam:

(a) Búzio (b) Orixás (c) Ancestral Pepita de ouro


(d) Tayó (e) Descendente (p. 7)

( ) Nome próprio africano (iorubano) feminino e masculino que signi-


fica “da alegria”(p. 40). Coroa de palhada
costa (p.19)

( ) Molusco aquático semelhante a um caracol de agua. Na Áfri-


ca, essa concha serviu como dinheiro por muito tempo. Transmite
notícias do mar, além de ser um objeto sagrado, fonte de notícias
ligadas aos ancestrais (p. 40). Coroas reais
(p.20)

( ) Pessoa que tem sua origem numa determinada família. Exemplo:


Minha família édescendente de angolanos.

Búzios
( ) Nome que se dá, na representação da árvore genealógica, a um ante- (p. 19)
passado/ ascendente morto há várias gerações (p. 40).

( ) Do original orisa. Ori = cabeça e sa = protetor. Orixá significa Rainha


protetor de cabeça (p. 40). (p. 18)

Black Power
(p.9-12)

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

D) As frases que seguem foram retiradas do livro. Repare que


elas foram alteradas, mas sem perder o sentido. Reescreva-as, substi-
tuindo as palavras sublinhadas pela forma original presente no livro.

Meu cabelo é bom porque é macio, belo e perfumado. (p. 14).

Do fundo desses olhos negros saem luzes fortes e intensas que só as es-
trelas são capazes de emitir (p. 6).

Grossos e escuros como jabuticaba, seus lábios encantam, só se moven-


do para dizer coisas boas e belas (p. 8).

Vocês estão com inveja, porque não podem carregar o mundo no cabelo
como eu posso (p.14).

Atividade III: Conhecendo as personagens

A) No início da história, o narrador faz a descrição da me-


nina. Desenhe-a como você a imagina a partir das características
apresentadas no texto:

• Seu rosto parece uma moldura de valor, que se destaca belezas infi-
nitas (p. 8)
• Seus olhos são negros... (p. 11)
• Seu nariz parece mais uma larga e valiosa pepita de ouro. (p. 12)
• Grossos e escuros como o orobô, seus lábios encantam... (p.14)
• [...] seu enorme cabelo crespo, sempre um penteado chamado black
power. (p. 17)

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

B) Escreva, nos espaços correspondentes, quatro característi- - Mamãe, hoje quero meu BLACK - Mamãe, hoje quero meu BLACK
cas que, na sua opinião,descrevem a mãe de Tayó: POWER repleto de florzinhas (p. 18). POWER repleto de borboletinhas
(p. 21).

- Mamãe, hoje quero meu BLACK O BLACK POWER DE TAYÓ É


Escolha uma dessas características e justifique sua opção: POWER com uma tirinha de tranças ENORME, do tamanho de sua ima-
feitas com fios de lã coloridos, arre- ginação (p. 24). Use sua imaginação
matada com uma linda flor (p. 22). e enfeite o lindo cabelo de Tayó.

C) Tayó, em vários momentos, pede para sua mãe enfeitar seu


cabelo com diferentes e criativos adereços. Nos espaços corresponden-
tes, desenhe a menina com seu black power enfeitado, de acordo com
cada enunciado.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

ATIVIDADE IV: Analisando a presença da menina na escola

A) Na escola, Tayó passa por uma situação que envolve seu ca-
belo. Discuta, comseus colegas, as seguintes questões:

B) Na página 28, o narrador diz o seguinte:

• Qual o significado da palavra “gentil”?


B) Marque a alternativa correta:

• Na sua opinião, o que os colegas fizeram com Tayó foi “falta de


• Na escola, os colegas de Tayó dizem que o cabelo dela é gentileza”?
( ) Sim ( ) Não.
(a) lindo (b) ruim (c) macio (d) feio
• Reescreva a frase utilizando outra expressão que aponte para a mesma
• Como Tayó responde aos colegas? significação:

(a) Meu cabelo é lindo, macio e perfumado.


(b) Meu cabelo é muito bom porque é fofo, lindo e cheiroso.
(c) Meu cabelo é muito legal, porque carrego o mundo nele. C) Em determinado momento, Tayó perde o seu humor e
fica pensativa. Marque a alternativa que corresponde ao que acontece
quando a menina recupera seu bom humor?
ATIVIDADE V: Considerando o narrador (a) ela vai brincar com sua imaginação, com músicas e danças.
(b) pensa em sua mãe que sempre enfeita seu cabelo do jeito que ela quer.
A) O narrador revela que Tayó, ao acordar, está diferente do que (c) é capaz de transformar todas as lembranças tristes em pura alegria,
quando foi dormir. Escreva, nos espaços correspondentes, o que se pede: projetando em seu penteado todos os sons e cores alegres das tradições
que os negros e negras conseguiram criare preservar.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

D) A última frase do texto diz o seguinte: Lembrete ao professor: 1) O professor solicita aos alunos que acompa-
nhem a letra da música atentamente; 2) Na música, há muitas palavras que
as crianças podem não conhecer. Identifique-as e, após a audição, instigue
os alunos a procurarem na internet ou no dicionário sua significação.

B) Discuta, com os colegas, as questões a seguir:

Explique, com suas palavras, o que o narrador quis dizer com “mesmo • Do que trata a música?
que não asvejam quando estão acordadas”? • Você se identificou com ela?
• Quais as palavras que apareceram na música que vocês não conheciam?
• Quais as relações da música com o texto? O que eles têm em comum?
TRANSFERÊNCIA E APLICAÇÃO DE LEITURA
C) Circule, na letra da música, as palavras que aparecem na his-
tória de Tayó. Emseguida, transcreva-as para o espaço abaixo.
ATIVIDADE VI: Relacionando o texto

A) Ouça a música “Respeitem Meus Cabelos, Brancos”, de Chico César.


Respeitem Meus Cabelos, Brancos
Chico César
Atividade VII: Explorando a imaginação
Respeitem meus cabelos, brancos
Chegou a hora de falar
Vamos ser francos A) Leia a tirinha de Tayó “Espelho”:
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludo nos tamancos

Cabelo veio da África


Junto com meus santos

Benguelas, zulus, gêges


Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandingas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos

Se eu quero pixaim, deixa Feche os olhos e se imagine Tayó se olhando no espelho. Ela se vê
Se eu quero enrolar, deixa como uma guerreira,tal qual eram seus ancestrais. Imagine que você está
Se eu quero colorir, deixa no lugar dela, pense como seria ao se olhar no espelho. Após, desenhe
Se eu quero assanhar, deixa sua imagem dentro da moldura do espelho, como se fosse um guerreiro
Deixa, deixa a madeixa balançar
ou guerreira, tal qual seus ancestrais.

222 223
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

B) Escreva um e-mail a Tayó, a sua mãe ou à autora Kiusam de


Oliveira. O conteúdo do e-mail é livre: você pode se apresentar, falar
passagens da narrativa, sobre suas impressões durante a leitura, sobre o
que aprendeu com Tayó, etc. Você também pode perguntar algo que
gostaria de saber.

Lembrete ao professor: Após a escrita e a reescrita da narrativa,


os alunos podem ler as suas histórias à turma e, depois, socializá-
las com os demais alunos da escola, por meio de uma exposição.
B) Use a imaginação e recrie, com base na imagem, uma histó-
ria que tenha Tayó como protagonista.

(título da história)

Considerações finais

O trabalho com a literatura afro-brasileira, na escola, contribui


com a elucidação de que o Brasil, apesar de sua rica diversidade cultural,
mostra-se um país excludente e preconceituoso, situando-se entre os dez
mais desiguais do mundo. Essa realidade torna o papel da escola, no sen-
tido de educar cidadãos quanto a pluralidade étnico-racial, ainda mais
necessária e relevante. Urge que a Lei 10.639/2003, que traz a obrigato-
riedade da História e Cultura Afro-brasileira e africana, nos currículos
das Redes de Ensino, concretize-se, de fato, em todas as salas de aula.
O roteiro de leitura a partir do livro O Mundo no Black Power de
Tayó, de Kiusam de Oliveira, apresentado neste trabalho, mostra como é
possível elaborar um plano de leitura de textos de literaturas negras, que

224 225
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LITERATURA E FORMAÇÃO DE LEITORES

valorize as raízes africanas, como também problematize questões que BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
fortalecem o discurso racista. A utilização de obras como essa em sala de Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <http://www.pla-
aula, as quais têm protagonistas negros com autoestima, que valorizam nalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 17
seus traços físicos, seus cabelos, exercem papel significativo na descons- nov. 2020.
trução do racismo, na medida em que mostram às crianças – e as fazem
. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as di-
entender – que a diversidade é bela. Além disso, o trabalho por meio
retrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em:
do roteiro de leitura pode contribuir com a formação de leitores, pois
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em:
promove a análise do texto e reflexões diversas sobre temáticas presentes.
17 nov. 2020.
Portanto, a escola tem o papel fundamental na formação para a
cidadania. Ela precisa mostrar que, apesar de vivermos em um país mul- . Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394,
ticultural, as origens e as culturas não são preservadas, valorizadas e re- de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da edu-
presentadas. Também faz-se necessário que ela valorize as literaturas com cação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
representação de protagonistas negros. Ao fazê-lo, promove a construção obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá
de relações autoafirmativas e identitárias entre os leitores e as narrativas, outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cci-
incentiva o interesse pela leitura e valoriza diferentes culturas e realidades. vil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 02 abr. 2020.
Nesse sentido, é possível afirmar que a representatividade importa e que . Ministério da Educação. Diretrizes curriculares nacionais para
ela é necessária para o aprimoramento do discurso antirracista, de modo a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura
que o trabalho com a literatura afro- brasileira, em sala de aula, contribua afro-brasileira e africana. Brasília: MEC, 2004. Disponível em: <http://
com a transformação de uma sociedade mais justa, igualitária e tolerante. portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsG-
MAMkW1/document/id/488171>. Acesso em: 04 abr. 2018
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Aberto, 1988. nal, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
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A cultura sofre constantes mudanças conforme a evolução da
cesso de um Racismo Mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
sociedade, uma vez que sempre há uma determinante que fixa a cultura
OLIVEIRA, Kiusam de. O Mundo no black power de Tayó. São Paulo: vigente na época. Dentre as culturas existentes no Brasil, os costumes pos-
Petrópolis, 2013. RUFFATO, Luiz. Discurso de Luiz Ruffato na Feira suem muita força, sendo deixados de pais para filhos como proceder dian-
do Livro de Frankfurt – 2013. te de algumas situações, o que, por vezes, podem sofrer adaptações até a
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tsqcziX5_6E . vida adulta, ou permanecem da mesma forma que os pais lhe ensinaram.
O padrão de beleza, por exemplo, é algo repassado por gerações,
SARAIVA, Juracy Assmann, MUGGE, Ernani. Literatura na escola: se exigindo, culturalmente que as pessoas encaixem-se naquela forma de
propostas para o ensino fundamental. Porto Alegre: Artmed, 2006. ser, que geralmente é fixada em pessoas brancas e ricas, exigindo de pes-
SARAIVA, Juracy Assmann, MUGGE, Ernani e KASPARI Tatiane. soas que não possuem essas características para que se enquadrem nelas.
Textos literários: resposta ao desafio da formação de leitores. São Leo- A busca pelo padrão estético fixou-se tão fortemente na men-
poldo: Oikos, 2017. te das pessoas, de forma que é possível causar distúrbios alimentares e
psicológicos, por ser uma necessidade – oriunda dos padrões sociais –
para que a pessoa pertença aquele grupo, desde que tenha as mesmas
características. Isso é uma forma de ruptura da identidade negra, das
caracterísicas e dos traços fenotípicos da raça.
Além disso, sabe-se que todo padrão tem o seu início de alguma
forma: um local específico em que se reflete e passa a vigorar como uma

228
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

ordem social. No caso estudado, os filhos geralmente levam a visão cultu- zenas de singularidades da cultura da população sul africana. Apesar disso,
ral de seus pais para o ambiente escolar, iniciando, desde cedo, a obtenção muitos dos costumes e particularidades mantiveram-se vivos e fortes até os
de um padrão para as crianças negras que convivem com pessoas brancas. dias atuais, fruto da transmissão oral da cultura de geração para geração.
Essa imposição da cultura e de caractertísticas europeias a pessoas negras Os povos das tribos sul africanas, sempre foram donos de ca-
pode ser vista como uma forma de discriminação da identidade preta, racteristicas marcantes, que remetem, na maioria das vezes, instantanea-
numa tentativa de padronizar até mesmo as pessoalidades de cada um. mente ao seu povo, como a pele negra, lábios grossos, cabelo crespo, nariz
Ainda, é recorrente abordar a apropriação cultural, cujo conceito largo elementos característicos, tradicionais e essenciais de sua beleza.
tem sido deturpado, por vezes, pela sociedade, sendo primordial abordar Tais caracteristicas da beleza negra foram dissemidas no Brasil
essa temática, quando se menciona padrões de beleza e suas influências. devido à missigenação que aconteceu entre os escravos e portugueses.
Desta forma, apresentar-se-á o racismo e o quanto o padrão No periodo colonial, grande parte dos escravos trazidos ao Brasil eram
social debeleza é utilizado como forma de racismo contra as pessoas da Africa subssáriana, como Angola, Moçambique e Congo, motivo
negras. Em seguida,discute-se a discriminação social das pessoas negras, pelo qual os traços e belezas discutadas no presente trabalho tomaram
bem como a apropriação cultural destas. como fonte de estudo tais regiões.
O cabelo crespo é visto como um dos pontos mais marcantes da
Caracteristicas e culturas da beleza africana negritude, de forma que remete a sua ancestralidade e genealogia. Assim,
no Brasil, isso acaba sendo taxado como característica inferior por ter sua
O continente Africano ocupa cerca de um quinto da cota terri- origem negra, conforme aponta Nilma Lino Gomes quando diz que:
torial do planeta e é subdividido em mais de 50 países. Por esse motivo,
Mesmo que a cor da pele seja mais clara ou mesmo branca,
a cultura africana é plural, rica em detalhes, particularidades e extrema- a textura crespa do cabelo, em um país miscigenado e racis-
mente diversificada, composta por centenas de tradições. ta, é sempre vista como um estigma negativo da mistura ra-
Sabe-se que não há como caracterizar a cultura africana ba- cial e, por conseguinte, é colocada em um lugar de inferio-
ridade dentro das escalas corpóreas e estéticas construídas
seado em um único elemento, tradição, tipo musical ou culinária, da pelo racismo ambíguo brasileiro (GOMES, 2019, p.18).
mesma forma que não se pode resumir a cultura brasileira por uma úni-
ca localidade. Parte da grande diversidade cultural é consequência dos Tais traços são marcantes e distinguem os descendentes de
constantes conflitos internos entre as tribos que se consideravam, na qualquer outro povo. Além disso, os povos sul africanos utilizavam di-
maioria das vezes, inimigas. Por esse motivo, não compartilhavam da versos outros símbolos como forma de expressar a cultura e valorizar
mesma religião, culinária, dança, idioma, regime político, entre outros sua beleza, repletos de significados e ancestralidade. Por exemplo, o uso
aspectos culturais, o que, de fato, contribuiu para a vasta e milenar cul- de tranças é uma característica marcante da beldade africana, e estão
tura africana como é conhecida atualmente. diretamente associados aos costumes étnicos.
Apesar de ser um país vasto e com discrepância em diversos
aspectos culturais, a tradição dessas localidades sempre se interligou. O significado social do cabelo era uma riqueza para o
africano. Dessa forma, os aspectos estéticos assumiam
Dessa forma, a fim de evitar a generalização, o estudo do presente tra- um lugar de importância na vida cultural das diferentes
balho baseia- se nas tradições das regiões da África subssariana, como o etnias (GOMES, 2003, p. 82).
Congo, Moçambique, Somália e Quenia, territórios responsáveis pela
grande influência nos aspectos de beleza utilizados atualmente. Os vários estilos de tranças representavam a etnia e permitiam
É fato conhecido que a história africana fora escrita e contada identificar a idade, o estado civil, a riqueza, poder, posição social, reli-
pelos colonizadores europeus, o que certamente modificou e omitiu de- gião, entre outras características.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

Em África os penteados sempre foram carregados de para as Américas, encaravam os turbantes como símbolo de coragem e
grande simbologia, essas todas citadas acima e mui- resgate à sua cultura, serviam como expressão de sua identidade.
tas outras, como na religião, como rito de passagem,
de transformação, ex: quando o indivíduo ocupa um Além da expressão de identidade, em várias etnias africanas,
novo papel na sociedade, passagem chamada de feitu- o lenço na cabeça, dependendo da forma que for utilizado, poderia
ra do santo, onde é realizada cerimônia de raspagem indicar o estado civil da mulher.
dos cabelos, é uma espécie de renascimento, onde a
pessoa é “batizada” com um novo nome, inclusive. Cada amarração tem um formato diferente, no qual o
Então é nítido que o significado social do cabelo era tecido é enrolado à cabeça e moldado conforme o signi-
e continua sendo uma riqueza para o/a africano/a e ficado que a pessoa deseja atribuir. Ele pode cobrir toda a
hoje para todos/as os negros/as (NAIZ, 2019, p 1). cabeça ou deixar partes do cabelo à mostra, escolha que
dependerá da ocasião, inspiração ou o motivo de seu uso.
Tão importante quanto o formato da trança, era o ato de se Dentro das religiões, por exemplo, a cabeça é toda cober-
ta. O Turbante tem várias representações e pode significar
trançar, momento em que as mulheres africanas transmitiam os valores hierarquia, religião, etnia e poder (SILVA, 2017, p. 18).
culturais entre as gerações, uma forma de manter as raízes e identidades.
Segundo Alain Lawo-Sukan (2016), no período de escravi- O significado e a historicidade dos elementos de beleza, reple-
dão, mais do que um penteado, as tranças, nos cabelos das mulheres tos de tradição e detalhes são as características que tornam a beleza do
negras, representavam um símbolo de resistência, que auxiliavam os povo sul africano única, marcada pela ancestralidade e resistência.
escravos africanos a planejarem fugas das fazendas dos senhores de es-
cravos. As tranças faziam parte de um complexo sistema de linguagem Padrões de beleza
entre os escravos africanos. Eram constantemente usadas para trans-
mitir mensagens entre os escravos, sinalizando a fuga, ou até mesmo A sociedade como um todo acaba por se inspirar na ideia de
utilizadas para guardar ouro e sementes, itens essenciais para sobrevi- que as pessoas precisam se encaixar no padrão que é culturalmente con-
verem depois da partida para os quilombos. siderado como o ideal. Entretanto, esse pensamento torna-se arcaico
Os penteados feitos para demonstrar a rota de fuga foram de- quando se pensa na diversidade cultural existente pelo mundo, de for-
nominados como tranças nagôs, identidade criada pelo trabalho escra- ma a não ser possível caracterizar um padrão ideal para que todas as pes-
vo, que se tornaram entre os negros um código de liberdade, desconhe- soas deixassem as particularidades de lado para aderir à vontade social.
cidos por seus senhores. No tocante a isso, Nilma Gomes aponta que: Essa discussão permeia a sociedade brasileira há décadas e, por
vezes, recai a visão norte-americana de mulher, associada àquelas que
As múltiplas representações construídas sobre o cabelo
do negro no contexto de uma sociedade racista influen- eram capas de revistas de moda, destinadas às mulheres brancas, altas
ciam o comportamento individual. Existem, em nossa e magras. Isso também se dá pela forte influência causada pelas mídias,
sociedade, espaços sociais nos quais o negro transita as quais demonstram uma representação de mulher perfeita. Neste viés,
desde criança, em que tais representações reforçam es-
tereótipos e intensificam as experiências do negro com vê-se que a “mídia influencia diretamente na concepção que temos de
o seu cabelo e o seu corpo (GOMES, 2002, p.44). nós mesmos, mídia essa que instituiu padrões idealizados estéticos que
devem ser adotados pelos corpos, ou seja, um padrão de beleza, um
Outro símbolo marcante da beleza africana são os turbantes, molde ou uma norma” (FERNANDES; DA LUZ, 2019, p.4).
um acessório comum em muitas regiões africanas, em que alguns re- A visão de corpo que circula na sociedade foi criada pela cul-
metem para as origens da realeza do antigo Egito, na Nubia e na África tura, no decorrer da história na busca por uma fabricação de corpos.
Ocidental, por esse motivo, muitas mulheres consideram os turbantes Desta forma, muitas das vezes, o mundo da moda é um dos responsáveis
como verdadeiras coroas da cultura africana. Os antepassados, levados pela imposição de beleza conhecida mundialmente, sendo um exemplo

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

os concursos de beleza, nos quais se buscava uma beleza padrão – e, negro converte-se, desta maneira, num ideal de retor-
nesse sentido, entende-se por rostos e corpos associados aos europeus. no ao passado, onde ele poderia ter sido branco, ou na
projeção de um futuro, onde seu corpo e identidade
Ademais, mesmo com o passar dos anos, ainda é evidente que o negros deverão desaparecer (COSTA, 1983, p.5).
mundo da moda segue influenciando mulheres, de forma que “associada
ao corpo/máquina fabricado pelo capitalismo moderno, a moda emerge A imposição dos padrões de beleza e também a moda, por
caracterizando e definindo os atores sociais pela composição estética sobre vezes, acabam extravasando as fronteiras no que tange ao vestir,
seus corpos” (BRANDINI, 2007, p.7). Logo, a mulher tem sido caracte- indo para a definição do corpo de quem veste a peça. Isso é refle-
rizada pelo seu corpo, e não por quem ela, de fato, é, com suas qualidades tido, também, na maioria das marcas de roupa, que fabricam peças
e defeitos. Diante disso, de forma involuntária, homens e mulheres foram visando um corpo ideal, imposto para que mulheres negras tentem
repassando durante várias gerações essa representação de que se é preciso enquadrar-se, ou até mesmo e o que é muito constante, nem pensan-
cuidar do corpo. Então, talvez “tenha se tornado uma válvula de escape do em pessoas negras. Assim, “o corpo hoje é a moda que antecede a
para a mulher se expressar através de seu estereótipo, mostrando o que é, roupa” (BRANDINI, 2007, p.13).
como pensa, como se comporta, entre outros conceitos, por meio de seu Essa forma de discriminar é vista, geralmente, na fase da
corpo, sua vestimenta e sua compostura” (DOMINGUES, 2018, p. 4) adolescência, quando o corpo – principalmente o feminino – sofre
Muitas vezes, a imposição de padrões de beleza é refletida nas diversas modificações, o que, por vezes, é motivo de brincadeiras
crianças negras desde muito cedo, na escola, por exemplo, em que as de cunho pejorativo pelos colegas. Assim, para “o/a adolescente ne-
instituições as colocam num padrão. Pode ocorrer que esse padrão esco- gro/a, a insatisfação com a imagem, com o padrão estético, com a
lar sirva para mascarar um ato de racismo e a imposição de beleza sobre textura do cabelo é mais do que uma experiência comum dos que vi-
as pessoas negras, forçando-as a se arrumarem conforme a instituição vem esse ciclo da vida” (GOMES, 2002, p.1), pois visualizam cons-
deseja. Assim, Nilma Gomes comenta que: tantemente a dificuldade em achar roupas que se encaixem em seus
corpos, maquiagem para sua cor de pele, entre outros problemas que
A escola impõe padrões de currículo, de conhecimen-
to, de comportamentos e também de estética. Para estar pessoas brancas não sofrem.
dentro da escola é preciso apresentar-se fisicamente den- Na atualidade, é ainda mais complexo para as pessoas negras
tro de um padrão, uniformizar-se. A exigência de cuidar conviverem socialmente, tendo em vista que a cultura de cirurgias plás-
da aparência é reiterada, e os argumentos para tal nem
sempre apresentam um conteúdo racial explícito. Mui- ticas, maquiagens e procedimentos estéticos para padronizar pessoas
tas vezes esse conteúdo é mascarado pelo apelo às nor- estão cada vez mais em alta. A estética corporal tem atingido uma quan-
mas e aos preceitos higienistas (GOMES, 2002, p.1). tidade relevante de pessoas no século XXI, principalmente os corpos
femininos, impondo a magreza, a pele “perfeita”,entre outros atributos
Há uma tamanha imposição desses padrões de beleza sobre as que não condizem com a maior parte da população. Logo, Clara Pi-
pessoas negras, de forma que a negritude não pode ser algo normal- nheiro e Luiz Vitor Castro Júnior explicam que:
mente aceito, mas sim que a pessoa negra adapte-se à beleza que vem
das pessoas brancas, de modo que pessoas negras sofrem com essa im- o corpo ainda tem sido objeto de especial atenção no
posição de características que não condizem com sua realidade. Nesse que tange à beleza, fazendo com que o indivíduo dedi-
que grande parte de sua vida a cuidados especiais, em
sentido, Jurandir Freire Costa (1983) afirma que: busca da manutenção da estética ou transformação do
corpo, na tentativa de atender aos padrões estabeleci-
Pela repressão ou persuasão, leva o sujeito negro a de- dos pela mídia ou pelo mercado (PINHEIRO; CAS-
sejar, invejar e projetar um futuro identificatório an- TRO JÚNIOR, 2015, p.7).
tagônico em relação à realidade de seu corpo e de sua
história étnica e pessoal. Todo ideal identificatório do

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

Nilma Lino Gomes, quando aborda os padrões de beleza rela- gras. Desta forma, nota-se que “o racismo e a branquitude, ao operarem
cionados ao racismo, ressalta que isso serve para afetar as vítimas e acaba em conjunto, lançam dardos venenosos sobre a construção da identidade
por enaltecer a pessoa praticante. Assim, a autora expõe que negra e tentam limitar os indivíduos negros” (GOMES, 2019, p.13).
Outrossim, a deslegitimação da mulher negra, dentre as mulhe-
Ao proteger as pessoas brancas e elegê-las como padrão
universal de beleza, inteligência, competência e civilidade, res brancas e a forma como a sociedade reage a esse problema, forma-se
o racismo inculca e gera, em suas vítimas, um sentimento “uma política anti-negritude, na qual a mulher negra é considerada um
antagônico a todos esses atributos. Essa negatividade é ex- outro dentro da sociedade, inferior e indesejado, e pela qual a violência
pressada principalmente em seus corpos, na superfície de
sua pele e no tipo de cabelo (GOMES, 2019, p.13). simbólica cometida contra essas mulheres é banalizada e a luta contra
essa violência é deslegitimada” (BITTENCOURT, 2013, p. 39).
Assim, vê-se que essa prática contra a pessoa negra pode acarre- É fato que os padrões de beleza associados ao racismo continuam
tar diversos problemas, como a imposição sobre ela de características que latentes na sociedade, e “ainda que partilhe da mesma cultura, religião e
ela não quer ter. Dessa forma, a desvalorização da pessoa negra, pelas ca- convicções políticas dominantes, o negro continua sendo alvo de racismo
racterísticas pessoais que ela carrega, pode vir a gerar uma série de distúr- pelo simples fato de possuir a cor de pele mais escura” (LIMA, 2019, p.16).
bios, sejam eles alimentares ou psicológicos, de forma que a pessoa co- Assim, acredita-se que uma das resoluções possíveis para que
meça a ter atitutes compulsivas para encaixar-se no padrão imposto pela esse racismo acompanhado dos padrões de beleza deixe de ferir as pessoas
sociedade. Assim, essa “obsessão em viver em busca de atingir o corpo negras é a educação. Somente esta, alinhada à conscientização, pode fazer
ideal, a beleza plena e a aceitação da sociedade têm se tornado um pro- com que as gerações entendam o valor que a cultura negra possui, não
blema de saúde pública” (DOMINGUES, 2018, p. 6). Nesse sentido, necessitando de padrões de beleza como forma de embranquecê-las.

A anorexia e a bulimia nervosa têm tomado cada vez Discriminação e apropriação cultural
mais espaço em discussões sociológicas e da psicanálise,
pois as mulheres, principalmente as adolescentes, estão
em busca do ideal inalcançável do corpo perfeito e, essa É inegável o fato de que a trajetória da humanidade, há cen-
insatisfação é advinda da baixa autoestima, fruto do pa- tenas de anos, é relatada e comandada por povos brancos, impondo
drão de beleza imposto pela sociedade e veiculado pela
mídia (GONÇALVES, 2018, p.7) assim padrões culturais e sociais, fazendo com que diversos povos se
subordinem a tais arquétipos. Além das imposições criadas pelos po-
Vislumbra-se, então, que a imposição de padrões sociais atingem vos dominantes, muito se omite e inferioriza em relação às conquistas e
muito mais mulheres do que homens, já sendo uma situação completamente contribuições de diversos povos para o desenvolvimento social.
prejudicial à saúde da mulher. Acontece que, quando se fala do corpo da mu- No tocante à imposição de padrões de beleza, o que passou a
lher negra e de distúrbios, aponta-se um duplo grau de dificuldade, pautado ser considerado bonito em diversas regiões do mundo, principalmente
no racismo vivido por sua cor, associado aos padrões de beleza impostos. no Brasil, advém dos modelos eurocêntricos, retratado por indivíduos
Não obstante, quando Gomes (2019) aponta essas questões, ela brancos, de cabelos lisos, traços finos, repudiando qualquer beleza dife-
ainda aborda que as pessoas negras não são desvalorizadas só pela forma rente. Tais padrões discriminam, menosprezam e, muitas vezes, excluem
estética, mas também como humano, de forma que os brancos conside- a beleza do negro, que sofre por serem donos de traços largos e marcantes.
ram-se superiores por sua cor. Nesse sentido, no século em que se vive, pa- De acordo com Patricia Oliveira Lima Pessanha, discriminação
rece invenção de que essas imposições sobre os corpos negros ainda geram pode ser definida como:
problemas sociais, mesmo com toda a informação disponível nas redes,
Uma forma de manifestação, de concretização de um
sendo o padrão de beleza, ainda, uma forma recorrente de ceifar vidas ne- conceito pré-estabelecido de cunho pejorativo, esta-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

belecido em face de determinada pessoa ou grupo de da beleza africana, como retratado anteriormente, porém o mais marcan-
pessoas, colocando-a em desvantagem em relação às te e com maior caráter de expressão e afirmação de identidade na atualida-
demais (PESSANHA, 2011, p. 2)
de é retratada pelo cabelo e a maneira em que o povo negro exibe a beleza.
A discriminação afeta negativamente o povo negro há séculos O uso de tranças é uma técnica corporal que acom-
e tem como principal fator a raça. panha a história do negro desde a África. Porém, os
significados de tal técnica foram alterados no tempo e
Discriminação racial significa qualquer distinção, no espaço. Nas sociedades ocidentais contemporâneas,
exclusão, restrição ou preferência baseados em raça, algumas famílias negras, ao arrumarem o cabelo das
cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que crianças, sobretudo das mulheres, fazem-no na tentati-
tenha por objeto ou efeito anular ou restringir o re- va de romper com os estereótipos do negro descabelado
conhecimento, o gozo ou o exercício, em condições e sujo. Outras o fazem simplesmente como uma prática
de igualdade, dos direitos humanos e liberdades fun- cultural de cuidar do corpo (GOMES, 2002, p. 44).
damentais no domínio político, econômico, social e
cultural ou em qualquer outro domínio da vida pú- Sendo assim, o ato de trançar o cabelo pode parecer muito sim-
blica (Direitos humanos: instrumentos internacio-
nais – senado federal. 1997, p. 304). ples, mas é o momento em que muitos individuos negros, buscando
resistir à opressão e discriminação, assumem seus traços e tradiçoes, ex-
A exclusão é constante. A restrição de oportunidades é viven- pondo para a sociedade a ancrestralidade à qual pertencem.
ciada em todos os meios, seja no trabalho, estudo ou lazer, sem levar O mesmo acontece com a assunção do cabelo crespo em sua
em consideração o racismo institucional existente, por meio do qual as naturalidade, em que representa o processo de reconhecimento das
políticas públicas, que deveriam servir para evitar a discriminação de raízes africanas.
pessoas negras, acaba auxiliando os discriminantes. Logo, “os racismos
O cabelo crespo na sociedade brasileira é uma linguagem
se apresentam como o fracasso coletivo de instituições e organizações e, enquanto tal, ele comunica e informa sobre as relações
na promoção de um serviço adequado às pessoas em razão de questões raciais. Dessa forma, ele também pode ser pensado como
raciais” (SILVA, 2017 apud LIMA, 2019, p. 11). um signo, pois representa algo mais, algo distinto de si
mesmo. Assim como a democracia racial encobre os con-
É fato que os mercados da moda, cinema, televisão, são os que flitos raciais, o estilo de cabelo, o tipo de penteado, de ma-
mais excluem os indivíduos de descendência africana, simplesmente por nipulação e o sentido a eles atribuídos pelo sujeito que os
não se encaixarem nos padrões europeus, consequentemente, não apre- adota podem ser usados para camuflar o pertencimento
sentarem uma beleza “aceitável” aos olhos da sociedade racista. Diante étnico/racial, na tentativa de encobrir dilemas referentes
ao processo de construção da identidade negra. Mas tal
da frequente discriminação, a única alternativa para o povo negro foi comportamento pode também representar um processo
afirmar seus padrões e tradições, buscando desconstruir aos poucos o de reconhecimento das raízes africanas assim como de
padrão de beleza socialmente imposto. reação, resistência e denúncia contra o racismo. E ainda
pode expressar um estilo de vida (GOMES, 2006, p.8).
as mulheres negras, necessitam reencontrar a sua iden-
tidade, valorizar sua história e suas raízes, se assumir Tais elementos são utilizados como forma de assumir a estética
enquanto afrodescendentes e agentes ativos desse pro- negra, de historicidade africana, rompendo com os padrões de beleza
cesso de democratização racial (SANTOS, 2009, p.5).
de caráter europeu impostos socialmente.
A afirmação da identidade e da cultura africana é um processo Por superar o viés exclusivamente estético e representar a identi-
lento e árduo, uma vez que a expressão livre e desimpedida da negritude dade e a resistência da população negra, tais elementos são de fundamen-
ainda é repudiada, porém necessário. Diversos são os traços e as tradições tal importância para o realce da negritude e a consequente desconstrução
dos padrões atuais. Motivo pelo qual, considera-se a utilização massifica-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

da de tais tradições e elementos por pessoas brancas como apropriação da Não é que brancos não podem usar tranças ou turbantes, é que,
cultura africana, uma vez que ressignifica os símbolos de resistência e os quando um branco usa trança ele deve entender que não é apenas um
transformam apenas em uma mercadoria massificada. apetrecho, é a representação do empoderamento e da resistência de uma
Segundo Emanuel Araujo, a apropriação da cultura negra, ori- cultura massacrada por séculos. Ao utilizar desses símbolos, sem a devi-
gina-se de um binômio irônico, em que os negros são vítimas de discri- da consciência, favorecem indiretamente e negligenciam a apropriação
minação, porém, grande parte do que produzem é consumido, esque- da cultura de um povo já invisibilizado, vítima de um processo terrível
cendo-se as origens e significados. de colonização. Para esse povo, a manutenção da sua identidade é mais
do que estética: é uma forma de resistência e resiliência, uma forma de
Na ambiguidade desta nossa história de que são ví-
timas os negros, numa sociedade que os exclui dos demonstrar que sua beleza independe dos padrões sociais.
benefícios da vida social, mas que, no entanto, con- É notório que, elementos inerentes à cultura africana, como as
some os deuses do candomblé, a música, a dança, a tranças, cabelo crespo e os traços negros, são frequentemente criticados
comida, a festa, todas as festas de negros, esquecida
de suas origens (ARAUJO. 2007, p.5). socialmente, por serem “exóticos” e, consequentemente, desagradáveis
diante dos padrões. Porém, quando um indivíduo branco utiliza-se de
Nesse sentido, complementa o poeta B. Easy: apetrechos oriundos da cultura africana são vangloriados e vistos como
belo, diferentemente do que acontece com os negros.
A cultura negra é popular, pessoas negras não são. A Sendo assim, apropriação cultural não é uma crítica sobre o
apropriação cultural esquece as práticas rituais e torna
invisíveis as lutas desses povos. Pessoas começam a usar indivíduo branco, mas sobre uma estrutura racista nociva que apaga e
roupas e acessórios sem saber seus significados e ori- silencia os negros. Além disso, discrimina a beleza de pessoas negras e
gens. Ou seja, dá margem para que elementos de uma suas tradições, mas quando essas tradições são utilizadas como merca-
cultura sejam banalizados, estereotipados ou simples-
mente reduzidos a “exóticos” (EASY, 2015, p.1). doria, por pessoas brancas, são vistas como atraentes e encantadoras.

Quando uma pessoa branca utiliza-se de elementos de beleza Considerações Finais


originários da cultura africana, sem entender ou questionar, despreza
assim toda a historicidade e o sofrimento vivenciado pelo povo africano De início, tem-se como objetivo demonstrar as características
durante séculos. Ao apropriar-se de elementos da beleza negra, detur- da beleza africana, bem como demonstrar os valores trazidos por esta
pa-se o significado original de resistência, autoafirmação e ancestralida- cultura, citando os traços e o cabelo crespo como sinal de identidade
de e torna-se apenas mais um elemento comercial, de beleza. preta. Na sequência, apontam-se os padrões de beleza como fator de
A falta de conhecimento e a consequente modificação dos imposição de mudança à identidade negra, com a imposição da beleza
significados, caracteriza o principal problema em apropriar-se de europeia, finalizando na demonstração do quanto os padrões de beleza
elementos culturais. podem ser vistos como discriminação ao povo negro e debatendo, ain-
da, sobre a apropriação cultural da identidade negra. Diante de tudo
A problemática surge no momento em que indivíduos
pertencentes a grupos sociais dominantes se utilizam que foi apresentado até aqui, pode-se perceber que o racismo sofrido
de particularidades culturais de grupos menos favo- pelas pessoas negras, por conta da imposição dos padrões de beleza da
recidos, sem que façam parte do grupo ou mesmo te- sociedade, causa muito mal a essas pessoas.
nham qualquer entendimento sobre a cultura, ainda Acredita-se, portanto, na responsabilização melhor do poder
mais considerando que tal bem apropriado é, na maio-
ria das vezes, sagrado para a comunidade e explorado, público, de forma que venha a criar e propagar mais políticas públicas
por outra, na moda, como entretenimento ou para que disseminem a necessidade de extinção do racismo. Não há outra
fins comerciais (BORTOLOZO, 2016, p.2).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

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Enfim, entende-se que o racismo e a discriminação são “doen-
ças culturais” repassadas e, ao ensinar as gerações, esses problemas po- DOMINGUES, Lila Ribeiro Conde. O padrão de beleza imposto
dem se resolver. Contudo, ainda demandam muitos estudos sobre a te- pela sociedade brasileira influencia no desenvolvimento de distúrbios
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Seção IV
Musicalidades e expressões teatrais

244
A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO:
POR ENTRE ENCRUZILHADAS E (EN) CANTOS PERFORMÁTICOS
AFRO-BRASILEIROS EM CONTEXTOS EDUCACIONAIS FRANCISCANOS

Leonardo das Chagas Silva


Mestrando e Graduado em Dança pela UFBA

Abrindo os caminhos

A discussão apresentada, aqui, configura-se como parte da minha


trajetória profissional docente e quinhão da pesquisa de mestrado, vincu-
lada à linha “Mediações culturais e educacionais em Dança”, cujo trabalho
desenvolvo no Programa de Pós-Graduação em Dança – PPG Dança, da
Universidade Federal da Bahia - UFBA, com o apoio da FAPESB[*] e sob
orientação do Prof. Dr. Fernando Marques Camargo Ferraz, desde 2018.
Nesse Programa, investigo questões ligadas à Dança/Arte, à
Arte-Educação, ao Currículo e às denominadas manifestações culturais
populares, tendo como principal intenção compreender propositiva-
mente como acontece e configura-se o ensino-aprendizado da Dança/
Arte no currículo escolar em contextos de escolas da Educação Básica
do Município de São Francisco do Conde-Bahia, numa perspectiva an-
tirracista. Considerada uma das cidades brasileiras com o maior per-
centual de população negra do Brasil, aproximadamente 97%, segundo
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –IBGE, o município
franciscano compõe parte da região metropolitana de Salvador (BA),
despontando como terceira cidade do Recôncavo baiano, localizado na

[*] Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia.


NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO

Baía de Todos os Santos, e assentamento de grandes manifestações ar- pondência àqueles com quem se aprendeu ou entre os quais se estudou
tístico-culturais, desde os tempos do Brasil Colônia. [...]” (INGOLD, 2016, p. 409). Nesse sentido, a perspectiva da obser-
Portanto, articulado à incorporação do conhecimento afro-bra- vação participante é tomada neste artigo enquanto exercício para com-
sileiro no curriculum, o principal objetivo deste trabalho é refletir sobre o preensão de como acontece e configura-se o ensino-aprendizado da Dan-
processo formativo em Dança/Arte, no contexto do Centro de Estudos e ça/Arte na proposta curricular do CEAS, em uma dimensão antirracista.
Aperfeiçoamento do Saber – (doravante CEAS), escola de Ensino Funda- Adjacente a isso, chamo também atenção para a abordagem do
mental dos Anos Finais, do município franciscano. Para tanto, enuncio a corpo como algumas das questões relevantes na Educação, principal-
proposição pedagógica “A coisa tá preta, no CEAS!”[*], uma espécie de pla- mente no tocante ao corpo negro e ao ensino de Dança/Arte na escola
no de ação cultural voltado para a Semana da Consciência Negra, cuja con- que esteja comprometido com ele, de maneira antirracista. Porquanto,
figuração assentou-se no próprio chão dessa escola, em novembro 2018. parece assertivo dizer que ainda precisamos pensar/falar do corpo a
Assim, mergulhado numa experiência formativa no pretérito, partir dele mesmo, na Educação brasileira, através da filosofia da ances-
lanço mão da abordagem dos atos de currículo (MACEDO, 2017), dos tralidade (OLIVEIRA, 2005), quando constatamos e consideramos, de
estudos das performances brasileiras (LIGIÉRO, 2011), e da mesma ma- maneira categórica, que a maioria dos corpos que compõem o sistema
neira valho-me do olhar implicado e compreensivo, pelo viés da observação escolar público brasileiro são negros[*], e, além dos mais, têm condições
participante (INGOLD, 2016), para apreciar e tratar especificamente da socioeducacionais desiguais quando comparados as oportunidades dos
prática performática das Paparutas[**], manifestação artístico-cultural da corpos brancos[**]. Dito de outro modo, ainda precisamos olhar social e
Ilha do Paty, de São Francisco do Conde, que participou como uma das antropologicamente para os corpos que compõem os contextos sociais-
atividades artístico-culturais da proposição pedagógica mencionada acima. -históricos da Educação Pública, do Sistema de Ensino Básico do Brasil.
Apreciada como uma das variantes do Samba de roda, do Recôncavo baia- Ademais, pautado na Pedagogia das encruzilhadas, de Rufino
no, a manifestação das Paparutas é formada por um conjunto de mulheres (2019), pontuo o próprio corpo como o primeiro lugar de ser/existir/
dançarinas, acompanhadas por músicos e um mestre de cerimônia. Agre- estar no mundo, espécie de registro transgressor, douto e inteligível,
gado a isto, nota-se, relevantemente, que a comunidade dessa a Ilha é quase no qual a dança/arte manifesta-se, de maneira incorporada, como
que acentuadamente formada por pessoas negras, além do mais, estima-se alguns dos múltiplos saberes-fazeres, inclusive os afroameríndios.
que esta seja composta por aproximadamente quase 200 habitantes. Assim, considerando principalmente o corpo negro/índio, ou afroa-
Sublinho, aliás, que a denominada “observação participante” meríndio, estou a apontar, neste trabalho, o corpo como categoria de
se esquiva da aparente dicotomia entre o ato de participar e observar, “assentamento”, uma vez que ele é “[...] chão sacralizado, é morada de
apostando e pautando-se no princípio da atenção e do acompanhamen- segredos, é lugar de encantamento, é corpo ancestral, é onde se ressig-
to como dois fenômenos que atuam concomitantemente, uma vez que nifica a vida”. (RUFINO, 2019, p. 100, grifo do autor).
compreende o ato de estar atento e a ação do acompanhar, como duas Saliento ainda que outra preocupação deste trabalho consiste
situações implicadas mutuamente. Baseado no antropólogo Tim Ingold em enunciar também o sentido da palavra macumba, pois parece perti-
(2016), posso dizer que a observação participante compreende uma ma- nente afirmar que, ainda hoje, seu significado é abordado, majoritaria-
neira de trabalhar e uma forma de proceder atentamente. Além do mais, mente, de maneira racista, discriminatória e pejorativa, na escola brasi-
praticar a observação participante “[...] é, portanto, juntar-se em corres-
[*] Notícia veiculada no site Folha de São Paulo. Disponível em: https://webcache.
googleusercontent.com/search?q=cache:1K3v5YCqz-4J:https://www1.folha.uol.
[*] Os vídeos e fotos das apresentações e produções artísticas podem ser vistos na página com.br/folha/educacao/ult305u18838.shtml+&cd=1&hl=pt=-BR&ct=clnk&gl-
do Facebook: https://www.facebook.com/285007975245010/posts/543396146072857 br>. Acesso em: 31 ago.2020.
(acessado em 23 de agosto de 2020). [**] Notícia veiculada no site Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.
[**] Para conhecer o trabalho das Paparutas, da Ilha do Paty, indico o endereço eletrôni- com.br/educacao/noticia/2016-11/educacao-reforca-desigualdades-entre-brancos-e-
co: https://globoplay.globo.com/v/6921282/ (acessado em 10 de agosto de 2020). -negros-diz-estudo>. Acesso em: 31 ago. 2020.

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leira, quando não o é veementemente banido dos currículos escolares. desmontado: a cultura do preconceito e do racismo”. (MALOMALO,
Em vista disso, essa palavra e seus derivados serão tomados, aqui, como 2016, p. 144). Por este motivo, abordo os conceitos macumbização e
sinônimos de poética e encantamento. Ademais, pontuo que, ao abor- encruzilhada perspectivando-os também enquanto “[...] uma proposta
dar o tema “A macumbização da Dança/Arte no currículo”, através da metodológica de desconstrução dos preconceitos atribuídos a muitas
perspectiva pós-colonial de Currículo, parto da compreensão de que palavras da cultura negra na vida cotidiana ou no mundo acadêmico”
os termos macumba e seu correlato macumbeiro, pessoa praticante da (MALOMALO, 2016, p. 143). Outrossim, tomo o sentido da macum-
macumba, estão relacionados, ao seguinte: bização da Dança/Arte no currículo escolar do CEAS, principalmente
ao apreciar as Paparutas, “[...] como o processo de produção de uma
[...] definição de caráter brincante e político, que sub-
verte sentidos preconceituosos atribuídos de todos os estética política e epistemologia antirracista que se pautam na valoriza-
lados ao termo repudiado e admite as impurezas, con- ção do diálogo intercultural e interdisciplinar e que tem por finalidade
tradições e rasuras como fundantes de uma maneira a emancipação humana”. (MALOMALO, 2016, p. 156).
encantada de se encarar e ler o mundo no alargamento
das gramáticas. O macumbeiro reconhece a plenitude Desse modo, ao tratar do curriculum/Currículo[*], neste traba-
da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gen- lho, reitero e perspectivo a encruzilhada tanto como dispositivo concei-
tes. A expressão macumba vem muito provavelmente tual-epistêmico negro-africano, quanto como um dos caminhos possí-
do quicongo kumba: feiticeiro (o prefixo “ma”, no qui- veis para pensar-fazer o curriculum escolar, além de reconhecê-la como
congo, forma o plural). Kumba também designa os en-
cantadores das palavras, poetas. Macumba seria, então, lugar de encantamento para todos os povos (SIMAS & RUFINO,
a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos 2018). Porque “se o colonialismo edificou a cruz como égide de seu
e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intran- projeto de dominação, aqui nós reinventamos o mundo transformando
sigente e propor maneiras plurais de reexistência pela
radicalidade do encanto, em meio as doenças geradas a cruz em encruzilhada e a praticando como campo de possibilidades”
pela retidão castradora do mundo como experiência (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 20). Posto isto, ao pensar o currículum/
singular de morte. (SIMAS & RUFINO, 2018, p.5). Currículo como campo de possibilidades formativas e instituidor do
conhecimento formativo, dotado, portanto, de princípios heurísticos
Assim, igualmente, explico que falar sobre macumbização da e propositivos, vislumbro o mesmo como cruzo, pois “[...] é na encru-
Arte no currículo brasileiro é, antes de tudo, engajar-se em ato sociopo- zilhada que se praticam as transformações” (RUFINO, 2019, p. 21).
lítico, comprometido em promover o exercício crítico contra toda forma Portanto, de modo mais preciso, toda a explanação desta intro-
de racismo cultural (FANON apud ALMEIDA, 2018, p. 24), e, princi- dução se ata aos apontamentos a seguir, visto que são frutos da minha
palmente, contra a desmacumbização do conhecimento advindo dos po- experiência como professor de Dança/Arte, do Centro de Estudos e
vos afro-ameríndios, encarando o fenômeno da desmacumbização como Aperfeiçoamento do Saber – CEAS (Figura 1), uma das escolas dos
uma das ações políticas perpetrada pelo colonialismo, quando se con- Anos Finais do Ensino Fundamental, da Rede Municipal de Educação
sidera que este se configurou, no chamado Novo Mundo, em nome de do município em questão, conforme já apontada.
um suposto processo civilizatório colonial europeu no mundo. Processo
cuja fundamentação instituiu, principalmente, a inventiva noção de raça
como dispositivo de subordinação, e, agregado a isto, a destituição epis- [*] Em Currículo: campo, conceito e pesquisa, Roberto Sidnei Macedo (2017) explana
têmica, simbólica e ontológica da alteridade, consequentemente, a “[...] que a palavra “currículo”, em latim curriculum, e no plural curricula, tem seu sentido
atribuído, modernamente, à estruturação das experiências socioeducativas. Por essa
destruição dos seres não brancos” (RUFINO, 2019, p. 9). razão, grafado em latim, neste texto, esse termo tem o mesmo teor significativo, além
Por conseguinte, enquanto palavra mágica e libertadora para de referir-se a documentos e/ou às atividades escolares/pedagógicas. Porém, quando
ensinar-aprender Dança/Arte na escola, “Macumba é o momento po- escrita em português “Currículo”, com inicial maiúscula, ao longo deste trabalho, busco
aproximar-me dessa palavra como a mesma sendo um campo de estudo construído/
lítico e pedagógico de construir o que foi ou está sendo desconstruído, constituído social e historicamente.

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Figura 1: Unidade CEAS Pensando nisso, inicialmente, parece assertivo dizer que falar de
curriculum/Currículo não deve ser uma tarefa fácil, ainda mais quando
aliamos suas discussões ao universo do ensino da Dança/Arte no recin-
to escolar brasileiro. Embora isso seja complexo, muito provavelmente, a
maneira mais comum e convencional de debater e entender o chamado
curriculum escolar seja a de pensá-lo como sendo apenas um documento
e/ou programa prescrito oficialmente, de caráter técnico e normativo, so-
bre o qual se organiza e administra a escola e todo o seu fazer pedagógico.
No entanto, isso talvez seja apenas uma forma simplista, restrita e
bastante abreviada de falar sobre a concepção curricular, ou então de pen-
sar, fazer, compreender e significar o curriculum/Currículo, pois sabe-se
que este desponta tanto como um conceito polissêmico, quanto como um
campo epistemológico de pesquisa, composto por histórias, teorias e abor-
dagens sociológicas. Embora a palavra curriculum possa tangenciar uma
polissemia de significados situados historicamente, compreendo também
Fonte: <https://candeiasnews.com.br/index.php/2017/07/18/s-f-do-con- que curriculum tem a ver com transmissão de saberes, as escolhas, a seleção
de-de-aprendizado/>. Acessado em 23 de agosto de 2020. e organização de conteúdos de ensino, da mesma forma os objetivos e as
justificativas acerca do que é ensinado-aprendido pela escola, por que este
Por uma visão pós-colonial do/no Curriculum/Currículo, e não aquele conhecimento está na instituição de ensino-aprendizado. Por
assente na pedagogia das encruzilhadas sua vez, essas ideias dizem respeito aos estudos sociológicos do Currículo,
conforme apresentado pelo francês Jean Claude Forquin:
Entretecido com o que já foi explanado acima, neste tópico faço
um entremeio, começando, assim, pelas seguintes indagações: de que for- [...] considerado em seu sentido mais geral e mais abs-
ma e por que o curriculum está implicado em questões sociais e políticas? trato (“o” currículo, por oposição a “um” currículo ou a
“tal” ou “qual” currículo), o termo faz referência a tudo
Ademais, de que maneira o ensino da Dança/Arte está caracterizado e/ aquilo que se poderia chamar de dimensão cognitiva
ou constituído nas proposições curriculares da Educação Básica brasileira ou cultural do ensino, o fato de que a escola transmite
e quais seriam alguns dos seus principais papéis nas escolas, no contexto aquilo que chamamos de “conteúdos”, saberes, compe-
tências, símbolos, valores. É essa insistência nos conteú-
contemporâneo, sobretudo frente ao racismo? Quais princípios artísti- dos, na sua natureza e na sua forma, no modo como eles
cos/estéticos constituem a formação em Arte/Dança nos curricula esco- são selecionados, organizados e distribuídos através das
lares brasileiros? Quais pressupostos éticos, políticos, epistemológicos e diferentes fases da «cadeia didática» que evocamos
mais freqüentemente quando falamos de «teoria do
pedagógicos estão vinculados no processo formativo em Arte nas escolas currículo» ou de «sociologia do currículo». (FOR-
do País? Quais saberes/epistemes fundamentam os conteúdos considera- QUIN, 1996, pg. 188, grifo nosso).
dos formativos para o ensino de Dança/Arte na escola? Afinal, por que
os conhecimentos afro-ameríndios ainda não são pautados significativa- Paralelamente, até é possível dizer que alguns dos aspectos co-
mente nos curricula das Instituições de Ensino no Brasil, principalmente muns às discussões acerca do curriculum correspondem ao fato de pen-
aqueles relativos às práticas artístico-culturais performativas? Essas são sá-lo como sendo um organizador de experiências e situações de apren-
algumas das perguntas que servem como exercício, inquietação e ignição dizagens a fim de promover, consolidar e/ou configurar um processo
para catalisar o desenvolvimento e configuração desta seção. educativo, conforme apontado por Alice Casimiro Lopes e Elizabeth

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Macedo (2011). Pois, de acordo com as autoras, “há, certamente, um NO, 2019), pela pedagogia libertadora de Paulo Freire (1983), peda-
aspecto comum a tudo isso que tem sido chamado de currículo: a ideia gogia engajada de Bell Hooks (2017) e por meio da insubmissão “[...]
de organização, prévia ou não, de experiências/situações de aprendiza- às raízes mais profundas do sistema mundo racista/capitalista/cristal/
gem realizada por docentes/redes de ensino de forma a levar a cabo um patriarcal/moderno/europeu/ e às suas formas de perpetuação de vio-
processo educativo” (LOPES & MACEDO, 2011, p. 19). lências e lógicas produzidas na dominação do ser, saber e poder” (RU-
Ademais, elas explicam que o conhecimento é a tônica central FINO, 2019). Porque acredito que a perspectiva pós-colonial de/sobre
e mola propulsora da história e abordagem do Currículo. Considerando Currículo deve fulgurar-se como uma insubordinação e um ato rebelde,
as diferentes acepções do que seja curriculum, em face das variadas in- transgressor (HOOKS, 2017) e libertário (FREIRE, 1983). Assim,
tenções socioeducacionais e dos contextos sociais escolares, nos quais as
Numa outra construção pautada na rebeldia em face do
acepções são engendradas, o conhecimento pode ser concebido a partir processo de colonização opressor que subjuga as cultu-
da perspectiva acadêmica, instrumental, progressivista e crítica, todavia, ras não europeias, a teoria pós-colonial lança seu olhar
não se limitando a estas. Considerando, ainda, que tais abordagens ora para currículo reivindicando a inclusão das formas cul-
turais que refletem a experiência de segmentos cujas
se entrecruzam, ora se apartam, tendo como principal foco discutir os identidades culturais e sociais são marginalizadas pela
fins educacionais e as nuances de legitimidade do conhecimento em cada identidade ocidental hegemônica. Para o pós-colonialis-
uma delas. Ainda de acordo com a obra Documentos de identidade: uma mo há um “cânon ocidental” que transversaliza os cur-
introdução às teorias do currículo, de Tomaz Tadeu da Silva (2005), po- ricula e que acabam por legitimar a história dominante
dos europeus. É assim que a análise pós-colonial junta-se
de-se inclusive resumir os estudos do Currículo em três perspectivas[*]: as ao pós-modernismo e o pós-estruturalismo, para ques-
chamadas teorias tradicionais, teorias críticas e teorias pós-críticas. tionar a dinâmica de poder e as formas de conhecimen-
Quanto às denominadas teorias pós-críticas de Currículo, cuja to que colocaram o sujeito imperial europeu na posição
atual de privilégio. Em realidade, a análise pós-colonial
fundamentação ata-se à intitulada perspectiva pós-colonial e pós-estru- quer nos mostrar que os processos de dominação são
turalista, essas situam-se na Pós-Modernidade. Assim, segundo a visão processos fundamentados em alianças com o capitalis-
pós-colonial, as propostas curriculares e o ato educativo devem com- mo, a lógica judaica cristã, a cultura europeia branca e
o aparato técnico-militarista que o norte fabricou com
prometer-se relevantemente com o ato de transgredir processos colo- interesses imperialistas. A colonização se dá por essa
niais de submissão cultural, subalternidade e de pretensa aniquilação aliança, na qual o outro aparece representado como um
da alteridade, que estão fundamentados sob a égide da ótica cultural ser que necessita de “civilização”, é “privado de cultura”,
europeia e/ou nos interesses imperialistas dos Estados Unidos. ou tem uma cultura inferior. [...] Esse projeto teve, desde
o início, uma importante função educacional e pedagó-
Portanto, este trabalho está entretecido especialmente pelo gica. (MACEDO, 2017, p.66-67, grifo do autor).
viés da desobediência epistêmica (MIGNOLO, 2008, apud RUFI-
Entrecruzado a isso, assente e inspirado na obra Pedagogia das
[*] A partir dessa obra, pode-se resumir as três perspectivas da seguinte forma: baseada
em Bobbit e Tyler, as teorias tradicionais se voltam para a instrumentalização, o utilita- encruzilhadas, de Luiz Rufino (2019), a noção e dimensão de curri-
rismo e o tecnicismo, a fim de tornar o curriculum simplesmente funcional, como instru- culum/Currículo, com suas respectivas teorias, está sendo lida e pers-
mento eficiente e eficaz, corroborando com a manutenção e aceitação das desigualdades pectivada, aqui, como uma espécie de terreiro e cruzo, sobre o qual os
e injustiças sociais; assentada no marxismo e neomarxismo, de Michael Young, Michael
Apple, Henry Giroux, a teoria crítica está mais preocupada em compreender as dinâmicas processos socioeducativos e/ou formativos são amarrados/organizados
e implicações políticas, sociais e ideológicas do currículo, problematizando a forma como por nós entrecruzados e entretecidos pelo jogo de embates, pela legi-
o conhecimento é inserido na escola,na esperança e na empreitada de transformá-la; já a
perspectiva pós-críticas de currículo inspirava-se na dimensão pós-estruturalista da lin- timidade do conhecimento. Inclusive para pensar o ensino da Dança/
guagem, uma vez que as categorizações modernas, a exemplo de “sujeito” e “identidade”, Arte na escola fundamentado nos saberes-fazeres negro-africano, que é
são tomadas como alvo de especulação e postas em dúvida, expandindo-se para discussões
referentes à identidade, alteridade, diferença, subjetividade, gênero, raça, etnia, sexualida- um dos principais propósitos deste trabalho.
de e multiculturalismo, representação, cultura, saber-poder e discurso.

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Isso implica, de antemão, pedir licença também ao Povo de San- gbarijó. O cruzo é a rigor uma perspectiva que mira e
to, e, respeitosamente, a todas as forças (axé) ancestrais africanas e amerín- pratica a transgressão e não a subversão, ele opera sem a
pretensão de exterminar o outro com que se joga, mas
dias, para situar que a acepção do lexema terreiro está sendo mencionado/ de engoli-lo, atravessá-lo, adicioná-lo, como acúmulo
enunciado nesta proposição como ação antirracista, insurgindo-se, pois, de força vital” (RUFINO, 2019, p. 18).
contra toda forma de preconceito e discriminação racial (MUNANGA
& GOMES, 2004)[*], e, principalmente, avesso ao racismo cultural[**], que Assim, pensando nos influxos e codinomes de Exu[*], conforme
insistentemente atravessam os processos socioeducacionais/formativos Rufino (2019), estou a apontar/compreender o curriculum/Currículo
no Brasil. Portanto, deslocado em cruzo, tomo o sentido de terreiro para como encruzilhada, um campo de possibilidades, portanto. Aliás, to-
ler/pensar curriculum na escola brasileira como sendo má-lo como terreiro e cruzo é reconhecer, inclusive, que toda e qualquer
forma de arranjos e/ou configurações curriculares “[...] provocam os
[...] todo o “campo inventivo”, seja ele material ou não, efeitos mobilizadores para a emergência de processos educativos com-
emergente da criatividade e da necessidade de reinven-
ção e encantamento do tempo/espaço. Nessa perspec- prometidos com a diversidade de conhecimentos” (RUFINO, 2019, p.
tiva, a compreensão da noção de terreiro se pluraliza, 80). Pois, assim como nos cruzamentos, nos curricula/Currículo, e suas
excede a compreensão física para abranger os sentidos discussões teóricas-epistemológicas, “[...] marcam-se zonas de conflito,
inscritos pelas atividades poéticas e políticas da vida em
sua pluralidade (RUFINO, 2019, p. 101). as zonas fronteiriças, zonas propícias às relações dialógicas, de inteligi-
bilidade e coexistência” (RUFINO, 2019, p. 80).
Ainda segundo Rufino (2019), o ato potente das encruzilha- Por conseguinte, de igual modo, penso que isso deve ser leva-
das está no cruzo que, por sua vez, são devires, movimentos dinâmicos e do em conta, devendo ser até uma das grandes preocupações da orga-
inapreensíveis, imerso, portanto, em atravessamentos, nização curricular escolar, principalmente aquelas que se voltam para
pensar/fazer o ensino de Dança/Arte, fundamentada numa pedagogia/
[...] rasura, cisura, contaminação, catalisação, bricola- educação antirracista. Exercitando, assim, um fazer pedagógico que es-
gem - efeitos exusíacos em suas faces de Elegbara e Enu-
teja atado ao que Nilma Lino Gomes (2011) denomina de pedagogia
[*] Na obra Para entender o negro no Brasil de hoje (2004), do pesquisador/professor das ausências e emergências, cuja consistência está tanto no exercício
Kabengele Munanga e da professora/pesquisadora Nilma Lino Gomes, especialistas so-
bre questões raciais, no País, pode-se dizer que há diferentes noções acerca das expressões político e epistemológico em transformar em presença os saberes ausen-
“preconceito racial” e “discriminação racial”, conceitualmente falando. A primeira, trata- tes e invizibilizados no curriculum quanto atuar na direção da “[...] in-
-se do negativo e precipitado julgamento construído/cometido contra alguém, seja por
parte dos membros de uma determinada designação racial, étnica e religiosa, ou até mes- [*] Exu, também conhecido como “Elegbara” e “Enugbarijó”, é tomado como um dos
mo de um determinado grupo ou indivíduos em relação ao outro, o diferente. Ou seja, elementos fundantes/centrais da obra de Luiz Rufino (2019), para discutir sua tese,
são conceitos e opiniões inferidas previamente, sem correspondência ou conhecimento aquilo que ele próprio intitula de “pedagogia das encruzilhadas”, na qual Exu encarna/
dos fatos. Já a segunda expressão, compreende o ato de discriminar alguém, distinguir a manifesta três caminhos pedagógicos: o político, que encampa a luta antirracial negra
diferença, ou seja, estabelecer distinção entre um e outro. Ademais, a discriminação im- e a transgressão dos modelos coloniais; o poético, que se configura através do diálogo
plica em uma ação, normalmente, incorre na negação de direitos e/ou oportunidades. Em entrecruzado com diversos saberes historicamente subordinados, tendo sua forma reve-
resumo, ambas as expressões podem nutrir a prática do racismo, vinculando-se a atitudes, lada no ato de agregar a indissociabilidade do ser-saber-linguagem, em prol, portanto,
ressentimentos e/ou sentimentos negativos/pejorativos de um grupo social contra outro. da vida em diversidade; e o ético, que, perspectivado pelo o ato político de educar, se
[**] Toma-se a obra O que é racismo estrutural? do professor/pesquisador Silvio Almei- manifesta como um ato responsavelmente comprometido com a transformação do ser,
da, para sublinhar que o “racismo cultural” compreende processos discriminatórios uma vez que lê a educação como experiência existencial alinhada com a vida, arte e o
baseado no registro étnico-cultural, segundo Frantz Fanon (1980, apud ALMEIDA, conhecimento, um caminho possível para transgredir toda e qualquer ordem colonial.
2018). Pode-se inferir ainda, que o chamado “racismo cultural” se fulgura em toda e Ainda com base em Raízes musicais da Bahia (2006), obra de Emília Biancardi, etno-
qualquer forma de discriminação que atente contra à dignidade ou manifestação étni- musicóloga e renomada estudiosa do campo do Folclore na Bahia, Exu é um orixá, en-
ca-cultural de um povo, ou então, a qualquer um de seus membros, desconsiderando tidade/divindade que faz parte da religiosidade afro-brasileira, e apreende a dualidade,
sua característica e expressão identitária, religiosa, geográfica, linguísticas ou costumes pois nele coaduna o bem e o mal, o certo e errado, o sim e não, o equilíbrio e desequilí-
de natureza diversa. Ou seja, posso grifar que se trata de depreciar e discriminar um brio. Exu faz parte da cosmovisão e mitologia afro-brasileira, sendo considerado como
certo modo de existência do outro, no mundo (ALMEIDA, 2018). uma entidade que abre e cria caminhos, conforme a tradição iorubá/yorùbá

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vestigação das alternativas pedagógicas já existentes nas práticas sociais Assim, inicialmente, informo que a elaboração e a realização dessa propo-
e políticas dos movimentos sociais, das diversas ações coletivas e sua sição contaram com o engajamento dos/das docentes de Arte (Música,
articulação com o espaço escolar” (GOMES, 2011, p. 45-47). Dança e Artes Plásticas) e os/as discentes, no tocante ao ensino da Arte
Legitimando, com isso, o ensino da Dança/Arte no curriculum e às produções artístico-culturais, e, por conseguinte, com a mobilização
como modo de produção de sentido/significado, que esteja alicerçado de toda a comunidade escolar do CEAS, contando, inclusive, com a atua-
principalmente na inclusão dos saberes-fazeres da cultura popular[*], cifra- ção docente das outras áreas do curriculum. O principal objetivo dessa
da e/ou perfilada especificamente pelo conhecimento e estudo das perfor- proposta foi promover, durante toda a semana do 20 de Novembro, ações
mances culturais afroameríndias (LIGIÉRO, 2011), a fim de combater, artísticos-culturais em virtude ao Dia Nacional de Zumbi e Dia da Cons-
sobremaneira, o racismo cultural implícito, que ainda persiste, na maioria ciência Negra, multidisciplinarmente, com base nas linguagens artísticas
das vezes, no ensino/aprendizado da Dança/Arte nas escolas brasileiras. e outras áreas de saberes/epistemes do curriculum escolar, ratificando a
Assim, assente numa perspectiva pós-colonial de Currículo, pen- influência e relevância da cultura negro-africana na formação cultural
sando inclusive na macumbização da Dança/Arte no curriculum como um franciscana e brasileira, sobretudo no contexto contemporâneo da Edu-
ato poético e sociopolítico para a construção das identidades negras/pardas cação, no tocante às questões atadas ao racismo.
e/ou afro-ameríndias, que majoritariamente compõem as escolas públicas Algumas das principais relevâncias da proposição “A coisa tá
brasileiras, pontuo ao longo das próximas seções o processo formativo em preta, no CEAS!”, consistira nas seguintes requisições: a lei 10.639/2003
Dança/Arte no CEAS, apreciando principalmente a manifestação artístico- e 11.644/2008, que tratam da obrigatoriedade da explanação de temá-
-cultural das Paparutas enquanto saberes-fazeres negro-africano, assentados ticas ligadas à “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, de modo
em “motrizes culturais” (LIGIÉRO, 2011) e no “cantar-dançar-batucar” trans/multi/interdisciplinar, nas aulas de Arte, Língua Portuguesa,
(FU-KIAU apud LIGIÉRO, 2011). Compreendendo, pois, a configura- História e áreas afins, nas propostas curriculares da Educação Básica
ção dessa tal manifestação como performance cultural brasileiras e parte do brasileira; a enunciação da Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011,
complexo conjunto da cultura popular. Por fim, num exercício reflexivo, a que institui o Dia Nacional de Zumbi e Dia da Consciência Negra;
partir da apreciação das Paparutas da Ilha do Paty, empenho-me em discutir bem como a ressignificação dos termos “preto” e/ou “preta” como for-
e incorporar seus saberes-fazeres como uma das formas de conhecimento ma de um discurso[*] empoderado, com vistas a combater o racismo, a
negro-africano e arte afro-brasileira, no curriculum escolar do CEAS. intolerância e a discriminação racial; potencializando e perspectivan-
do positivamente tais termos como autoafirmação das identidades do
Entretecendo a experiência formativa em Dança/Arte povo negro, insurgindo-se, inclusive, contra qualquer forma de negati-
“A coisa tá preta, no CEAS!” va e/ou expropriação da identidade racial e herança negro-africana, por
entendermos que “uma das características do racismo é a maneira pela
Pensando em tudo que fora abordado ao longo das seções ante- qual ele aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto
riores, nesta explano a proposta pedagógica “A coisa tá preta, no CEAS!”. reserva para os racialmente hegemônicos o privilégio de ser representa-
[*] Sobre a acepção do termo “popular” e/ou seu correlato “populares”, é empregado, dos em sua diversidade”. (CARNEIRO, 2011, p. 70).
ao longo deste trabalho, no sentido próprio defendido por Stuart Hall (2011), em Da Então, naqueles períodos, através do contato com os/as estu-
diáspora: Identidade e mediações culturais. Nessa obra, esse teórico da cultura, um dos dantes e em diálogo com a coordenação pedagógica, nós, professores
precursores do campo dos Estudos Culturais, ao se debruçar sobre o termo “cultura
popular”, o compreende como demasiadamente problemático. Contudo, considera e professoras de Dança, Música e Artes Plásticas-Visuais, responsáveis
o “popular” como sendo as formas e atividades, que, atemporalmente, têm enquanto
[*] A acepção da palavra discurso está empregada, aqui, a partir da obra Linguagem e ideolo-
princípio as condições sociais e materiais de classes específicas; um termo, portanto, gia, José Luiz Fiorin (1988). Segundo este autor, o discurso pode ser compreendido como
que, a qualquer tempo, é sempre relacional, estando em constante tensão (relaciona- um conjunto de elementos linguísticos (frases ou a constituição de muitas frases) que tem
mento, influência e antagonismos) com a chamada cultura dominante, ou hegemônica; como fim representar e/ou configurar ideias e pensamentos, na expectativa de comunicar
posto que sua principal referência está, pois, na luta de classes. tanto o nosso mundo interior quanto o exterior, agindo, portanto, no/sobre mundo.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO

pelo componente curricular Arte, observamos algumas das problemá- e/ou termos que ora revelavam e ora ocultavam o racismo, a exemplo da ex-
ticas no CEAS, enumerando-as da seguinte maneira: dificuldade dos/ pressão “nega do leite”, “cabelo de Bombril”; ou então, quando cantávamos,
das discentes com sua autodeclaração negra-parda; baixa autoestima; batucávamos e dançávamos no CEAS, ouvíamos a linguagem corriqueira
baixa frequência e participação nas aulas; estranhamento e/ou pouco dos/das estudantes “Que macumba é esse aí, professor?”.
(re)conhecimento frente a outras manifestações culturais locais, que ti- Com foco nessas problemáticas observadas e apontadas, analiso
nham forte representatividade da população negra, apesar de notarmos, tais situações como práticas disfarçadas que são tomadas como corriqueiras
nessa escola, a forte presença da Capoeira, do Maculelê, bem como a no espaço escolar, quando tratamos das questões raciais e negro-africana
manifestação do Pagode Baiano, ou então, do Brega Funk, do Passinho no curriculum. Essas situações pontuadas podem ser, inclusive, associadas
ou Funk Carioca, essas últimas, veiculadas pelos meios de comunicação ao então chamado “currículo oculto”, uma vez que aquelas práticas se con-
de massa; notou-se, ainda, que uma parcela considerável dos/das estu- figuram, por vezes, como fenômenos que estão tácitos e/ou invisibilizados
dantes tinham pouca e, às vezes, nenhuma familiaridade com as mani- na escola e/ou nas propostas curriculares, de forma escamoteada ou não;
festações das Paparutas, do Capa bode, do Mandu ou Samba de roda[*], cabendo principalmente a nós, docentes, atentamente, explicitá-las e/ou
para poder compreendê-las como produções artísticas e patrimônio problematizá-las em nossas proposições curriculares cotidiana.
cultural das gentes negras, no contexto do Recôncavo baiano; pouco Nesse sentido, recorro aos apontamentos do autor francês Jean
conhecimento e/ou conhecimento insuficiente sobre a arte negra e/ Claude Forquin (1996), quando chama a atenção para aquilo que está
ou afro-brasileira; pouco conhecimento e/ou falta de conhecimento subentendido no espaço escolar, pelo viés do denominado currículo
sobre personalidades, artistas ou/e intelectuais negros, a exemplo de oculto, frente a duas visões diferentes: o “implícito natural”, aquilo que
Abdias do Nascimento e Milton Santos, que muito contribuíram para não precisa ser inscrito ou falado, porque pode ser simplesmente nota-
formação cultural, científica, intelectual e artística do Brasil, ou então do no cotidiano escolar, e o “implícito perverso”, uma vez que este é o
das próprias personalidades intelectuais-artísticas de São Francisco do “[...] produto de um trabalho permanente de ocultação de dissimulação
Conde, a exemplo do prof. de Música do próprio CEAS, o músico e ou de mistificação [...]” (FORQUIN, 1996, p 193).
compositor Daniel Nascimento dos Santos[**]. Portanto, pensando em todas as questões destacadas, nós, pro-
Resumidamente, para, além disso, foi observada a recorrente prá- fessores e professoras, potencializamos as seguintes ações e métodos:
tica de intolerância religiosa frente às manifestações culturais apresentadas; discutir o que é “O vinte de novembro” e sua relevância para a história
discriminação racial e racismo cultural; falta de respeito; brincadeiras pejo- da arte brasileira e o povo negro; contextualizar quem foi Zumbi dos
rativas, beirando a quase injúria racial, por parte dos próprios discentes. Ou Palmares e sua relevância pela luta a favor da liberdade negra e o desen-
seja, evidenciamos que entre eles/elas havia comentários racistas sobre seus volvimento das atividades e identidades quilombolas, sobretudo das ma-
cabelos e/ou sua raça/cor[***], além do uso indiscriminável de frases, palavras nifestações culturais de terreiro; autoafirmar a identidade negra através
da estética e da oralidade, olhando sobretudo para os saberes-fazeres
[*] Sublinha-se que essas são algumas das manifestações artístico-culturais que se orga- artísticos; mobilizar/trazer para dentro da escola grupos, mestras e/ou
nizam no chão de São Francisco do Conde, com forte influência negro-africana. Assim,
recomendo e destaco a importantíssima obra São Francisco do Conde: resgate de uma mestres da cultura popular que desenvolvem atividades culturais nas co-
riqueza cultural (1998), do prof. Geógrafo José Jorge do Espirito Santo, popularmente munidades adjacentes, a fim de que eles/elas realizassem palestras e/ou
conhecido como prof. Jorge Thury.Para conhecer algumas das manifestações culturais apresentações artístico-culturais, a exemplo do grupo Samba Chula Fi-
mencionadas neste texto, indico ainda os seguintes endereços eletrônicos: https://ro-
tasciags.wordpress.com/s-f-conde-religiosa/> e <http://saofranciscodoconde.ba.gov. uso do termo raça e etnia, por exemplo. Pois, de acordo com Munanga e Gomes (2004),
br/cidade/cultura/>. (Ambos acessados em 10 de agosto de 2020). o termo raça tem sido ressignificado positivamente pelo Movimento Negro, de modo
[**] Para conhecer o trabalho desse professor-artista, indico o endereço eletrônico: ht- histórico e sociopolítico, complexificando a relação entre raça, racismo, preconceito e
tps://www.youtube.com/watch?v=q6Al4-T1Rlo(acessado em 10 de agosto de 2020). discriminação racial. Já a dimensão conceitual da palavra etnia, adequadamente, busca
[***] Considera-se, aqui, a classificação cor/raça de acordo com a política de autodecla- esquivar-se de qualquer sentido biológico como atributo ao termo raça, a fim de superar
ração do IBGE. Contudo, ressalta-se a diferença histórica e epistemológica quanto ao qualquer forma de ideologia racista e/ou a ideia de supremacia racial entre os povos.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO

lhos da Pitangueira e as Paparutas, típicas manifestações culturais de São está situado nas proximidades daquela Ilha, recebendo um número signi-
Francisco do Conde-BA; realizar roda de conversas sobre a relevância ficativo de discentes oriundo da mesma, que, inclusive, precisam sempre
da arte e da cultura negra na formação do Brasil, principalmente na de contar com a chamada tábua da maré para poder frequentar as aulas nessa
São Francisco do Conde; apresentar autores e obras artísticas negras, seja escola, uma vez que essa regula a entrada e saída das pessoas naquela Ilha.
na música, na dança, no cinema, na literatura, nas artes plásticas/visuais
e/ou no teatro; promover trabalhos artísticos (recitais, performances, Figuras 2 e 3 – Apresentação das Paparutas no auditório do CEAS
esquetes, releituras, paródias, etc.), nas diferentes linguagens (literatura,
música, teatro, artes plásticas/visuais e dança), que tinham o negro, o ra-
cismo ou a cultura negra como temática; desvelar e combater práticas
racistas presente no linguajar e/ou nos comportamentos dos/das discen-
tes, no cotidiano escolar; destacar o protagonismo do negro nas áreas dos
saberes intelectuais, culturais e científicos, principalmente na literatura e
nas linguagens artísticas: dança, música, teatro e artes plásticas/visuais.
Por fim, adjunto a essas ações, ainda lançamos mão de uma
abordagem avaliativa frente a essa proposta, cujo consistira na frequên-
cia e participação nas aulas; elaboração de texto escrito diante das aulas
(resumo, relatório, trabalhos, etc.) e realização de atividades (registro
nos cadernos, leitura de textos, criação e apresentação de trabalhos ar-
tísticos, etc.). Posto isso, a seguir, aprecia-se a manifestação das Paparu-
tas como uma das principais atividades realizadas no CEAS.

O encontro estético e encantamento poético do cantar-ba-


tucar-dançar performático das Paparutas no chão do CEAS

Pois então, a imagem ilustrada a seguir representa a apresentação


artístico-cultural das Paparutas, realizada no auditório do CEAS[*], em no-
vembro de 2018. Considerado como um grupo comunitário, da Ilha do
Paty[**], do município de São Francisco do Conde, as Paparutas organizam- Foto: Isadora Santos Barbosa, 2018
-se como um conjunto de mulheres de diferentes idades e um grupo de mu-
sicistas, composto por mulheres e homes instrumentistas/percussionistas, Assim, a partir desse panorama, pode-se dizer que as Paparutas
todas e todas moradores residentes da Ilha. Desde já, ressalto que o CEAS se apresentam reunidas em círculo, dançando e cantando, e, consecu-
tivamente, carregam sobre suas cabeças tachos de madeira ou de barro
[*] Situado próximo à Refinaria Landulpho Alves, o CEAS está localizado na Rua Alto (Figura 4). Basicamente, a performance das dançarinas do grupo consiste
da Bela Vista, S/N, no bairro do Caípe de Cima, estrada que liga as cidades baianas em exibir e ofertar pratos da culinária da Bahia, a dona da cozinha, que é
Candeias, São Francisco do Conde e Madre de Deus. Como escola de Educação Básica,
de nível Fundamental II, o CEAS funciona, semanalmente, nos turnos matutino, ves-
conhecida como Iaiá, certamente, uma designação que remonta aos tem-
pertino e noturno, atendendo uma estimativa de 945 alunos, do 6º ao 9º ano do Ensino pos da escravidão no Brasil. Por seu turno, esses tachos contêm comidas
Fundamental II e da Educação de Jovens e Adultos. típicas da região do Recôncavo baiano, a exemplo da moqueca de dendê,
[**] Localizada a sudeste do centro deste município, a Ilha do Paty compõe parte do
arquipélago franciscano. o peixe frito, o caruru, o vatapá, o acarajé, o feijão fradinho, arroz, frigi-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO

deira e omelete, que serão oferecidas aos participantes apreciadores desse “E somos nós, Paparutas boas (bis)
evento, no final de sua performance/manifestação artística-cultural. Na cozinha na manemolência
somos pequenas e provocantes
Figura 4 – Discentes e integrantes das Paparutas em apresentação na maior reminiscência.
artística no CEAS Eu sou a manemolência
que me chamam de Iaiá
Eu sou a dona da cozinha
como eu não há igual”.
(IPHAN, 2007, p.58.)

Figura 5 – Apresentação performática das Paparutas na comunidade


da Ilha do Paty

Foto: Isadora Santos Barbosa, 2018

Diante disso, registro que, naquele dia, antes mesmo de ter Fonte: Dossiê do IPHAN, 2007.
iniciado a performance artístico-cultural das Paparutas, tivemos
uma aula com o senhor Altamirando de Amorim, que é considerado Conforme o Dossiê do Instituto do Patrimônio Humano Ar-
um dos mestres de cerimônia e responsável pela organização do gru- tístico Nacional (2007), essa manifestação pode ser compreendida como
po. Assim, tivemos a honra e a oportunidade de aprender com ele sendo uma espécie de “[...] variação coreográfica do samba de roda [...]”
o sentido da palavra paparutas, cuja significação ainda não é encon- (IPHAN, 2007, p. 58), no Recôncavo baiano. Articulado a isso, neste
trada em nenhum dicionário da Língua Portuguesa, sendo, pois, um trabalho, também compreendo as Paparutas como uma forma de Sam-
neologismo, uma espécie de engenhosidade inventada pelas gentes ba-brincadeira e Samba-ritual, duas das categorias usadas por Ligiéro
populares da comunidade do Paty há quase 100 anos. Ainda com (2011) para tratar da performance[*]do Samba. Na primeira categoria a
base na explicação do mestre, foi ensinado a nós, docentes e discen- configuração musical é feita pela presença forte da dança, da percussão
tes do CEAS, que o sentido do termo paparutas vem do ato de pa- e do coro, articulando as letras musicais ao aspecto lúdico; já a segunda
par (comer), cuja tradição consiste no hábito de preparar deliciosas classificação, configura-se por meio do rito, aproximando-se potencial-
iguarias da culinária negro-africana. Portanto a expressão “paparu- mente das práticas ancestrais africanas, por meio de repetições, recitações
tas boas” remetem ao ato de comer os deliciosos pratos da gastrono- e símbolos, fortemente caracterizado pela sonoridade polirrítmica da per-
mia franciscana-baiana, conforme a imagem e letra musical a seguir:
[*] A performance surge em contraponto à tradição do teatro greco-romano, e baseia-se
num modo de pensar/fazer teatro incluindo diversas artes, seu sentido corresponde ao
comportamento expressivo das festas e dos rituais.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO

cussão africana (agogôs, pandeiro e atabaques), que entretece a organiza- texto, constato que a proposta pedagógica “A coisa tá preta, no CEAS!”,
ção do espaço-tempo circular da dança. Esta, por sua vez, é feita através desenvolvida em novembro de 2018, pode ser depreendida como atos
do miudinho, da ginga e do rebolado do corpo (LIGIÉRO, 2011). de currículo, cuja significação apreende
Na performance das Paparutas, assim como na do Samba, tes-
[...] todas as atividades que se organizam e se envolvem,
temunhamos que o corpo dança em múltiplas direções, impregnando-se visando uma determinada formação, operacionalizadas
pelo ritmo percussivo, pois, na maneira performativa de dançar, da cultu- via seleção, organização, formulação, implementação,
ra afro-brasileira, “A dança que subjuga o corpo nasce de dentro para fora institucionalização e avaliação de saberes, atividades,
valores, competências, mediados pelo processo ensinar/
e se espalha pelo o espaço em sincronia com a música sincopada típica do aprender ou sua projeção (MACEDO, 2017, p. 38).
continente africano”. (LIGIÉRO, 2011, p.131). Aprecio isto, igualmente,
como sendo uma espécie de cultura de síncope, fenômeno musical muito Diante disso, proponho uma perspectiva curricular para o
peculiar às danças e manifestações artístico-culturais negro-africana, cuja ensino da Dança/Arte na qual as manifestações culturais brasileiras
compreensão musical está voltada para a noção de que: sejam incluídas e consideradas enquanto performances potenciali-
[...] a síncope é uma alteração inesperada do ritmo, causa- zadoras de saberes e fazeres, principalmente os afro-brasileiros. Vis-
da pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo lumbro, ainda, que todo o debate transcorrido, ao longo deste artigo,
fraco sobre um tempo forte. Na prática a síncope rompe pode contribuir, transversalmente, para um ensino de Dança antirra-
com a constância, quebra a sequência previsível e pro- cista, constituindo seu papel como linguagem integrante do compo-
porciona uma sensação de vazio que logo é preenchida
de forma inesperada (SIMAS & RUFINO, 2018, p. 18). nente curricular Arte, na Educação escolar brasileira.

Isso pode ser percebido tanto na dança quanto na música das Considerações Finais
Paparutas. Por isso, compreendo a performance das Paparutas como uma
das formas das danças negras (FERRAZ, 2017), que, por sua vez, cor- Este artigo foi inspirado na convivência e nos encontros com a
responde a chamada arte negro-africana, na medida em que evidencio comunidade do CEAS, da mesma forma que foi movido pela força mo-
corporalmente sua cultura de síncope, pois, ao falar conceitualmente em triz das performances brasileiras, do pesquisador Zeca Ligiéro, na obra
“arte afro-brasileira” na escola, somos desafiados a deslindar a africani- Corpo a corpo (2011), através da sua provocativa quanto à exclusão dos
dade presente ou escondida nesse termo (MUNANGA, 2019, p.06). conhecimentos afro-ameríndios nas instituições de Ensino do Brasil,
Paralelamente, ao destacar a manifestação artístico-cultural das ao tratar, paralelamente, sobre a inclusão dos saberes da tradição afro-
Paparutas como prática performativa e/ou performance cultural brasileira -brasileiro nessas instituições, despontando, assim, como uma perspec-
(LIGIÉRO, 2011), conforme visto nas imagens acima, parto da com- tiva pós-colonial de Currículo. Ainda se evidenciou aqui que o concei-
pressão que seus saberes-fazeres (dança, canto e música) são potencial- to curriculum/Currículo compreende uma polissemia de sentidos, que,
mente “motrizes culturais”, cuja estruturação corresponde à tríade “can- por seu turno, conjugam-se com a história política/social de processos
tar-dançar-batucar” (FU-KIAU apud LIGIÉRO, 2011). Fulgurando-se, socioeducacionais, as finalidades e situações contextuais escolares, bem
portanto, como forma de conhecimento afro-brasileiro no qual “[...] o como com a seleção, organização e legitimação do conhecimento.
corpo é o centro de tudo”. (LIGIÉRO, 2011, p. 131). Essa tríade, aliás, é Além disso, somado a tudo que foi exposto, ao longo deste
pensada enquanto elementos basilares das manifestações culturais africa- texto, destacam-se como alguns dos principais resultados alcançados
nas, segundo Fu-Kiau (1969 apud LIGIÉRO, 2011), filósofo do Congo. a realização de oficinas, performances e exposições artísticas, a sen-
Portanto, ao apreciar a performance cultural das Paparutas e sibilização estética e o contato da comunidade escolar com os gru-
ao rememorar o processo formativo em Dança/Arte, no CEAS, neste pos artísticos-culturais de São Francisco do Conde-Bahia; pois, por

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A MACUMBIZAÇÃO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO

meio da mediação docente, foi incentivado a criação e produção de FERRAZ, Fernando Marques Camargo. Danças Negras: entre apaga-
trabalhos artísticos cujas temáticas estivessem implicadas nas ques- mentos e afirmação no cenário político das artes. Revista Eixo. Brasília:
tões raciais, em ações antirracistas e até mesmo atentas às discussões v. 6, n. 2 (Especial), 2017, p. 115-124.
que haviam sido exploradas em sala de aula, conforme a proposição
FIORIN, J. L. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1988.
do plano pedagógico “A coisa tá preta, no CEAS!”. Por conseguinte,
tais trabalhos foram expostos nas salas de aulas e/ou apresentados no FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 13ª. Ed. Rio de Janeiro: Paz e
auditório do próprio CEAS, em novembro de 2018, para toda sua Terra, 1983.
comunidade escolar, contando principalmente com o engajamento FORQUIN, Jean Claude. As abordagens sociológicas do currícu-
da equipe docente e o protagonismo dos/das estudantes, assim como lo:  orientações teóricas e perspectivas de pesquisa. In  Educação &
com a participação das pessoas e/ou grupos artísticos-culturais locais, Realidade, vol. 21, n. 1, p. 187-198, jan. /jun. 1996. Porto Alegre.
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do Samba Chula Filhos da Pitangueira e a performance cultural das view/71652/40642. Acesso em: 20 mar. 2020.
Paparutas, a principal manifestação aqui estudada.
Assim, diante desse panorama, como docente de Dança/Arte, GOMES. Nilma. L. Diversidade étnico-racial: por um projeto educa-
penso no desafio que temos pela frente para repensarmos/transformar- tivo emancipatório. In: _____. (Org.). Relações étnico-raciais e educa-
mos, junto às/aos estudantes, nossa maneira de compreender e ensi- ção no Brasil. FONSECA, Marcus Vinícius; SILVA, Carolina Mostaro
nar-aprender as linguagens artísticas nas propostas curriculares, prin- Neves da; FERNANDES, Alexsandra Borges. Belo Horizonte: Mazza
cipalmente aquelas que, a fim de tensionar um ensino demasiadamente Edições, 2011. (Série Seminários - Coleção Pensar a Educação, Pensar
centrado no conhecimento eurorreferenciado, tomam como base o co- o Brasil). 216 p.
nhecimento afroameríndios das manifestações culturais. Certamente, a HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do “popular”. In: _____.
observação de Ligiéro, aliada a toda discussão explanada neste trabalho, (Org.). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizon-
coloca-nos diante de possibilidades e desafios, bem como da seguinte te: UFMG, 2011.
questão, ao se ensinar-aprender Dança/Arte na Educação: como pensar
num tipo de aprender-ensinar Dança/Arte na escola cuja problemática HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a Educação como prática de
do racismo enuncie-se como ato crítico, transformador e político no/ liberdade.  Tradução de Marcelo Brandão Cipolla- São Paulo. 2017.
pelo corpo que dança, consistindo, por seu turno, num enunciar-se cor- Editora Martins Fontes,2013.
poral antirracista, por exemplo? Portanto, foi pensando nesta pergun- INGOLD, Tim. Chega de etnografia! A educação da atenção como
ta, na relevância e no sentido da Arte/Dança na escola, que enunciei o propósito da antropologia. 2016. Disponível em<https://revistasele-
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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES

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que eu quero fazer”
Editorial, 2019. 164p.
(José Marques de Souza,
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cantada das macumbas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula, 2018.  olho na coisa / Acre)
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução
às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. Subindo as cortinas

“O teatro possibilita o duplo papel


de nos manter vivos enquanto
artistas e cidadãos”
(Ângelo Flávio – Companhia
Teatral Abdias Nascimento/
Salvador)

A militância negrocênica é um projeto político-cultural antir-


racista que através do Teatro Negro leva aos palcos de maneira idios-
sincrática e contundente os binômios poder-saber e reflexão-ação,
engendrando liames culturais, educacionais, políticos e sociais através
de insurreições cênicas. Assim, as companhias teatrais nacionais, que

270
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

transformam a caixa cênica em mais uma trincheira de luta por nos- Cena 1. A perspectiva triádica antirracista
sos direitos civis, políticos e sociais, promovem práticas formativas do teatro negro brasileiro
extraescolares racializadas pelo viés artístico.
Os grupos que promovem Teatro Negro brasileiro primam “A arte traz em seu bojo um gran-
pela formação intelectual da plateia e, além dessa, a dramática tam- de poder e age como um impor-
bém para seus artistas com o escopo de instrumentalizar esses cida- tante instrumento de educação da
dãos com nossos conhecimentos azeviches ante a hegemonia cau- sensibilidade”
(Cristiane Sobral – Grupo
casiana. Dessa forma, essa plêiade artística negra nos brinda com
Cabeça Feita/ Brasília)
mais um lócus de aprendizagem e, por conseguinte, oportuniza uma
mediação cultural que pode contribuir para que os sujeitos sociais – O Teatro Negro brasileiro é um movimento sociocultural de com-
atores e espectadores – ajam de maneira mais consciente. bate ao racismo, lastreado pela tríade Ler (kawe) – Dizer (wéfun) – Trans-
Cientes de que pensar é um ato perigoso para a manutenção formar (yépada), com o escopo de transformar o palco em trincheira para
do eurocentrismo hegemônico vigente – principalmente quando nós, refletir e intervir sobre questões raciais (pré, trans e pós-Abolição), resse-
negros insubmissos, somos os pensadores –, esses espetáculos políti- mantizar o legado da ancestralidade, preencher lacunas de referenciais afri-
co-sociais são legítimos protestos antirracistas. Ao discutir acerca de canos e afro-brasileiros e revelar habilidades artísticas de uma plêiade negra.
intervir sob questões raciais, promove-se uma luta contra as supostas Ele é uma estratégia antirracista de resistência pelo universo artístico em
anomia social, inferioridade cognoscitiva e imagens preconceituosas busca da garantia dos nossos direitos civis, políticos e sociais.
e arquetípicas perversa e secularmente decretadas ao segmento negro. Os artistas imergem em referenciais teóricos e pesquisas para
Esta produção científica propõe-se a analisar a base episte- referendar seus discursos e produzir seu material (ler/ kawe), dela-
mológica do Teatro Negro brasileiro que é lastreado pela tríade Ler tam em cena suas memórias e histórias de lutas diárias pela cidadania
plena de maneira idiossincrática como um clamor de enfrentamen-
(kawe) – Dizer (wéfun) – Transformar (yépada[*]). A metodologia
to ao racismo (dizer/wéfun). Assim, contribuem para desnaturalizar
utilizada possui natureza qualitativa e percurso exploratório- descri-
preconceitos sobre os negros e transmutar a higienização racial em
tivo, primando-se pela coleta de dados de intelectuais precipuamen- distintos âmbitos da sociedade (transformar/ yépada).
te negros através da revisão de literatura de artigos, livros e periódi- Essas práticas formativas extraescolares enucleiam debates acer-
cos entre outras fontes de informação afrocentradas. ca do pré, trans e pós-13.05.1888, preconceito com os herdeiros dos
Após “Subindo as cortinas” (Introdução), este artigo está estigmas escravistas, ideologia do branqueamento, fábula das três raças,
dividido em duas seções – aqui denominadas cenas, a saber: na pri- mito da democracia racial, (des)valorização da cultura afrodescendente,
meira, aborda-se a perspectiva triádica Ler (kawe) – Dizer (wéfun) (re)conhecimento do legado cultural africano ressignificado, ressemanti-
– Transformar (yépada) dessa arte cênica azeviche nacional. Na se- zado e reinterpretado entre outros. Assim sendo, preenche com maestria
gunda, discorre-se brevemente sobre experiências nacionais de Tea- as lacunas imensas sobre o protagonismo negro na historiografia brasi-
tro Negro como instrumento político-educativo. Em seguida, tem-se leira no que tange a luta ininterrupta em prol da nossa cidadania plena.
“Descendo as cortinas” (Considerações finais) e, para finalizar, apre- Os conhecimentos apresentados nesses processos formativos são
sentam-se os Mecenas Intelectuais (Referências). Bom espetáculo! aqui entendidos na perspectiva de Coll et. al. (1986) como uma seleção
de formas ou saberes culturais, conceitos, explicações, raciocínios, habili-
dades, linguagens, valores, crenças, sentimentos, atitudes, interesses, mo-
[*] Dicionário iorubá (2017).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

delos de conduta entre outros essenciais para viver em sociedade. Por con- O conceitual (ler – kawe) promove leitura de fatos[*], conceitos
seguinte, a tríade do Teatro Negro brasileiro Ler (kawe) – Dizer (wéfun) e princípios e o procedimental (dizer – wéfun) denota ações ordenadas
– Transformar (yépada) ultrapassa a mera transmissão de informações, já e dirigidas para um fim – ambas situam-se no campo cognoscitivo das
que não se limita à capacidade cognoscitiva e adentra aspectos relacionais. nossas aprendências. Já o atitudinal (transformar – yépada), enucleado
Com o escopo de mudar a vil realidade racista, o Teatro Negro por atitudes, valores e normas, inclui o condutual das relações inter-
brasileiro oportuniza contínuos processos de ensino e aprendizagem pessoais. Dessa forma, convém lembrar as palavras de Cobra (2014, p.
para partícipes e espectadores. Nas palavras de Felinto, 15), pois “aqueles que nos assistem, e que conosco dialogam, poderão
ampliar as discussões e ressignificar seus saberes e fazeres”.
o aperfeiçoamento técnico e estético das pesquisas e
produções desses coletivos lhes rendem prestígio e vi- Ler (kawe) é a base da fundamentação teórica dessa plêiade de ar-
sibilidade, atraindo, portanto, um público formado tistas que investiga dramaturgos que coadunam com seus ideais e também
por brancos, negros, amarelos, coloridos, interessados faz reelaborações e/ou adaptações de cânones da dramaturgia mundial.
em conhecer, discutir e refletir os questionamentos
que esse segmento das Artes Cênicas tem abordado a Outrossim, cria seus próprios textos, (re)apresentando heróis azeviches ain-
partir da observação da história dos africanos e de seus da não reverenciados pela sociedade, biografias negras (des)conhecidas do
descendentes no Brasil, incluindo neste escopo as he- público em geral e protestos por aviltamentos contra os negros. Dessa ma-
ranças, ressignificações e transformações de âmbitos neira, dotado de um material negrorreferenciado, compreende-o (aprendi-
afetivos, estéticos, sociais, culturais, religiosos, dentre
outros (FELINTO, 2014, p.26). zagem significativa ausubeana[**]), relaciona-o com conhecimentos prévios
e o traduz através de sua própria linguagem (COLL et. al., 1986).
Da seleção do texto dramático, processo de criação dramatúrgica Assim, o Teatro Negro brasileiro torna-se um espaço de produção
até as demais atividades desenvolvidas para além dos espetáculos também e difusão de saberes e contestação política, que contempla o aspecto con-
de caráter formativo (Exposições, Fóruns, Mesas Redondas, Oficinas, Pu- ceitual (saber). Daí a primazia pela formação intelectual dos partícipes, vi-
blicações, Seminários entre outras), as companhias teatrais primam pelas sando desenvolver a postura crítico-reflexiva (MARTINS, 1995) e instru-
três dimensões apresentadas por Coll et. al. (1986), a saber: conceitual mentalizar com maestria o caráter pedagógico. É importante ressaltar que
(saber), procedimental (fazer) e atitudinal (ser). Enegrecendo os ainda
nem toda pesquisa de teatro negro se debruça sobre a
tão caucasianos palcos brasileiros, o que é conotado como negativo pela pesquisa de uma cultura africana, mas indiscutivelmen-
consciência discriminadora transvalora-se positivamente pela consciên- te se choca com marcas de uma inegável afrodescendên-
cia discriminada (SODRÉ, 2005). Para tal, Cobra aduz que cia. Isso pra dizer que as pesquisas podem ou não levar
em consideração elementos culturais de África, mas
estamos cientes de que não basta dizer, embora dizer falam todas de um corpo com marcas da experiência
seja um fazer de alto valor. Mas ser artista negro e livre diaspórica (SÉRGIO, 2014, p. 84).
exige de nós um comprometimento, uma pesquisa esté-
tica contínua. O artista ao entrar em cena tem que ser As informações adquiridas através dessas leituras são basilares
total, apoderar-se do discurso e da forma estética, ser para uma nova forma embasada de dizer (wéfun). Ciente de que “falar é
uma pessoa, um artista, um ator, um bailarino ou uma
bailarina inteiros. Trabalhos de grupos (...) [negros] é existir absolutamente para o outro”, os grupos teatrais negros brasileiros,
que fazem manter acesa a chama do desejo de trans- ao se apropriarem de uma linguagem cênica avessa à hegemônica branco-
gredir e romper as barreiras que hierarquizam e em-
pobrecem o mundo. Isso podemos ver nos momentos [*] Neste trabalho, considera-se a aprendizagem factual e a aprendizagem conceitual
transbordantes de dança, teatro, música, brasilidade, como complementares, pois “uma das razões que, às vezes, torna difícil a distinção en-
negritude, africanidade, humanidade, que nos empo- tre fatos e conceitos é que nem sempre se trata de uma distinção dicotômica, mas em
deram e nos enriquecem (COBRA, 2014, p.10). alguns casos pode ser entendida mais como um contínuo” (COLL et al., 1986, p. 29).
[**] Para o psicólogo norte-americano David Paul Ausubel, novos conhecimentos passam a
ter significado ao se ancorar na estrutura cognitiva (experiências anteriores) do sujeito.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

-ocidental, vociferam de maneira singular. O viés procedimental enucleia atitudes e valores e mudem ou ajustem as suas con-
hábitos, técnicas, habilidades, estratégias, métodos e rotinas, já que “tra- dutas às novas situações nas quais se veem envolvidos
(COLL et al, 1986, p.153-154)
balhar os procedimentos significa, então, revelar a capacidade de saber
fazer, de saber agir de maneira eficaz” (COLL et. al., 1986, p. 77). Nesse dialogismo com a caixa cênica, impera a subjetividade,
No fazer cênico, o discurso mescla várias linguagens (teatro, já que as bases pré- estabelecidas são idiossincráticas. Sodré (2005) nos
música, dança, fotografia, audiovisual dentre outras) artísticas, desve- ensina que os indivíduos percebem o mundo e suas coisas a partir de si
lando idiossincráticas destrezas nas quais mesmos, já que cada campo perceptivo é o próprio corpo – o lugar zero.
as canções, os ritmos dos instrumentos de percussão, a Ainda que ocorram plurais significações, essa mediação cultural pos-
dança, os gestos, todos os movimentos do corpo, os mi- sibilita de alguma maneira uma compreensão ao revisitar as questões
temas culturais conjugados em cena capturam o próprio raciais e quiçá novas ações pautadas na alteridade.
pulsar rítmico da experiência negra ancestral, engen-
drando uma percepção harmoniosa do corpo e do espí- Dessarte, entre homogêneos e heterogêneos pontos de vista,
rito. Essa orquestração de palavras, sons, imagens, luzes a militância negrocênica, edificada sob a égide da tríade Ler (kawe)
e sombras, máscaras e totens, cores, ritmos, cheiros cria – Dizer (wéfun) – Transformar (yépada), desvela o seu caráter forma-
uma linguagem teatral sinestésica, envolvendo o palco e cional extraescolar. Os coletivos teatrais negros, como promotores de
a plateia numa atmosfera de receptividade e engajamento
coletivos (MARTINS, 1995, p. 100- 101). práticas formativas extraescolares antirracistas, oportunizam diutur-
namente a partícipes e plateias:
“O prazer de ser negro manifesta-se, no palco, pelo desejo de
1. O contínuo exercício de uma memória cultural dia-
mostrar-se negro, exibindo-se o corpo como fala, enunciação” (MAR- lógica. Essa memória se faz representar como um entre-
TINS, 1995, p. 146). Essa relação decolonial com um corpo que apre- lugar de cruzamentos culturais, filosóficos, metafísicos,
senta nos palcos um contradiscurso da vigente narrativa secular de traduzindo-se, basicamente, através do jogo de lingua-
anomia social e incapacidade intelectiva negras, opõe-se aos “efeitos gens verbais, cênicas, gestuais, corporais e rítmicas. 2.
A utilização de estratégias que exprimem a teatralidade
corrosivos do racismo na constituição do sujeito” (Idem, p. 144) e al- das manifestações culturais negras (...) [que faz] aflorar
meja transformar (yépada) seja “pela releitura do corpo, pela reversão a polivalência dos significados socialmente barrados;
da história, pela revitalização da memória, pela vontade política de pro- (...) [promove] um processo de desrealização e descons-
trução do estereótipo; (...) [e] procura questionar certas
mover mudanças” (Idem, p. 145). verdades universais, através da paródia, da sátira, da iro-
O atitudinal (ser) inclui o condutual nas relações interpes- nia e do pastiche, utilizados como recursos estilísticos.
soais, revisitando normas sociais vigentes e respeitando a autono- 3. A atualização de formas de expressão rituais negras,
religiosas e seculares, como intertextos constitutivos
mia moral, propõem-se mudanças comportamentais. Ciente de que do discurso teatral. 4. A reposição histórica da figura-
as pessoas diferem diante de situações persuasivas – aceitando com ção do negro, movendo-o e deslocando-o da situação
maior ou menor facilidade ou ainda rejeitando os processos de con- de objeto enunciado para a de sujeito produtor de dis-
vencimento – Coll et al. cintilam que, curso, (...) rompendo a invisibilidade e a indizibilidade
retratadas pelo palco tradicional; 5. A construção de
ao longo do ciclo vital, o indivíduo ocupa diferentes imagens que desfiguram os emblemas da brancura, real-
papéis, interage com pessoas de diferentes status e – çando traços da diferença negra (...). 6. A elaboração de
um traço que é próprio das modernas e complexas uma linguagem cênico-dramática que atraia e estimule
sociedades atuais – vê-se sujeito a uma mobilidade a plateia, (...) pela representação coletiva e do coletivo,
geográfica e social que contribui para a desconti- libera, assim, uma fala lúdica e dinâmica que induz a
nuidade dos papéis. Todos esses fatores influem e socialização, a catarse, o movimento, a ação e o com-
pressionam os sujeitos para que modifiquem as suas promisso do espectador (MARTINS, 1995, p. 87-88).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

Enfim, do conceitual, passando pelo procedimental e culmi- tura negro-africana aviltados pela sociedade dominante que, desde o
nando no atitudinal, as companhias teatrais brasileiras que promovem período colonial, “portava a bagagem mental de sua formação me-
Teatro Negro, com um singular posicionamento crítico antirracista, tropolitana europeia, imbuída de conceitos pseudocientíficos sobre
ressemantizam o legado ancestral e delatam, aliado ao seu caráter artís- a inferioridade da raça negra. Propunha-se o TEN a trabalhar pela
tico, a sua veia contestatória. Em cada grupo, a “técnica está a serviço valorização social do negro no Brasil, através da educação, da cultura
do conhecimento cósmico e iniciático de sua cultura da qual é herdeiro e da arte” (NASCIMENTO, 2009, p. 210).
e transmissor” (SANTOS, 1989), convidando atores e espectadores a, Considerado o pai do Teatro Negro brasileiro, Abdias do Nas-
se desejarem, combaterem práticas de outrem e/ou mudarem suas pró- cimento objetivou
prias posturas discriminatórias.
resgatar os valores da cultura africana preconceituo-
samente marginalizados à mera condição folclórica,
Cena 2. Experiências antirracistas pitoresca ou insignificante;
da arte cênica azeviche nacional através de uma pedagogia estruturada no trabalho de arte
e cultura, tentar educar a classe dominante “branca”, recu-
perando-a da perversão etnocentrista de se autoconsiderar
“Preto faz teatro com o corpo todo” superiormente europeia, cristã, branca, latina, e ocidental;
(Hilton Cobra – Companhia erradicar dos palcos brasileiros o ator branco maquilado
dos Comuns/ Rio de Janeiro) de preto, norma tradicional quando o personagem negro
exigia qualidade dramática do intérprete;
tornar impossível o costume de usar o ator negro em
A estreia do debate racial nos palcos brasileiros deu-se em papéis grotescos ou estereotipados: como moleques le-
31 de julho de 1926, no Rio de Janeiro, com a Companhia Negra de vando cascudos ou carregando bandejas, negras lavando
roupa ou esfregando o chão, mulatinhas se requebrando,
Revistas, fundada pelo ator-dançarino soteropolitano João Cândido domesticados Pais Joões e lacrimogêneas Mães Pretas;
Ferreira, também conhecido pelos pseudônimos Jocanfer, Monsieur desmascarar como inautênticas e absolutamente inú-
De Chocolat ou De Chocolat e o cenógrafo e empresário português teis a pseudocientífica literatura que focalizava o negro,
salvo raríssimas exceções, como um exercício esteticista
Jaime Silva. Esse grupo durou apenas um ano e apresentou as obras ou diversionista: eram ensaios apenas acadêmicos, pu-
“Tudo preto”, “Preto e branco”, “Carvão nacional” e “Café torrado”, ramente descritivos, tratando de história, etnografia,
nas quais músicos e artistas locais dançaram e cantaram as culturas antropologia, sociologia, psiquiatria etc., cujos interes-
afro-brasileira e afro-ameríndia (BARROS, 2005). ses estavam muito distantes dos problemas dinâmicos,
que emergiam do contexto racista da nossa sociedade.
Devido à divergência de posicionamentos entre os supracita- (NASCIMENTO, 1978, p. 129).
dos fundadores, Monsieur De Chocolat saiu da companhia e criou a
Companhia Teatral Ba-Ta-Clan Preta, que perdurou pouco mais de “Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um
um mês (final de 1926) e apresentou apenas o espetáculo “Na penum- intérprete dessa raça?” Essas foram algumas interrogações de Abdias no
bra”. Essas companhias revelaram para o cenário artístico nacional o início da década de 40 no Teatro Municipal de Lima, no Peru. Certo de
músico Pixinguinha (membro das duas) e o ator Grande Otelo (in- que essa era a mesma realidade vista no Brasil, ele decidiu que, ao chegar
tegrante só da primeira, na qual foi protagonista durante seus cinco ao seu país, criaria “um organismo teatral aberto ao protagonismo do ne-
meses de participação) (BARROS, 2005; NETO, 2017). gro, onde ele ascendesse da condição adjetiva e folclórica para a de sujeito
Em 1944, o paulistano artista, militante e político Abdias do e herói das histórias que representasse”. Queria, assim, “desfiar, desmasca-
Nascimento criou o Teatro Experimental do Negro (TEN) no Rio rar e transformar os fundamentos daquela anormalidade objetiva” (NAS-
de Janeiro. Esse grupo resgatou os valores da pessoa humana e da cul- CIMENTO, 2009, p.209-10). YÉPADA! TRANSFORMAR!

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

Após a adesão de malungos[*] também cônscios da furada peneira enunciados e procedimentos que pudessem descortinar
do mito da democracia racial, esse idealizador resolveu atuar, verbalizando a ampla e complexa gama da experiência histórica, esté-
tica, cultural, e também subjetiva do negro, com ênfases
a “denúncia dos equívocos e da alienação dos chamados estudos afro-bra- nos diversos processos de cognição e de tradições teatrais
sileiros, e fazer com que o próprio negro tomasse consciência da situação alternos que, com os africanos, também foram reterrito-
objetiva em que se achava inserido.” Tornou, desta forma, as atividades de- rializados nas Américas (MARTINS, 1997, p. 209).
senvolvidas pelo TEN veículos de ação política, que “tanto denunciava as
Para instrumentalizar os interessados – empregados domésticos,
formas de racismo sutis e ostensivas, como resistia à opressão cultural da
funcionários públicos, operários e pessoas sem profissão definida –, foram
brancura” (NASCIMENTO, 2009, p. 211-23). WÉFUN! DIZER!
promovidos cursos de (i) alfabetização ministrado por Ironides Rodrigues,
Para tal, ele oportunizou aos seus partícipes dois tipos de lei-
(ii) iniciação à cultura geral lecionado por Aguinaldo Camargo e (iii) no-
tura, a saber: a didática – alfabetizando-os e promovendo cursos de ini-
ções de teatro e interpretação conduzido por Abdias do Nascimentos. Além
ciação à cultura geral, noções de teatro e interpretação – e a da vida, ofe-
disso, o TEN ofereceu diversas palestras proferidas por Maria Yeda Leite,
recendo-lhes “uma nova atitude, um critério próprio que os habilitava
Rex Crawford, José Francisco Coelho, Raimundo Souza Dantas, José Car-
também a ver, enxergar o espaço que ocupava o grupo afro-brasileiro no
los Lisboa entre outros educadores e artistas (NASCIMENTO, 2009).
contexto nacional.” Com isso, instrumentalizava seus artistas, priman-
Assim, o artista negro aprendeu a desenvolver e expressar seu
do “pela valorização social do negro no Brasil, através da educação, da
personal aparelho sensitivo, elaborando novas formas como coletor re-
cultura e da arte” (NASCIMENTO, 2009, p. 210-11). KAWE! LER!
ceptivo de nossa cultura (SANTOS, 1989) diaspórica. Afinal, como
Afinal, sabemos da
bem nos ensina Cobra,
presença contínua dos fatos e dos conceitos em todos
os âmbitos de nosso conhecimento. Na vida cotidia- a arte é uma bandeira de luta, mas não o espaço do dis-
na, os conceitos, segundo uma feliz expressão “libe- curso vazio e suas opções estéticas. Não dá mais para ape-
ram-nos da escravidão do particular”. Se não dispusés- nas berrar palavras no palco, nas ruas, confundindo esse
semos de categorias e conceitos, qualquer objeto [...] hábito com o fazer artístico. Temos de berrar, sim, em
seria uma realidade nova, diferente e imprevisível. Os qualquer lugar pra fazer valer nossos direitos, mas o lugar
conceitos permitem-nos organizar a realidade e poder das artes tem sido para nós o campo da experimentação
prevê- la (COLL et al., 1986, p. 21). estética desse pesar, sintonizado com a arte contemporâ-
nea, da ligação do que se diz ao como se diz, da fúria da
palavra à beleza do gesto (COBRA, 2014, p.9-10).
O Teatro Experimental do Negro – fonte inspiradora para
inúmeras companhias da arte cênica azeviche nacional – foi muito Como essa companhia não conseguiu um texto que efetivamen-
mais além e notabilizou te refletisse a dramática situação existencial do segmento negro, optou
a formação do intérprete negro, o estímulo à criação de por estrear com O imperador Jones, de Eugene O’Neill. Após seis meses
uma dramaturgia que reconfigurasse a fabulação da ex- de debates, aulas e exercícios práticos de atuação em cena, a 08 de maio de
periência negra no Brasil, enriquecesse os perfis da perso- 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, essa plêiade artística negra
nagem negra e sublinhasse a relevância da contribuição
africana na formação civilizatória brasileira; não apenas estreava com um Jones que “resumia a experiência do negro no mundo
rompendo com modelos viciados e estereotípicos de branco, onde, depois de ter sido escravizado, libertam-no e o atiram nos
representação, mas sim propondo novos meios, formas, mais baixos desvãos da sociedade” (NASCIMENTO, 2009, p. 212).
Denunciando diversas formas de racismo, sejam sutis e/ou os-
[*] Aguinaldo de Oliveira Camargo, Wilson Tibério, Teodorico dos Santos, José Her- tensivas, e resistindo à opressão cultural da caucasiana, o TEN além de
bel, Sebastião Rodrigues Alves, Arinda Serafim, Ruth de Souza, Marina Gonçalves,
Claudiano Filho, Oscar Araújo, José da Silva, Antonieta, Antônio Barbosa, Natalino encenar outros textos de O’Neill (Todos os filhos de Deus têm asas, O
Dionísio entre outros (NASCIMENTO, 2009).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

moleque sonhador e Onde está marcada a cruz), levou à cena reflexões tístico na base epistemológica Ler (kawe) – Dizer (wéfun) – Transformar
de Nelson Rodrigues (Anjo Negro), Lúcio Cardoso (O filho pródigo), (yépada). Os processos de ensino e aprendizagem suscitados pelos seus
Joaquim Ribeiro (Aruanda), José de Morais Pinho (Filhos de Santo), espetáculos e demais atividades antirracistas formativas extraescolares (Ex-
Rosário Fusco (Auto da noiva, farsa em um ato), Abdias Nascimento posições, Fóruns, Mesas Redondas, Oficinas, Publicações, Seminários en-
(Rapsódia negra, Sortilégio...) entre outros. Outrossim, houve também tre outras) abrangem com maestria as três dimensões supracitadas de Coll
ressemantização afrocentrada de clássicos como Medeia em Além do rio et. al. (1986): conceitual (saber), procedimental (fazer) e atitudinal (ser).
redigida por Agostinho Olavo (Ibidem). Sem a pretensão de descrever essa perspectiva triádica de cinco
Durante vinte e quatro anos de militância negrocênica (1944- companhias nacionais de Teatro Negro, que declaradamente seguem os
1968), o TEN visou passos do Mestre Abdias do Nascimento, apresenta-se abaixo uma pe-
quena mostra (um espetáculo e uma atividade formativa) dos seus dis-
estabelecer o teatro, espelho e resumo da peripécia exis-
tencial humana, como um fórum de idéias, debates, cursos potentes estética e socialmente em distintas regiões brasileiras:
propostas, e ação visando à transformação das estruturas
de dominação, opressão e exploração raciais implícitas
na sociedade brasileira dominante, nos campos de sua Centro-oeste (Goiás): Companhia Teatral Zumbi dos Palmares
cultura, economia, educação, política, meios de comu- Idealizador: Paulo Vitória (2004)
nicação, justiça, administração pública, empresas parti-
culares, vida social, e assim por diante. Um teatro que Um Novo Olhar Negro
ajudasse a construir um Brasil melhor, efetivamente jus-
to e democrático, onde todas as raças e culturas fossem O coletivo debateu a inserção do negro na sociedade brasileira
respeitadas em suas diferenças, mas iguais em direitos e de forma matematicamente real, possível, concreta, humanitá-
oportunidades (NASCIMENTO, 2009, p. 221). ria, histórica, filosófica e artística, para além das fronteiras do
fazer artístico teatral. [...] A síntese comprobatória da capaci-
Neste sentido, esse grupo organizou diversas atividades antir- Espetáculo dade que há em todos os artistas negros decididos a romperem
com a histórica e colonialista condição de serem vistos apenas
racistas formativas extraescolares além dos espetáculos políticos-sociais, comoobjetos passivos, enfeites, cenários ou coisa parecida. Um
tais como eventos (Comitê Democrático Afro-Brasileiro para atuar em Novo Olhar Negro clama pelo surgimento de novos negros na
condição de autores e sujeitos capazes de dirigirem e contarem
nível político, Convenção Nacional do Negro, Congresso do Negro sua própria história enquanto negros e enquanto profissionais
Brasileiro...), publicações (Dramas para Negros e Prólogos para Brancos, (GOIÂNIA EM CENA, 2017).
O Negro Revoltado...), exposições (primeira coleção do Museu de Arte
Negra) entre outras (Ibidem). Fórum de Arte e Cultura Negra do estado de Goiás
Ademais, como mecanismos de apoio psicológico para extir-
Fórum de Arte e Cultura Negra do estado de Goiás, realiza-
par os complexos de anomia social e incapacidade intelectiva rotulados do no Centro de Tecnologia do Espetáculo (CETE), contou
aos negros violentamente pelos caucasianos, oportunizou seminários de com a parceria de educadores negros, do Centro de Referência
grupoterapia – trabalho pioneiro de psicodrama – no Instituto Nacio- Negra Lélia Gonzales e da Comunidade Visual Ylê. Esse en-
contro resultou na Carta de Goiânia, baseada na Carta de Sal-
nal do Negro, Concurso do Cristo Negro, Rainha das mulatas e Boneca Atividade vador (proposta no I Fórum Nacional de Performance Negra,
Pixe entre outros (Ibidem). Afinal, “o TEN atuou sem descanso como organizado pelo Bando de Teatro Olodum – Bahia – e Com-
um fermento provocativo, uma aventura da experimentação criativa, panhia dos Comuns – Rio de Janeiro –, esse documento enu-
propondo caminhos inéditos ao futuro do negro, ao desenvolvimento merou preocupações a serem dirimidas e procedimentos que
necessitam ser adotados para o fortalecimento dos grupos
da cultura brasileira” (NASCIMENTO, 1978, p. 130). de artes performáticas – teatro e dança – negras brasileiras)
Devido a esse insigne legado, inúmeras companhias brasileiras (CIA TEATRAL ZUMBI DOS PALMARES, 2020).
autodeclaram-se discípulas do TEN, alicerçando também o seu fazer ar-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

Nordeste (Bahia): Bando de Teatro Olodum Norte (Pará): Bambarê – Arte e Cultura Negra
Idealizador: Marcio Meireles – 1990 Idealizador: Edson Catendê – 1986

Erê Face Negra Face – a história que não foi contada

Os atores do Bando e os jovens que participaram da segun- A companhia discutiu a falsa abolição, o processo de escra-
da Oficina de Performance Negra levaram ao palco refle- vização dos povos negros, que foram sequestrados e trazi-
xões acerca do genocídio de jovens negros, agressividade das dos para o Brasil para o trabalho forçado, os estupros contra
abordagem policiais, relatos sobre homicídios presenciados, as mulheres negras e que representam a violência da mis-
Espetáculo violência midiática ao mostrar corpos negros, encarceramen- cigenação que formou o povo brasileiro, (...) racismo, ma-
Espetáculo tança da juventude negra, intolerância religiosa, sobretudo
to juvenil com privação de liberdade na FEBEM (Fundação
Estadual do Bem- Estar do Menor) para uma suposta “educa- contra as religiões de matriz afro. O racismo e a intolerância
ção” correcional-repressiva, relações familiares (filhas, filhos, nascem da ignorância. Se a gente perceber a nossa própria
mães e pais), violência nacional, segurança pública, maiorida- história, o nosso país, a nossa cidade, a revolta dos cabanos,
de penal e lei 10.639/03[*] tudo isso nos liberta, porque vamos nos reconhecer e ver
(FREITAS, 2020). que tudo isso está em nós (ITAQUERA, 2016).

Oficinas de Performance Negra


Rádio Exu – comunicação comunitária de matriz africana
Oficinas teórico-práticas para jovens negros a partir de 16
anos em situação de vulnerabilidade econômica e social, Projeto de mídia étnica e racial que difundiu os valores civi-
abordando dança, memória e identidade, música e teatro. lizatórios da matriz africana na diáspora brasileira e primou
Foram promovidas cinco edições, a saber: quatro realizadas pelo combate ao racismo e pelo fortalecimento de redes
Atividade integralmente em Salvador (1ª Canabrava, Fazenda Coutos, Atividade solidárias de lutas sociais e das culturas negras com prota-
Massaranduba, Periperi, Pernambués, Pirajá e Plataforma), 2ª gonismo negro, de povo tradicional de matriz africana (ter-
Teatro Vila Velha – Campo Grande, 3ª Alagados e Platafor- reiro) e de juventude de terreiro. Transmitiu conteúdos de
ma e 5ª Engenho Velho de Brotas e Pirajá e uma de maneira lutas sociais, difundiu e divulgou tanto os agentes quanto
compacta em Belém (Casa da Linguagem) e Manaus (Centro as culturas negras amazônicas e brasileiras
Cultural Palácio da Justiça, Centro Cultural Palácio Rio Ne- (RÁDIO EXU, 2016).
gro, Cine Teatro Guarany e Teatro da Instalação) – 4ª edição
(FREITAS, 2020).

[*] Promulgada em 2003, pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 10.639 tornou
obrigatório estudos acerca da História e Culturas Afro-Brasileira e Africana em unidades
escolares nacionais dos ensinos fundamental e médio públicas e privadas (BRASIL, 2003).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

Sudeste (São Paulo): Os Crespos Sul (Rio Grande do Sul): Caixa Preta
Idealizadores: Gal Quaresma (hoje, Maria Gal) e Idealizador: Jessé Oliveira – 2002
Lucélia Sérgio – 2005

Hamlet Sincrético
Cartas a Madame Satã – ou me desespero sem notícias suas Os artistas transitaram pelo sincretismo cultural e religio-
so, especialmente nos cultos afro-brasileiros, no catolicismo
O grupo abordou a homoafetividade masculina e seus este- popular e no pentecostalismo como elementos de negação
reótipos sexuais, apresentando fragmentos de histórias vivi- da identidade, que permeiam toda a trama. (...) Os persona-
das por um jovem que se corresponde com a figura mítica gens foram encarnações de tipos ou personagens da mitolo-
de Madame Satã (travesti que viveu no século XX no Rio Espetáculo gia cultural negra, em especial as religiões afro-brasileiras:
Espetáculo de Janeiro), numa tentativa de construção de um discurso Hamlet, por ser aquele que busca a justiça, foi associado ao
que liberte sua afetividade do cárcere ao qual o submete a orixá Xangô; o Fantasma Hamlet, o pai assassinado, Oxa-
nossa sociedade. Deu-se à afetividade a mesma importância lá; Gertrudes foi uma espécie de eterna rainha do carnaval
das lutas contra a segregação racial e a sobrevivência e Polônio foi um ex-babalorixá que se converteu e virou um
(REVISTA LEGÍTIMA DEFESA, 2014, p. 88-89). pastor evangélico, que negava sua cultura, enquanto que
Cláudio foi Zé Pelintra por seu caráter amoral
(GRUPO CAIXA PRETA, 2016).

Revista Legítima Defesa – Uma revista de Teatro Negro Encontro de Arte de Matriz Africana
Periódico, com duas edições, que elencou critérios estéti- Evento realizado em seis edições com o intuito de alargar
cos e políticos do Teatro Negro, possibilitando a inscrição as fronteiras e estabelecer salutares interações entre grupos
e historicização dos processos artísticos. A revista abordou artísticos reverenciando a diversidade cultural brasileira
questões relevantes sobre a investigação e debates dos temas Atividade com foco na pesquisa das linguagens cênicas negras con-
Atividade referentes à população negra e à representação do negro no temporâneas que teve curadoria, concepção e coordenação
Teatro Brasileiro. A importância desta publicação na con- de Jessé Oliveira. Nesse encontro de troca de experiências e
temporaneidade reside em seu conteúdo que possibilita saberes, promoveram-se espetáculos, oficinas, debates e pai-
maior difusão dos trabalhos realizados nessa vertente. O néis sobre teatro, dança, performance e cinema
intuito dos Crespos é fomentar o intercâmbio de pesquisas (GRUPO CAIXA PRETA, 2016).
que impulsionem a criação artística e a formação, tanto de
público como dos “fazedores” dessa arte.
(BLOGUEIRAS NEGRAS, 2020).

Como tradição é continuidade e reelaboração com contínua


necessidade de ampliação e expansão de valores originais (SANTOS,
1989), os cinco supracitados e outros quilombos artísticos abordam
inúmeros temas em seus espetáculos negros, a saber:

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

religiosidade afro-brasileira, espiritualidade, ancestra- na qual através dessa arte racialmente político-ideológica, os cole-
lidade, festividades e folguedos de origem africana ou tivos tornam o palco uma trincheira para refletir e intervir sobre
afro-brasileira, relações sociais e econômicas inter-ra-
ciais, relações étnico-raciais, identidade, afrodescen- questões raciais pré, trans e pós-escravismo. Inaugurada na década
dência, etnicidade, questões de gênero, afetividade e re- de 40 por Abdias do Nascimento com o Teatro Experimental do
lacionamentos, hetero e homossexualidade, alteridade, Negro (TEN), diuturnamente os artistas denunciam, protestam e
fatos que se relacionam à história do negro no Brasil e
na afrodiáspora (FELINTO, 2014, p. 28). combatem o racismo, performando um contradiscurso de memó-
rias e experiências.
Apesar da multiplicidade temática, é unânime a exibição em Pulverizados em todas as regiões brasileiras – só aqui fo-
cena de vozes e corpos negros que traduzem símbolos incorporados do ram arrolados dez grupos distribuídos entre tabela e epígrafes – as
seu manancial histórico-cultural (SÉRGIO, 2014) de acordo com suas companhias de Teatro Negro partem dos repertórios histórico-
respectivas experiências diaspóricas. Até porque não existe homogenei- -culturais de seus intérpretes e reelaboram a múltipla e diversa tra-
dade de tema nem de estética no Teatro Negro brasileiro, já que há inúme- dição africana com o escopo de transcender os entraves impostos
ras idiossincrasias econômicas, interesses poéticos e políticos bem como a pelo preconceito caucasiano. Visando a uma virada estrutural e
diversidade de experiências culturais devido às distintas territorialidades. comportamental, os artistas primam pela fundamentação teórico-
Ademais, de maneira multirreferencializada, as atividades for- -conceitual sobre questões raciais, apresentam um contradiscurso
mativas antirracistas extraescolares instrumentalizam e politizam os tenaz de maneira embasada no palco e combatem o racismo infe-
artistas e espectadores, robustecendo o capital cultural, fortalecendo a lizmente ainda vigente.
cidadania e estreitando laços afrodiaspóricos e signos de pertencimen- A mediação cultural, realizada através de Espetáculos, Ex-
to. Dessa forma, os seus discursos orais e escritos poderão reverberar posições, Fóruns, Mesas Redondas, Oficinas, Publicações, Seminá-
um maior posicionamento crítico diante de questões raciais e, por con- rios entre outras atividades formativas antirracistas extraescolares,
seguinte, contribuir para que esses sujeitos sociais – caso assim o dese- oportuniza a artistas e plateias aguçar o posicionamento político e
jem – ajam de maneira mais consciente ante o racismo impetrado pela possivelmente realizar (des/re)construções, transmutando em po-
ideologia hegemônica e eurocêntrica ainda vigentes. sitivo o que é/era considerado negativo no que tange os estigmas
raciais. Essa insigne militância negrocênica contribui para o forta-
Descendo as cortinas lecimento da cidadania, uma vez que busca continuamente pelo res-
peito aos seus direitos civis, políticos e sociais.
“É necessário e importante que À guisa de conclusão, urge parafrasear o Pai do Teatro Ne-
estivessem artistas negros ocupan- gro brasileiro, Abdias do Nascimento, quando assevera que em meio
do os teatros da casa o ano inteiro às “mentiras brancas ventiladas aos ventos das humilhações tragadas
e não só em novembro – mês da [...] não é tempo de reclamar, nem tempo de chorar. Tempo é de
Consciência Negra – até porque afirmar nosso ser, sem mendigar nosso direito ao poder. Tempo é de
produzimos e atuamos o ano inteiro” batalhar a guerra secular, ao invés de lamentar ou implorar. Invés de
(Gil Collares – Coletivo Monti- só gritar, lutar. Invés de vegetar e conformar, lutar. Invés de evadir
gente/ Porto Alegre) e sonhar, lutar. Semear a luta com decisão, ampliá-la com ardor e
paixão, sem temer a incompreensão do inimigo ou do irmão”[*].
A base epistemológica do Teatro Negro brasileiro é lastrea- Vida longa ao Teatro Negro brasileiro!!!
da pela tríade Ler (kawe) – Dizer (wéfun) – Transformar (yépada),
[*] Poema “O Agadá da Transformação”, de Abdias do Nascimento.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES LER (KAWE), DIZER (WÉFUN), TRANSFORMAR (YÉPADA)

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ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

Maicom Souza e Silva


Mestrando em Metafísica pela Universidade de Brasília (UnB)
Elaine Augusta da Silva Vieira
Cantora, Pedagoga, Universidade Federal Fluminense/RJ (UFF).

Apresentação

Este trabalho propõe a análise do espetáculo de dança Abajur


Cor de Carne - Cartografia pela Dança, montado pelo Coletivo Ema-
ranhado[*], na cidade de Vitória/ES, em 2019. A dramaturgia da obra
situa-se no âmbito da dança, tomando como dispositivo a violência
contra a mulher brasileira, porém, numa tentativa de evidenciar o gestus
sociais, os hábitos e as crenças das comunidades afrodescendentes.
Este texto se divide em duas principais partes. Na primei-
ra, contextualizamos a questão do corpo negro no campo históri-
co-social brasileiro, uma visão a partir das artes e na dança. Breve
exposição de premissas, que ajudam na compreensão do contexto do
povo negro na terra além-mar. Na segunda seção, apresentamos uma
leitura sobre o estudo de caso e descrevemos a estética coreográfica
do Coletivo Emaranhado, tentativa de registrar a pesquisa de movi-
mento proposta pela direção coreográfica.
A epistemologia da corporeidade negra, na dança, e o reconhe-
cimento da cosmovisão africano-brasileira, enquanto dimensão onto-
lógica, é o que move os caminhos desta pesquisa, que une dança, mito,
filosofia e ancestralidade. Apetece-nos refletir e abrir diálogos sobre
o corpo dentro de epistemologias, que caminham para encruzilhadas
[*] https://www.coletivoemaranhado.com.br/
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

afrocentradas, saberes outros que evocam a ancestralidade africano-bra- adotam o movimento como linguagem motriz para dialogar sobre um
sileira como dispositivos revitalizadores de nosso corpo-história. tema; o feminicídio no estado do Espírito Santo, tudo envolto nas pre-
O caminho metodológico seguido foi o estudo de caso, pau- missas da dança contemporânea e negro-brasileira.
tado na observação de vídeo e de registro de imagens do espetáculo, O nome do trabalho leva o espectador para campos polissêmicos,
acompanhado da revisão bibliográfica das obras que contemplam a mas registramos uma dentre tantas interpretações que se é possível arquite-
concepção de arte, corpo, performance, práticas performativas e etno- tar. Abajur Cor de Carne – Cartografia pela Dança se apresenta como uma
cenologia, nas perspectivas de Amanda Braga (2015), Achile Mbembe sátira a objetificação da mulher, como sofre dezenas de leituras na música
(2018), Cesar Huapaya (2017), Nadir Nóbrega (2008) e Zeca Ligiéro “Menina Veneno” do cantor Ritchie, escrita em parceria com o letrista Ber-
(2011). O propósito da pesquisa limita-se em identificar e compreen- nardo Vilhena e lançada no ano de 1983 no álbum Vôo de Coração.
der qual foi a construção dramatúrgica e a gestualidade para expressar, Não é possível definir e engessar qual é a proposta deste nome no
em situação performativa, o corpo do artista e quais as suas condições espetáculo pesquisado, e não temos a pretensão, mas é possível defender
de ação estética dentro de uma premissa negro-brasileira, não tecendo que o Coletivo Emaranhado não reconhece o corpo da mulher como um
de forma aprofundada questões de gênero, raça e os dramas sociais que objeto, que tenha uma função ou que sirva como um troféu. O corpo
envolvem a violência contra a mulher negra. feminino não é um abajur que convém como suporte ou uma cúpula que
Com base nos estudos de etnocenologia, pesquisamos como o serve de anteparo à luz. Pelo contrário, temos um espetáculo em prol da
Coletivo Emaranhado reconhece o engajamento dos artistas em cena en- mulher, Ser autônomo, ativo, feito de carne, osso, sangue e vontade, um
quanto possibilidade corporal (corpo-existência-ação-performance) para Ser potente que precisa conquistar seu espaço e ganhar força, para rever-
registrar a forma de vida - a bios, a imagem, o gestus social, o habitus e os dis- ter dados estatísticos como os da violência contra a mulher no Brasil.
positivos pulsionais da encenação. Assim, descrevemos o corpo em ação,
do Outro[*], como objeto - seus gestos em cena, posturas, movimentos, Arte negra, corpo negro
sons, figurinos, textos cênicos, suas reações físicas e expressões faciais; em
seguida, descrito para registro, o gestual estético da arte negro-brasileira. Este texto analisa a presença de manifestações negro-brasi-
A linguagem de dança contemporânea pesquisada apresenta, leiras no espetáculo de dança contemporânea Abajur Cor de Carne
nos corpos dos artistas, resíduos de identidades que representam e res- – Cartografia pela Dança, em apresentação realizada na cidade de
tauram os comportamentos das mulheres atuais que sofrem violação de Vitória/ES, no Centro Cultural SESC Glória, em março de 2020.
direitos, podendo-se refletir, por meio disso, a respeito das múltiplas Tomamos como dispositivo para esta investigação, a tríade proposta
formas de violência que se abatem sobre elas, principalmente as de cor- por Zeca Ligiéro (LIGIÉRO, 2011), o batucar-cantar-dançar, que é
po retinto. Os dispositivos pulsionais do espetáculo pesquisado estão um léxico de gestos articulados com ritmos e cantos e que, através do
na dança, apesar do Coletivo Emaranhado trabalhar com as transver- corpo, informam um código estilístico para se estudar a arte negra.
salidades das linguagens cênicas, as propostas e decisões dramatúrgicas O espetáculo possui duração de sessenta minutos. Após
assistir ao trabalho, escolhemos algumas fotografias para elaborar
[*] A filosofia da libertação de Dussel alimenta-se na relação concreta de respeito e al- uma descrição das cenas com base na tríade proposta por Ligiéro,
teridade com o outro, no olhar e na relação de responsabilidade mútua. Nesta filosofia, na tentativa de identificar as pesquisas estéticas de corpo negro-
a premissa é de que as relações pessoais estabeleçam uma cultura de respeito ao Outro
em sua totalidade, seja quem for (as relações pessoais passam a ter outro significado). -brasileiro cênico. Salientamos que este projeto não é uma análise
Uma relação concreta se faz apenas na alteridade, seu principal meio de expressão está cronológica de todas as propostas corporais expressadas no espe-
na relação rosto a rosto, no olhar. A filosofia da libertação é um processo de abertura táculo, mas sim a identificação dos perceptos e afectos que acredi-
para o Outro, diferente do que ocorre na superação da dialética da dominação. Dussel
chama esta abertura de analética, método da filosofia da libertação que se opõe à dialé- tamos que estão enraizados na ancestralidade africano-brasileira
tica dominadora (DUSSEL, 1977, p. 163).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

– impressões que estão entrelaçadas em nossas subjetividades en- ciedade branca, desde a escravidão até hoje, rejeita esse
quanto espectadores e pesquisadores. corpo afro em favor da corporeidade ariana de estilo
barroco e branco (HUAPAYA, 2019, p. 40).
O texto cênico, os cantos, a trilha e o modo como os performers
utilizaram o corpo em cena foram observados, bem como foi feito tam- A circularidade, o canto coral, o movimento do corpo, utili-
bém um estudo, sobre o qual lançamos nosso olhar, a fim de identificar zando todas as articulações ósseas, principalmente as do tronco, uma
uma epistemologia dentro das manifestações negro-brasileiras, con- vibração na qual ocupa múltiplas direções - pulos, giros, contratempos,
firmando, assim, que as tratamos como um objeto composto, ou seja, vibrações assimétricas dos membros – caracterizavam as manifestações
amarrado pela dança, música e canto. desses corpos pretos. Os africanos da diáspora, quando aportavam em
Quando alguém está tocando um atabaque ou qual- solo brasileiro, eram corpos psicofísicos que interagiam com outros per-
quer outro instrumento, uma linguagem espiritual está formers com palmas e diálogos em seu idioma nativo. A linguagem da
sendo articulada. O canto é percebido como a interpre- dança, gravada nesses corpos do Brasil colonial, era uma atitude de re-
tação dessas linguagens para a comunidade presente no
aqui e agora. Dançar seria a “aceitação das mensagens sistência desses povos escravizados, que aguardavam em confinamento
espirituais propagadas” através de nosso próprio corpo, nos portos antes de serem separados uns dos outros (LIGIÉRO, 2011).
bem como o encontro dos membros nas celebrações Em 1582, na França, a dança clássica começa a estabelecer as
conjuntas, sob o perfeito equilíbrio (Kinenga) da vida concepções estéticas de seus movimentos com primazia na verticalidade
(LIGIÉRO, 2011, p. 135).
corpo, calcada no conceito de elegância, com gestos disciplinados, rígi-
O povo africano, que aportava no Brasil por volta do século dos, mas que transparecem leveza e delicadeza como poesias. O balé ro-
XVI até a segunda metade do século XIX, era das mais variadas etnias mântico surge explorando a técnica e a virtuosidade do bailarino, equili-
sendo, a grande maioria, de origem banto, habitantes do Centro Oeste brando-se na ponta dos pés e realizando grandes saltos e giros sem perder
da África negra e cujos domínios passavam por Angola, Gabão, Repú- o refinamento dos movimentos. Era com esse olhar que os europeus ob-
blica de Camarões e Matamba, chegando a Oeste de Moçambique e ao servavam as danças dos negros no Brasil para, assim, descreverem a forma
Norte da África do Sul. No século XVII, chegam ao Porto de Salvador como se movimentavam. Enquanto o balé clássico tinha em sua dança
e de Recife os sudaneses, trazendo suas práticas culturais denominadas premissas como a aproximação do céu (onírico), a dança dos africanos
de comunidade Jeje e Iorubá que, juntas, apresentaram suas divindades, fincava seus pés no chão, no mundo dos ancestrais que por aqui passaram
voduns e òrìsà. No século XIX, o Brasil já era um território com grande e na força dos elementos da natureza (LIGIÉRO, 2011).
concentração das diversas etnias africanas, sendo-lhes uma característi- Para Huapaya (2019), a história do teatro ocidental é enrai-
ca bastante comum a soltura com que moviam seus corpos ao som de zada em perspectivas burguesas de desqualificação das minorias, com
palmas, cantos e tambores (LIGIÉRO, 2011). discursos e narrativas pejorativas e exóticas, impondo essas manifesta-
ções como de alta cultura numa ideologia de dominação e de desprezo
[...] uma apresentação como o candomblé possui vá- pelo Outro. O autor propõe os estudos sobre o habitus (encenação da
rios dispositivos de tecidos performativos dos grupos
sociais que vieram da África. Ele mostra seu habitus e cultura) como caminho para pensar uma montagem e encenação que
singularização na forma de cantar, dançar e descrever rompem com os pensamentos exóticos e culturalistas na análise e nos
seus rituais. Essas partituras orgânicas e pulsionais são estudos das artes e das práticas performativas.
marginalizadas e reprimidas pela sociedade, que não
aceitam seus habitus e gestus como cidadãos. As téc- No cinema, na televisão e no teatro, os personagens da
nicas de corpo trazidas para o Brasil pelos africanos mulher, do preto, do índio e do nordestino são forma-
e desenvolvidas pelos brasileiros engendraram várias tados segundo essa perspectiva de zoos humanos que
corporeidades e modos de subjetividades originais na surgiu no século XIX. A desumanização e a descontex-
escritura social de uma nova civilização no Brasil. A so- tualização do indivíduo performer se tornaram regras na

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

encenação sobre o povo. Podemos citar, por exemplo, a negros eram tolerados na corte, nos salões, na pintura e no teatro, porém,
imagem do africano e do afro-brasileiro, assim como a sob uma perspectiva racista, descontraída e libertina (MBEMBE, 2018).
do preto brasileiro (HUAPAYA, 2019, p. 28-29).
Dentro de uma política racista e displicente, Mbembe (2018)
A França, por exemplo, no final do século XIX, teceu uma rede nos apresenta um trecho da trupe de teatro de Josephine Baker durante
de ideologias racistas, sustentadas por teorias de desigualdade e validadas um ensaio na Paris de 1920. O imaginário exótico da França fez parte
pelas práticas eugenistas, arquitetando, de tal maneira, um movimento dos personagens de Josephine.
nacional-colonialista que se amparava em projetos que fortaleciam a dife- Não se compreende a língua deles, nem tentamos reatar
rença racial. Esse movimento incluía formadores de opinião da elite fran- o fio das cenas, mas são todas as nossas leituras que des-
cesa, que logo conseguiu se expandir em disciplinas como a etnologia, a filam diante da nossa imaginação encantada: romance
de aventura, gravuras vistas de relance ou enormes na-
geografia e a missiologia. Muitas gerações de franceses foram pedagogica- vios engolindo porções de negros carregados com gran-
mente orientadas a naturalizar o racismo. Assim, a temática racial ganhou des fardos, uma sirene a apitar num porto desconhe-
espaço nas culturas de massas por meio das artes, da publicidade e da li- cido repleto de sacos e de homem de cor, histórias de
teratura, criando zoológicos humanos fundamentados numa relação de missionários e de viajante, Stanley, os irmãos Tharaud,
Batouala, as danças sagradas, o Sudão, as seminudezes
não reciprocidade com a comunidade negra (MBEMBE, 2018). ilustradas da farsa de uma claque, paisagens de plan-
tações, toda melancolia das canções de amas crioulas,
As pessoas eram persuadidas de que seria com o sangue toda alma negra com suas convulsões animais, suas ale-
branco que se criaria a civilização do futuro. Todos os grias pueris, a tristeza de um passado de servidão, tive-
povos que aceitassem os cruzamentos das raças cairiam mos tudo isso quando ouvimos essa cantora com voz de
em uma desgraça. A salvação estaria na separação ab- floresta virgem (MBEMBE, 2018, p. 128).
soluta das raças. As multidões negras e amarelas eram
prolíficas – acumulando rebanhos que era preciso de-
portar para algum lugar ou, como alguns mais tarde se Filósofos, geógrafos, missionários e escritores franceses desenvol-
esforçariam para implementar, cujos machos deveriam, veram obras e peças de teatro que descreviam os hábitos, os costumes e as
no limite, ser esterilizados (MBEMBE, 2018, p. 119). tradições do continente africano como diálogos, linguagens justapostas,
sem nunca terem colocado seus pés na África, apenas pela força da imagi-
Mbembe (2018) alega que a França de 1920, para fortalecer nação e estudos científicos de assuntos que muito pouco sabiam. A partir
seu estado colonial, desenvolveu uma lógica racista embasada em três do século XVIII, florescem, na França, devaneios etnográficos, inesgotáveis
aspectos: a prática de ocultação e negação; a prática de encobrimento poços de fantasia da representação do povo africano (MBEMBE, 2018).
e travestimento; o exotismo, criando, de tal modo, a ideia de degene- No século XX, os grupos sociais que, por anos, foram coloca-
ração cultural do negro, o esvaziamento e a ocultação, assimilando as dos como inferiores e desprovidos de capacidade de inovação, iniciaram
condições de vida dos africanos como frívolas e efêmeras, fortalecendo, um processo emancipatório de revolta enquanto movimento de rebe-
assim, a dialética da distância e da indiferença. lião consciente, ressignificando o mundo e rejeitando os extremismos
No teatro francês, por volta do século XIX, os negros ganhavam que poderiam degenerá-la num fim, num fundamentalismo exacerbado
uma atenção especial nas festas mundanas da corte, pois traziam um toque e num levante ignorante, pensando, assim, as revoluções enquanto ati-
de exotismo e cor ao final dos festejos elegantes. Quando submetidos ao tudes de impulsão contra as opressões (RIBEIRO, 2015).
disfarce com trajes orientais, turbantes e plumas, podiam se expressar, mas Os discursos estrangeiros sobre a estética negra das épocas
somente os negros brincalhões e que eram bons dançarinos, mas, ainda anteriores precisam ser sobrepostos por novos olhares com os quais o
sim, dentro das concepções que validavam a magnitude do homem bran- negro deixa de ser refém de uma epistemologia da narrativa branca nas
co, conforme os registros encontrados nos pintores da época como Hor- práticas culturais negras, sendo esta uma reflexão na qual o povo preto
garth, Raynolds, Watteau, Lacrent, Pater, Fragonard e Carmontelle. Os

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

precisa se engajar, tornando-se, portanto, autor de sua história e colo- juntos construíram um significado que hoje reflete sobre esses temas e
cando-se diante das emergências de seus discursos, do mesmo modo reivindica a dança como saber ancestral. A diáspora negra da dança, no
como se iniciou no Brasil, a partir de 1943, com o surgimento dos mo- país, está atrelada a um legado de lutas afirmativas, de resistência e de ten-
vimentos políticos. Na linguagem teatral, o Movimento Experimental sões políticas de representação identitária (FERRAZ, 2018).
do Negro (TEN), no Rio de Janeiro/RJ, resgata a cultura de matriz As atividades que começam a pensar a arte negra - conceitos,
africana, mudando o discurso pejorativo sobre a ancestralidade negra e posicionamentos, reivindicações, postulados e definições - no processo
evidenciando, assim, artistas negros nas artes cênicas (BRAGA, 2015). identitário brasileiro da estética negra nas artes cênicas, são os fóruns
A dramaturgia brasileira, na televisão e no cinema, repre- artísticos de viés político afirmativo, cujos destaques está o Fórum Na-
sentou, por anos, negros, mulheres, índios e nordestinos de maneira cional de Arte Negra em Salvador/BA e o Festival de Arte Negra - FAN
exótica e estereotipada, pejorativamente, com roteiros dramatúrgicos em Belo Horizonte/MG. Eventos, dentre alguns outros, que começam
cristalizados em um olhar eurocêntrico, cabendo aos seus perfis ape- a trazer pensadores que estudam a estética do corpo negro e suas mani-
nas funções subalternas. Assim, a televisão trouxe sua contribuição para festações nas artes cênicas (FERRAZ, 2018).
fortalecer as imagens que propagam a discriminação racial, apresentan- Sobre a arte negra, Ferraz (2018) acrescenta:
do modelos de beleza ocidental enquadrados em visões internacionais
O ato de nomear explica os sentidos que conferimos às
de embranquecimento do povo negro e de estigmatização do outro, co- nossas experiências. Ao fazê-lo nos localizamos politi-
locando-o como estranho e fortalecendo o conceito de arte e estética camente entre os tensionamentos que disputam as re-
burguesas, colonizadoras e fetichistas (HUAPAYA, 2019). lações de poder e produção de conhecimento histórico
sobre a dança. Ao propor uma abordagem afirmativa
Huapaya (2019) propõe uma reviravolta em que incentiva o colaboramos com uma visão de mundo que desnatu-
processo de pensar a construção corporal do artista em cena a partir raliza a norma eurocentrada e colabora na divulgação
do gestus social, um caminho para a estruturação de personagens com de referências mais plurais e no reconhecimento das
sua pesquisa, assentada na valorização do espaço analisado, trazendo as experiências negras que fecundaram a experiência bra-
sileira na dança. Assim sendo, propomos o uso do ter-
subjetividades que são elaboradas pelo performer - artista em seu pro- mo danças negras como conceito definido por fazeres
cesso de montagem e encenação, mas com a delimitação de seu olhar de dança que engendram poéticas políticas complexas,
regulamentado pelo grupo pesquisado, uma vez que, nas premissas do diaspóricas e múltiplas. Enquanto conceito tem um ca-
ráter revisionista e provisório que pretende questionar
gestus, examina-se com alteridade a camada social e suas práticas per- estigmas, equívocos e ocultamentos sobre as experiên-
formativas, evidenciando os tecidos performáticos e apresentando uma cias negras na dança (FERRAZ, 2018).
escritura social com narrativas que não sejam exóticas.
A legitimação da arte negra, em especial a dança, está envolta Para se pensar uma dramaturgia negra, é imprescindível tra-
numa rede de memórias coletivas e individuais que precisam se inserir zer, apresentar e compreender o gestus social da comunidade pesqui-
na História da Dança brasileira e afastadas da conotação de espanto. sada para que, assim, se possa falar das relações sociais apontadas nas
Trazemos, em nossa história, grandes pesquisadores do corpo na dança obras, tecendo e exibindo os modos de vida de um determinado pe-
negro-brasileira. Precisamos ampliar a mensagem de Mercedes Baptista ríodo, sem exotismo ou fundamentalismo e, adotando, desse modo, as
(1921-2014), Marlene Silva (1936-2020), Clyde Morgan (1940), Eusé- subjetividades daquela persona, investigando e avaliando a singulari-
bio Lobo da Silva (1952), Inaicyra Falcão dos Santos (1958) e Raimundo zação de um pertencimento altivo e respeitoso que explore os percep-
Bispo dos Santos (1943-2018) - artistas, militantes, manifestantes e pro- tos e afectos de uma montagem performática, atrelada aos conceitos de
pagadores da arte motriz, galgada no vasto gestual estético que pesquisa equidade e alteridade (HUAPAYA, 2019).
os diversos idiomas negro-africanos. Esses artistas abriram caminhos e Podemos pensar perceptos e afectos como os blocos de sensações
na obra que, entrelaçados, podem dar ao espectador percepções sensí-

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veis - pois compõem afetos que proporcionam experiências estéticas e A arte possui sua própria cadeia de multiplicidade para a cria-
captam forças, uma vez que o fazer da arte não se trata apenas de repro- ção do pensamento, portanto, cabe ao criador desenvolver caminhos
duzir e criar formas ou, ainda, impressões sensíveis que são erguidas pela para defender uma problemática sem distorcer seus conceitos, evitan-
manifestação artística em si, mas afetos que se desdobram numa reflexão do, de tal modo, o cenário da distopia. O pesquisador precisa extrair de
crítica que indaga os mais diversos signos presentes na obra, associados sua manifestação artística o problema gerador e estabelecer a comunica-
às condições de vida, principalmente na relação entre objeto, material, ção de novas sensações artísticas (CARDOSO, 2010).
técnica e intencionalidades do criador (KONEL & BARBOSA, 2018). O hibridismo acaba por ser, na arte contemporânea, uma forte
Pensar questões estéticas de uma obra pode estar mais atrela- característica. Portanto, a imanência das questões sociais afeta seu pro-
do à ação intelectual do que a uma estimulação de sentido e ao redire- cesso de compreensão estética, visando a iniciativa de proporcionar ao
cionamento dos olhares sobre a beleza, o qual se examinam as premis- espectador reflexões críticas e não apenas a contemplação relacionada
sas mais amplas no vocabulário estético e questionam a inferência do ao conceito de belo - enquanto algo harmônico, organizado e prazeroso
belo, refletindo, desse modo, sobre os discursos críticos contidos no -, e sim problematizando questões que afligem a comunidade atual. A
contexto de facticidade que envolve a obra enquanto arte e as tensões arte contemporânea usufrui das informações contidas nos tecidos per-
filosóficas que emergem do objeto no ambiente proposto. “Há dois formativos tecendo, assim, um constante processo de questionamentos
tipos de erros gerados pelo conceito de arte: um filosófico e o outro e fortalecendo as novas concepções estéticas que rompem com ideolo-
meramente crítico. O primeiro é interpretar alguma coisa que não é gias fixadas ou com vieses opressivos (KONEL & BARBOSA, 2018).
candidata a ser arte, e o segundo consiste em dar interpretação errada Podemos pensar a dança como uma leitura dos espaços sociais,
ao tipo certo de coisa” (DANTO, 2014, p.75). com corpos que interpretam e contextualizam práticas de determinadas
As leituras dos objetos são o suporte para a identificação camadas da sociedade, expressando símbolos significantes de um modo de
artística, embora a interpretação esteja dentro de uma gama de rela- vida social - habitus - e trazem reflexões acerca da ação cultural de seu obje-
tivismo e assegure quais partes e propriedades do objeto em questão to. A percepção dessa linguagem pode estar atrelada ao gesto, ao figurino,
pertencem à obra de arte e os significantes que estão introjetados ao canto, à música, aos instrumentos, aos adereços e penteados, à poesia,
dentro da proposta artística (DANTO, 2014). entre outros e, assim, incorporando à dança, os paradigmas sociais perten-
centes ao processo de identificação de um tempo sócio-histórico-político
A minha teoria não está no espírito da ciência, mas no
da filosofia. Se as interpretações são o que constitui social – tradução do gesto em uma temporalidade (OLIVEIRA, 2018).
as obras, não há obras sem elas, e as obras são malfor- Ao falarmos da dança negra, estamos abarcados numa cultura
madas quando a interpretação é errada. E conhecer a negra da diáspora atlântica híbrida, num espaço em que a construção do
interpretação do artista é, de fato, identificar o que ele
fez. A interpretação é algo exterior à obra: obra e inter- saber ocupa-se de múltiplas subjetividades coletivas, dinâmicas de assimi-
pretação surgem juntas na consciência estética. Como a lação das diferenças, apropriação e criação de novos gestus sociais. Tudo isso
interpretação é inseparável da obra, ela é inseparável do acompanhado de um processo de perda, violência colonial, cruzamentos e
artista, se ela é obra do artista (DANTO, 2014, p. 80). recriações gestuais a partir da contingência – facticidade (FERRAZ, 2018).
Entender, por exemplo, a gama de complexidade e multipli-
Descrição, gestus social e encenação
cidade de informações de como se consolidou a história da popula-
ção negra no país, é um indicativo para buscar soluções, caminhos e
Pensando a dança contemporânea como linguagem, cuja
novas abordagens para tratar a arte negra, partindo, nesse aspecto,
narrativa corresponde às urgências atuais, restaura comportamentos
dos fatos históricos de como se deu o contexto social dessa popula-
e apresenta novas abordagens para se refletir sobre o gestus social, de-
ção brasileira que ainda reverbera na atualidade.

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marcamos algumas imagens do espetáculo observado, descrevendo as indígena, africano e ibérico – que se expõem para serem vistos dentro de
nuances sobre as quais podemos defender a performance como prática um figurino que realça cada curva, expressividade da face, cabelos e olhos.
performativa através de algumas pesquisas na arte negro-brasileira. Ali, apenas observando os corpos dentro de um espetáculo que
tematiza o feminicídio, o público já pode colocar seus estereótipos, visões
Este espetáculo é um trabalho que o Coletivo Emaranha-
do tenta executar desde 2016. Com recursos da Secretaria e impressões, que serão reforçados ou rompidos no desenrolar da perfor-
de Estado da Cultura do Espírito Santo – Secult/ES, no mance. Quais versões sobre o corpo feminino serão mencionadas? Há dois
ano de 2019, o grupo concretiza a montagem que aborda homens em cena? O figurino, a trilha, os textos cênicos e os gestos desses
um tema latente: o feminicídio no Espírito Santo. O tra-
balho foi produzido com uma equipe de 16 pessoas, sendo corpos - que se apresentam enquanto fenótipos - serão modificados?
10 artistas em cena que também foram intérpretes-criado- O antagonismo maniqueísta, atrelado aos conceitos euro-
res. A perspectiva dramatúrgica se respalda nas violações cêntricos de belo, de ideal e de perfeição, é instigado nessa cena.
de direitos das mulheres, sendo uma pesquisa intersec- Os artistas posicionam-se seminus para que o espectador note sua
cional entre o racismo e a violência de gênero (Relato de
Ricardo Reis, Diretor Artístico do Emaranhado, 2020). pele, seu cabelo, o sexo, as curvas e assimetrias. As mulheres negras
são as primeiras a adentrarem a cena sob os focos de luzes que vão
Assim, apresentamos alguns signos sobre os quais podemos lentamente mostrando seus perfis e que, a cada giro no eixo, sempre
sinalizar os traços da cultura negro-brasileira, selecionando cinco ima- se encerra com um suspiro fundo e um sorriso apagado. São quatro
gens que serão analisadas com a intenção de demonstrar a ancestralida- blackouts e, em cada apagar das luzes, entram novos corpos e se re-
de negra na linguagem corporal proposta, ou seja, um universo estético pete a apresentação dos perfis. Do escuro total à luz, assim entram
com base na performance do batucar-cantar-dançar. Portanto, o foco os artistas em cena e se apresentam, colocando-se para o olhar do
será a análise das artes performativas que possuem o corpo negro como observador como um “objeto”, mas que demostra sua possível eman-
centro de sua manifestação (Figura 1). cipação, força e potência no desenrolar da proposta cênica.
Há um padrão estético? Como se afirma no Brasil a estratificação
Figura 1 – Início da Encenação de cores/raça? O corpo branco é mais belo do que o negro? Há rejeição do
cabelo crespo quando relacionado ao cabelo liso? Temos um padrão de be-
leza que precisa ser alcançado? Quais belezas femininas estão em destaque
nas mídias? Os artistas, a cada momento em que apresentavam seus perfis,
faziam essas perguntas ao público - apenas com sua pré-expressividade.
O ponto de vista discutido na cena é o lugar que esses corpos
ocupam atualmente na sociedade e a importância de se ocupar os es-
paços e os cargos antes direcionados apenas a um grupo, mas que ago-
ra outras comunidades reivindicam. Uma revolta consciente como foi
bem apontada por Braga (2015) e Mbembe (2018).
Se pensarmos as noções de corpo como processo sociocul-
tural e que suas concepções são variantes em cada cultura, temos
que ajustar nossa reflexão ao contexto histórico do povo negro no
Fonte: FIRME, 2020 Brasil, para então dialogarmos sobre como as concepções de beleza -
mídia, televisão, cinema, segmento de cosméticos e moda, afirmam-
Os corpos apresentam-se com suas marcas, registros, desenhos e -se na sociedade contemporânea de culto ao corpo.
adornos que lhe são naturais - genótipos. Brasileiros – de entendimento

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Foi a partir desse contexto que a direção cênica do espetáculo Essa imagem regista a parte final de um texto cênico, interpreta-
trouxe a cena para um trabalho que cita as múltiplas violências sofri- do pela artista Léia Rodrigues (ao centro da cena de blusa vermelha). Para
das pelas mulheres. Como apontado por Ligiéro, o Brasil, no século uma explanação geral, a artista corporifica a poesia de Tatiana Nascimen-
XIX, já reunia negros de diversas regiões do continente africano que to, “Iodo+Now Frágil”, cantada também por Luedji Luna[*]. Podemos
firmaram suas raízes culturais num processo de criação identitária, no entender que a interpretação da atriz, somada aos corpos dos bailarinos
qual coloca o país nesse lugar onde não podemos definir o corpo negro negros, no chão, representa um ato político-performático que provoca ao
por um viés engessado, como pressupõe o censo demográfico. Assim, espectador a reflexão sobre uma visão de resistência, cujas dores, impostas
a diversidade étnica dos países africanos, evidencia a distinção estética pelo processo de dominação branca, ainda estão nos corpos pretos e pre-
brasileira. cisam ser rememoradas para uma reflexão contemporânea.
É importante ressaltar que autoras como Nilma Lino Gomes Tratamos a cena como o início de uma reviravolta drama-
(GOMES, 2012) defendem que, para problematizar o corpo da mulher túrgica no trabalho que deixa de tocar apenas nas feridas que envol-
negra, podemos tomar como parâmetro o cabelo e o fenótipo como vem as violações de direitos contra as mulheres, tecendo, também,
ícone de identidade. O corpo e o cabelo da mulher negra, no Brasil, um gestual de fortalecimento e de combate a essas violências, sobre-
foram, por anos, não referenciados como padrão de beleza; as mulheres tudo contra as mulheres negras que são as que mais sofrem com as
negras precisaram passar por um processo de aceitação e ressignificação agressões domésticas – e outras tantas hostilidades.
para serem colocadas socialmente como sujeitas que também são ex- A atriz inicia seu texto sinalizando que é/foi mais um cor-
pressão de beleza. O Coletivo Emaranhado, por sua vez, traz em cena a po negro da diáspora africana. Esse corpo, que surge no fundo do
noção de pluralidade vista de um contexto histórico eugenista por uni- palco, tem um texto potente que denuncia e reforça as atrocidades
dade e que foi articulada no Brasil colonial, mas que não deve prevale- sofridas pelos povos de origem africana durante o processo de colo-
cer na contemporaneidade, haja vista sua perspectiva de inferiorização nização no solo brasileiro e que, até hoje, fazem parte da memória
do Outro (Figura 2). dolorosa deixada pelo processo diaspórico.
A força das palavras, unida à interpretação da atriz, eleva
Figura 2 – Início da Encenação a emoção ao raciocínio e à reflexão. É um momento que gera incô-
modo ao espectador, pois não é mais possível que ele se abstenha
de sua responsabilidade pelas necessárias mudanças epistemológicas
contemporâneas. Ocorre um desconforto, pois, nesse momento, o
Coletivo Emaranhado nos apresenta uma fala de denúncia provo-
cando àquelas pessoas que se calam diante do sistema de violência e
opressão que recai sobre a comunidade negra.
Os elementos que compõem a cena são o texto cênico, as mo-
vimentações dos bailarinos no nível baixo e a ausência de trilha sonora,
o que proporciona uma reflexão sobre a formação da história do corpo
negro no Brasil junto de toda a diversidade que caracteriza nossas manifes-
tações culturais. Há também, (in)diretamente, a transversalidade entre a
música, a dança, a literatura, o teatro, a filosofia e, no palco, quatro artistas
negros evidenciando a presença de seus corpos e trazendo suas contribui-
Fonte: FIRME, 2020 [*] Álbum Um Corpo no Mundo lançado em 2017.

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ções, considerando o fato de que na década de 1940 ainda eram marginali- que nada desfaz
zados por sua condição étnica e social. O momento é de uma reverberação Nem o capataz
Nem a loucura da solidão
histórica do movimento de levante, que foi elaborada pelo Teatro Experi- Nem o estupro coletivo contra sapatão
mental do Negro (TEN), em 1944, e que são presentes os fortes artistas Nem a solidão capataz
negros, protagonistas de suas próprias histórias; pessoas pretas falando de Queimarem a herança de meus ancestrais
“Arrastaram Cláudia pelo camburão, caveirão, enfim...
um dado social da população negra sem tornar o tema fetichizado, exótico Esganarem outra Cláudia na região do Itapemirim...
ou, muito menos, inseri-lo numa ótica de discurso vitimista. Justifica??? Assassinaram Denise da Conceição em
Na poesia interpretada por Leia Rodrigues, em que sua persona- Cariacica” (adaptação da atriz).
gem surge em cena a partir de um suspiro profundo, há um fôlego que en- 111 tiros contra 5 corpos pretos
80 tiros de fuzil contra um carro branco
che seus pulmões de ar e faz seu corpo erguer-se do chão para preencher “Executarem Marielle Franco” (adaptação da atriz).
o vazio sonoro da cena com sua voz. Ao levantar lentamente, limpando Epahey Oyá!
seu corpo como se estivesse se purificando e “autorrealizando um passe”, Eu sei ser trovão que nada desfez? Sim, Eu sei ser tro-
vão...
ela articula movimentos com as mãos que deslizam pelo seu corpo - dos E nada, nada, nada me desfaz.
braços, do encaixe do úmero às pontas dos dedos, e nas pernas, do fêmur (Tatiana Nascimento. Poesia Iodo+Now Frágil. 2017)
aos pés. Movimentos longitudinais, fluidos, distribuídos pelo corpo em
direção às extremidades (mãos e pés), sempre de cima para baixo, execu- Os bailarinos, no chão, reagiam às denúncias expostas nas
tados com os braços estendidos naturalmente, com poucas contrações de intenções do texto, movimentavam-se num elevar e cair de corpos e
tronco e com a necessária flexibilidade para a realização do movimento. braços, rolavam pelo chão, como numa luta para a reconstrução e pela
Nesse momento, enquanto executa seu gestual, escutam-se sus- visibilidade de sua história negra. Os movimentos intensificavam-se e
surros que aumentam gradativamente até ocupar toda a caixa cênica e, expandiam; a fala também acompanhava a emoção do texto quando
como num lapso, o corpo da atriz fica estático, com postura firme, ao cen- ganhou exaustão e então o choro aparece - estimulado pela narrativa.
tro do palco, os pés descalços permanecem fixos ao chão, os joelhos ficam Ao final da cena e da exposição desse texto, temos a fotografia
semiflexionados, o tronco ereto, o olhar horizontal, a expressão facial fir- supracitada. A atriz conduziu, por meio de sua entonação vocal, os ges-
me e o olhar fixo para o público. O corpo sinaliza a espera por atenção e é tos firmes dos braços e a expressão facial - que se emocionavam ao tecer
nesse momento em que o público conhece o texto cênico proposto. os dados políticos, sociais e raciais sobre a população negra no Brasil
- uma manifestação para com o fortalecimento das mulheres negras.
Naufrágio No texto, com licença poética, ela apresentou algumas informações e
Nau frágil... Frágil... Frágil. alguns dos casos de feminicídio no Espírito Santo, que são fatos e tor-
O mágico da diáspora: Desmembrar terra chão
Mas eu já fui trovão que nada desfez nam a cena densa, forte e apreensiva.
Eu vou ser trovão que nada desfaz O grito para o òrìsà feminino Oyá, saudando essa divindade
Nem o capataz afro-brasileira, ecoa por todo o teatro como sinônimo de luta e de
Nem a solidão
Nem o estupro coletivo contra sapatão resistência da manifestação negra no país. Um gesto de fortaleci-
Os complexos de contenção: hospício, que é mesma mento da diáspora africana.
coisa que presídio, que é a mesma coisa que escola, que Há, nessa cena, uma performance política emancipatória da po-
é a mesma coisa que prisão, que é a mesma coisa que as pulação negra, corporificada pela atriz e pelos bailarinos que executa-
políticas uterinas de extermínio, que não reconhecem
um povo como civilização. vam movimentos espasmódicos junto a contrações como reflexo do que
Mas eu sei ser trovão escutavam, sendo os dados estatísticos sobre a morte e a degeneração
E se eu sei ser trovão que nada desfez, eu vou ser trovão desse povo. Temos, então, artistas negros tecendo informações sobre o

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corpo negro, uma ação que Braga (2015) defende como necessária para Essa cena é uma passagem do bailarino, entre uma coxia e ou-
mudar os conceitos estéticos da arte no Brasil, colocando os negros tra, cruzando o palco numa diagonal (entrada na direita baixa e saída
como engajadores de suas memórias ancestrais. na esquerda alta). A performance acontece entre os corpos estáticos das
A linguagem adotada referencia-se nas técnicas do teatro; a per- pessoas pretas no chão. Nesse cenário, ao som da música “Oriki, Orixá
cepção estética do fenômeno artístico conquista sua significação por meio Exu”[*], o performer entra com imponência, com o corpo dilatado e com
do impacto inicial da poesia, que transita entre o ficcional e os relatos reais vigor e os braços, que inicialmente simbolizam o irukerê - espada de
da sociedade brasileira. O jogo e o olhar da atriz estavam ancorados na reali-
cobre -, manipulam o ar. O corpo ganha tremulações, ondulações do
dade social, mas, por outro lado, o espectador foi capaz de perceber a poesia
tronco, proximidade do chão e velocidade.
no palco. Em toda a cena, o corpo de Léia Rodrigues estava vibrante, energé-
tico, magnético, a voz segura ao falar cada palavra, impostação vocal firme; É um corpo que chega alinhado, há uma simetria da bacia sobre
seu gestus era de força, mas também de revolta, uma revolução consciente. os pés, o tronco sobre a bacia e a cabeça sobre o tronco, com a coluna em
Seu movimento corporal era de uma mulher contemporânea, ascensão, trazendo uma corporeidade de poder, coragem e serenidade, e
com gestos familiares, mas com potência de afetar e causar estranheza, com os movimentos de tremulação mudando tal gestualidade. A postura
estabelecendo, como proposto por Bertolt Brecht, um distanciamento vertical humana e as premissas desse corpo ereto diluem-se pelos movi-
crítico da cena. Os elementos plásticos e temporais apresentaram-nos mentos das virilhas que desalinham o posicionamento dos ilíacos e fêmu-
uma verossimilhança com a realidade, um contato com a realidade tal res. O peso da massa corporal é solto pelo solo, encontrando movimentos
como ela é, tornando o tema do feminicídio próximo, relacional, so- de locomoção quadrúpede e bípede, gradativamente, e as oscilações entre
cial, e entoando a leitura estética necessária para se pensar que a mulher o corpo vertical e horizontal apresentam signos da capoeira, das danças
negra é a principal vítima. A cena propõe aos espectadores posturas de dos òrìsà e de poéticas individuais de uma dança contemporânea.
reflexão e de alteridade, reforçando, assim, a confirmação de que o alvo Os arquétipos de Oyá estavam presentes num corpo masculino
não muda e que os corpos atingidos pelas balas de revólveres e chibatas
que reverberava sensualidade, força e axé. A relação entre os gestos, os
estão intimamente ligados à falta de segurança e ao caminho árduo pelo
atabaques e o modo como se ocupou a cena é o que Huapaya (2019) de-
reconhecimento dos direitos civis do povo negro.
nominaria como corpo-existência-ação-performance que se assenta nas
Figura 3 – Início da Encenação manifestações dos candomblés. A identidade corpórea-gestual em cena
uniu ritmo, gestus social e uma movimentação corporal como índice de
preservação de uma cultura negra que está em constante ocupação, já
que nos deparamos com um contexto histórico brasileiro de hegemo-
nia caucasiana ocidental. A cena trouxe o batucar-cantar-dançar como
epistemologia do povo negro-brasileiro.
Os signos da capoeira e da dança dos òrìsà compuseram o re-
pertório dessa ação, o que registra a história do corpo negro no Brasil
com demarcações de combate, resistência e ponderação sobre o corpo
contemporâneo no mundo, um território que mapeia a cultura negra.

[*] Canção interpretada por Felix Omidiré e Grupo Ofa do Álbum Obatalá, uma
Fonte: FIRME, 2020 Homenagem à Mãe Carmen, ano 2019.

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Figura 4 – Funk Revolucionou...

O corpo é meu você não tem que opinar


Nenhuma roupa te autoriza a me tocar (2x)
Revolucionou...

O seu pudor é uma maneira de oprimir


Eu sou mulher e me impediram de falar
O corpo é meu você vai ter que admitir
Se não quiser como um trator eu vou passar

Revolucionou...

A minha voz silenciou


Me convenceram que eu tinha que ceder
A minha história ninguém contou
Pra mim já chega agora eu digo: A mulher revolucio-
nou!

Fonte: FIRME, 2020 Pode me xingar, você não vai me humilhar


Pois já não me importa em seus padrões me encaixar
E não adianta me ridicularizar
A coreografia é um convite para que se rompa com todas as amar- Vim pra ocupar, arreda o pé, vamos entrar!
ras que aprisionam os corpos que lutam por liberdade. A música é o funk,
gênero musical que se iniciou no Soul Music dos negros estadunidenses Revolucionou ...
no final da década de 50. A cena une o funk carioca e as políticas de ações A mulher revolucionou
afirmativas do gestus social das comunidades negras da periferia. A canção A preta revolucionou
“Revolucionou”da artista carioca Patrícia Ilus, que reside no Espírito Santo, A branca revolucionou
A trans revolucionou
é um manifesto de fortalecimento da mulher. O Coletivo Emaranhado, A pobre revolucionou
ao coreografá-la, fortalece e expande o trabalho da artista, que é engajada A rica revolucionou
em posicionamentos de combate à violência contra a mulher. (Revolucionou. Letra e Música: Patrícia Eugênio, 2019).
Segue abaixo a canção:
A dança surge em cena como manifesto, mas também com
REVOLUCIONOU muita diversão. Os artistas, sorrindo e abusando do gestual individual,
expõem suas formas de se movimentarem dentro desse ritmo negro e
Olha só como ela anda
Na batida a gente vê brasileiro, rememorando o cotidiano das favelas, comunidades e bailes
A cabeça ela levanta funks (popularizados no Brasil a partir dos anos 70). O compasso se
Ninguém sabe o porquê desvela no espetáculo com força e resistência, e os corpos são coreogra-
Ela não é mais santa fados com os movimentos que resgatam a África, usando os quadris e os
Salomé, Calcutá saltos impulsionados pelo ritmo do tambor.
Não há nada que lhe digam Há, na cena, um grito das mulheres, com ocupação e presença
E que faça ela parar cênica na intenção da tomada de poder; os corpos dos artistas se dila-

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tam, ficam expansivos e restauram comportamentos do cotidiano de Figura 5 – Elza Soares


uma mulher como os gestos de maquiar, caminhar, embelezar-se e (des)
pentear, e também atitudes como bate-cabelo e movimentos característi-
cos do funk como o passinho, o quadradinho, o agachado e o rebolado.
A cena foi um grande baile; nas danças, os movimentos exe-
cutados tiveram os joelhos flexionados, swing de quadril, o uso exacer-
bado dos glúteos descendo até o chão, as pernas afastadas que abrem
e fecham com as mãos nos joelhos, sempre se valendo do rebolado do
quadril e dos movimentos pélvicos repetidos até a exaustão.
Esteticamente, pode-se caracterizar o passinho como
a sofisticação do sampler, da colagem, representada
na corporalidade. Essa afirmação se deve à apropria-
ção feita pelo passinho de elementos de diversas ou-
tras danças, como Frevo, Break, Street Dance, Trap
Dance, Samba, Kuduro, entre muitas outras, - além
de contar com a criatividade, elementos da teatra-
lidade e os traços pessoais do criador/executor/
dançarino - resultando em um produto final único.
Isso faz com que o passinho, através da apropriação Fonte: FIRME, 2020
tanto de danças regionais quanto de passos de dan-
ças conhecidas e difundidas mundialmente, se torne Essa cena inicia-se com um convite. Ao sair de um encon-
uma representação híbrida, em que o global e o local
se misturam e se complementam. [...] Ora, a dança tro aconchegante de um abraço coletivo, cuja trilha era o som dos
passinho, em todas as suas peculiaridades próprias batimentos cardíacos de um bebê em uma ultrassonografia, a atriz
da periferia brasileira e semelhanças com outras ma- sai desse contato corpóreo e apresenta uma fala motivadora. Na
nifestações – principalmente as negras – de outros
países, realizada por sujeitos sociais jovens, pobres e frente do palco, diz para todas e todos que podemos sonhar com
negros em sua maioria, é, para esses jovens, instru- novos futuros para as mulheres e que esse desejo é coletivo.
mento de ascensão social – seja para os que sonham Impreterivelmente, o dispositivo dessa encenação é a interpre-
em adentrar a grande mídia e viver da dança, seja tação da atriz Elaine Vieira, que corporifica a música “Língua Solta”, in-
para os que usam a dança como ferramenta de socia-
bilidade e de sobrevivência dentro da própria comu- terpretada por Elza Soares - no álbum Deus é Mulher - cantora de gran-
nidade (NASCIMENTO, 2015, p. 5). de nome da música popular brasileira e artista que enfrentou o racismo
e o preconceito por sua origem humilde. Mulher preta, periférica, que
O objetivo da cena era um levante para unir mulheres pre- teve seu primeiro filho aos 12 anos de idade e aprendeu a ouvir sua po-
tas, brancas, cis, trans, pobres e ricas numa única luta, que é a de derosa voz ao subir o morro com uma lata de água na cabeça, passando
igualdade de gênero, bem como pelo fim das violências. Fundidos por cima de várias dificuldades até se estabelecer em seu ofício.
a essa movimentação estavam os movimentos habituais dos povos Nesse momento, o espetáculo caminha para o seu encerra-
negros diaspóricos, reações de uma vida cotidiana negro-brasileira, mento com os artistas, colocando-se lado a lado, criando um altar
valores simbólicos de uma linguagem da periferia de se colocar no com seus elementos cênicos – baldes perfilados – que viram passa-
tempo e no espaço para recriar referenciais estéticos de gestos, mo- rela por onde a atriz sobe e passa cantando o desafio de atravessar
vimentos e formas de comunicação preta. o caminho acima das desigualdades.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

É dia de falar e de ouvir, também sutis do cotidiano até chegar às situações mais drásticas, como os inú-
Com medo de careta, dou a mão meros casos de feminicídio. Essas linguagens cruzam-se e atravessam-se,
E cala o horror, a cara feia, noite escura
Que a coragem é língua solta e solução também, criando um manifesto cuja reflexão se dá acerca da necessida-
É dia de encarar o tempo e os leões de e urgência dessas ações e posicionamentos serem revistos.
Se tudo é perigoso, solta o ar O espetáculo é uma proposta concreta em favor das mulheres,
Escuta a maré, a lua, o rádio, a previsão
Por nós, só nós, e o mundo inteiro pra gritar principalmente as negras e, apesar do elenco não ser composto apenas
Por nós, só nós, e o mundo inteiro pra gritar por pessoas negras, o corpo de artistas é um signo do saber, produzido e
Por nós, só nós, e o mundo inteiro pra gritar memorizado na relação ontológica do cotidiano negro afrodiaspórico.
(Trecho. Língua Solta. Letra: Alice Coutinho.
A pré-expressividade é de mulheres fortes, poderosas e seguras.
Interpretação: Elza Soares, 2018). Os textos cênicos, as músicas cantadas pelos artistas, o jogo de
linguagem com os fenótipos e o protagonismo das mulheres retintas
Nesse caminho, o corpo da atriz emana energia e vibração e, em cena promovem e reivindicam os direitos dos afrodescendentes.
sobre o último balde, ela conclui com o verso “por nós, só nós e o mun- Em alguns trechos, as referências da cultura negro-brasileira
do inteiro para gritar”. Cada integrante a observa com seus olhares de reverberam na corporeidade dos artistas, tais como na música da can-
incentivo e parceria, concordando que todo dia é “dia de falar e de ouvir tora Luedji Lunasomada à poesia de Tatiana Nascimento, “Iodo+Now
também”. Seu corpo ocupa a cena, com sinal de atenção, convocando Frágil”; na canção “Língua Solta” de Alice Coutinho, interpretada por
todas as mulheres para lutarem e combaterem à violência estrutural Elza Soares; na música “Oriki, Orixá Exú” interpretada por Felix Omi-
contra a mulher, em especial as mulheres negras. diré e Grupo Ofa; a presença do funk “Revolucionou” de Patricia Ilus, e
O corpo da performer extravasa expressividade, uma interpre- as menções à música “Amar (elo)”, releitura da música de Belchior feita
tação por meio do canto cercada de simbologias de fortalecimento das pelo cantor Emicida, com a participação de Majur e de Pablo Vittar,
mulheres, sobretudo as pretas. Atitudes de segurança, motivação, em- nos textos que emanam saudações afro-brasileiras e nomes de mulheres
polgação, acalanto e alteridade resplandeciam no corpo da atriz e de negras que são ícones da história social brasileira, além das tentativas de
todos os artistas em cena que se sentiram convidados a lutarem juntos. trazer para a cena a sensibilidade de trabalhar essas temáticas sem negli-
A interpretação da canção de Elza Soares foi um convite para que ne- genciar outros temas que englobam o feminino e a mulheres.
nhuma mulher se cale, convidando todas à sororidade feminina. O direito à igualdade sem discriminações, que são princípios
fundamentais dos direitos humanos, também foi apontados no espetá-
Considerações Finais culo como luta contra qualquer distinção dos direitos das pessoas que é
feita, muitas vezes, com base no fato de elas serem lésbicas, gays, bisse-
Qual a força que tenho para me manter de pé? A do meu corpo xuais ou transgêneros, ou ainda, como é ilegal fazê-lo, baseado na cor da
coberto de sal? A da travessia do Atlântico? Que os ventos de Oyá dissi- pele, raça, sexo, religião ou qualquer outra condição.
pem-se para comunicar sobre a arte negro-brasileira. Corpos negros im- Destacamos também que os artistas representam, pelos ges-
portam. Corpos negros que foram ameaçados, agredidos, violados, retira- tos e figurinos, o arquétipo de Oyá. As roupas em tons marrons e
dos de seu território – arrancados do continente africano -, trazidos dentro vermelhos compõem a estética das cenas, bem como um bailado que
dos navios negreiros e que, até hoje, século XXI, precisam de resistir. remete ao ar e também a tentativa de manipulação dos ventos com as
Fundamentado em dados sobre os índices de violência contra a mãos e com os movimentos rápidos e assimétricos.
mulher, o Coletivo Emaranhado propõe uma criação colaborativa para Realizando essa montagem, o Coletivo Emaranhado reforça
denunciar uma cultura de violência de gênero que perpassa pelas ações seu interesse por criações atentas às questões sociais, apostando na arte

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES ABAJUR COR DE CARNE - CARTOGRAFIA PELA DANÇA

como ferramenta reflexiva de atravessamento do pensamento crítico bums/72157710883246138. Acesso em 21 jun. 2020.
como colaborador de uma mudança de mundo. Podemos acreditar
GOMES, N. L. Corpo e cabelo como símbolos da identidade negra.
que a ideologia do Emaranhado é provocar a efervescência da arte ne-
Revista Ação Educativa. São Paulo, 2012.
gra no Espírito Santo, assim como todo movimento político e social,
amparado no propósito de defender a cultura negro-brasileira e seus HUAPAYA, Cesar Augusto Amaro. Encenação do gestus social: perso-
ideais através da dança. A música, os movimentos e os sentimentos de nas, personagens e corpus em vidas.Editora: Grupo de Teatro Experi-
pertencimento da cultura negra precisam ecoar contra o racismo e o mental Capixaba – GTEC e Curio, Vitória/ES, 2019.
pré-conceito racial, fortalecendo-se, assim, como um coletivo de artes ILUS, Patricia. Intérprete: Patricia Ilus. Compositora: Patricia Ilus.
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2019.

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A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO:
REFLEXÕES SOBRE UMA POSSÍVEL PRÁTICA CULTURAL
DECOLONIAL AFRO-BRASILEIRA E AS ARTES CÊNICAS

Erico José Souza de Oliveira


Doutor e Mestre em Artes Cênicas pela UFBA. Licenciado
em Educação Artística com Habilitação em Teatro pela UFPE

Introdução

No mar de cana do Cavalo Marinho de Pernambuco

Cena Ficcional 1: Um/a artista-pesquisador/a das


artes cênicas vai à região da Zona da Mata Norte de Pernam-
buco ao encontro de grupos de Cavalo Marinho e, ao presen-
ciar as apresentações, questiona o uso da máscara de rosto in-
teiro utilizada na brincadeira, informando que não é possível
entender o que eles/as falam, uma vez que, para que seja audí-
vel para o/a espectador/a, é preciso que se use meia-máscara
como no teatro, deixando a boca livre e à mostra para que o
texto flua. Não satisfeito/a, ele/a pede aos/às brincadores/
as que façam a apresentação com as máscaras que ele/a trou-
xe, pois são, segundo ele/a, as mais apropriadas para a “cena”.
Os/As brincadores/as, por completo constrangimento, uti-
lizam as máscaras indicadas pelo/a pesquisador/a diante da
presença orgulhosa dele por ter contribuído para a evolução
da prática cultural citada. Esta foi a única vez em que os/as
brincadores/as usaram esse tipo de máscara.
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

Em contraponto à cena ficcional que abre este escrito, traze- cultural é perpetuada de forma dinâmica por vínculos comunitários e fa-
mos a voz de uma das maiores pesquisadoras brasileiras na área das artes miliares de descendentes desse trabalho de monocultura da cana.
cênicas, cultura e negritude: a professora e artista Leda Maria Martins, A brincadeira também integra e atualiza de maneira dinâmica no
que, ao confrontar-se academicamente com a riqueza cultural de sua tempo presente suas ascendências socioculturais afro-brasileiras, unindo
própria experiência de vida, o Reinado de Nossa Senhora do Rosário, um tempo ancestral ao tempo atual, como Helena Tenderine expressa:
no Jatobá (Belo Horizonte-MG), questiona:
Eles mostram o universo em que vivem e o universo em
Como alinhavar uma história que se constitui nos que viveram seus antepassados. Mesmo que alienadamen-
tempos do vivido e do contato? Como apreender, sem te, eles estão representando e apresentando uma realidade
reducionismos teóricos, as fabulações da memória que que foi vivida há tempos passados (na época da escravidão)
habitam as narrativas dos congadeiros e a complexida- por seus ancestrais. Por isto, eles são e não são eles na brin-
de da representação simbólica que se pereniza no tem- cadeira, porque, para alguns deles, esta realidade está dis-
po, geração após geração? (MARTIN, 1997, p.18-19) tante, guardada no passado, mas para outros não, ela está
bem viva no presente (TENDERINE, 2003, p.64).
As indagações ontológicas levantadas por Martins (1997) são
Nesse caso, a brincadeira do Cavalo Marinho, como bem diz Ten-
resultado da sagaz percepção da autora, professora, pesquisadora e poe-
derine (2003), cria um trânsito entre uma realidade distante e o presente,
ta sobre um abismo existente entre as instituições oficiais de saber e as
lembrando que, em grande medida, pouca coisa mudou, no cavalgar dos
práticas culturais afro-brasileiras, base formativa de nossa constituição
tempos, na vida desses indivíduos. Sua atualização e sua transformação são
sociocultural. Essas mesmas questões podem ser transpostas para o uni-
constantes, participando também de eventos os mais diversos e fora do ca-
verso do Cavalo Marinho de Pernambuco[*] e começam a partir do mo-
lendário do ciclo natalino, o que, ao mesmo tempo, contribui para sua dinâ-
mento em que tentamos definir em termos artístico-acadêmicos o que
mica de relações socioculturais e fortifica seu caráter ancestral.[*]
é tal prática cultural e como ela deve existir.
O Cavalo Marinho termina ocupando um ambiente – entre outros
Podemos dizer, de forma concisa, que o Cavalo Marinho de
– de ensino/aprendizagem, no sentido de que proporciona experiências, tro-
Pernambuco é uma prática cultural[**] que agrega em seu bojo elemen-
cas conceituais, conhecimentos epistemológicos, estéticos, éticos, humanos
tos de várias outras, como reisados, burrinhas, bumbas-meu-boi, can-
e críticos dentro de uma sociedade excludente. Transforma-se, assim, numa
cioneiros populares, sendo composta de música e canto (toadas), dan-
escola de vida e de arte, numa sociocosmologia (TEIXEIRA, 2016).
ça, improviso, máscaras, declamações (loas) e entremeios dialogados. É
encontrado, sobretudo, na Zona da Mata Norte de Pernambuco[***] e da
Uma brincadeira sociocosmológica
Mata Sul da Paraíba, geralmente durante os festejos do período natali-
no até o Dia de Reis (06 de janeiro) (OLIVEIRA, 2006).
Ao longo do tempo, o Cavalo Marinho pernambucano vem sen-
Produzida há séculos, anteriormente por africanos escravizados
do nominado, sobretudo por alguns/algumas intelectuais, artistas e aca-
no plantio da cana-de-açúcar da referida região, nos dias atuais tal prática
dêmicos/as das artes cênicas, sob vários jargões, como teatro popular do
[*] Tratamos o Cavalo Marinho pernambucano como legado cultural afro-brasileiro, tan-
Nordeste, commedia dell’arte brasileira, teatro do povo, teatro de másca-
to no seu sentido histórico quanto estético, levando em conta a complexidade e a diversi- ras, manifestações espetaculares populares brasileiras, práticas performá-
dade da cultura afro-brasileira: “Esse termo designa, a princípio, toda expressão cultural ticas, performances culturais, folguedo, teatro tradicional, entre outros.
que evoca, como espaço de elaboração, a experiência da escravidão ou, como origem, os
significados e simbologias que remetem à ancestralidade africana” (LIMA, 2012, p. 16). [*] Em 2014, O Cavalo Marinho tornou-se patrimônio cultural imaterial pelo IPHAN,
[**] Mais adiante discutiremos a noção de Práticas Culturais, cara a esta argumentação. como pode ser visto em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/501/. Também há
[***] Região canavieira situada a cerca de 120 km do Recife, capital de Pernambuco, grupos de Cavalo Marinho na região sul da Paraíba. Para aprofundar as discussões sobre a
onde há grupos de Cavalo Marinho que hoje em dia estão organizados em forma de brincadeira do Cavalo Marinho de Pernambuco, indicamos as seguintes pesquisas: Acselrad
associação. Ver: https://onggreenday.wixsite.com/pernambuco/zona-da-mata. (2002), Tenderine (2003), Vilar (2004), Oliveira (2006) e Murphy (2008), entre outras.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

Essa mentalidade perpetua-se até hoje, como no exemplo da visita aprofundar no Cavalo Marinho pernambucano, precisamos situar mi-
do mestre Biu Alexandre[*] ao curso de Artes Cênicas da UnB, registrada nimamente o/a leitor/a diante desse evento tão emblemático, mesmo
pelas professoras e artistas-pesquisadoras Luciana Hartmann e Rita Rocha: sabendo – como nos adverte Martins (Idem) – que se torna impossível
abarcar sua totalidade, complexidade e profundidade.
A curiosidade da turma cresce e alguém pergunta sobre a
origem do Cavalo Marinho, se teria alguma aproximação O mestre Biu Alexandre[*] nos traz sua perspectiva sobre a
com a Commedia Dell’Arte italiana. O Mestre então, com brincadeira:
a maior tranquilidade, e sempre estampando um sorriso
maroto, afirma que não pode dizer como começou, que Rapaz, você sabe que a gente, quando nasce, já en-
sabe que seu pai já brincava, mas que ele só pode falar contra as coisas, né? Às vezes, a gente aprende algu-
do que viu (HARTMANN & ROCHA, 2013, p.117). ma coisa, mas é através dos outros. Eu, pelo menos,
quando nasci, já tinha Cavalo Marinho [...] Mas
Esse tipo de questão é muito recorrente e já se tornou um chavão sempre o que eu vejo é o pessoal dizer que o Cava-
lo Marinho nasceu da África, por causa dos negros
acadêmico. Neste exemplo, tivemos a sorte de o imbróglioter sido desdo- (ALEXANDRE apud OLIVEIRA, 2006, p.120).
brado reflexiva e sensivelmente pelas professoras, junto aos/às estudantes:
Trata-se de uma brincadeira – insistimos nesse termo e o discu-
Tanto a pergunta quanto a resposta nos levaram a lon-
gas reflexões, compartilhadas também com os alunos: tiremos a seguir – praticada por cortadores ou ex-cortadores de cana (em
por que temos essa necessidade de justificar uma tradi- sua maioria), geralmente de núcleo comunitário – familiares e de pessoas
ção nossa, brasileira, através de uma tradição europeia? próximas –, que, segundo seus/suas brincadores/as e pesquisadores/as,
Está claro que os contágios, as influências, sempre exis-
tiram em todas as formas de manifestação expressiva (e existe desde a época colonial, através da reunião de africanos/as escravi-
não apenas nestas), mas de onde vem essa angústia pela zados/as na região açucareira do norte de Pernambuco, como também
origem? Seria a origem (se de fato ela existir) mais im- informa Raquel Dias Teixeira, corroborando o mestre Biu Alexandre:
portante que os processos de transformação e de atuali-
zação da tradição? (op. Cit., p.117-118). Em Pernambuco, o cavalo-marinho e o maracatu de ba-
que solto são brincadeiras cujas gêneses estão ligadas aos
Como no exemplo acima, essa mentalidade induz a definir o Ca- escravos e às senzalas de engenho da Zona da Mata (Bru-
santin, 2011; Teixeira, 2013). São, portanto, manifesta-
valo Marinho por um viés etnocêntrico comparando-o a algo que se julga ções bem antigas, que foram sofrendo diversas mudanças
importante, geralmente a um cânone internacionalmente reconhecido com o passar do tempo. Atualmente, grande parte dos
ou a conceitos forjados nas universidades estrangeiras e/ou nacionais. brincadores ainda vive na zona rural e exerce trabalho li-
Também é possível listar inúmeras posturas de como a brinca- gado à cana-de-açúcar (TEIXEIRA, 2016, p.78).
deira deve se “atualizar”, a ponto de querer transformá-la a partir da hege-
A brincadeira do Cavalo Marinho da Zona da Mata Norte
mônica ótica artístico-universitária que se autointitula universal e supe-
de Pernambuco é uma complexa rede de afetos, resistências, rein-
rior, como no exemplo citado na Cena Ficcional 1, no início deste artigo.
venções, sobrevivências, ressignificações e produções culturais que
Essas tendências expõem de forma evidente e aviltante a chaga da
traz em seu âmago um passado ligado à escravidão, ao latifúndio e
mentalidade colonial tão impregnada no Brasil, reforçada por vários/as pes-
às injustiças que atravessam este país continental desde sua forja,
quisadores/as, artistas e intelectuais que lidam com práticas culturais brasi-
através da apropriação de terras, corpos, culturas e vidas[**].
leiras sob o prisma das suas respectivas áreas do saber, desde tempos remotos.
Como já sinalizava Martins (1997), não há como dar con-
[*] Entrevista concedida a Erico José Souza de Oliveira em 17 de fevereiro de 2005.
ta do universo do vivido e do corporificado, mas, para podermos nos [**] Tratando de patrimônios imateriais afro-brasileiros, Lima (2012, p. 96) afirma: “Re-
presentam a manutenção e transmissão de práticas e formas de sociabilidade criadas como
[*] Alexandre Severino da Silva, mestre do Cavalo Marinho Estrela de Ouro, de Condado-PE. forma de enfrentamento aos obstáculos gerados pela escravidão e, mais tarde, pelo racismo”.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

Ela é o meio pelo qual antigos/as africanos/as escravizados/ Brincadeira como prática cultural
as e, hoje, pessoas oriundas da monocultura da cana agregam-se fes-
tivamente e de forma cosmológica (TEIXEIRA, 2016), enquanto O Cavalo Marinho pernambucano é, segundo seus/suas pra-
espiritualidade[*]e ancestralidade[**], em direta relação de confronto ticantes, uma brincadeira. Porém, há que se considerar a profundida-
com as situações de descaso e abandono socioeconômicas, culturais de conceitual e cosmológica contida nesse termo. A arte-educadora
e educacionais, construindo possibilidades de fissuras nas hegemo- Tenderine, como resultado de seu mestrado em Antropologia sobre o
nias política e cultural do país e reconstruindo-se diante de um po- Cavalo Marinho da Zona da Mata Norte, presenteia-nos com uma de-
der excludente e centralizador de espaços e riquezas. finição sobre a noção de brincadeira, a partir de sua relação direta com
Tal prática também fissura o pensamento hegemônico, dicotômi- os/as próprios/as fazedores/as dessa prática cultural:
co e cartesiano (GROSFOGUEL, 2012) em várias questões e latitudes, so-
As brincadeiras são algo muito sério. Mas, são também
bretudo onde o mundo acadêmico tenta formas binômias de conceituação, divertimento. São expressões de impressionante com-
como ritual/festa, sagrado/profano, popular/erudito, tradicional/contem- plexidade, que, comumente, trazem em si uma dialogia
porâneo, arte maior/arte menor, dança/teatro, pois, sendo uma cosmologia entre seriedade e comicidade, entre o presente e o que
de elementos complementares e conexos, a brincadeira é grande aglutina- passou, contando histórias situadas num tempo remoto,
dialogando com temas atuais e mostrando situações do
dora dos diversos sentidos que abarcam a vida pública e privada de seus in- cotidiano dos lugares onde elas acontecem. Desta for-
tegrantes. Trata-se de uma prática cosmológica, como a denomina Teixeira: ma, elas constroem também uma ponte estreita entre o
lado do imaginário, onde ela está situada e o lado do real,
Esta visão cosmológica não pressupõe distinções entre o onde se situam os que dela participam [...] Ela está na
transcendente e o imanente, entre o natural e o sobrena- “fronteira entre a vida e a arte” [conforme atesta Mikhail
tural; pelo contrário, sugere que o sagrado é somente mais Bakhtin] porque possibilita o trânsito entre as duas, ex-
um nível da realidade. Deste modo, o que chamo de múl- pressando uma visão de mundo e até contando uma his-
tiplas filiações devocionais não seria nenhuma incoerên- tória que não é a dos livros nos quais aprendemos desde
cia, mas sim um exercício de compatibilização que orga- muito pequenos. (TENDERINE, 2003, p. 20)
niza as cosmovisões e os arranjos específicos dos poderes
sagrados. É válido notar que o acionamento de recursos O que deve ser levado em conta na noção de brincadeira é seu
sociocósmicos para a afetação ou proteção dos corpos dos sentido polissêmico, dialógico, não-dicotômico e não-cartesiano, na me-
brincadores parece descartar qualquer visão dicotômica
entre o sagrado e o profano (TEIXEIRA, 2016, p.87). dida em que se localiza entre passado imemorial e presente sociocultural,
entre ancestralidade atemporal e contemporaneidade localizada históri-
ca, geográfica e socialmente, explodindo as dualidades espaço-tempo-
[*] Espiritualidade no sentido dado por Teixeira (2016, p. 78): “Tais relações socio-
cosmológicas se configuram em função das experiências devocionais dos brincadores, rais. Como sinaliza Tenderine (2003), são práticas complexas que ligam
que, nos dois brinquedos [Cavalo Marinho e Maracatu Rural ou de Baque Solto], são tempos remotos a questões da atualidade, dissolvendo a fronteira dual
plurais e flexíveis, podendo se referenciar à cosmologia católica, evangélica, umban- entre brincadeira e seriedade, entre crítica social e divertimento.
dista, do catimbó (e jurema sagrada) ou do candomblé (xangô). Entendo que tanto
os brincadores quanto os brinquedos de cavalo-marinho e maracatu, em certas cir- Nesse contexto, o brincar assume a acepção de transgressão e sub-
cunstâncias, podem estar suscetíveis a uma série de perigos derivados de sentimentos versão das regras sociais, de resistência às indiferenças, além da possibilida-
como a inveja e o mau-olhado, como também a ações maléficas (ou benéficas) de
entidades e espíritos. Para tanto, existem prescrições e rituais, referentes a preparos,
de de construção de novos espaços ficcionais para habitá-los, redimensio-
cuidados e proteções, que podem (ou devem) ser ativados”. nando, assim, a dura realidade em que se inserem seus/suas realizadores/as.
[**] A noção que trazemos aqui sobre Ancestralidade vai ao encontro da abordagem Observamos que há uma enorme resistência em nominar a
de Adilbênia Freire Machado (2014, p. 54), na qual se constitui como fazer/pensar
de uma comunidade enquanto princípio organizador ao mesmo tempo que incorpora prática cultural do Cavalo Marinho como brincadeira, tanto por par-
uma demanda de espaço de resistência e afirmação sociopolítica e cultural, isto é, uma te de alguns/algumas acadêmicos/as quanto de artistas e intelectuais
cosmologia que tem o corpo como eixo entre passado, presente e futuro.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

que, de algum modo, transitam nesse universo. Certamente isso se dá deira, no Brasil, tem um cunho ideológico que perpassa, praticamente,
por um errôneo legado histórico que banaliza tal noção, associando-a todas as esferas da sociedade letrada brasileira tanto nas universidades
imediatamente a uma ideia ingênua e equivocada de infância, ou à vaga- quanto nos ambientes intelectuais e artísticos, isso porque:
bundagem, como se o termo brincadeira fragilizasse a potência cultural
[...] há um peso negativo sobre o brincar justamente por
do Cavalo Marinho, como se infância fosse algo menor, como se brin- sua conexão com as expressões artístico-culturais dos
cadeira fosse ócio, na pior acepção do termo. grupos marginalizados pelo poder vigente, aos quais
O mestre e pesquisador Victor Gargiulo (2019), em sua disser- tenta-se controlar ou suprimir tanto em sua existência
econômico-social, quanto também cultural e artística
tação de mestrado, tensiona a questão das traduções dos termos play e (GARGIULO, 2019, p.103).
jeu em autores que tratam do universo artístico e cultural e evidenciam
a opção histórico-acadêmica por jogo, ao invés de brincadeira. Baseado A essa altura, precisamos pontuar o motivo pelo qual estamos
em Victor Turner e Richard Schechner, Gargiulo traz algumas acepções conceituando de práticas culturais as atividades de grupos sociocultu-
do termo play, demonstrando sua polissemia, como exercitar-se, mexer o rais específicos, como os de Cavalo Marinho, lembrando que o termo
corpo de uma forma animada, dançar, jogar, praticar esporte, brigar, inves- mais utilizado é brincadeira, derivado dos/as próprios/as praticantes,
tir-se numa batalha, golpear, ou mesmo relacionadas a algum tipo de luta autodenominados/as brincadores/as, como vimos anteriormente.
dançada ou ritualizada (TURNER, apud GARGIULO, 2019, p. 90-91). O ponto nodal que trazemos para esta reflexão é que, quan-
Ao investigar a etimologia dos termos play e jeu, chegando ao la- do nomeamos uma prática cultural afro-brasileira com termos que não
tim ludus, iocus, iócus, jocus, Gargiulo (Idem, p. 94, grifo nosso) faz emergir são oriundos do próprio lugar, estamos contribuindo para a invisibili-
uma definição que interessa à nossa reflexão sobre a noção de brincadeira dade dessas práticas, uma vez que anulamos de nosso discurso as con-
no Cavalo Marinho pernambucano: “brincar enquanto sentido de ‘di- tribuições simbólicas (materiais e imateriais) dessa parcela significativa
vertir-se, entreter-se’ (CUNHA, 1982), seria datado do século XVI, bem da sociedade que alicerçou nosso imaginário por meio da resistência
como sua variação, brinco, no sentido tanto de ‘brincadeira, brinquedo’, à opressão e à dominação coloniais. Nesses termos, estamos uniformi-
quanto de ‘adorno, enfeite’, o qual é originário do latim vinculum, ‘laço’.” zando uma pluralidade de práticas negras que possuem, cada uma delas,
Nesse caso, a roda[*] do Cavalo Marinho instaura um lugar suas próprias cosmologias e epistemologias:
onde se criam, desfazem-se e recriam-se vínculos, onde se enlaçam,
entrelaçam e desenlaçam relações de poder, opressões, injustiças e Nem todos percebem que por trás das produções cultu-
rais do povo negro no Brasil existe um sistema perfeita-
tensões, ao mesmo tempo que se desvelam compartilhamentos, com- mente estruturado. É isso que não permite a diluição de
panheirismos, pertencimentos, através de um ato festivo e derrisório suas criações. Há, no entanto, uma dificuldade em ad-
que, de forma circular, reinventa o mundo e seus viventes. Laços, vín- mitir que a cultura brasileira é profundamente marcada
por esses saberes. A tentativa de apagar essas marcas
culos e relações que giram essa roda eternamente. consiste em um traço muito evidente do racismo e rei-
Gargiulo (2019, p. 103) é categórico ao afirmar que, “por meio tera as estratégias de luta do povo negro que persistem
do brincar, o indivíduo organiza a própria noção de realidade, bem desde o período colonial (WILLIAM, 2019, p. 36).
como é a partir do brincar que a cultura é engendrada”. Assim como
Gargiulo, podemos perceber que a questão da recusa à noção de brinca- Cientes dessas questões, trazemos a expressão práticas culturais
justamente por estar vinculada à outra forma de pensamento plural na
[*] Roda, no Cavalo Marinho, é o espaço no qual a brincadeira acontece, independen-
temente de onde seja apresentada, pois seu formato sempre será circular. É outra ex-
qual as diversas sociedades e seus/suas agentes são seres ativos na dinâmica
pressão forjada pelas/os brincadoras/es que possui um sentido profundo e ancestral, de construção sociocultural, tendo autonomia para articular as inúmeras
mas que não será tratada no escopo deste artigo: “O termo ‘roda’ [...] é a delimitação, ao influências culturais que fazem parte de seu universo tão diverso. Como
mesmo tempo, material e imaterial que proporciona a instalação do criar, do transfor-
mar-se, enfim, do brincar” (OLIVEIRA, 2006, p. 519). pontuam Jack, Toaldo e Oikawa (2016, p. 07), “[...] pode-se entender que

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

as práticas culturais são fruto das ações humanas que se configuram e re- a referida companhia caracteriza-se de personagens da commedia
configuram no confronto entre ‘poderes instituídos’ e os sujeitos que, a dell’arte, entrando na brincadeira, como se houvesse uma relação
partir de suas táticas, buscam ajustar-se a seus cenários e circunstâncias”. direta entre as duas práticas culturais, e mais, como se o Cavalo
Essa visada sobre as práticas culturais tem sintonia com a Marinho descendesse da comédia italiana. Feliz por estar trazen-
compreensão que os estudos culturais desenvolvem no sentido de do à tona as “origens mais antigas” da brincadeira, a dita compa-
que as culturas e seus/suas agentes são elementos ativos na socieda- nhia encerra a noite com louvores ao cruzamento entre Cavalo
de: “em síntese, cultura é um processo de produção de fenômenos Marinho e commedia della’arte, com a certeza de que cumpriu
que contribui através da representação ou reelaboração simbólica uma importante missão artística intercultural, além de se ali-
das estruturas materiais para compreender, reproduzir ou transfor- mentar de técnicas e estéticas provindas da brincadeira para suas
mar o sistema social” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 95). futuras produções artísticas no Brasil e no Exterior.
É neste lugar que se encontra a brincadeira do Cavalo Marinho
pernambucano: no agenciamento de sua forma de ver/viver o mundo em Há algumas décadas, o Cavalo Marinho pernambucano vem sen-
constante conflito e negociação com as forças externas que tentam, a todo do uma profícua fonte de inspiração para inúmeros/as artistas, pesquisado-
custo, ora invisibilizar a potência afro-brasileira que é o substrato dessa prá- res/as e acadêmicos/as das artes cênicas e de outras áreas do conhecimento,
tica cultural, ora utilizá-la como objeto acadêmico, artístico e intelectual, como a antropologia, a antropologia da dança, a antropologia teatral, a so-
sem se importar com suas epistemologias e sociocosmologias próprias, a ciologia, a história, os estudos da performance, a etnocenologia etc.
ponto de querer modificá-las, em um mascaramento/desmascaramento O que, provavelmente, mobiliza essa atração é a percepção de
fruto de uma mentalidade colonial, como se pode ver na Cena Ficcional 1. que, nessa brincadeira, pode-se encontrar toda uma possibilidade de
Portanto, há uma complexidade de fatores que influenciam uma reativação e reinvenção artísticas para as chamadas artes contemporâ-
prática cultural em relação a várias outras, de forma simultânea, num neas, como vemos na Cena Ficcional 2. Esse pensamento, por si só, já
movimento de fricção e adequação mútuas, como nos mostra Escoste- é altamente colonial, e nele a construção da ideia de democracia racial
guy (Idem, p. 66-67): “existem várias forças determinantes - econômica, encobre formas de apropriação[*] e dominação culturais:
política e cultural - competindo e em conflito entre si, compondo aquela
complexa unidade que é a sociedade [...] E ao enfatizar a noção de cultura Seja com a população indígena, seja com a população ne-
gra, as estratégias de dominação relacionadas a processos
como prática se dá relevo ao sentido de ação, de agência na cultura”. de aculturação foram ainda mais eficientes por se asso-
A prática cultural afro-brasileira chamada Cavalo Marinho ciarem ao mito da democracia racial e servirem a um mo-
redesenha outras formas de ser e de estar no mundo, através de suas delo de opressão que exclui e mata, mas transmite a ideia
de convivência pacífica e harmoniosa, de igualdade de
múltiplas vertentes criativas e poéticas. Todavia, isso é suficiente para condições e direitos, de pleno acolhimento das práticas
denominá-la decolonial? É sobre essa problemática espinhosa que va- tradicionais de negros e indígenas no caldeirão cultural
mos tratar na próxima seção deste artigo, evocando questões nodais da miscigenação e dos múltiplos sincretismos que carac-
levantadas pelas noções de decolonialidade. terizam a brasilidade (WILLIAM, 2019, p. 52).

Lembremos de que essa mentalidade de que fala William


Uma prática cultural decolonial?
(2019) é construída há séculos e possui uma organização muito pode-
rosa que atravessa tanto o marco da introdução das artes cênicas quanto
Cena Ficcional 2: Uma companhia de teatro ítalo-bra-
sileira resolve pesquisar o Cavalo Marinho pernambucano e, nas [*] No Brasil, não há como tratar de decolonialidade sem tocar na questão da apropria-
ção cultural: “Admitir que a apropriação cultural é um fenômeno estrutural e sistêmico
apresentações na região da Zona da Mata Norte de Pernambuco, significa compreender que não pode ser entendida ou problematizada sobre o ponto de
vista particular, individual” (WILLIAM, 2019, p. 55).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

dos cursos de artes nas universidades brasileiras, fundamentando o que universitários – a Escola de Teatro da UFBA (1956), idealizada pelo
Grosfoguel chama de racismo/sexismo epistêmico: encenador, ator e teatrólogo pernambucano Eros Martim Gonçalves[*]
–, no qual fica evidente essa tendência de mentalidade hegemonica-
O racismo/sexismo epistêmico é um dos problemas mais
importantes do mundo contemporâneo. O privilégio epis- mente europeia e norte-americana, através das relações financeiras e
têmico dos homens ocidentais sobre o conhecimento pro- intercambiais com o “norte global”:
duzido por outros corpos políticos e geopolíticas do conhe-
cimento tem gerado não somente injustiça cognitiva, senão [...] além de ter promovido uma inusitada ponte aérea,
que tem sido um dos mecanismos usados para privilegiar sem escalas efetivas no RJ e SP, entre Salvador e Nova
projetos imperiais/coloniais/patriarcais no mundo [...] des- Iorque, Londres e Paris. Vale ressaltar que foi na Escola
qualificando outros conhecimentos e outras vozes críticas da Bahia onde foram gestados os primeiros passos para
frente aos projetos imperiais/coloniais/patriarcais que re- a tradução da obra de Constantin Stalislavski para o
gem o sistema-mundo (GROSFOGUEL, 2012, p.25). português e implementadas as primeiras experiências de
cursos de direção teatral e interpretação ligados a uma
O que traz Grosfoguel (2012) pode ser aplicado aos dois instituição universitária [...] (SANTANA, 2012, p.2)
marcos abordados em nossa discussão: o das artes cênicas e o dos cur-
Com viagem aos Estados Unidos da América subsidiada pelo
sos de artes nas universidades brasileiras e a exclusão de práticas como
governo americano (Fulbright e Departamento de Estado), em 1955,
as do Cavalo Marinho. Lembremos de que a história das artes cênicas,
a intenção era evidente: “[...] observar a estrutura dos cursos univer-
no território que viria a se chamar Brasil, remonta ao período colo-
sitários e a organização dos métodos do ensino das artes no país”[**]
nial, com a chegada dos jesuítas e o uso do teatro para catequização
(SANTANA, 2012, p. 03).
(entendamos epistemicídio dos povos que aqui se encontravam).
Essa relação também vai se dar, praticamente, em todos os cur-
Os processos de apropriação cultural já estavam ali, contri-
sos de artes cênicas espalhados pelo país, sempre voltados para a Europa
buindo para o aniquilamento das sociedades que habitavam estas ter-
e/ou os Estados Unidos da América e olvidando as práticas culturais
ras, como sinalizam Hernandes e Faria:
brasileiras, como o Cavalo Marinho pernambucano.
Anchieta utiliza nessa peça[*] aspectos da cultura indí- Até os dias atuais, por conta da perpetuação dessa mentalidade
gena, mesmo aqueles que poderiam contrariar a reli- colonial, a Escola de Teatro da UFBA vive crises pedagógicas, educacio-
gião cristã, para o ensino da fé e da moral cristãs. Mis-
tura elementos da cultura autóctone com a europeia, nais e curriculares com estudantes e pesquisadores/as da instituição, com
cristã e católica, em hibridismo linguístico e cultural problemas graves sobre racismo e ausência de conteúdo negrorreferenciado
(HERNANDES & FARIA, 2013, p.62). em sua grade curricular, e isso na segunda cidade mais negra do mundo.[***]

As artes cênicas, por exemplo, vinculadas às instituições aca- [*] Eros Martim Gonçalves (14/09/1919-18/03/1973): possuía formação em Artes
dêmicas, são, em seu bojo, pela conjuntura na qual se desenvolveram na Inglaterra e França. “Apesar de médico, formado em 1941, na Universidade de Per-
nambuco, estudou Cenografia e Teatro através de bolsas do governo inglês e francês
e se perpetuam no Brasil, majoritariamente colonizadas e, consequen- no Ruskin College, de Oxford, e na Slade School of Fine Arts, em Londres. Gonçal-
temente, colonizadoras, pois derivam de uma criação intelectual, aca- ves também foi estagiário da Companhia Old Vic, no período de Lawrence Olivier
dêmica e artística eurocêntrica e hegemônica e vêm perpetuando esse (1944-1946), e estudou Cinema no Institut des Hautes Etudes Cinèmatographiques
(IDHEC), atual La Femis, em Paris (1949-1950)” (SANTANA, 2012, p. 03).
legado através dos tempos, sob diversas máscaras. [**] O desenvolvimento efetivo das atividades na Escola de Teatro da UFBA, à época,
A pesquisadora Jussilene Santana apresenta um panorama so- se deu “[...] através de convênio de transferência de verba e tecnologia com a americana
Fundação Rockefeller [...]” (SANTANA, 2012, p. 02).
bre o primeiro curso de artes cênicas implantado no Brasil em termos [***] Ver a problemática da intervenção da Organização Dandara Gusmão (coletivo
negro de estudantes da Escola de Teatro da UFBA) sobre o espetáculo “Sob as tetas da
[*] Trata-se da peça Recebimento que fizeram os índios de Guaraparim ao padre Provin- Loba”, da Cia. de Teatro da UFBA (2019), episódio que teve grande repercussão local
cial Marçal Beliarte, apresentada em 1589. e nacional: “Alunos da Escola de Teatro da Ufba interrompem espetáculo em protesto”

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

Também se pode constatar que toda a história das artes cênicas um caminho de negação denso e praticamente impos-
europeias mostra-nos que artistas, intelectuais e acadêmicos/as sempre re- sível, como se a cultura atual pudesse ser desfeita e en-
contrado um marco puro e originário que nem sabemos
correram a culturas estrangeiras – para não dizer exóticas – para se retroali- qual é. A crítica que revela a ferida colonial pretende,
mentarem artisticamente[*]. No Brasil, não seria diferente com os jesuítas na verdade, que se reconheçam as relações de poder ins-
e, posteriormente, os bandeirantes, os folcloristas e os devotos da cultura tituídas entre culturas e dentro de uma mesma nação
(BELÉM, 2016, p.100-101).
popular, porém de forma endógena e sob o manto da democracia racial[**].
E, aqui, há um perigo epistemológico que presenciamos a três Há uma tendência geral de tratamento ao Cavalo Marinho
por quatro tanto fora quanto dentro do país: o tratamento das práticas pernambucano – e, diga-se de passagem, à maioria das práticas cultu-
culturais afro-brasileiras como salvação para as problemáticas estético- rais afro-brasileiras – como se ele fosse a tábua de salvação de processos,
-conceituais dos/as artistas da cena e das disciplinas acadêmicas em artes. procedimentos, poéticas e estéticas das artes cênicas, o que acarreta, no
Apesar de indigesta, esta discussão é urgente, e é preciso levar em mínimo, três problemas:
conta que, enquanto brasileiros/as, também podemos ser colonizadores/ 1 – Por um lado, a prática perversa de afirmação do Ca-
as a partir de como nos relacionamos com as epistemologias das práticas valo Marinho como domínio público[*] e, portanto, passível de ser
culturais das quais julgamos fazer parte, pelo simples fato de sermos da apropriado sem nenhum problema por não importa qual artista,
mesma nacionalidade: “aquela noção colonialista e racista de que tudo que intelectual ou pesquisador/a brasileiro/a ou estrangeiro/a. As
o negro produz pertence a todos e se pode dispor como bem quiser é o provas estão aí, com artistas montando grupos de Cavalo Mari-
pano de fundo desse projeto torpe e imoral” (WILLIAM, 2019, p. 161). nho, espetáculos de dança, teatro e/ou performance com estética
Esse é o centro nevrálgico no qual gravita a relação entre o similar ou muito próxima à do Cavalo Marinho pernambucano,
Cavalo Marinho pernambucano e grande parte das artes da cena de performers lecionando danças vinculadas à brincadeira, ao invés
contexto universitário, ou não. A mesma mentalidade bandeirante, fol- da contratação de mestres/as ou bincadores/as etc.
clorista ou da cultura popular, na qual o Cavalo Marinho é visto como 2 – Por outro lado, a justificativa de que, com esta “troca
“origem” e/ou “essência” de um teatro “autenticamente” brasileiro ou intercultural”[**] entre as artes cênicas e as práticas culturais, artis-
originário da commedia dell’arte, por exemplo, é uma armadilha que tas-pesquisadores/as, acadêmicos/as e intelectuais estão decoloni-
encobre uma perigosa faceta colonial, pois, como pontua Elisa Belém, zando as artes no país, porém, na verdade, estão gerando um dis-
curso de legitimação de apropriação da brincadeira. Esse discurso
Pensar o teatro e a dramaturgia a partir dessa crítica [co-
lonial] não pressupõe procurar por uma incerta forma capcioso, inclusive, gera afirmações como: “– Estamos divulgando
original que, porventura, anteceda as primeiras expe- e visibilizando o Cavalo Marinho”, ou: “– Estamos valorizando
riências cênicas no Brasil. [...] Ou mesmo, empreender nossa cultura!”, e até: “– Estamos dando espaço à brincadeira para
que se torne reconhecida!”.
- Jornal CORREIO | Notícias e opiniões que a Bahia quer saber (correio24horas.com.
br); “Professores negros da Escola de Teatro da Ufba cobram Audiência Pública para [*] “[...] o conceito de apropriação cultural atinge seu significado contemporâneo, in-
discutir Racismo” | Correio Nagô (correionago.com.br); “Estudantes da UFBA inter- clusive como forma de defender o direito de propriedade intelectual de populações
rompem peça de teatro e apontam racismo na obra”–iGGente. nativas sobre suas produções culturais e demais elementos” (WILLIAM, 2019, p. 52).
[*] Podemos citar nomes como Jerzy Grotowsky, Antonin Artaud, Constantin Stanis- [**] Patrice Pavis (2008, p. 03-05) trata a interculturalidade como uma ampulheta: “Na
lavski, Eugênio Barba, entre outros. bola superior encontra-se a cultura estrangeira, a cultura-fonte que está mais ou menos
[**] “A interpretação das relações entre brancos e negros, realizada por Gilberto Freyre, codificada e solidificada em diversas modelizações antropológicas, socioculturais ou
baseada na suposta ausência de preconceito racial e na naturalidade com que os portu- artísticas”. Essa cultura estrangeira deve ser escoada para a bola inferior (a cultura-alvo,
gueses promoviam intercâmbio com os colonizados – sobretudo sexual – são aspectos europeia). O que ele chama de “transferência cultural” é “[...] uma atividade comandada
que podem ter contribuído para consolidação da ideia de democracia racial, além de re- muito mais pela bola ‘inferior’ da cultura-alvo e que consiste em ir procurar ativamente
forçar no imaginário nacional a suposta ausência de barreiras raciais no país em função na cultura-fonte, como que por imantação, aquilo de que necessita para poder respon-
dessa hibridização sócio-racial” (LIMA, 2012, p. 30). der às suas necessidades concretas”. Há algo mais colonial que isso?

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

Essa postura contribui para uma naturalização de procedimen- tema, torna-se necessário lançar luz sobre a seguinte questão: o
tos que visam usufruir da brincadeira em prol de espaços artísticos, acadê- que há de colonialidade no decolonial?
micos e intelectuais, além dos econômicos e financeiros, com aquisições Em se tratando da complexidade histórica do Brasil e da
de prêmios em editais de artes e cultura, bolsas de pesquisa universitárias, construção do mito da democracia racial, é ingênuo afirmar que algo
oferta de aulas de danças oriundas do Cavalo Marinho, entre outros, que é “puramente” decolonial, na medida em que o pensamento colonial/
estão sempre nas mãos dos/as artistas, intelectuais e acadêmicos/as e nun- racista/sexista/apropriador é estrutural e sistêmico (WILLIAM, 2019;
ca nas mãos dos/as brincadores/as. Os exemplos são inúmeros e alarman- GROFOGUEL, 2012) e rege, praticamente, todas as instâncias socio-
tes, sobretudo camuflados sob o manto de contribuição para a cultura e as culturais, econômicas e políticas do país. No caso das práticas culturais,
artes brasileiras ou da abertura de espaço para a brincadeira. não seria diferente, pois estão no mesmo bojo das estruturas de poder
3 – A outra face dessa moeda é atribuir ao Cavalo Marinho a al- que constroem a ideia de nação brasileira e são afetadas por elas.
çada de prática decolonial, afirmando-se que as práticas culturais brasileiras O Cavalo Marinho, por exemplo, retrata uma história de
são, por si sós, decoloniais e que, no trânsito entre elas e as artes cênicas, es- opressão, transubstanciando os horrores da escravidão e do latifúndio
tas se tornam, por consequência, também decoloniais, como que por here- no Brasil, dando corpo e voz a uma sociedade econômica e socialmen-
ditariedade, osmose ou imantação. Ora, é preciso adentrar mais a fundo es- te excluída dos bens materiais e de produção de conhecimento formal,
sas questões, com senso crítico e discernimento analítico, evitando a criação como já sinalizado anteriormente. Porém, ao mesmo tempo, possui em
de mitos institucionalizados pelo discurso acadêmico, leia-se hegemônico. sua estrutura interna questões que tangem fortemente à mentalidade
É exatamente pela observação dessa tão complexa rede de rela- colonial, como situações de teor racista, machista, homofóbico etc.[*]
ções entre o Cavalo Marinho e uma parcela das artes cênicas no Brasil Portanto, torna-se complicado nominar de forma simplista
que compreendemos que a mentalidade colonialista continua produzin- uma prática – seja cultural ou artística – sob a ótica do decolonial. A
do processos de apropriação, exclusão e injustiça social nos quais quem ideia purista de que o Cavalo Marinho ou as práticas culturais brasilei-
sempre perde é quem faz parte, efetivamente, da brincadeira. Os “lou- ras são, em si, práticas decoloniais segue a mesma mentalidade folclo-
ros” e o poder monetário ficam sempre nas mãos das mesmas pessoas. rista ou popular em que se cria uma aura de origem, essência ou pureza
Levando-se em conta que o Cavalo Marinho pernambucano, e se constrói um mito nacionalista de cultura autêntica.
em relação ao modelo hegemônico de arte e de conhecimento oficiais Já as artes cênicas brasileiras começam a clamar por uma iden-
(universitários), torna-se uma prática fora da curva no sentido de que tidade decolonial, como se isso fosse possível em estado bruto. Em vá-
fricciona os cânones e descaracteriza as dicotomias e os binarismos aca- rios artigos e livros da área[**], nota-se uma necessidade de evitar o estig-
dêmicos – como visto anteriormente –, podemos afirmar de forma ime- ma colonial nas práticas cênicas, o que não contribui para a discussão
diatista que se trata de uma prática decolonial. da colonialidade no Brasil, além de, ao mesmo tempo, ser uma forma de
No campo das artes cênicas, essa sensação é reforçada pelas proteção contra tal alcunha, o que denota uma reação antecipada e uma
questões poéticas e estéticas vivenciadas na brincadeira que, de forma maneira de não tocar nas feridas coloniais contidas na área artística.
evidente, possui procedimentos, técnicas e conceitos que desestabi-
lizam os pilares artístico-acadêmicos de arte ocidental, sobretudo no [*] Há alguns anos, as polêmicas sobre trechos da brincadeira denotarem expressões
âmbito do que se convencionou chamar de “multiartista”: aquele/a que racistas, machistas, homofóbicas, além da problemática de um possível recurso de black
face, vêm sendo levantadas em torno do Cavalo Marinho e, por ironia, provindas de
desfila várias habilidades em uma apresentação, como tocar instrumen- artistas-pesquisadores/as, acadêmicos/as e intelectuais. Não abordaremos aqui essas
tos, cantar, atuar, dançar, recitar, improvisar, mascarar-se etc. questões, merecedoras de um trabalho de análise mais direcionado e aprofundado.
No entanto, o dilema é bem mais complicado e contra- [**] Não cabe aqui listar tais referências, pois não há espaço para analisá-las de forma
aprofundada no escopo deste artigo, ficando essa tarefa para uma produção específica.
ditório, e, num mergulho mais prudente e verticalizado sobre o Porém, é possível facilmente consultar artigos em revistas da área, livros publicadose
anais de seminários e encontros temáticos.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

Torna-se muito mais amistoso e palatável se autodenominar decolonial brasileiros: a repetição de fórmulas e de conceitos estrangeiros im-
e desfilar possíveis exemplos práticos do que discutir os problemas es- plantados no país. Na área das artes cênicas, por exemplo, a deco-
cancarados de colonialidade contidos nas práticas cênicas brasileiras.[*] lonialidade deixou de ser uma proposição teórico-reflexiva para se
Lembremos de que o Brasil não participou do grupo latino- tornar uma ferramenta metodológica da qual pululam exemplos
-americano Modernidade/Colonialidade (M/C), fundado nos idos de autorreferenciados de práticas decoloniais.
1990, como nos informa Luciana Ballestrin: Nessa linha de raciocínio, as práticas culturais, como a brin-
cadeira do Cavalo Marinho pernambucano, tornam-se uma moeda
Entretanto, uma questão importante que não povoa o
imaginário pós-colonial e decolonial do Grupo Mo- de passe para que as artes cênicas brasileiras adentrem, tardiamente, o
dernidade/Colonialidade é a discussão sobre e com o mundo decolonial, grande moda acadêmica da atualidade. Porém, não
Brasil. Esse é um ponto problemático, já que a coloni- é preciso tanto esforço para que se perceba que o decolonial das artes
zação portuguesa – a mais duradoura empreitada colo-
nial europeia – trouxe especificidades ao caso brasileiro cênicas, no Brasil, está prenhe de colonialidade, e de forma ainda mais
em relação ao resto da América. O Brasil aparece quase violenta, por trabalhar dentro das “sutilezas retóricas” da academia e do
como uma realidade apartada da realidade latino-a- universo artístico-intelectual, que, muitas vezes, não possuem equidade
mericana. É significativo o fato de não haver um(a) entre o que teorizam e o que, de fato, praticam.
pesquisador(a) brasileiro(a) associado ao grupo, assim
como nenhum cientista político – brasileiro ou não Acreditamos que, antes de nos arvorarmos a nos intitularmos
(BALLESTRIN, 2013, p.111). como decoloniais, deveríamos construir uma prática reflexiva e analíti-
ca sobre como as artes cênicas brasileiras vêm, histórica, metodológica e
O importante argumento registrado por Ballestrin (2013) re- epistemologicamente, se relacionando com as culturas nacionais.
vela duas facetas a levarmos em conta: O que se percebe é que as artes cênicas brasileiras vêm se
1 – Não são sabidas, ainda, as motivações, mas se torna evidente apropriando de uma retórica decolonial de forma superficial e ime-
que não houve interesse da América Latina hispânica em incluir o Brasil diatista, gerando uma sensação muito próxima à ideia de democracia
nas discussões decoloniais do grupo Modernidade/Colonialidade; tam- racial[*], na qual há um discurso perverso de que não há problemas a
pouco houve, do Brasil, esforço e/ou interesse em adentrar ou se integrar serem tratados, uma vez que há um trânsito benéfico e harmonioso
ao movimento, ou mesmo inspirar-se nele para construir um pensamento entre elas e as práticas culturais brasileiras, ambas “originalmente de-
conceitual de contexto nacional, enfocando suas especificidades. coloniais”, o que não confere com a realidade.
2 – Tais especificidades não foram evidenciadas e amadureci-
das sob a lente decolonial no Brasil, e, sobretudo, não houve um mo- À guisa de (in)conclusão:
vimento nacional que ultrapassasse a cópia conceitual e discursiva dos se as Cenas Ficcionais 1 e 2 fossem reais?
hermanos decoloniais, o que gera um processo pouco analítico e produz
uma réplica da postura do M/C, que, por sinal, é bastante sedutora, Neste artigo, trabalhamos com relatos ficcionais sobre possí-
mas também possui suas arestas e seus deslizes[**] e não se adéqua total- veis relações entre artistas cênicos/as e a brincadeira do Cavalo Mari-
mente à realidade colonial brasileira. nho pernambucano. Mas e se essas cenas fossem verídicas? Ou se hou-
Essas constatações óbvias evidenciam procedimentos bas- vesse relatos muito próximos delas? Quais seriam as análises e reflexões
tante conhecidos nos âmbitos artísticos, acadêmicos e intelectuais
[*] “As marcas específicas do colonialismo português explicavam a composição racial
[*] Percebe-se essa mesma postura reativa em relação ao tratamento das questões do das populações coloniais e forneciam um tom cordial à dinâmica viabilizada tanto pela
racismo e do sexismo no Brasil: um país que possui índices alarmantes de assassinato de exploração econômica quanto pelo regime de trabalho escravista. Essas marcas contri-
negros/as e mulheres se autodeclara não sexista e não racista. buíram para a formatação da ideia de democracia racial e a para reforçar uma perspec-
[**] Basta perceber que o M/C é um movimento criado por intelectuais e acadêmicos, tiva que tornava os territórios coloniais portugueses sociedades harmônicas em termos
em sua maioria esmagadora, homens e brancos. raciais” (LIMA, 2012, p. 30).

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES A BRINCADEIRA DO CAVALO MARINHO DE PERNAMBUCO

desses tipos de trânsitos entre esses dois universos? Certamente não seus procedimentos éticos, estéticos, poéticos e, sobretudo, acadêmicos,
seriam consideradas posturas decoloniais. buscando caminhos reflexivos que, realmente, toquem nas chagas deco-
A própria tendência a invisibilizar as bases afro-brasileiras loniais existentes em todos os âmbitos artísticos, sejam eles acadêmicos,
contidas na brincadeira do Cavalo Marinho, atribuindo nomenclaturas intelectuais, de produção e, sobremaneira, de relação com as práticas cul-
que não fazem parte de seu universo, num encaminhamento denuncia- turais afro-brasileiras, diferentemente das Cenas Ficcionais aqui expostas.
do por Tenderine (2003), quando intitula o segundo capítulo de sua E o começo se dá ao se assumir que o Cavalo Marinho não é
dissertação de “Não dar nome ao boi dos outros”, é um fato relevante. commedia dell’arte, não é teatro popular, não é folclore[*], não é teatro do
A autora, no referido capítulo, demonstra a necessidade de Nordeste, mas é, simples e grandiosamente, Cavalo Marinho, uma brin-
criar um diálogo entre os dois mundos em que transita: o acadêmico cadeira afro-brasileira de grande importância para esta nação a partir
e o do Cavalo Marinho, porém com a consciência de que não pode do momento em que deixemos de importar epistemologias e conceitos,
ser autorizada a dizer o que é a brincadeira sem partir de suas próprias como o decolonial latino-hispânico, até porque, no Brasil, o mito da
epistemologias. Da mesma forma, assumimos aqui esse compromisso democracia racial configurou uma forma muito específica de coloniali-
ao discutirmos sobre a noção de brincadeira, que é como se nomeia a dade que precisa ser revisitada de modo crítico.
partir de seus/suas brincadores/as. A noção de práticas culturais vem, Encerrando este artigo de forma espiralar, trazemos novamente a
justamente, nesse lugar de diálogo acadêmico, para referendar o caráter sabedoria congadeira de Martins (1997, p. 24) quando nos rememora que:
ativo e de resistência contido no exercício secular do Cavalo Marinho.
Os africanos transplantados à força para as Américas,
Também expomos que é preciso ter cuidado e cautela com através da Diáspora negra, tiveram seu corpo e seu
a tarja de decolonialidade impressa pelas artes cênicas, tanto para si corpus desterritorializados. Arrancados de seu domus
mesmas quanto para as práticas culturais brasileiras, já que a comple- familiar, esse corpo, individual e coletivo, viu-se ocupa-
do pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se
xidade do colonialismo, no Brasil, não justifica que façamos uma cópia apossou como senhor, nele grafando seus códigos lin-
das reflexões decoloniais da América Latina hispânica, transplantando- guísticos, filosóficos, religiosos, culturais, sua visão de
-as, sem as devidas adequações, ao contexto brasileiro, como reclama mundo (MARTINS, 1997, p.24).
Ballestrin (2013), nem nos isenta de colonialismos cotidianos.
A nosso ver, torna-se arbitrário tratar qualquer prática brasilei- Nesse locus tratado por Martins (1997), insere-se a brincadeira
ra, seja artística ou cultural, como puramente decolonial sem se apro- do Cavalo Marinho de Pernambuco, lugar de reminiscência afro-bra-
fundar nas contradições históricas, pois isso muito mais revela um de- sileira de resistência aos e combate contra os poderes hegemônicos
sejo de omitir a escancarada história colonial das artes cênicas e de sua que castram e oprimem o que não é espelho. Cabe às artes cênicas não
inserção no mundo acadêmico brasileiro do que o interesse em consta- assumirem, mais uma vez, os “emblemas e códigos do europeu”, sob o
tar uma prática colonial recorrente e criticá-la. Por isso, nossa hipótese mascaramento da decolonialidade e transformando as Cenas Ficcionais
aqui – até que se prove o contrário – é de que, em se tratando de Brasil, aqui expostas em realidade cotidiana.
não há artes cênicas decoloniais, assim como as práticas culturais brasi-
leiras também são maculadas com a mentalidade colonial existente em Referências Bibliográficas
todo o sistema que estrutura as sociedades nacionais.
Diante do exposto, acreditamos que o Cavalo Marinho é uma ACSELRAD, Maria. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza
prática cultural afro-brasileira que tangencia questões decoloniais, mas da safadeza: uma abordagem antropológica da estética do Cavalo-ma-
que não é completamente decolonial – e nem poderia ser –, e que as
[*] “Várias expressões culturais do universo cultural afro-brasileiro foram descritas e integra-
artes cênicas, caso queiram se afirmar como decoloniais, precisam rever das ao conjunto da cultura popular e estudadas pelos folcloristas como representativas do
exótico e do pitoresco que conferiam singularidade à cultura nacional.” (LIMA, 2012, p. 35)

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na/detalhes/501/. Acesso em: 24 jan. 2021. tica da religiosidade de umbanda versada na vivência iniciática de uma
das autoras. Para dimensionar a condição de corpo em encantamento
na umbanda, religiosidade que se constituiu a partir do fenômeno afro-
diaspórico brasileiro, trabalhamos com os conceitos de encantamento
do professor filósofo Eduardo David de Oliveira (2005); noção de cor-
po a partir do pensador Muniz Sodré (2017); o conceito de Performan-
ce da Oralitura da professora, atriz e pesquisadora Leda Martins (2003)
e de encruzilhada do pensador, Luiz Rufino (2017).
A noção de artimanha epistemológica desponta nesta pesquisa
como um desdobramento da noção de ebó epistemológico que o autor
Rufino (2017) se propõe a fazer em sua tese de doutorado. O autor
não se utiliza especificamente da expressão “artimanhas epistemológi-
cas”, mas, antes, trabalha com a noção de ebó como uma das artima-
nhas negro-africanas no Brasil. Para ele, “o ebó epistemológico vem a
produzir efeitos de encantamento nas esferas de saber, as positivando

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na perspectiva da abertura de caminhos” (RUFINO, 2017, p. 70-71). um sincretismo religioso formado por elementos indígenas, africanos e
Assim, cunhamos o termo artimanha epistemológica tendo como base o portugueses” (COSTA, 2013, p. 40).
conceito de ebó epistemológico, pois, para o autor em tela, o ebó configu- Por meio desse compilado de ideias de autores diversos acerca
ra-se em uma artimanha. É a partir desse sentido que propomos que o da umbanda, entendemos que os saberes africanos nessa religiosidade
fazer em dança, pautado pelos saberes do terreiro, também se configura podem ser lidos como retrabalhados e reinterpretados para assumirem
como uma estratégia de gerar encantamento dentro das artes cênicas. uma face mais branca, ou, ainda, podem ter sido desconstruídos, como
Em nível de contextualização, a umbanda[*] é considerada uma nos evidencia a autora Fabíola Amaral Tome de Souza (2014).
religião de origem afro- brasileira e apresentada, majoritariamente, por Compreendemos que a ideia de sincretismo, ou seja, uma espé-
aqueles e aquelas que se ocuparam de estudá-la e caracterizá-la, como cie de junção, mistura e/ou fusão de conhecimentos distintos presentes
uma religião sincrética. É a partir desse prisma que ela está simboliza- nessa religião, é uma visão importante, corrente e em alguma medida
da nas informações apresentadas por autores tais como: Ortiz (1978); corrobora esta abordagem. Inobstante, gostaríamos de pensar sobre a
Bastide (1971); Prandi (1998; 2004; 2011) e Costa (2013). Para Basti- umbanda para além do que está versado nesses autores, tomando-a como
de e Ortiz, por exemplo, encontramos uma abordagem sobre a umban- uma das encruzilhadas de Exu em terras brasileiras, pois, assim como este
da como degeneradora dos saberes africanos. Em Ortiz (1978) ela se orixá o é, entendemos que a umbanda pode ser compreendida de forma
consolida a partir do embranquecimento de práticas culturais africanas ambivalente. Exu dentro da religiosidade de umbanda é tanto orixá quan-
e do empretecimento[**] de dogmas kardecistas. Já em Prandi (2004), to entidade[*], ele é considerado o dono da porteira e das encruzilhadas,
ela está caracterizada como “[...] síntese dos antigos candomblés bantu ele rege os caminhos, o movimento, bem como é o mensageiro entre os
e de caboclo transplantados da Bahia para o Rio de Janeiro [...] com humanos e os orixás. Para Martins (1995, p. 56), “Exu simboliza um prin-
o espiritismo kardecista, chegado da França no final do século XIX” cípio estrutural significante da cultura negra, um operador semântico da
(PRANDI, 2004, p. 223). Na busca por circunscrever a compreensão alteridade africana na interseção cultural nos Novos Mundos”. Segundo
dessa religião como sincrética, a autora Hulda Silva Cedro da Costa a autora, ele é o senhor das encruzilhadas, dos sentidos e pluralidades de
(2013) apresenta a umbanda como advinda de um processo religioso, significados e discursos. A partir dessa compreensão religiosa dos senti-
que busca intencionalmente se sincretizar com o intento de consolidar- dos de Exu – ou Exus como algumas análises defendem – e da sua relação
-se como religião brasileira. Segundo a argumentação desenvolvida por com as encruzilhadas, passamos a entendê-lo como multiplicidade de ca-
essa autora, o modo, a forma, a configuração de como essa religiosidade minhos e como ponto a partir do qual podemos nos deslocar para rumos
se encontra hoje é consequência de um processo intenso de branquea- e discursos variados. Essa perspectiva nos concede a licença para exercer
mento que negou progressivamente elementos negros por considerá-los certa liberdade criativa e mediar outras leituras sobre a umbanda.
atrasados e incompatíveis dentro da sociedade moderna brasileira. As- A noção de encruzilhada apresentada pelos autores Rufino
sim, a umbanda, para a autora, articulou intencionalmente uma inter- (2017) e Martins (1997) auxilia-nos nessa compreensão, acima menciona-
mistura de diferentes cultos religiosos, procedimento “que caracteriza da, por meio da qual Exu manifesta a encruzilhada na qualidade do prin-
[*] Para pensar em umbanda é necessário ter em mente que ela é um fenômeno plural cípio de “boca que tudo come”[**], ou seja, são visões diferentes que con-
que congrega diferentes práticas litúrgicas, podendo ser elas africanistas, cristãs, indí-
genas e orientais, aspectos que aparecem em maiorou menor grau e que podem até ser [*] Exu como entidade e não orixá é uma das transformações dessa divindade no Bra-
suprimidos em cada agremiação religiosa. Esse entroncamento de práticasmúltiplas di- sil. Para o autor Nogueira (2014), esse orixá passou por um processo de ressignificação
ficulta pensar em uma única síntese de umbanda, desse modo, ao falarmos desta religião, no “Novo Mundo”, bem como um longo processode hibridação que resulta da opressão
devemosponderar esse aspecto e sublinharmos que o modo como essa religião é aqui te- europeia aos valores africanos. Segundo o autor, esse processo transfiguraExu de divin-
cida diz respeito a como uma das autoras experimenta-a dentro de seu cultivo religioso. dade iorubá nas umbandas para um espírito ancestral (entidade).
[**] Esta expressão “boca que tudo come” refere-se a uma ação de Exu dentro do mito
[**] O movimento de “empretecimento” não resulta para Ortiz (1978) em uma valo- de seu nascimento, no qualsua figura aparece com uma fome insaciável. Neste mito em
rização das tradições negras, e sim de uma aceitação do fato social negro. questão mostra-se a capacidade de Exu em devoraro mundo em sua totalidade.

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vivem em um mesmo espaço e temporalidade, como a boca processando Além dessa noção, trabalhamos também com a ideia de que esse
diferentes alimentos em uma refeição. Em outras palavras, tempo-espaço corpo resulta da perspectiva Nagô[*], pois as filosofias de Exu, tratadas
em que se “[...] processam vias diversas de elaborações discursivas, motiva- neste texto, têm sua origem nessa cosmovisão, que, em Sodré (1988), é
das pelos próprios discursos que a coabitam” (MARTINS, 1997, p. 28). indicada comum às diferentes agremiações religiosas afro- brasileiras,
Na ótica de Rufino (2016), a encruzilhada como lugar aponta para múlti- independente de nomes, visto que nelas se manteve “um conjunto or-
plos caminhos pelos quais a verdade é transformada em dúvida, podendo ganizado de representações litúrgicas, de rituais nagô” (SODRÉ, 1988,
assim existirem diferentes rumos e perspectivas que resultam em abertura p. 51). Esse autor, então, formula uma concepção de corpo como inte-
de caminhos. Nesse sentido “onde Exu come está a se reinventar um novo grado ao ritual e aos procedimentos cosmogônicos, deste modo, “[...]
mundo” (RUFINO, 2016, p. 4). Desde essa perspectiva entendemos a no interior da configuração simbólica dos nagôs o corpo humano é per-
umbanda como lugar onde Exu se alimenta, criando uma pluralidade de meável a mundo histórico e cosmo mítico, exibindo ritualisticamente
manifestações diversas, mas que convergem para um mesmo ponto. esta sua singularidade” (SODRÉ, 2017 p. 141). Para ele, é dentro do
Para Rufino, Exu explora o “entre, dinamizando-se como um ritual que o corpo, a partir de sua corporeidade, encontra sua totalida-
princípio inacabado” (RUFINO, 2017, p. 12). É nesse viés que gostaría- de e experimenta o ecossistema circundante. A corporeidade é, por ele,
mos de abrir a porteira para lermos a umbanda na qualidade de princípio entendida então como “[...] território onde se entrecruzam elementos
vital de Exu, como inacabamento, entroncamento, zona de saberes diver- físicos e míticos, coletivos e individuais, erigindo-se, fronteiras e defe-
sos (afro, ameríndios, cristãos, orientais, kardecistas etc.). No caos desses sas” (SODRÉ, 2017, p. 152). O corpo está, para o autor, intimamente
saberes, lança- se em um cruzo que “risca pontos e traçados entre saberes relacionado com a experiência do sentir.
distintos” (SIMAS; RUFINO, 2018, p. 35), que mobiliza conhecimen-
O sentir é a comunicação original com o mundo, é o
tos africanos para fazer baixar uma pluralidade de conhecimentos outros. ser no mundo como corpo vivo. O sentir é o modo de
Sublinhamos que essa perspectiva não possui o intento de suavizar todo o presença na totalidade simultânea das coisas e dos seres.
processo de opressão e epistemicídio dos saberes negros na umbanda, mas O sentir é o corpo humano enquanto compreensão pri-
mordial do mundo. O homem não é si mesmo por deri-
ampliar a leitura para, através dela, versarmos como uma estratégia de so- vação ou, progressivamente, por etapas. Ele é de vez ele
brevivência, inscrição e reexistência dos saberes negro-africanos em ter- mesmo, estando nele mesmo junto a coisas e a outros,
ras brasileiras. Em tal conjuntura, parece-nos que a lógica do sincretismo na atualidade do mundo. O sentir é a correspondên-
acaba por “[...] continuar a fortalecer uma toada de subordinação racial cia a essa presença [...]. Pelo sentir do corpo, o homem
não está somente no mundo, mas este está nele. Ele é
que conserva a subalternização dos saberes negro-africanos em prol da o mundo (BOULAGA apud SODRÉ, 2017 p. 124).
dominação pelo modelo branco eurocêntrico” (RUFINO, 2017, p. 183).
Dessa forma, a umbanda aqui será vista como princípio de en- É com base no sentir, que é também ser, fazer, praticar, que
cantamento e ancestralidade que, a partir das encruzilhadas, reivindica Sodré (2017) demonstra – nos que o saber não é apenas adquirido, ele é
“no não esquecimento a potência de avivamento, reinvenção e inacaba- concretizado pelo sentir, é incorporado. É desde esse entendimento que
mento do ser” (RUFINO, 2017, p. 51). O corpo, na umbanda, será aqui traçamos a experiência do corpo na umbanda.
abordado como resultado de múltiplos cruzamentos que se despontam Para melhor circunscrevermos essa perspectiva, gostaríamos
como encruzilhada e como a própria incorporação do saber de Exu. En- de estabelecer um paralelo com a noção de performance da autora Dia-
tendemos que, em face dessa premissa, o corpo que foi encantando, o
corpo perspectivado pela filosofia e corporeidades afrodiaspóricas de cultivo religioso de umbanda. É o tempo-espaço onde o Orum (invisível) e o Aiyê
um terreiro[*] de umbanda, pode elaborar suas inscrições no mundo. (visível) se cruzam para encantar o mundo e fazer viver saberes afrodiaspóricos.
[*] Nagô é o modo como os negro-africanos que falavam a língua iorubá eram chama-
dos no Brasil. Esse termo caracteriza a população negra escravizada vinda de países da
[*] Terreiro refere-se ao espaço físico onde os adeptos encontram-se para realizar o África Ocidental por meio do tráfico negreiro.

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na Taylor (2013). Ela entende performance “como atos de transferência atravessaram a calunga grande[*], e que é revivida, cruzada e reelaborada
vitais” (TAYLOR, 2013, p. 27). A referência aduz a atos que têm no com o intento de forjar meios para fazer viver suas sapiências.
corpo a transmissão e continuidade do conhecimento, a um modo de Com base no conceito de performance da oralitura, entende-
aprender que tem sua transmissão em uma ação incorporada, ou seja, o mos que o que se repete no corpo em performance, dentro da umban-
conhecimento e a memória não possuem o centro de sua transmissão da, pode ser lido como conhecimento, retradução de fazeres/saberes
apenas em arquivos fixos, não estando, por exemplo, centrados na leitu- da memória africana em diáspora, assim como espaço-tempo em que
ra de um determinado material físico para que ocorra a transferência do a ancestralidade é restituída e esculpida. Inferimos ancestralidade com
saber, mas têm no corpo o local de transmissão de saberes. Assentes nes- base no autor Oliveira (2005; 2012), ancestralidade como espaço-tem-
sas noções compreendemos que o corpo em performance, na umbanda, po da experiência negra afrodiaspórica, que, em movimento, exerce um
é repertório e arquivo de saberes afro-brasileiros, o qual, por meio do elo, uma conexão, um cordão umbilical entre diferentes tempos-espa-
sentir, do encantamento, da encruzilhada e da performance da oralitu- ços “ao mesmo tempo, em que desenha a teia da experiência” (OLI-
ra, características instituídas pela performance dos corpos afrodiaspó- VEIRA, 2005, p. 331). Essa noção de ancestralidade, trazida por esse
ricos brasileiros, forja a transmissão, reexistência e inscrição de saberes. autor, encerra em seu núcleo entendimento de encantamento, pois am-
Neste ponto, trazemos também para compor a análise o con- bos os conceitos acontecem em concomitância, fazendo com que as ex-
ceito de performance da oralitura de Leda Martins (2003). A autora periências de encantamento sejam configuradas como experiências de
trabalha a noção de que, no domínio dos rituais afro- brasileiros, as ancestralidade. Nesse sentido, o corpo que se submete ao encantamento
epistemologias negro-africanas estão inscritas na performance do corpo experiencia sua ancestralidade e performa a oralitura.
e, ao performar, é transmitido e reelaborado o conhecimento, estando, O termo encantamento é utilizado neste texto como um
segundo ela, o saber grafado no corpo. Desde essa premissa, ela expõe a modo de ver a realidade, uma “lente” para enxergar o mundo. Tal no-
noção de “corpo-palavra”, “[...] portal que, simultaneamente, inscreve e ção, proposta pelo filósofo Eduardo David de Oliveira (2005), enseja
interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e certa compreensão de uma semiótica do encantamento, definição que
conteúdo, local, ambiente e veículo da memória” (MARTINS, 2002, p. desponta alicerçada na experiência de matriz africana e que é ressalta-
89). Ou, dito de outra forma, segundo a mesma autora, performar sig- da pelo autor como condição de recriadora do mundo, bem como de
nifica “[...] inscrever, grafar, repetir transcriando, revisando, o que repre- diversidade de mundos. Essa semiótica, segundo o filósofo, manifesta
senta uma forma de conhecimento potencialmente alternativa e contes- um olhar que está germinado no território da ancestralidade, no solo
tatória” (MARTINS, 2002, p. 89). Assim, Martins (2003) ressalta que do mistério e revela o corpo visível como “o sinal do invisível no corpo”
o corpo restaura, expressa e produz conhecimento, estando relacionado (OLIVEIRA, 2005, p. 128). Diante do exposto, compreendemos que
ao termo banto ntanga, palavra que origina os verbos escrever e dançar, o encantamento pode ser lido como metodologia de sensibilização do
usados por ela para dimensionarem a possibilidade de existência de ou- olhar que permite àquele que foi encantado criar mundos para relacio-
tros modos de inscrição do conhecimento a partir do corpo. Em síntese, nar-se com seus antepassados e sua ancestralidade.
utilizamos o conceito de “performance da oralitura” para instituir que as Rufino (2017), refere-se aos modos como os saberes negro-africanos no Brasil sobre-
sapiências negras, na umbanda, estão inscritas no corpo e na performan- vivem, são praticados e versados na diáspora, em outraspalavras, são um conjunto de
ce do adepto por meio da liturgia do terreiro, o que significa dizer que repertórios que se dá por meio da resistência/invenção de múltiplos conhecimentos
que escapam do repertório do poder do colonizador.
as performances vividas pelos adeptos podem ser lidas como “repertório [*] Calunga grande é uma expressão que trata o oceano atlântico, que foi atravessado
e arquivo” (TAYLOR, 2013) de conhecimentos de uma gramática do pelos negros em situação deescravização, como um grande cemitério. No entendimen-
encante[*], que chega em terras brasileiras grafada nos corpos negros que to do autor Rufino (2017), ele não é apenas um cemitério, mas uma encruzilhada e
elemento propulsor do não esquecimento. Em suas palavras “Para aquelesque atraves-
saram a calunga grande ficam as memórias de outro tempo a serem reivindicadas para
[*] A noção de gramática do encante, utilizada com base no entendimento do autor substanciar a invenção de uma nova vida” (RUFINO, 2017, p. 39).

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Abordaremos a seguir como as experiências de encantamento, que se manifestam nesta pesquisa matizados pelas discussões concei-
performance da oralitura e ancestralidade se manifestam no experimen- tuais e dados históricos até então apresentados. São eles: encantamento,
to performático intitulado Corpo-Nanã. Deslocaremos esses conceitos performance da oralitura e encruzilhada. Entendemos que essas noções
da dimensão estritamente religiosa para pensá-los como disparadores operam em simultaneidade no seio dessa religiosidade e, nesta ocasião,
teóricos de outros modos de se pensar e experimentar processos de cria- vamos separá-las apenas com o objetivo metodológico de melhor abor-
ção e saberes no campo da dança como prática artística. dar as minúcias de cada uma, bem como o exercício analítico. A ideia é
a de tomar esses três aspectos, como camadas, para pensarmos sua ope-
Corpo na encruzilhada: disparadores de criação ração dentro do experimento Corpo-Nanã, que, por sua vez, dialoga
com princípios ou dimensões abordadas em Corpo e Ancestralidade, da
Consideramos importante pontuar que este texto está sendo autora Inaycira dos Santos (2002; 2008).
escrito com as quatro mãos de duas mulheres afrodescendentes, uma ne- Propomos, como alude Inaycira Falcão dos Santos, que as ex-
gra e outra parda, ambas artistas da cena, sendo uma das autoras também periências elaboradas estejam pautadas “[...] nos aspectos da experiência
praticante da religião umbanda em um terreiro na cidade em que vive. mítica; da tradição oral, das matrizes corporais ancestrais, na interação
Diante dessa informação, ressaltamos que este texto também com a história do intérprete” (SANTOS, 2008, p. 2). Assim, a proposi-
se desenvolve a partir de uma pesquisa encarnada. Entendemos por pes- ção de experimento comporta tais aspectos e busca instituí-los segundo
quisa encarnada “[...] aquela investigação que considera o corpo como um pensamento de criação em dança firmado na performance da orali-
um lugar privilegiado para fazer pesquisa. As implicações corporais da tura, da experiência de encantamento e noção de encruzilhada. Enten-
pesquisadora fazem com que emerjam os modelos culturais implícitos demos que a proposta de um processo criativo, que tem como base a
que atuam na pesquisa” (MANFRINI & CIMA, 2016, p. 462). As- memória de uma adepta-artista, de suas vivências do terreiro, apresenta
sim, sustentadas em nossa condição de mulheres afrodescendentes e da distintas encruzilhadas para o fazer cênico, estabelecendo outros prin-
imersão de uma de nós nos mistérios da umbanda como religiosidade, cípios, enunciados, éticas e cosmovisões para o corpo que dança. Nesta
fazemos as reflexões da experiência de criação com base em saberes do pesquisa, o corpo-artista e o corpo-religioso se encontram na relação
terreiro. Buscamos, em síntese, matizar os conceitos aqui apresentados com o sensível, pois é desde o sensível, referência a Sodré (2017), que o
com o fazer artístico, na busca por pensá-los/experimentá-los como re- corpo no pensamento Nagô é concebido. Essa forma de entendimento
ferência para a criação artística. É ainda relevante evidenciar que não nos induz a conceber que o corpo do artista, em cruzo com as práticas
tencionamos fazer um uso instrumental dos saberes da religiosidade iorubás, faz pujar o sensível, e é nessa condição que se elabora uma aber-
para criar preceitos, exercícios ou mesmo a mimetização da experiência tura para a criação, que é erigida alicerçada nas sensações, nos sentidos e
religiosa para a criação artística. Mas, isto sim, gostaríamos, desde de- na apreensão do mundo, aspectos que inferimos ter seu acontecimento
terminados preceitos e práticas da umbanda vivenciados por uma das no tempo-espaço do corpo do experimento Corpo-Nanã.
autoras, como já foi assinalado, tecer relações possíveis entre modos Os diferentes modos de cultivo do corpo, que estão fundamen-
performáticos distintos, que têm em comum o fato de se instituírem tados na prática da religiosidade da umbanda, podem suscitar questiona-
no e pelo corpo, e, a partir daí, inventar outras experiências de criação mentos de ordem ética. Podemos assim perguntar o que pode ser encena-
artística, quiçá com referências corporais menos colonizadas e prenhes do e quais os limites do uso dos conhecimentos do terreiro. Questões, por
desses saberes oriundos de um legado de corpos negros afrodiaspóricos. exemplo, que se fizeram presentes em todo o processo desta investigação
Assentes pela prática religiosa, em um terreiro de umbanda, e que foram extremamente importantes para delinearmos algumas com-
na cidade de Porto Alegre, pudemos identificar que os saberes/fazeres preensões de nossa atuação como pesquisadoras. Não com a intenção de es-
realizados pelos adeptos podem ser dimensionados por três conceitos, gotarmos as respostas a tais perguntas, discorreremos doravante sobre elas.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O CORPO EM ESTADO DE ENCANTAMENTO

Por tratar-se de uma pesquisa que acontece atravessada pela re- pelo propósito (ou anelo) de aproximar essa orixalidade e seu mito à
ligião de umbanda, coube à autora, que é também iniciada e praticante sua própria vida. O mito em questão tem correlação com uma histó-
dos mistérios do terreiro, consultar o sistema oracular de Ifá[*], assim ria de sua família, e semelhante aspecto de correspondência foi fulcral
como a seu Pai de Santo na qualidade de seu guia espiritual. O intuito para escolhermos tanto o local quanto a orixá para a experiência/análise
foi o de saber se era possível uma investigação que se propõe imbricada de um corpo religioso em experiência artística. Esse experimento nos
ao fazer religioso e quais seriam os limites desse cruzamento. Nessa con- permitiu perceber a operação do conceito de performance da oralitura
sulta, recebemos autorização para o desenvolvimento da pesquisa, ten- como uma extensão do saber recebido pela prática vivencial do terreiro,
do sido apontado pelo Pai de Santo que os “saberes/fazeres passados em que formulou a subjetividade do próprio experimento.
iniciação individual, não devem ser utilizados em práticas artísticas”[**]. A escolha pela orixá Nanã delineou a seleção do ambiente da
Em suas palavras, “[...] se há caráter e ética, respeitando a tradição, no performance, os manguezais, o que permitiu instituir outra potência
caso a Religião Tradicional Yorubá, a resposta só pode ser sim”[***], para de relação com o movimento. Essa experiência foi pautada no sentir
a realização de trabalhos artísticos que se proponham respeitar essas do corpo, ou seja, na interação com a lama, com a chuva, com as tex-
divisas. Em outras palavras, ele ressalta que “[...] há que se realçar os turas, com os cheiros, os sons, bem como com as memórias do terreiro
valores e atributos espirituais vinculados à expressão do corpo, tão caros e mitologias. Esses pontos criaram uma compreensão outra a respeito
à cultura Yorubá e um tanto ausentes na repressora cultura ocidental da organização do corpo, desde a relação com essa orixalidade. Foi as-
predominante, notadamente judaico cristã”[****]. sim que sucederam alterações da ordem do tempo da movimentação,
Entendemos, desde as falas do Pai de Santo, que aquilo que nos do peso do corpo, do contato do corpo com o solo e da nivelação do
autoriza também nos compromete com o que vai ser escrito e dançado. corpo no espaço de realização dos movimentos.
Nesse horizonte, os saberes e a ética do terreiro, que perspectivam o Com base na relação do corpo, perspectivado por essa orixá,
modo como realizamos este experimento, não buscam infringir o se- com o mangue, com o tempo, com o espaço e com o fluxo de movi-
gredo e o mistério próprio dessa religiosidade, uma vez que, como já mento, pudemos vislumbrar diferentes modos de realização dos ges-
foi dito, nossa intenção nunca foi a de fazer um uso instrumental dos tos, interação com o sentir e com o imagético que o ambiente propi-
elementos religiosos e tampouco expor o rito. ciou. Das concepções de encantamento, oralitura e encruzilhada, que
A investigação performática Corpo-Nanã aconteceu em ja- aqui são conceitos que provêm o corpo a partir de uma rede comple-
neiro de 2020, na cidade de Alcântara, Maranhão, local escolhido por xa de memória e estados corporais do terreiro, percebemos que esse
dispor em seu litoral de uma grande porção de manguezais, ecossistema corpo, versado nos mistérios do terreiro, quando se lança no espaço-
costeiro localizado entre os limites dos biomas aquáticos e terrestres, -tempo da criação em dança, tendo como fruto de sensibilização, sua
espaço-tempo essencial ao considerar a orixá Nanã como constituido- vivência no terreiro, organiza-se, opera e seleciona seus estímulos sen-
ra desse experimento. A escolha por essa orixá deu-se pela relação com sório-motores de forma muito diversa daquelas às quais estava acos-
as histórias de Nanã[*****] escutadas no terreiro por uma das autoras, e tumado. Ao mesmo tempo, parece conectar-se com as experiências
[*] Ifá é o orixá que compõe um complexo sistema divinatório, é o senhor da sabedo- do terreiro sem acioná- las literalmente. Ou, dito de outra forma, na
ria, aquele que conhece o destino e nos aconselha como agir perante a vida. hipótese aqui defendida a partir dessa experimentação, a vivência do
[**] Trecho extraído da conversa de uma das autoras com o Pai de Santo no dia 6 de terreiro pode funcionar como potência que faz acionar e/ou instaurar
abril de 2020.
[***] Trecho extraído da conversa de uma das autoras com o Pai de Santo no dia 6 de determinados estados corporais num espaço de criação com referên-
abril de 2020. cias que do mesmo modo remetem ao terreiro.
[****] Trecho extraído da conversa de uma das autoras com o Pai de Santo no dia 6 de
abril de 2020.
[*****] Nanã é uma das orixás ligadas à criação do corpo humano. Na mitologia iorubá que um dia tomará de volta para si, dessa forma é conhecida como a senhora da lama,
ela aparece como a orixá que concedeu a poção de lama que molda nossos corpos e das terras úmidas e das fronteiras entre a vida e a morte.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O CORPO EM ESTADO DE ENCANTAMENTO

Figuras 1 e 2 – Experimento Corpo-Nanã. Fonte: Arquivo pessoal das nização do corpo e permite que este possa se mover por outras gramáticas
autoras. de sentido, criando frestas e outras vias de percepção. Ainda que de forma
bastante incipiente, esse experimento nos remeteu a uma artimanha, es-
tratégia, estratagema epistemológico em dança, que, ao se forjar atraves-
sado por sapiências emergidas desde os saberes da umbanda, indica-nos
quiçá uma possibilidade de ressignificação da nossa própria ancestralida-
de, apontando-nos um caminho de reflexão acerca das vivências perfor-
máticas em dança, emanadas dos saberes do terreiro.
Dando seguimento à reflexão que nos propomos, dimensio-
namos o encantamento, encruzilhada e oralitura como parte do ex-
perimento performático, isto é, nesta pesquisa trabalhamos com essas
noções desdobradas da vivência na umbanda, para se experimentar
outros modos, a nosso ver, de se pensar e criar dança. Neste ponto de
nossa pesquisa, chegamos ao entendimento de que tais noções dentro
da criação propõem um imaginário, uma subjetividade que dá base à
experiência performativa no mangue. O encantamento, como o espa-
ço-tempo visível e invisível onde se instaura o mistério e a magia da reli-
gião, concede-nos uma lente para ver o sensível, abrir-nos aos sentidos e
assim aprender com nossa ancestralidade. Já a noção de encruzilhada é
compreendida como território no qual diferentes saberes encontram-se
e são cruzados. Tal entendimento nos permite investigar um corpo que
transita por diferentes corpos. Por fim, o conceito de oralitura, como
meio onde os saberes negro- africanos continuam a ser perpetuados,
constituídos e inscritos no corpo, permite-nos encontrar os rastros da
Fonte: Arquivo pessoal das autoras. performance ritual da umbanda dentro do experimento performático.

No experimento Corpo-Nanã (Figuras 1 e 2), ao passo que o Considerações Finais


mangue é um estímulo com sua biodiversidade, crustáceos, pássaros, ár-
vores e densidade modificada do chão, por exemplo, é também o espaço Intuímos que o processo de descoberta de potências de criação
da natureza que contém as memórias, imagens e sensações corporais que artística em dança a partir dos saberes de uma religiosidade como a da
remetem a Nanã. Intuímos que essa noção é fundamental para entender umbanda, com suas múltiplas implicações, saberes, vivências, crenças,
que os estímulos sensórios experienciados nesse espaço captam estados etc., é algo bastante complexo, demorado e, ao mesmo tempo, impon-
corporais de vivência do sensível do terreiro, bem como do próprio expe- derável, sobretudo quando o intuito é o de tomar a experiência como
rimento performático. À vista desta investigação, o mangue, repensado a potência de experimentação e pensamento. Nesta análise, buscamos
partir do espaço mitopoético de Nanã, resulta em um lugar de criação de compartilhar uma pequena centelha dessa experiência por meio da qual
outras potências corporais, seja pela alteração da força gravitacional do pudéssemos evidenciar essas ideias que têm nos movido e inspirado no
corpo ou pela subjetividade que ele faz emergir da orixá. O mangue per- campo da pesquisa e criação em dança.
mite-nos acessar uma mobilidade subversiva, pois provoca outra reorga-

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O CORPO EM ESTADO DE ENCANTAMENTO

Percebemos, desde o experimento que as poéticas do corpo, Referências Bibliográficas


que emergem dos saberes do terreiro, podem ter nas mitologias, cantos
e dança seu assentamento. O corpo encantado, dentro do processo de BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. v. 1. São Paulo:
criação, tem o potencial de forjar uma relação simbiótica com tais sabe- EDUSP, 1971.
res e com o espaço onde é dado o experimento, podendo assim desdo-
COSTA, Hulda Silva Cedro da. Umbanda, uma religião sincrética e
brar certa transcendência, que culmina em um estado de encantamen-
brasileira. 2013. 175 f. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) –
to, este que subverte a noção de um corpo hegemônico na dança. No
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2013.
limite, constatamos que uma filosofia do encantamento (OLIVEIRA,
2005) pode orientar um fazer em dança à medida que esta filosofia seja MANFRINI, Daniele Beatriz; CIMA, Rosanna. Pesquisa encarnada
capaz de direcionar-se a uma percepção da ancestralidade, que impele e ‘Partir de si’: a articulação teórico-metodológica na narrativa de mu-
a um tratamento não dual do corpo, ao mesmo tempo que nos convida lheres sobre o Ato Público ‘Somos todxsAdelir’ (Florianópolis, 2014).
a sentir e a ler as gramáticas de encante que se manifestam no que está Revista de História Regional, Ponta Grossa, Universidade Estadual de
sendo experienciado. As gramáticas do encante são da ordem de estra- Ponta Grossa, v. 21, n. 2, p. 459-484, 2016. Disponível em: <http://dx.
tégias de sobrevivência dos saberes negro-africanos no Brasil. Elas nos doi.org/10.5212/rev.hist.reg.v.21i2.0007>. Acesso em: 02 set. 2020.
apontam, nesta pesquisa, para a performance da oralitura, o encanta- MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva,
mento e a encruzilhada como estratégias às noções colonizadas e colo- 1995.
nizadoras dentro das artes cênicas. Entendemos que essa tríade tem o MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosá-
potencial de forjar a situação de um corpo encantado em cena, este que rio no Jatobá. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
tem nos sentidos e no sentir sua enunciação. Visto de outro modo, o
corpo encantado somente acontece em interação com essas noções, ou MARTINS, Leda Maria. Performance do tempo espiralar. In: RAVE-
seja, forja-se um jogo sutil por meio do sensível com aquilo que circun- TTI, G.; ARBEX, M. (Org.). Performance, exílio, fronteiras: errâncias
da o corpo. Esse corpo encantado é o corpo da ordem da encruzilhada, territoriais e textuais. Belo Horizonte: Departamento de Letras Româ-
melhor dizendo, um corpo que experiencia o entrelaçamento e o en- nicas UFMG, 2002. p. 69-91.
troncamento das multiplicidades de leituras de mundo. Ao ler a partir MARTINS, Leda Maria. Performances da oralitura: Corpo, lu-
da experiência Corpo-Nanã, vemos este corpo como acontecimento gar da memória. Letras, Santa Maria, UFSM, n. 26, p. 63-81, jun.
de múltiplas possibilidades e devires, um corpo que acontece síncrono 2003. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/letras/article/
com o próprio mangue, em última instância, podemos dizer que ele é view/11881/7308>. Acesso em: 01 dez. 2018.
corpo do trânsito, do relacionamento, corpo-exu.
Visto sob tal perspectiva, o corpo encantado convida-nos qui- NOGUEIRA, Leo Carrer. Exu no “novo mundo”: o processo de hi-
çá a uma descolonização do corpo, a uma exunização, que nos lança a bridação cultural da umbanda na diáspora africana. Elisee: Revista de
criar para escutarmos nossos ancestrais, para contarmos nossas memó- geografia da UEG, Anápolis, v. 3, n. 1, p. 116-134, 2014.
rias, para nos apropriarmos do passado e despacharmos aquilo que não OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade: corpo e
faz sentido. Ao fim e ao cabo, para aprendermos a olhar a realidade pelo mito na filosofia da educação brasileira. 2005. 352 f. Tese (Doutorado
avesso e acrescentar novas saídas e possibilidades para o que está posto. em Educação) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2005.
Entendemos que uma artimanha epistemológica em dança incorpora
OLIVEIRA, Eduardo David de. Filosofia da ancestralidade como filo-
a ancestralidade e os imensos ruídos de uma história que diariamente
sofia africana: Educação e cultura afro-brasileira. Revista Sul-America-
reitera o epistemicídio e a morte de determinados saberes.
na de Filosofia e Educação, n. 18, p. 28-47, maio-out. 2012.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES

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PRANDI, Reginaldo. O Brasil com axé: candomblé e umbanda no
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RUFINO, Luiz. Exu e a Pedagogia das Encruzilhas. Seminário dos docente, escritor e artista cênico
Alunos PPGAS- MN/UFRJ. Rio de Janeiro, 2016.
Introdução
RUFINO, Luiz. Exu e a pedagogia das encruzilhadas.2017. 231 f. Tese
(Doutorado em Educação) – Universidade do Estado do Rio de Janei-
A gênese da presente pesquisa se deu como fruto de um pro-
ro, Rio de Janeiro, 2017.
lífico processo iniciado no ano de 2014, por ocasião dos encontros e
SANTOS, InaicyraFalcao dos. Corpo e ancestralidade: uma proposta debates realizados em torno do preparo do livro Sambo, logo penso –
pluricultural de dança- arte-educação.Salvador: EDUFBA, 2002. afroperspectivas filosóficas para se pensar o samba (2015) no qual parti-
SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade; ressignifica- cipo como autor. Tendo encontrado resultados relevantes, do ponto de
ção de uma herança cultural. Anais ABRACE, Salvador, v. 9, n. 1, 2008. vista filosófico, no artigo que redigi para a citada obra (“Arqueologia do
samba enquanto arqueologia do poder”), interessei-me cientificamente
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência en- na defesa de uma correlação entre o samba e as potências do corpo e
cantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018. do pensamento. Na época do artigo, o recorte argumentativo centrava-
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. -se na região da Praça Onze, enfatizando o protagonismo negro de Tia
Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 1988. Ciata na fundação e difusão do samba.
No entanto, pela necessidade de atualizar a pesquisa, desviei a
SODRÉ, Muniz. Pensar nagô. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, perspectiva territorial, saindo do Centro do Rio de Janeiro para a Zona
2017. Norte, mais precisamente para a região de Madureira, onde se encontra
SOUZA, Fabiola Amaral Tomé de. A umbanda Brasileira e a descons- a comunidade da Serrinha, outra importante matriz do samba carioca.
trução de uma memória coletiva africana. Revista História UEG, Aná- Em vista da significância cultural dessa localidade, levantei o seguinte
polis, v. 3, n. 1, p. 143-162, 2014. problema: que movimentos foram necessários para o samba se consti-
tuir como expressão na Serrinha, uma comunidade negra composta por
TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória migrantes marcados pelo passado colonialista?
cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. No esforço de dar conta da pergunta traço o objetivo geral da
pesquisa, que é compreender a dimensão da descolonização enquanto

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O SAMBA NA SERRINHA E SEU DEVIR EXPRESSIVO

um devir ontológico e expressivo do negro. Por girar em torno de ques- possíveis que serei possam ser negados, tanto por mim quanto por outros,
tões conceituais (“ser”, “consciência”, “devir”, “território” e “corpo”) não mas sempre em virtude de alguma consciência capaz de dizer “não”.
poderia deixar de me sustentar em referências filosóficas que já acompa- O ser da consciência é a liberdade porque só a consciência é capaz
nham minha pesquisa. Por isso, agrego ao artigo as análises ontológicas de fundar o “nada” sobre um fundo de ser. É disposição exclusiva da cons-
feitas por Sartre e Fanon e complemento-as com a geofilosofia de De- ciência a capacidade de negar a positividade do ser, alterando sua natureza
leuze e Guattari, por acreditar que a descolonização se trata de um pro- imediata. A condição de estar consciente reclama que “eu capte minha li-
blema do ser-negro, por isso uma afro-ontologia, em devir pela terra. berdade como possível destruidora daquilo que sou, no presente e futuro.
Além disso, a fim de criar o elo entre o conceito e a práxis, a me- Ou seja, preciso situar-me no plano da reflexão” (SARTRE, 2011, p.81).
todologia precisou abranger autores que desenvolvem textos em torno do Ao refletir sobre as possibilidades de destruir o eu imediato (o meu e dos
campo epistemológico do samba e da música popular, destacando o veio outros) e desviar o sentido futuro do ser em devir, por consecução, o ser
histórico (Rachel Valença e Suetônio Valença), o veio técnico (Tinho- passado posiciona-se e vincula-se a uma promessa do ser presente, a saber:
rão) e o veio estético (Wallace Lopes, Renato Noguera e Filipi Gradim). não ser mais o que era para, no futuro, não ser nada mais do que isso que a
A primeira seção do artigo abordará a constituição da cons- liberdade foi condicionada a fazer, ou seja, a negação de um passado.
ciência do ser-negro em sua angustiante liberdade. Em seguida, apre- Entre passado e futuro, o ser é instado, pela situação em que existe,
sentarei o modo territorializante que o ser-negro utiliza no exercício da a agir. No entanto, como está estreitado por esses dois blocos do tempo que
liberdade frente ao processo de descolonização, demonstrando que ele constituem um “ido” e um “ainda-por- vir”, o ser existe em angústia. Quan-
pode ser expressivo e dimensional. Na terceira seção, apresentarei como to a isso, revelou Sartre: “na angústia, capto-me ao mesmo tempo como
o ato de territorializar forma no corpo do ser-negro a expressividade totalmente livre e não podendo evitar que o sentido do mundo provenha
sambista. Na seção final, analisarei o fenômeno sambista na Serrinha, de mim” (SARTRE, 2011, p.84). Deixar de ser o que era no passado para
enquanto paisagem virtual, ou seja, considerando a marca expressiva se tornar outro no futuro constitui um movimento angustiante em que a
deixada pelo ser-negro a partir de sua articulação criativa com os meios. liberdade é forçada a se posicionar diante do nada, deixando sempre a ação
em suspense, dependendo de o próprio ser para que ele se capacite a fundar
De espectador a ator: devir afro-ontológico uma negatividade inexistente, a não ser por causa da liberdade.
Repousa-se sobre o ser-negro nossa investigação presente. Por
No respeitante ao “ser” do homem, à sua “identidade consigo isso, a primeira parte do artigo nos serve para compreender que não
mesmo” (SARTRE, 2011, p.57), afirmamos dois aspectos ontológicos podemos prescindir de uma ontologia para que lancemos olhar para o
basilares: a) que ele é um existente; e b) que existe sob a forma de consciên- problema do negro e não do problema do ser humano em geral. Mister
cia. Existir é um modo de ser frente ao nada (SARTRE, 2011, p.58). Des- faz-se relevante que, antes de tudo, partamos de uma afro-ontologia que
sa relação de enfrentamento, resulta a consciência; ela “deve existir como considera, em primeiro plano, a tomada de consciência relativa à exis-
consciência de liberdade”, pois “a liberdade é o ser da consciência” (SAR- tência de um ser determinado, que é o ser-negro, condicionado que está
TRE, 2011, p.83). Estar cônscio de si significa se reconhecer livre existen- pela consciência, pela liberdade, pelo nada e pela angústia.
te, posicionando-se enquanto um fenômeno no tempo capaz de não-ser. Quais são as pretensões da afro-ontologia? Apenas circundar a
Sartre declarou: “na liberdade, o ser humano é seu próprio passado (bem esfera do ser negro, traçando sua relação temporal e negativa com o passa-
como seu próprio devir) sob a forma de nadificação” (SARTRE, 2011, do e com o futuro? Ou de descrever a maneira como a liberdade do ser da
p.72). Significa que o passado e o futuro do ser podem não-ser mais, quer consciência infesta de “nada” o mundo, o ambiente? Seria insuficiente de
dizer, que “o que fui” pode ser negado, na mesma proporção em que o “o nossa parte esperar resultados definitivos espreitando apenas esse ponto.
que serei”. Liberdade implica permissão para que os possíveis que fui e os Havemos, então, de requerer uma coisa. Em virtude do que o ser-negro –

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O SAMBA NA SERRINHA E SEU DEVIR EXPRESSIVO

tendo em vista as chamadas do mundo – sente roçar o ser da consciência O devir ontológico toma forma no processo de descolonização na
e o impulso espontâneo pela liberdade? A resposta não se encontraria em medida em que “é a criação de homens novos” (FANON, 1961, p.31). A
Sartre, por exemplo – que não era negro – mas, sim, em um autor negro consciência, inquieta frente à possibilidade libertadora do não-ser, acossa
que estivesse apto para tais atribuições. Esse autor é Frantz Fanon. o existente a se permitir introduzir um “nada” no seu ser e no ser do outro.
Na importante obra Os condenados da Terra (1961), Fanon Movido pela angústia, o negro deixa de ser colonizado e, o branco, de
desfia uma bojuda e emaranhada teia formadora do conceito de des- ser colonizador. Na verdade, tamanha “mudança existe em estado bruto,
colonização. Mesmo que dotado de espessura histórica que compõe a impetuoso, constrangido, na consciência e na vida dos homens e mulhe-
longa trajetória da sociedade como um todo, a abordagem desse con- res colonizados” (FANON, 1961, p.31). A mudança do estado de ser se
ceito está longe de ter sido concluída ou esgotada. Para Fanon, inclu- converte em vontade firme, em necessidade, e nutre no espírito do coloni-
sive, esse conceito representa tábua rasa, pois sua constituição requer zado razões para arregimentar forças na direção de um ato de violência, o
que atravessemos os fatos, que furemos seu véu e alcancemos a lógica único capaz de mover os alicerces do meio social. Fanon advertiu: “não se
que se entranha neles. Ou seja, que façamos filosofia. desorganiza uma sociedade (...) se não se estiver decidido, desde o princí-
Decerto a descolonização mostra-se como “aparecimento de pio, desde a formulação do próprio programa, a vencer os obstáculos que
uma nova nação, instauração de um novo estado, as suas relações diplo- se encontrem no caminho” (FANON, 1961, p.32).
máticas, a sua orientação política e econômica” (FANON, 1961, p.30). O devir que modifica o estado do ser-negro provoca “um esta-
Descolonizar é abalar o curso do mundo. No plano externo dessa de- lido no mundo colonial” por “converter a história em ação”, fazendo o
sordem, tudo parece exitoso com respeito ao projeto de descolonização. colonizado “penetrar” nas “cidades proibidas”, quer dizer, nos territó-
Os sinais são notórios: o negro não vive mais acorrentado, por exemplo. rios inacessíveis ao dominado e legítimos apenas ao branco livre (FA-
Há uma aparência de liberdade. “A descolonização”, disse Fanon, “não NON, 1961, p.36). Sem “abolir uma zona” (FANON, 1961, p.36), sem
passa nunca despercebida, dado que afeta o ser, modifica fundamen- enterrá-la, não se efetiva o fim da descolonização, apenas se perpetua a
talmente o ser” (FANON, 1961, p.31). Na descolonização, ocorre a relação angustiante de um existente passivo e dominado, cuja consciên-
“substituição de uma ‘espécie’ de homens por outra ‘espécie’ de ho- cia livre não conseguiu plenamente negar o passado do ser.
mens” (FANON, 1961, p.30). Manifesta-se um devir, uma modificação
do ser que se objetiva na forma de uma situação nova que se coloca ao O ser-negro territorializante, dimensional e expressivo
ser. Sendo de um negro, esse devir será um afrofuturo, uma afropossibi-
lidade nascente da angústia de engajar seu próprio ser pela via do nada. Fanon ressalta em Os condenados da terra (1961) que a força do
O ser-negro que, no passado, “era” colonizado, em função de ser-negro consciente da liberdade é ativada para promover efeitos irrever-
uma tomada de consciência, de uma angústia frente aos possíveis, de síveis na estrutura. Decerto sua tarefa não é simples, já que urge desbara-
uma arrancada no quietismo e no imediatismo do ser, deixa de ser para tar certa ordem arraigada na sociedade, isto é, “desviar o mundo colonial”
se tornar outro. A potência do nada se impõe pela consciência e a modi- (FANON, 1961, p.36). Baseada em uma “afirmação desenfreada” do exis-
ficação, o devir, realiza a promessa do passado do ser, que almejava não tente, a partir de uma região negativa do ser; região capaz de dizer “não
ser mais o que era. Diante do fenômeno da descolonização, Fanon apon- mais”, o ser-negro se prontifica a enfrentar “as únicas forças que negavam
ta para “uma substituição total, completa, absoluta” do ser (FANON, o seu ser: as do colonialismo” (FANON, 1961, p.54). A angústia enreda-
1961, p.31). É-nos inevitável concluir que, sendo absoluta essa substi- -se no cerne da consciência do ser-negro exigindo, de sua liberdade, não
tuição, ontologicamente o ser, passivo aos estímulos do colono, torna-se apenas a negação de si e do outro, como também a negação da dialética.
ativo. Assim, tal devir ontológico (e histórico) “transforma os especta- Quando Fanon escreve que há desvio do mundo colonial, re-
dores esmagados (...) em atores privilegiados” (FANON, 1961, p.31). fere-se a um movimento do existente no espaço, frente aos valores que

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES O SAMBA NA SERRINHA E SEU DEVIR EXPRESSIVO

a consciência livre posicionou diante de si. A descolonização é um devir Atentemos, todavia, para o fato de que, ontologicamente, o ser-
em função de um valor e esse valor é a terra. “O valor mais essencial, por -negro não equivale a ser o ser-branco. Ele não toma o seu lugar de ser, mas
ser o mais concreto, é primordialmente a terra: a terra que deve assegu- arranca do domínio do ser-branco o privilégio de ser, na terra, um absolu-
rar o pão e, bem entendido, a dignidade da ‘pessoa humana’” (FANON, to. O ser-negro, angustiado e livre, opera essa modificação na terra, senão
1961, p.40). O movimento empregado pelo negro conduz moralmente pela força. Descolonizar envolve uma “violência das massas” que atravessa
seu ser passado, o ser-colonizado, a defender o que a consciência enta- a terra sob a conduta imanente da “violência atmosférica” que pode ou não
bula como valor, ou seja, a terra. Se não há o colono, não há o coloni- “chamar o povo à luta armada” (FANON, 1961, p.70). “O mundo tem
zado e a igualdade se restabelece na terra. “A dicotomia que inflige ao consciência dessa violência” e, alimentado disso, o ser- negro é instado a
mundo” perde a base de sustentação, porque a “descolonização unifica “responder nem sempre com uma maior violência, mas, sim, de resolver a
esse mundo, arrebatando-o de forma radical à sua heterogeneidade, crise” (FANON, 1961, p.70). O que vale é eliminar o colonialismo.
unificando-o sobre a base da nação ou da raça” (FANON, 1961, p.41). Tomemos emprestado o conceito de território forjado pelos
O ato violento que a descolonização poderia suscitar, ou seja, franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari ao longo da obra Mil Platôs
substituir o lugar do branco pelo lugar do negro, surpreende com ou- (1992); que, por sua vez, não combatem, mas antes corroboram para uma
tro sentido dado à liberdade da consciência. O “dizer não” projetado no parte da tese descolonizadora de Fanon. O conceito de território emara-
mundo pela consciência livre dissolve o plano geral do colonialismo e, nha-se ao conceito fanoniano de violência, no que esse tem de virtual, de
por isso, promove uma migração das massas humanas sobre a terra. “O possibilidade, ou seja, de caráter atmosférico. Quer dizer que a liberdade,
mínimo exigido” pela consciência negadora do ser-negro “é que os últi- essa potência descolonizadora, enquanto ser da consciência, move o nada
mos sejam os primeiros” (FANON, 1961, p.41). O ser-negro, no passa- na direção do mundo, não para destruí-lo ou reduzi- lo em seu valor, mas
do atrelado a um complexo de inferioridade, punha-se abaixo e depois do para validar a maior força da terra que é restituir os territórios.
ser-branco. Dessa maneira, a massa humana negra ocupava, na terra, uma Não há mudança no tempo se não se pensa um meio, um plano
dimensão ontológica submissa, sendo-lhe relegada uma porção marginal. sobre o qual o devir deve decorrer. A descolonização depende desse prin-
Havendo o devir do ser-negro, a terra é redistribuída por um movimento cípio dimensional para se efetivar. O devir ontológico do negro, a pas-
humano e, também, por um movimento imanente à própria terra. É a ter- sagem que se dá de um possível que já foi na direção de um possível que
ra quem “restitui territórios”, segundo pensam Deleuze e Guattari. A terra será, só poderá se efetivar em um meio vibratório, isto é, em um “bloco de
“não cessa de operar um movimento de desterritorialização in loco, pelo espaço-tempo constituído pela repetição do componente” (DELEUZE;
qual ultrapassa todo território: ela é desterritorializante e desterritoriali- GUATTARI, 1992, p.118). Existem “espécies de meios” que deslizam
zada. Ela se confunde com aqueles que deixam em massa seu território” “umas em relação às outras, umas sobre as outras, cada uma definida por
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.113). um componente” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.118).
A terra move efetuando deslocamentos; o ser-negro, disposto Por isso, meios não se fixam em pontos. A casa-grande, o meio
nesse meio instável, move-se junto. De modo que a terra realiza, ela pró- branco, não é totem inabalável; também a senzala não é habitat eterno
pria, a restituição dos territórios ao mesmo tempo em que aqueles que a do negro. “Os meios são abertos ao caos, que os ameaçam de esgota-
ocupam, reinaugurando um equilíbrio social perdido com a disseminação mento ou de intrusão” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.119). Para
racista na cultura. “O colonizado”, disse Fanon, “descobre que a sua vida, impedir que o caos desloque os meios e atrapalhe o campo vibratório e
a sua respiração, as pulsações do seu coração, são as mesmas que as do co- os componentes, os meios revidam; e “o revide dos meios aos caos é o
lono.” (FANON, 1961, p.41). Por isso, “deve-se dizer que essa descoberta ritmo” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.119). O ritmo é frequência,
introduz uma agitação essencial no mundo. Toda a segurança nova e revo- linearidade impressa e esquematizada entre os meios, como forma de se
lucionária do colonizado dimana disso”. (FANON, 1961, p.41). manter em vigília em relação à massa desestruturada da instabilidade da

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terra, que pode a qualquer momento mover e modificar as relações de aspecto, o que vale para o ser territorializante é articular a “zona exte-
forças territoriais existentes. Com a intromissão do ritmo, o meio defi- rior de domínio, limites [...] zonas intermediárias ou até neutralizadas,
ne sua linguagem, “um código pela repetição periódica” que é flexível e reservas ou anexos energéticos” com a “zona interior de domicílio ou de
intercambiável (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.118). abrigo”, quer dizer, a zona que constitui o campo de valores corporais
“Cada código é um estado perpétuo de transcodificação ou de do ser (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.120-121).
transdução. A transcodificação ou transdução é a maneira pela qual o Em Condenados da terra (1961), Fanon exortou a descolo-
meio serve de base para um outro ou, ao contrário, se estabelece sobre nização. Porém, pela perspectiva de Deleuze e Guattari, é preciso que
um outro, se dissipa e se constitui no outro” (DELEUZE; GUATTARI, esse ato seja coroado com a liberdade, sem, no entanto, misturá-la ao
1961, p.118). O devir, sendo atmosférico, como mencionou Fanon, é for- meio. O ser territorializante não confunde o ser com o meio; não é nem
ça violenta que condiciona o movimento das massas pela terra. Deleuze e condicionado por ele nem lhe convém condicioná-lo. Sua força é agen-
Guattari acrescentam que tal devir é caos, concedendo abertura para mu- ciadora dos meios. A liberdade é o ponto de partida da consciência e o
danças. Porém, mudar requer frequência rítmica, caso contrário, a desco- ponto de chegada da ação humana. É na direção dela que o ser caminha,
lonização reduz-se apenas aos possíveis e nunca incide uma ação sobre o mas, para isso, é requerido que o meio em que se realiza e o ritmo que
meio que seja afetiva e significativa, ou seja, que o modifique em seu eixo. determina não a engessem e não a invalidem com qualquer prerrogativa
O Território “não é um meio, nem mesmo um meio a mais, de necessidade, de idealidade. A liberdade não assenta em um território,
nem um ritmo ou passagem entre meios. O território é de fato um pois ela própria é um ato desterritorializante que se afirma na medida
ato, que afeta os meios e os ritmos, que os ‘territorializa’” (DELEU- em que é capaz de transitar, de entrecruzar.
ZE; GUATTARI, 1992, p.120). O ser-negro que defendemos aqui é o Validar a liberdade da consciência que principiou o movimen-
ser- territorializante, ou seja, o ser capaz de formar códigos e sistemas to dos meios é jamais se deixar assentar, uma vez que assim sairia da
de controle/defesa, bem como de atuar afetando e significando meios dimensão rica e diversa da possibilidade. O ser- negro territorializante
e ritmos. Ele negou seu “era”, abandonou a posição dominada, angus- não busca fora um “lugar”, pois essa noção implica um pertencimento
tiou-se, comprometeu-se com seu possível, verteu-se em um “será”, cuja estranho – não ao ser-negro – mas ao ser em geral. A mesma ilusão que
dignidade não o instiga a se apossar da terra – ainda que ela seja um bem acarreta o colonialismo e que sustenta o discurso racista não pode servir
valioso – nem fixar uma frequência, como se fosse um absoluto. Inexiste de armadilha para o ser-negro livre, já que, sendo a terra desterritoria-
aí desejo de fixar domínio. Mas falta algo para arrematar esse processo lizante, os meios e os componentes dos meios são moventes e previstos
de liberdade que fez o negro se deparar com seu nada. de serem modificados de posição e de frequência. Se há caos no fundo
O que falta é Territorializar. O ser-negro territorializa quando da terra, se os movimentos da natureza são imprevistos, então a estação
atua pela fluidez rítmica, pela elasticidade física e pela versatilidade en- definitiva do ser está interditada de querer mantê-lo onde “deveria” ou
quanto componente da terra. Ele se posiciona não em um meio “seu”, “não deveria” estar. A terra expulsa por si, por meios imanentes, qual-
mas em um meio entrecruzado, a partir dos quais recolhe “aspectos e quer edificação do ser na medida em que este idealiza um “lugar”.
porções de meios” estranhos a ele; e, assim, termina comportando “em Com a perspectiva territorializante o ângulo varia. O ne-
si mesmo, um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um gro é a espécie de ser que se mobiliza. Já não é pensado como ser
anexado” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.120). Não é suficiente, a enclausurado, mas que se abre ao caos sob novo ritmo. Munido da
partir de tal consideração, que a descolonização seja realizada enquanto consciência de liberdade, ele não paralisa na noção de “ser” e deixa
movimento das massas, libertando-se de um meio para se estruturar em exprimir-se como devir, como um ser que atua sobre o meio, capaz
outro meio. A liberdade seria inútil ou sendo usada como instrumento de afetá-lo e de não ser mais oprimido por ele ou de não se ressentir
para dominar o meio e não para transcendê-lo. Em se tratando desse mais com ele, arquitetando formas de destruí-lo em uma luta ar-

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mada. O negro é, mas seu ser é devir, ou seja, movimento, fluxo que “reagrupamento de forças” que será dimensional e, portanto, expres-
“está sempre no meio”, pois “um devir não é um nem dois, nem re- sivo (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.129).
lação de dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, A expressividade difere-se da funcionalidade pela capacidade
perpendicular aos dois” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.91). afetiva e pela frequência rítmica. O que é expressivo contagia e invade um
Territorializar é o movimento da liberdade promovido sob um meio atuando de modo a provocar a “emergência de materiais” (DELEU-
meio caótico, isento de posições idealizadas, de estações definitivas do ZE; GUATTARI, 1992, p.129). Ademais, o expressivo é frequente; ele
ser e, portanto, aberto aos entrecruzamentos dos meios. Graças a essa “adquire uma constância temporal e um alcance espacial” que fazem com
posição articulada do ser, o território se amplia e, portanto, se forta- que as “matérias de expressão” cristalizem-se como “uma marca territorial,
lece. O meio sofre um devir nesse embate entre a territorialização e o ou melhor, trritorializante, uma assinatura” (DELEUZE; GUATTARI,
colonialismo, pois ele deixa de ser reducionista. “Há território a partir 1992, p.129). Territorializar é marcar um meio de forma expressiva, gra-
do momento em que componentes de meios param de ser direcionais, ças ao poder restituidor da terra e ao poder livre da consciência de recusar
para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais funções territorializadas, rígidas, típicas do domínio direcional do corpo
e se tornam expressivos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.121). O e de abri-lo à possibilidade de criar um ato rítmico que componha artisti-
que significa que o “ser” do componente entra em devir, pois se situa camente as instabilidades realizadas no interior da terra.
entre o funcional e o expressivo; e tal devir afeta o ser, variando o meio, Ainda em Mil Platôs (1992), afirmam Deleuze e Guattari que “o
que antes era direcional e torna-se dimensional. território seria o efeito da arte”; o impulso da terra que restitui os meios e
O corpo territorializante é a chave para entendermos a con- conduz o ser, nesse deslocamento, a “construir um domicílio” que agen-
quista ontológica, a transição do ser-negro que, saído da posição sub- cie e crie um novo ritmo entre o corpo e o mundo, ou seja, entre a zona
missa, apoderou-se de sua consciência, a fim de se avizinhar entre o di- interior e a zona exterior (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.123). O
recional e o dimensional. O devir ontológico faz o ser-negro transitar ser-negro territorializante, longe do sentido cruel e empobrecedor da ló-
do ser- colonizado para o ser-livre; e essa mudança é geomórfica, posi- gica colonialista, é artista; e “erige um marco ou faz uma marca” que é
cional, física, é devir na e da terra, em face da qual o corpo negro deixa sua “propriedade” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.123). Esse ato que
de ser um existente condenado a servir e a sujeitar- se ao meio branco demarca a linha de fuga entre dois meios é o modo possessivo de qualida-
dominante. Ao desacorrentar-se desse estado de coisas direcionais, a des que “constituem um ter mais profundo que o ser” virem à tona como
consciência livre entende que a natureza do ser trocou a geofisiologia e expressão; tais qualidades, que são inerentes ao domicílio pessoal do ser-
adquiriu uma expressividade corporal potente e rítmica que substituiu -negro, às propriedades do seu corpo dimensional, são obras de criação
a funcionalidade colonizada, isto é, a funcionalidade determinada e re- artística, pois “desenham um território que pertencerá ao sujeito que as
gulada pela lógica escravagista da superioridade racial. traz consigo ou que as produz” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.123).
O ser-negro territorializante compreende que o sentido “As qualidades expressivas” imanentes ao corpo dimensional do
direcional do corpo não é unívoco, nem tampouco acorrentado. A negro “são auto- objetivas, isto é, encontram uma objetividade no territó-
territorialização manifesta-se como polissemia de valores do corpo, rio que elas traçam” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.124). O que sig-
na medida em que o funcional e o transitório, que estão ligados a um nifica que o território não é propriamente um “lugar” onde o ser edifica
tipo de ação mecânica e inautêntica, não se dissolvem por completo, sua morada. O território não é rua, casa, bairro ou cidade; não é “aqui” ou
mas flexibilizam-se. De modo a haver uma concorrência de sentidos “ali”; seu conceito escapa, enfim, ao rigor do espaço concreto. O território
no corpo e não mais um domínio do meio branco sobre as potên- é um movimento no tempo, na história, a partir do momento em que o
cias do corpo negro, como ditava o imperativo colonialista. Existe a corpo atua criando um ritmo pessoal, um desenho singular traçado entre
urgência que o corpo negro assuma uma nova posição no meio, um os meios, que atravessa espaços, transcendendo os sítios absolutos; é uma

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assinatura, “a marca constituinte de um domínio, de uma morada” que exterior” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.125). O sambista tira provei-
agencia o “meio interior dos impulsos” do corpo “com o meio exterior das to do que o meio fornece de material a ser explorado e dinamiza seu corpo e
circunstâncias” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, pp.124-125). anima sua alma a partir do que está ao seu dispor. Ele articula as “qualidades
expressivas ou matérias de expressão” inerentes ao seu corpo, “que entram em
O corpo sambista e o personagem-samba relações móveis umas com as outras” e que exprimem “a relação do território
que elas traçam com o meio interior dos impulsos e com o meio exterior das
Com vistas a se libertar do domínio colonialista, o negro, no circunstâncias” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.124).
presente em que se situa, toma consciência do passado e angustia-se Dessa articulação entre o que o corpo possui de impulsivo/ex-
com a condição limitante de um corpo submetido a se realizar apenas pressivo e o que o meio oferece como fonte de exploração, surgem motivos
no domínio da funcionalidade regulada pela linguagem escravagista do territoriais, que, na verdade, são puros devires, puros movimentos imper-
meio branco. Mas, só ele, em virtude da consciência de si, pode operar ceptíveis, inconscientes, que “ora sobrepujam os impulsos internos, ora se
uma mudança que separe o passado do presente e que anuncie um futu- sobrepõem a eles, ora fundem um impulso no outro, ora passam e fazem
ro libertador. Urge agir sobre a limitação, movendo-se enquanto corpo passar de um impulso ao outro, ora inserem-se entre os dois” (DELEU-
e enquanto componente de meio. O modo de agir visado por esse negro ZE; GUATTARI, 1992, p.124). Os motivos condicionam o sambista a
onsciente é territorializante, ou seja, agenciador de meios, e, por isso, se expressar, mas seu corpo só será expressivo na medida em que tais mo-
conduz o negro a se conhecer não mais como um corpo escravo, nem tivos pontuarem uma frequência, um ritmo, aparecendo de uma forma
como um corpo que se posicionaria no lugar do branco livre, mas como fixa ou de uma forma variável (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.124).
um corpo intermediário, uma zona de vizinhança. Pela frequência rítmica do samba, o corpo negro afirmou-se
O corpo negro situado entre os meios dimensional e funcional é como uma dimensão expressiva; o que, inevitavelmente, pela fixidez e
o corpo sambista. Ele migrou do estado social e fisiológico que determina- variação, marcou um território, desenhou uma assinatura e definiu um
va sua potência à condição de espectador para a condição de ator. O cor- movimento novo na história. De modo que, a partir disso, o samba fir-
po negro territorializante atua sobre os meios, e essa atuação designa-se mou-se como o signo negro mais potente da restituição territorial. Os
como traçado de assinaturas sobre os meios; de incisão de marcas afetivas “dois efeitos notáveis” logrados por esse devir ontológico que arrancou
e perceptivas por onde passa; essa marca não poderia ser de outra catego- o negro na direção da atuação (e não da passividade), promoveram “uma
ria senão artística; é o samba, dito de outro modo. Marcar os meios artis- reorganização das funções, um reagrupamento das forças”, movendo a
ticamente requer estabelecer “relações entre matérias de expressão” pro- terra e movendo o homem (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.129).
vindas do corpo (que agora não se sujeita mais à funcionalidade escrava, Um novo ser passa a ocupar a terra, situando-se no meio limítrofe entre o
mas à dimensionalidade criadora) e “relações do território com os impul- meio branco-livre e o meio negro- escravo e esse ser é o samba; e ele nasce
sos internos” provindas da alma e animadas pelas paixões (DELEUZE; daquilo que os motivos territoriais formaram com sua força agenciadora
GUATTARI, 1992, p.125). Territorializar implica em agenciamento, em e mobilizadora. Ela advém como um personagem rítmico, como compos-
acordo entre as potências do meio externo do ser (as dinâmicas do corpo) to direto de uma frequência rítmica plena de variações e de repetições.
e as potências do meio interno do ser (as emoções da alma). A gênese do personagem rítmico se dá “quando não nos en-
O sambista é o que é porque seu ser é existente em devir. Por cau- contramos mais na situação simples de um ritmo que estaria associado
sa disso, apresenta um corpo dotado de versatilidade que faculta um ritmo a um personagem, a um sujeito ou a um impulso” (DELEUZE; GUA-
diferenciado daquele corpo escravo funcional. Em vista de tal variação cor- TTARI, 1992, p. 125). O samba é produto da frequência variável e re-
poral, o sambista forma-se a partir de contrapontos territoriais, ou seja, de re- petitiva da atuação expressiva e afetiva sobre os meios. Ele próprio é um
lações móveis capazes de explorar “as potencialidades do meio, interior ou ser em devir e seu ser é sujeito vivo, movente, emancipado, uma pulsação

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da terra: “agora é o próprio ritmo que é todo o personagem, e que, en- personagem que a cartografa em acordo com “movimentos e retrações”,
quanto tal, pode permanecer constante, mas também aumentar ou di- com “processos de invenção e de captura que se expandem e se desdo-
minuir, por acréscimo ou subtração de sons, de durações” (DELEUZE; bram, desterritorializando-se e reterritorializando-se no momento em
GUATTARI, 1992, p.125). O ser que torna o samba persona rítmica é que o mapa é projetado pelos indivíduos no seu microfabricar do cotidia-
pleno de devir e o permite “morrer e ressuscitar, aparecer e desaparecer” no gerando outros pertencimentos” (NOGUERA; SILVA, 2015, p.29).
(DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.125). Além disso, o samba é a assinatura ativa do ser-negro, onde sua potência
de atuar no meio, afetando os componentes, gera a “rede de significações
Serrinha, a paisagem cartografada pelo samba simbólicas e socioculturais” (NOGUERA; SILVA, 2015, p.28).
Devido à potência expressiva, o samba cartografou um cená-
Os motivos conduzem o sambista a se diferenciar e a se repe- rio repleto de significações simbólicas que resultou do processo in-
tir em uma frequência rítmica e fazer do samba um personagem, uma ventivo do corpo desse ser-negro territorializante, permanentemente
entidade que não é corporal, mas que é afetiva e expressiva, que é uma em devir, consciente de que sua livre atuação sobre o meio se desdobra
assinatura impessoal sobre os meios. No entanto, são os contrapontos repetindo-se e variando-se conforme as circunstâncias. A Serrinha,
territoriais, ou seja, os modos de relação do corpo negro dimensional, comunidade situada no bairro carioca de Madureira, é representante
de suas qualidades expressivas, com os meios externos e circunstanciais, legítima disto que viemos falando desde o início, a saber: do devir
ou seja, com a cidade, que fazem nascer aquilo que Deleuze e Guattari afro-ontológico, que colocou o negro em uma situação em que seu
chamaram de paisagem melódica. Quanto a tal conceito, desenvolvido corpo não seria mais condicionado pela dialética colonialista. É nesse
em Mil Platôs (1992), os filósofos dizem o seguinte: “a paisagem meló- território, promovido pelo deslocamento da massa negra, pelo devir
dica não é mais uma melodia associada a uma paisagem”; não é a mú- da terra, que o personagem territorial chamado samba pintou, por
sica feita em um lugar; mas o contrário: “é a própria melodia que faz a cima da paisagem serrana, a paisagem imperial do Império Serrano.
paisagem sonora, tomando em contraponto todas as relações com uma Segundo descreve o casal Rachel Valença e Suetônio Valen-
paisagem virtual” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.125). ça, na relevante pesquisa do livro Serra, Serrinha, Serrano (1983),
A paisagem melódica, o não-lugar rítmico demarcado por uma pelos anais da história social do Rio de Janeiro:
assinatura, sendo criadora, faz a paisagem sonora. Desse modo, o ritmo
A localidade, na vertente oeste da serra da Misericórdia,
não é sujeito ao espaço; mas é, antes, o ritmo que sujeita, atua e afeta o entre Vaz Lobo e Madureira, na zona norte carioca, co-
espaço; e, pelo compasso repetitivo e variável dos devires, entre os meios, meçou a ser povoada provavelmente nas duas primeiras
é criada a paisagem virtual que se destaca sob o fundo meramente geo- décadas do século XX. [...] Havia também, além dos
trabalhadores negros egressos das antigas regiões ca-
gráfico da cidade. O espaço é fruto do poema, do canto e da dança, feeiras do interior fluminense, do vale do Paraíba e da
fundado e erguido a partir de um personagem territorial, o samba; e, Zona da Mata de Minas Gerais, e que buscava, trabalho
assim, o meio se torna, ele próprio, poema, canto e dança. O lugar dei- na capital da recente República, libertos da condição de
xa de ser o mero espaço concreto indiferenciado, misturado e perdido escravos pela lei de 13 de maio de 1888. (VALENÇA,
R.; VALENÇA, S, 2017, p.32-33)
no conjunto total da cidade, e se torna uma marca inconfundível e sin-
gular, que, ademais, supera limites e fronteiras; e, por isso, esse meio O efeito de tal devir migratório pós-abolicionismo gerou a Serri-
amplificado, compõe um “mapa traçado pelos circuitos de uma rede de nha como um novo cenário no mapa geográfico da cidade. Sendo assim, a
batuques e sonoridades na cidade” (NOGUERA; SILVA, 2015, p.29). Serrinha não é propriamente um “lugar”, mas uma reterritorialização, um
No entender de Renato Noguera e Wallace Lopes, em Sambo, movimento em que o meio e seus componentes restituem, na terra, po-
logo penso (2015), a paisagem melódica é o mapa do samba, pois este é o sições e domínios. A topografia urbana realinha-se com a nova demanda

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territorial, em que “os atores negros no cenário da pós-abolição criaram 2015, p.65). Viver na cidade, na linha tensa entre o corpo funcional e
estratégias de sobrevivência na atmosfera de progresso e modernidade” o corpo dimensional, só é possível artisticamente, desvencilhando-se do
do Rio de Janeiro (NOGUERA; SILVA, 2015, p.21). A sobrevivência “espírito de suportação dos tempos de trabalho escravo”, dando entrada
do ser-negro alforriado define-se aí, na marca territorial nascida de sua “a um determinado estado de espírito, fazedor de um caráter especial da
atuação sobre o meio. Marcar território é, grosso modo, traçar “a distância ética humana, a saber: o caráter festivo” (GRADIM, 2015, pp.77-78).
crítica entre dois seres da mesma espécie” objetivando “marcar distâncias”, Pela via celebrante e artística é que o ser-negro descoloniza-
desenhando uma topografia da cidade que não conserve nada da clausura do imposta a voz da liberdade. “O que se vê, então, é o caráter festivo,
da senzala e que, por outro lado, não queira dominar a topografia do ser- sempre fluido, cambiante e espontâneo se opondo ao caráter hirto e
-branco (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.21). mecânico do homus faber”, do negro do engenho (GRADIM, 2015,
Enquanto o território existe de forma demarcada, em que os seres p.78). Sambar é a expressividade própria do negro e, portanto, equivale
se distinguem por domínios, traçando topografias determinadas, ele é dis- a se libertar, apresentando impulsos suficientes que assumem o perso-
tinção crítica, o lugar deste ou daquele componente; mas se entra em devir, nagem que ele mesmo inventou para se afirmar frente aos contrapontos
tornando-se afetivo, dispõe os componentes em um plano de virtualidade. territoriais. O homem alforriado é o tipo movente, o ator de sua pró-
“Não mais assinaturas, mas um estilo” se expressa no território (DELEU- pria história. Mas o personagem que ele veste para atuar é o samba, um
ZE; GUATTARI, 1992, p.126). Ele é paisagem melódica, pois nasceu de personagem territorial traçado entre dois meios: a senzala e a cidade. A
um duplo movimento: do movimento que levou o ser-negro a entrar em Serrinha é um dos palcos onde a samba atua e onde a liberdade é motivo
devir ontológico, modificando o ser passado/passivo e transformando-o de celebração, de criação e de comunhão.
em um ser futuro/atuante, e do movimento que fez do território não mais Rachel Valença e Suetônio Valença contam-nos que os negros
um bloco material indistinto e impessoal, mas que criou um estilo. migrantes “trouxeram consigo o carnaval dos pequenos blocos familia-
O sambista habita o território demarcado, ao mesmo tempo res (...) incentivados pelo pioneiro Francisco Zacarias de Oliveira” e por
em que habita a paisagem sonora, o não-lugar, o território virtual per- “Alfredo Costa, futuro presidente da escola de samba Prazer da Serri-
tinente à arte, pertinente ao samba enquanto personagem que atua sob nha” (VALENÇA; VALENÇA, 2017, p.33). Tais lideranças negras to-
certo plano de fundo melódico. Ele é virtual porque existe no tempo, maram para si, não só a função demarcadora de espaço, como também
em devir, porque não se estabiliza no espaço, mas movimenta-se de for- imprimiram nessa demarcação um estilo próprio de ocupação, no qual
ma sempre diferente e repetida. Na cidade, o sambista traça o habitat de se destaca o caráter celebrante. As redes de sociabilidade promovidas
um tipo que emergiu nessa nova configuração topográfica. Na verdade, por esses dois homens aproximavam as famílias habitantes da Serrinha
o ser-negro muda de tipo. Correlato à mudança de meio, ao devir topo- e dos arredores de Madureira e de Vaz Lobo. Nessa trama festiva se deu
gráfico, emerge o devir tipológico; então o caráter do ser-negro muda, o nascimento, em 1931, da escola de samba Prazer da Serrinha que,
tornando-se expressivo. Por isso, transcende o sentido direcional e fun- graças ao seu material expressivo, preparou o terreno para a fundação
cional de seu corpo. Ao restituir o domínio e a posição na cidade, o da gloriosa escola de samba Império Serrano, dezesseis anos depois.
ser-negro é aquele que faz de seu corpo suporte artístico, por meio do No belo samba de quadra “Prazer da Serrinha”, composto por
qual compõe sentidos poéticos, dançantes e musicantes. Tio Hélio e Rubens da Silva e gravado por Ivone Lara, é dito que “no Pra-
Em tal caso, viver desse corpo urbano, plasmado no território do zer da Serrinha” “a melodia mora lá” (SANTOS; SILVA apud VALEN-
morro, não é propriamente sobreviver, mas atuar, e, ao atuar, se ressignifi- ÇA, R; VALENÇA, S, 2017, p.35). A melodia é, a bem dizer, a principal
car enquanto tipo aberto à “vontade de crescer em poder em relação àqui- moradora da Serrinha, a mais velha e a mais respeitada, pois graças a ela as
lo que a força é capaz no ato de sua resistência frente aos mais diversos e famílias vivem “alegres a cantar” (SANTOS; SILVA apud VALENÇA,
complexos centros de força que obstaculizam sua atuação” (GRADIM, R; VALENÇA, S, 2017, p.35). O sambista porta dois endereços: o geo-

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gráfico e o afetivo. No geográfico, mora na colina; no afetivo, mora no Graças a isso, a melodia engravida-se de um novo tipo de negro. Vem à
prazer. Em tal morada “acompanha o canto de um passarinho/ sem errar luz o negro expressivo, o negro que sonha, o compositor, o poeta capaz de
o compasso” (SANTOS; SILVA apud VALENÇA, R; VALENÇA, S, anunciar e celebrar um panorama de liberdade, de fortaleza e de alegria.
2017, p.35). Em outro emblemático samba de quadra se diz: “eu vivo no Diversos compositores criaram-se na Serrinha. Foi o samba quem gerou
alto de uma colina/ Bem distante e pequenina/ Vivo no samba e na batu- a paisagem melódica e foi a Serrinha quem gerou o brilhantismo artístico
cada/ Os pássaros/ Na manhã quente/ Saudando a madrugada/Serra dos de Silas de Oliveira (1916-1972), que, na opinião de Rachel Valença e
meus sonhos dourados/ Onde nascemos e fomos criados” (SANTOS; Suetônio Valença, foi “o maior compositor de sambas-enredo de todos os
SILVA apud VALENÇA, R; VALENÇA, S, 2017, p.35). tempos” (VALENÇA, R; VALENÇA, S., 2017, p.66).
A Serrinha é paisagem melódica porque converte a colina, a pla- Em Serra, Serrinha, Serrano (1981), o casal relatou que os “sam-
nície geográfica, em algo transcendente que a coloca em unidade com ou- bistas mais influentes da Serrinha” despontaram sob o plano de fundo
tras potências artísticas da natureza: o sambista agencia-se com a natureza compositivo, formando, então, uma geração de artistas, de sujeitos eman-
e, nesse avizinhar, afina-se em outros devires, mais exaltados, formando cipados, um império de corpos-melodia, de vozes dissonantes que erguiam
outras imagens de poder, ao se tornar o pássaro negro que canta e baila no o negro a um patamar de grandeza corporal e potencial até então exclu-
ar. Os quarteirões da Serrinha, que tangenciam a região e que são atraves- sivo ao colono, ao homem branco: “Molequinho, Mano Décio, Antenor
sados por artérias que abrem caminho aos transeuntes, não são suficientes Rodrigues de Oliveira, Chico, Oscarino, Mario Feliciano, o Manula (...),
para definirem e reduzirem o meio a um mero bairro carioca. Apenas ser- Comprido, Cachopa, Zé da Grota, Carlinhos Bem- te-vi, Fumaça, Salute,
vem de interesse posicional. A Serrinha abre margem para um domínio Gradim e Zacarias” (VALENÇA, R; VALENÇA, S., 2017, p.66).
mais amplo. Ela é “um paraíso de amor”, onde “o sol nasce cor de ouro” Na qualidade de bambas, esses homens viviam do que lhes era
e “traz a intenção de um novo mundo, onde a felicidade impera” (DEL- próprio, ou seja, das qualidades expressivas de seus corpos poéticos,
FINO apud VALENÇA, R; VALENÇA, S., 2017, p.37). Batizado pela musicantes e dançantes. De modo a fazer do ser-negro uma consciên-
luz dourada, o território celebra a vida, do princípio ao fim, onde “todos cia livre que “gozasse do mesmo luxo artístico daquele hábito aristo-
gozam seu prazer” e vivem da “orgia até morrer”, animando o “ideal da mo- crático dos senhores: o domínio de uma dança de salão, a destreza
cidade” (MANULA apud VALENÇA, R; VALENÇA, S., 2017, p.36). instrumental da música e a articulação da língua” (GRADIM, 2015,
Ademais, o samba não forma a trilha sonora da vida dos negros p.79). Outrossim, os artistas da Serrinha eram virtuosos em seus cor-
daquela região, é, antes, o samba, na qualidade de personagem, que in- pos, formados na “escola da vida”, isto é, isentos da formalidade de
flui sobre o plano de fundo, que fortifica e alegra o sambista e o aproxi- ensino comum aos profissionais. Os saberes aprendidos eram parti-
ma da liberdade dos pássaros. A paisagem melódica é a chancela dada lhados e transferidos; não era um conhecimento privilegiado, prévio,
pelo próprio ser-negro para reabsorver os sonhos que o racismo lhe nem mesmo dom divino. O sambista aprendia nas margens do viver,
furtou. Isto significa que o ser-negro reconhece na melodia, isto é, no por contágio, aproximação e vizinhança; em suma, em devir.
agenciamento dos ritmos internos do corpo com os ritmos do mundo, Por abrigar a melodia em seu território, o morador da Serri-
o plano de imanência autêntico, onde ele não é mais o objeto coloniza- nha é uma pura usina criadora. Na importante pesquisa elaborada por
do, o corpo maquinal e fabril e reduzido ao crivo do racismo estrutural. Tinhorão (A Pequena história da música popular, 1974), o autor realça
O sonho tornado realidade é o do ser-negro sambista. Sendo a as potências expressivas do negro, considerando seu talento poético e
Serrinha a casa da melodia, quem nela habita é, por si só, um corpo-me- musical. Tal perspectiva serve-nos de aporte necessário para entender
lodia, um devir que situa o ser entre a realidade da cidade e sonho do in- a dimensão do corpo descolonizado, cujas ferramentas de trabalho não
divíduo. Lá, “qualquer criança bate um pandeiro e toca um cavaquinho” são as da escravidão; a ferramenta que organiza o corpo descolonizado,
(SANTOS; SILVA apud VALENÇA, R; VALENÇA, S., 2017, p.34). o corpo sambista, é a criatividade; é a capacidade de driblar as fronteiras

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existentes entre o meio dimensional e o meio funcional através da arte. Considerações Finais
Tinhorão conta que os sambistas “eram capazes de criar versos ao sabor
do momento, fosse para referir- se ao tema escolhido para o enredo, No decorrer do presente artigo, apresentamos o seguinte pro-
fosse para provocar uma escola rival com que cruzasse” (TINHORÃO, blema, a saber, a emergência de uma mudança na estrutura e na lógica
2013, p.203). Ou o negro compõe samba de terreiro, “feito para o car- colonialista, que toma como protagonista o ser-negro. Tal mudança,
naval, mas que nada tem a ver com o carnaval da escola”; ou compõe entrementes, não se apresenta como um movimento simples e aparente;
samba-enredo, “uma improvisação, geralmente baseada numa provoca- mas, sim, como devir ontológico, ou seja, como modificação completa
ção com a escola que cruzava” (TINHORÃO, 2013, p.203). Seja como e profunda nos alicerces do ser; e esse devir, além de tudo, é expressivo,
for, é se orientando pelo improviso ou pelo domínio das palavras que o ou seja, toma como instrumento de atuação a liberdade criativa perti-
negro sambista se coloca no mundo de forma expressiva e livre. nente ao universo potencial da arte. Desse modo, o problema do artigo
Os dois tipos de samba constituem a cartografia traçada pelo girou em torno de três domínios conceituais que, atendendo exigên-
corpo negro. A marca territorial que foi desenhada pelos sambistas da cias, abrangem distintas regiões do ser: a) o domínio ontológico que
Serrinha e que transcende o espaço geográfico é o samba de terreiro e imbricou nas condições existenciais do ser; b) o domínio geofisiológico
o samba-enredo. Ambos encantam pela beleza, mas o que tornou de que traçou as relações de força entre o ser e o meio; e c) o domínio esté-
fato a Serrinha uma paisagem virtual do samba, um cenário melódico tico que definiu uma expressividade à atuação do ser.
que transcendeu as bordas do bairro de Madureira, foi propriamente a Sendo o objetivo principal do artigo a investigação da ma-
criação do samba-enredo, onde Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola neira que o ser-negro realiza um devir, que não é qualquer, mas on-
e Ivone Lara compuseram as melhores obras da paisagem melódica im- tológico e expressivo, entendemos que esse propósito foi alcançado,
perial. O samba-enredo representa, na Serrinha, a joia de raro esplen- dentro do possível; na medida em que, no exercício da metodologia
dor, pois ele é um dos maiores triunfos sobre o colonialismo, já que, en- adotada, os autores apresentam conceitos que embasam a pesquisa
quanto corpo funcional inserido no contexto do sistema escravagista, de uma forma satisfatória e adequada.
ser artista, ser criativo, para o negro, era atuação impossível. Dentre os principais achados da pesquisa foi o agenciamento
Os sambistas romperam com essa estrutura racista e passa- que intencionalmente provoquei entre autores, a princípio incompa-
ram a compor, dominando a linguagem, pela via popular, e, por con- tíveis no estilo, mas pela forma que dispus se conectaram sem maiores
seguinte, concorrer com o meio branco. O samba-enredo, o “poema atritos. Busquei conciliar a ontologia de Sartre e Fanon com a geofi-
musical descritivo com caráter de exaltação patriótica” é a prova des- losofia de Deleuze e Guattari para estofar esse conceito que cunhei:
sa superação (TINHORÃO, 2013, p.198). Por isso, os sambistas o devir afro- ontológico. A partir desse agenciamento, observei, pelas
serranos surpreendem: pelo caráter inaugural do corpo negro ex- perspectivas de Sartre e Fanon, que a consciência do ser-negro – em
pressivo e artístico e pelo nível de excelência envolvido nesse atuar. sua natureza livre – se move para negar o passado, e que esse movi-
A Serrinha é paisagem de arte pelo poder narrativo de seus sam- mento causa um descompasso na ordem social colonialista, a tal pon-
bas, pelo “encadeamento de versos” feito com “o mesmo processo to que o negro deixa de ser aquele cujo corpo é espectador de sua
de composição usado pelos poetas clássicos” (TINHORÃO, 2017, história para ser um corpo atuante e influente.
p.201). Ou seja, na Serrinha, nesse território preto e celebrante, Apesar de me valer do fundamento ontológico, notei a carência
onde a melodia mora, não poderia nascer outra coisa senão o samba- do suporte conceitual oferecido por Deleuze e Guattari para compreen-
-enredo, cuja gênese poética “se definiria como uma capacidade de der a insuficiência da consciência no ato de mover a história do ser-negro
lançar mão de recursos estilísticos que certamente só conhecia por e desarmar a lógica colonialista. Os dois filósofos mostram-nos a relevân-
intuição poética” (VALENÇA, R; VALENÇA, S., 2017, p.155). cia de considerar as forças imanentes da terra como operadoras de devires

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que realinham meios, componentes e ritmos. Desse modo, cotejando os (interior e exterior), tomou uma forma emancipada em relação ao ter-
quatro autores citados, observei que a descolonização do ser-negro, o de- ritório e se estruturou como um personagem que atua sobre o corpo
vir que lhe concerne, passa tanto por um movimento da consciência como negro, amplificando sua potência, que deixa de ser funcional para ser
por movimentos físicos da terra, a partir de deslocamentos de massa que livre e criativa, superando os limites do colonialismo. Em última aná-
representam o curso da história através da demarcação de territórios. lise, alcançamos a compreensão de que o samba forma uma paisagem
Depois de haver pontuado a influência dessas duas forças do melódica, dentro da qual habita virtualmente o sambista da Serrinha
ser (a consciência e a terra) desenvolvi a noção de territorialização, assaz ultrapassando limites físicos. Vimos que, por ordem do devir expres-
pertinente na filosofia de Deleuze e Guattari. Orientando-me através de sivo, o samba, através do ser-negro, estiliza e transcende o território,
tal noção, demonstrei que territorializar é uma atuação do ser ao entrar dimensionando seu corpo e seu ser.
em devir, quer dizer, ao formar zonas de aproximação entre os meios
e, portanto, possíveis formas de se libertar da submissão e da opressão Referências Bibliográficas:
colonial. Sendo assim, atribuí ao ser-negro um caráter territorializante
que o capacita estabelecer, na terra, linhas de fuga, meios próprios em DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e es-
que possa deixar marcada a sua assinatura, o seu modo expressivo de ser. quizofrenia, vol.4. Trad. Suely Rolnik. São Paulo: Ed.34, 1997.
O andamento da pesquisa conduziu à imperativa associação
_____. O que é isso a filosofia? Trad. Bento Prado Jr e Alberto Alonso
entre devir geofisiológico do ser-negro; ou seja, a flexibilidade, a mobi-
Muñoz. Rio de Janeiro: Ed.34, 1992.
lidade e a improvisação do meio externo (corpo) e interno (alma) em
agenciamento com os contrapontos territoriais, com aquilo que o ser FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Trad. Serafim Ferreira. 1ª
possa explorar de material expressivo e plasmar em atuações expressivas. edição. Lisboa: Ed. Ulisseia Limitada, 1961.
Demonstrei que a análise das potências do corpo negro é o caminho GRADIM, Filipi. “Arqueologia do samba enquanto arqueologia do
para entender a libertação do colonialismo, pois é no corpo que esse poder”. In: Wallace Lopes Silva (org). Sambo, logo penso: afroperspec-
devir melhor se resolve. O corpo negro territorializante é puro devir tivas filosóficas para pensar o samba. 1ª edição. Rio de Janeiro: Hexis:
e modifica os meios externo e interno. Entendi que ele adquire outro Fundação Biblioteca Nacional, 2015.
nível de potência ao territorializar; deixa de ser máquina funcional da
empresa colonial para ser um corpo expressivo, que, por conseguinte, SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada – ensaio de ontologia e de fenome-
essa expressividade se manifesta na atuação como sambista. nologia. Trad. Paulo Perdigão. 20ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.
Por fim, durante a pesquisa, as conceituações filosóficas con- SILVA, Wallace Lopes (org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filo-
vergiram para a Serrinha, a comunidade carioca que elegi como fenô- sóficas para pensar o samba. 1ª edição. Rio de Janeiro: Hexis: Fundação
meno urbano para investigar a expressividade do corpo negro a partir Biblioteca Nacional, 2015.
desses movimentos de descolonização. Notei que a Serrinha nasceu de
uma territorialização que provocou a migração da massa negra, e, como VALENÇA, Rachel. VALENÇA, Suetônio. Serra, Serrinha, Serrano:
vimos que territorializar é incidir uma assinatura que demarca a terra o império do samba. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
de forma expressiva, ou seja, artística, então essa migração não pôde re- TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular segun-
sultar em outra coisa senão na fundação de dois centros celebrantes, de do seus gêneros. 7ª edição. São Paulo: Ed.34, 2013.
duas escolas de samba (Prazer da Serrinha e Império Serrano).
Além disso, nas duas últimas seções do artigo, compreendi que
o samba, por ser um acordo entre o ser-negro em devir com os meios

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REPRESENTATIVIDADE NEGRA NA CONSTRUÇÃO DE NOVAS NARRATIVAS:
O RESGATE DO OWO TI ARA AGBARA ATRAVÉS DA DRAMATURGIA
DOS ORIXÁS E O ESPETÁCULO HISTÓRIAS BORDADAS EM MIM

Agrinez Diana de Melo


Graduada em Artes Cênicas pela UFPE

Introdução

Quando se fala da representatividade preta e de novas narra-


tivas, a primeira imagem que surge na memória são de grandes mobili-
zações de pessoas negras nas ruas, com performance e poemas, gritan-
do palavras de protestos e exigindo reconhecimento de seus direitos.
O que é legítimo, principalmente quando se trata de dores sofridas
e que precisam ser gritadas para serem ouvidas. A abordagem aqui
descrita não foca exatamente nas dores sofridas ao longo da vivencia
artística, mas inegavelmente elas fazem parte do percurso e estarão
ao longo da escrita. Neste artigo, será evidenciado principalmente o
caminho trilhado para se chegar a ações de empodeamento, eviden-
ciadas em um espetáculo teatral. Desde o reconhecimento na expres-
são da gestualidade, que tem origem em antepassados, até chegar na
obra artística, que transcorre pelas conquistas de novas formas de agir
na sociedade, através do teatro e da ancestralidade, na construção de
um corpo negro para cena. A narrativa será apresentada apartir das
minhas experiências teatrais: mulher, artista, preta e de candomblé.
É através do resgate do Owo Ti Ara Agbara, palavra em Yorubá, que
significa: Texto do corpo ancestral que se estrutura o processo de cria-
NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

ção do espetáculo cênico, Histórias Bordadas em Mim[*], alicerçada na liberdade. Muitas revoltas aconteciam e, com elas, negros juntavam-se e es-
preparação corporal da Dramaturgia dos Orixás[**]. truturavam grupos organizados politicamente conscientes de seus direitos
Antes de transcorrer sobre o processo, é importante afirmar (CABRAL, 2012). Existiam centenas de quilombos dos mais variados tipos
que a compreensão do método interpretativo, com base nos vetores dos e tamanhos, sendo os mesmos construídos de acordo com a cultura de seus
Orixás, só se transforma em evidência quando o entendimento da mo- ocupantes. Os quilombos eram estruturados com a junção de vários povos
vimentação do corpo e a necessidade de expansão passou também pelos de África e suas multiculturas e crenças. O Candomblé surgiu dessa união
corpos dos ancestrais que vieram antes, chegando até mim. O Owo Ti de várias comunidades étnicas africanas. “Africanos de diversas nações pas-
Ara Agbara era reflexo da gestualidade contida na dança e na forma de saram por cima de suas diferenças étnicas, religiosas, econômicas, filosóficas,
expressividade do meu corpo que traz, através da construção genética e intelectuais, políticas e se aliaram com negros nascidos durante o regime
cultural, gestos e expressões da minha mãe, minhas avós e bisavós. Em escravista para encontrar formas de resistência” (BARBOSA, 2016, p.34)
sua estrutura corporea traziam para a vida cotidiana corpos amplos, Se analisarmos a história do negro, no Brasil, é compreensível
através de gestos largos e voz empostada, reprimidas pelo sistema social a situação injusta que permeia seu cotidiano hoje e como a palavra re-
de sua época. Para o entendimento de uma nova possibilidade inter- sistência vem sendo grifada ao longo de todos esses séculos (CABRAL,
pretativa atraves da Dramaturgia dos Orixás, foi necessário reconhecer 2012). No momento atual, as consciências de raça e de exigências de di-
o texto do corpo ancestral e a partir dele criar novas possibilidades de reitos tornam-se mais aparentes, embora ainda falte muito para que haja
expressão, libertando-se de padrões opressores. de fato uma retratação. Criar e incluir um espetáculo teatral que tenha
Assumindo esse corpo dilatado, era possivel criar espaços de como principal mote a realidade de uma mulher negra, nos palcos, fazia-
representatividade da negritude no universo teatral. Na concepção do -se e ainda se faz urgente. O processo de inclusão, através do teatro negro,
solo Histórias Bordadas em Mim, foi necessário retornar para casa e re- vai além de apresentação artística, engloba método de interpretação, ten-
visitar a dramaturgia trazida nas histórias das ancestrais, escritas e orais, do como base o retorno as raízes e o aprendizado pelas bases corpóreas.
nos âmbitos sociais, políticos e religioso. Ao mesmo tempo tornou-se Esse corpo, com base no teatro, pode ser comparado ao corpo de uma
necessário observar os discursos atuais de colegas artistas pretos em re- criança que vai iniciando os primeiros contatos com o chão, aprendendo
lação à falta de oportunidades, constatando-se que um ponto de con- a erguer a coluna e dando os primeiros passos. Este retorno reconhece a
vergência estava nos discursos, o reconhecimento das raízes ancestrais. ancestralidade negra através do corpo e o imaginário dos Orixás. É um
A informalidade atribuída às atividades teatrais e à inexistência de ações gesto que parece simplório, mas é grandioso, significa o fortalecimento
que acolhessem de forma afetuosa, levando em consideração a realidade e o posicionamento de um corpo preto e as múltiplas possibilidades de
social e cultural dos artistas pretos nos ambientes acadêmicos e artísti- enxergar o mundo. Nesse sentindo, assevera Mussundza:
cos instigaram o retorno à matriz e a lavancaram uma vontade de trazer
A construção da identidade na minha tradição se estru-
para o palco as histórias reais vivenciadas na minha rotina e na dos meus tura de baixo para cima, e não de cima para baixo. É
colegas de cor, por meio de uma corporeidade na qual a energia dos como uma criança que após desenvolver tanta relação
Orixás fosse a mola que alavancasse as narrativas. com o chão entende seu corpo e começa a encontrar o
sentido da postura vertical, equilibrando o corpo com
A história de subalternização e invisibilidade da negritude, no Bra- os pés no chão (MUSSUNDZA, 2018, p.41).
sil, não é de hoje. Estruturalmente o país foi erguido pela força da diáspora
negra. Foram séculos de escravidão e sofrimento. Importante registrar que Os primeiros passos: Candomblé e o Teatro
a passividade não era comum. Os negros resistiam e articulavam ações de
[*] Espetaculo Teatral Criado em 2016 que evidenca as histórias reais na cena, genero biodrama Nas casas de Candomblé, quando uma criança é anunciada,
[**] Esse termo será apresentado com iniciais maiúscula, pois se enquadra em nome próprio, um ritual é realizado. Acredita- se que essa criança é um mestre que
além de valorizar o método de preparação inovador na metodologia interpretativa da atriz

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

escolheu determinada família e a família abre as portas da espirituali- de candomblé e significa um modo de resistência e proteção ancestral
dade para sua chegada. Os Orixás apresentam-se no jogo de búzios e dos antepassados. O ambiente preparado com cuidado conduz ao for-
já anunciam como protegerão o ser que está para chegar. No seu nasci- talecimento do povo negro para ocuparem todos os espaços em que
mento, são oferecidas flores e frutas para Oxum, a Orixá da maternida- vivem no meio social. As rodas de aprendizagem[*] são uma abertura
de e da prosperidade, e doces para os Ibejis, os irmãos que simbolizam de consciência para a percepção do que é existência, e (re)Existência[**].
as crianças. O nascimento deve ser de amor. Canta-se para que o ser se A força do conhecimento, que é transmitido através da ora-
sinta acolhido e aterre. Mesmo que esse mestre seja um abiku[*] e tenha lidade, tem uma proporção diferente das palavras escritas. A intenção
feito pacto para retornar ao Orun[**], ele será seduzido a permanecer na aqui não é negar a importância dos registros escritos, mas valorizar
terra. Um mestre é, acima de tudo, um sábio que retorna para cumprir o conhecimento ancestral, como uma possibilidade de criar novas
sua jornada, ele irá ensinar e aprender. Aos três meses, essa criança, re- narrativas de vida. A fala também é corpo de ancestralidade e está
cém- chegada ao Ayê[***], é levada para o terreiro e, no Pejí[****], ela é apre- contido no Owo ti Ara Agbara. A palavra falada, nas rodas de ensina-
sentada aos Orixás. Os pais se banham de ervas e acendem velas, uma mentos, não são só palavras, elas são acompanhadas de gestualidade,
cesta com oferendas são depositadas aos pés dos Orixás. É emocionante um corpo que se torna grande, fluído, flutuante, saltitante. Essas at-
presenciar o ritual, que, em certa medida, não é só do novo mestre, mas mosferas são encontradas na energia de Oxum, Yemanjá, Ossaim ou
de todos os filhos que fazem parte doIlê[*****]. um corpo blocado, pontiagudo, avassalador, quando se fala em Xan-
A obrigação de zelar pelas crianças na comunidade do Can- gô, Ogum,Iansã...Além dos cantos, dos batuques, das comidas...
domblé não é só dos paismas de todos, assim como a chegada de um Nas giras, as histórias apresentam-se em força dos Orixás.
novo irmão, a casa de Candomblé. Segundo mãe Amara, a Ialorixá Quando eles chegam à terra, é perceptível os pontos de energia de
(Mãe de Santo) do terreiro Ilê Obá Aganju Okoloyá[******], a sabedoria cada um desses seres. O Orixá não fala verbalmente, ele dança e sua
ancestral deve ser passada em forma de histórias para as crianças do ter- movimentação é o essencial na comunicação. Esse texto que nasce do
reiro e para os filhos novos, pois todos são iniciantes e devem ser aco- corpo, através das forças da natureza e sua conexão com o sagrado, é
lhidos pelo amor a sabedoria e a fé na escuta. “É assim meus filhos, que um caminho a ser seguido para descortinar outras narrativas e possi-
se forma a força do preto e sua resistência”. E continua: bilidades de uma interpretação teatral. No teatro, que utiliza a Dra-
maturgia dos Orixás, não é o sagrado do ritual religioso que vai para a
“os Orixás, estão no corpo de todos e sua apresentação
dá-se pela natureza, que está em cada ser vivo, todos de- cena, e sim a essência do movimento decodificada em partes do corpo.
vem cuidar da natureza. […] As divindades são ances- Por exemplo: o vetor de Iemanjá está no movimento alargado do qua-
trais míticos, ancestrais primordiais, que geraram todos dril e esse movimento é essencial para o ator flutuar e expandir. No
os outros ancestrais. Essas nações, tão caras aos africa-
nos, foram a únic ariqueza não retirada pela escravidão” teatro, esta energia pode chegar aos palcos em forma de cena, de voz
(BARBOSA, 2017, p.33) ampliada do ator, de espetáculo... Ou até mesmo através de seus ele-
mentos da encenação (figurino, maquiagem, cenário e iluminação). O
As falas de mãe Amara e o texto de Barbosa traduzem a impor- ritual religioso e seus segredos ficam no lugar sagrado da religião, sem
tância dos valores repassados pelos mais velhos e traduzidos nos cultos violação. Muito embora o candomblé seja uma forma de agrupamen-
to solidário. Segundo Nicolau Pares (2006), deve ser visto para além
[*] Crianças que terão passagem breve pela terra segundo a religião yorubá da expressão religiosa. O que não minimizaria sua ação, pois a religião
[**] Mundo espiritual na cultura Yorubá para o povo africano está contida em todas as instâncias da vida.
[***] Terra ou mundo Físico
[****] Altar dos Orixás [*] Rodas de conversas realizadas no terreiro onde se passa a tradição através de histó-
[*****] Casa de Candomblé rias dos Orixás e povos da África
[******] Terreiro de Candomblé da nação nagô situado na cidade de Recife-PE [**] No sentido de viver de forma empoderada

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

Reconhecimento ancestral para uma formação de Poder[*] método que alicerça os saberes acadêmicos e da tradição ancestral foca-
dos na realidade que pode ser modificada pelo indivíduo. Freire obser-
Aqui delimito alguns questionamentos para uma formação de va que “A realidade não pode ser modificada, senão quando o homem
poder a partir da força contida na cultura do sagrado e do retorno para descobre que é modificável e que ele pode fazê-lo” (FREIRE, 2001, p.
casa. Iniciarei os escritos apresentando-me e dizendo de onde vim (omiti- 40). Afirma ainda que “o ato ação-reflexão é a unidade dialética central
rei meu nome). Compreendo que é assim que se dá o processo de ensino e que movimenta o processo de conscientização” (FREIRE, 2001, p.30).
aprendizagem. Unindo ancestralidade, no reconhecimento e no respeito A descoberta da ancestralidade atravessa a construção desse
do legado dos antepassados; afetuosidade, na percepção de uma prática sujeito e favorece sua formação cultural. Levando em consideração a
educacional que precisa da generosidade do outro para existir e na educa- integralidade humana, na qual a educação e a espiritualidade juntas fa-
ção, que de uma maneira geral aponta caminhos para o desenvolvimento vorecem para a criação de uma pedagogia que revele a realidade que se
de métodos próprios para a formação intelectual, física, artística e moral modifica, e que o homem interfere através do processo de conscienti-
do indivíduo. Essas palavras relacionam-se e formam pilares importantes, zação do cotidiano. Esse processo de autonomia do indivíduo vai além
que não se apresentam de forma separada do ser humano e seu posicio- da consciência de opressão, exige ação: “Ao oprimido não basta saber-
namento social. Como bem resume o texto a seguir: “pois não há ances- -se oprimido; mas a conscientização deve inseri-lo em um processo de
tralidade sem alteridade. Toda alteridade é antes uma relação, pois não se transformação da realidade” (OLIVEIRA & CARVALHO, 2007,
conjuga alteridade no singular. O Outro é sempre alguém com o qual me p.9). A libertação da opressão pode ser vista nessa experiência através
confronto ou estabeleço contato” (OLIVEIRA, 2007, p.257). dos movimentos autônomos dos Orixás, que trazem em sua construção
Eu sou uma mulher preta, candomblecista, atriz, professora natural a concepção de liberdade e poder. A necessidade de exercer a li-
e pesquisadora da dramaturgia dos Orixás no ensino do teatro. Sou berdade e mostrar outras maneiras de contar uma história no palco, faz
mãe de Heloisa e Leo, filha de dona Lia e seu Otavio (uma auxiliar do espetáculo Histórias Bordadas (referência na primeira nota de roda-
de serviços gerais e um serralheiro). Sou neta de dona Maria e seu pé deste texto) um caminho de construção artística, através da autono-
Sebastião (uma índia curandeira e um homem negro que caçava para mia. Já o resgate da autoestima caminha em contraponto aos registros
viver), e de seu José e dona Belarmina (um agricultor e uma mulher históricos contidos nos livros e nos periódicos que trazem a realidade
que via na educação e na umbanda esperança de mundos melhores). do negro a partir de uma ótica colonizadora europeia.
Nessa construção ancestral familiar, algumas coisas cruzam-se e per-
Na construção do discurso histórico dito “oficial”,
manecem em minha formação como pessoa: a matriz afro-brasileira grande parte do material produzido através de livros,
latente, a espiritualidade, a arte, o respeito à natureza, o afeto, a escola artigos, periódicos, filmes, músicas e demais mídias
e a absorção de conhecimento transmitida através da oralidade. apresentam a história da cultura africana no país apar-
tir do processo escravizatório e seus desdobramentos
Minhas avós eram professoras. Uma era professora da escola atuais, ignorando as culturas complexas que antecede-
formal e tinha como ferramenta de trabalho o quadro verde, o giz, o ram as histórias de cada indivíduo africano escraviza-
papel e o lápis. A outra era curandeira, ensinava através do conhecimen- do no Brasil (BARBOSA, 2017, p.35)
to da natureza. Suas ferramentas de trabalho eram a voz, as ervas e a
terra. Já meus pais eram semianalfabetos. É nessa construção que se deu Para refazer este caminho foi e continua sendo necessário a apro-
minha educação e a maneira de ver o mundo. Fui alfabetizada por mi- priação de métodos que fortaleçam a construção que vem desde a origem
nha mãe, que aguerrida, aprendeu as primeiras letras para me ensinar. É de costumes e ideologias primárias da população negra do Brasil. Na in-
assim que se dá minha metodologia do ensino do teatro, através de um terpretação teatral, que busca uma liberdade a partir do reconhecimento
de quem veio antes, o resgate do Owo Ti Ara Agbara é fundamental. O
[*] Está em maiúsculo indicando o poder no sentido de autonomia. percurso escolhido é através de métodos interpretativos que valorizem os

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

ancestrais míticos, encontrados no texto corporal dos Orixás. A vivência A percepção de Abdias Nascimento ao assistir um espetáculo
no terreiro e a compreensão dos rituais fortalecem nesse caminhar. no Peru e testemunhar em cena o personagem preto, interpretado por
um ator branco e perceber que existiam atores pretos invizibilizados,
O surgimento do método Dramaturgia dos Orixás era a mesma que eu tinha todos os dias dentro e fora da academia no
e suas razões de (r)Existir campo artístico e pedagógico.
[...] num país em que havia negros também, que era o
Antes de escrever sobre os métodos que alicerçam e justificam Peru, uma peça que era para ter ator negro, sendo feita
o objeto de estudo é necessário tornar público os caminhos percor- por branco (...). Percebi porque eu nunca pude atuar
ridos até a sua criação. O meu ingresso na escola superior aconteceu em teatro, porque eu nunca vi ator negro, porque eu
nunca vi uma peça para negros, nunca via cultura ne-
no ano 2000 no curso de Licenciatura em Teatro, com Habilitação gra representada no palco: é porque os brancos não
em Artes Cênicas. Era a primeira da família a entrar na universidade deixam. (...) ali mesmo, no teatro, antes que a peça O
e a única mulher reconhecidamente preta da turma. Com 1,80 e 50 imperador Jones terminasse, a chama mais nova de um
kg, era uma mulher difícil de esconder. Enquanto professora, era na- fogo anunciador se acendia dentro de mim. De forma
límpida e definitiva, eu decidi ali mesmo: vou para o
tural ouvir que, pela aparente fragilidade física, seria difícil controlar Brasil e vou fazer teatro negro. E mais, vou começar
alunos desgovernados. Além disso, ouvia que, no teatro, não existiam com essa peça (NASCIMENTO, 2014, p.146).
personagens que encaixassem a cor e o biótipo físico. No teatro brasi-
leiro, as referências da construção de interpretação para a cena se dão A ação de Abdias, ao assistir o espetáculo, foi a mesma que me
a partir de uma ótica branca opressora, onde os textos, interpretação impulsionou a criar o curso e métodos de interpretação fundamentados
e os elementos da encenação seguem padrões colonizadores. Não pre- na Dramaturgia dos Orixás e dividir entre os artístas, que, assim como
cisa de uma lupa ou de um teórico teatral que tenha escrito algo do eu, tinham necessidade de visibilidade e de reconhecimento. Ocupar os
tipo para fundamentar as linhas acima, basta observar essa realidade lugares de direito da negritude e viabilizar caminhos para a percepção
nos palcos. Ir a um teatro convencional e testemunhar atores brancos de reconhecimento fortalecimento individual e coletivo.
em papeis de destaque e os raros atores e atrizes negras em papeis [...] Devemos ter em mente que até o aparecimento de Os
subalternizados ou desenvolvendo trabalhos braçais, na técnica e nos Comediantes e de Nelson Rodrigues – que procederam
bastidores. É evidente que corpos escurecidos e colonizados não ca- à nacionalização do teatro brasileiro em termos de texto,
dicção, encenação e impostação do espetáculo – nossa
bem nesta cena. Atrelado a isso, faltava representatividade acadêmica. cena vivia da reprodução de um teatro de marca portugue-
Teóricos e docentes com teorias enrijecidas de ensino apresentavam sa que em nada refletia uma estética emergente de nosso
de forma antagônica a realidade em que fui criada, na qual o conheci- povo e de nossos valores de representação. Esta verificação
mento era transmitido através do afeto e do respeito. Essa conjuntura reforçava a rejeição do negro como personagem e intér-
prete, e de sua vida própria, com peripécias específicas no
tornava ainda mais difícil a permanência no ensino superior. A minha campo sociocultural e religioso, como temática da nossa
estadia na academia deu-se principalmente pela sólida construção fa- literatura dramática. (NASCIMENTO, 2004)
miliar e a necessidade de auto afirmação a partir do reconhecimento
de minhas crenças sociais e religiosas. O amor pelo teatro e do incen- A fala de Abdias só assevera a importância da criação do
tivo das minhas ancestrais,vivas e mortas, exemplos de enfrentando Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944. A necessidade de
dos desafios do dia adia. Essas certezas faziam-me ampliar o olhar afirmação da negritude no teatro ainda se faz urgente. O método
para a realidade que me circundava e a necessidade de contribuir de de interpretação teatral, que se alicerça nos vetores dos Orixás se
alguma maneira para mudanças de paradigmas opressores. apresentou e se apresenta como forma de sistematizar novas possi-
bilidades de visibilidade do negro no teatro contemporâneo, é de

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

alguma maneira resultante de todo movimento criado por Abdias vigor e trazendo a cena à figura de um personagem forte e imponente. São
Nascimento e seus colaboradores, nos anos 40. bases fundamentadas em uma vivência religiosa e de reconhecimento de
Na Dramaturgia dos Orixás, a evidência de vertentes da matriz ancestralidade e são essas as bases estudadas na pesquisa da Dramaturgia
africana para criação de conceitos da cena, foca principalmente na gestua- dos Orixás. Ações metodológicas que unem teoria e prática. Posterior-
lidade do ator. É um retorno as matrizes iniciais que impulsionam a auto- mente, a metodologia é empregada nas mais diferentes esferas sociais,
nomia nos palcos da atualidade. É importante frisar que: além de Abdias étnicas e ideológicas. E tem os mais diversos resultados, mas todos cul-
Nascimento muitos outros teóricos e mestres afro-brasileiros pensaram minam no respeito individual e coletivo a força da arte como expressão
na educação, nas artes, e tantos outros campos a partir de origens do tea- de poder. A pesquisa tem caráter exploratório (GIL, 2002) e seus proce-
tro negro. Destacando aqui:o autor Joel Rufino que escreveu livros com dimentos técnicos unem a pesquisa-ação e a experimental (GIL,2002).
foco no resgate a história do teatro negro, evidenciando grupos teatrais Sendo necessário o envolvimento ativo do pesquisador e a ação por parte
pretos de todo o país; Inaycira Falcão dos Santos, que criou métodos de do grupo envolvido, além de planejamento das atividades que permeia
dança a partir da mitologia dos Orixás e traz em suas pesquisas do Corpo principalmente pelo âmbito educacional e social.
e Ancestralidade, estudo dos rituais e mitos da cultura Afro-brasileira na
dança, especialmente centradas na figura do mito, cuja análise de movi- Histórias Bordadas em Mim: Um solo teatral de Poder
mentos, sejam eles dançados, cantados, musicados são entendidos como
expressão da diversidade cultural e corporal dos povos. E ressalta ainda a Em uma palestra sobre novas narrativas intitulada “O Perigo de
importância de trabalhos de pesquisa dessa natureza (FALCÃO, 2006) Uma Única História” a romancista preta, Chimamanda Ngozi Adichie
(TED, 2009), inicia a palestra dizendo que é contadora de histórias e
A vivência pessoal no processo de pesquisa tornou-me
consciente dos movimentos corporais, técnicos e de que vai contar algumas histórias de sua vida. No final, ela chama aten-
possibilidade de criação artística. Dessa forma, pude ção para o perigo de uma história única. Essa palestra é muito impor-
reelaborar essa experiência vivida, para que pudesse tante para contextualizar o espetáculo Histórias Bordadas em Mim e o
conceituá-la e propor novos caminhos, ou pelo menos,
novas formas de trilhar os caminhos já abertos (SAN- conceito da encenação na Dramaturgia dos Orixás. Quando se trata da
TOS, 2006, p. 37) população preta, as narrativas são recorrentes: violência, subalterniza-
ção, exclusão social, o racismo, entre outros. O negro esteve sempre à
A percepção do não enquadramento aos padrões estabelecidos margem, desde sua chegada no continente americano até os dias atuais.
criou espaço para essas novas metodologias inclusivas que compreendem Não é preciso uma extensa pesquisa para chegar a essas conclusões. Bas-
as particularidades e as pluralidades de corpos afrocentrados nos palcos. ta entrar nas mídias sociais, assistir os programas de TV, ler os jornais
A Dramaturgia dos Orixás fortalece-se nas leituras de escritos dos e ver a contação de uma única história, a história preta negativa. Com
autores acima, mas sua origem esta na escuta de histórias de vida dos mais essas referências, ao se olhar ao redor, o foco será sempre na degrada-
velhos e na presença e compreensão dos rituais de matriz africana, na qual a ção da vida negra. Quando se fala na mulher preta, a situação se agrava
natureza e o indivíduo formam um só organismo vivo. Por exemplo: trazer ainda mais, pois se atrela ainda à responsabilidade de sustentar famílias,
para a cena um personagem que tem apenas a referência da coluna dobrada os salários desiguais, o alto índice de violência e a invisibilidade que se
é diferente da criação concebida através da essencia de Oxalá, no qual a ati- agrava em todas as esferas. O Espetáculo em questão, conta a história
vação do vetor de coluna arquiado possui simbolo de sabedoria, no qualos que muito se assemelha a essas narrativas negativas, mas em uma ótica
pés estão enraizados no chão, como base e valorização da terra. de superação e de criação de novas histórias. A obra reconhece as histó-
Ou ativar o vetor de Xangô através dos joelhos semi-flexiona- rias reais de invisibilidade, mas como forma de resistência contrapõe-se
dos, arquiar de ombro e abertura peitoral. Movimentar o corpo todo com criando outros desfechos. A partir da vida cotidiana da atriz, as histórias

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

reais trazem muito mais do que a pobreza de um discurso pessimista da rização de seus traços. Através da ativação da energia de Oyá[*] a atriz,
mulher preta e artista, leva a cena a mulher negra no topo, narrativas de move o corpo como um raio, refaz a maquiagem, ressalta seus traços
superação, de amor, de dor, de alegria, apropriação e poesia. No palco, negros e intensifica os contornos dos lábios com um batom vermelho
são vistas novas narrativas a partir de próprias vivências. (Figuras 1 e 2). Essa situação de fato aconteceu e a nova narrativa só
Sobre a construção inicial do espetáculo, muito se assemelha veio à tona por consciência e apropriação de suaraiz.
ao exemplo dado nas primeiras linhas desse texto, onde, para ter uma
noção de mundo mais ampla, é preciso fazer os percursos iniciais de Figura 1 – Atriz ativa a energia de Oyá em cena para enfrentar
uma criança, desde o chão até o arquiar da coluna. Para fazer o espetá- situação de opressão
culo era preciso retornar a matriz ancestral para vivenciar as histórias e
curar as situações de opressão, de dor e perceber onde estava contido a
gestualidade de cada palavra dita, nas histórias que estruturam o espe-
táculo e expandir o gesto gradativamente (aqui é importante dizer que
o corpo acompanha a palavra dita pela atriz e vai ampliando de acordo
com a importância que a palavra tem na cena). Essa abordagem foge aos
padrões civilizatórios e o fato de sentar em um baú e contar histórias
onde o corpo vai se transformando em cena, nem sempre é tido como
original. Sobre originalidade o tema é bem amplo. De que tipo de ori-
ginalidade estamos falando? E de que ótica? A originalidade pode ser Fonte: Fotografia Lana Lacet
percebida justamente por trazer ao palco narrativas cotidianas e mudar
o foco negativo para ouvir histórias que transformam. Em cena, o corpo Figura 2 – Atriz passa o batom vermelho em cena como sinal de
pode ser forte, leve, a voz pode estar embargada, grave e cantarolada, empoderamento
mudar de um extremo a outro, surpreendendo a plateia, contrapondo-
-se a modelos de interpretação naturalista e tradicional, onde o ator ser-
ve ao texto ou a qualquer outro elemento da encenação. Na ativação da
energia dos Orixás, o ator é um organismo vivo, amplo e único, o corpo
e a voz são importantes justamente por possibilitar externar a grandio-
sidade do momento vivido na cena.
Não bastava só criar um espetáculo e mostrar outras maneiras de
contar a mesma narrativa, mas era necessário alicerçar a interpretação em
um método que dialogasse e que trouxesse à tona o Owo Ti Ara Agbara.
Só assim, através do reconhecimento desse corpo e seu lugar de origem, é
que a apropriação e o empoderamento seriam expostos no palco.
Um exemplo disso pode ser percebido quando a atriz fala de
sua experiência na passarela[*] e da adequação de sua pele aos padrões de
maquiagem da época. O resultado era uma pele translúcida e sem valo- Fonte: Fotografia Lana Lacet
[*] Oyá é a Orixá dos raios e tempestades e tem o búfalo e a borboleta como
simbologia animal. No corpo a atriz ativa a energia do raio e do búfalo para enfren-
[*] A atriz desenvolveu trabalhos de modelo e moda durante os anos de 1998 a 2010. tar a situação de opressão

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

Para se ter uma ideia real de como se desenha o espetáculo, Figura 4 – Treinamento Dramaturgia dos Orixás. Elevação total do corpo
será narrado aqui a cena inicial. Ao entrar na sala de espetáculo,
as pessoas testemunham o nascimento de uma lagarta, que mais
tarde transforma-se numa colorida borboleta (Figura 3). Através
dessa narrativa, é possível perceber traços simbólicos e ancestrais
que norteiam a obra: O imaginário dos Orixás, transmissão oral e
a união do teatro mais físico (teatro que valoriza a interpretação
do ator através do gesto corporal).

Figura 3 – A atriz transformando o corpo para trazer a cena o nasci-


mento da borboleta

Fonte: Fotografia Lana Lacet

Primando por um processo educacional, através do teatro


mais ritualístico e questionador, na tomada de consciência através
do corpo, a cena traz a pesquisa do imaginário dos Orixás como
Fonte: Fotografia Talles Ribeiro
base e os pensamentos de Eugenio Barba (2009), e outros que foram
citados no decorrer desta escrita, além de teorias vindas do conheci-
Por exemplo, a energia de Oxum de natureza aquática e con-
mentoe imaginário popular.
tínua, no corpo está atrelada à pélvis. Ativando essa parte do corpo
Os exercícios físicos focados nas energias dos Orixás encon-
estabelece-se, no imaginário, o poder da mulher apartir da fertilidade,
tram-se em partes especificas do corpo: pélvicos, extremidades corpo-
trazendo o sentimento do cuidado e da riqueza espiritual. Como isso
rais, peitoral, elevação total do corpo, entre outros (figura 4), associados
reverbera no corpo? Em amplitude e fluidez. O espetáculo é todo cria-
às histórias mitológicas das entidades Afro-ameríndia e a teoriado ima-
do através da energia de Oxum o corpo permanece de forma circular,
ginário PITTA (2005). A construção imagética do Orixá e da sua rela-
líquida e flutuante (Figura 5).
ção com a natureza também servem de questionamentos críticos para a
construção social que o espetáculo levanta todo o tempo.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

Figura 5 – Corpo ativado com a pélvis da energia de Oxum na qualidade do movimento a ação e a reação. No corpo, o desenho é de
um arco e de uma flecha. Através do imaginário, esse corpo está olhando
para si quando se contrai e para o mundo quando expande. No espetácu-
lo, a prontidão nas cenas pode ser percebida quando se fala de situações
vividas no dia a dia da artista preta, pronta para situações de defesa. Assim
como a contração no corpo quando se fala das situações de medo e de re-
flexão. A construção das imagens é quase que automática para a criação de
novas situações que mudem finais trágicos ou fantasiosos. O pensamento
de Gilbert Durant assevera a potência desse processo:
Possuir um repertório quase exaustivo do imaginário
normal e patológico em todas as camadas culturais que
nos compõem a história, as mitologias, a etnologia, a lin-
guística e as literaturas. O imaginário nessa perspectiva,
pode ser considerado como essência do espírito, à medi-
da que o ato de criação (tanto artístico, como o de tornar
algo significativo), é o impulso oriundo do ser (indivi-
dual, coletivo) completo (corpo, alma, sentimentos, sen-
sibilidade, emoções...) é a raiz de tudo aquilo que, para o
homem, existe. (DURAND, 2005, pg.13)

A proposta apresentada contribui de maneira direta nos po-


sicionamentos em situações de opressão, mas criando relação de afe-
to com o outro, criando laços de amizade e de companheirismo com
o público. De maneira geral, o estudo é uma estratégia de combate
às opressões, munindo-se da educação, do fortalecimento espiritual
e da arte para criar narrativas positivas de vida. A representatividade
deve acontecer de dentro para fora.

Considerações Finais

Levando-se em consideração a necessidade de externar possibi-


lidades de representatividade positiva para o artísta preto através do tea-
tro, o trabalho em questão aborda um aprofundamento teórico e prático
a partir do corpo e sua gestualidade. O resgate do Owo Ti Ara Agbara
Fonte: Fotografia Lana Lacet foi fundamental para percorrer caminhos de compreensão da necessi-
dade urgente de uma metodologia que valorizasse os vetores ancestrais
Um outro exemplo pode ser observado nos vetores do orixá dos Orixás a partir da vivência nos terreiros de matriz africana e sua re-
Oxóssi. Seu elemento é o arco e a flecha. É o Orixá que traz, em sua simbo- lação com a arte e o meio social. A criação de um método interpretativo
logia, a fartura do alimento e a valorização das matas e dos animais. Traz com base em uma dramaturgia cênica aprofundada através da expansão

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES REPRESENTATIVIDADE NEGRA

que o corpo negro necessitava para as novas possibilidades de de contar CHEKHOV, Michael. Para o ator. 1. ed. São Paulo: Wmf Martins
histórias e narrativas positivas, deram origem a Dramaturgia dos Orixás. Fontes, 2010. COURTNEY, Richard. Jogo Teatro e Pensamento. 1.
Através dela, foi possivel perceber que não se deve dissociar o artísta de ed. São Paulo: Perspectiva, 1980.
todos os pilares que formam sua identidade, desde o reconhecimento de
DURAND, Gilbert. Estruturas Antropológicas do Imaginário. 1. ed.
quem veio antes, a religiosidade, a arte, a cultura e a familia, formando ba-
São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ses para posicionamentos sociais de combate às opressões. Por exemplo,
experimentar no corpo o vetor de um Orixá, como Oxum, que trouxe a FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma
percepção de valorização da fertilidade e da fluidez, do cuidado indivi- introdução ao pensamento de Paulo. 1. ed. São Paulo: Centauro, 2001.
dual, evidenciando na interpretação de uma personagem, traz um resgate FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janei-
da autoestima feminina e reverbera na vida cotidiana. ro.1.ed.: RiodeJaneiro: Paz e Terra,2006.
O resultado desses estudos foi evidenciado no espetaculo Histó-
rias Bordadas em Mim, em que, no palco, as histórias reais da atriz foram FREIRE, Paulo. Pedagógia do Oprimido. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e
interpretadas com autonomia através de um corpo ativado com os vetores Terra, 2005.
dos Orixás, exercendo posicionamentos de poder. Conclui-se, portanto, GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 4. ed. São
que os escritos acima possibilitam compreender uma proposta de teatro Paulo: Atlas, 2002
que valoriza o empoderamento étnico racial tendo como base a ancestra-
lidade e as formas de representatividade negra na cena teatral, apontando GOHN; G, M. Educação não-formal na pedagogia social. In Procee-
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p. 10, mar. /2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-
4698176656 Muito me honra o convite para fazer o posfácio de um livro tão
importante para o nosso país, em especial no momento em que vivemos,
TSHOMBE, Miles. Abdias Nascimento e a tradição Intelectual Afro- de tanto negacionismo e retrocesso na pauta racial. É fundamental, em
diasporica no Combate ao Racismo. repositório, Fortaleza, v. 48, n. 2, tempos de cortes orçamentários e cerceamentos nas pesquisas no Brasil,
p. 106-136, jul./2017. Disponível em: http://www.repositorio.ufc.br/ que obras como esta que agora encerro sejam produzidas, dando voz às
handle/riufc/27901 demandas e experiências das populações negras, reafirmando o compro-
misso com o fim do racismo e das opressões que atravessam as nossas vidas.
Falar da minha trajetória como uma mulher negra que escolheu
o caminho da política institucional para mudar a sociedade é falar de an-
cestralidade. É falar de quem me antecedeu e de quem, junto comigo, me
ajudou a chegar onde estou. Nada começa do nada, tudo tem história.
Gosto de dizer que minha família é matriarcal. Isso porque as
minhas principais referências de vida são duas mulheres: minha avó
Vilma, uma mulher branca, e minha tia paterna Kátia, uma mulher
negra. As duas ajudaram na minha criação desde cedo e foram funda-
mentais para o meu entendimento do que é ser uma mulher guerreira,
batalhadora e, principalmente, vencedora.
Posso dizer que a semente do meu ímpeto de luta por justiça
social de alguma forma vem dessas mulheres, dos exemplos que elas me
deram. Tia Kátia batalhou a vida toda, conseguiu se formar em duas fa-
culdades e atuou em comissões da Ordem dos Advogados do Brasil em
São Gonçalo discutindo pautas sobre os direitos das mulheres e igualdade
racial, que são questões que norteiam minha atuação política até hoje.
Apesar disso, nenhuma das duas teve uma participação dire-
ta na política institucional. Na minha família, esse histórico vem do

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meu avô Manuel, que simpatizava com os ideais comunistas e ajudou histórico na história política do município: fui a primeira mulher negra a
a fundar um importante movimento trabalhista de Niterói, os sindi- ocupar esse o cargo. Hoje, olhando em retrospecto, percebo que minhas
catos dos funcionários domésticos, e ainda fazia parte do sindicato dos derrotas anteriores se deram sobretudo pela desigualdade de oportuni-
sapateiros. Pouco convivi diretamente com ele, mas tive contato com dades entre candidatos brancos e negros nas disputas eleitorais, efeito do
esse legado a partir, também, do que ouvi daqueles que o conheceram. racismo estrutural que atravessa todas as dimensões da nossa vida. Eu ti-
Quando meu avô partiu, eu ainda era jovem, estava começando a me nha enfrentado candidatos com recursos muito superiores aos meus, que
engajar em discussões e disputas políticas. permitiam, por exemplo, a aquisição de empenas nos bairros da cidadã
Nessa época, estudei no Colégio Estadual Joaquim Távora, escola – publicidades caríssimas que tomavam metade de um prédio.
pública de Niterói que tinha um forte movimento estudantil. Nesse mo- Eleger mulheres, pessoas de periferias e favelas e pessoas negras
mento participei, ainda sem grande envolvimento, de um congresso estu- é sempre muito mais difícil, porque os espaços de poder foram pen-
dantil. No ano seguinte, já buscando me integrar de maneira mais ativa, sados para outras pessoas. Por outro “perfil”: branco, masculino e de
compus uma chapa eleitoral e venci a disputa pela direção do grêmio es- classe média, o mesmo que quase me impediu de ocupar espaços no
tudantil. Foi um momento importante, em que tive contato com pautas movimento secundarista. Em 2012, já mais madura e com redes estabe-
como a luta por melhoria nas condições e na estrutura das escolas públicas e lecidas com os movimentos sociais da cidade e dentro do meu próprio
a demanda pelo passe livre estudantil. Além disso, comecei a construir uma partido, o PT, consegui construir uma campanha que, apesar dessas ad-
consciência política mais ampla acerca das questões que nos atravessavam. versidades, sagrou-se vencedora.
Quando comecei a atuar politicamente nesses espaços, a questão Se esses espaços não são pensados para nós, temos que en-
racial ainda era, infelizmente, distante de mim. O debate nas esquerdas bra- trar com o pé na porta! A partir do meu ingresso na Câmara Muni-
sileiras ainda era centrado numa visão de luta de classes que marginalizava cipal, comecei a construir um corpo de trabalho, ainda em curso, do
pautas como racismo, machismo, misoginia, sexualidades. No entanto, à qual tenho muito orgulho.
medida que fui amadurecendo, foi ficando cada vez mais evidente a neces- Conseguimos, em 2014, construir o primeiro Estatuto Muni-
sidade de trazer essas demandas para o centro das nossas discussões. cipal de Igualdade Racial do país, a Lei 3010/2014, que tem um capítu-
Àquela altura já era notório que os espaços da política institucio- lo inteiro dedicado às religiões de matrizes africanas. Essa vitória, den-
nal eram majoritariamente brancos, masculino e de classe média. Nesse tro de um parlamento de perfil mais conservador, foi muito difícil. O
sentido, meu esforço se deu, desde essa época, no sentido agregar a juven- Estatuto também prevê incentivos ao empreendedorismo, à empregabi-
tude negra e periférica, buscando modificar o “perfil” desses locais, que lidade e às manifestações da cultura negra, além de medidas de proteção
foi mudando, se democratizando, ganhando novas caras, cores e trajetó- à saúde do povo preto. A iniciativa também garante que 20% das vagas
rias. Esse ímpeto até hoje está presente na minha atuação política. em concursos públicos de Niterói sejam reservadas a pessoas negras.
Vale ressaltar que minhas aspirações iniciais não giravam em Essas são conquistas fundamentais na nossa luta antirracista em prol de
torno da vontade de me tornar uma pessoa pública. Meu objetivo sem- uma sociedade mais justa e com oportunidades para todos.
pre foi organizar a luta coletiva para melhorar a vida da população. Não tenho dúvidas de que o fato de ser uma mulher preta,
Acredito que o que me conduziu a essa trajetória foi o fato de sempre umbandista e filha da classe trabalhadora influencia diretamente
ter sido alguém que busca ajudar a formar pessoas, a conscientizá-las nas demandas prioritárias do meu mandato. Conhecemos a reali-
acerca das pautas e debates fundamentais para a sociedade. Por isso fui dade daqueles que mais precisam e representamos as urgências que
incentivada a tentar uma inserção na política institucional. atravessam suas vidas. Nossa preocupação é transformar a vida das
Em 2012, depois de duas tentativas sem sucesso nas disputas pessoas que mais precisam e que historicamente têm um déficit de
eleitorais de 2004 e 2008, fui eleita vereadora da cidade de Niterói. Feito representação nos espaços de decisão da política.

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NEGRITUDES: PROTAGONISMOS, CULTURAS E TERRITORIALIDADES POSFÁCIO

Não estamos falando de méritos ou vitórias individuais. Esta- parte da juventude negra. Porque eu tive referenciais e tive ajuda. E o que
mos falando da construção de um legado coletivo. As leis que aprova- eu não tive, quero poder oferecer a outros. Ainda estamos longe de ver
mos são conquistas que se interligam às lutas históricas dos movimen- extinto o racismo no nosso país. O Estado brasileiro tem uma dívida com
tos negros no país. Elas revelam as possibilidades que se apresentam seu povo preto e, se nós não gritarmos, isso nunca será reconhecido. É
quando disputamos os espaços da institucionalidade. uma questão que precisamos encarar de frente. Por isso estou na política e
A minha geração não teve muitas referências de pessoas negras coloco minha energia à disposição da luta do povo negro.
desempenhando papéis importantes na política, mas essas “exceções” Estamos juntos e juntas nessa luta! Os que vieram antes de nós
foram fundamentais para pavimentar o caminho. Gostaria, nessa pers- e os que virão depois. Viva Abdias do Nascimento!
pectiva, de citar alguns nomes que sempre me inspiraram na construção
da minha trajetória política. Uma figura que sempre admirei e até hoje
é uma referência forte para mim é a deputada federal Benedita da Silva.
A “Bené”, como o povo a chama com carinho, foi a primeira mulher ne-
gra que vi ocupar esse espaço de poder, essa posição de destaque como
parlamentar. Foi a primeira mulher negra eleita para o Senado Federal
e a primeira governadora negra da história do Rio de Janeiro. Ainda
hoje, infelizmente, quando olhamos para as Câmaras Municipais, As-
sembleias Legislativas, para a Câmara dos Deputados e para o Poder
Executivo, nós, mulheres negras, somos a minoria.
Lélia Gonzalez é outro nome imprescindível, que serve, na mi-
nha atuação política, como norte para as discussões sobre raça, gênero e
desigualdades no Brasil. Uma intelectual extremamente inteligente e pro-
vocadora, Lélia foi pioneira nos estudos sobre as experiências de mulheres
negras no nosso país e também teve uma potente participação política: foi
uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU) e, filiada ao
Partido dos Trabalhadores, chegou a disputar o cargo de deputada federal.
O grande homenageado desse livro, Abdias do Nascimento, é
sem dúvida um nome fundamental na luta antirracista no Brasil. Todos
nós que nos empenhamos pelo fim da opressão racial temos que reve-
renciar sua memória e seu legado. Em sua obra, Abdias denunciou o
genocídio do negro brasileiro, trágica realidade que viemos até hoje. Foi
ainda deputado federal e depois senador pelo estado do Rio de Janeiro,
fazendo da política institucional um meio para buscar melhorias para a
população, em especial para o povo negro.
Precisamos agradecer aos nossos mais velhos e nossas mais ve-
lhas. Todos os lutadores e lutadoras que abriram os caminhos para que
nós viéssemos até aqui. Por isso, me sinto na obrigação de estar nesse lugar
de promover, ajudar e incentivar a ocupação dos espaços de poder por

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Texto da Orelha

O Prêmio Balogun Abdias do Nascimento de Artigos e


Pesquisas Científicas em Culturas e Religiões Afro-Bra-
sileiras anuncia um novo momento da cidadania e dos di-
reitos humanos no Brasil. Aponta o caminho de construir
produção científica oriunda das matrizes africanas em to-
das as dimensões da experiência brasileira. O edital aberto
garantiu contribuições das mais variadas comunidades, re-
velando sua rica diversidade de temas e perspectivas.

Este ano marca uma década da passagem de Abdias Nas-


cimento para o plano dos ancestrais e quatro décadas da
fundação do IPEAFRO. Mudanças fundamentais foram con-
quistadas a favor da população negra. Este livro ilustra o
avanço realizado e o campo ainda aberto a trabalhar.

A comissão científica do Prêmio abre em boa hora esse es-


paço para aprofundar e dar visibilidade a um debate que
atualmente cresce em qualidade e ganha peso no cenário
das ideias e das ações. Ao contar histórias que a História só
agora começa a contar, ajudam a revelar um Brasil que há
tanto tempo insistiu-se em não ver. O IPEAFRO fica honrado
em participar dessa empreitada.

Profa. Dra. Elisa Larkin Nascimento - IPEAFRO

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