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Rio de Janeiro
2013
Jonatas Carlos de Carvalho
Rio de Janeiro
2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
CDU 304:364.272
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que
citada a fonte.
_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Jonatas Carlos de Carvalho
_____________________________________________________
Profª. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
_____________________________________________________
Profª. Dra. Maria de Lourdes da Silva
Faculdade de Educação - UERJ
_____________________________________________________
Prof.ª Dra. Anna Beatriz de Sá Almeida
Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz
Rio de Janeiro
2013
DEDICATÓRIA
À minha esposa e companheira Mariáurea, que tem sido ao longo destes anos uma revisora
paciente de todos os meus textos.
Aos meus irmãos Janete e Josué, parceiros de longas datas, agradeço a estadia em Niterói e as
muitas caronas até a UERJ ao longo do curso.
As professoras Dra. Maria de Lourdes da Silva e Dra. Anna Beatriz de Sá Almeida que
gentilmente aceitaram o convite para compor a banca de qualificação e ratificaram o convite
para compor a banca examinadora desta Dissertação.
.
A históriatem por função mostrar que aqui o que é, nem sempre foi, isto é, que é sempre na
confluência dos encontros, acasos, ao longo de uma história frágil, precária que se formaram
as coisas que nos dão a impressão de serem mais evidentes. O que a razão experimenta como
necessidade, ou melhor, aquilo que as diferentes formas de racionalidade apresentam como
lhes foi sendo necessário, podemos fazer perfeitamente sua história e encontrar as redes de
contingências de onde isso emergiu.
Michel Foucault
RESUMO
Este trabalho problematiza um tipo específico de racionalidade que emergiu nos fins
do século XIX e avançou no século XX, implicando na constituição de uma política mundial
destinada à regulamentação de determinadas substâncias psicoativas. Tais práticas foram
possíveis em virtude de uma produção discursiva cujos enunciados médico-sanitários
reivindicavam a intervenção dos Estados Nacionais em assegurar a saúde coletiva. No caso do
uso de psicoativos, tais discursos fizeram emergir uma série de tratados internacionais, leis
nacionais, normas e regulações que modificaram o comércio e os hábitos de consumo de tais
substâncias, criminalizando qualquer uso que não estivesse de acordo com a legislação
vigente. O recorte que esta dissertação procura fazer tem por foco analisar como esse processo
se deu no Brasil, mais especificamente a partir da criação da Comissão Nacional de
Fiscalização de Entorpecentes – CNFE, organização esta de caráter governamental, que após
sua criação passou a centralizar as políticas sociais sobre drogas no país. A CNFE foi
constituída por meio do Decreto-Lei nº 780em 28 de abril de 1936, vinculada ao Ministério
das Relações Exteriores em conjunto com o Departamento Nacional de Saúde, através do
Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional. Neste caso, utilizando a documentação
encontrada no Arquivo Histórico do Itamaraty, na Biblioteca de Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, dentre
outras. Procurei delimitar esta pesquisa nos primeiros dez anos de atuação da Comissão, isto
é, entre 1936 e 1946, para tanto, utilizo como instrumento de análise teórico-metodológico
duas noções que serviram às reflexões do pensador francês Michel Foucault; biopolítica e
governamentalidade. Desta forma, procuro acionar tais noções para localizar as estratégias de
poder que culminaram na “governamentalização do Estado” voltadas para a gestão da vida
das populações, tendo como pano de fundo os interditos das políticas sociais sobre drogas.
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 10
1 HISTÓRIA DOS INTERDITOS DOS PSICOATIVOS: O BRASIL E A
POLÍTICA MUNDIAL SOBRE DROGAS..................................................... 20
1.1 As drogas na história e a história das drogas: experimentações humanas .. 20
1.2 A emergência do proibicionismo: liberalismo e antiliberalismo.................... 23
1.3 História e historiografia das drogas e seus interditos.................................... 31
1.4 A politica mundial de drogas: As conferências internacionais do ópio e o
Comitê central permanente.............................................................................. 36
1.5 O Brasil nas conferências.................................................................................. 48
2 O PROIBICIONISMO E A NOVA RAZÃO DE ESTADO: A
COMISSÃO NACIONAL DE FISCALIZAÇÃO DE ENTORPECENTES
– 1936-1941.......................................................................................................... 53
2.1 A formação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes:
internalização e sofisticação das técnicas de controle..................................... 53
2.2 Aprimorando as técnicas: 1939- 1941.............................................................. 59
2.3 Os relatórios do DNS: as atuações do Serviço de Fiscalização do Exercício
Profissional e a CNFE....................................................................................... 78
3 ENTRE A POSITIVIDADE DO PODER E A REPRESSÃO: A CNFE –
ANOS DE 1942-1946.......................................................................................... 86
3.1 A amplificação do projeto pedagógico: as Comissões Estaduais e o
mercado de entorpecentes em tempo de guerra.............................................. 86
3.2 A CNFE e a criminalização da maconha......................................................... 90
3.3 As estratégias para o pós-guerra....................................................................... 99
3.4 As atividades da Seção de Fiscalização de Entorpecentes entre os anos de
1942 e 1946 e as mudanças nos rumos das
importações......................................................................................................... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 114
REFERÊNCIAS................................................................................................. 119
10
INTRODUÇÃO
Esta dissertação é fruto das minhas inquietações a respeito da história dos interditos
sobre drogas. Práticas que a historiografia recente convencionou chamar de proibicionismo,
isto é, todo um conjunto de estratégias políticas e econômicas colocadas sob a tutela dos
Estados Nacionais para regulamentar o consumo de substâncias psicoativas no mundo.
Embora o termo seja adotado na maioria absoluta dos estudos sobre o tema, não há uma
discussão mais clara acerca do verbete. Boa parte das definições, entretanto, aproxima-se da
que foi proposta pelo Núcleo de Sociabilidade Libertária – NU-SOL:
1
Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. Verbetes NU-SOL, in: http://www.nu-
sol.org/verbetes/index.php?id=70
2
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora. 2005, p.27.
11
3
RODRIGUES, Tiago. Política e drogas nas américas. São Paulo: Educ/Fapesp. 2004, pp.142-147. Veja também: ADIALA,
Júlio Cesar. O problema da maconha no Brasil: ensaio sobre racismo e drogas. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1986, 24 p. Segundo
o autor, a CNFE [..] inaugurou uma nova fase na luta contra as substâncias entorpecentes no Brasil. Reunindo
representantes dos ministérios públicos, das forças armadas e das autoridades sanitárias e policiais, a CNFE
institucionalizou a luta contra as toxicomanias iniciada pelos higienistas no final do século XIX.
4
BRASIL, Coleção de Leis do Brasil, p.148, v.4, Catálogo de Saúde Pública: 28 de novembro de 1938.
12
Foucault procurou apresentar as razões pelas quais deslocava sua análise sobre a
questão do poder. Ao pensar o poder disciplinar, concentrou sua investigação histórica na
exterioridade das instituições, o que implicava a um triplo movimento de recusa: escapar à
problemática da instituição que ele chamou de ―institucional-centrismo‖; passar ao exterior
quanto à função da instituição; recusa ao objeto já dado. Ora esta exterioridade, esta recusa
em analisar a funcionalidade interna das instituições, lhe permitiu pensar as relações de poder
como técnicas e estratégias gerais. Essas tecnologias gerais de poder que ele procurou
localizar fora das instituições locais, tais como as prisões e os hospitais, acabaram por
conduzi-lo a uma instituição global; o Estado. A questão para Foucault implicava em saber se
podia utilizar a mesma forma de análise empregada nas instituições locais, no objeto Estado.
5
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso dado no Collége de France, 1979-1980. Aulas de 09 e 30 de janeiro de
1980. São Paulo: Centro Cultural Social, 2009.
6
Idem, p.21
13
Não se trata da substituição de um poder por outro, pois o biopoder até mesmo precisa das
técnicas disciplinares; mas ele se coloca numa outra escala, tem outra superfície de suporte e é
auxiliado por instrumentos totalmente diferentes. 7
A gestão governamental tem como alvo principal a população, esta é a outra escala a
qual se referiu Veiga-Neto. A emergência da população nas sociedades ocidentais fez com
que esse tipo de poder, que Foucault chamou de ―governo‖, se tornasse preeminente em
relação aos outros (soberania e disciplina). A esses os novos domínios de saber e novas
tecnologias que se constituíram com objetivo de administrar o corpo social, Foucault
denominou de governamentalidade. Segundo ele, tal noção compreende entre outras:
7
VEIGA-NETO, Alfredo.Foucault e a Educação. 3ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
8
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.143. Sobre o conceito de
governamentalidade veja também: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault; Um percurso pelos seus temas, conceitos e
autores. São Paulo. Autêntica, 2009. pp.120-122; NETO, Farhi Leon. Biopolíticas: As formulações de Foucault.
Florianópolis: Cidade Futura, 2010. pp.156-179; GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação.
Introdução e conexões, a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. pp.119-142.
14
Estado.9Neste sentido, o que lhe interessava não era a estatização da sociedade, mas a
―governamentalização do Estado.‖10 A governamentalidade seria para o Estado, o que foi a
segregação para a psiquiatria, as técnicas disciplinares para o sistema prisional e a biopolítica
para as instituições médicas.
Foucault utiliza esta noção para fazer uma genealogia do Estado moderno através de
seus diferentes aparelhos (sociedade, economia, segurança e liberdade), por intermédio de
uma história da ―razão governamental‖ sem enveredar pela ontologia. Estes aparelhos são
―elementos de uma nova governamentalidade‖, cujas modificações contemporâneas podem
ser identificadas em nossos dias. Embora haja, como já constatamos, um conceito geral para a
noção, Foucault por vezes, denomina-a no plural, atribuindo-lhe a uma sucessão de técnicas
diferentes, destinadas aos aparelhos do Estado moderno. Foucault fala de ―novas formas‖ de
governamentalidade, exemplo: a governamentalidade dos políticos e dos economistas.11
Nesta dissertação as apropriações destas noções terão sempre por objetivo ―iluminar‖,
o tanto quanto possível, como que por uma lente, as imbricações, acoplamentos e
confluências presentes na dinâmica das relações de poder que possibilitaram a emergência da
CNFE. Ao longo dos três capítulos procurei, sempre que possível, identificar os mecanismos
de poder e os dispositivos que produzem e mantêm os ―assujeitamentos‖ e forjam as
subjetividades. Utilizando como materialidade as técnicas e táticas que permitiram centralizar
as políticas sociais sobre drogas em uma organização governamental. Neste sentido, este
trabalho tem por objetivo, verificar como as estratégias de poder de caráter proibicionista se
realizaram e se sustentaram (ou até quando se sustentaram) no processo histórico. A hipótese
central desta dissertação está em propor que a CNFE se constituiu em um instrumento
centralizador, destinado a internalização de um tipo específico de racionalidade, cujas técnicas
e estratégias objetivavam regulamentar os modos lícitos de se consumir psicoativos no Brasil
e, por conseguinte, criminalizar todo e qualquer uso que não tivesse finalidade medicinal.
O primeiro capítulo foi dividido em quatro blocos, no primeiro tentei apontar o
interesse dos homens pelos estados alterados de consciência. As substâncias psicoativas
sempre estiveram presentes nas relações sociais e há muito que os historiadores se interessam
por estas relações. Outro ponto discutido neste bloco está à emergência dos interditos sobre os
usos de psicoativos já presentes nos Estados teocráticos. A racionalidade liberal, a partir do
9
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France, 1979-1980: aulas de 09 e 30 de Janeiro de 1980.
Nildo Novelino (Trad). São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009. p. 19.
10
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.145.
11
Idem. p. 476.
15
século XVIII teria, nas palavras de Antônio Escohotado, suscitado um interregno nas
proibições, mas a partir da segunda metade do século XIX um movimento social de caráter
puritano passou a condenar o uso recreativo do álcool.12 Tal movimento, conhecido como
proibicionismo, onde os efeitos mais aparentes deram-se nos EUA, dentre os quais destaquei a
criação do Partido Proibicionista e a Lei-Seca, lei esta que manteve o consumo de álcool
proibido por 13 anos naquele país.
No segundo bloco procurei fazer, mesmo que de um modo panorâmico, uma
―passagem‖ pelas problematizações levantadas na historiografia sobre o proibicionismo,
destacando aqueles trabalhos que privilegiaram os efeitos da internalização deste no interior
da sociedade brasileira. Identifiquei que a historiografia brasileira sobre o proibicionismo
conta com trabalhos iniciados nos fins dos anos de 1970, mas foi nas duas últimas décadas
que o volume de teses e dissertações aumentou. Nos dois últimos blocos, que são conexos de
certa forma, busquei explorar o modo como tais relações de poder se materializaram em
Convenções e Tratados internacionais (terceiro bloco), assim como a participação do Brasil
(quarto bloco), na construção dos marcos regulatórios que mudaram as relações do comércio e
do consumo de psicoativos na economia mundial. Verifiquei que o proibicionismo constituiu-
se em forma de política mundial por meio de intensos debates entre as potências mundiais na
primeira metade do século XX. Tomei como ponto de partida, para discutir a emergência
dessa nova racionalidade com vista à formação de todo um conjunto de interdições sobre
drogas, as chamadas de Conferências do Ópio iniciadas em Xangai em 1909; Haia 2012;
Genebra 1924; 1931 e 1936. Tal racionalidade buscava reivindicar a legitimação do uso de
psicoativos como restrito à classe médica, logo o comércio mundial de drogas deveria estar
condicionado às necessidades médicas e científicas.
Sobre a participação dos governos brasileiros nas Conferências do Ópio, constatei que
a documentação disponível nos arquivos brasileiros são fragmentadas, o que impede um
estudo mais aprofundado. Entretanto, a partir das fontes existentes no Arquivo do Itamaraty e
dos Relatórios Ministeriais é possível compreender um pouco as particularidades da política
brasileira. A partir da leitura desses documentos foi possível verificar que apesar do governo
brasileiro ter ratificado a Convenção de Haia em 1913 e promulgado o ato por meio do
Decreto nº 1.148 de 10 de fevereiro de 1915, somente a partir de 1921 é que o referido tratado
passou a vigorar com a Lei 4.294/1921. O Brasil ainda teria participado na Conferência
seguinte, em 1924, tendo os médicos Pernambuco Filho e Humberto Gotuzzo como
12
ESCOHOTADO, A. História general de las drogas. Madri. Espasa, 1998.
16
delegados. Mesmo não sendo possível encontrar o relatório deixado por eles sobre a mesma,
outra fonte, sugere que os representantes brasileiros não tiveram qualquer papel decisivo na
introdução da canabis sativa (maconha), na listagem da conferência em questão, como
pretendeu defender certos pesquisadores brasileiros.
Constatei que a criação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes –
CNFE foi uma iniciativa do governo brasileiro de colocar em prática as orientações presentes
na Convenção para Limitar a Fabricação e Regulamentar a Distribuição de Estupefacientes de
1931. Ressalto que tal iniciativa é pioneira entre os países latino-americanos. Foi justamente
este pioneirismo que me levou a procura por compreender as condições de possibilidades que
permitiram emergir uma organização como a CNFE no Brasil a partir de 1936.
No capítulo segundo procurei analisar os caminhos traçados no interior da política
brasileira para a criação da CNFE. Se por um lado a constituição da Comissão atendia a uma
demanda de parte da sociedade brasileira, por outro, fazia parte de uma estratégia do governo
brasileiro demonstrar ante as potências mundiais, principalmente aos EUA sua capacidade
gerencial de situações elegidas como elevadas no quesito de saúde pública. Com a CNFE o
país pôde melhorar suas metas e compromissos assumidos com a Liga das Nações, organismo
multilateral cujo qual o Brasil não era membro, mas desejava tornar-se. A criação da CNFE
fazia parte da estratégia de política externa que colocaria o país em evidência na política
mundial, entretanto tal perspectiva não se confirmou por essa via.
Ainda sobre as condições de possibilidades no cenário interno brasileiro para a
emergência da CNFE, destaco as reformas de centralização no âmbito da administração
pública, sobretudo aquelas voltadas para saúde e educação pública. Centralização esta que
fora eficientemente discutida pela historiografia. A CNFE, neste sentido, encaixava-se neste
processo que procurou canalizar métodos cada vez mais sofisticados com vista a aparelhar os
governos na condução de políticas que se destinavam a majoração da vida, isto é, biopolítica.
Nos cinco primeiros anos de existência (1936-1941) a CNFE buscou legitimar-se
como autoridade máxima na produção de leis, regulamentos e normas, na aplicação dos
instrumentos fiscalizadores do mercado de importação e exportação de psicoativos, além de se
tornar responsável pela elaboração dos dados estatísticos encaminhados ao Comitê Central do
Ópio. Destaquei, neste sentido, a atuação da Seção de Fiscalização de Entorpecentes - SFE,
vinculada ao Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina - SNFM. A Seção tornara-se um
braço executivo da CNFE. Cabia ao SFE todas as atividades fiscalizadoras. Entre os anos de
1938 e 1941 a Comissão produziu um significativo estatuto regulatório cujas bases
compuseram o Decreto – Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938. Este, associado as
17
Não é de hoje que pesquisadores de diversas áreas se interessam por certos tipos de
usos que as sociedades adotaram em relação a substâncias de caráter psicoativo. O modo
como inseriram certas plantas em suas dietas, os rituais que implicavam o consumo destas e o
sentido que tais usos representaram, são práticas que intrigaram e ainda intrigam os
estudiosos. Afinal desde quando as sociedades fazem uso de psicoativos? Sabemos que as
drogas fazem parte da vida humana desde as primeiras organizações sociais, seja como
elemento secundário que compõe as relações culturais, ou em alguns casos, em
temporalidades específicas, como elemento de caráter de alta relevância na vida social para
certos grupos sociais.13
As utilidades de certas substâncias foram objeto de observação e análise de
naturalistas e botânicos, possivelmente estes foram os primeiros a testemunhar as relações de
usos e consumos de psicoativos entre as sociedades. Há entre as obras luso-brasileiras, dois
antigos e relevantes trabalhos cujas tentativas de identificar e classificar estas utilidades já
revelavam estas relações; Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia (1563)
de Garcia de Horta e Tractado de las drogas y medicinas de las Indias orientales (1578, em
latim) do português Cristóvão da Costa. Tais usos também foram observados durante os
processos de descobrimentos, nas terras brasileiras, por exemplo, o padre Antônio Vieira,
observava o papel das chamadas ―drogas do sertão‖ para a economia metropolitana, e
reclamava da utilização de mão de obra indígena no processo. Em 1662, em uma carta ao
procurador do Maranhão, Jorge Sampaio, escreveu que:
No Estado do Maranhão, não há outro ouro nem outra prata mais que o sangue e o suor dos
índios: o sangue se vende nos que cativam e o suor se converte no tabaco, no açucar e demais
drogas que com os ditos índios se lavram e fabricam.Com este sangue e suor se medeia a
necessidade dos moradores; e com este sangue e suor se enche e enriquece a cobiça insaciável
dos que vão lá governar14
13
Podemos exemplificar, neste último caso, o papel das ―beberagens‖ como as ―cauinagens‖ ou ―catimpueras‖ entre as
comunidades indígenas ameríndias. O historiador João Azevedo Fernandes, observa que: Tais sessões de embriaguez
possuíam uma profunda relação com o sistema de guerra e vingança das sociedades ameríndias, apresentando-se como um
instru-mento mnemônico em que a história de cada grupo, as crônicas de suas guerras e deslocamentos, as agruras e
angústias causadas pelas ações dos inimigos e seus atos violentos, as honrarias conseguidas por seus campeões eram
lembradas e perma-nentemente reconstruídas: FERNANDES, J. A. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 6, volume 13(2):
39-59 (2002).
14
VIEIRA. Padre Antônio. Obras escolhidas. In: ALENCAR, Carpi ; Ribeiro. História da sociedade brasileira. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. pp 210-1
20
Grande e variado sortimento de fazendas, armarinho, ferragens, roupas feitas, chapéus de sol e
de cabeça, calçado nacional e estrangeiro, drogas, tintas, vidros para vidraças, cêra em vellas,
sola, peles preparadas e todos ingredientes necessários à officina de sapateiro. (Grifo é meu)17
A etimologia da palavra droga, por sua vez é controversa, haveria definições na língua
céltica, no irlandês ―droch‖ e no bretão ―droug‖, outro termo do árabe/holandês ―Droog‖
usado durante o mercantilismo, significava ―seco‖, uma referência aos carregamentos de
peixe seco para a Europa.18
No decorrer do tempo se constituiu uma vasta historiografia sobre os usos dessas
substâncias, as alcoólicas em especial possuem uma ampla bibliografia como a apresentada
pelo historiador Henrique Carneiro, é o caso do vinho (Johnson, 1999; Philips, 2003) e da
vodca (POKHLIÓBKIN, 1995), mas há também outras como o tabaco (JIMENEZ, 1994), o
15
O valor do tabaco, por exemplo, pode ser avaliado pelo fato deste ter sido símbolo na bandeira nacional do império
brasileiro e ainda hoje está representado na bandeira do Estado do Rio de Janeiro ao lado de um ramo de café.
16
A primeira edição foi de 1789, mas em 1813 o dicionário passou por uma revisão veja a referência original: SILVA,
Antonio Moraes. Diccionario da língua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda
edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina,
1813.
17
Anúncio publicado no periódico: A Cidade (de Ouro Preto – MG) em 1901, edição 01. Fonte: Hemeroteca digital:
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/cidade/715093. Acesso em 07/11/2012. Ao longo das décadas seguintes a
terminologia foi sendo cada vez mais associada aos fármacos. Para saber mais sobre as alterações de significado da palavra
―droga‖ ao longo da história, veja: CARNEIRO, Henrique. Transformações do significado da palavra “droga”: das
especiarias coloniais ao proibicionismo contemporâneo. In: VENÂNCIO, Renato P. ; CARNEIRO, Henrique S. (Orgs).
Álcool e Drogas na História do Brasil. Belo Horizonte: Editora da PUC-Minas; São Paulo: Alameda, 2005. p. 11-27.
18
. CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.
21
O homem sempre procurou modificar as suas percepções, assim como a orientação com
relação a si mesmo e com relação a seu meio, e provavelmente vai continuar a fazê-lo. A
utilização de substâncias psicotrópicas é apenas uma das inúmeras maneiras de atingir esse
objetivo; mas ela sempre esteve presente através da história e no mundo inteiro.20
As drogas são parte dos produtos coloniais que se difundiram inicialmente como comércio de
luxo e se tornaram produtos do consumo de massas e, portanto, necessidades sociais. A
regulamentação proibicionista no século XX, que sucedeu à defesa irrestrita do livre comércio
que levara à guerra do ópio da Inglaterra contra a China, aumentou o fluxo de capitais no
ramo clandestino, expandiu a demanda e gerou instituições e aparatos dependentes da
existência da proibição e que sustentam a sua continuidade.
O resultado do proibicionismo foi provocar a hiperlucratividade, danos à saúde pública
(devido à falta de fiscalização), a militarização da produção e do comércio de certas drogas e
a intromissão do aparato de segurança em esferas da vida cotidiana. 21
19
CARNEIRO, Henrique. Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. O autor
apresenta ainda uma extensa lista de produtos como o chá, o chocolate e o café. pp.4-5.
20
BUCHER, Richard. Visão Histórica e Antropológica das Drogas In: FIGUEIREDO, Regina. (Org). Prevenção ao Abuso
de Drogas em Ações de Saúde e Educação: uma abordagem sociocultural e de redução de danos. NEPAIDS, 2012. p.9
21
CARNEIRO, Henrique. Necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Revista Outubro, IES, São
Paulo, vol. 6, 2002, pp.115-128
22
Para uma boa parte dos liberais não havia razão para a proibição, ao contrário,
considerava-se inconcebível interferir nos estados de consciência dos indivíduos. Tomas
Jefferson (1743-1826) ao mencionar os direitos civis de praticar uma religião, seja ela qual
for, afirmara que as operações da mente, assim como os atos do corpo, embora sujeito à
coerção das leis, só seriam legítimos quando tais atos prejudicassem outrem, caso o contrário,
os chamados direitos de consciência deveriam ser considerados como direitos inalienáveis.22
Tais ideais preconizavam um Estado menos invasivo, isto é, o melhor Estado seria aquele que
governava apenas o suficiente para manter a ordem, a propriedade e a liberdade. Mas foi a
liberdade econômica a grande tônica deste sistema de pensamento, a máxima laissez-faire,
laissez-passer, (deixe fazer, deixe passar) atribuída a François Quesnay e popularizada por
Vicent de Gournay, tornou-se o slogan do liberalismo.
Adam Smith (1723-1790), um dos expoentes do liberalismo, no segundo volume de
―A riqueza das nações‖, ao fazer uma crítica sobre a política de Portugal e Espanha no que
representava a proibição (por parte de Portugal) e a taxação elevada (por parte da Espanha),
das exportações de metais (ouro e prata), elabora a seguinte analogia:
Quando se represa uma corrente de água, tão logo a represa fique cheia, o
líquido, por força, transbordará da represa, como se não houvesse represa alguma. A proibição
de exportar não pode manter na Espanha e em Portugal uma a quantidade de ouro e prata
superior àquela que em forma de moeda, prataria, douração e outros
ornamentos de ouro e prata. Ao atingirem essa quantidade, a represa está cheia e toda a
corrente que flui necessariamente transbordará. Por isso, a exportação anual de ouro e prata
da Espanha e Portugal, tudo somado, é praticamente quase igual ao total da importação anual,
a despeito de todas essas restrições. Todavia, assim como a água sempre é mais funda atrás do
topo da represa do que diante, da mesma forma a quantidade de ouro e prata que essas
restrições retêm na Espanha Portugal deve, em proporção à produção anual de sua terra e de
seu trabalho, ser maior do que a que se pode observar em outros países. Quanto mais alto e
mais resistente for o topo da represa, tanto maior deverá ser a diferença de profundidade da
água atrás dele e diante dele. Quanto maior for a taxa, tanto maiores são as penalidades que
asseguram o cumprimento da proibição, tanto mais vigilante e severo será o policiamento que
zela pelo cumprimento das leis, tanto maior deverá ser a diferença na proporção de ouro e
prata em relação à produção anual da terra e do trabalho da Espanha e Portugal, e em relação
à proporção que se observa em outros países. (Grifos meus) 23
Para um liberal como Smith, produtos como o álcool e o fumo, por exemplo, eram
considerados ―artigos de luxo‖, isto é, produtos cuja taxação ou aumento não representaria
aumento no custo de vida da grande maioria das pessoas, não incidindo sobre os salários,
diferentemente do trigo ou do sal que dentre outros seriam ―artigos de necessidades‖. A
diminuição do consumo de álcool e fumo em decorrência da alta de seus preços significaria
22
JEFFERSON, Tomas, The Works, vol. 4 (Notes on Virginia II, Correspondence 1782-1786) [1905]: The Online Library Of
Liberty, 2011. P.48 http://files.libertyfund.org/files/756/Jefferson_0054-04_EBk_v6.0.pdf.
23
SMITH, Adam. A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas. Livro II, Nova Cultural, 1996. p. 18
23
um benefício para sociedade, tal elevação contribuiria para um uso mais moderado destas
substâncias, isto é, funcionaria como uma lei ―suntuária‖, para as camadas inferiores. 24 Neste
sentido, a proibição não era uma alternativa, esta só serviria como no exemplo dos metais para
criar um mercado informal:
A Espanha, por taxar a exportação de ouro e prata, e Portugal, por proibi-la, oneram essa
exportação com a despesa de contrabando, provocando o aumento do valor desses metais em
outros países tanto mais acima do valor que têm em seu país, no montante total representado
por essa despesa.25
Quando Tocqueville (1805-1859) esteve nos EUA, entre março de 1831 e fevereiro de
1832, os chamados ―movimentos pela temperança‖ como ele mesmo observou, eram
impopulares, na prática, ainda estavam embrionários. O que inviabilizava qualquer medida
proibitiva, mesmo que já se atribuísse ao consumo de álcool a violência interna em vários
estados. Ao ser informado sobre o problema dos crimes atribuídos ao consumo de álcool,
Tocqueville, seguindo a lógica de Smith, propôs o que para ele era uma solução simples:
Alguém me contava outro dia, na Filadélfia, que quase todos os crimes na América eram
causados pelo abuso das bebidas fortes, que a arraia-miúda podia consumir à vontade, porque
lhe eram vendidas a baixo preço. ―Por que vocês não instituem uma taxa sobre a
aguardente?‖, indaguei. ―Nossos legisladores pensaram muitas vezes em fazê-lo‖, replicou,
―mas seria difícil. Teme-se uma revolta; e, aliás, os congressistas que votassem tal lei teriam a
certeza de não se reelegerem.‖ ―Com que então‖, tomei, ―no seu país os beberrões são maioria
e a temperança é impopular.‖ 26
24
Idem, p.324 Obs.: As leis suntuárias, cujo termo vem do latim; sumptuariae. Foram utilizadas com frequência para
regulamentar hábitos de consumo e equilibrar a balança comercial. Oficialmente usava-se como justificativa restringir a
extravagância e o luxo, mas em geral a lei suntuária era aplicada para estratificar as hierarquias sociais, impedindo que
camadas sociais menos favorecidas imitassem suas elites em gestos, roupas e gostos. Veja:
http://en.wikipedia.org/wiki/Sumptuary_lawacesso em: 28/12/2012.
25
Idem, p.18
26
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2ed, 2005. p.262.
27
CARNEIRO, Henrique, Bebida, abstinência e temperança, na história antiga e moderna. São Paulo, Editora Senac, 2010.
p.200.
24
O proibicionismo na sua forma moderna teve origem nos EUA no século XIX. Sob o
slogan ―ao badalar dos sinos das igrejas de Ohio, os saloons devem partir‖ o movimento
formado a partir da união entre católicos e protestantes pedia o fim do comércio do álcool,
atribuindo-lhe a responsabilidade pela degradação moral e a desordem.28 O proibicionismo
teve como alvo os imigrantes, sobretudo, os ―amarelos‖, os ―negros‖ e os ―hispânicos.‖
Segundo Antônio Escohotado, todos esses grupos, se apresentavam como comitês da
moralidade pública, reivindicando valores puritanos, mobilizaram vários setores da sociedade,
alcançando enorme capacidade de articulação política:
Expresando esta atmósfera aparece en 1869 el Partido Prohibicionista de los Estados Unidos,
cuyas principales bazas son el control de varios Senados y el apoyo de la mayoría de los
próceres políticos, que quizá de puertas adentro se permiten beber licor pero de puertas afuera
coinciden en temer la degeneración etílica de América. 29
28
RIBEIRO, Maurides de Melo; RIBEIRO, Marcelo. Política mundial de drogas ilícitas: uma reflexão histórica. Congresso
sobre álcool e drogas, 2009.
In.http://www.abead.com.br/boletim/arquivos/boletim41/ribeiro_e_ribeiro_poltica_mundial_de_drogas.pdf.
29
Expressando esta atmosfera o partido de Prohibicionista dos Estados Unidos aparece em 1869, cujas principais ações
estavam em controlar vários senadores e apoiar a maioria dos políticos importantes que, no interior de suas portas se
permitem beber licor, porém, portas afora concordavam em temer a degeneração etílica da América. (tradução é minha);
ESCOHOTADO, Antônio. História General de Las Drogas. Madri. Espasa, 1998, p. 505
30
Idem. p. 508.
31
A Lei Seca, também conhecida como The Noble Experiment, foi ratificada pela 18ª Emenda à constituição dos EUA em 16
de janeiro de 1919, entrando em vigor em 1920,tendo sido revogada em dezembro de 1933.
25
32
KLEIN, Carlos Jeremias. A espiritualidade protestante norte-americana na perspectiva de Paul Tillich. UMESP.
Disponível em:http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio06/a-espiritualidade-protestante-norte-americana-na-
perspectiva-de-paul-tillich. Acesso em 26/02/2012.
33
Para o autor este foi resultado de uma sucessão de eventos dentre os quais estariam: 1) o fundamentalismo religioso que
experimentou um reavivamento a partir da metade do século XIX, passando a condenar todo o tipo de embriaguez
demonizando o álcool e outras drogas. ESCOHOTADO, A. História general de las drogas. Madri. Espasa, 1998.p. 494.
34
ESCOHOTADO, op. cit. p.421.
35
Idem. p.427.
26
Sinto uma importância mística pelos menores detalhes ligados ao lugar, ao tempo e ao
homem (se é que ele era um homem) que pela primeira vez me abriram o paraíso dos
comedores de ópio. (...) Meu caminho de volta para casa, deveria passar por Oxford-street, e
perto do Pantheon vi uma farmácia aberta. O farmacêutico, ministro inconsciente de prazeres
celestiais, (...) E, quando pedi o ópio, serviu-me como qualquer outro homem teria feito. (...)
Contudo, apesar dessas indicações de cotidianidade, ele desde então passou a existir em
minha mente como uma visão beatífica de um farmacêutico imortal, mandado à terra
especialmente para nos encontrarmos. 37
O antropólogo Edward McRae afirma que ―a era dos láudanos durou dois séculos sem
oposição ou conflito‖. Isto por que, segundo ele a partir do século XVIII houve um
―arrefecimento da perseguição aos heterodoxos religiosos e uma volta das drogas do
paganismo à luz do dia‖. A dor deixou de ser algo que agradasse a Deus, o uso médico e
lúdico de certas substâncias passaram a ser percebidas como alternativas legítimas. 38 Neste
sentido, não é para menos que a figura do farmacêutico carregava uma mística consigo, e, se
36
Borges inicia o Sonho de Coleridge da seguinte forma: No sonho de Coleridge, o texto lido por acaso principiou a
germinar e a se multiplicar; o homem que dormia intuiu uma série de imagens visuais e, simplesmente, de palavras que as
manifestavam; passadas algumas horas, acordou, com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema de cerca de
trezentos versos. Recordava-os com singular clareza e conseguiu transcrever o fragmento que perdura em suas obras. In:
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas de Jorge Luis Borges, volume 2, São Paulo: Editoras Globo, 2000.
37
De Quincey, Thomas. Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: L&PM, 2007 p.79
38
MACRAE, Edward. Dependência de drogas, Seibel, S. D. e Toscano Jr., A., São Paulo, Editora Atheneu, 2001pp., 25-34
27
serviu a De Quincey, ―como qualquer outro faria‖, ficou na mente do escritor, não por acaso,
como um ―ministro do inconsciente‖. Também não foi por acaso que, na intensificação da
repressão às drogas, após o fim da lei seca, os boticários e farmacêuticos foram alvos da
política proibicionista, muitos foram presos por ―tráfico‖.
Baudelaire, outro exemplo clássico deste momento, era membro de um grupo,
juntamente com o pintor Boissard de Boisdenier, também conhecido como ―clube do haxixe‖.
Outros ilustres da época como Delacroix, Meissonier, Nerval, Rimbaud, Hugo e Balzac. Este
último, um ―indeciso‖, no uso do haxixe, mas um consumidor inveterado de estimulantes.
Não foram poucos os pensadores da época que se permitiram experiências com psicoativos,
uma correspondência de Boissard a Teófilo Gautier:
Mi querido Teófilo: se toma haschischen mi casa el lunes próximo, bajo los auspicios de
Moreau y Albert Roche. ¿Cuento contigo? En tal caso, ven entre las cinco y las seis de la
tarde. Participarás en una modesta cena y esperarás la alucinación [...] Gastaremos entre tres y
cinco francos por cabeza. Contesta sí o no... Si temes los contactos impuros, pienso ingeniable
un modo de aislarse. El Hotel Pimodan puede permitir lo. Tuyo, P.S. Para que no se te olvide,
pon mi carta donde puedas verla y clávate una aguja en cualquier parte.39
39
Meu caro Teófilo: na próxima segunda-feira tomaremos haxixe em minha casa sob os auspícios de Moreau e Albert Roche.
Conto com você? Nesse caso, venha entre as cinco e seis da tarde. Participarás de um jantar modesto e esperarás por
alucinações [...] Gastaremos entre três a cinco francos por cabeça. Responda sim ou não ... Se temes os contatos impuros, eu
sugiro uma forma de se isolar. O Hotel Pimodan pode ser uma opção. Atenciosamente, P. S. Para que você não se esqueça,
coloque minha carta onde você vai vê-la e prenda-a com uma agulha em qualquer lugar. (tradução é minha). Joseph
Ferdinand BOISSARD, Apud. ESCOHOTADO, Op. Cit, p.472
28
40
ESCOHOTADO, Op. Cit. p.459
41
SANTOS, Fernando S. Dumas dos, Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
UNICAMP –IFCH, 1995. p. 85
42
MACRAE, Edward. Dependência de drogas, Seibel, S. D. e Toscano Jr., A., São Paulo, Editora Atheneu, 2001pp., 25-34
43
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p.3
44
FILHO, Pernambuco; BOTELHO, Adauto. Vicios sociaes e elegantes: Estudo clínico, médico-legal e Prophilático.
Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro: 1924.
29
casas de saúde.[sic]45 No último capítulo os autores fazem um comentário sobre a lei 4.294 de
6 de janeiro de 1921 (elaborada por uma comissão que incluía nomes como Carlos Chagas e
Juliano Moreira), onde Pernambuco Filho e Adauto Botelho, salientam as positividades da
primeira legislação brasileira sobre drogas, mas também apontam para algumas de suas
―imperfeições.‖46
A história sobre as drogas envolve, portanto, não apenas a história específica destas
substâncias, não são apenas relatos botânicos ou herbários, trata-se também de verificar o
modo como elas são utilizadas por diversas sociedades em diferentes épocas. São histórias
sobre seus usos e consumos, sobre sensações e representações. A historiografia das drogas
estabelece diálogos entre diversos campos da história (social, cultural, política e econômica),
assim como, em diferentes áreas das ciências humanas (antropologia, sociologia, psicologia,
direito e ciências da vida). A historiografia de viés cultural evidencia seus usos e ritos, ora
como alimento, ora como fármaco, assim como as representações sociais que as evolvem. Em
sua perspectiva econômica, a historiografia pesquisa seus fluxos comerciais desde o
mercantilismo até a formação de uma indústria de substâncias sintéticas que começaram a se
formar na segunda metade do século XIX. Finalmente, recentes estudos se dedicam em
problematizar os interditos e proibições aos usos de certos psicoativos ocupando-se em
compreender os processos que resultaram das práticas restritivas, das regulações,
normalizações e criminalizações destas substâncias.
45
Ibidem. p.117.
46
Nas páginas 146 e 147, lemos algumas considerações sobre ―falhas‖ ou ―afrouxamentos‖ na legislação em questão. Um
exemplo é o caso do art. 6º, que prevê a criação de uma casa especializada em tratamento para toxicômanos com duas alas;
uma para internações compulsórias e outra para às voluntárias. Segundo os médicos, a ala dos voluntários permaneceria
esvaziada, crítica esta que considerava a internação compulsória a única forma de ―ajudar‖ um ―viciado‖ a se livrar da
compulsão.
47
A história general de las drogas, foi publicado em três volumes, sendo que o primeiro foi lançado em 1989, posteriormente
(1998) a editora ESPASA – Madri publicou a obra em um único volume contendo 1.473 páginas.
30
relações das sociedades com as substâncias naturais e sintéticas que hoje chamamos de
drogas. Em seus artigos Las Drogas: de los Orígenes a La Prohibición (1994) e La
Prohibición: Principios y Consecuencias (1997) procurou fazer uma genealogia da
criminalização das drogas. Sobre as origens da proibição Escohotado afirma que:
Hacia 1900 todas las drogas conocidas se encuentran disponibles em farmacias e droguerías,
pudiéndo se comprar también al fabricante por correo. (...) La propaganda que acompaña a esos
produtos es igualmente libre, y tan intensa como la que apoya otros artículos de comercio. (...) No
es um asunto jurídico, político o de ética social.48
48
Até o ano de 1900 todas as drogas conhecidas achavam-se disponíveis em farmácias e drogarias, podendo ser compradas
pelo correio diretamente do fabricante (...) a propaganda que acompanhava esses produtos era igualmente livre e tão intensa
como qualquer outros artigos do comércio (...) não era um assunto de jurídico, político ou de ética social. ESCOHOTADO,
Antônio. Las drogas: de los orígenes a la prohibición. Alianza Editorial: Madri, 1994. p. 85
49
______. História general de las drogas. Madri. Espasa, 1998.p. 494.
50
Em 1972, o então presidente dos EUA, Richard Nixon declarou ―guerra às drogas‖. O governo Nixon investiu cerca de 100
milhões de dólares, em campanhas disseminadas nos grandes meios de comunicação. Segundo RODRIGUES (2004), a
política estadunidense de guerra às drogas foi uma hábil estratégia de política externa, pois tratou de distinguir países
produtores de países consumidores, isto é, países-fonte, ou agressores e países-alvo, ou seja, vítimas.
31
do historiador suíço Thomas Fischer51 e a socióloga brasileira Vera Malaguti.52 Toda pesquisa
de Del Olmo caracteriza-se pela crítica ao histórico modelo de políticas de combate às drogas
na América Latina, política esta encampada pelos EUA e que resultaram em ações
catastróficas como foi o caso do ―Plano Colômbia.‖53
No Brasil, os estudos sobre o tema são poucos e recentes. Um dos primeiros trabalhos
a tratar das relações entre determinados grupos sociais e certas substâncias, foi o de Gilberto
Velho (1975), cuja tese de doutoramento foi intitulada “Nobres e anjos: um estudo sobre
tóxicos e hierarquia‖.54 Embora o principal objetivo de sua pesquisa estivesse centrada em
entender como os usos (entre as classes médias urbanas) de certas substâncias estavam
vinculados a uma visão específica de mundo, o fato de tais grupos consumirem drogas ilegais
o levou a discutir as razões da criminalização e a hipocrisia de uma ilegalidade ao alcance de
quem pode pagar.
Ainda no campo da antropologia, mas na área das violências urbanas, a grande
referência brasileira é sem dúvida, a professora Alba Maria Zaluar da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do NUPEVI – Núcleo de Pesquisas das Violências.
A antropóloga é autora de trabalhos como: As consequências da proibição das drogas sobre a
violência urbana (1994)55; A criminalização das drogas e o reencantamento do mal (1996) e
Drogas e Cidadania (1994)56. Alba Zaluar realizou pesquisas no complexo habitacional
51
FISCHER, Thomas. Coca, cocaína y “guerra contra las drogas” em América Latina: Recorrido bibliográfico. (1997), pp.
281-297. In. DEL OLMO, Rosa. (org), Drogas: El conflicto de fin de siglo. Cuardenos de la nueva sociedad - nº1, 2º
semestre. Caracas, 1997.
52
BATISTA, Vera Malaguti. Drogas y criminalización de la juventud pobre em Rio de Janeiro. (1997), pp. 259-266. In.
DEL OLMO, Rosa. (org), Drogas: El conflicto de fin de siglo. Cuardenos de la nueva sociedad - nº1, 2º semestre. Caracas,
1997.
53
Segundo INÁCIO (2008) No governo Clinton (1993-2001) foi lançado o Plano Colômbia – iniciativa colombiana apoiada
firmemente pelos EUA orçada em 7,5 bilhões de dólares abrangendo cinco eixos temáticos: restabelecer a economia,
promover a paz, eliminar o cultivo de drogas ilícitas, fomentar o desenvolvimento social e fortalecer a democracia na
Colômbia. INÁCIO, Cesar Dutra. A participação estadunidense no Plano Colômbia e a reação brasileira (1995-2005),Rio
de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, ano 2, n. 36, 2008. Muitos críticos como Noam Chomsky vêm criticando
o Plano Colômbia, em uma entrevista o linguista afirmou: “O pretexto é a guerra contra as drogas, mas é difícil encontrar
um analista que leve esse pretexto muito a sério. Os paramilitares, da mesma forma que os militares, estão metidos até aos
narizes no narcotráfico e a guerra não se dirige contra eles. A guerra é dirigida contra comunidades campesinas que se
tornaram parte das regiões dominadas pelas Fuerzas Armadas Revolucionárias de Colombia (FARC).”Entrevista cedida a
Heinz Dietrich Steffan do La Jornada (03/09/2000).
54
A tese foi mais tarde publicada pela FGV. VELHO, Gilberto. Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de
Janeiro. Editora FGV: 1998.
55
ZALUAR, Alba. M. As conseqüências da proibição das Drogas sobre a Violência Urbana. In: Shiray, Michael & Salama,
Pierre. (Org.). Pensar as Drogas. Rio de Janeiro / França: Editora Fórum de Ciências e Cultura da UFRJ/ Associação
Descartes, 1994.
56
_____. M. Drogas e Cidadania (org.), Introdução: Drogas e Cidadania (pg 7-21), e A Criminalização das drogas e o
reencantamento do mal (pg 97-127). Editora Brasiliense, 1994.
32
―Cidade de Deus‖ entre 1980 e 1984 quando defendeu a tese A máquina e a revolta (1985)57.
Entre suas críticas mais contundentes está à associação midiática que se faz entre as drogas e
a violência, defende, assim como Michel Misse,58 que tal associação é equivocada e acaba por
distorcer e inverter a relação culpado/vítima, para este último:
A reação moral e normalizadora que vincula o consumo de diferentes tipos de substâncias a
vícios de comportamento é a principal responsável pela criminalização conjuntural dessas
substâncias e não está comprovado que apenas e exclusivamente o seu uso seja causa isolada
de comportamentos violentos na esmagadora maioria de seus consumidores.59
58
Sociólogo e pesquisador e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) da
UFRJ.
59
MISSE, Michel. As drogas como problema social. Conferência realizada em 8 de novembro de 2003 no III Simpósio
Internacional sobre álcool e outras drogas, promovido pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões e Associação Psiquiátrica do
Estado do Rio de Janeiro.
60
ADIALA, Júlio Cesar. O Problema da maconha no Brasil: Ensaio sobre racismo e drogas. Rio de Janeiro: Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1986.
61
______. A criminalização dos entorpecentes. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: IUPERJ, 1996.
62
CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. ed. São Paulo: Xama VM Editora e
Gráfica Ltda. 1994.
33
63
______. Bebida, abstinência e temperança: na história antiga e moderna. São Paulo: Editora Senac, 2010.
64
SANTOS, Fernando S. Dumas dos, Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
UNICAMP –IFCH, 1995.
65
_______. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de Mestrado, São Paulo: UNICAMP –IFCH, 1995. p. 73.
66
SILVA, Maria de Lourdes.: Drogas no Rio de Janeiro da Bela Época: a construção das noções de crime e de criminoso.
PUC-RJ, 1998.
34
67
______. Da Medicina à Repressão Policial: a cidade do Rio de Janeiro entre 1921 e 1945. Tese de Doutorado,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2009.
68
ADIALA, Júlio Cesar. Drogas, medicina e civilização na primeira república. Tese (Doutorado em História das Ciências e
da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2011. p.184.
35
Neste mesmo ano os EUA iniciaram sua estratégia de aproximação com a China. Uma
carta com data de 24 de julho de 1906 destinada ao presidente Roosevelt e escrita pelo bispo
da Igreja Episcopal nas Filipinas Charles Henry Brent,72 propunha organizar uma Conferência
Internacional ―destinada a ajudar a China em sua batalha contra o ópio.‖73 Desde The Chinese
69
LIMA Rita de Cássia Cavalcante. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional:
Relações Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais/ Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social / Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, 2009.
70
Veja: ESCOHOTADO, Antonio. História general de las drogas. Madri: Alianza Editorial, 1992. MUSTO, David F. The
american disease: origins of narcotic control. 3ed. New York: Oxford University Press, 1999.
71
VARGAS, Eduardo Viana. Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de ―drogas‖ / Eduardo
Viana Vargas. 2001. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Doutorado em Ciências Humanas:
Sociologia e Política. p.200.
72
Conforme Escohotado (1998, pp.610-615), o bispo episcopal Charles Brent e seu colega metodista Homer Stunz, foram
responsáveis por criar medidas restritivas quanto ao uso não médico de ópio nas Filipinas.
73
ESCOHOTADO, Antonio. op. cit. p.611
36
Exclusion Act em 188274, as relações entre a China e os EUA não eram amistosas, por sua
vez, o gigante oriental também tinha dificuldades com os países europeus, sobretudo após o
―Tratado de Nanquim‖ imposto pela Grã-Bretanha como resultado da vitória na chamada
primeira guerra do ópio.75 A proposta de aproximação com a China procurava resolver dois
problemas: controlar a entrada de ópio em solo americano e retomar o comércio com os
quatrocentos milhões de chineses. O que Brent pedia a Roosevelt era “un sistema colonial
que mejore el británico y evite el trasnochado estilo laissez faire de los franceses.‖76
A primeira Conferência deu-se em Xangai em 1909, com a presença de treze países:
Estados Unidos, China, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Países Baixos, Portugal,
Áustria-Hungria, Japão, Sião e Pérsia. Embora os resultados imediatos desta Conferência não
tenham agradado os representantes estadunidenses, a Conferência de Xangai serviu em três
sentidos, de acordo com Rita de Cássia Lima77: para fazer do governo da América do Norte
líder da agenda sobre o controle de drogas no mundo, para fortalecer a ideia de ―uso
legítimo‖, cuja legitimação passava pela autoridade médica e por fim, estabelecer o alvo, isto
é, a oferta, o que significava uma ofensiva a países produtores. Os EUA haviam convocado
uma nova Conferência, desta vez em Haia, em dezembro de 1911, com o objetivo de
transformar as discussões anteriores em uma Convenção. As dificuldades de se chegar a um
acordo eram muitas, com interesses conflitantes, segundo o relato de Antônio Escohotado:
Como en Shanghai, Turquía siguió negándose a asistir, y Austria-Hungría tampoco acudió.
Inglaterra só lo queria hablar de morfina y cocaína, y Alemania protestaba em nombre de sus
poderosos laboratorios, alegando que Suiza no estaba presente y aprovecharía las restricciones
em su privado beneficio. Portugal defendia su industria de opio em Macao, y Persia sus
ancestrales cultivos. Holanda estaba implicada en el tráfico de opio y morfina, y producía
miles de toneladas de coca en Java. Francia se encontraba dividida entre los ingresos
provenientes del consumo de opiáceos en Indochina y el temor a verse inundada por los
productos de sus colonias. Japón fue acusado de introducir masivamente morfina, heroína e
hipodérmicas en el territorio chino como parte de sus propósitos invasores, aunque negó
cualquier vínculo com semejante cosa. Rusia tenía una considerable producción de opio, pero
inferior a la de Siam. Italia, que sólo compareció el primer día, puso como condición para
participar que se incluyera el tema del cáñamo, condición rechazada por la mayoría; ya por
entonces (como sigue sucedendo hoy) tenía los índices de cocainismo más altos de Europa.
(Grifo meu).78
74
Ato promulgado pelo governo dos Estados Unidos da América em 1882, que proibiu a imigração de chineses por dez anos e
negava a ―nacionalização‖ dos que já estavam no país. Veja: VEREA, Monica, Migración temporal en América del Norte:
propuestas e respuestas. Universidad Nacional Autónoma de México, 2003; AHMAD, Diana. The Opium Debate and
Chinese Exclusion Laws in the Nineteenth-Century American West. University of Nevada Press, 2007.p.77.
75
Sobre as guerras do ópio e o tratado de Nanquim e outros, veja: AHMAD, Diana. The Opium Debate and Chinese
Exclusion Laws in the Nineteenth-Century American West. University of Nevada Press, 2007.
76
ESCOHOTADO, Antonio. op. cit. p.616.
77
Confira em: LIMA Rita de Cássia Cavalcante. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional: relações
Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais. 2009, p.175.
78
Como em Xangai, a Turquia seguiu negando-se participar e a Áustria-Hungria tampouco compareceu. A Inglaterra só
queria falar de morfina e cocaína, a Alemanha protestava em nome de seus laboratórios, alegando que a Suíça que não estava
37
A pressão para inserir outras substâncias na Conferência de Haia se deu por parte de
Grã-Bretanha, que teria sido o principal alvo na Conferência de Xangai. Os ingleses adotaram
a estratégia de estabelecer pré-condições para participar da Conferência de Haia; incluir no
debate a regulação de alcaloides industrializados como a morfina e a cocaína.79 Desta forma a
política externa inglesa atendia às reivindicações das suas indústrias farmacêuticas que tinham
nos laboratórios alemães seus principais concorrentes. Os alemães não se negaram em
participar e aceitaram a precondição dos ingleses, mas com apoio da Holanda e França,
insistiram na participação de outros países alegando que só assim a Convenção teria força. O
objetivo era postergar as discussões, o que acabou ocorrendo. Um relatório de 1916 produzido
pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro afirmava que apenas 11 países tinham
ratificado a Convenção de Haia: EUA, Bélgica, Brasil, China, Dinamarca, Guatemala,
Honduras, Itália, Portugal, Sião e Venezuela. Segundo o mesmo relatório, outros 32 países
não a ratificaram, dentre eles Alemanha, França, Bolívia, Colômbia, Peru e Países-Baixos. O
documento assinado pelo então Ministro Lauro Müller, afirmava que dos 32 países, 14 já
haviam acenado ser favorável à ratificação, ―mas os da Alemanha e da Rússia ainda não
julgam chegado o momento de ratificar esse ato.‖80
Os EUA, depois de algumas tentativas anteriores frustradas81, se valeram da
ratificação da Convenção para implantar no plano doméstico uma legislação tendo como base
a Convenção de Haia; a Harrison Narcotics Tax Act. O projeto de Francis Burton Harrison
que renunciou ao senado para tornar-se governador das Filipinas entre 1913-1921 foi
aprovado no congresso. A nova lei condicionava o consumo de ópio, morfina e cocaína
apenas para fins medicinais, para Thiago Rodrigues a Lei Harrison representou um avanço do
―sistema terapêutico-policial‖, uma vez que colocava o estamento médico atrelado a lei por
meio das diretrizes editadas pela Narcotic Control Department , que estabeleceu uma política
de controle das receitas.82 Ainda de acordo com o autor, a Lei Harrrison, só fora validada pela
presente, usaria as restrições em benefício próprio. Portugal defendia sua indústria de ópio em Macau e a Pérsia seus cultivos
tradicionais. A Holanda estava envolvida com o tráfico de ópio e morfina e produzia milhares de toneladas de coca em Java.
A França estava dividida entre a receita proveniente do consumo de opiáceos na Indochina e o temor de ver-se inundada
pelos produtos de suas colônias. O Japão fora acusado de introduzir morfina e heroína ESCOHOTADO, Antonio. História
general de las drogas. Madri: Alianza Editorial, 1998. p.628
79
SHEERER, Sebastian. 1993. ―Estabelecendo o controle sobre a cocaína (1910-1920)‖. In: BASTOS, Francisco I.,
Gonçalves, Odair D. (eds.). Drogas é legal? Rio de Janeiro: Imago. p. 169-192.
80
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1916, p.104.
81
Um exemplo é o ―Projeto Foster‖, em 1910, citado por ESCOHOTADO (pp.624-626), que buscava regular vários tipos de
substâncias, entre elas a Coca-Cola e a Pepsi-Cola, mas foi rejeitado pelo Congresso Americano.
82
RODRIGUES, Tiago. Política e Drogas nas Américas. São Paulo: FAPESP, 2004. p.51.
38
Todos esses fatores, isto é, a Lei Harrison, Lei Seca e a ratificação da Convenção de
Haia via Tratado de Versalhes, abriram caminho para que os EUA solicitassem uma nova
conferência, desta vez sobre os auspícios da Liga das Nações, o objetivo inicial era estender
suas experiências domésticas aos níveis internacionais. Assim em novembro de 1924 na nova
sede no novo organismo multilateral em Genebra, teve iniciado as conferências que
resultariam na II Convenção Internacional do Ópio. Neste sentido, como afirmou Eduardo
Vargas, após a Primeira Guerra Mundial vê-se emergir a ―hegemonia da cruzada médico-
moral americana‖. O marco dessa hegemonia pode ser localizado, na ―incorporação feita pela
83
Idem.
84
A Turquia grande produtor de ópio, que vinha se negando veementemente em ratificar a Convenção de Haia, aliada dos
alemães, também se viu obrigada a assinar o Tratado de Versalhes, de acordo com Antônio Escohotado, foi ideia dos ingleses
incluir no tratado as determinações da Convenção Internacional do Ópio, proposta que contou com total apoio dos EUA.
p.631.
85
Existe uma vasta historiografia sobre a Lei Seca, cito aqui: KIVIG; David E. Law, Alcohol, and Order: Perspectives on
National Prohibition Green wood Press, 1985.
86
BLANRUE, Paul-Eric. As muitas vidas da Ku Klux Klan. Revista História Viva, edição 21 - Julho 2005.
87
Para historiador Michael Prendergast o movimento pró-proibição ―representava o vínculo mais importante entre a
Klansmen e a nação‖: PRENDERGAST, Michael L. "A History of Alcohol Problem Prevention Efforts in the United States".
In Holder, Harold D. Control Issues in Alcohol Abuse Prevention: Strategies for States and Communities. Greenwich,
Connecticut: JAI Press, 1987, pp. 25-27.
39
Liga das Nações aos ‗princípios americanos‘ de penalização sobre os usos de opiáceos e de
cocaína fora da esfera médica e científica‖, princípios estes que regeriam a política mundial
de drogas.88
Entretanto, a incorporação de tais ―princípios‖ não ocorrera tão rapidamente, muito
menos facilmente. De outro modo, a delegação estadunidense não teria abandonado a II
Convenção Internacional do Ópio em 1924. As conferências que resultaram nesta segunda
convenção foram marcadas por divergências e impasses. Insatisfeitos com os rumos quanto
aos prazos estabelecidos para suprimir o ópio bruto e a folha de coca, a delegação
estadunidense, por meio de seu representante chefe, o Sr. Stephen G. Porter, enviou um
memorando explicando os motivos pelos quais abandonaram as conferências:
Apesar de mais de dois meses de discussão e de sucessivos adiamentos, parece agora claro
que a finalidade para a qual a conferência foi chamada não pode ser atingida. Os relatórios das
diversas comissões da Conferência indicam claramente a improbabilidade de nas condições
atuais a produção de ópio bruto e folhas de coca permaneçam restritas às necessidades do
mundo médico e científico. (...) Nestas circunstâncias, a delegação dos Estados Unidos, em
cumprimento das instruções recebidas de seu Governo, não tem alternativa, nos termos da
Resolução Conjunta que autoriza a participação na Conferência, a não ser retirar-se, porque
não poderia assinar o acordo que se propõe concluir. (Grifo meu) 89
88
VARGAS, Eduardo Viana. Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de ―drogas‖ / Eduardo
Viana Vargas. 2001. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Doutorado em Ciências Humanas:
Sociologia e Política. p.204.
89
Tradução realizada a partir da fonte: WILLOUGHBY, W. W. Opium as an international problem: the Geneva Conferences.
Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1925. pp.344-345. O autor, Westel Woodbury Willoughby (1867-1945), participou das
Conferências do Ópio em Genebra (1924/25-1931), seu livro de 585 páginas, digitalizado pela Boston Library Consortium
Member, encontra-se na Biblioteca da University of Connecticut, in: http://archive.org/details/opiumasinternati00will
40
90
Ministério das Relações Exteriores, Arquivo Histórico do Itamaraty em Brasília. Memorando nº 378, 9 de outubro de 1928.
91
Ministério das Relações Exteriores, Arquivo Histórico do Itamaraty em Brasília. Memorando nº 378, 9 de outubro de 1928.
Anexo. The Washington Post: Fryday, october, 5, 1928.
92
Muitas publicações brasileiras basearam-se na obra de CARLINI, E. A. (A história da maconha no Brasil. São Paulo,
CEBRID, 2005.), que por sua vez utilizou-se de KENDELL R. (Cannabis condemned: the prescription of Indian hemp.
Addiction, 98: 143-51, 2003). Este teria afirmado que: “ o representante brasileiro, Dr. Pernambuco, descreveu a maconha
41
o caso de Antônio Escohotado93 e quem acredite que teria sido a delegação egípcia a
responsável, como tentativa de frear o consumo do haxixe (rezina da canabis). 94Westel
Woodbury Willoughby (1867-1945) em 1925, Opium as na international problem: the
Geneva Conferences, afirma que o primeiro governo a se manifestar oficialmente sobre o
problema do cânhamo foi a ―União da África do Sul‖ que em 1923 teria enviado a Liga das
Nações uma sugestão para que o haxixe fosse considerada como uma droga viciante de
caráter narcótica. O Comitê Consultivo considerou que o assunto deveria ser estudado e que
os outros governos deveriam apresentar também suas posições, emitindo a seguinte resolução:
Com referência à proposta do Governo da União de África do Sul de que cânhamo indiano
deve ser tratado como uma das drogas formadoras de hábito, o Comité Consultivo recomenda
ao Conselho que, em primeira instância, os Governos devem ser convidados a fornecer
informações à Liga sobre a produção, utilização e tráfico da substância presente em seus
territórios, juntamente com a suas observações sobre a proposta do Governo da União de
África do Sul. O Comité recomenda ainda que a questão deve ser considerada na sessão anual
do Comitê Assessor a ser realizada em 1925.95
como „mais perigosa que o ópio.” (p.9) Veja por exemplo: CAMPOS, Marcelo Araújo, A presença da Cannabis sativa
(Linné) e canabinóis na Lista IV da Convenção da ONU, CONAD, 2005; BARROS, André & PERES, Marta. Proibição
da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. PERIFERIA, V. III, Nº 2: 2011. Estes últimos chegaram a
afirmar com base em tal ―informação histórica‖ que: ―esse médico, indiscutivelmente, influenciou a criminalização da
maconha em todo o mundo. Em outras palavras, foi baseada nas ideias racistas e escravocratas presentes no discurso de um
psiquiatra brasileiro, que a criminalização da maconha viria a ser internacionacionalizada.” (p.14). Na verdade o próprio
CARLINI (2005) achou um pouco contraditório tal afirmação (embora tenha alegado que a mesma fora confirmada na obra:
Os fumadores de maconha em Pernambuco, arquivos e assistência aos psicopatas, 1934 de José Lucena), citando a obra
Maconha (coletânea de trabalhos brasileiros, publicado em 1958), onde o mesmo Dr. Pernambuco Filho afirmara que: “Em
centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do
elemento intoxicante, no caso a resina canábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de falta, acesso
de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este
indispensável, na definição oficial de OMS, para que uma droga seja considerada e tida como toxícomanógena.” (p.10).
93
Veja ESCOHOTADO (1998, p.701). Para o autor, os ingleses associaram o uso de haxixe às atividades ―subversivas‖, isto
é, o haxixe fora convertido em ―símbolo‖ da resistência ao colonialismo no Egito.
94
BLANCHARD, Sean &ATHA, J. Matthew. Indian hemp and the dope fiend of old England: a sociopolitical history of
cannabis and the British Empire-1840-1928. In. www.druglibrary.org /
<http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/inhemp/dopefien.htm>acesso em: 13/11/2012.
95
WILLOUGHBY, W. W. Opium as an international problem: the Geneva Conferences. Baltimore, The Johns Hopkins
Press, 1925. p. 374
96
A obra de Westel Woodbury Willoughby é composta por discursos e memorandos de plenipotenciários de várias
delegações em variadas seções da Conferência. O memorando do Sr. El Guindy encontra-se na integra nas pp.374-378.
42
reciprocidade, já que as outras nações estavam pedindo a estes (Egito e Turquia), apoio contra
o ópio e a coca97. Uma declaração que mais pareceu uma convocação ao apoio da inserção da
canabis na lista. A delegação da Índia disse que não havia se preparado para o debate, mas até
o final da Conferência emitiram nota dizendo que governo indiano estaria disposto a controlar
as exportações da Indian hemp, para outros países apenas com certificados para fins
medicinais.98 França e Holanda se opuseram assim como o representante britânico Sr.
Malcolm Delevingne, este último alegou que devido ao despreparo das delegações para
discutir o assunto, seria ―impossível se chegar a um acordo nesta Conferência‖.99 Mas ao final
da Conferência editou a seguinte resolução:
A utilização do cânhamo indiano e suas preparações derivadas só podem ser autorizadas para
fins médicos e científicos. A resina crua (haxixe), no entanto, que é extraída da planta fêmea
da cannabis sativa, juntamente com as diversas preparações (haxixe chira, esrar, diamba, etc),
de que forma a base, não sendo presentemente utilizada para fins médicos e apenas sendo
susceptíveis de utilização para fins prejudiciais, da mesma maneira como outros narcóticos,
não podem ser produzidas, vendidas, comercializadas, etc, sob nenhuma circunstância. 100
Cabe salientar, como observou Thiago Rodrigues, que o fato dos EUA não assinar a
Convenção de 1925, os responsáveis pela política de drogas do país, enquanto intensificavam
medidas cada vez mais repressoras no âmbito doméstico, não deixaram de atuar no plano
internacional, participando ativamente da preparação das conferências de 1931 e 1936, ambas
em Genebra.101
Em 12 de agosto de 1930 Harry Jacob Anslinger (1892-1975) assumia o recém-criado
Federal Bureau of Narcotics (FBN), vinculado ao Departamento do Tesouro. Anslinger que
ficou conhecido por ser responsável pela criminalização da maconha em seu país, assumiu as
negociações da Conferência sobre a Limitação da Manufatura de Drogas Narcóticas em 1931.
A essa altura os EUA já eram o principal mantenedor da Sociedade das Nações, o que lhe
97
Idem.p.379
98
Idem p.380
99
Idem. p.381. Aqui verificamos uma possível contradição quanto à afirmação de Antônio Escohotado, sobre a liderança dos
ingleses no processo que levou a inclusão da maconha na lista de substâncias reguladas em Genebra de 1924. Entretanto, é
possível que o autor tenha razão, já que tanto o Egito quanto a África do Sul eram na época protetorados (ou colônias) do
império britânico, mesmo com o posicionamento do representante britânico, a Grã-Bretanha ratificou a convenção. O
comércio de canabis não era representativo para o governo britânico, o país mais afetado com a regulação seria o Afeganistão
que fornecia para a Índia e Pérsia, mas este não estava representado na conferência, a maioria dos países europeus não tinham
nada a perder como a regulação da canabis, assim, mesmo sem maiores análises, o cânhamo foi incluído na lista de drogas
nocivas na Convenção e Genebra em 1925.
100
Idem. p.383.
101
RODRIGUES, Thiago, Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p.56-57
43
garantia maior força na formulação das proposições junto ao Comitê Central do ópio.102 Para
Thiago Rodrigues (fundamentado em McAllister)103, tal força permitiu que a Conferência de
1931 estabelecesse regras mais rígidas no sistema comercial entre os países.
Modelo criado pela Comissão Consultiva do ópio em 1935 com base na Conferência de 1931. 104
102
ESCOHOTADO, Antonio. op.cit. p.703
103
McALLISTER, William, Drug diplomacy in the twentieth century. Nova York, Routledge, 2000.
104
A imagem foi fotografada e digitalizada por mim, fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty, Lata 379/maço5805. Études et
documents relatifs au fonctionnament du systême des certificatstsd‟ importationet des autorisationsd‟ exportation.
105
ESCOHOTADO, Antonio. idem.
44
A Conferência de 1931 estabeleceu também uma cláusula que exortava aos países
signatários a criar no plano doméstico, estruturas de controle e fiscalização do uso e o
comércio de drogas consideradas legais, assim como de repressão às ilegalidades segundo as
últimas convenções. Tal formato de racionalidade, segundo Thiago Rodrigues, abriu a ―trilha
para a institucionalização de medidas penais, no plano internacional, começou a ser aberta em
1931.‖106 Não foi coincidência que a Conferência de 1936 resultou no tratado que recebeu o
título de ―Convenção para Repressão do Tráfico Ilícito de Drogas Nocivas‖. No artigo II do
referente tratado, os países deveriam se comprometer em elaborar ―disposições legislativas
necessárias para punir severamente, e, sobretudo com pena de prisão ou outras penas
privativas de liberdade‖ quem ousasse contrariar os dispositivos legais fundamentados na
convenção. Tais penalidades seriam aplicadas para os seguintes atos:
a) Fabricação, transformação, extração, preparação, detenção, oferta, exposição à venda,
distribuição, compra, venda, cessão sob qualquer título, corretagem, remessa, expedição
em trânsito, transporte, importação e exportação dos estupefacientes;
b) Participação intencional nos atos mencionados neste artigo;
c) Sociedade ou entendimento para a realização de um dos atos acima enumerados;
d) As tentativas e, nas condições previstas pela lei nacional, os atos preparatórios.107
106
RODRIGUES, Thiago, Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p.58
107
NAÇÕES UNIDAS, Convenção para Repressão do Tráfico Ilícito de Drogas Nocivas. Genebra 1936.
45
Vê-se aparecer a criação do que ainda não se chama de missões diplomáticas, em todo caso a
organização de negociações praticamente permanentes e a organização de um sistema de
informação sobre o estado das forças de cada país. 110
108
VIEIRA, Ana Lúcia. ―A colaboração lhe bate à porta...”: Visitadoras sociais e a política de normalização de corpos e
mentes de operários e operárias de uma indústria têxtil no Rio de Janeiro (1944-1953). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. p.12
109
RODRIGUES, Thiago, Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p.34
110
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 397.
46
111
Idem, p.406.
112
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, relatórios ministeriais, 1916, p.103.
47
113
Diário Oficial da União - Seção 1 - 07/04/1915, Página 3597.
114
Não foi possível encontrar os respectivos pareceres para saber seus conteúdos.
48
115
Brasil, Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1914-1915, p.345.
116
Ibid. p.347 (grifo é meu). Tais medidas, retardadas pela 1ª Guerra Mundial, só foram tomadas com a criação da Lei 4.294
de 6 de julho de 1921, a Convenção do Ópio de 1912-14, embora tenha sido ratificada pelo governo brasileiro, não vigorou
no Brasil até 1921, conforme pode-se ler no relatório ministerial de 1916: ―a convenção ainda não entrou em vigor, (grifo
não é meu) isto é, não está sendo executada pelas potencias nella interessadas, apesar de já ter sido ratificada por algumas.
{...} Embora tenha sido promulgada no Brasil, pelo Decreto nº 11.48, de 10 de fevereiro de 1915.‖ BRASIL, Ministério das
Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1916, p.106.
117
Há nos arquivos do Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro uma relação de documentos que foram enviados aos arquivos
em Brasília, dentre estes lê-se: Liga das Nações. 2ª Conferência Internacional do Ópio (Genebra – de 17 de novembro de
1924 a 19 de fevereiro de 1925). Representantes do Brasil: Drs. Pedro Pernambuco Filho e Humberto Gotuzzo. Relatório
desses delegados sobre a conferência. O referido detalha a troca de telegramas e ofícios entre os delegados e o ministério das
49
relações exteriores durante as reuniões da conferência. Enviei uma cópia do documento para Brasília e em dezembro de 2012
estive por dois dias nos arquivos do Palácio do Itamaraty, e, embora tenha encontrado alguma documentação sobre a
participação brasileira no novo sistema mundial de controle de drogas, o relatório dos representantes brasileiros não foi
localizado. Cabe ressaltar ainda, que apesar dos elogios a atuação de ambos os delegados, os relatórios ministeriais entre a
Convenção de 1925 e a de 1931, não fazem menção a iniciativa ou participação brasileira na inclusão da maconha na lista de
drogas nocivas.
118
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais ano de 1926, p.64
119
Apesar disso, um oficio de 17 de agosto de 1929 enviado pelo então Ministro das Relações Exteriores, Octávio
Mangabeira ao Ministro da Justiça, Augusto Vianna, revelava a fragilidade do governo brasileiro quanto as condições
técnicas para elaboração das estatísticas sobre o consumo de psicoativos, segundo o documento, entre os anos de 1921 e 1927
o Brasil só havia enviado um relatório anual (em 1922) ao Comitê Central do Ópio.
120
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1934, p.20
50
em meio ao Governo Constitucional de Getúlio Vargas, mas foi durante os anos do Estado
Novo que intensificou suas ações. Dentre as questões que procurei responder nos capítulos
seguintes no que se refere a sua constituição, destaco aqui, pelo menos duas: a quem se dirigia
e a que objetivos procurava atender?
51
Em 1935 o Ministro das Relações Exteriores, José Carlos Macedo Soares, emitiu um
ofício com data de 8 de fevereiro, endereçado ao então Ministro da Educação e da Saúde,
Gustavo Capanema, cujo título do mesmo lê-se: ―Estupefacientes. proposta de systematização
do serviço repressivo‖, contendo uma cópia em anexo da nota circular de 6 de dezembro de
1934, produzida pelo secretariado geral da Liga das Nações convocando aos países a ingressar
na luta contra a ―propagação da toxicomania e contra o trafico illicito dos estupefacientes‖.
Este documento, apesar de conter um pouco mais que três laudas, é de suma importância para
compreendermos as mudanças que viriam ocorrer no âmbito da política brasileira, ante a
emergência de um novo modelo internacional de política sobre drogas. O título do documento
indica de modo claro o que se buscava na época, isto é, a ―systematização do serviço de
repressão‖. No ofício, Macedo Soares chamava atenção do colega Capanema, para o que ele
considerava uma das questões mais importantes ―entre as medidas que vêm sendo adoptadas
no empenho de debelar o flagelo social da toxicomania‖, uma referência à criação de uma
estrutura interna, tais medidas, viriam atender algumas exigências da convenção de Genebra
de 1931, assinada pelo Brasil. O ministro alertava para o fato do Departamento Nacional de
Saúde Pública, devido à ausência de uma organização específica, nem sempre conseguir de
modo conveniente, executar as decisões adotadas nas convenções internacionais.
Tais deficiências e demora nas promulgações originavam a insatisfação e reclamação
de outros governos e dos organismos internacionais, além de transformar parte dos textos
acordados em ―letra morta‖. Macedo Soares recomendava que no Brasil fosse articulado pelo
Departamento Nacional de Saúde Pública e outras autoridades uma reunião na qual ficasse
consignada ―as bases de um serviço coordenado entre vários Ministérios e repartições
interessadas‖. A ideia era que tal ―serviço‖, harmonizasse todas as regras vigentes referentes
às execuções das Convenções Internacionais e das legislações domésticas. A criação de uma
organização assim constituiria um modelo de ―conducta administrativa dos mais oportunos
para o bom funcionamento da administração pública em um assumpto de tanta
52
magnitude‖[sic]. Por fim, Macedo Soares oferecia uma sala com instalações necessárias no
Itamarati para a implantação do referido órgão.121
A preocupação em instituir uma entidade capaz de aglutinar por meio de estatísticas,
relatórios sistematizados, com responsabilidade de fiscalizar, criar leis e normas, implicava
um novo entendimento, que significava não apenas centralizar as práticas e os discursos, mas
dar força e legitimação a tal feito. De início, vale dizer que a vigilância sobre o comércio e a
indústria das drogas não implicavam necessariamente o controle de preços do mercado de
psicoativos, esta recaía especificamente sobre os usos e consumos de tais substâncias,
portanto, uma vigilância sobre o corpo social; a população ou uma parte dela.
O momento em que o projeto de centralizar as ações de controle e repressão sobre o
consumo de drogas no Brasil ocorreu, é muito significativo e acontece, não por acaso, de
modo simultâneo à centralização da administração pública pelo Estado. Para a historiadora
Ana Lúcia Vieira, essas ações de governo no pós 1930 iam se constituindo não mais como:
[...] imposição tolerada, mas como ―necessidade‖ de manutenção e aperfeiçoamento da ordem
social, articuladas numa rede de saberes técnicos e científicos, apresentados como irrefutáveis
e imprescindíveis para a ―cura‖ de todos os males do país. (...) o que implicava mais que uma
submissão a um conjunto de regulamentações, mas a interiorização dessas normas por uma
incorporação da mensagem de ―salvação nacional‖.122.
121
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores, LA/40/612.4 (04).
122
VIEIRA, Ana Lúcia. “A colaboração lhe bate à porta...”: Visitadoras sociais e a política de normalização de corpos e
mentes de operários e operárias de uma indústria têxtil no Rio de Janeiro (1944-1953). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. p.60
123
FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p.176.
53
Não foi de outra forma com a questão das drogas. As iniciativas em atender a
convenção de Genebra (1931), às vésperas de outra que viria (Convenção pela repressão do
tráfico ilícito de drogas nocivas; Genebra-junho de 1936), visava o alinhamento do Brasil às
políticas defendidas pelos EUA. Este posicionamento por parte do governo brasileiro em se
alinhar aos EUA teve início a partir de 1920 e pode ser explicado, como sugeriu Luiz Alberto
Muniz Bandeira, pelos primeiros empréstimos que o Brasil contraiu com os Estados
Unidos124. Nas relações comerciais, dentre os produtos brasileiros exportados do Brasil para
os EUA 97% entravam livre de impostos, em 1934 a balança comercial pendia para o lado
brasileiro, mas o governo estadunidense forçava para a assinatura de um tratado de
reciprocidade. Em 1935, ainda de acordo com o autor, ―a situação financeira do Brasil
caminhava para o caos, nada menos que doze países bloqueavam as divisas resultantes das
exportações brasileiras‖.125 Entre os anos de 1936 e 1937 os EUA tinham aumentado em
130% suas exportações para o Brasil. Foi com esse pano de fundo que teve início a
estruturação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), criada pelo
decreto nº 780 de 28 de Abril de 1936.
A criação da CNFE estava imbricada a um processo de sofisticação da política
mundial proibicionista, esta visava inovar nos instrumentos de controle e fiscalização do
consumo mundial de psicoativos. É neste sentido que no relatório ministerial de 1935,
Macedo Soares revela que o ―Comitê Nacional de Entorpecentes‖ vinha reunindo-se
regularmente na sede da Divisão de Atos, Congressos e Conferências Internacionais no
Palácio do Itamaraty. O ―Comitê‖, inicialmente, foi composto por um representante do
Ministério da Educação e Saúde Pública, Relações Exteriores, Justiça, Fazenda, Trabalho e
Agricultura, além de um representante da Polícia do Distrito Federal, pelo Procurador dos
Feitos da Saúde Pública e por um ―médico especialista, proprietário de um estabelecimento
hospitalar para tratamento de toxicômanos‖.126 O texto, assinalava que o simples contato
semanal entre os representantes já gerava resultados positivos quanto a ―cooperação para a
124
No primeiro empréstimo, contraído em 1921, o Brasil teria conseguido 50 milhões de dólares, dando como garantia as
rendas dos impostos de consumo e do selo além das rendas aduaneiras, no segundo empréstimo, em 1922, o governo
brasileiro contraiu mais 25 milhões de dólares, a primeira dívida tinha 20 anos para o resgate e a segunda, 30. BANDEIRA,
Luiz Alberto Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2007. p. 290.
125
Idem. p.346
126
O cargo de ―médico especialista‖, inicialmente parece ter sido ocupado por Pedro Pernambuco Filho, seu nome aparece
nas planilhas de pagamentos de custeio por comparecimento às seções ordinárias, mas não foi possível precisar por quanto
tempo. BRASIL, Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1935, p.15
54
repressão effectiva desse terrível mal‖, revelava também um ambicioso objetivo sobre as
finalidades para as quais o Comitê teria sido criado:
127
Ibid. p.16
128
O Decreto-Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938 em seu artigo 44 lê-se: terá a seu cargo o estudo e a fixação de normas
gerais, de ação fiscalizadora sobre o cultivo, extração, produção, fabricação, posse, oferta, venda, compra, troca, cessão,
transformação, preparo, importação, exportação, reexportação, bem como repressão do tráfico e uso ilícito de drogas
entorpecentes, incumbindo-lhe todas as atribuições decorrentes dos objetivos gerais, visados pelo referido decreto, bem
como zelar pelo fiel e cabal cumprimento da presente lei.
55
129
Arquivo Histórico do Itamaraty. Ofício enviado ao Presidente da República em 1936. Lata 1892/Maço: 36266-36268
130
Conferência para o exame do projeto da Convenção Para a Repressão ao Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas; Relatório do
delegado do Brasil, 1936. Arquivo Histórico do Itamaraty - Ministério das Relações Exteriores.
131
O relatório apresentado fora dividido da seguinte forma: 1. Debates; 2. Críticas; 3. Cumprimento das instruções do
delegado do Brasil; 4. Diversos; 5. Notas a margem de Conferência.
56
132
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores. Conferência de Genebra sobre entorpecentes.
Varsóvia, 5 de agosto de 1936. (612.
133
Em 10 de novembro de 1937, tropas militares cercaram o Congresso Nacional, Getúlio Vargas dissolve os partidos e
anuncia uma nova Constituição, inaugurando o ―Estado Novo‖.
134
Entre as Conferências, a Convenção única de Nova Iorque 1961, promulgada no Brasil pelo decreto 54.216 de 27 de
agosto de 1964, certamente inicia um novo ciclo na racionalidade do proibicionismo mundial. Veja CARVALHO, Jonatas C.
57
A América Latina e a criminalização das drogas entre 1960 e 1970: Prenúncios de outra guerra por outra América. 2011.
Disponível in: http://www.neip.info/index.php/content/view/3098.html
135
Apesar de sua regulamentação só ter sido efetivada pelo Decreto-Lei nº 3.114 em março de 1941.
136
Decreto-Lei nº 891de 25 de novembro de 1938: Capítulo II: Art.4º.
58
Esta interação entre o político e a medicina, presente nas políticas de saúde pública,
configura, de acordo com Foucault, uma ―estatização do biológico‖, dito de outra forma, uma
biopolítica da espécie humana.137 A biopolítica conforma um conjunto de tecnologias,
estabelecendo mecanismos reguladores, isto é, a ―bioregulamentação do Estado‖, esta tem
como alvo principal a população, o que se procura é fixar estados globais de equilíbrio, uma
espécie de homeostase social.138 A biopolítica é uma tecnologia que se ocupa do corpo social,
visando a saúde da população por meio da associação do saber médico com a sociologia, a
demografia, e a estatística, resultando na medicina social. Tal saber atravessa a sociedade por
meio de diversas instituições, como departamentos de saúde pública dos Estados, planos de
governo e legislação sanitária. Mas o saber biopolítico não é exercido sobre os indivíduos
diretamente, como afirmou Leon Fahir Neto, este busca estabelecer ―leis naturais‖, que
adquirem ―vínculos supostamente necessários que regem essas relações entre variáveis do
meio e o objeto visado pelo poder, a saúde da população‖.139
Foi neste sentido, que o proibicionismo presente no ordenamento jurídico brasileiro e
no discurso médico, ambos representados e institucionalizados na figura da CNFE,
137
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.
286.
138
Idem. pp. 293; 294
139
NETO, Leon Fahir. Biopolíticas: As formulações de Foucault. Florianópolis: Cidade Futura, 2010. p.47
59
consideram dever do Estado ―cuidar da hygiene mental e incentivar a lucta contra os venenos
sociais‖ [sic.]140.
Se a produção da bioregulamentação estava ao encargo da CNFE, coube a aplicação e
fiscalização das normas à Seção de Fiscalização do Exercício Profissional. O Decreto-Lei
nº891/1938 descrevia em seu artigo 24º as atribuições da SFEP:
140
Decreto nº 780 de 28 de abril de 1936, que cria a CNFE, o texto de introdução segue assim: Considerando que cumpre á
União, aos Estados e aos municipios cuidar da hygiene mental e incentivar a lucta contra os venenos sociaes, ex-vi do art.
138 lettra g da Constituição Federal; Considerando a utilidade de dotar nossa administração com os elementos indispensáveis
á fiscalização legal e á repressão ao trafego e uso illicitos de entorpecentes, compativeis com o aperfeiçoamento dos serviços
congeneres em outros paizes, tendo em vista a solidariedade internacional; Considerando que o Brasil, signatario das
convenções internacionaes, que regulam a materia, não se acha em grão de 1hes dar cabal execução, por falta de competente
aparelhamento legal e administrativo; Considerando a necessidade de intensificar, em todo o territorio da Republica, a
fiscalização do commercio licito e a acção repressiva, solidaria entre as autoridades competentes, contra o uso e o trafico
illicitos de entorpecentes, repressão, que, sob os auspicios da Liga das Nações, tão proficuos resultados vêm apresentado, no
campo internacional e, internamente, em diversos paizes, compartes nas Convenções internacionaes de Haya de 1912 e nas
de Genebra de 1925 e 1931, referentes á materia; Considerando a conveniencia de revisão da legislação brasileira, neste
particular, de modo a facultar ás autoridades os meios indispensaveis á efficiencia de sua acção fiscalizadora e repressiva;
Considerando a opportunidade de fixar a cooperação de todos os orgãos encarregados da fiscalização do commercio de
entorpecentes e de repressão de seu trafico e uso ilícitos Considerando a necessidade de atribuir á coordenação das
actividades fiscalizadora e repressiva, caracter permanente, de forma a permittir e facilitar a estreita collaboração do Governo
brasileiro com os órgãos technicos internacionaes da Liga das Nações. [sic]
141
BRASIL, Coleção de Leis do Brasil, p.148, v.4, Catálogo de Saúde Pública: 28 de Novembro de 1938.
142
Em um trecho da circular, Belisário Penna admite as dificuldades: ―As divergências apontadas sobre a quantidade de
morphina e cocaína exportadas pela Alemanha, Suissa, França e Gran-Bretanha, com destino ao Brasil, de que trata a carta
em apreço, são motivadas pelo fato de, abrangendo as informações não só o porto do Rio de Janeiro como as referentes a
60
Médico Social, Dr. Phocion Serpa, publicou em 1936, um relatório das atividades do mesmo,
entre os anos de 1930 e 1935, onde atestava que a ―Inspetoria de Fiscalização do Exercício da
Medicina‖, teria visado naqueles cinco anos 10.441 receitas de entorpecentes e concedido 551
licenças para novas especialidades.143 Este é um indicativo para compreender a importância
da CNFE e do Decreto-Lei nº 891/1938, pois só no ano de 1939, a Seção de Fiscalização do
Exercício Profissional visou 9.576 receitas de entorpecentes.
O Decreto-Lei nº 891/1938 não só determinou novas atribuições a Seção de
Fiscalização do Exercício Profissional, como aquelas inseridas no seu artigo 24º, mas também
abriu caminhos para que esta se reformulasse objetivando a otimização de suas ações. Tal
reformulação aparece presente no anteprojeto para a criação do ―Serviço Nacional de
Fiscalização da Medicina‖ (SNFM), elaborado pelos médicos Ernani Agrícola, Décio
Parreiras e Roberval Cordeiro de Farias e apresentado ao Diretor do DNS, João de Barros
Barreto em 1939. Alegando o crescente volume de atribuições sob a responsabilidade da
Seção de Fiscalização do Exercício Profissional, ―para não tecer minúcias, assinalaremos
apenas os problemas do comércio de entorpecentes da indústria farmacêutica e da fiscalização
da medicina e profissões afins‖.144 O anteprojeto propunha como modo de dar conta da
demanda a criação de um Serviço Nacional, o mesmo trazia em seu artigo 4º uma divisão
contendo as seguintes seções: a) Seção Médica; b) Seção Farmacêutica; c) Seção
Odontológica; d) Seção de Fiscalização do Comércio e Uso de Entorpecentes; e) Seção de
Expediente145. A nova organização previa que a Seção de Fiscalização do Comércio e Uso de
Entorpecentes (S.F.C.U.E.), seria administrada pelo médico do SNFM e constituiria um órgão
executivo da CNFE. No ofício, cujo anteprojeto foi anexado, os médicos solicitavam a
contratação de funcionários ―exclusivamente nesse serviço‖, a fim de constituir um quadro
específico para o referido serviço, de modo que o SNFM pudesse ―desobrigar-se das múltiplas
outros portos, chegaram estas sempre com atraso, falhas e deficiência‖ [sic]. Arquivo Histórico Itamaraty. Secretaria de
Estado das Relações Exteriores. Correspondências Recebidas.
143
Anteprojeto para a criação do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina (SNFM): Centro de Pesquisa e
Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Capanema, Serie h – Ministério da Educação e Saúde – Saúde e
Serviço Social; Microfilme – rolo 59, fot. 1-930.
144
Idem.
145
O Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina foi efetivamente criado pelo Decreto-Lei nº 3.171, de 2 de Abril de 1941,
que reorganizou o Departamento Nacional de Saúde. Diário Oficial da União - Seção 1 - 04/04/194, Página 6815.
61
146
Anteprojeto para a criação do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina (SNFM): Centro de Pesquisa e
Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Capanema, Serie h – Ministério da Educação e Saúde – Saúde e
Serviço Social; Microfilme – rolo 59, fot. 1-930.
147
FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1939-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p.234.
148
O autor afirma que a ―velha prática‖ retornaria a partir de 1946 com a queda do Estado Novo. CAMPOS, André Luiz
Vieira. Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o serviço especial de saúde pública, 1942-1960. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2006. p.258.
62
149
Arquivo Histórico do Itamaraty, LA/193/612.4 (04), 17 de Junho de 1936.
150
CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Capanema, série h – Ministério da Educação e Saúde – Saúde e Serviço
Social; DNS – Seção de Fiscalização do Exercício Profissional, 1939; Fotolito, 0253.
151
Devido ao fato das ―instruções‖ serem um total de 69, ficaria inviável transcrevê-las todas aqui, por isso apresentarei
apenas uma nesta nota: 17 - Deverão ser indicados por escrito à autoridade sanitária nome do doente, residência,
justificação do emprêgo e data da aplicação da medicação entorpecente injetável, confiadas à guarda dos médicos para
63
aplicação de urgência. As receitas de entorpecentes a isso destinadas estão sempre sujeitas a VISTO prévio, limitarse-ão a
três ampôlas, e só serão atendidas quando apresentadas as indicações supra, referentes a prescrição anterior . [sic]
152
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
2005. p.298.
153
Arquivo Histórico do Itamaraty, “Instruções para execução do decreto – lei nº 891 de 25 de novembro de
1938.‖AC/18/612.4 (04) /1939/Anexo 1º.
64
154
RODRIGUES, Tiago. Política e Drogas nas Américas. São Paulo. EDUC/FAPESP, 2004. p.143.
155
No artigo 33º lê-se: Se o infrator exercer profissão ou arte, que tenha servido para praticar a infração ou que tenha
facilitado - penas: além das supra indicadas, suspensão do exercício da arte ou profissão, de seis meses a dois anos. § 2 -
Sendo farmacêutico o infrator - penas: dois a cinco anos de prisão celular, multa de 2:000$000 a 6:000$000 - além da
suspensão do exercício da profissão por período de três a sete anos. (Decreto-Lei, nº 891/1938).
156
Imagem da página do livro de registros das requisições de entorpecentes visadas. (Foto minha):Arquivo Nacional,
Notação: SDE - 042/AM208 - D 9710 e 9711 - Notação: SDE - 042/AM208 - D 9710 e 9711.
65
(...) uma caixa contendo quatro empoulas de ‗Octinum‘; uma idem contendo três empoulas de
‗cloridrato de Morfina; uma idem contendo uma empoulas de ‗Pantopon‘ e uma de ‗Sedol‘;
um tubo contendo comprimido de ‗Luminal‘; um vidro contendo parte de um líquido, com o
seguinte rótulo: ‗Guttes Nican‘ e um tubo de alumínio contendo cinco pílulas de um pó de cor
branca157.
157
Arquivo Histórico do Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores – lata 612/4.
66
na lista, o conceito foi questionado pelo Dr. Adauto Botelho em 1936, para quem o Luminal
não apresentou em ―mais de vinte anos um único viciado‖158.
As apreensões feitas por outros países eram publicadas no ―Rapport Annuel‖, emitido
pelo Comitê Central do Ópio da Liga das Nações. Os relatórios de apreensão que estão no
Arquivo Histórico do Itamaraty, tendo em vista que a maioria veio dos Estados Unidos,
sugerem que ou este país era mais zeloso com a divulgação de suas informações, ou possuía
uma política de repressão muito mais ativa que o resto do mundo. Dentre todas as substâncias
mais apreendidas duas se destacavam; a maconha (marijuana, canabis) e o ópio. A maconha,
antes de ser proibida, sofrera forte taxação nos EUA a partir de 1937, seu uso era considerado
por parte da imprensa como ―coisa de mexicano preguiçoso‖, ou de negro.159 Por sua vez, o
ópio esta mesma imprensa chamava de ―perigo amarelo‖ numa referência aos chineses. Um
desses relatórios, produzido em 1939, informava que um jovem chamado Mehmet Aslan,
preso pela polícia Alexandrina no Egito, o que trouxe certo desconforto ao Itamaraty, gerando
uma sucessão de correspondências. Em 13 de janeiro de 1939, o embaixador do Brasil no
Egito, José Lavrador, endereçou ao Ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, um
ofício acompanhado de vários anexos, cujo conteúdo dizia respeito a troca de correspondência
entre o consulado brasileiro e a diretoria do ―Central Narcotics Intelligence Bureau‖ da polícia
de Alexandria. Mehmet fora condenado a cinco anos de prisão por ―contrabando de drogas
estupefacientes‖, o jovem de origem libanesa possuía passaporte brasileiro, sendo identificado
pela polícia alexandrina como brasileiro naturalizado. O cônsul José Lavrador, descobriu que
o rapaz teria conseguido seu passaporte em Beirute em 1936, este por sua vez, foi trocado por
um passaporte expedido em 1934 em Paris. O governo brasileiro tratou, desta forma, de alegar
que Mehmet Aslan estava há mais de cinco anos fora do país, portanto, teria perdido a
nacionalidade. Na verdade Mehmet não queria reivindicar sua nacionalidade, pelo contrário, o
jovem teria se declarado filho de libaneses, mas queria enviar seus pertences pessoais para o
Brasil, solicitou ao consulado que este pudesse enviá-los, o que lhe foi negado. Os
memorandos não explicitam o tipo de ―entorpecente‖ que o Mehmet estava
―contrabandeando‖, talvez vendesse ópio do Oriente para a Europa.
158
Boletim da ANM, ANO 107º, 1936. In. SILVA, M. de Lourdes. Drogas – da medicina à repressão policial: a cidade do
Rio de Janeiro entre os anos de 1921 e 1945. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ano 2009.
159
A lei Marihuana Tax Act, criada em 1937, segundo HERER (1998), contribuiu para arruinar todos os produtos a base de
cânhamo. A rede de comunicação do jornalista William R. Hearst, com apoio de Harry Anslinger (Diretor do Federal Bureau
of Narcotics and Dangerous Drugs), atribuía todo o tipo de violência ao uso de maconha e de ópio, tratava-se de após a
revogação da lei seca, encontrar novos inimigos internos da nação.
67
160
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores, CFE/534 – 22 de setembro de 1941.
161
Arquivo Histórico do Itamaraty – Departamento Nacional de Saúde, 27 de junho de 1940.
68
§2º - Em se tornando necessário, para fins terapêuticos, fará a União a cultura das plantas
dessa natureza, explorando-as e extraindo lhes os princípios ativos, desde que haja parecer
favorável da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes.164
162
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores. ―Consulado em Estambul: aos 11 de fevereiro de
1936‖.
163
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores; 23 de Março de 1936. LA/2/612.4 (59)
164
Decreto-lei nº 891 de 25 de novembro de 1938.
165
Janos Kabay, um jovem químico húngaro, descobriu um modo revolucionário de produzir morfina na década de 1920,
extraindo-a não só da cabeça da papoula nova, mas também da palha seca da papoula. Essa técnica ficou conhecida como
―Processo Kabay‖, uma de suas vantagens para época era o fato de poder produzir morfina sem que para isso se produzisse
ópio.
69
Sem dúvida é interesse de o Brasil livrar-se da importação, não sómente por que a fabricação
destes produtos offerecem vantagens materiaes ao governo como também a única
possiblidade de poder effectuar a fiscalisação que a lei prevê. (sic).166
166
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores – Dossiê Kabay – 1938-1939.
167
BRASIL, Ministérios das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1944, p.63
70
Em boa parte dos memorandos enviados aos cuidados da CNFE pelas embaixadas
brasileiras dos países latino-americanos, o discurso sobre combate ao comércio ilegal é
recorrente. Os embaixadores informavam como os referidos países lidavam com o
―problema‖, apesar da troca de informações e das orientações do Comité Central do Ópio, não
é possível encontrar padrões bem definidos no modo como cada país aplicava sua política de
drogas. O cônsul brasileiro em Havana, José Roberto de Macedo Soares, por exemplo,
escreveu em 25 de março de 1938, sobre a entrada de maconha procedente do México em
Cuba, informava que por esse motivo a ―Polícia Secreta Nacional‖ iniciara uma campanha
―contra os entorpecentes em geral e especialmente contra a marihuana‖. O cônsul pedia que
se fizesse chegar às mãos do presidente da CNFE um estudo de caráter técnico sobre os
efeitos da intoxicação pela ―marihuana ou yerba de México‖, de autoria do Sr. H.T.
Anslinger. A ―campanha‖ iniciada em Cuba, por influência da política estadunidense
formalizada pela “marijuana tax act” em 1937, só veio se desenvolver no Brasil na primeira
metade da década de 1940, como veremos no capítulo terceiro.
168
BRASIL, Decreto-Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938, Artigo I, parágrafo XVI.
71
Comissão notificou aos inspetores alfandegários que não permitissem a entrada dos ―Cigarros
Indianos Grimault‖, produto de procedência francesa, que teve sua primeira licença nacional
em 1888, sendo esta revalidada em 1932 e novamente em 1937. A empresa foi transferida
para os Estados Unidos e necessitou de nova revalidação da licença, contudo, com o Decreto-
Lei nº 891/1938, a CNFE determinou que fosse retirado da fórmula a ―canabis sativa
(marihuana)‖, por ser tal substância considerada nociva. O posicionamento da Comissão foi
que os ―Cigarros Indianos Grimault se prestam à difusão desta nova modalidade de
toxicomania, que já está tendo um grande número de adeptos no Brasil‖. 169
169
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores; CFE/472, abril de 1941.
170
Relatório da CNFE em 1940: Arquivo Histórico do Itamaraty. O grifo é meu. Roberval Cordeiro de Farias apresentou uma
palestra em 1945 no Rotary Clube do Rio de Janeiro cujo título foi: As toxicomanias no após-guerras. Posteriormente veio a
publicá-la no Boletim da Oficina Sanitária Panamericana, Julho de 1946, p. 584.
72
de 1940, apesar das dificuldades estruturais, já era suficiente para colocá-lo a frente das várias
nações, não só na América Latina, mas também na Europa.
171
Decreto-Lei nº 3.114 de 13 de março de 1941, artigo 1º.
172
João de Barros Barreto é apontado como o principal responsável pela implantação das reformas na área de saúde no
Brasil. Estando a frente do DNS entre os anos de 1937-1939 e 1940-1945. (Hochman, G. Reformas, instituições e políticas de
saúde no Brasil (1930-1945). Educar, Curitiba, nº25, pp.127-141: UFPR, 2005).
173
Alguns desses relatórios aparecem nos ―Arquivos de Higiene‖ (Fiocruz), outros podem ser encontrados entre a coleção
pessoal de Gustavo Capanema (CPDOC/FGV). Os relatórios encontrados nestes dois arquivos abarcam os anos de 1937 a
1946, entretanto, nem todos os anos foram localizados, utilizarei aqueles referentes aos anos de: 1937, 1939, 1942, 1944,
1945 e 1946. Alguns documentos localizados no acervo do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, não puderam ser
examinados, por medidas de proteção ao acervo, devido às obras da Torre Oscar Niemeyer, no terreno ao lado da FGV, à
consulta a esta documentação não tem prazo determinado.
75
174
Sobre o médico Roberval Cordeiro de Farias, não encontrei registros quanto sua história pessoal. Seu nome foi dado a
uma rua no Recreio dos Bandeirantes no Rio de Janeiro. Sobre sua vida profissional, as fontes analisadas indicam que entre
1936 e 1939 ele foi diretor da Seção de Fiscalização do Exercício Profissional e entre 1940 e 1946, presidiu a Comissão
Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Em 1948 assina um documento como diretor do Serviço Nacional de
Fiscalização da Medicina. De dezembro de 1945 e dezembro de 1946, assumiu a direção do Departamento Nacional de
Saúde, substituindo João de Barros Barreto. Possivelmente tenha acumulado algumas funções durante este período. Em uma
foto publicada em 3 de setembro de 1938 pelo jornal Gazeta de Notícias, Dr. Roberval aparece ao lado de um companheiro
da ―inspetoria‖, o médico Dr. Salgado Lima, mas a imagem já desgastada, mal dá para ver seu semblante.
175
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde – Arquivos de Higiene - Departamento Nacional de Saúde. ―Serviço federais de
saúde em 1937: Relatório apresentado ao Ministro Gustavo Capanema pelo Dr. João de Barros Barreto, Diretor Geral do
Departamento Nacional de Saúde‖. p.89.
76
descrição das deficiências pelas quais a seção vinha passando. A primeira dizia respeito às
péssimas condições das instalações onde estavam alocados, tratava-se de um sobrado em um
prédio na Rua Paulo de Frontin, nº 13, propriedade da Fundação Gafrée Guinle.176 Roberval
descreveu a situação da seção farmacêutica como deplorável, que além das péssimas
condições das suas instalações não contava com laboratório de análises químicas, precisando
terceirizar o serviço em hospitais particulares. Nos departamentos ocupados pela seção de
fiscalização de entorpecentes não havia espaço para acomodar os funcionários, os mobiliários
eram insuficientes, o que fazia das condições de trabalho desconfortáveis não só para os
funcionários como também para quem precisava recorrer aos serviços daquela seção. Por fim,
o diretor da SFEP sugeria que o melhor a fazer seria transferir toda a seção para outro lugar
com melhores condições e que propiciasse o desenvolvimento mais eficiente das suas
atividades.
O relatório de 1939 contém informações até então não reveladas sobre as importações
brasileiras de substâncias psicoativas. Descreve os desafios impostos em parte pela
conflagração da guerra e em parte pelas dificuldades em fazer prevalecer o novo código legal,
o Decreto-Lei nº 891/1938. A Segunda Guerra fez com que a CNFE buscasse soluções que
pudessem evitar a liquidação total dos estoques. A seção concedeu no início do ano
certificados para suplementar as importações, mas devidos aos ―embaraços criados aos
transportes comerciais, aqui não chegaram até o último dia do ano.‖ A ausência de
alternativas para importar ópio, cocaína, cânhamo e suas ―preparações‖, configurou uma
―crise de tais entorpecentes‖ esta, afirma o relatório, ―só seria sanada com a inserção de novos
importadores ou estabelecimento de importação, quiçá preferentemente de monopólio, por
parte do Estado‖.177 O relatório apresenta um quadro comparativo para demonstrar os efeitos
da guerra nas importações de entorpecentes:
Tabela 2 - Importações de Entorpecentes.
176
Fundada em 1923 por Guilherme Guinle, dono da Companhia Docas de Santos, a Fundação Gafrée Guinle tinha por
finalidade prestar serviço de assistência a saúde à população carente na cidade do Rio de Janeiro.
177
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde – Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de Fiscalização do
Exercício Profissional, ano de 1939. CPDOC/FGV, Arquivo Gustavo Capanema.
77
178
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1939. Arquivo Gustavo Capanema.
78
Gráfico elaborado com base nos dados apresentados pelo: M.E.S. Departamento Nacional de Saúde.179
179
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1939. Arquivo Gustavo Capanema.
79
complexidade da atividade fiscal, também conferiu a esta mais autoridade. O fiscal era o olho
do Estado sobre o médico, dentista, veterinário e farmacêutico, mas ainda assim, a nova
política não refletiu diretamente no consumo legal de psicoativos. Os níveis de consumo no
primeiro ano da nova legislação apresentaram um pequeno aumento em comparação aos anos
anteriores, em 1937 foram visadas 9.450 receitas de entorpecentes, enquanto em 1939 o
número chegou a 9.576.
A CNFE também apresentou relatórios sobre suas atividades ao Ministério das
Relações Exteriores. Diferentemente daquelas elaboradas pelo SFEP, os relatórios da
Comissão se detinham nos aspectos referentes às ações da política interna, como as atividades
desenvolvidas nos Estados e no Distrito Federal, mas também sobre as relações com o Comité
Central do Ópio. Outras atividades contempladas nesses relatórios diziam respeito aos temas
tratados nas reuniões ordinárias e sobre suas deliberações. Infelizmente não foram
encontrados muitos desses relatórios, é possível que tenham se perdido no tempo entre os
arquivos públicos.
No ofício encaminhado a Oswaldo Aranha, cujo anexo achava-se o relatório das
atividades da CNFE em 1940, verifica-se uma fala bem diferente das apresentadas pela SFEP.
Para o presidente da Comissão, o médico Roberval Cordeiro de Farias, os resultados das
ações eram sempre motivo de orgulho para o governo brasileiro:
Vossa Excelência se dignará verificar das anotações inclusas, suas atividades nos vários
setores que lhes estão afetos tiveram sempre solução eficiente, mostrando o valor da nova lei
que regula a entrada e o uso de entorpecentes no território nacional; igualmente os trabalhos
correram em perfeita ordem e normalidade.180
Roberval Cordeiro de Farias tinha de fato, motivos para tanto otimismo, do mesmo
modo que os técnicos da Seção de Fiscalização de Entorpecentes tinham razões para
manifestar suas preocupações e deficiências, a eficiência não é o objeto desta análise. O que
se quer destacar aqui, são as práticas discursivas, os novos enunciados, uma racionalidade da
ação governamental que é a razão de Estado, onde a verdade a ser manifesta é a verdade do
Estado.181 A verdade sobre os usos nocivos e sobre as propriedades degenerativas de
determinadas substâncias passaram a ser difundidas pela CNFE, que organizava eventos e
seminários para esclarecer a nova legislação e as instruções. Em 1940 o Dr. José
Hasselmann, diretor do Instituto de Química Agrícola, proferiu duas comunicações a convite
da Comissão, cujo tema era ―plantas brasileiras com propriedades entorpecentes e euforísticas
180
CNFE. Ofício de 22 de janeiro de 1941 ao Ministro das Relações Exteriores. Arquivo Histórico do Itamaraty.
181
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France, 1979-1980: aulas de 09 e 30 de Janeiro de 1980.
Nildo Novelino (Trad). São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009. p.22.
80
e que pelo seu uso, deve o plantio ser sujeito ao controle da Comissão‖. 182 Também a convite
da CNFE o Dr. Pernambuco Filho, proferiu palestras sobre o ―decréscimo do número de
toxicômanos em virtudes das medidas restritivas e da fiscalização advindas da aplicação da
nova lei de entorpecentes‖. Ainda segundo o relatório, a Comissão promoveu reuniões
visando soluções para contornar a redução dos estoques, provocado pela guerra, de modo a
não comprometer o abastecimento de entorpecentes para ―fins científicos‖.183 Foram emitidos
ofícios aos Estados recomendando a proibição e destruição dos plantios de culturas listadas no
art. 2º do Decreto-Lei nº 891 e concedidas quatro licenças para estabelecimentos de
tratamento de toxicômanos. Sobre outras atividades da CNFE reproduzo no gráfico abaixo:
Gráfico elaborado com base nos dados apresentados pelo: M.E.S. Departamento Nacional de Saúde 184
Não foram encontrados relatórios sobre o ano de 1941, nem por parte da Comissão,
nem por parte da Seção de Fiscalização de Entorpecentes. Não significa, no entanto, que estas
não tiveram atividades neste ano, ao contrário, já citei ao longo deste capítulo várias
atividades que foram mencionadas por outras fontes. Graças aos balanços anuais é possível
verificar, por exemplo, uma leve recuperação na entrada de entorpecentes no país em relação
ao ano de 1939 (tabela 2), nos anos de 1940 e 1941, conforme demonstrado na tabela abaixo:
182
Resumo das atividades da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes em 1940. Arquivo Histórico do Itamaraty.
183
Quanto aos efeitos desses debates no âmbito da lei, o resultado foi o Decreto-Lei 4.720/1942, sobre o qual abordarei no
próximo capítulo.
184
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1940. Arquivo Gustavo Capanema.
81
185
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1942. Arquivo Gustavo Capanema.
82
186
O Decreto – Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938, em seu artigo Art. 45, lê-se: ―Nos Estados e no Território do Acre
serão organizadas Comissões estaduais nos moldes da Comissão Nacional com jurisdição nos respectivos territórios, as quais
se entenderão diretamente com a Comissão Nacional a que ficam subordinadas e, excepcionalmente nos casos de urgência,
com as dos Estados vizinhos.‖
187
Confira: tabela I - capítulo II.
188
Em 1940, o IBGE elaborou uma nova proposta de divisão para o país que, além dos aspectos físicos, levou em
consideração aspectos socioeconômicos. A região Norte era composta pelos Estados de Amazonas, Pará, Maranhão e Piauí e
o território do Acre. Goiás e Mato Grosso formavam com Minas Gerais a região Centro. Bahia, Sergipe e Espírito Santo
83
A CNFE enviou uma série de instruções aos Estados, mas também solicitou destes
informações sobre o andamento dos trabalhos. Num formulário anexado ao relatório do DNS
em 1942 é possível verificar as tentativas de avaliar a efetividade dos instrumentos de
controle e análise. Era o caso do bloco de receituário especial para prescrição dos
entorpecentes, descrevo abaixo parte das informações solicitadas no formulário às Comissões
Estaduais:
formavam a região Leste. O Nordeste era composto por Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e Alagoas.
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro pertenciam à região Sul. Fonte: Brasil Escola. Acesso
em 11/01/2013: http://www.brasilescola.com/brasil/divisao-regional-brasileira.htm
189
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde: Relatório do Departamento Nacional de Saúde – Serviço de Fiscalização da
Medicina, ano 1942. CPDOC/FGV. Arquivo Gustavo Capanema. p. 396.
190
A região em questão também é conhecida na atualidade com ―Polígono da Maconha‖, que abrange segundo dados da
Superintendência da Polícia Federal de Pernambuco, 12 municípios, todos banhados pelo Rio São Francisco. O Estado faz
divisa com Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas e Bahia.
191
Segundo o Relatório Ministerial de 1944, onze Estados haviam aprovado suas instruções sobre o uso e o comércio de
entorpecentes: São Paulo desde 1942. Piauí, Rio Grande do Sul, Ceará, Santa Catarina, Paraná, em 1943 e Alagoas, Pará,
Bahia, Rio de Janeiro e Sergipe em 1944. Arquivos de Higiene, Departamento Nacional de Saúde, 1944, p.460
84
Mas se por uma lado era vital estender os dispositivos de fiscalização por todos os
Estados brasileiros, ampliando o leque da vigilância aos médicos, farmacêuticos, dentistas,
veterinários, dentre outros, por meio de instrumentos que transformavam determinados
comércios e consumos em atividades ilegais, por outro lado era necessário manter os estoques
para atender às necessidades médicas legais. Ao final de 1941 um relatório elaborado pela
CNFE encaminhado ao Ministério das Relações Exteriores alertava para a necessidade de se
providenciar mudanças no sistema legislativo com vista a contornar a dificuldades impostas
pela guerra. O serviço de expedição de certificados de importação e exportação de
entorpecentes:
Que vinha funcionando normalmente no Brasil, tem sido grandemente prejudicado, nos
últimos tempos, pelas circunstâncias decorrentes da guerra: dificuldade de comunicação,
extravios de certificados em consequência de bombardeios, e afundamento de navios.
Entretanto, as autoridades brasileiras, de acordo com os convênios assinados, não consentem
na entrada, em território nacional, de quantidade alguma de entorpecentes que não tenham
sido importadas segundo os preceitos legais.193
192
DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. 1990 p.46.
193
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1941, p.28
85
estoques do Estado. A CNFE propôs então uma medida mais radical, esta efetivou-se pelo
Decreto – Lei 4. 720 de 21 de setembro de 1942, que estabeleceu a fixação de ―normas para o
cultivo de plantas entorpecentes e para extração, transformação e purificação dos seus
princípios ativo-terapêuticos.‖. O novo código ia de encontro ao artigo 2º do Decreto 891, que
a rigor proibia:
194
BRASIL, Diário Oficial da União. Seção 1. 23/09/1942. p. 14289. Dentre outras iniciativas por parte da CNFE
objetivando contornar o problema dos estoques baixos, estava a proposta ao Ministério das Relações Exteriores para uma
convocação de uma Conferência Interamericana na cidade do Rio de Janeiro, visando estudar em conjunto com os países
vizinhos, possíveis soluções para o abastecimento de entorpecentes. A referida conferência não ocorreu, o país só tornou-se
palco de um evento oficial em março de 1960, quando sediou a I Reunião Interamericana Sobre Tráfico Ilícito de Cocaína e
Folhas de Coca.
195
Veja nota nº 167 da pag. 74
196
A criação do SESP – Serviço Especial de Saúde Pública em 1942, segundo o historiador André Luiz Vieira Campos,
também é um ―produto da política externa norte-americana na conjuntura da Segunda Guerra Mundial‖. Sua organização
dera-se durante o Terceiro Encontro de Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas no Rio de Janeiro, o
SESP tornou-se uma agência bilateral de saúde pública com a gestão da Fundação Rockefeller. CAMPOS, André L. Vieira.
Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Rio de Janeiro: Editora
Fio Cruz, 2006, p.35.
86
política de industrialização.197 Neste sentido, o Decreto – Lei 4.720 de 1.942 pode ser
compreendido para além dos objetivos de suprir a carência de psicoativos no mercado
brasileiro em decorrência da guerra, muito embora, no caso específico dos entorpecentes não
se concretizou.
A CNFE, fazendo uso dos dispositivos legais elaborados pela própria Comissão,
encaminhou ao Ministro das Relações Exteriores um ofício reivindicando que fosse concedida
aos seus membros ―uma carteira ou documento outro que caracterize a função fiscalizadora e
policial dos mesmos‖, de modo que esta lhes facultassem livre ingresso a ―qualquer lugar
197
SKIDMORE, Thomas, E. Brasil: de Getúlio à Castelo Branco (1930-1964), Rio de Janeiro, 7ª ed. Paz e Terra, 1982, 68.
198
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes: Ofício de nº 567 de 14 de janeiro
de 1942. Cód. 612,4 (30)
87
Três meses depois, a portaria nº 9169, baixada pelo chefe de polícia do Distrito
Federal, determinava que os membros da Comissão ―devidamente credenciados‖ deveriam
receber ―todo e qualquer auxilio na efetivação das diligências que se tornarem necessárias ao
cumprimento dos dispositivos do decreto-lei nº 891 de 1938.‖ Em virtude da portaria o
presidente da Comissão solicitou ao Secretário Geral da Divisão de Atos do Itamaraty que
fossem providenciadas as ―carteiras de identidade declaratórias‖ a Divisão do Cerimonial.
Assim, nos primeiros anos desde sua criação, a CNFE concentrou seus esforços na
consolidação dos dispositivos legais, normativos e regulatórios. Uma vez estabelecida às
bases que fundamentaria a política de drogas no Brasil, a Comissão deu um passo adiante;
fazer uso dos instrumentos por ela elaborados. Com plenos poderes conferidos, a CNFE
intensificou as operações de repressão ao uso e comércio de entorpecentes durante a década
de 1940, mais precisamente a partir de 1943.201
Se ao Sul do país havia entrada de drogas por parte das fronteiras com países vizinhos,
no Nordeste uma droga em especial estava sendo produzida em larga escala, mobilizando uma
grande operação; a maconha.202 As ações concentraram-se nos Estados da Bahia, Sergipe e
Alagoas, em cada Estado foram realizadas atividades diferentes. O relatório apresentado aos
199
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Entorpecentes, Ofício, n° 731, de 13 de Janeiro de 1943. Cód.
512,4
200
Ibid.
201
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Memorando ao Secretário Geral
do Itamaraty em 18 de Março de 1943. Cód.512.4
202
A intensificação da repressão contra a maconha, de modo algum pode ser considerado como um evento isolado. A partir
da Marihuana Tax Act em 1937, os EUA transportaram toda sua estrutura repressiva utilizada durante os anos de Lei Seca
para combater o novo inimigo; a canabis. Em 1942, segundo Rowan Robinson, sob o comando Harry Anslinger, a repressão
à maconha chega ao seu auge, coma prisão de jazzistas usuários de canabis. ROBINSON, Rowan. O grande livro da
cannabis. Jorge Zahar, Rio de Janeiro: 1999, p.96. Sobre a Marihuana Tax Act, Veja: ESCOHOTADO (1998) pp.692-698.
88
C.E.F.E. – BAHIA
203
O Relatório em questão foi publicado em 1958 na obra: Maconha, Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Serviço Nacional
de Educação Sanitária. A coletânea conta com 31 textos envolvendo os principais médicos e outros especialistas.
204
Ambos publicados na Coletânea de Trabalhos Brasileiros: Maconha.
89
206
Veja CARVALHO, Salo. A Política Criminal de Drogas no Brasil: (Estudo Criminológico e Dogmático). 6. ed. rev.,
ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p.23
207
BRASIL. Serviço Nacional de Educação Sanitária, Maconha: Coletânea de Trabalhos Brasileiros, 2ª Ed.1960. Relatório
apresentado aos membros da comissão sobre a Inspeção realizada de 7 a 19 de novembro de 1943 nos Estados da Bahia,
Sergipe e Alagoas, visando o problema do Comércio e uso da maconha. Dr. Roberval Cordeiro de Farias. 1943. p.05
90
Fomos em seguida para Igreja Nova, onde, de acôrdo com as informações que possuía o Dr.
Rodrigues Albuquerque, devia haver plantações de maconha. O Prefeito e Delegado locais
nos informaram não haver plantações de diamba na localidade. Com a indicação, porém, que
tínhamos, fomos ter, em companhia do Prefeito, à casa de um septuagenário, que declarou
fumar diamba desde menino, encontrando no quintal de sua casa uma pequena plantação e a
maconha já preparada e sêca, em pequenos sacos, na sua residência, que foi por nós
apreendida.209
208
Idem.
209
Idem.
91
Foi possível localizar e destruir grande número de plantações de maconha nos Estados da
Bahia, Sergipe e Alagoas, sendo tomadas outras medidas de prevenção e repressão de apurada
eficácia na campanha contra o vício dessa erva211.
210
Ibid. p.9
211
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1943, p.61 O Rapports Annuels de Governements
PourL‘Année 1943, publicado pela Sociedade das Nações e distribuído entre os países signatários, também noticiava as ações
do Brasil no âmbito da política repressiva.
212
DEACON, Roger & PARKER, Ben. Educação como sujeição e como recusa. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito
da educação: estudos foucaultianos. 5ed. Editora Vozes: Petrópolis, 2002. p.102.
213
FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: MACHADO, Roberto. Microfísica do Poder, 4ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1984. p.08
92
Longe de ser possível definir o poder de modo a condensá-lo a um conjunto único que
o caracterize sem muitas complexidades, eis para Foucault uma das possibilidades de
descrevê-lo:
214
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 17ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006. p.103.
215
Idem, ibidem, p.107
216
Ibid, p.109
217
PERLOGHER, Néstor. “Droga e Êxtase”. Religião e Sociedade, No 16/3. Rio de Janeiro: Iser (1994), p. 8-23.
218
Sobre dispositivos veja também: BENELLI, Silvio José. Dispositivos disciplinares produtores de subjetividade na
instituição total. Psicologia em Estudo, Maringá,v. 8, n, 2., p. 99-114, 2003
93
220
Ibid, p.205
94
ao Diretor Geral do DNS, João de Barros Barreto, que por sinal, boa parte fora reproduzida no
relatório anual do mesmo, contava com uma preocupação quanto ao aumento da incidência do
consumo de drogas em consequência do fim da Segunda Guerra.
Sem citar suas fontes, Roberval Cordeiro de Farias, afirmara no início da década de
1920, isto é, o pós-Primeira Guerra, o consumo de entorpecentes em alguns países teriam
subido de 30 para 40 toneladas. Já na década seguinte entre os anos de 1931 e 1936, uma vez
―restabelecido o controle sobre tais substâncias‖ as mesmas 40 toneladas dariam para atender
durante o quinquênio as necessidades de todos os países do mundo. Prosseguindo com sua
análise, no caso do ópio, por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, sua produção
anual chegara as 2,650 toneladas, enquanto às necessidades médicas calculadas para o pós-
guerra iriam além de 440 toneladas. O excedente, segundo o médico, iria para o mercado
ilícito.
221
O Departamento Nacional de Saúde em 1944. Arquivos de Higiene, p.457. O relatório de Roberval Cordeiro de Farias,
mais tarde foi publicado sob o título: As toxicomanias no após-guerras. No Boletim da Oficina Sanitária Pan-americana, em
Julho de 1946, p. 584. O artigo foi primeiramente apresentado em 14 de dezembro de 1945 em uma palestra proferida pelo
Dr. Roberval, a convite do Rotary Club do Rio de Janeiro.
95
produção de ópio na região da Manchúria, para fazer disso uma ―arma de guerra‖ destinada a
pacificar as áreas ocupadas, teve sua derrota comemorada pelo Comitê: ―A destruição da
indústria de entorpecentes do Japão é outra de histórica significação que os povos
democráticos com natural júbilo irão festejar‖ Uma recomendação especial para as áreas antes
ocupadas pelas forças nipónicas, dizia que a fiscalização nessas regiões deveriam ser feitas
com muita severidade de modo a não se restabelecer o tráfico de ópio.222
De acordo com Roberval Cordeiro de Farias, todas essas medidas teriam sido
integralmente alcançadas e consubstanciadas no Decreto-Lei nº 891 de 25 de novembro de
1938. Tal êxito pôde ser alcançado graças a um bem articulado entrosamento entre a CNFE e
222
Extraído de: FARIAS, Roberval Cordeiro de, As toxicomanias no após-guerras. Boletim da Oficina Sanitária Pan-
americana, em Julho de 1946, p. 584.
223
Ibid,
224
Ibid.
96
o DNS via o Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Todas estas organizações federais
criaram instâncias estaduais, como os Departamentos Estaduais de Saúde, onde eram alocados
os Serviços Estaduais de Fiscalização da Medicina que, por sua vez possuía uma seção ou
inspetoria de fiscalização de entorpecentes, todos eles atuando em conjunto com as Comissões
Estaduais de Fiscalização de Entorpecentes
Após seguir por mais algumas considerações sobre a estrutura legislativa, que àquela
altura já contava com duas décadas de experiência do governo brasileiro em lidar com o
problema (já praticamente erradicado) das drogas, o Dr. Roberval, assegurava que o país
estava preparado para ―enfrentar a avalanche de viciados e os traficantes que tentarão
disseminar o vício dos entorpecentes na nossa terra.‖225 Na exposição que fez no ano seguinte
a convite do Rotary Clube, naquele momento como Diretor Geral do Departamento Nacional
de Saúde, Roberval Cordeiro de Farias defendia que o governo brasileiro deveria prestar
―apoio irrestrito à campanha encetada pelos Estados Unidos, pela qual vem se batendo desde
os primórdios da luta contra o uso ilícito dos entorpecentes.‖226
225
Ibid, p.459
226
Extraído de: FARIAS, Roberval Cordeiro de, As toxicomanias no após-guerras. Boletim da Oficina Sanitária Pan-
americana, em Julho de 1946, p. 586
97
É justo o receio do Sr. Ministro de que as medidas de repressão, expostas no projeto, gerem o
abuso na venda clandestina de bebidas alcóolicas. Contudo, sendo essa repressão o único
meio de que se dispõe, dever-se-ia, a nosso ver, estabelecer ao lado da medida repressora,
uma propaganda sanitária eficiente que visasse; a) reeducar a população, substituindo o hábito
de uma bebida por outra saudável, ou alimento líquido (leite, mate, por exemplo); b)
incrementar o hábito de preencher os dias de folga com passeios ao ar livre, esportes, etc.; c)
criar para certas camadas menos favorecidas da população um ambiente próprio para horas de
lazer, locais de reunião após o trabalho, com jogos e divertimentos de salão onde seriam
vendidas bebidas refrigerantes. (Grifo meu)229
Este projeto visando contrabalançar os efeitos das medidas repressoras deveria ser
gerido pelo Serviço Nacional de Educação Sanitária. No âmbito das medidas repressivas, o
pronunciamento do Serviço Nacional de Doença Mental defendia a proibição da venda de
bebidas alcoólicas nas proximidades das colônias, alegando que os doentes internados nesses
estabelecimentos gozavam de um regime de liberdade relativa, o que lhes deixavam em
condições de vulnerabilidade frente a tantos pontos de venda de bebidas alcóolicas. O
anteprojeto, ao que tudo indica, caiu no esquecimento, os relatórios dos anos seguintes não
fazem qualquer menção ao alcoolismo.230
227
Juvenal Lamartine não foi o primeiro a propor uma lei visando o controle do álcool, mas teve um forte apoio das
sociedades higienistas em sua época. Veja: MARQUES, Teresa Cristina Novaes. Cerveja, e aguardente sob o foco da
temperança no Brasil, no início do século XX. REHB- Revista Eletrônica de História do Brasil. UFJF, Vol.09, nº1, janeiro-
julho de 2007.
228
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1944, pp.62-63.
229
O Departamento Nacional de Saúde em 1944. Arquivos de Higiene, p.460
230
O conteúdo do anteprojeto não foi localizado junto a documentação pesquisada. Em 1962, a CNFE comandada pelo
médico Décio Parreiras, realizou um recenseamento nacional sobre as toxicomanias, nele constataram que 94,8% das
internações eram de devidos ao abuso de álcool. Contando com o apoio da recém-criada ―Subcomissão Nacional de
Alcoolismo‖, a CNFE lançara em 1966 o livro “O álcool”, publicado pelo Ministério das Relações Exteriores.
98
231
O novo regimento foi aprovado pelo Decreto nº 21.339, de 20 de Junho de 1946, sobre o qual tratarei mais à frente.
99
e preocupações quanto aos rumos que o país tomava, por parte dos setores responsáveis pelo
controle e fiscalização de entorpecentes.232
232
O Departamento Nacional de Saúde em 1942. Arquivos de Higiene, Ministério da Educação e Saúde p. 294R: 614.06 -
B277a
233
Devido a falta de padronização na apresentação dos relatórios anuais, alguns não revelaram informações sobre as
inspeções nos estabelecimentos farmacêuticos. O relatório de 1939, por exemplo, há uma tabela bem elaborada, com os
detalhes da atuação da seção, como apresentei em forma de gráfico no capítulo dois. Já os dados de 1940 e 1941, não
aparecem nas fontes, sobre o ano de 1942 é possível saber apenas poucas informações, somente com os dados de 1945 será
possível comparar (com 1939) com mais precisão os avanços na fiscalização.
100
Gráfico elaborado a partir da planilha organizada pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes. 234
234
O Departamento Nacional de Saúde em 1945. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene, Ano
16 junho-dezembro nº 1 e 2 - 1946. p. 127.
101
Gráfico produzido a partir dos dados fornecidos nos relatórios do DNS nos anos de 1939 e 1945.
Dados fornecidos pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes entre os anos de 1939 e 1946, em gramas. 235
Para além dos volumes das importações estava em jogo a mudança no comportamento
das drogas adquiridas. Os efeitos de poder que envolviam a racionalidade no mercado
farmacêutico se deram na substituição das ―drogas nocivas‖ pelas novas substâncias ―menos
nocivas.‖ No caso da heroína, a CNFE adotou uma política de zerar a importações, prática
esta que pode ser confirmada nas transações comerciais de psicoativos a partir de 1939. Esta
prática deliberada é apresentada por Roberval Cordeiro de Farias:
A heroína, o mais traiçoeiro dos entorpecentes foi cancelado da nossa importação, atendendo
à justa solicitação da Sociedade das Nações. A morfina vem sendo substituída pela codeína e
dionina, muito menos nocivas, graças à campanha educativa exercida junto às classes médica
e farmacêutica do nosso país. A cocaína vai sendo também aos poucos retirada do uso clínico,
e substituída por outros anestésicos que não estabelecem vício.236
236
FARIAS, Roberval Cordeiro de, As toxicomanias no após-guerras. Boletim da Oficina Sanitária Pan-americana, em Julho
de 1946, p.583.
103
toxicômanos‖, composto por uma série de perguntas cujas respostas remetiam aos médicos o
conhecimento da lei. Transcrevo abaixo algumas perguntas com as respostas consideradas
corretas em um modelo pronto:
237
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Questionário relativo ao critério
prático jurídico adotado ao uso de drogas e toxicômanos.
238
O Departamento Nacional de Saúde em 1945. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene, Ano
16 junho-dezembro nº 1 e 2 - 1946. p. 127
104
A maior participação dos EUA nas importações de psicoativos no Brasil não implicou
apenas na substituição de determinadas substâncias e no aumento da entrada das drogas
produzidas por este. A pressão exercida pela política proibicionista estadunidense em alguns
casos fizeram com que a CNFE adotasse medidas de restrição a substâncias que sequer faziam
parte da lista aprovada pelo Comitê Central do Ópio. Um exemplo foi a ―Papaverina‖, um
vasodilatador derivado do ópio, que em 1945 foi incluída no segundo grupo do artigo 1º do
Decreto-Lei de 1938. Na justificativa apresentada pela Seção de Fiscalização de
Entorpecentes estava justamente o fato de que, embora tal substância não figurasse na relação
do Comitê, ―os Estados Unidos da América do Norte também a consideram como
entorpecentes‖.
Havia, em 1946, 16 empresas com registros legais para importar psicoativos para o
Brasil, a CNFE entendendo que o volume das importações era insuficiente para garantir cotas
satisfatórias a todas, resolveu elevar os valores da caução como forma de inibir as inscrições
de novas empresas. O Decreto-Lei nº 891 de 1938 definia em seu artigo 4º que as empresas
importadoras de entorpecentes deveriam depositar junto à Caixa Econômica Federal, caução
239
O Departamento Nacional de Saúde. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene. Anos de 1945 e
1946. Na tabela acima não foram computados a suplementação de codeína.
105
que poderia variar entre 10 a 30 mil cruzeiros, valores que eram para prevenir ―eventuais
multas e custas processuais.‖ Assim o Decreto-Lei 8.646 de 11 de janeiro de 1946 elevava a
caução para as importadoras para 30 a 50 mil cruzeiros. O procedimento, em questão, teve
como resultado prático quatro depósitos na quantia de 50 mil cruzeiros, pertinente a quatro
empresas que solicitaram o registro de importação de entorpecentes, o que demonstra a
lucratividade do negócio.240
240
O Departamento Nacional de Saúde em 1946. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene. p.255.
241
Decreto- Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938. Capítulo III, art.29º §12º.
106
cocaína (80kg / 25kg), além disso, o país ainda fazia importação legal de heroína. Já os EUA
obtinham um patamar de consumo muito superior ao Brasil, a projeção apresentada pelo
governo estadunidense para o ano de 1946 em morfina chegara a 2.250kg, em cocaína 900kg.
242
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Lata 1892/ Maços: 36264-36265.
A União Soviética em 1945 importou 1.550kg de morfina, 1.000kg de cocaína, 7.000 kg de metilmorfina, 650kg de
etilmorfina e 50kg de diacetilmorfina (heroína).
107
A CNFE é, portanto, efeito dessas relações de poder que convergiram não de modo
natural, mas sob uma série de conflitos e disputas, onde o modo de conduzir a vida das
pessoas tornou-se vital para governar bem. O discurso médico-jurídico fez emergir um
―Estado sanitário‖, cujo objetivo era tornar são o corpo social. A administração de psicoativos
passou a ser de exclusividade médica, o uso recreativo foi criminalizado, a gestão de toda
tecnologia desenvolvida para fazer valer a nova razão de Estado ficou a cargo da CNFE por
um período de quatro décadas, o que faz da Comissão um importante instrumento da
internalização do proibicionismo no Brasil.
Em 11 de dezembro de 1946, foi assinado o protocolo que transferia para as Nações
Unidas os poderes e funções exercidas pela Liga das Nações no que dizia respeito à política
mundial de drogas. O governo brasileiro, cujo projeto em consonância com os objetivos da
CNFE, visava conseguir uma vaga permanente no Comitê Central do Ópio, aos fins de 1947
ainda não havia ratificado tal protocolo. A delegação brasileira representada na Conferência
de Nova Iorque, pelo diplomata João Carlos Muniz, solicitou por telegrama a urgência na
ratificação, justificando que esta poderia colocar o país em uma situação de inferioridade na
indicação dos candidatos brasileiros junto ao órgão. Nos anos que viriam, isto é, nas duas
décadas seguintes a CNFE seguiu procurando acompanhar a política mundial de drogas. A
Comissão participou ativamente de todas as alterações legais que permitiram ampliar o
aparelhamento do Estado na luta contra as drogas. A atuação da CNFE, ao longo de quase
quatro décadas, serviu para dar sustentação à política proibicionista no Brasil. Ultrapassando
governos e lideranças políticas, as leis, os regulamentos e normativas cristalizaram práticas
sociais que eram latentes e que foram apropriadas pelo Estado, como alertou Thiago
Rodrigues.244
243
VIEIRA, Ana Lúcia .op. cit. p.65
244
RODRIGUES, Tiago. op.cit.p.161.
108
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
245
RODRIGUES, Tiago. op.cit. p.167
109
controle do comércio legal nas farmácias e junto à classe médica, dispositivos pedagógicos,
por meio das instruções, normativas, questionários, palestras, e por fim, na patologização dos
usuários, por meio de uma sucessão publicações científicas que reforçavam o vínculo entre
uso recreativo e a toxicomania. Tal modelo de organização, ao ser desenvolvido nos Estados
da Federação com a criação das subcomissões Estaduais possibilitou a amplificação de um
sistema ramificado e hierarquizado. Desse modo foi possível incitar o consumo de
determinadas substâncias e reprimir outras, caracterizando um jogo complexo do ―dispositivo
drogas‖.
A complexidade na relação entre as sociedades e as drogas está presente no próprio
termo droga (Phármakon em grego) como percebeu Jacques Derridá.246 O termo poderia
significar como em Fedro,247 remédio ou veneno, o φάρμακοv (Phármakon), significou em
Odisséia,248 ora a poção mágica de Circe, ora o antídoto que Hermes oferece a Odisseu. O
phármakon em outro momento é também o remédio que Helena deita no vinho, ou o veneno
no qual Odisseu embebeda suas flechas.249 Como observou Jacques Derrida:
Sócrates compara a uma droga (phármakon) os textos escritos que Fedro trouxe consigo. Esse
phármakon, essa "medicina", esse filtro, ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no
corpo do discurso com toda sua ambivalência. Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa
potência de feitiço podem ser — alternada ou simultaneamente — benéficas e maléficas.250
246
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005.
247
PLATÃO. Fedro. Trad. J. Ribeiro Ferreira. Lisboa: Verbo, 1973.
248
HOMERO. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes; rev. Marcus Rei Pinheiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
249
MARCHELLI, Clarissa. O Phármakon na Odisséia: Ambiguidade e função Narrativa. In. Anais do I Congresso
Internacional de Religião Mito e Magia no mundo Antigo. UERJ – 2010. ISSN: 1984-3615.
250
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. p.14.
251
FIORE, Maurício. Prazer e Risco: uma discussão a respeito dos saberes médicos sobre o uso de ―drogas‖. In. LABATE,
Beatriz. CARNEIRO, Henrique. (et.al.), (orgs.) – Drogas e Cultura: Novas Perspectivas. Salvador: Edufba, 2008. p.144.
110
- O que me frustra, por exemplo, que se considere sempre o problema das drogas
exclusivamente em termos de liberdade ou de proibição. Penso que as drogas deveriam
tornar-se elemento de nossa cultura.
- Enquanto fonte de prazer?
- Enquanto fonte de prazer. Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas.
Devemos fabricar boas drogas - capazes de produzir um prazer muito intenso. O puritanismo,
que coloca o problema das drogas - um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou
a favor - é uma atitude errônea. As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma
que há boa música e má música, há boas e más drogas. E então, da mesma forma que não
podemos dizer que somos "contra" a música, não podemos dizer que somos "contra" as
drogas. 252
Cabe ressaltar que o puritanismo a que Foucault se refere em 1982, se fazia atuante em
organizações reformadoras pró-temperança no início do século XX, e ainda encontra-se
presente nas concepções proibicionistas de hoje. Segundo Becker253, alguns valores morais
são afrontados ao se liberar ou descriminalizar o uso de drogas. O primeiro está diretamente
calcado na ética protestante cuja consciência e responsabilidade dos atos devem estar pura ou
limpa diante de Deus. Neste caso o consumo de drogas implicaria na ―perda da consciência‖
ou ―descontrole‖, isto é, interferiria no autocontrole, logo deveria ser condenado. Outro valor
seria a busca inadequada por prazer e estados de êxtase, tal busca só seria considerada
legítima se associada ao trabalho ou a experiências religiosas, mas não no caso de uso de
psicoativos.
São justamente estes efeitos de poder que esta dissertação procura desnaturalizar.
Todo conhecimento construído com objetivo de regulamentar determinadas substâncias e
criminalizar outras, se cristalizaram por uma série de técnicas que necessariamente não são do
âmbito da proibição. Logo, defendo que os estudos sobre o proibicionismo não devem se
limitar apenas aos aspectos do seu caráter repressivo, mas antes, considerar sua positividade,
sua produtividade, sua eficácia. A ―cruzada contra as drogas‖ é tão somente uma das faces da
tecnologia de poder que envolve o ―dispositivo drogas‖. É nessa lógica que Foucault inverte o
aforismo de Clausewitz ao afirmar que a política é a guerra continuada por outros meios.254
Desta forma, não é apenas no campo das interdições que reside o poder constitutivo do
―dispositivo drogas‖, mas nos saberes e nas práticas discursivas que buscam construir regimes
de verdades que atravessam o corpo social. Foram esses regimes próprios, isto é, específicos
252
Michel Foucault, an Interview: Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto,
junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58. Esta entrevista estava destinada à revista
canadense Body Politic. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.
253
BECKER, H.S. Apud. MORAIS, Paulo César, Drogas e Políticas Públicas. Tese de doutorado, FAFICH/UFMG, ano
2005. p. 78.
254
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
p.22.
111
255
CARVALHO. Jonatas. A América Latina e a criminalização das drogas entre 1960-1970 : Prenúncios de outra guerra por
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