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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Jonatas Carlos de Carvalho

Regulamentação e criminalização das drogas: a Comissão Nacional de


Fiscalização de Entorpecentes e a internalização do proibicionismo no
Brasil (1936-1946)

Rio de Janeiro

2013
Jonatas Carlos de Carvalho

Regulamentação e criminalização das drogas: a Comissão Nacional de Fiscalização de


Entorpecentes e a internalização do proibicionismo no Brasil (1936-1946)

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
em História, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de concentração:
História Política.

Orientadora: Prof.ª Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva

Rio de Janeiro

2013
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

C331 Carvalho, Jonatas Carlos de.


Regulamentação e criminalização das drogas: a Comissão
Nacional de Fiscalização de Entorpecentes e a internalização do
proibicionismo no Brasil (1936-1946) / Jonatas Carlos de
Carvalho. – 2013.
117 f.

Orientadora: Marilene Rosa Nogueira da Silva.


Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
. Bibliografia.

1. Drogas – Teses. 2. Tóxicos - Teses. I. Silva, Marilene


Rosa Nogueira da. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 304:364.272

Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que
citada a fonte.

_____________________________________ ___________________________
Assinatura Data
Jonatas Carlos de Carvalho

Regulamentação e criminalização das drogas: a Comissão Nacional de Fiscalização de


Entorpecentes e a internalização do proibicionismo no Brasil (1936-1946)

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para a obtenção do título de
Mestre, ao Programa de Pós-Graduação
em História, da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Área de concentração:
História Política.

Aprovada em 01 de abril de 2013.


Banca Examinadora:

_____________________________________________________
Profª. Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

_____________________________________________________
Profª. Dra. Maria de Lourdes da Silva
Faculdade de Educação - UERJ

_____________________________________________________
Prof.ª Dra. Anna Beatriz de Sá Almeida
Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz

Rio de Janeiro

2013
DEDICATÓRIA

À minha família Mariáurea,


João Mateus e Júlia, pelo amor e cumplicidade. Aos meus pais
Manoel e Helena pela dedicação por toda uma vida.
AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Dra. Marilene Rosa Nogueira da Silva, por apostar em um


pretencioso desconhecido. Pelo exemplo de profissional no exercício contínuo em me
estimular a prosseguir problematizando as coisas naturalizadas.

Às instituições de pesquisa e guarda de documentação e fontes, em especial aos funcionários


do Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro.

Ao programa de Pós-Graduação em História da UERJ que acolheu meu projeto na Linha de


Pesquisa Política e Sociedade, bem como aos funcionários da Secretaria do PPGH.

À Coordenação de Apoio de Pessoal de Nível Superior – CAPES, pela bolsa de incentivo à


pesquisa, cujo financiamento foi determinante para realização desta Dissertação.

Ao Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais- LEDDES e ao Núcleo de


Estudos Interdisciplinares Sobre Psicoativos – NEIP, pelo acolhimento nesta trajetória
acadêmica, pelo espaço tão raro de interlocução oferecido de modo tão generosamente por
parte de todos os pesquisadores associados.

À minha esposa e companheira Mariáurea, que tem sido ao longo destes anos uma revisora
paciente de todos os meus textos.

Aos meus irmãos Janete e Josué, parceiros de longas datas, agradeço a estadia em Niterói e as
muitas caronas até a UERJ ao longo do curso.

As professoras Dra. Maria de Lourdes da Silva e Dra. Anna Beatriz de Sá Almeida que
gentilmente aceitaram o convite para compor a banca de qualificação e ratificaram o convite
para compor a banca examinadora desta Dissertação.
.

A históriatem por função mostrar que aqui o que é, nem sempre foi, isto é, que é sempre na
confluência dos encontros, acasos, ao longo de uma história frágil, precária que se formaram
as coisas que nos dão a impressão de serem mais evidentes. O que a razão experimenta como
necessidade, ou melhor, aquilo que as diferentes formas de racionalidade apresentam como
lhes foi sendo necessário, podemos fazer perfeitamente sua história e encontrar as redes de
contingências de onde isso emergiu.

Michel Foucault
RESUMO

CARVALHO, Jonatas Carlos de. Regulamentação e criminalização das drogas: a


Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes e a internalização do proibicionismo no
Brasil (1936-1946). 117 f. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

Este trabalho problematiza um tipo específico de racionalidade que emergiu nos fins
do século XIX e avançou no século XX, implicando na constituição de uma política mundial
destinada à regulamentação de determinadas substâncias psicoativas. Tais práticas foram
possíveis em virtude de uma produção discursiva cujos enunciados médico-sanitários
reivindicavam a intervenção dos Estados Nacionais em assegurar a saúde coletiva. No caso do
uso de psicoativos, tais discursos fizeram emergir uma série de tratados internacionais, leis
nacionais, normas e regulações que modificaram o comércio e os hábitos de consumo de tais
substâncias, criminalizando qualquer uso que não estivesse de acordo com a legislação
vigente. O recorte que esta dissertação procura fazer tem por foco analisar como esse processo
se deu no Brasil, mais especificamente a partir da criação da Comissão Nacional de
Fiscalização de Entorpecentes – CNFE, organização esta de caráter governamental, que após
sua criação passou a centralizar as políticas sociais sobre drogas no país. A CNFE foi
constituída por meio do Decreto-Lei nº 780em 28 de abril de 1936, vinculada ao Ministério
das Relações Exteriores em conjunto com o Departamento Nacional de Saúde, através do
Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional. Neste caso, utilizando a documentação
encontrada no Arquivo Histórico do Itamaraty, na Biblioteca de Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz, Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, dentre
outras. Procurei delimitar esta pesquisa nos primeiros dez anos de atuação da Comissão, isto
é, entre 1936 e 1946, para tanto, utilizo como instrumento de análise teórico-metodológico
duas noções que serviram às reflexões do pensador francês Michel Foucault; biopolítica e
governamentalidade. Desta forma, procuro acionar tais noções para localizar as estratégias de
poder que culminaram na “governamentalização do Estado” voltadas para a gestão da vida
das populações, tendo como pano de fundo os interditos das políticas sociais sobre drogas.

Palavras-chave: Proibicionismo. Drogas. Comissão Nacional de Fiscalização de


Entorpecentes.
ABSTRACT

CARVALHO, Jonatas Carlos de. Regulation and criminalization on drugs: National


Narcotic Control Commision from Brazil (1936-1946). 117 f. Dissertação (Mestrado em
História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
This research aims to put in doubt a specific sort of rationality that began and made
progress between the end of the nineteenth century and the early twentieth century, implying
a world-wide policy for some psychoactive substances regulation. That was possible due to
discursive production composed by medical and sanitary statements that claimed the action of
National States in order to ensure collective health. In terms of psychoactive drugs, that
discourse has resulted in a series of international treaties, national laws, rules and regulations
that changed the sale and use of those substances and criminalized any use that was not
according to the current legislation. At this point, the dissertation focus on the study of this
process in Brazil, more specifically from the creation of “ComissãoNacional de Fiscalização
de Entorpecentes – CNFE” (National Narcotic Control Commission), a governmental
organization that concentrates social policies about drugs in the country. CNFE was set up by
decree law 780 on April 28, 1936, linked to the Ministry of Foreign Affairs together with
National Department of Health, through Professional Exercise Supervision Service. In this
case, using documents found in Itamaraty Historical Archives, in Public Health Library of
Oswaldo Cruz Foundation and in Center for Research and Documentation of Getulio Vargas
Foundation , among others, I have attempted to focus this research in the first ten years
following the Commission creation, between 1936 and 1946. Therefore, I have used, as
theoretical and methodological analysis tool, two concepts that helped
French philosopher Michel Foulcault thoughts; biopolitics and governmentality. Thus, I try to
use those concepts in order to find the power strategies that have led up to the
“Governmentalization of the State” and have been directed to the management of people’s
life, all this against the background of interdiction from social policies about drugs.
Keywords: Prohibition. Drugs. National Commission Narcotics Control.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CNFE Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes

MESP Ministério de Educação e Saúde Pública

DNS Departamento Nacional de Saúde

SFEP Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional

SNFM Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina

SFE Seção de Fiscalização de Entorpecentes


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 10
1 HISTÓRIA DOS INTERDITOS DOS PSICOATIVOS: O BRASIL E A
POLÍTICA MUNDIAL SOBRE DROGAS..................................................... 20
1.1 As drogas na história e a história das drogas: experimentações humanas .. 20
1.2 A emergência do proibicionismo: liberalismo e antiliberalismo.................... 23
1.3 História e historiografia das drogas e seus interditos.................................... 31
1.4 A politica mundial de drogas: As conferências internacionais do ópio e o
Comitê central permanente.............................................................................. 36
1.5 O Brasil nas conferências.................................................................................. 48
2 O PROIBICIONISMO E A NOVA RAZÃO DE ESTADO: A
COMISSÃO NACIONAL DE FISCALIZAÇÃO DE ENTORPECENTES
– 1936-1941.......................................................................................................... 53
2.1 A formação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes:
internalização e sofisticação das técnicas de controle..................................... 53
2.2 Aprimorando as técnicas: 1939- 1941.............................................................. 59
2.3 Os relatórios do DNS: as atuações do Serviço de Fiscalização do Exercício
Profissional e a CNFE....................................................................................... 78
3 ENTRE A POSITIVIDADE DO PODER E A REPRESSÃO: A CNFE –
ANOS DE 1942-1946.......................................................................................... 86
3.1 A amplificação do projeto pedagógico: as Comissões Estaduais e o
mercado de entorpecentes em tempo de guerra.............................................. 86
3.2 A CNFE e a criminalização da maconha......................................................... 90
3.3 As estratégias para o pós-guerra....................................................................... 99
3.4 As atividades da Seção de Fiscalização de Entorpecentes entre os anos de
1942 e 1946 e as mudanças nos rumos das
importações......................................................................................................... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 114
REFERÊNCIAS................................................................................................. 119
10

INTRODUÇÃO

Esta dissertação é fruto das minhas inquietações a respeito da história dos interditos
sobre drogas. Práticas que a historiografia recente convencionou chamar de proibicionismo,
isto é, todo um conjunto de estratégias políticas e econômicas colocadas sob a tutela dos
Estados Nacionais para regulamentar o consumo de substâncias psicoativas no mundo.
Embora o termo seja adotado na maioria absoluta dos estudos sobre o tema, não há uma
discussão mais clara acerca do verbete. Boa parte das definições, entretanto, aproxima-se da
que foi proposta pelo Núcleo de Sociabilidade Libertária – NU-SOL:

O conjunto de discursos e leis antidrogas ficou conhecido como proibicionismo. Desde os


anos 1920 ele se consolidou como o modelo legal mundial para tratar de uma sempre
crescente lista de drogas. O proibicionismo conjuga argumentos de quatro tipos: o moralista, o
de saúde pública, o de segurança pública e o de segurança internacional. O uso de drogas seria
um desvio de conduta (moral) que levaria a um problema geral de vício e degradação pessoal
e social (saúde pública); como as drogas proibidas continuariam consumidas haveria a
formação de um mercado ilícito (segurança pública) que ganharia, como narcotráfico,
contornos de problema global (segurança internacional). O proibicionismo visa erradicar
permanentemente práticas sociais relacionadas a drogas que são milenares por meio de leis e
de repressão policial e militar. Um exemplo conhecido dos efeitos do proibicionismo é a Lei
Seca, em vigor nos EUA entre 1920 e 1933: a proibição do álcool impulsionou a máfia,
aumentou o nível de repressão policial, não conteve o hábito de beber e gerou graves
problemas de saúde para pessoas que consumiram bebidas produzidas sem qualquer cuidado.1

Chamou-me a atenção o modo como este conjunto de práticas foi se desenvolvendo no


Brasil. Inicialmente, quando me candidatei ao Programa de História Política da UERJ, meu
projeto tinha por objetivo estudar o ―volume de leis e normas sobre drogas‖, interessava-me
verificar o papel daquilo que o filósofo francês Michel Foucault, chamou de ―práticas
judiciárias‖. De tais práticas, segundo Foucault, teriam nascidos os modelos de verdade que
circulam ainda hoje em nossa sociedade, ―se impõem ainda a ela e valem não somente no
domínio da política, no domínio do quotidiano, mas até na ordem da ciência.‖ 2 A
historiografia sobre o proibicionismo no Brasil, de certa forma procurou analisar a
constituição destes ―regimes de verdades‖ que acabaram por conformar uma série de
interditos quanto aos usos de psicoativos. Segundo esta mesma historiografia, tais regimes de
verdade, tiveram no discurso médico-jurídico as bases para a produção de um saber-poder que
no Brasil emergiu nos fins do século XIX com a constituição das ―Ligas pró-temperança‖
avançando por todo século XX por meio de uma racionalidade cujas práticas resultaram num

1
Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-SP. Verbetes NU-SOL, in: http://www.nu-
sol.org/verbetes/index.php?id=70
2
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora. 2005, p.27.
11

complexo conjunto de regulamentos e normas que alteraram as relações entre as sociedades e


as drogas.
Ainda há muitas lacunas quanto aos modos como o proibicionismo foi internalizado
no Brasil. A historiografia dos interditos sobre drogas é incipiente. Destaco, por exemplo, a
ausência de estudos sobre a constituição da Comissão Nacional de Fiscalização de
Entorpecentes – CNFE, organização de caráter governamental que reunia diversos setores
públicos e representantes da sociedade civil na condução das políticas de drogas no Brasil a
partir da segunda metade da década de 1930. Não encontrei entre os autores que estudam o
proibicionismo ou pesquisaram a política sobre drogas no Brasil, mais que pequenas
referências sobre esta organização. Destaco o estudo de Tiago Rodrigues que, ao analisar o
Decreto-Lei nº 891/1938, atribuiu à regulamentação da CNFE um marco legal até então sem
parâmetros na história do controle de drogas no país3.
Um estudo mais cuidadoso deste Decreto-Lei conduziu-me a novas interrogações de
acordo com sua própria proposta, caberia a CNFE:
O estudo e a fixação de normas gerais, de ação fiscalizadora sobre o cultivo, extração,
produção, fabricação, posse, oferta, venda, compra, troca, cessão, transformação, preparo,
importação, exportação, reexportação, bem como repressão do tráfico e uso ilícito de drogas
entorpecentes, incumbindo-lhe todas as atribuições decorrentes dos objetivos gerais, visados
pelo referido decreto, bem como zelar pelo fiel e cabal cumprimento da presente lei.4

Essas informações me levaram a pensar que tal organização teria produzido um


arquivo próprio. Afinal, uma Comissão Nacional que se reunia ordinariamente duas vezes por
mês, não deveria produzir uma burocracia? A Comissão não redigiu resoluções? Não efetuou
ações fiscalizadoras como previa o texto? Não enviou representantes para as Convenções
Internacionais? Teria sido um projeto que não foi adiante? Se fora adiante, por quanto tempo
tal organização esteve ativa? Quem eram seus membros? Como atuava? Que efeitos de poder
a atravessava? Observando o texto novamente, verifiquei que a Comissão ficara atrelada ao
Ministério das Relações Exteriores, tal relação suscita outro questionamento: por que um
projeto de saúde pública acabou sendo vinculado ao Ministério das Relações Internacionais?
Estas indagações me levaram ao Arquivo Histórico do Itamaraty e após alguns meses de
pesquisa foi possível levantar uma série de documentos, embora fragmentados, me permitiu
analisar a participação da CNFE nas práticas de interdições sobre drogas no Brasil.

3
RODRIGUES, Tiago. Política e drogas nas américas. São Paulo: Educ/Fapesp. 2004, pp.142-147. Veja também: ADIALA,
Júlio Cesar. O problema da maconha no Brasil: ensaio sobre racismo e drogas. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1986, 24 p. Segundo
o autor, a CNFE [..] inaugurou uma nova fase na luta contra as substâncias entorpecentes no Brasil. Reunindo
representantes dos ministérios públicos, das forças armadas e das autoridades sanitárias e policiais, a CNFE
institucionalizou a luta contra as toxicomanias iniciada pelos higienistas no final do século XIX.
4
BRASIL, Coleção de Leis do Brasil, p.148, v.4, Catálogo de Saúde Pública: 28 de novembro de 1938.
12

Para realizar um estudo sobre a constituição da CNFE defini como ferramenta


de análise teórico-metodológica, algumas noções exploradas por Foucault, sobretudo aquelas
que ele elaborou para tratar das relações entre os Estados Nacionais e suas respectivas
populações. Refiro-me a ―governamentalidade‖, ―biopolítica‖ e ―razão de estado‖, tais
perspectivas me auxiliarão analisar as condições de possibilidades políticas que, em uma
temporalidade específica, por um tipo de racionalidade própria, permitiu emergir no Brasil
uma organização de caráter governamental, cujo objetivo seria centralizar as ações de
fiscalização e repressão de determinadas substâncias, por meio da produção de um conjunto
de técnicas que procuraram regulamentar e normatizar o consumo de psicoativos.
Nos fins dos anos setenta e início dos oitenta, o projeto genealógico de Foucault
passava por alguns deslocamentos. Nos cursos de 1977-1978 - Segurança, Território,
População, e 1978-1979 – Nascimento da Biopolítica, a questão do poder/saber dá lugar à
noção de ―governo pela verdade‖, tal noção lhe pareceu ―mais operatória‖ para compreender a
constituição dos Estados modernos. Para ele ―governo‖ não era uma instância suprema de
decisões administrativas, mas “mecanismos e procedimentos destinados a conduzir os
homens, a dirigir a conduta dos homens, a conduzir a conduta dos homens”.5 Este
deslocamento lhe permitiu analisar:
(...) de um lado, o nascimento da razão de Estado no século XVII entendida não como teoria
ou representação do Estado, mas como arte de governar, como racionalidade elaborando a
prática mesma do governo e, de outro lado, no último ano, o liberalismo contemporâneo
americano e alemão entendido não como teoria econômica e como doutrina política, mas
entendido como uma certa maneira de governar, como uma certa arte racional de governar. 6

Foucault procurou apresentar as razões pelas quais deslocava sua análise sobre a
questão do poder. Ao pensar o poder disciplinar, concentrou sua investigação histórica na
exterioridade das instituições, o que implicava a um triplo movimento de recusa: escapar à
problemática da instituição que ele chamou de ―institucional-centrismo‖; passar ao exterior
quanto à função da instituição; recusa ao objeto já dado. Ora esta exterioridade, esta recusa
em analisar a funcionalidade interna das instituições, lhe permitiu pensar as relações de poder
como técnicas e estratégias gerais. Essas tecnologias gerais de poder que ele procurou
localizar fora das instituições locais, tais como as prisões e os hospitais, acabaram por
conduzi-lo a uma instituição global; o Estado. A questão para Foucault implicava em saber se
podia utilizar a mesma forma de análise empregada nas instituições locais, no objeto Estado.

5
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Curso dado no Collége de France, 1979-1980. Aulas de 09 e 30 de janeiro de
1980. São Paulo: Centro Cultural Social, 2009.
6
Idem, p.21
13

Seria possível ―passar ao exterior‖ do Estado? Como estudá-lo em suas mutações e


desenvolvimento dentro de uma tecnologia geral de poder?
O Estado não era resultado da ―arte de governar‖, assim como as técnicas de governo
dos homens eram milenares, para Foucault teria ocorrido ―passagens‖ na forma como as
sociedades se organizaram, a sociedade da soberania deu lugar as disciplinas, esta por sua vez
fora sucedida pela sociedade governamental. Estas passagens não significaram sobreposição
desses modelos, nem a soberania nem as disciplinas desaparecem, ao contrário, ambas foram
aperfeiçoadas, redirecionadas e ressituadas. Conforme Alfredo Veiga Neto, esta ―tríplice
aliança‖, entre a soberania, disciplina e gestão governamental:

Não se trata da substituição de um poder por outro, pois o biopoder até mesmo precisa das
técnicas disciplinares; mas ele se coloca numa outra escala, tem outra superfície de suporte e é
auxiliado por instrumentos totalmente diferentes. 7

A gestão governamental tem como alvo principal a população, esta é a outra escala a
qual se referiu Veiga-Neto. A emergência da população nas sociedades ocidentais fez com
que esse tipo de poder, que Foucault chamou de ―governo‖, se tornasse preeminente em
relação aos outros (soberania e disciplina). A esses os novos domínios de saber e novas
tecnologias que se constituíram com objetivo de administrar o corpo social, Foucault
denominou de governamentalidade. Segundo ele, tal noção compreende entre outras:

(...) o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, cálculos


e as táticas que permitem exercer essa forma específica, embora muito complexa, de poder
que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber, a economia política e
por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança.8

A governamentalidade, como Foucault pensou esta forma de governar de conduzir os


homens, aparece identificado na sociedade ocidental a partir do século XVI com o
mercantilismo. A emergência da população teria feito com que os recentes Estados Nacionais,
a partir do século XVII, elaborassem o que ele chamou de ―razão de Estado‖, que seria a
forma como a Europa moderna estabeleceu seu estatuto, onde a racionalidade da ação
governamental é a razão de Estado, desta forma a verdade a ser manifestada é a verdade do

7
VEIGA-NETO, Alfredo.Foucault e a Educação. 3ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
8
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.143. Sobre o conceito de
governamentalidade veja também: CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault; Um percurso pelos seus temas, conceitos e
autores. São Paulo. Autêntica, 2009. pp.120-122; NETO, Farhi Leon. Biopolíticas: As formulações de Foucault.
Florianópolis: Cidade Futura, 2010. pp.156-179; GADELHA, Sylvio. Biopolítica, governamentalidade e educação.
Introdução e conexões, a partir de Michel Foucault. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. pp.119-142.
14

Estado.9Neste sentido, o que lhe interessava não era a estatização da sociedade, mas a
―governamentalização do Estado.‖10 A governamentalidade seria para o Estado, o que foi a
segregação para a psiquiatria, as técnicas disciplinares para o sistema prisional e a biopolítica
para as instituições médicas.
Foucault utiliza esta noção para fazer uma genealogia do Estado moderno através de
seus diferentes aparelhos (sociedade, economia, segurança e liberdade), por intermédio de
uma história da ―razão governamental‖ sem enveredar pela ontologia. Estes aparelhos são
―elementos de uma nova governamentalidade‖, cujas modificações contemporâneas podem
ser identificadas em nossos dias. Embora haja, como já constatamos, um conceito geral para a
noção, Foucault por vezes, denomina-a no plural, atribuindo-lhe a uma sucessão de técnicas
diferentes, destinadas aos aparelhos do Estado moderno. Foucault fala de ―novas formas‖ de
governamentalidade, exemplo: a governamentalidade dos políticos e dos economistas.11
Nesta dissertação as apropriações destas noções terão sempre por objetivo ―iluminar‖,
o tanto quanto possível, como que por uma lente, as imbricações, acoplamentos e
confluências presentes na dinâmica das relações de poder que possibilitaram a emergência da
CNFE. Ao longo dos três capítulos procurei, sempre que possível, identificar os mecanismos
de poder e os dispositivos que produzem e mantêm os ―assujeitamentos‖ e forjam as
subjetividades. Utilizando como materialidade as técnicas e táticas que permitiram centralizar
as políticas sociais sobre drogas em uma organização governamental. Neste sentido, este
trabalho tem por objetivo, verificar como as estratégias de poder de caráter proibicionista se
realizaram e se sustentaram (ou até quando se sustentaram) no processo histórico. A hipótese
central desta dissertação está em propor que a CNFE se constituiu em um instrumento
centralizador, destinado a internalização de um tipo específico de racionalidade, cujas técnicas
e estratégias objetivavam regulamentar os modos lícitos de se consumir psicoativos no Brasil
e, por conseguinte, criminalizar todo e qualquer uso que não tivesse finalidade medicinal.
O primeiro capítulo foi dividido em quatro blocos, no primeiro tentei apontar o
interesse dos homens pelos estados alterados de consciência. As substâncias psicoativas
sempre estiveram presentes nas relações sociais e há muito que os historiadores se interessam
por estas relações. Outro ponto discutido neste bloco está à emergência dos interditos sobre os
usos de psicoativos já presentes nos Estados teocráticos. A racionalidade liberal, a partir do

9
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France, 1979-1980: aulas de 09 e 30 de Janeiro de 1980.
Nildo Novelino (Trad). São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009. p. 19.
10
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.145.
11
Idem. p. 476.
15

século XVIII teria, nas palavras de Antônio Escohotado, suscitado um interregno nas
proibições, mas a partir da segunda metade do século XIX um movimento social de caráter
puritano passou a condenar o uso recreativo do álcool.12 Tal movimento, conhecido como
proibicionismo, onde os efeitos mais aparentes deram-se nos EUA, dentre os quais destaquei a
criação do Partido Proibicionista e a Lei-Seca, lei esta que manteve o consumo de álcool
proibido por 13 anos naquele país.
No segundo bloco procurei fazer, mesmo que de um modo panorâmico, uma
―passagem‖ pelas problematizações levantadas na historiografia sobre o proibicionismo,
destacando aqueles trabalhos que privilegiaram os efeitos da internalização deste no interior
da sociedade brasileira. Identifiquei que a historiografia brasileira sobre o proibicionismo
conta com trabalhos iniciados nos fins dos anos de 1970, mas foi nas duas últimas décadas
que o volume de teses e dissertações aumentou. Nos dois últimos blocos, que são conexos de
certa forma, busquei explorar o modo como tais relações de poder se materializaram em
Convenções e Tratados internacionais (terceiro bloco), assim como a participação do Brasil
(quarto bloco), na construção dos marcos regulatórios que mudaram as relações do comércio e
do consumo de psicoativos na economia mundial. Verifiquei que o proibicionismo constituiu-
se em forma de política mundial por meio de intensos debates entre as potências mundiais na
primeira metade do século XX. Tomei como ponto de partida, para discutir a emergência
dessa nova racionalidade com vista à formação de todo um conjunto de interdições sobre
drogas, as chamadas de Conferências do Ópio iniciadas em Xangai em 1909; Haia 2012;
Genebra 1924; 1931 e 1936. Tal racionalidade buscava reivindicar a legitimação do uso de
psicoativos como restrito à classe médica, logo o comércio mundial de drogas deveria estar
condicionado às necessidades médicas e científicas.
Sobre a participação dos governos brasileiros nas Conferências do Ópio, constatei que
a documentação disponível nos arquivos brasileiros são fragmentadas, o que impede um
estudo mais aprofundado. Entretanto, a partir das fontes existentes no Arquivo do Itamaraty e
dos Relatórios Ministeriais é possível compreender um pouco as particularidades da política
brasileira. A partir da leitura desses documentos foi possível verificar que apesar do governo
brasileiro ter ratificado a Convenção de Haia em 1913 e promulgado o ato por meio do
Decreto nº 1.148 de 10 de fevereiro de 1915, somente a partir de 1921 é que o referido tratado
passou a vigorar com a Lei 4.294/1921. O Brasil ainda teria participado na Conferência
seguinte, em 1924, tendo os médicos Pernambuco Filho e Humberto Gotuzzo como

12
ESCOHOTADO, A. História general de las drogas. Madri. Espasa, 1998.
16

delegados. Mesmo não sendo possível encontrar o relatório deixado por eles sobre a mesma,
outra fonte, sugere que os representantes brasileiros não tiveram qualquer papel decisivo na
introdução da canabis sativa (maconha), na listagem da conferência em questão, como
pretendeu defender certos pesquisadores brasileiros.
Constatei que a criação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes –
CNFE foi uma iniciativa do governo brasileiro de colocar em prática as orientações presentes
na Convenção para Limitar a Fabricação e Regulamentar a Distribuição de Estupefacientes de
1931. Ressalto que tal iniciativa é pioneira entre os países latino-americanos. Foi justamente
este pioneirismo que me levou a procura por compreender as condições de possibilidades que
permitiram emergir uma organização como a CNFE no Brasil a partir de 1936.
No capítulo segundo procurei analisar os caminhos traçados no interior da política
brasileira para a criação da CNFE. Se por um lado a constituição da Comissão atendia a uma
demanda de parte da sociedade brasileira, por outro, fazia parte de uma estratégia do governo
brasileiro demonstrar ante as potências mundiais, principalmente aos EUA sua capacidade
gerencial de situações elegidas como elevadas no quesito de saúde pública. Com a CNFE o
país pôde melhorar suas metas e compromissos assumidos com a Liga das Nações, organismo
multilateral cujo qual o Brasil não era membro, mas desejava tornar-se. A criação da CNFE
fazia parte da estratégia de política externa que colocaria o país em evidência na política
mundial, entretanto tal perspectiva não se confirmou por essa via.
Ainda sobre as condições de possibilidades no cenário interno brasileiro para a
emergência da CNFE, destaco as reformas de centralização no âmbito da administração
pública, sobretudo aquelas voltadas para saúde e educação pública. Centralização esta que
fora eficientemente discutida pela historiografia. A CNFE, neste sentido, encaixava-se neste
processo que procurou canalizar métodos cada vez mais sofisticados com vista a aparelhar os
governos na condução de políticas que se destinavam a majoração da vida, isto é, biopolítica.
Nos cinco primeiros anos de existência (1936-1941) a CNFE buscou legitimar-se
como autoridade máxima na produção de leis, regulamentos e normas, na aplicação dos
instrumentos fiscalizadores do mercado de importação e exportação de psicoativos, além de se
tornar responsável pela elaboração dos dados estatísticos encaminhados ao Comitê Central do
Ópio. Destaquei, neste sentido, a atuação da Seção de Fiscalização de Entorpecentes - SFE,
vinculada ao Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina - SNFM. A Seção tornara-se um
braço executivo da CNFE. Cabia ao SFE todas as atividades fiscalizadoras. Entre os anos de
1938 e 1941 a Comissão produziu um significativo estatuto regulatório cujas bases
compuseram o Decreto – Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938. Este, associado as
17

―instruções gerais sobre o uso e comércio de entorpecentes‖ tornaram-se os principais


elementos pedagógicos para a internalização do proibicionismo nos anos que viriam. Quanto
ao projeto pedagógico, a CNFE realizou viagens por todo o território nacional, além de
intercâmbios com os países vizinhos, organizou cursos, palestras, seminários, elaborou
materiais instrutivos, publicou coleções de artigos produzidos pelos médicos que se
dedicaram aos estudos dos ―vícios sociais‖.
No terceiro e último capítulo, procurei analisar o processo de expansão das políticas
desenvolvidas pela CNFE, este se deu basicamente pela regulamentação e fortalecimento das
Comissões Estaduais. Uma vez instrumentalizada, a CNFE, a partir de 1942, tratou de investir
no aparelhamento dos Estados da União visando ampliar o controle do comércio de
psicoativos em todo território nacional. Tal estratégia permitia fazer circular o saber/poder
entre os diversos setores da sociedade. Neste período, em pleno ajustamento com as práticas
discursivas preconizadas nos EUA, a CNFE orquestrou uma campanha contra a maconha no
Brasil. Entre os anos de 1942 e 1946 diversas ações foram realizadas, sobretudo nas regiões
do nordeste brasileiro banhadas pelo Rio São Francisco, visando à repressão ao consumo da
―diamba‖, como a ―erva‖ era mais conhecida na época nestas regiões. Outra preocupação
latente na época era com o chamado ―incremento da toxicomania no pós-guerra‖. A Comissão
divulgou estudos baseados nos relatório elaborados pelo Comitê Central do Ópio, apontando o
aumento do consumo de drogas nos períodos subsequentes às guerras. Desta forma, uma série
de medidas foram pensadas e executadas com o propósito de prevenir que tal fenômeno
ocorresse no país.
Finalmente procurei analisar as atividades desenvolvidas pela CNFE que tinham por
objetivo manter os estoques para o consumo legal de psicoativos no Brasil. Neste sentido,
explorei as informações sobre as importações de psicoativos, detectando nestas uma série de
mudanças nos padrões de consumo ao longo dos anos analisados. Verifiquei que tais
alterações tiveram motivações diferentes, por um lado, a nova racionalidade visava à
substituição das drogas inseridas nas listas das Convenções, por substâncias ―menos nocivas‖,
por outro, o advento da Segunda Guerra Mundial interferiu nas rotas de circulação das
mercadorias e, por conseguinte implicou na busca de novos mercados de abastecimento. O
Brasil que durante um longo período importou da Europa todos psicoativos necessários para o
consume interno, ao final da Segunda Guerra, tinha os EUA como seu principal mercado
abastecedor. Esta relação se estendeu para além das aquisições de drogas, a CNFE defendia
um ―alinhamento total‖ com a política proibicionista estadunidense.
18

É preciso salientar quanto às dificuldades apresentadas no desenvolvimento desta


pesquisa. Utilizar fontes até então desconhecidas pela historiografia é sem dúvida uma
oportunidade satisfatória para qualquer historiador, por outro lado, tratar com documentos
inéditos coloca o historiador numa espécie de ponto zero. A documentação sobre as ações da
CNFE não estão completas, há uma série de hiatos temporais, como por exemplo, apenas uma
ata de reunião ordinária foi encontrada, muito embora a Comissão tenha se reunido
ordinariamente duas vezes ao mês ao longo dos dez anos que esta pesquisa contemplou.
Muitos foram os ofícios e memorandos que informavam o envio de documentação anexada,
entretanto, na grande maioria, os anexos não foram encontrados. Parte da documentação sobre
a CNFE fora envida para os arquivos do Itamaraty em Brasília, entretanto os documentos
encontrados pelos arquivistas de lá, não correspondiam aos dados na ficha de envio que se
encontra no Rio de Janeiro. A documentação encontrada nos arquivos de saúde pública
também está fragmentada, como é o caso dos relatórios do Departamento Nacional de Saúde.
A documentação produzida pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes não foi encontrada, o
acesso às informações produzidas pela referida Seção deu-se por meio das transcrições
presentes nos relatórios ministeriais brasileiros e nos relatórios do Comitê Central do Ópio.
Cabe ainda relatar que tratei tais documentos, orientado no conselho de Michel Foucault, para
quem o documento deve ser compreendido como um monumento. Foi neste sentido que
procurei problematizar as fontes.
Este estudo sobre a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes deve ser
percebido como uma contribuição modesta sobre a internalização do proibicionismo no
Brasil. Detive-me apenas nos primeiros dez, dos quase quarenta anos de atuação da CNFE.
Deve-se, neste caso, considerar que há ainda muito para compreender sobre seu papel na
engrenagem das interdições sobre os psicoativos. As questões e discussões aqui desenvolvidas
apresentam tão somente uma das muitas possibilidades de se analisar a internalização do
proibicionismo no Brasil, tornando-se mister, outros estudos sobre a Comissão Nacional de
Fiscalização de Entorpecentes.
19

1 HISTÓRIA DOS INTERDITOS DOS PSICOATIVOS: O PROIBICIONISMO E A


POLÍTICA MUNDIAL SOBRE DROGAS

1.1 As drogas na história e a história das drogas: experimentações humanas

Não é de hoje que pesquisadores de diversas áreas se interessam por certos tipos de
usos que as sociedades adotaram em relação a substâncias de caráter psicoativo. O modo
como inseriram certas plantas em suas dietas, os rituais que implicavam o consumo destas e o
sentido que tais usos representaram, são práticas que intrigaram e ainda intrigam os
estudiosos. Afinal desde quando as sociedades fazem uso de psicoativos? Sabemos que as
drogas fazem parte da vida humana desde as primeiras organizações sociais, seja como
elemento secundário que compõe as relações culturais, ou em alguns casos, em
temporalidades específicas, como elemento de caráter de alta relevância na vida social para
certos grupos sociais.13
As utilidades de certas substâncias foram objeto de observação e análise de
naturalistas e botânicos, possivelmente estes foram os primeiros a testemunhar as relações de
usos e consumos de psicoativos entre as sociedades. Há entre as obras luso-brasileiras, dois
antigos e relevantes trabalhos cujas tentativas de identificar e classificar estas utilidades já
revelavam estas relações; Colóquio dos simples e drogas e coisas medicinais da Índia (1563)
de Garcia de Horta e Tractado de las drogas y medicinas de las Indias orientales (1578, em
latim) do português Cristóvão da Costa. Tais usos também foram observados durante os
processos de descobrimentos, nas terras brasileiras, por exemplo, o padre Antônio Vieira,
observava o papel das chamadas ―drogas do sertão‖ para a economia metropolitana, e
reclamava da utilização de mão de obra indígena no processo. Em 1662, em uma carta ao
procurador do Maranhão, Jorge Sampaio, escreveu que:
No Estado do Maranhão, não há outro ouro nem outra prata mais que o sangue e o suor dos
índios: o sangue se vende nos que cativam e o suor se converte no tabaco, no açucar e demais
drogas que com os ditos índios se lavram e fabricam.Com este sangue e suor se medeia a
necessidade dos moradores; e com este sangue e suor se enche e enriquece a cobiça insaciável
dos que vão lá governar14

13
Podemos exemplificar, neste último caso, o papel das ―beberagens‖ como as ―cauinagens‖ ou ―catimpueras‖ entre as
comunidades indígenas ameríndias. O historiador João Azevedo Fernandes, observa que: Tais sessões de embriaguez
possuíam uma profunda relação com o sistema de guerra e vingança das sociedades ameríndias, apresentando-se como um
instru-mento mnemônico em que a história de cada grupo, as crônicas de suas guerras e deslocamentos, as agruras e
angústias causadas pelas ações dos inimigos e seus atos violentos, as honrarias conseguidas por seus campeões eram
lembradas e perma-nentemente reconstruídas: FERNANDES, J. A. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 6, volume 13(2):
39-59 (2002).
14
VIEIRA. Padre Antônio. Obras escolhidas. In: ALENCAR, Carpi ; Ribeiro. História da sociedade brasileira. Rio de
Janeiro: Ao Livro Técnico, 1979. pp 210-1
20

As palavras do padre Antônio Vieira se por um lado revelam o valor do tabaco, do


açúcar e das ―demais drogas‖ como substitutos do ouro e da prata 15 nas regiões mais áridas,
por outro lado, demonstram que a terminologia ―droga‖ poderia ser aplicada a vários tipos de
plantas e ervas. Mas não apenas isto, o termo era muito mais abrangente no início do século
XIX. O dicionário da língua portuguesa recopilada, de Antônio de Moraes Silva16 definia a
palavra droga como: “todo o gênero de especiaria aromática; tintas, óleos, raízes oficiais de
tinturaria, e botica. Mercadorias ligeiras de lã, ou seda.” Essa variação de significados
demonstra como o termo era polissêmico, sendo associado a alimentos, ingredientes e a
substâncias químicas e psicoativas (tóxicas), o que inclui as farmacológicas
(PHÁRMAKON). Esta polissemia perdurou até o início do século XX, onde nas duas
primeiras décadas era comum ler nas páginas de publicidades dos jornais anúncios como este
que reproduzo abaixo da casa ―J. Queiroz & Companhia‖ em 1901:

Grande e variado sortimento de fazendas, armarinho, ferragens, roupas feitas, chapéus de sol e
de cabeça, calçado nacional e estrangeiro, drogas, tintas, vidros para vidraças, cêra em vellas,
sola, peles preparadas e todos ingredientes necessários à officina de sapateiro. (Grifo é meu)17

A etimologia da palavra droga, por sua vez é controversa, haveria definições na língua
céltica, no irlandês ―droch‖ e no bretão ―droug‖, outro termo do árabe/holandês ―Droog‖
usado durante o mercantilismo, significava ―seco‖, uma referência aos carregamentos de
peixe seco para a Europa.18
No decorrer do tempo se constituiu uma vasta historiografia sobre os usos dessas
substâncias, as alcoólicas em especial possuem uma ampla bibliografia como a apresentada
pelo historiador Henrique Carneiro, é o caso do vinho (Johnson, 1999; Philips, 2003) e da
vodca (POKHLIÓBKIN, 1995), mas há também outras como o tabaco (JIMENEZ, 1994), o

15
O valor do tabaco, por exemplo, pode ser avaliado pelo fato deste ter sido símbolo na bandeira nacional do império
brasileiro e ainda hoje está representado na bandeira do Estado do Rio de Janeiro ao lado de um ramo de café.
16
A primeira edição foi de 1789, mas em 1813 o dicionário passou por uma revisão veja a referência original: SILVA,
Antonio Moraes. Diccionario da língua portugueza - recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda
edição novamente emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA. Lisboa: Typographia Lacerdina,
1813.
17
Anúncio publicado no periódico: A Cidade (de Ouro Preto – MG) em 1901, edição 01. Fonte: Hemeroteca digital:
http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/cidade/715093. Acesso em 07/11/2012. Ao longo das décadas seguintes a
terminologia foi sendo cada vez mais associada aos fármacos. Para saber mais sobre as alterações de significado da palavra
―droga‖ ao longo da história, veja: CARNEIRO, Henrique. Transformações do significado da palavra “droga”: das
especiarias coloniais ao proibicionismo contemporâneo. In: VENÂNCIO, Renato P. ; CARNEIRO, Henrique S. (Orgs).
Álcool e Drogas na História do Brasil. Belo Horizonte: Editora da PUC-Minas; São Paulo: Alameda, 2005. p. 11-27.
18
. CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.
21

ópio (SEEFELDER, 1990) e o cânhamo (CONRAD, 1991).19 Durante o século XX obras


significativas foram escritas a respeito das mais variadas substâncias, mais uma vez recorro a
Henrique Carneiro, o mesmo aponta alguns exemplos, entre eles: a cachaça (SOUTO
MAIOR, 1970; Cascudo, 1986); chimarrão (Linhares, 1969 – Lessa, 1986); Ayahuasca
(MACRAE, 1992; LABATE, 2002) e Maconha (MOTT, 1986 – MACRAE ; SIMÕES,
2000).
O uso de substâncias capazes de alterar a percepção ou os ―estados de consciência‖
por diversas vezes na história foram objeto de interditos, segundo Richard Bucher, a busca por
tais alterações sempre ocorreram, mas não se limitam apenas aos usos de psicoativos:

O homem sempre procurou modificar as suas percepções, assim como a orientação com
relação a si mesmo e com relação a seu meio, e provavelmente vai continuar a fazê-lo. A
utilização de substâncias psicotrópicas é apenas uma das inúmeras maneiras de atingir esse
objetivo; mas ela sempre esteve presente através da história e no mundo inteiro.20

Foi a partir da época quinhentista que teria emergido um sistema mundial de


comercialização especializada em traficar certos gêneros, promovendo a circulação de artigos
que outrora eram considerados de luxo, portanto de circulação restrita, como o açúcar, o ópio,
o tabaco, o café e o chá, tornando-os cada vez mais acessíveis a todos os grupos sociais.
Henrique Carneiro afirma, no entanto, que ao longo do século XX o consumo de psicoativos
atingiu a maior extensão mercantil, ao mesmo tempo em que os dispositivos de interdição
institucionalizados alcançaram níveis elevados em volumes e sofisticação. Conforme o autor:

As drogas são parte dos produtos coloniais que se difundiram inicialmente como comércio de
luxo e se tornaram produtos do consumo de massas e, portanto, necessidades sociais. A
regulamentação proibicionista no século XX, que sucedeu à defesa irrestrita do livre comércio
que levara à guerra do ópio da Inglaterra contra a China, aumentou o fluxo de capitais no
ramo clandestino, expandiu a demanda e gerou instituições e aparatos dependentes da
existência da proibição e que sustentam a sua continuidade.
O resultado do proibicionismo foi provocar a hiperlucratividade, danos à saúde pública
(devido à falta de fiscalização), a militarização da produção e do comércio de certas drogas e
a intromissão do aparato de segurança em esferas da vida cotidiana. 21

1.2 A emergência do proibicionismo: liberalismo e antiliberalismo.

19
CARNEIRO, Henrique. Pequena enciclopédia da história das drogas e bebidas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. O autor
apresenta ainda uma extensa lista de produtos como o chá, o chocolate e o café. pp.4-5.

20
BUCHER, Richard. Visão Histórica e Antropológica das Drogas In: FIGUEIREDO, Regina. (Org). Prevenção ao Abuso
de Drogas em Ações de Saúde e Educação: uma abordagem sociocultural e de redução de danos. NEPAIDS, 2012. p.9

21
CARNEIRO, Henrique. Necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. Revista Outubro, IES, São
Paulo, vol. 6, 2002, pp.115-128
22

Para uma boa parte dos liberais não havia razão para a proibição, ao contrário,
considerava-se inconcebível interferir nos estados de consciência dos indivíduos. Tomas
Jefferson (1743-1826) ao mencionar os direitos civis de praticar uma religião, seja ela qual
for, afirmara que as operações da mente, assim como os atos do corpo, embora sujeito à
coerção das leis, só seriam legítimos quando tais atos prejudicassem outrem, caso o contrário,
os chamados direitos de consciência deveriam ser considerados como direitos inalienáveis.22
Tais ideais preconizavam um Estado menos invasivo, isto é, o melhor Estado seria aquele que
governava apenas o suficiente para manter a ordem, a propriedade e a liberdade. Mas foi a
liberdade econômica a grande tônica deste sistema de pensamento, a máxima laissez-faire,
laissez-passer, (deixe fazer, deixe passar) atribuída a François Quesnay e popularizada por
Vicent de Gournay, tornou-se o slogan do liberalismo.
Adam Smith (1723-1790), um dos expoentes do liberalismo, no segundo volume de
―A riqueza das nações‖, ao fazer uma crítica sobre a política de Portugal e Espanha no que
representava a proibição (por parte de Portugal) e a taxação elevada (por parte da Espanha),
das exportações de metais (ouro e prata), elabora a seguinte analogia:
Quando se represa uma corrente de água, tão logo a represa fique cheia, o
líquido, por força, transbordará da represa, como se não houvesse represa alguma. A proibição
de exportar não pode manter na Espanha e em Portugal uma a quantidade de ouro e prata
superior àquela que em forma de moeda, prataria, douração e outros
ornamentos de ouro e prata. Ao atingirem essa quantidade, a represa está cheia e toda a
corrente que flui necessariamente transbordará. Por isso, a exportação anual de ouro e prata
da Espanha e Portugal, tudo somado, é praticamente quase igual ao total da importação anual,
a despeito de todas essas restrições. Todavia, assim como a água sempre é mais funda atrás do
topo da represa do que diante, da mesma forma a quantidade de ouro e prata que essas
restrições retêm na Espanha Portugal deve, em proporção à produção anual de sua terra e de
seu trabalho, ser maior do que a que se pode observar em outros países. Quanto mais alto e
mais resistente for o topo da represa, tanto maior deverá ser a diferença de profundidade da
água atrás dele e diante dele. Quanto maior for a taxa, tanto maiores são as penalidades que
asseguram o cumprimento da proibição, tanto mais vigilante e severo será o policiamento que
zela pelo cumprimento das leis, tanto maior deverá ser a diferença na proporção de ouro e
prata em relação à produção anual da terra e do trabalho da Espanha e Portugal, e em relação
à proporção que se observa em outros países. (Grifos meus) 23

Para um liberal como Smith, produtos como o álcool e o fumo, por exemplo, eram
considerados ―artigos de luxo‖, isto é, produtos cuja taxação ou aumento não representaria
aumento no custo de vida da grande maioria das pessoas, não incidindo sobre os salários,
diferentemente do trigo ou do sal que dentre outros seriam ―artigos de necessidades‖. A
diminuição do consumo de álcool e fumo em decorrência da alta de seus preços significaria

22
JEFFERSON, Tomas, The Works, vol. 4 (Notes on Virginia II, Correspondence 1782-1786) [1905]: The Online Library Of
Liberty, 2011. P.48 http://files.libertyfund.org/files/756/Jefferson_0054-04_EBk_v6.0.pdf.

23
SMITH, Adam. A riqueza das nações: Investigação sobre sua natureza e suas causas. Livro II, Nova Cultural, 1996. p. 18
23

um benefício para sociedade, tal elevação contribuiria para um uso mais moderado destas
substâncias, isto é, funcionaria como uma lei ―suntuária‖, para as camadas inferiores. 24 Neste
sentido, a proibição não era uma alternativa, esta só serviria como no exemplo dos metais para
criar um mercado informal:
A Espanha, por taxar a exportação de ouro e prata, e Portugal, por proibi-la, oneram essa
exportação com a despesa de contrabando, provocando o aumento do valor desses metais em
outros países tanto mais acima do valor que têm em seu país, no montante total representado
por essa despesa.25

Quando Tocqueville (1805-1859) esteve nos EUA, entre março de 1831 e fevereiro de
1832, os chamados ―movimentos pela temperança‖ como ele mesmo observou, eram
impopulares, na prática, ainda estavam embrionários. O que inviabilizava qualquer medida
proibitiva, mesmo que já se atribuísse ao consumo de álcool a violência interna em vários
estados. Ao ser informado sobre o problema dos crimes atribuídos ao consumo de álcool,
Tocqueville, seguindo a lógica de Smith, propôs o que para ele era uma solução simples:
Alguém me contava outro dia, na Filadélfia, que quase todos os crimes na América eram
causados pelo abuso das bebidas fortes, que a arraia-miúda podia consumir à vontade, porque
lhe eram vendidas a baixo preço. ―Por que vocês não instituem uma taxa sobre a
aguardente?‖, indaguei. ―Nossos legisladores pensaram muitas vezes em fazê-lo‖, replicou,
―mas seria difícil. Teme-se uma revolta; e, aliás, os congressistas que votassem tal lei teriam a
certeza de não se reelegerem.‖ ―Com que então‖, tomei, ―no seu país os beberrões são maioria
e a temperança é impopular.‖ 26

Embora já existissem os chamados ―movimentos de temperança‖, na ocasião da


passagem de Tocqueville pelos EUA (a primeira organização American Temperance Society,
foi criada em 1826), estes só começam a se fortalecer nas décadas seguintes; os
Washingtonian movement -1840, a partir daí surgiram: a Sociedade Nova-Iorquina pela
Supressão do Vício – 1868; a Liga das Senhoras Cristãs pela Sobriedade – 1873; a Liga Anti-
Saloon – 1893; a Federação Científica pela Sobriedade – 1789; as ―Sociedades Fraternais de
Temperança‖, os ―Clubes de Reforma‖, e um conjunto de "Sociedades de Moderação" que
proliferaram no período de 1870 e 1880. Assim a política proibicionista ganhou força para
promover uma ―cruzada‖ contra os ―ébrios‖, entre as duas últimas décadas do século XIX e as
duas primeiras décadas do século XX, colocando em xeque a política do Laissez-Faire.27

24
Idem, p.324 Obs.: As leis suntuárias, cujo termo vem do latim; sumptuariae. Foram utilizadas com frequência para
regulamentar hábitos de consumo e equilibrar a balança comercial. Oficialmente usava-se como justificativa restringir a
extravagância e o luxo, mas em geral a lei suntuária era aplicada para estratificar as hierarquias sociais, impedindo que
camadas sociais menos favorecidas imitassem suas elites em gestos, roupas e gostos. Veja:
http://en.wikipedia.org/wiki/Sumptuary_lawacesso em: 28/12/2012.

25
Idem, p.18

26
TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2ed, 2005. p.262.
27
CARNEIRO, Henrique, Bebida, abstinência e temperança, na história antiga e moderna. São Paulo, Editora Senac, 2010.
p.200.
24

O proibicionismo na sua forma moderna teve origem nos EUA no século XIX. Sob o
slogan ―ao badalar dos sinos das igrejas de Ohio, os saloons devem partir‖ o movimento
formado a partir da união entre católicos e protestantes pedia o fim do comércio do álcool,
atribuindo-lhe a responsabilidade pela degradação moral e a desordem.28 O proibicionismo
teve como alvo os imigrantes, sobretudo, os ―amarelos‖, os ―negros‖ e os ―hispânicos.‖
Segundo Antônio Escohotado, todos esses grupos, se apresentavam como comitês da
moralidade pública, reivindicando valores puritanos, mobilizaram vários setores da sociedade,
alcançando enorme capacidade de articulação política:
Expresando esta atmósfera aparece en 1869 el Partido Prohibicionista de los Estados Unidos,
cuyas principales bazas son el control de varios Senados y el apoyo de la mayoría de los
próceres políticos, que quizá de puertas adentro se permiten beber licor pero de puertas afuera
coinciden en temer la degeneración etílica de América. 29

O Partido Proibicionista, adquiriu apoio do setor industrial, muitos empresários


passaram a fazer doações para o partido, este, nas eleições de 1892, nomeou o general J.
Bidwell para concorrer a presidência, obtendo 270.000 mil, de um total de 12.000 dos votos
populares.30 O Partido Proibicionista conseguiu agregar simpatizantes no meio republicano e
democrata, suas propostas, não eram rejeitadas nem por um, nem por outro. Em 1882 já
haviam aprovado uma lei que obrigava as escolas públicas de vários Estados, a inserir no
currículo a disciplina de ―educação para sobriedade.‖ Entretanto, não há dúvida que o projeto
mais importante encampado pelo partido, foi a ―Lei Seca‖31 (1920-1934), mas também foi um
dos seus maiores fracassos, por ter sido a única emenda à constituição dos EUA a ser
revogada na história. A revogação da lei seca está intimamente ligada à crise de 1929. O
discurso liberal, mais uma vez, era encontrado circulando entre democratas e republicanos.
As indústrias de destilados e cervejarias surgiram como salvação para o problema do
desemprego. Outro fator estava no significativo aumento dos índices de violência atribuídos
ao crime que se organizava em torno do mercado ilegal de bebidas alcoólicas.

28
RIBEIRO, Maurides de Melo; RIBEIRO, Marcelo. Política mundial de drogas ilícitas: uma reflexão histórica. Congresso
sobre álcool e drogas, 2009.
In.http://www.abead.com.br/boletim/arquivos/boletim41/ribeiro_e_ribeiro_poltica_mundial_de_drogas.pdf.

29
Expressando esta atmosfera o partido de Prohibicionista dos Estados Unidos aparece em 1869, cujas principais ações
estavam em controlar vários senadores e apoiar a maioria dos políticos importantes que, no interior de suas portas se
permitem beber licor, porém, portas afora concordavam em temer a degeneração etílica da América. (tradução é minha);
ESCOHOTADO, Antônio. História General de Las Drogas. Madri. Espasa, 1998, p. 505

30
Idem. p. 508.

31
A Lei Seca, também conhecida como The Noble Experiment, foi ratificada pela 18ª Emenda à constituição dos EUA em 16
de janeiro de 1919, entrando em vigor em 1920,tendo sido revogada em dezembro de 1933.
25

Se por um lado no século XIX, o liberalismo se torna a corrente filosófica


predominante no mundo ocidental, por outro, a partir das duas últimas décadas, observamos
um recrudescimento e possivelmente, uma ―reemergência‖ das ideias puritanas, que
viabilizaram movimentos no século XVIII, como o metodismo. Não será à toa que, no século
XIX a seita fundada pelos irmãos Wesley configurava na maior denominação protestante dos
EUA.32 Para Antônio Escohotado, uma das razões para o desenvolvimento do movimento
proibicionista nos EUA foi, justamente, o reavivamento do fundamentalismo religioso que se
observa a partir da metade do século XIX.33
O século XIX fora também, de alguma forma, o século da ―farmocracia‖, expressão
utilizada pelo autor, para sintetizar o enorme poder que as indústrias farmacêuticas passaram a
ter. Os efeitos da revolução industrial na farmacopeia são nítidos, a possibilidade de isolar
alcaloides de fármacos puros permitiu à indústria farmacêutica. Ao longo do século XIX,
produzir drogas sintéticas como morfina (1806); codeína (1832); atropina (1833); cafeína
(1841); cocaína (1860); heroína (1883) e mescalina (1883).34 A popularidade de boa parte
destes fármacos, deve-se a sua intensa utilização nas guerras. A guerra civil americana (1861-
1865) teria sido o primeiro grande experimento de utilização da morfina e da entrada da
indústria farmacêutica na guerra. Outra experiência foi a guerra franco-prussiana (1870), a
Alemanha havia mais que duplicado seus estoques de morfina em 1869. 35 Após as guerras
muitos ex-combatentes encontravam-se, devido ao army disease (dependência artificial),
viciados em morfina.
As descobertas farmacológicas ajudaram a derrubar mitos e crendices, contribuíram
para eliminar a ―magia‖ de certos vegetais. Aos poucos, a ciência abria espaços para uma
nova forma de racionalidade, esta não restringia ao campo da ciência, podia-se verificar
também nas outras áreas da vida social, como na literatura e na poesia. Na literatura ocidental,
a relação entre os indivíduos e os usos de determinadas substâncias fizeram alguns best
sallers, dentre os mais importantes estão: Confissões de um comedor de ópio – 1822 de

32
KLEIN, Carlos Jeremias. A espiritualidade protestante norte-americana na perspectiva de Paul Tillich. UMESP.
Disponível em:http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio06/a-espiritualidade-protestante-norte-americana-na-
perspectiva-de-paul-tillich. Acesso em 26/02/2012.
33
Para o autor este foi resultado de uma sucessão de eventos dentre os quais estariam: 1) o fundamentalismo religioso que
experimentou um reavivamento a partir da metade do século XIX, passando a condenar todo o tipo de embriaguez
demonizando o álcool e outras drogas. ESCOHOTADO, A. História general de las drogas. Madri. Espasa, 1998.p. 494.

34
ESCOHOTADO, op. cit. p.421.

35
Idem. p.427.
26

Thomas De Quincey e Paraísos Artificiais – 1860 de Charles Baudelaire. O escritor e poeta


Samuel Taylor Coleridge, escreveu um de seus mais importantes poemas, após a ingestão de
láudano (um composto a base de ópio, vinho de cereja, açafrão, cravo e canela). O poema,
Kubla Khan: or a vision in a dream (1797-1816), inspirado no Livro das Maravilhas de
Marco Polo (1254-1324), anos mais tarde foi objeto de discussão de Jorge Luis Borges sob o
título de O sonho de Coleridge em Outras inquisições (1952).36A parte final do poema indica
que o consumo do ópio estava associado a um tipo de alimentação mítica.
O olho que brilha, a cabeleira ao vento!
Faz-lhe à volta três círculos no piso,
E cerra os olhos com temor sagrado,
Pois ele de maná foi saciado
E bebeu do leite do Paraíso.

De Quincey, que chegou a ser amigo de Coleridge, preparou as ―Confissões‖ no final


de 1821. O livro fora resultado de vários editoriais que passou a produzir para a London
Magazine, a partir de 1818, na época, já era um ―comedor de ópio‖. Segundo ele próprio,
começou a escrever para ajudar a manter o vício de 300 gotas diárias. Sua primeira
experiência com o ópio foi em 1804, o motivo; aliviar as dores provocadas por uma nevralgia.
Destaco abaixo o modo como De Quincey descreveu este momento:

Sinto uma importância mística pelos menores detalhes ligados ao lugar, ao tempo e ao
homem (se é que ele era um homem) que pela primeira vez me abriram o paraíso dos
comedores de ópio. (...) Meu caminho de volta para casa, deveria passar por Oxford-street, e
perto do Pantheon vi uma farmácia aberta. O farmacêutico, ministro inconsciente de prazeres
celestiais, (...) E, quando pedi o ópio, serviu-me como qualquer outro homem teria feito. (...)
Contudo, apesar dessas indicações de cotidianidade, ele desde então passou a existir em
minha mente como uma visão beatífica de um farmacêutico imortal, mandado à terra
especialmente para nos encontrarmos. 37

O antropólogo Edward McRae afirma que ―a era dos láudanos durou dois séculos sem
oposição ou conflito‖. Isto por que, segundo ele a partir do século XVIII houve um
―arrefecimento da perseguição aos heterodoxos religiosos e uma volta das drogas do
paganismo à luz do dia‖. A dor deixou de ser algo que agradasse a Deus, o uso médico e
lúdico de certas substâncias passaram a ser percebidas como alternativas legítimas. 38 Neste
sentido, não é para menos que a figura do farmacêutico carregava uma mística consigo, e, se

36
Borges inicia o Sonho de Coleridge da seguinte forma: No sonho de Coleridge, o texto lido por acaso principiou a
germinar e a se multiplicar; o homem que dormia intuiu uma série de imagens visuais e, simplesmente, de palavras que as
manifestavam; passadas algumas horas, acordou, com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema de cerca de
trezentos versos. Recordava-os com singular clareza e conseguiu transcrever o fragmento que perdura em suas obras. In:
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas de Jorge Luis Borges, volume 2, São Paulo: Editoras Globo, 2000.

37
De Quincey, Thomas. Confissões de um comedor de ópio. Porto Alegre: L&PM, 2007 p.79

38
MACRAE, Edward. Dependência de drogas, Seibel, S. D. e Toscano Jr., A., São Paulo, Editora Atheneu, 2001pp., 25-34
27

serviu a De Quincey, ―como qualquer outro faria‖, ficou na mente do escritor, não por acaso,
como um ―ministro do inconsciente‖. Também não foi por acaso que, na intensificação da
repressão às drogas, após o fim da lei seca, os boticários e farmacêuticos foram alvos da
política proibicionista, muitos foram presos por ―tráfico‖.
Baudelaire, outro exemplo clássico deste momento, era membro de um grupo,
juntamente com o pintor Boissard de Boisdenier, também conhecido como ―clube do haxixe‖.
Outros ilustres da época como Delacroix, Meissonier, Nerval, Rimbaud, Hugo e Balzac. Este
último, um ―indeciso‖, no uso do haxixe, mas um consumidor inveterado de estimulantes.
Não foram poucos os pensadores da época que se permitiram experiências com psicoativos,
uma correspondência de Boissard a Teófilo Gautier:

Mi querido Teófilo: se toma haschischen mi casa el lunes próximo, bajo los auspicios de
Moreau y Albert Roche. ¿Cuento contigo? En tal caso, ven entre las cinco y las seis de la
tarde. Participarás en una modesta cena y esperarás la alucinación [...] Gastaremos entre tres y
cinco francos por cabeza. Contesta sí o no... Si temes los contactos impuros, pienso ingeniable
un modo de aislarse. El Hotel Pimodan puede permitir lo. Tuyo, P.S. Para que no se te olvide,
pon mi carta donde puedas verla y clávate una aguja en cualquier parte.39

Outro tipo de produção passa a corroborar em muito com os ideais liberais; é a


literatura científica, que reforçava os benefícios de várias substâncias. A comunidade médica
passou a desenvolver pesquisas que buscavam comprovar a eficiência da morfina e da
cocaína. Vários estudos clínicos passaram a indicar a morfina como terapêutica para
alcoólatras e opiômanos. Em 1884(,) Freud escreveu Über Coca, em 1885 publica o artigo,
―Contribuições ao conhecimento dos efeitos da cocaína‖ e por fim, para defender-se das
críticas que seus artigos sofreram, escreve, ―Ânsia e temor a cocaína‖. Produtos a base de
coca passam a tomar o mercado, tônicos, vinhos, pastas e pastilhas. Dois laboratórios
farmacêuticos, Merck (Alemão) e Park Davis (EUA) iniciavam disputas agressivas, em busca
de clientes, alegando que suas mercadorias tinham uma ―coca mais pura‖ do que a do
concorrente. O produto a base de coca mais importante, porém, foi a coca-cola, criada pelo
boticário J.S. Pamberton, da Geórgia, como um licor para alívio de dores de cabeça e como
tonificante. Após ser vendida para A. Grigs Candler em 1891, que também era boticário e

39
Meu caro Teófilo: na próxima segunda-feira tomaremos haxixe em minha casa sob os auspícios de Moreau e Albert Roche.
Conto com você? Nesse caso, venha entre as cinco e seis da tarde. Participarás de um jantar modesto e esperarás por
alucinações [...] Gastaremos entre três a cinco francos por cabeça. Responda sim ou não ... Se temes os contatos impuros, eu
sugiro uma forma de se isolar. O Hotel Pimodan pode ser uma opção. Atenciosamente, P. S. Para que você não se esqueça,
coloque minha carta onde você vai vê-la e prenda-a com uma agulha em qualquer lugar. (tradução é minha). Joseph
Ferdinand BOISSARD, Apud. ESCOHOTADO, Op. Cit, p.472
28

fundador da Coca-Cola Company, tornando-se em pouco tempo um fenômeno de vendas,


somente em 1909 sua fórmula fora alterada, tendo à cafeína substituído a coca.40
A partir da segunda metade do século XIX, o discurso médico começa a se contrapor
ao ideário liberal no tocante aos usos lúdicos de psicoativos. Segundo o historiador Fernando
Dumas, a medicina associava as críticas proibicionistas de degenerância moral às novas
constatações científicas sobre os efeitos no corpo resultantes da ingestão de bebidas
alcoólicas. O objetivo, segundo ele, ia além de preservar a força de trabalho, tratava-se antes
da necessidade de estabelecer a mínima coesão discursiva para a afirmação e legitimação de
um tipo específico de saber.41 MacRae identifica este momento com uma época marcada pela
―institucionalização da medicina científica,‖ resultando inclusive numa ―série de disputas
entre diferentes categorias profissionais voltadas para a saúde, visando uma demarcação de
territórios de atuação‖. Disputas estas opondo médicos, farmacêuticos, fabricantes de
remédios, herbolários e praticantes da medicina popular.42 Segundo Michel Foucault, no
tocante aos interditos discursivos:
toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel
exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua
pesada, temível materialidade.43

No Brasil, as teses médicas fundamentadas em estudos na França e nos Estados


Unidos da América, passaram a tratar a questão das drogas como doença de caráter moral.
Médicos passaram a escrever e publicar trabalhos sobre o vício e os males das drogas. Uma
das mais importantes obras foi, vícios sociaes e elegantes (1924),44 dos médicos Pernambuco
Filho e Adalto Botelho. A obra tratou de fortalecer e difundir noções como a do toxicômano,
morphinómanos e cocainismo chronico. Os autores debateram sobre a responsabilidade
médico-legal sobre os toxicómanos, defendendo que tais indivíduos possuem
responsabilidade attenuada. Desta forma, os toxicómanos seriam: deliquentes pathologicos,
que devem ser submetidos às medidas de segurança, taes como internamento e assistência em

40
ESCOHOTADO, Op. Cit. p.459

41
SANTOS, Fernando S. Dumas dos, Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
UNICAMP –IFCH, 1995. p. 85

42
MACRAE, Edward. Dependência de drogas, Seibel, S. D. e Toscano Jr., A., São Paulo, Editora Atheneu, 2001pp., 25-34

43
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p.3

44
FILHO, Pernambuco; BOTELHO, Adauto. Vicios sociaes e elegantes: Estudo clínico, médico-legal e Prophilático.
Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro: 1924.
29

casas de saúde.[sic]45 No último capítulo os autores fazem um comentário sobre a lei 4.294 de
6 de janeiro de 1921 (elaborada por uma comissão que incluía nomes como Carlos Chagas e
Juliano Moreira), onde Pernambuco Filho e Adauto Botelho, salientam as positividades da
primeira legislação brasileira sobre drogas, mas também apontam para algumas de suas
―imperfeições.‖46
A história sobre as drogas envolve, portanto, não apenas a história específica destas
substâncias, não são apenas relatos botânicos ou herbários, trata-se também de verificar o
modo como elas são utilizadas por diversas sociedades em diferentes épocas. São histórias
sobre seus usos e consumos, sobre sensações e representações. A historiografia das drogas
estabelece diálogos entre diversos campos da história (social, cultural, política e econômica),
assim como, em diferentes áreas das ciências humanas (antropologia, sociologia, psicologia,
direito e ciências da vida). A historiografia de viés cultural evidencia seus usos e ritos, ora
como alimento, ora como fármaco, assim como as representações sociais que as evolvem. Em
sua perspectiva econômica, a historiografia pesquisa seus fluxos comerciais desde o
mercantilismo até a formação de uma indústria de substâncias sintéticas que começaram a se
formar na segunda metade do século XIX. Finalmente, recentes estudos se dedicam em
problematizar os interditos e proibições aos usos de certos psicoativos ocupando-se em
compreender os processos que resultaram das práticas restritivas, das regulações,
normalizações e criminalizações destas substâncias.

1.3 História e historiografia das drogas e seus interditos

Um dos trabalhos pioneiros sobre as drogas e o proibicionismo, possivelmente


também o mais extenso, é a obra de Antônio Escohotado, o espanhol é um dos maiores
especialistas em história das drogas, autor de ―Historia General de Las Drogas‖ (1998)47, Las
Drogas: De Ayer a Mañana (1994), La Cuestion Del Cáñamo (1997), Aprendiendo de Las
Drogas: Usos y abusos, prejuicios y desafios (2002), realizou uma ampla discussão sobre as

45
Ibidem. p.117.

46
Nas páginas 146 e 147, lemos algumas considerações sobre ―falhas‖ ou ―afrouxamentos‖ na legislação em questão. Um
exemplo é o caso do art. 6º, que prevê a criação de uma casa especializada em tratamento para toxicômanos com duas alas;
uma para internações compulsórias e outra para às voluntárias. Segundo os médicos, a ala dos voluntários permaneceria
esvaziada, crítica esta que considerava a internação compulsória a única forma de ―ajudar‖ um ―viciado‖ a se livrar da
compulsão.

47
A história general de las drogas, foi publicado em três volumes, sendo que o primeiro foi lançado em 1989, posteriormente
(1998) a editora ESPASA – Madri publicou a obra em um único volume contendo 1.473 páginas.
30

relações das sociedades com as substâncias naturais e sintéticas que hoje chamamos de
drogas. Em seus artigos Las Drogas: de los Orígenes a La Prohibición (1994) e La
Prohibición: Principios y Consecuencias (1997) procurou fazer uma genealogia da
criminalização das drogas. Sobre as origens da proibição Escohotado afirma que:
Hacia 1900 todas las drogas conocidas se encuentran disponibles em farmacias e droguerías,
pudiéndo se comprar también al fabricante por correo. (...) La propaganda que acompaña a esos
produtos es igualmente libre, y tan intensa como la que apoya otros artículos de comercio. (...) No
es um asunto jurídico, político o de ética social.48

Não se deve atribuir a um ou outro fator isoladamente a gênese do proibicionismo,


este emerge em função de eventos, dentre os quais estariam: 1) o fundamentalismo religioso
que experimentou um ―reavivamento‖ a partir da metade do século XIX, passando a condenar
todo o tipo de embriaguez demonizando o álcool e outras drogas; 2) As associações a
comportamentos ―desviantes‖ atribuídas às questões étnicas e sociais decorrentes dos
processos de proletarização e de grandes concentrações urbanas; 3) a transição das
competências terapêuticas, outrora de atribuição eclesiástica que passou a ser da classe
médica; 4) o surgimento de um Estado máximo, administrativo e burocrático cujo modelo se
deu com o Welfare State, uma transição que ele chamou de Estado teocrático a Estado
terapêutico; 5) O conflito entre a Grã Bretanha e a China que faz emergir uma coleção de
estereótipos, alterando as políticas coloniais, a configuração de um novo poder econômico e
político, ou seja, uma ―farmocracia‖, gerido pela indústria farmacêutica.49
Na América Latina, desde os anos de 1980, estudos e pesquisas vem sendo realizados
no âmbito da criminalização de várias substâncias e da chamada ―guerra às drogas.‖ 50Um dos
expoentes neste sentido foi a criminóloga venezuelana Rosa Del Olmo, autora de La
sociopolitica de las drogas (1975) e La cara oculta de la droga (1988). Já nos fins da década
de noventa (1997), organizou a obra coletiva Drogas el conflito de fin de siglo, onde contou
com trabalhos de pesquisadores de toda América Latina e de outros lugares, como foi o caso

48
Até o ano de 1900 todas as drogas conhecidas achavam-se disponíveis em farmácias e drogarias, podendo ser compradas
pelo correio diretamente do fabricante (...) a propaganda que acompanhava esses produtos era igualmente livre e tão intensa
como qualquer outros artigos do comércio (...) não era um assunto de jurídico, político ou de ética social. ESCOHOTADO,
Antônio. Las drogas: de los orígenes a la prohibición. Alianza Editorial: Madri, 1994. p. 85

49
______. História general de las drogas. Madri. Espasa, 1998.p. 494.

50
Em 1972, o então presidente dos EUA, Richard Nixon declarou ―guerra às drogas‖. O governo Nixon investiu cerca de 100
milhões de dólares, em campanhas disseminadas nos grandes meios de comunicação. Segundo RODRIGUES (2004), a
política estadunidense de guerra às drogas foi uma hábil estratégia de política externa, pois tratou de distinguir países
produtores de países consumidores, isto é, países-fonte, ou agressores e países-alvo, ou seja, vítimas.
31

do historiador suíço Thomas Fischer51 e a socióloga brasileira Vera Malaguti.52 Toda pesquisa
de Del Olmo caracteriza-se pela crítica ao histórico modelo de políticas de combate às drogas
na América Latina, política esta encampada pelos EUA e que resultaram em ações
catastróficas como foi o caso do ―Plano Colômbia.‖53
No Brasil, os estudos sobre o tema são poucos e recentes. Um dos primeiros trabalhos
a tratar das relações entre determinados grupos sociais e certas substâncias, foi o de Gilberto
Velho (1975), cuja tese de doutoramento foi intitulada “Nobres e anjos: um estudo sobre
tóxicos e hierarquia‖.54 Embora o principal objetivo de sua pesquisa estivesse centrada em
entender como os usos (entre as classes médias urbanas) de certas substâncias estavam
vinculados a uma visão específica de mundo, o fato de tais grupos consumirem drogas ilegais
o levou a discutir as razões da criminalização e a hipocrisia de uma ilegalidade ao alcance de
quem pode pagar.
Ainda no campo da antropologia, mas na área das violências urbanas, a grande
referência brasileira é sem dúvida, a professora Alba Maria Zaluar da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do NUPEVI – Núcleo de Pesquisas das Violências.
A antropóloga é autora de trabalhos como: As consequências da proibição das drogas sobre a
violência urbana (1994)55; A criminalização das drogas e o reencantamento do mal (1996) e
Drogas e Cidadania (1994)56. Alba Zaluar realizou pesquisas no complexo habitacional

51
FISCHER, Thomas. Coca, cocaína y “guerra contra las drogas” em América Latina: Recorrido bibliográfico. (1997), pp.
281-297. In. DEL OLMO, Rosa. (org), Drogas: El conflicto de fin de siglo. Cuardenos de la nueva sociedad - nº1, 2º
semestre. Caracas, 1997.

52
BATISTA, Vera Malaguti. Drogas y criminalización de la juventud pobre em Rio de Janeiro. (1997), pp. 259-266. In.
DEL OLMO, Rosa. (org), Drogas: El conflicto de fin de siglo. Cuardenos de la nueva sociedad - nº1, 2º semestre. Caracas,
1997.

53
Segundo INÁCIO (2008) No governo Clinton (1993-2001) foi lançado o Plano Colômbia – iniciativa colombiana apoiada
firmemente pelos EUA orçada em 7,5 bilhões de dólares abrangendo cinco eixos temáticos: restabelecer a economia,
promover a paz, eliminar o cultivo de drogas ilícitas, fomentar o desenvolvimento social e fortalecer a democracia na
Colômbia. INÁCIO, Cesar Dutra. A participação estadunidense no Plano Colômbia e a reação brasileira (1995-2005),Rio
de Janeiro: Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, ano 2, n. 36, 2008. Muitos críticos como Noam Chomsky vêm criticando
o Plano Colômbia, em uma entrevista o linguista afirmou: “O pretexto é a guerra contra as drogas, mas é difícil encontrar
um analista que leve esse pretexto muito a sério. Os paramilitares, da mesma forma que os militares, estão metidos até aos
narizes no narcotráfico e a guerra não se dirige contra eles. A guerra é dirigida contra comunidades campesinas que se
tornaram parte das regiões dominadas pelas Fuerzas Armadas Revolucionárias de Colombia (FARC).”Entrevista cedida a
Heinz Dietrich Steffan do La Jornada (03/09/2000).

54
A tese foi mais tarde publicada pela FGV. VELHO, Gilberto. Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de
Janeiro. Editora FGV: 1998.

55
ZALUAR, Alba. M. As conseqüências da proibição das Drogas sobre a Violência Urbana. In: Shiray, Michael & Salama,
Pierre. (Org.). Pensar as Drogas. Rio de Janeiro / França: Editora Fórum de Ciências e Cultura da UFRJ/ Associação
Descartes, 1994.

56
_____. M. Drogas e Cidadania (org.), Introdução: Drogas e Cidadania (pg 7-21), e A Criminalização das drogas e o
reencantamento do mal (pg 97-127). Editora Brasiliense, 1994.
32

―Cidade de Deus‖ entre 1980 e 1984 quando defendeu a tese A máquina e a revolta (1985)57.
Entre suas críticas mais contundentes está à associação midiática que se faz entre as drogas e
a violência, defende, assim como Michel Misse,58 que tal associação é equivocada e acaba por
distorcer e inverter a relação culpado/vítima, para este último:
A reação moral e normalizadora que vincula o consumo de diferentes tipos de substâncias a
vícios de comportamento é a principal responsável pela criminalização conjuntural dessas
substâncias e não está comprovado que apenas e exclusivamente o seu uso seja causa isolada
de comportamentos violentos na esmagadora maioria de seus consumidores.59

A partir dos anos oitenta, começaram a surgir trabalhos acadêmicos no campo da


história discutindo a criminalização das drogas, como o de Júlio Cesar Adiala que publicou O
Problema da Maconha no Brasil: ensaio sobre racismo e drogas (1986).60 Trata-se de um
trabalho pioneiro, que procurou demonstrar que a maconha foi historicamente associada aos
negros e as classes menos abastadas, fator determinante para sua criminalização. O
pesquisador buscou localizar nas teses médicas que ampararam os discursos jurídicos na
primeira metade do século XX, o preconceito racial e o moralismo.61
O historiador Henrique Carneiro, considerado uma referência nos estudos sobre
drogas no Brasil, escreveu e organizou vários livros e artigos, dentre os quais estão: A
construção do vício como doença: O consumo de drogas e a medicina (2002); Álcool e
drogas na história do Brasil (Org.2005); Pequena enciclopédia da história das drogas e
bebidas (2005), Drogas e cultura: novas perspectivas (Org.2008) e Bebida, abstinência e
temperança (2010). Henrique Carneiro iniciou suas pesquisas sobre drogas no final da década
de oitenta, sua dissertação de mestrado foi publicada com o título: Filtros, Mezinhas e
Triacas: as drogas no mundo moderno. (1994).62 Neste trabalho procurou fazer uma história
sobre o disciplinamento do consumo de drogas no período moderno, tendo como foco a
expansão marítima dos países ibéricos. Desde então, vem publicando vários artigos
57
______. A máquina da revolta: as organizações vicinais e o significado da pobreza. Tese de doutorado em antropologia,
USP, 1984.

58
Sociólogo e pesquisador e coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) da
UFRJ.

59
MISSE, Michel. As drogas como problema social. Conferência realizada em 8 de novembro de 2003 no III Simpósio
Internacional sobre álcool e outras drogas, promovido pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões e Associação Psiquiátrica do
Estado do Rio de Janeiro.

60
ADIALA, Júlio Cesar. O Problema da maconha no Brasil: Ensaio sobre racismo e drogas. Rio de Janeiro: Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, 1986.

61
______. A criminalização dos entorpecentes. Dissertação de Mestrado, Rio de Janeiro: IUPERJ, 1996.

62
CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. ed. São Paulo: Xama VM Editora e
Gráfica Ltda. 1994.
33

questionando as razões pelas quais se criminalizou certas drogas, também problematizou a


noção de ―vício‖ e a associação ao uso de drogas como uma invenção da sociedade médica do
século XIX. Em 2010 publicou Bebida, abstinência e temperança: na história antiga e
moderna,63 um trabalho sobre a história da embriaguez, a pesquisa envolveu estudos sobre
várias temporalidades e sociedades distintas para compreender como estas se comportaram
diante do consumo excessivo de álcool. Sua preocupação era verificar a relação cultural entre
a embriaguez e a temperança, entre a ebriedade e a sobriedade, nas sociedades antigas e
modernas. O evento mais marcante destas relações na era moderna foi a lei seca nos Estados
Unidos da América entre os anos de 1921 e 1933. Esta teve duas motivações básicas: por um
lado, a condenação à embriaguez e sua associação à ausência de moral defendida pelos grupos
puritanos de temperança, por outro, significava também o adestramento do trabalhador fabril.
Fernando Dumas defendeu em 1995 a dissertação intitulada: Alcoolismo: a invenção
de uma doença64. O trabalho consistiu no exame da construção do discurso médico sobre o
alcoolismo entre os anos de 1830 e 1920, utilizando-se das teses da faculdade de medicina
como fonte principal. Dumas analisa as tradições terapêuticas dos usos de alcoólicos na
sociedade ocidental e busca localizar as modificações destes usos por meio das críticas
médicas. Ancorado teoricamente em Foucault, o autor procurou discutir a emergência de um
saber-poder sobre o alcoolismo que modificou seu status de hábito para doença, resultado de
teorias sobre degenerações e hereditariedades, como as desenvolvidas pelo sueco Magnus Hus
em Alcoolismus Chronicusem 1849. Deste modo o alcoolismo passou a ser percebido pela
classe médica e intelectual como uma espécie de “gangrena da sociedade moderna‖, que
comia por dentro o organismo social65.
Ainda no campo da história, outra importante contribuição foi a pesquisa da
historiadora Maria de Lourdes da Silva (1998), defendida no mestrado na PUC-Rio sob o
título de Drogas no Rio de Janeiro da bela época: a construção das noções de crime e de
criminoso.66Em sua pesquisa procurou analisar o processo de construção do imaginário que
legitimou a criminalização das substâncias de natureza tóxico-entorpecente entre a última
década do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX na cidade do Rio de Janeiro.

63
______. Bebida, abstinência e temperança: na história antiga e moderna. São Paulo: Editora Senac, 2010.

64
SANTOS, Fernando S. Dumas dos, Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de Mestrado, São Paulo:
UNICAMP –IFCH, 1995.

65
_______. Alcoolismo: a invenção de uma doença. Dissertação de Mestrado, São Paulo: UNICAMP –IFCH, 1995. p. 73.

66
SILVA, Maria de Lourdes.: Drogas no Rio de Janeiro da Bela Época: a construção das noções de crime e de criminoso.
PUC-RJ, 1998.
34

Descrevendo o cenário de convivência com as drogas na sociedade carioca no período, a


pesquisa destacou como a diferença social matiza diversidades nos hábitos de consumo de
diferentes drogas. O processo de criminalização das drogas teria sido fruto da ação direta das
potências mundiais, sobretudo dos Estados Unidos que, entre nós, representou em definitivo o
alinhamento ao modelo econômico imposto por estas potências.
Em 2009 Maria de Lourdes defendeu a tese Da Medicina à Repressão Policial: a
Cidade do Rio de Janeiro entre 1921 e 1945.67 Neste trabalho buscou compreender como a
sociedade carioca lidou com as primeiras leis de proibição do consumo de drogas. A pesquisa
analisa a transição do discurso médico sobre drogas para outros setores da sociedade,
utilizando como fonte os jornais, revistas especializadas e boletins policiais do período.
Procurando assim, identificar como as instituições sociais e governamentais forjaram seus
instrumentos de controle e repressão. Sobre este mesmo período, Júlio Cesar Adiala defendeu
sua tese em história das ciências, intitulada de Drogas, medicina e civilização na primeira
república.68Analisando o processo de patologização do uso de drogas como obra de uma
geração de intelectuais médicos que integrou o movimento de institucionalização de um
campo científico psiquiátrico no país. Adiala buscou iluminar os principais atores que
estiveram envolvidos nos debates científicos sobre o uso de droga e na definição de uma
categoria diagnóstica – a toxicomania – que permitiu consolidar a hegemonia da
representação patologizante das drogas no campo médico e, posteriormente, na sociedade em
geral.
A historiografia aqui apresentada, embora seja significativa quanto à contribuição das
pesquisas sobre os interditos das drogas, representa apenas uma parte dos estudos sobre o
tema. Quanto a esta dissertação, se por um lado reafirma os posicionamentos apontados pelas
pesquisas aqui descritas, por outro, procura destacar-se das demais ao localizar um aspecto
ainda não discutido nas problematizações sobre o modo como se deu a internalização do
proibicionismo no Brasil. A constituição da CNFE e seu envolvimento neste processo é o que
procurarei tratar aqui não apenas como um diferencial na historiografia, mas, principalmente
como uma contribuição aos estudos que ainda virão.

67
______. Da Medicina à Repressão Policial: a cidade do Rio de Janeiro entre 1921 e 1945. Tese de Doutorado,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 2009.

68
ADIALA, Júlio Cesar. Drogas, medicina e civilização na primeira república. Tese (Doutorado em História das Ciências e
da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2011. p.184.
35

1.4 A politica mundial de drogas: As conferências internacionais do ópio e o Comitê


Central Permanente

Para compreender como os ideais do proibicionismo atravessou o Atlântico e como


este se estabeleceu mundo afora, o que Rita de Cássia Cavalcante Lima em sua tese em
Serviço Social intitulou apropriadamente de ―proibicionismo transnacional‖69, seria
importante fazer uma pequena análise do que representou as chamadas Conferências
Internacionais do Ópio e a criação do Comitê do Ópio, ou como veio se chamar oficialmente
após 1924, Conselho Central Permanente do Ópio vinculado diretamente à Liga das Nações,
assim como a entrada e participação do Brasil junto a este organismo.
As chamadas conferências do ópio ocorreram em meio à disputa pelo mercado oriental
entre EUA e Grã-Bretanha estendendo-se às outras potencias mundiais da época.70 O ano de
1906 pode ser considerado como o ano em que se fincaram as bases para que proibicionismo
ascendesse de um movimento doméstico e puritano para um movimento político de caráter
internacional visando à restrição de substâncias psicoativas. Em 1906 foi criado o Food and
Drug Act, esta seria a primeira lei federal destinada a regular o mercado de drogas nos EUA.
A lei, de acordo com Eduardo Vargas, não tinha caráter criminal, tratava-se basicamente de
três coisas:
A criação da Foodand Drug Administration, que deveria aprovar todos os alimentos e drogas
para consumo humano antes de sua introdução no mercado; a necessidade de apresentação de
prescrição médica para a aquisição de algumas ―drogas‖; e a necessidade de que as ―drogas‖
vendidas fossem rotuladas de tal modo que as substâncias que entravam em sua composição
fossem conhecidas. 71

Neste mesmo ano os EUA iniciaram sua estratégia de aproximação com a China. Uma
carta com data de 24 de julho de 1906 destinada ao presidente Roosevelt e escrita pelo bispo
da Igreja Episcopal nas Filipinas Charles Henry Brent,72 propunha organizar uma Conferência
Internacional ―destinada a ajudar a China em sua batalha contra o ópio.‖73 Desde The Chinese

69
LIMA Rita de Cássia Cavalcante. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional:
Relações Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais/ Tese (Doutorado em Serviço Social) – Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social / Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, 2009.
70
Veja: ESCOHOTADO, Antonio. História general de las drogas. Madri: Alianza Editorial, 1992. MUSTO, David F. The
american disease: origins of narcotic control. 3ed. New York: Oxford University Press, 1999.

71
VARGAS, Eduardo Viana. Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de ―drogas‖ / Eduardo
Viana Vargas. 2001. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Doutorado em Ciências Humanas:
Sociologia e Política. p.200.

72
Conforme Escohotado (1998, pp.610-615), o bispo episcopal Charles Brent e seu colega metodista Homer Stunz, foram
responsáveis por criar medidas restritivas quanto ao uso não médico de ópio nas Filipinas.

73
ESCOHOTADO, Antonio. op. cit. p.611
36

Exclusion Act em 188274, as relações entre a China e os EUA não eram amistosas, por sua
vez, o gigante oriental também tinha dificuldades com os países europeus, sobretudo após o
―Tratado de Nanquim‖ imposto pela Grã-Bretanha como resultado da vitória na chamada
primeira guerra do ópio.75 A proposta de aproximação com a China procurava resolver dois
problemas: controlar a entrada de ópio em solo americano e retomar o comércio com os
quatrocentos milhões de chineses. O que Brent pedia a Roosevelt era “un sistema colonial
que mejore el británico y evite el trasnochado estilo laissez faire de los franceses.‖76
A primeira Conferência deu-se em Xangai em 1909, com a presença de treze países:
Estados Unidos, China, Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália, Países Baixos, Portugal,
Áustria-Hungria, Japão, Sião e Pérsia. Embora os resultados imediatos desta Conferência não
tenham agradado os representantes estadunidenses, a Conferência de Xangai serviu em três
sentidos, de acordo com Rita de Cássia Lima77: para fazer do governo da América do Norte
líder da agenda sobre o controle de drogas no mundo, para fortalecer a ideia de ―uso
legítimo‖, cuja legitimação passava pela autoridade médica e por fim, estabelecer o alvo, isto
é, a oferta, o que significava uma ofensiva a países produtores. Os EUA haviam convocado
uma nova Conferência, desta vez em Haia, em dezembro de 1911, com o objetivo de
transformar as discussões anteriores em uma Convenção. As dificuldades de se chegar a um
acordo eram muitas, com interesses conflitantes, segundo o relato de Antônio Escohotado:
Como en Shanghai, Turquía siguió negándose a asistir, y Austria-Hungría tampoco acudió.
Inglaterra só lo queria hablar de morfina y cocaína, y Alemania protestaba em nombre de sus
poderosos laboratorios, alegando que Suiza no estaba presente y aprovecharía las restricciones
em su privado beneficio. Portugal defendia su industria de opio em Macao, y Persia sus
ancestrales cultivos. Holanda estaba implicada en el tráfico de opio y morfina, y producía
miles de toneladas de coca en Java. Francia se encontraba dividida entre los ingresos
provenientes del consumo de opiáceos en Indochina y el temor a verse inundada por los
productos de sus colonias. Japón fue acusado de introducir masivamente morfina, heroína e
hipodérmicas en el territorio chino como parte de sus propósitos invasores, aunque negó
cualquier vínculo com semejante cosa. Rusia tenía una considerable producción de opio, pero
inferior a la de Siam. Italia, que sólo compareció el primer día, puso como condición para
participar que se incluyera el tema del cáñamo, condición rechazada por la mayoría; ya por
entonces (como sigue sucedendo hoy) tenía los índices de cocainismo más altos de Europa.
(Grifo meu).78

74
Ato promulgado pelo governo dos Estados Unidos da América em 1882, que proibiu a imigração de chineses por dez anos e
negava a ―nacionalização‖ dos que já estavam no país. Veja: VEREA, Monica, Migración temporal en América del Norte:
propuestas e respuestas. Universidad Nacional Autónoma de México, 2003; AHMAD, Diana. The Opium Debate and
Chinese Exclusion Laws in the Nineteenth-Century American West. University of Nevada Press, 2007.p.77.

75
Sobre as guerras do ópio e o tratado de Nanquim e outros, veja: AHMAD, Diana. The Opium Debate and Chinese
Exclusion Laws in the Nineteenth-Century American West. University of Nevada Press, 2007.

76
ESCOHOTADO, Antonio. op. cit. p.616.

77
Confira em: LIMA Rita de Cássia Cavalcante. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional: relações
Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais. 2009, p.175.

78
Como em Xangai, a Turquia seguiu negando-se participar e a Áustria-Hungria tampouco compareceu. A Inglaterra só
queria falar de morfina e cocaína, a Alemanha protestava em nome de seus laboratórios, alegando que a Suíça que não estava
37

A pressão para inserir outras substâncias na Conferência de Haia se deu por parte de
Grã-Bretanha, que teria sido o principal alvo na Conferência de Xangai. Os ingleses adotaram
a estratégia de estabelecer pré-condições para participar da Conferência de Haia; incluir no
debate a regulação de alcaloides industrializados como a morfina e a cocaína.79 Desta forma a
política externa inglesa atendia às reivindicações das suas indústrias farmacêuticas que tinham
nos laboratórios alemães seus principais concorrentes. Os alemães não se negaram em
participar e aceitaram a precondição dos ingleses, mas com apoio da Holanda e França,
insistiram na participação de outros países alegando que só assim a Convenção teria força. O
objetivo era postergar as discussões, o que acabou ocorrendo. Um relatório de 1916 produzido
pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro afirmava que apenas 11 países tinham
ratificado a Convenção de Haia: EUA, Bélgica, Brasil, China, Dinamarca, Guatemala,
Honduras, Itália, Portugal, Sião e Venezuela. Segundo o mesmo relatório, outros 32 países
não a ratificaram, dentre eles Alemanha, França, Bolívia, Colômbia, Peru e Países-Baixos. O
documento assinado pelo então Ministro Lauro Müller, afirmava que dos 32 países, 14 já
haviam acenado ser favorável à ratificação, ―mas os da Alemanha e da Rússia ainda não
julgam chegado o momento de ratificar esse ato.‖80
Os EUA, depois de algumas tentativas anteriores frustradas81, se valeram da
ratificação da Convenção para implantar no plano doméstico uma legislação tendo como base
a Convenção de Haia; a Harrison Narcotics Tax Act. O projeto de Francis Burton Harrison
que renunciou ao senado para tornar-se governador das Filipinas entre 1913-1921 foi
aprovado no congresso. A nova lei condicionava o consumo de ópio, morfina e cocaína
apenas para fins medicinais, para Thiago Rodrigues a Lei Harrison representou um avanço do
―sistema terapêutico-policial‖, uma vez que colocava o estamento médico atrelado a lei por
meio das diretrizes editadas pela Narcotic Control Department , que estabeleceu uma política
de controle das receitas.82 Ainda de acordo com o autor, a Lei Harrrison, só fora validada pela

presente, usaria as restrições em benefício próprio. Portugal defendia sua indústria de ópio em Macau e a Pérsia seus cultivos
tradicionais. A Holanda estava envolvida com o tráfico de ópio e morfina e produzia milhares de toneladas de coca em Java.
A França estava dividida entre a receita proveniente do consumo de opiáceos na Indochina e o temor de ver-se inundada
pelos produtos de suas colônias. O Japão fora acusado de introduzir morfina e heroína ESCOHOTADO, Antonio. História
general de las drogas. Madri: Alianza Editorial, 1998. p.628

79
SHEERER, Sebastian. 1993. ―Estabelecendo o controle sobre a cocaína (1910-1920)‖. In: BASTOS, Francisco I.,
Gonçalves, Odair D. (eds.). Drogas é legal? Rio de Janeiro: Imago. p. 169-192.

80
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1916, p.104.

81
Um exemplo é o ―Projeto Foster‖, em 1910, citado por ESCOHOTADO (pp.624-626), que buscava regular vários tipos de
substâncias, entre elas a Coca-Cola e a Pepsi-Cola, mas foi rejeitado pelo Congresso Americano.

82
RODRIGUES, Tiago. Política e Drogas nas Américas. São Paulo: FAPESP, 2004. p.51.
38

Suprema Corte Americana em 1919, que vinha relutando quanto a constitucionalidade da


mesma.83

A Primeira Guerra retardou o avanço do proibicionismo no cenário mundial, mas tão


logo findou o conflito, com os EUA fortalecidos, os proibicionistas estadunidenses trataram
de articular estratégias tanto no plano doméstico como na política externa. A Alemanha,
derrotada, viu-se obrigada a aderir a Convenção de Haia que fora anexada ao Tratado de
Versalhes (1919).84 Também em 1919 o senador republicano Andrew Volstead, aprovou seu
projeto de emenda (18ª) à constituição americana visando o fim do comércio e consumo de
bebidas alcóolicas. A Volstead Act, chamada pelos seus defensores de ―The Noble
Experiment‖, uma atribuição à vitória da moral publica, mas que popularmente ficou
conhecida como Lei Seca.85 Diversos tipos de organizações apoiaram tal iniciativa, dentre
estas a KKK (Ku Klux Klan), também conhecida como Klan, que fora reorganizada pelo
maçom e pregador metodista, William J. Simmons em 1915.86 Em 1920 a Klan já contava
com aproximadamente cinco milhões de seguidores, tal crescimento deveu-se em grande parte
a campanha pró-proibição.87

Todos esses fatores, isto é, a Lei Harrison, Lei Seca e a ratificação da Convenção de
Haia via Tratado de Versalhes, abriram caminho para que os EUA solicitassem uma nova
conferência, desta vez sobre os auspícios da Liga das Nações, o objetivo inicial era estender
suas experiências domésticas aos níveis internacionais. Assim em novembro de 1924 na nova
sede no novo organismo multilateral em Genebra, teve iniciado as conferências que
resultariam na II Convenção Internacional do Ópio. Neste sentido, como afirmou Eduardo
Vargas, após a Primeira Guerra Mundial vê-se emergir a ―hegemonia da cruzada médico-
moral americana‖. O marco dessa hegemonia pode ser localizado, na ―incorporação feita pela

83
Idem.

84
A Turquia grande produtor de ópio, que vinha se negando veementemente em ratificar a Convenção de Haia, aliada dos
alemães, também se viu obrigada a assinar o Tratado de Versalhes, de acordo com Antônio Escohotado, foi ideia dos ingleses
incluir no tratado as determinações da Convenção Internacional do Ópio, proposta que contou com total apoio dos EUA.
p.631.

85
Existe uma vasta historiografia sobre a Lei Seca, cito aqui: KIVIG; David E. Law, Alcohol, and Order: Perspectives on
National Prohibition Green wood Press, 1985.

86
BLANRUE, Paul-Eric. As muitas vidas da Ku Klux Klan. Revista História Viva, edição 21 - Julho 2005.

87
Para historiador Michael Prendergast o movimento pró-proibição ―representava o vínculo mais importante entre a
Klansmen e a nação‖: PRENDERGAST, Michael L. "A History of Alcohol Problem Prevention Efforts in the United States".
In Holder, Harold D. Control Issues in Alcohol Abuse Prevention: Strategies for States and Communities. Greenwich,
Connecticut: JAI Press, 1987, pp. 25-27.
39

Liga das Nações aos ‗princípios americanos‘ de penalização sobre os usos de opiáceos e de
cocaína fora da esfera médica e científica‖, princípios estes que regeriam a política mundial
de drogas.88
Entretanto, a incorporação de tais ―princípios‖ não ocorrera tão rapidamente, muito
menos facilmente. De outro modo, a delegação estadunidense não teria abandonado a II
Convenção Internacional do Ópio em 1924. As conferências que resultaram nesta segunda
convenção foram marcadas por divergências e impasses. Insatisfeitos com os rumos quanto
aos prazos estabelecidos para suprimir o ópio bruto e a folha de coca, a delegação
estadunidense, por meio de seu representante chefe, o Sr. Stephen G. Porter, enviou um
memorando explicando os motivos pelos quais abandonaram as conferências:

Apesar de mais de dois meses de discussão e de sucessivos adiamentos, parece agora claro
que a finalidade para a qual a conferência foi chamada não pode ser atingida. Os relatórios das
diversas comissões da Conferência indicam claramente a improbabilidade de nas condições
atuais a produção de ópio bruto e folhas de coca permaneçam restritas às necessidades do
mundo médico e científico. (...) Nestas circunstâncias, a delegação dos Estados Unidos, em
cumprimento das instruções recebidas de seu Governo, não tem alternativa, nos termos da
Resolução Conjunta que autoriza a participação na Conferência, a não ser retirar-se, porque
não poderia assinar o acordo que se propõe concluir. (Grifo meu) 89

Apesar da retirada dos representantes dos EUA, acompanhados pela delegação


chinesa, a Convenção de Genebra apresentou alguns avanços significativos em relação a Haia.
A inovação deu-se por conta da criação do primeiro órgão multilateral responsável pela
política mundial de drogas: o Comitê Central Permanente. A principal atribuição do Comitê
centrava-se na fiscalização do mercado mundial das substâncias reguladas pela Convenção, os
países signatários comprometeram-se em enviar relatórios de importação e exportação,
estatísticas e previsões de consumo anuais. Buscava-se levantar informações que permitissem
estabelecer as ―reais‖ necessidades do consumo mundial de caráter restrito ao uso médico e
científico, caracterizando assim, o monopólio dos saberes sobre psicoativos. Outra importante
alteração em relação a Haia foi inclusão do ―cânhamo indiano‖ (canabis sativa) e da heroína
(diacetilmorfina), entre as substâncias a sofrerem regulações.

88
VARGAS, Eduardo Viana. Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de ―drogas‖ / Eduardo
Viana Vargas. 2001. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Doutorado em Ciências Humanas:
Sociologia e Política. p.204.

89
Tradução realizada a partir da fonte: WILLOUGHBY, W. W. Opium as an international problem: the Geneva Conferences.
Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1925. pp.344-345. O autor, Westel Woodbury Willoughby (1867-1945), participou das
Conferências do Ópio em Genebra (1924/25-1931), seu livro de 585 páginas, digitalizado pela Boston Library Consortium
Member, encontra-se na Biblioteca da University of Connecticut, in: http://archive.org/details/opiumasinternati00will
40

Na ocasião de nomear quais as nações comporiam o Comitê Central Permanente, os


EUA que fora convidado para participar da escolha do referido Comitê, assim como para
candidatar-se a representante no mesmo, recusou ambas as possibilidades. Sobre as razões da
recusa apresentada pelo governo estadunidense, o embaixador brasileiro, Gurgel do Amaral,
em Washington, escreveu ao Ministro das Relações Exteriores no Brasil, uma carta onde o
mesmo transcreve a resposta do Governo dos Estados Unidos ao secretário da Liga das
Nações:
O secretario de Estados dos Estados Unidos agradece esse convite, mas lamenta ser
impossível para os Estados Unidos participar na escolha de um Conselho Permanente previsto
pela Convenção de Genebra de 19 de fevereiro de 1925. Se bem que em matéria de fabricação
e transporte de drogas, a Convenção de Genebra tenha feito progressos sobre a Convenção de
Haia de 1921, todavia , na opinião do Governo Americano, não é ella suficientemente
satisfatoria em certos pontos de grande importancia o que impede a adhesão e a participação
dos Estados Unidos na escolha do Conselho previsto pela mesma Convenção.
Entre as matérias que o Governo Americano considera como não tendo sido tratada de modo
adequado, figura a limitação da producção de ópio crú e das folhas de coca destinas às
necessidades medicinaes e scientificas do mundo, assim como a fiscalisação da producção e
da distribuição de todos os derivados de ópio e das folhas de coca. Além disso, a Convenção
de Genebra procura destruir a unidade de propositos e a conjunta responsabilidades das
potencias conseguidas pela Convenção de Haia e tida pelo Governo Americano como
essencial para um controle effetivo dos tráficos das drogas narcóticas. (Grifos Meus) 90

O mesmo memorando foi enviado com um anexo de um texto publicado pelo


jornalista Albert W. Fox. Tratava-se da matéria publicada no The Washington Post, sob o
título de ―América não vai participar: Kellogg declara que o plano da Liga parece insincero.‖
em 5 de outubro de 1928, cujo conteúdo criticava a postura dos ingleses revelando sua
resistência quanto às exigências para limitar a comercialização de ópio e seus derivados:

Mas conforme o trabalho da conferência em Genebra progrediu, vários dos poderes,


especialmente a Grã-Bretanha Grande, pareceu relutante em tomar todas as medidas que, na
verdade, reduziriam a produção de ópio bruto ou efetivamente regulariam o tráfego,
entretanto tal regulação seria suscetível a prejudicar os interesses financeiros britânicos.91

Sobre a canabis, é importante alguns esclarecimentos. Há na historiografia muitas


controvérsias sobre qual delegação foi responsável pela inclusão do cânhamo na pauta das
conferências em 1924. Alguns autores chegaram a afirmar que a proibição da maconha em
âmbito internacional deve-se ao representante brasileiro em Genebra o Dr. Pernambuco
Filho92. Há também quem defenda que tal ato tenha sido obra da delegação britânica, como é

90
Ministério das Relações Exteriores, Arquivo Histórico do Itamaraty em Brasília. Memorando nº 378, 9 de outubro de 1928.
91
Ministério das Relações Exteriores, Arquivo Histórico do Itamaraty em Brasília. Memorando nº 378, 9 de outubro de 1928.
Anexo. The Washington Post: Fryday, october, 5, 1928.

92
Muitas publicações brasileiras basearam-se na obra de CARLINI, E. A. (A história da maconha no Brasil. São Paulo,
CEBRID, 2005.), que por sua vez utilizou-se de KENDELL R. (Cannabis condemned: the prescription of Indian hemp.
Addiction, 98: 143-51, 2003). Este teria afirmado que: “ o representante brasileiro, Dr. Pernambuco, descreveu a maconha
41

o caso de Antônio Escohotado93 e quem acredite que teria sido a delegação egípcia a
responsável, como tentativa de frear o consumo do haxixe (rezina da canabis). 94Westel
Woodbury Willoughby (1867-1945) em 1925, Opium as na international problem: the
Geneva Conferences, afirma que o primeiro governo a se manifestar oficialmente sobre o
problema do cânhamo foi a ―União da África do Sul‖ que em 1923 teria enviado a Liga das
Nações uma sugestão para que o haxixe fosse considerada como uma droga viciante de
caráter narcótica. O Comitê Consultivo considerou que o assunto deveria ser estudado e que
os outros governos deveriam apresentar também suas posições, emitindo a seguinte resolução:

Com referência à proposta do Governo da União de África do Sul de que cânhamo indiano
deve ser tratado como uma das drogas formadoras de hábito, o Comité Consultivo recomenda
ao Conselho que, em primeira instância, os Governos devem ser convidados a fornecer
informações à Liga sobre a produção, utilização e tráfico da substância presente em seus
territórios, juntamente com a suas observações sobre a proposta do Governo da União de
África do Sul. O Comité recomenda ainda que a questão deve ser considerada na sessão anual
do Comitê Assessor a ser realizada em 1925.95

O documento96 confirma a participação efetiva do Egito nas reuniões em Genebra, um


memorando produzido pela delegação que era presidida pelo Sr. El Guindy, apresentava o uso
do haxixe naquele país como responsável pelos casos de ―demências‖, cujas incidências em
homens eram três vezes maiores que em mulheres, conforme o documento, isso seria o
contrário do que ocorria na Europa. O Egito recebeu apoio imediato da China, o
representante dos EUA, Sr. Porter, afirmou que era o momento para se praticar um pouco de

como „mais perigosa que o ópio.” (p.9) Veja por exemplo: CAMPOS, Marcelo Araújo, A presença da Cannabis sativa
(Linné) e canabinóis na Lista IV da Convenção da ONU, CONAD, 2005; BARROS, André & PERES, Marta. Proibição
da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas. PERIFERIA, V. III, Nº 2: 2011. Estes últimos chegaram a
afirmar com base em tal ―informação histórica‖ que: ―esse médico, indiscutivelmente, influenciou a criminalização da
maconha em todo o mundo. Em outras palavras, foi baseada nas ideias racistas e escravocratas presentes no discurso de um
psiquiatra brasileiro, que a criminalização da maconha viria a ser internacionacionalizada.” (p.14). Na verdade o próprio
CARLINI (2005) achou um pouco contraditório tal afirmação (embora tenha alegado que a mesma fora confirmada na obra:
Os fumadores de maconha em Pernambuco, arquivos e assistência aos psicopatas, 1934 de José Lucena), citando a obra
Maconha (coletânea de trabalhos brasileiros, publicado em 1958), onde o mesmo Dr. Pernambuco Filho afirmara que: “Em
centenas de observações clínicas, desde 1915, não há uma só referência de morte em pessoa submetida à privação do
elemento intoxicante, no caso a resina canábica. No canabismo não se registra a tremenda e clássica crise de falta, acesso
de privação (sevrage), tão bem descrita nos viciados pela morfina, pela heroína e outros entorpecentes, fator este
indispensável, na definição oficial de OMS, para que uma droga seja considerada e tida como toxícomanógena.” (p.10).

93
Veja ESCOHOTADO (1998, p.701). Para o autor, os ingleses associaram o uso de haxixe às atividades ―subversivas‖, isto
é, o haxixe fora convertido em ―símbolo‖ da resistência ao colonialismo no Egito.

94
BLANCHARD, Sean &ATHA, J. Matthew. Indian hemp and the dope fiend of old England: a sociopolitical history of
cannabis and the British Empire-1840-1928. In. www.druglibrary.org /
<http://www.druglibrary.org/schaffer/Library/studies/inhemp/dopefien.htm>acesso em: 13/11/2012.

95
WILLOUGHBY, W. W. Opium as an international problem: the Geneva Conferences. Baltimore, The Johns Hopkins
Press, 1925. p. 374

96
A obra de Westel Woodbury Willoughby é composta por discursos e memorandos de plenipotenciários de várias
delegações em variadas seções da Conferência. O memorando do Sr. El Guindy encontra-se na integra nas pp.374-378.
42

reciprocidade, já que as outras nações estavam pedindo a estes (Egito e Turquia), apoio contra
o ópio e a coca97. Uma declaração que mais pareceu uma convocação ao apoio da inserção da
canabis na lista. A delegação da Índia disse que não havia se preparado para o debate, mas até
o final da Conferência emitiram nota dizendo que governo indiano estaria disposto a controlar
as exportações da Indian hemp, para outros países apenas com certificados para fins
medicinais.98 França e Holanda se opuseram assim como o representante britânico Sr.
Malcolm Delevingne, este último alegou que devido ao despreparo das delegações para
discutir o assunto, seria ―impossível se chegar a um acordo nesta Conferência‖.99 Mas ao final
da Conferência editou a seguinte resolução:

A utilização do cânhamo indiano e suas preparações derivadas só podem ser autorizadas para
fins médicos e científicos. A resina crua (haxixe), no entanto, que é extraída da planta fêmea
da cannabis sativa, juntamente com as diversas preparações (haxixe chira, esrar, diamba, etc),
de que forma a base, não sendo presentemente utilizada para fins médicos e apenas sendo
susceptíveis de utilização para fins prejudiciais, da mesma maneira como outros narcóticos,
não podem ser produzidas, vendidas, comercializadas, etc, sob nenhuma circunstância. 100

Cabe salientar, como observou Thiago Rodrigues, que o fato dos EUA não assinar a
Convenção de 1925, os responsáveis pela política de drogas do país, enquanto intensificavam
medidas cada vez mais repressoras no âmbito doméstico, não deixaram de atuar no plano
internacional, participando ativamente da preparação das conferências de 1931 e 1936, ambas
em Genebra.101
Em 12 de agosto de 1930 Harry Jacob Anslinger (1892-1975) assumia o recém-criado
Federal Bureau of Narcotics (FBN), vinculado ao Departamento do Tesouro. Anslinger que
ficou conhecido por ser responsável pela criminalização da maconha em seu país, assumiu as
negociações da Conferência sobre a Limitação da Manufatura de Drogas Narcóticas em 1931.
A essa altura os EUA já eram o principal mantenedor da Sociedade das Nações, o que lhe

97
Idem.p.379

98
Idem p.380

99
Idem. p.381. Aqui verificamos uma possível contradição quanto à afirmação de Antônio Escohotado, sobre a liderança dos
ingleses no processo que levou a inclusão da maconha na lista de substâncias reguladas em Genebra de 1924. Entretanto, é
possível que o autor tenha razão, já que tanto o Egito quanto a África do Sul eram na época protetorados (ou colônias) do
império britânico, mesmo com o posicionamento do representante britânico, a Grã-Bretanha ratificou a convenção. O
comércio de canabis não era representativo para o governo britânico, o país mais afetado com a regulação seria o Afeganistão
que fornecia para a Índia e Pérsia, mas este não estava representado na conferência, a maioria dos países europeus não tinham
nada a perder como a regulação da canabis, assim, mesmo sem maiores análises, o cânhamo foi incluído na lista de drogas
nocivas na Convenção e Genebra em 1925.

100
Idem. p.383.

101
RODRIGUES, Thiago, Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p.56-57
43

garantia maior força na formulação das proposições junto ao Comitê Central do ópio.102 Para
Thiago Rodrigues (fundamentado em McAllister)103, tal força permitiu que a Conferência de
1931 estabelecesse regras mais rígidas no sistema comercial entre os países.

Imagem 2 - o sistema mundial de importação e exportação de psicoativos em 1935

Modelo criado pela Comissão Consultiva do ópio em 1935 com base na Conferência de 1931. 104

O objetivo era restringir a escala comercial às necessidades médicas. Instrumentos


técnicos e dispositivos de controle estatísticos foram aprimorados, além de se estabelecer
medidas punitivas a quem não cumprisse com a Convenção. Entretanto, Antônio Escohotado,
que observara a ausência de países produtores como Rússia, Afeganistão e Bolívia, alertava
para a falta de consenso para aprovação de novas medidas. A impossibilidade de se chegar a
um acordo contribuiu para a criação de propostas ―farisaicas‖ como as de calcular as
necessidades ―lícitas‖ de consumo mundial.105

102
ESCOHOTADO, Antonio. op.cit. p.703

103
McALLISTER, William, Drug diplomacy in the twentieth century. Nova York, Routledge, 2000.

104
A imagem foi fotografada e digitalizada por mim, fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty, Lata 379/maço5805. Études et
documents relatifs au fonctionnament du systême des certificatstsd‟ importationet des autorisationsd‟ exportation.
105
ESCOHOTADO, Antonio. idem.
44

Os países passariam e reunir informações sobre suas necessidades de consumo médico


interno, levando em consideração a transformação do produto bruto (como o ópio) em
derivações, calcular as necessidades anuais e volume de reserva nos estoques. As importações
e exportações obedeceriam a critérios bem delimitados, com certificações especiais e um
complexo sistema de controle das informações. A partir das informações colhidas caberia ao
Comitê Central Permanente elaborar um relatório anual indicando para cada país ou território
as avaliações das necessidades de consumo para o ano procedente contendo os seguintes
critérios:
a) Avaliações de cada droga;
b) A quantidade de cada droga consumida;
c) A quantidade de cada droga fabricada;
d) A quantidade de cada droga transformada;
e) A quantidade de cada droga importada;
f) A quantidade de cada droga exportada;
g) A quantidade de cada droga empregada na confecção das preparações para cuja
exportação as autorizações não são exigidas.

A Conferência de 1931 estabeleceu também uma cláusula que exortava aos países
signatários a criar no plano doméstico, estruturas de controle e fiscalização do uso e o
comércio de drogas consideradas legais, assim como de repressão às ilegalidades segundo as
últimas convenções. Tal formato de racionalidade, segundo Thiago Rodrigues, abriu a ―trilha
para a institucionalização de medidas penais, no plano internacional, começou a ser aberta em
1931.‖106 Não foi coincidência que a Conferência de 1936 resultou no tratado que recebeu o
título de ―Convenção para Repressão do Tráfico Ilícito de Drogas Nocivas‖. No artigo II do
referente tratado, os países deveriam se comprometer em elaborar ―disposições legislativas
necessárias para punir severamente, e, sobretudo com pena de prisão ou outras penas
privativas de liberdade‖ quem ousasse contrariar os dispositivos legais fundamentados na
convenção. Tais penalidades seriam aplicadas para os seguintes atos:
a) Fabricação, transformação, extração, preparação, detenção, oferta, exposição à venda,
distribuição, compra, venda, cessão sob qualquer título, corretagem, remessa, expedição
em trânsito, transporte, importação e exportação dos estupefacientes;
b) Participação intencional nos atos mencionados neste artigo;
c) Sociedade ou entendimento para a realização de um dos atos acima enumerados;
d) As tentativas e, nas condições previstas pela lei nacional, os atos preparatórios.107

Toda essa sofisticação dos procedimentos e técnicas governamentais no âmbito das


políticas sobre drogas devem ser compreendidas para além das drogas em si. Tratam-se antes,

106
RODRIGUES, Thiago, Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p.58

107
NAÇÕES UNIDAS, Convenção para Repressão do Tráfico Ilícito de Drogas Nocivas. Genebra 1936.
45

da governamentalização do estado e da estatização da vida, nos liames do biopoder.108 Tais


práticas regulatórias formuladas a partir de um tipo específico de racionalidade, procuravam
engendrar no corpo social sujeitos dóceis e produtivos. Thiago Rodrigues, a partir das
reflexões de Foucault, propõe que tal expansão da capacidade de governamentalização do
Estado para gerir as condutas das populações canalizavam uma série de estratégias, dentre
elas a:
Extrapolação da autoridade médica do estrito campo de combate às doenças para ampla
intervenção saneadora da sociedade, que disciplinariza o regime urbanístico, os espaços de
trabalho, os hábitos de higiene e os costumes sociais referentes aos cuidados de si. A
ingerência sobre a prática de se intoxicar abria um flanco importante nos termos de
governamentalidade: o rastreamento de desejos de tal maneira difundidos possibilitava a
disciplinarização de relações íntimas, impondo aos indivíduos, também neste campo, padrões
de normalidade.109

A participação do governo brasileiro junto aos organismos multilaterais implica, neste


sentido, sua inserção nas relações de poder cujas práticas discursivas apresentadas como
verdades irrefutáveis deveriam ser implementadas como único meio de garantir os avanços
socioeconômicos da nação. As condições políticas de possibilidades para a emergência de um
sistema de regulação, controle e criminalização do uso de psicoativos no país se deu mediante
a convergência e estreitamento de conjunturas históricas que permitiram a produção de uma
série de enunciados constituindo um discurso específico sobre drogas.
Cabe ressaltar que as relações diplomáticas na perspectiva proposta por Michel
Foucault são instrumentos dessa nova racionalidade. Segundo essa perspectiva a nova razão
governamental não objetivava apenas a conservação do Estado, mas a preservação de certas
relações de forças. Esta só pôde ser desenvolvida por meio de dois grandes conjuntos
estratégicos: o dispositivo diplomático-militar e o dispositivo policial. Neste sentido, a
diplomacia assim como a guerra tem por função o equilíbrio entre os Estados, as missões
diplomáticas não estão mais preocupadas com o direito de herança dos príncipes, é uma
―física dos Estados‖, não mais o direito dos soberanos que irá nortear as relações
internacionais. Em função disso, escreveu Foucault:

Vê-se aparecer a criação do que ainda não se chama de missões diplomáticas, em todo caso a
organização de negociações praticamente permanentes e a organização de um sistema de
informação sobre o estado das forças de cada país. 110

108
VIEIRA, Ana Lúcia. ―A colaboração lhe bate à porta...”: Visitadoras sociais e a política de normalização de corpos e
mentes de operários e operárias de uma indústria têxtil no Rio de Janeiro (1944-1953). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. p.12

109
RODRIGUES, Thiago, Política e drogas nas Américas. São Paulo: EDUC/FAPESP, 2004. p.34

110
FOUCAULT, M. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 397.
46

O equilíbrio que se busca é porque os Estados, nessa nova forma de compreensão,


estão em posição de concorrência, desta forma, o dispositivo diplomático-militar é colocado
em prática quando o equilíbrio está comprometido. Quando um Estado se coloca em posição
muito superior a outro é necessário que sejam tomadas medidas para a retomada do equilíbrio.
Foucault aponta que é a partir do século XVI que a organização consciente de um tipo de
diplomacia permanente entre os Estados, pode ser identificada, um instrumento político que
não é mais uma unidade imperial, tão pouco uma unidade eclesiástica, mas a ideia de uma
―verdadeira sociedade das nações‖.111 Embora nesta analise sobre a constituição de uma nova
razão de Estado, o que está em jogo é a própria constituição da Europa, isto é, o equilíbrio da
balança europeia. Todavia, esta nova racionalidade se estendeu e se desenvolveu nos séculos
seguintes, é nesta perspectiva que este trabalho procura compreender as negociações que
envolveram a regulamentação do comércio e consumo de psicoativos no mundo ocorreram.

1.5 O Brasil nas conferências:

Há na historiografia brasileira muitas lacunas sobre a participação do Brasil nas


Convenções Internacionais do Ópio. No caso específico brasileiro, no que tange o
envolvimento do governo nas ações que procuravam regulamentar o comércio e consumo de
ópio e outros alcaloides no mundo, esta relação teve início em 1912, mais precisamente em
março de 1912 quando o governo holandês encaminhou um convite ao governo brasileiro para
que este designasse um plenipotenciário, incumbido de assinar o protocolo suplementar da 1ª
Conferência de Haia. A Conferência Internacional do Ópio se deu em três encontros, todos
em Haia. A primeira entre 1 de dezembro de 1911 e 23 de janeiro de 1912, a segunda entre os
dias 1 e 9 de julho de 1913 e a terceira e última Conferência foi realizada entre os dias 15 e 25
de junho de 1914. O Brasil não participou da 1ª Conferência, esta contara com a participação
de representantes de 12 países: Alemanha, Estados Unidos da América, China, França, Grã-
Bretanha, Itália, Japão, Países-Baixos, Pérsia, Portugal, Rússia e Sião. O convite que o
governo brasileiro recebera estendeu-se a outros países, segundo o relatório ministerial de
1916, até aquele ano, 31 países teriam assinado o protocolo das ―potencias não representadas
na conferência de 1911-1912‖.112

111
Idem, p.406.

112
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, relatórios ministeriais, 1916, p.103.
47

Quanto à participação do país na 2ª e 3ª Conferência do Ópio, fora designado para


representar o governo brasileiro, o embaixador José Pereira da Graça Aranha. O
plenipotenciário, que na ocasião era cônsul na Holanda, assinou o protocolo em 16 de outubro
de 1912. Em seguida tomou medidas cabíveis para oficializar a assinatura na Conferência,
enviando ao congresso os termos do protocolo com a mensagem presidencial em 25 de julho
de 1913, sendo o mesmo aprovado em 3 de julho de 1914 e sancionado conforme o decreto
nº. 2.861 de 8 julho de 1913. Em 4 de novembro de 1914 fora assinada a carta de ratificação
brasileira e encaminhada para Haia de modo que esta fosse depositada junto ao Ministério das
Relações Exteriores daquele país. O resultado final foi o Decreto de promulgação nº 11.481
publicado no dia 7 de abril de 1915 no Diário Oficial da União nº79, que aprovava para todos
os efeitos no território nacional, medidas ―tendentes a impedir os abusos crescentes do ópio,
da morfhina e seus derivados, bem como da cocaína.‖113
Ficou a cargo do Ministério das Relações Exteriores o gerenciamento da política
brasileira de drogas. O mesmo encaminhou os documentos referentes ao Ministério da Justiça
e Negócios Interiores que por sua vez solicitou pareceres por parte da Diretoria de Saúde
Pública e da Academia Nacional de Medicina. A solicitação objetivava saber que medidas
legislativas deveria o Brasil proceder para colocar em prática a Convenção. Os pareceres114
foram emitidos respectivamente pelo Dr. Alfredo da Graça Couto, Diretor Geral Interino de
Saúde Pública em 8 de maio de 1914 e pelo Dr. Miguel Couto, Presidente da Academia
Nacional de Medicina em 21 de maio do mesmo ano. Esta última teria organizado uma
Comissão para elaborar tal parecer composta pelos médicos Dr. Alfredo José Abrantes
(relator), Augusto Cesar Diogo e Olympio da Fonseca. A intenção era que estes pareceres
contribuíssem para enriquecer a discussão no congresso acerca do tema, mas conforme
informou o Ministério das Relações Exteriores, no Aviso de 7 de julho de 1914, os pareceres
haviam chegado com atraso, não sendo possível serem aproveitados, pois os referidos atos da
Conferência já tinham sido aprovados no congresso. Conforme o relatório do Ministro Lauro
Müller em 1915, a sugestão de tais medidas deveriam ser encaminhadas ao congresso para
que estas fossem aproveitadas na elaboração de leis visando efetivar os dois atos
promulgados, a saber: Convenção Internacional do Ópio, assinada em 23 de janeiro de 1912 e
Protocolo de encerramento da Conferência assinado em 16 de outubro de 1912.

113
Diário Oficial da União - Seção 1 - 07/04/1915, Página 3597.

114
Não foi possível encontrar os respectivos pareceres para saber seus conteúdos.
48

Conforme a documentação oficial, na 2ª Conferência realizada em julho de 1913,


houve um consenso em torno de uma data limite para que todas as partes assinassem os atos
estabelecidos pela Convenção, esta data seria o dia 31 de dezembro de 1913, caso até a
presente data faltassem assinaturas, o que impediria de que tal Convenção entrasse em vigor,
seria convocada nova conferência. O que acabou se confirmando com a convocação para 3ª
conferência celebrada em junho de 1914. Com a participação de 30 delegados representando
seus governos, chegou-se a um acordo de que seria possível fazer vigorar a Convenção
mesmo sem a assinatura de todos os países envolvidos, e que após dezembro de 1914, aqueles
signatários que quisessem poderiam fazer valer a Convenção em seus países. Contudo, ao
que tudo indica tal prática não se efetivou na maioria das nações representadas, como foi no
caso do Brasil. O ministro das relações exteriores, Lauro Müller, afirmara, em seu relatório no
ano de 1915, que a Convenção ainda não havia entrado em vigor, ―isto é, não está sendo
executada, entre as potências nella interessada.‖[sic]115 Para estabelecer a vigência da
Convenção seria necessário a elaboração de um protocolo especial, mas o governo brasileiro
absteve-se de subscrever tal protocolo, segundo o ministro, isto deu-se por não ter “sido aqui
tomadas as medidas administrativas e votadas as legislativas, necessárias para a eficaz
execução da referida Convenção.”116 A Convenção de Haia de 1912 em seu artigo 24, §2º,
delimitava prazos para redação e apresentação de propostas referentes à legislação
regulamentadora, o mesmo artigo afirmava que a data para que tais regulações entrassem em
vigor seria objeto de um acordo entre as potencias envolvidas.
A II Conferência Internacional do Ópio ocorreu em duas etapas, os trabalhos iniciaram
em novembro de 1924 com a participação apenas dos países produtores e terminaram em 25
de fevereiro de 1925 com a participação de outros países, num total de 41 Estados
representados dentre estes o Brasil. O governo brasileiro enviou apenas dois delegados, os
médicos Pedro Pernambuco Filho e Humberto Gotuzzo, estes teriam elaborado um relatório
sobre as conferências incluindo informações sobre suas atividades nas mesmas.117 Os

115
Brasil, Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1914-1915, p.345.

116
Ibid. p.347 (grifo é meu). Tais medidas, retardadas pela 1ª Guerra Mundial, só foram tomadas com a criação da Lei 4.294
de 6 de julho de 1921, a Convenção do Ópio de 1912-14, embora tenha sido ratificada pelo governo brasileiro, não vigorou
no Brasil até 1921, conforme pode-se ler no relatório ministerial de 1916: ―a convenção ainda não entrou em vigor, (grifo
não é meu) isto é, não está sendo executada pelas potencias nella interessadas, apesar de já ter sido ratificada por algumas.
{...} Embora tenha sido promulgada no Brasil, pelo Decreto nº 11.48, de 10 de fevereiro de 1915.‖ BRASIL, Ministério das
Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1916, p.106.

117
Há nos arquivos do Palácio do Itamaraty no Rio de Janeiro uma relação de documentos que foram enviados aos arquivos
em Brasília, dentre estes lê-se: Liga das Nações. 2ª Conferência Internacional do Ópio (Genebra – de 17 de novembro de
1924 a 19 de fevereiro de 1925). Representantes do Brasil: Drs. Pedro Pernambuco Filho e Humberto Gotuzzo. Relatório
desses delegados sobre a conferência. O referido detalha a troca de telegramas e ofícios entre os delegados e o ministério das
49

relatórios ministeriais de 1925 1926 revelam que os representantes brasileiros participaram


ativamente dos debates, ―defendendo a these da limitação da produção ás necessidades
médicas e scientificas.‖ [sic]118 O texto ao mesmo tempo em que fazia uma elogiosa
referência a lei brasileira de 1921, como ―bastante rigorosa em relação as importações e
emprego do uso de substâncias tóxicas, defendia que somente com a participação conjunta de
todos os governos seria possível obter resultados ―apreciáveis‖. Por fim, o relatório também
ressaltava os grandes interesses em jogo durante as secções, o prolongamento dos debates em
função das divergências entre a delegação da Grã-Bretanha e dos EUA em função de se
estabelecer um prazo limite para forçar os países produtores em assegurar a efetividade das
exportações. O texto defendia a modernização dos meios de fiscalização119, mas concluía que
tais interesses comerciais ameaçavam o sucesso da política de controle.
A Convenção para Limitar a Fabricação e Regulamentar a Distribuição de
Estupefacientes de 1931, foi promulgada pelo Decreto nº 113 de 13 de outubro de 1934
durante o chamado ―Governo Provisório‖ de Getúlio Vargas. O único relatório ministerial a
mencionar as atividades brasileiras no que tangia a política mundial de drogas foi o de 1934,
entretanto o documento, que sob o título ―Luta internacional contra as toxicomanias‖ se limita
apenas em mencionar que o governo brasileiro vinha mantendo regularidade em colaborar
com a Sociedade das Nações no que se referia ao serviço repressivo internacional contra o
tráfico ilícito e o abuso de entorpecentes.120
Entretanto a partir de 1935 o governo brasileiro toma uma iniciativa que lhe dará
condições de dinamizar os mecanismos de controle internos quanto à questão comércio de
importação e exportação de entorpecentes, assim como a fiscalização do consumo de tais
substâncias. Um projeto que nasceu no interior do Palácio do Itamaraty em agosto de 1935 e
adquiriu força nacional para se tornar a mais alta instância sobre a política brasileira de
drogas: A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. A CNFE emerge, portanto,

relações exteriores durante as reuniões da conferência. Enviei uma cópia do documento para Brasília e em dezembro de 2012
estive por dois dias nos arquivos do Palácio do Itamaraty, e, embora tenha encontrado alguma documentação sobre a
participação brasileira no novo sistema mundial de controle de drogas, o relatório dos representantes brasileiros não foi
localizado. Cabe ressaltar ainda, que apesar dos elogios a atuação de ambos os delegados, os relatórios ministeriais entre a
Convenção de 1925 e a de 1931, não fazem menção a iniciativa ou participação brasileira na inclusão da maconha na lista de
drogas nocivas.

118
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais ano de 1926, p.64

119
Apesar disso, um oficio de 17 de agosto de 1929 enviado pelo então Ministro das Relações Exteriores, Octávio
Mangabeira ao Ministro da Justiça, Augusto Vianna, revelava a fragilidade do governo brasileiro quanto as condições
técnicas para elaboração das estatísticas sobre o consumo de psicoativos, segundo o documento, entre os anos de 1921 e 1927
o Brasil só havia enviado um relatório anual (em 1922) ao Comitê Central do Ópio.

120
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1934, p.20
50

em meio ao Governo Constitucional de Getúlio Vargas, mas foi durante os anos do Estado
Novo que intensificou suas ações. Dentre as questões que procurei responder nos capítulos
seguintes no que se refere a sua constituição, destaco aqui, pelo menos duas: a quem se dirigia
e a que objetivos procurava atender?
51

2 O PROIBICIONISMO E A NOVA RAZÃO DE ESTADO: A COMISSÃO


NACIONAL DE FISCALIZAÇÃO DE ENTORPECENTES – 1936/1941

2.1 A formação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes: internalização


e sofisticação das técnicas de controle

Em 1935 o Ministro das Relações Exteriores, José Carlos Macedo Soares, emitiu um
ofício com data de 8 de fevereiro, endereçado ao então Ministro da Educação e da Saúde,
Gustavo Capanema, cujo título do mesmo lê-se: ―Estupefacientes. proposta de systematização
do serviço repressivo‖, contendo uma cópia em anexo da nota circular de 6 de dezembro de
1934, produzida pelo secretariado geral da Liga das Nações convocando aos países a ingressar
na luta contra a ―propagação da toxicomania e contra o trafico illicito dos estupefacientes‖.
Este documento, apesar de conter um pouco mais que três laudas, é de suma importância para
compreendermos as mudanças que viriam ocorrer no âmbito da política brasileira, ante a
emergência de um novo modelo internacional de política sobre drogas. O título do documento
indica de modo claro o que se buscava na época, isto é, a ―systematização do serviço de
repressão‖. No ofício, Macedo Soares chamava atenção do colega Capanema, para o que ele
considerava uma das questões mais importantes ―entre as medidas que vêm sendo adoptadas
no empenho de debelar o flagelo social da toxicomania‖, uma referência à criação de uma
estrutura interna, tais medidas, viriam atender algumas exigências da convenção de Genebra
de 1931, assinada pelo Brasil. O ministro alertava para o fato do Departamento Nacional de
Saúde Pública, devido à ausência de uma organização específica, nem sempre conseguir de
modo conveniente, executar as decisões adotadas nas convenções internacionais.
Tais deficiências e demora nas promulgações originavam a insatisfação e reclamação
de outros governos e dos organismos internacionais, além de transformar parte dos textos
acordados em ―letra morta‖. Macedo Soares recomendava que no Brasil fosse articulado pelo
Departamento Nacional de Saúde Pública e outras autoridades uma reunião na qual ficasse
consignada ―as bases de um serviço coordenado entre vários Ministérios e repartições
interessadas‖. A ideia era que tal ―serviço‖, harmonizasse todas as regras vigentes referentes
às execuções das Convenções Internacionais e das legislações domésticas. A criação de uma
organização assim constituiria um modelo de ―conducta administrativa dos mais oportunos
para o bom funcionamento da administração pública em um assumpto de tanta
52

magnitude‖[sic]. Por fim, Macedo Soares oferecia uma sala com instalações necessárias no
Itamarati para a implantação do referido órgão.121
A preocupação em instituir uma entidade capaz de aglutinar por meio de estatísticas,
relatórios sistematizados, com responsabilidade de fiscalizar, criar leis e normas, implicava
um novo entendimento, que significava não apenas centralizar as práticas e os discursos, mas
dar força e legitimação a tal feito. De início, vale dizer que a vigilância sobre o comércio e a
indústria das drogas não implicavam necessariamente o controle de preços do mercado de
psicoativos, esta recaía especificamente sobre os usos e consumos de tais substâncias,
portanto, uma vigilância sobre o corpo social; a população ou uma parte dela.
O momento em que o projeto de centralizar as ações de controle e repressão sobre o
consumo de drogas no Brasil ocorreu, é muito significativo e acontece, não por acaso, de
modo simultâneo à centralização da administração pública pelo Estado. Para a historiadora
Ana Lúcia Vieira, essas ações de governo no pós 1930 iam se constituindo não mais como:
[...] imposição tolerada, mas como ―necessidade‖ de manutenção e aperfeiçoamento da ordem
social, articuladas numa rede de saberes técnicos e científicos, apresentados como irrefutáveis
e imprescindíveis para a ―cura‖ de todos os males do país. (...) o que implicava mais que uma
submissão a um conjunto de regulamentações, mas a interiorização dessas normas por uma
incorporação da mensagem de ―salvação nacional‖.122.

No âmbito das políticas de saúde pública, a década de trinta é especial, sobretudo a


partir de 1937, com o início da implantação da chamada ―Reforma Capanema‖, que irá dar
novas diretrizes ao Departamento Nacional de Saúde (DNS). A nova racionalidade que
emergia na política brasileira estava vinculada a conjuntura internacional, como muito bem
demonstrou Cristina Fonseca, para quem houve um movimento duplo, quando no plano
interno a criação do chamado ―Estado Novo‖, contribuiu para a burocratização do Estado
dando ênfase nacionalista nas suas corporações, mas tais políticas adequavam-se:

às propostas então debatidas em fóruns internacionais, preconizadas em particular nos Estados


Unidos, e incorporavam as prioridades de ação pública em saúde defendidas em congressos e
conferências patrocinados pela Oficina Sanitária Pan-Americana.123

121
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores, LA/40/612.4 (04).

122
VIEIRA, Ana Lúcia. “A colaboração lhe bate à porta...”: Visitadoras sociais e a política de normalização de corpos e
mentes de operários e operárias de uma indústria têxtil no Rio de Janeiro (1944-1953). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012. p.60

123
FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1930-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p.176.
53

Não foi de outra forma com a questão das drogas. As iniciativas em atender a
convenção de Genebra (1931), às vésperas de outra que viria (Convenção pela repressão do
tráfico ilícito de drogas nocivas; Genebra-junho de 1936), visava o alinhamento do Brasil às
políticas defendidas pelos EUA. Este posicionamento por parte do governo brasileiro em se
alinhar aos EUA teve início a partir de 1920 e pode ser explicado, como sugeriu Luiz Alberto
Muniz Bandeira, pelos primeiros empréstimos que o Brasil contraiu com os Estados
Unidos124. Nas relações comerciais, dentre os produtos brasileiros exportados do Brasil para
os EUA 97% entravam livre de impostos, em 1934 a balança comercial pendia para o lado
brasileiro, mas o governo estadunidense forçava para a assinatura de um tratado de
reciprocidade. Em 1935, ainda de acordo com o autor, ―a situação financeira do Brasil
caminhava para o caos, nada menos que doze países bloqueavam as divisas resultantes das
exportações brasileiras‖.125 Entre os anos de 1936 e 1937 os EUA tinham aumentado em
130% suas exportações para o Brasil. Foi com esse pano de fundo que teve início a
estruturação da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE), criada pelo
decreto nº 780 de 28 de Abril de 1936.
A criação da CNFE estava imbricada a um processo de sofisticação da política
mundial proibicionista, esta visava inovar nos instrumentos de controle e fiscalização do
consumo mundial de psicoativos. É neste sentido que no relatório ministerial de 1935,
Macedo Soares revela que o ―Comitê Nacional de Entorpecentes‖ vinha reunindo-se
regularmente na sede da Divisão de Atos, Congressos e Conferências Internacionais no
Palácio do Itamaraty. O ―Comitê‖, inicialmente, foi composto por um representante do
Ministério da Educação e Saúde Pública, Relações Exteriores, Justiça, Fazenda, Trabalho e
Agricultura, além de um representante da Polícia do Distrito Federal, pelo Procurador dos
Feitos da Saúde Pública e por um ―médico especialista, proprietário de um estabelecimento
hospitalar para tratamento de toxicômanos‖.126 O texto, assinalava que o simples contato
semanal entre os representantes já gerava resultados positivos quanto a ―cooperação para a

124
No primeiro empréstimo, contraído em 1921, o Brasil teria conseguido 50 milhões de dólares, dando como garantia as
rendas dos impostos de consumo e do selo além das rendas aduaneiras, no segundo empréstimo, em 1922, o governo
brasileiro contraiu mais 25 milhões de dólares, a primeira dívida tinha 20 anos para o resgate e a segunda, 30. BANDEIRA,
Luiz Alberto Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2007. p. 290.

125
Idem. p.346

126
O cargo de ―médico especialista‖, inicialmente parece ter sido ocupado por Pedro Pernambuco Filho, seu nome aparece
nas planilhas de pagamentos de custeio por comparecimento às seções ordinárias, mas não foi possível precisar por quanto
tempo. BRASIL, Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1935, p.15
54

repressão effectiva desse terrível mal‖, revelava também um ambicioso objetivo sobre as
finalidades para as quais o Comitê teria sido criado:

Coordenar o serviço de fiscalização e de repressão do uso ilícito de drogas nocivas dos


diversos órgãos officiaes ou não, entre si, e destes com vários organismos technicos da Liga
das Nações; assegurar a unidade e o desenvolvimento desses mesmos serviços e zelar pela
execução dos compromissos assumidos pelo Brasil em virtude de actos internacionaes;
proceder a estudos, inquéritos e pesquisas sobre os vários aspectos do problemas social das
toxicomanias; sugerir ao Comité permanente da Liga das Nações quaesquer medidas ou
inovações que julgar oportunas na repressão do mal, visando introduzi-las nas Convenções
internacionaes relativas a entorpecentes, coordenar a acção solidaria dos paizes vizinhos e,
finalmente, propor a consolidação geral das leis e disposições vigentes em uma só lei mais
accorde com compromissos internacionaes e com as necessidades e condições internas. (Grifo
meu)127

Em 1936, o Ministro Macedo Soares publicava em seu relatório que o ―Comité


Nacional de Entorpecentes‖ (que passou a ser Comissão Nacional de Fiscalização de
Entorpecentes - CNFE) se reuniu assiduamente em caráter oficioso entre 26 de agosto de
1935 a 26 de abril de 1936, a fim de elaborar um anteprojeto de lei que consolidaria ―tudo o
que existe sobre a matéria de entorpecentes‖. O anteprojeto foi concluído e encaminhado ao
Congresso em agosto de 1937.
Conforme o artigo primeiro do anteprojeto que regulamentava a Comissão, esta tinha
por finalidade ―fixar a cooperação de todos os órgãos encarregados da fiscalização do
comércio e do uso de entorpecentes e da repressão do seu tráfico e usos ilícitos.‖128Na
sequência, o segundo artigo indicava que a CNFE deveria ter caráter consultivo do Ministério
das Relações Exteriores e do Ministério da Educação e Saúde. Caberia a ela velar pelo
cumprimento das leis nacionais, estabelecer normas e critérios para as importações e
exportações de entorpecentes, criar as Comissões Estaduais, representar o Brasil nas
convenções internacionais referentes à política mundial sobre drogas, elaborar estatísticas,
relatórios trimestrais e enviá-los ao Comitê Internacional do ópio, fiscalizar os
estabelecimentos comerciais, dentre outros.
Foi devido a estas competências que todo um aparato legal se constituiu com vista a
uma governamentalização das práticas e dos usos de psicoativos. A constituição da CNFE
representou a estruturação e organização dos dispositivos de gestão internacionais em solo
nacional, um avanço em direção a um projeto de políticas públicas sobre drogas, que se

127
Ibid. p.16

128
O Decreto-Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938 em seu artigo 44 lê-se: terá a seu cargo o estudo e a fixação de normas
gerais, de ação fiscalizadora sobre o cultivo, extração, produção, fabricação, posse, oferta, venda, compra, troca, cessão,
transformação, preparo, importação, exportação, reexportação, bem como repressão do tráfico e uso ilícito de drogas
entorpecentes, incumbindo-lhe todas as atribuições decorrentes dos objetivos gerais, visados pelo referido decreto, bem
como zelar pelo fiel e cabal cumprimento da presente lei.
55

seguiu nas sucessivas intervenções na economia dos usos e consumos de determinadas


substâncias, reprimindo o comércio ilegal, normalizando e estabelecendo a legalidade e a
ilegalidade de tais usos e consumos. Ancorado na racionalidade do estatuto médico-jurídico, a
CNFE construiu um ordenamento que constituía sujeitos criminalizados fixando e
sistematizando os limites entre a mania e a doença. A importância que esta instituição de
caráter governamental tem no estudo da história da criminalização das drogas no Brasil é
significativa, seja pelo seu status normalizador, ou pela incubência de gestão e governança da
sociedade no que dizia respeito às drogas.
Entre as primeiras ações da Comissão estava o envio de representantes à Convenção
de Genebra em 1936. O órgão indicou para compor a delegação brasileira, o Dr. Pedro
Pernambuco Filho, diretor do Sanatório de Botafogo e o delegado Dr. Demócrito de Almeida,
"especialista em direito e jurisprudência, no que se refere aos tóxicos".129 Apesar de serem os
indicados, conhecidos especialistas da matéria, o governo brasileiro não seguiu a
recomendação da Comissão, enviando para Genebra um representante que se achava mais
próximo. Assim, foi designado o embaixador Jorge Latour, único representante brasileiro, que
participou da Convenção para a repressão do tráfico ilícito de drogas nocivas, em Genebra
entre os dias 08 e 26 de junho de 1936. O Sr. Jorge Latour, que era na ocasião Embaixador em
Varsóvia, não tinha qualquer experiência sobre o tema, mesmo assim, acabou elaborando um
relatório130 com as principais discussões ocorridas durante a Convenção. Contendo 40 páginas
mais os anexos, o documento fora dividido em cinco partes.131 Nele o Embaixador brasileiro
fez uma série de considerações sobre as "tensões" que envolveram os debates, apresentando
as forças divididas em dois blocos de países, os que eram representados pelos EUA dentre os
quais incluíam-se Brasil, Chile, Canadá e Japão, e aqueles que eram contra, formando o
"Bloco do ópio", representados por Reino Unido, Índia, Holanda, França e Portugal.
O relatório indica a ausência de força política brasileira, o Sr. Latour em várias
situações não soube como proceder e em outras, por se considerar incapaz de opinar (como
nas matérias que envolviam o direito), se ausentou das reuniões. O embaixador, porém, não
foi meramente um comentador, em várias ocasiões fez observações e críticas, emitindo suas
opiniões e apresentando sugestões ao governo sobre a matéria. No ofício em que anexou o

129
Arquivo Histórico do Itamaraty. Ofício enviado ao Presidente da República em 1936. Lata 1892/Maço: 36266-36268
130
Conferência para o exame do projeto da Convenção Para a Repressão ao Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas; Relatório do
delegado do Brasil, 1936. Arquivo Histórico do Itamaraty - Ministério das Relações Exteriores.

131
O relatório apresentado fora dividido da seguinte forma: 1. Debates; 2. Críticas; 3. Cumprimento das instruções do
delegado do Brasil; 4. Diversos; 5. Notas a margem de Conferência.
56

relatório, afirmava que a Convenção de Genebra teria resultado no primeiro ―entendimento


penal que se consegue em benefício da repressão internacional do trafico illicito de
estupefacientes.‖ Entre as observações, o plenipotenciário descreveu suas impressões sobre o
comportamento da comitiva dos EUA; "embora com razão, eram intransigentes", intervia em
certos momentos ―com paixão" e em outros "pareciam indiferentes", a delegação, em certo
momento, deu-lhe a impressão de ―estar pronta para abandonar a conferência.‖ Sobre suas
considerações, o Sr. Latour defendia que para ―abolir o mal no mundo‖ os países deveriam ―ir
além da repressão e adentrar a fase da supressão‖, suprimir significaria regulamentar a
produção limitando-a ao uso médico e científico até chegar ao ponto de se poder controlar
―aritmeticamente a equação‖.132
O Brasil, segundo o relatório, destacou-se em uma matéria; as sessões 19ª e 20ª que
tratou da "creação de um órgão central em cada paiz"[sic], quando o delegado teve a
oportunidade de destacar o pioneirismo brasileiro com a criação da Comissão Nacional de
Fiscalização de Entorpecentes. Outra observação importante no relatório foi uma referência à
proposta feita pelo Uruguai, este, sustentava que os Estados deveriam monopolizar o
comércio das drogas. Tal proposta agradava ao plenipotenciário, mas com uma devida
radicalização, para o Sr. Latour, o monopólio deveria se estender também à produção.
O relatório elaborado pelo Embaixador em 1936, assim como os termos da
Conferência de Genebra, serviram de base para que os membros da CNFE formulassem o
Decreto-Lei nº891 de 25 de novembro de 1938. É importante salientar, que o referido
Decreto-Lei teve sua oficialização um ano após o Congresso Nacional ter sido fechado por
Getúlio Vargas133, tornando-se assim a primeira lei sobre drogas no Brasil em regime de
exceção. A importância do novo texto pode ser mensurada em alguns aspectos. Primeiro por
que o Decreto-Lei nº891 inaugura um novo momento na política proibicionista brasileira, não
só por ampliar a lista das substâncias proibidas, mas também por inserir novas técnicas e
estratégias de controle do comércio e consumo dos ―entorpecentes‖. A outra razão é que esta
serviu como marco legal por longos anos no Brasil e vigorou, apesar das alterações e das
promulgações das Conferências que se sucederam, até o início da década de 1970134.

132
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores. Conferência de Genebra sobre entorpecentes.
Varsóvia, 5 de agosto de 1936. (612.

133
Em 10 de novembro de 1937, tropas militares cercaram o Congresso Nacional, Getúlio Vargas dissolve os partidos e
anuncia uma nova Constituição, inaugurando o ―Estado Novo‖.

134
Entre as Conferências, a Convenção única de Nova Iorque 1961, promulgada no Brasil pelo decreto 54.216 de 27 de
agosto de 1964, certamente inicia um novo ciclo na racionalidade do proibicionismo mundial. Veja CARVALHO, Jonatas C.
57

No ofício em que apresentava o anteprojeto do Decreto-Lei lei nº891 de 1938 ao


Presidente da República, com data de 28 de abril de 1938, o então Ministro das Relações
Exteriores, Oswaldo Aranha, destacava o pioneirismo e apontava que a criação da CNFE em
muito ―antecede a medida preconizada pela nova Convenção do qual o Brasil é parte‖, numa
referência a Conferência de Genebra em 1936. O Decreto-Lei nº891 conferiu a Comissão,
poderes na condução e internalização da política proibicionista no Brasil, uma vez criada e
com o devido amparo legal para operar,135 a CNFE entra, ainda que com muitas dificuldades
estruturais, na luta para ―varrer o mal‖ do território nacional.

2.2. Aprimorando as técnicas: 1939-1941

A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, após 1938, passou a ser a


autoridade máxima no que dizia respeito às substâncias psicoativas no país, mas não estava
sozinha nessa missão. O Decreto-Lei nº 891/1938 instituiu a Seção de Fiscalização do
Exercício Profissional do Departamento Nacional de Saúde (DNS), como a ―única repartição
autorizada a conceder certificados e autorização de importação, exportação e reexportação de
substâncias entorpecentes‖136. O texto indicava que a execução do projeto seria uma ação
conjunta entre o Ministério das Relações Exteriores, através da Comissão Nacional de
Fiscalização de Entorpecentes e o Ministério da Educação e Saúde Pública por meio do
Departamento Nacional de Saúde. Neste sentido, não se pode analisar a constituição e
consolidação da CNFE sem entender como os procedimentos e técnicas se imbricavam em
uma rede que envolvia o DNS e a Seção de Fiscalização do Exercício Profissional (SFEP)
criada em 1921, as delegacias especiais, instituições médicas de tratamentos aos toxicômanos
e a própria Comissão.

A América Latina e a criminalização das drogas entre 1960 e 1970: Prenúncios de outra guerra por outra América. 2011.
Disponível in: http://www.neip.info/index.php/content/view/3098.html

135
Apesar de sua regulamentação só ter sido efetivada pelo Decreto-Lei nº 3.114 em março de 1941.

136
Decreto-Lei nº 891de 25 de novembro de 1938: Capítulo II: Art.4º.
58

Organograma 1 - Organização da política nacional de drogas entre os anos de 1938-1941

Esta interação entre o político e a medicina, presente nas políticas de saúde pública,
configura, de acordo com Foucault, uma ―estatização do biológico‖, dito de outra forma, uma
biopolítica da espécie humana.137 A biopolítica conforma um conjunto de tecnologias,
estabelecendo mecanismos reguladores, isto é, a ―bioregulamentação do Estado‖, esta tem
como alvo principal a população, o que se procura é fixar estados globais de equilíbrio, uma
espécie de homeostase social.138 A biopolítica é uma tecnologia que se ocupa do corpo social,
visando a saúde da população por meio da associação do saber médico com a sociologia, a
demografia, e a estatística, resultando na medicina social. Tal saber atravessa a sociedade por
meio de diversas instituições, como departamentos de saúde pública dos Estados, planos de
governo e legislação sanitária. Mas o saber biopolítico não é exercido sobre os indivíduos
diretamente, como afirmou Leon Fahir Neto, este busca estabelecer ―leis naturais‖, que
adquirem ―vínculos supostamente necessários que regem essas relações entre variáveis do
meio e o objeto visado pelo poder, a saúde da população‖.139
Foi neste sentido, que o proibicionismo presente no ordenamento jurídico brasileiro e
no discurso médico, ambos representados e institucionalizados na figura da CNFE,

137
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.
286.

138
Idem. pp. 293; 294

139
NETO, Leon Fahir. Biopolíticas: As formulações de Foucault. Florianópolis: Cidade Futura, 2010. p.47
59

consideram dever do Estado ―cuidar da hygiene mental e incentivar a lucta contra os venenos
sociais‖ [sic.]140.
Se a produção da bioregulamentação estava ao encargo da CNFE, coube a aplicação e
fiscalização das normas à Seção de Fiscalização do Exercício Profissional. O Decreto-Lei
nº891/1938 descrevia em seu artigo 24º as atribuições da SFEP:

Art. 24 - A Seção de Fiscalização do Exercício Profissional apresentará à Comissão Nacional


de Fiscalização de Entorpecentes, para que sejam enviados ao Comitê Central Permanente do
Ópio da Liga das Nações, dentro dos prazos fixados pelas Convenções Internacionais,
estatísticas trimestrais ou anuais referentes à importação, transformação, consumo e stock das
substâncias entorpecentes em todo o País, bem como a avaliação das quantidades dessas
substâncias, necessárias ao consumo do Brasil para o ano seguinte.
§ 1º - As autoridades sanitárias estaduais e do Território do Acre organizarão, por trimestres a
terminar no último dia de março, junho, setembro e dezembro, balanços da entrada,
transformação, consumo e stock das substâncias entorpecentes em todo o território sob sua
jurisdição, de acordo com o modelo e as instruções adotadas, enviando-os à Seção de
Fiscalização do Exercício Profissional até o décimo dia útil de maio, agosto, novembro,
fevereiro, respectivamente.
§ 2º - No Distrito Federal, os balanços trimestrais serão organizados pela Seção de
Fiscalização do Exercício Profissional.
§ 3º - De qualquer desses balanços e mapas serão remetidas cópias à autoridade policial
competente, sempre que esta o solicitar.141

Antes mesmo da criação da CNFE o DNS por meio da SFEP já encaminhava ao


Comitê Central do Ópio relatórios e mapas contendo balanços das exportações e importações,
assim como os dados do estoque nacional. Todavia, tanto o controle sobre as entradas e saídas
de tais substâncias, quanto a fiscalização da circulação destas no território nacional eram
deficitárias, como apontava uma circular do DNS, assinada pelo seu Diretor Geral, Dr.
Belisário Penna, ao Secretário Geral das Relações Exteriores, Cavalcanti de Lacerda, em maio
de 1932142. Ainda assim, o Secretário do Departamento Nacional de Saúde e Assistência

140
Decreto nº 780 de 28 de abril de 1936, que cria a CNFE, o texto de introdução segue assim: Considerando que cumpre á
União, aos Estados e aos municipios cuidar da hygiene mental e incentivar a lucta contra os venenos sociaes, ex-vi do art.
138 lettra g da Constituição Federal; Considerando a utilidade de dotar nossa administração com os elementos indispensáveis
á fiscalização legal e á repressão ao trafego e uso illicitos de entorpecentes, compativeis com o aperfeiçoamento dos serviços
congeneres em outros paizes, tendo em vista a solidariedade internacional; Considerando que o Brasil, signatario das
convenções internacionaes, que regulam a materia, não se acha em grão de 1hes dar cabal execução, por falta de competente
aparelhamento legal e administrativo; Considerando a necessidade de intensificar, em todo o territorio da Republica, a
fiscalização do commercio licito e a acção repressiva, solidaria entre as autoridades competentes, contra o uso e o trafico
illicitos de entorpecentes, repressão, que, sob os auspicios da Liga das Nações, tão proficuos resultados vêm apresentado, no
campo internacional e, internamente, em diversos paizes, compartes nas Convenções internacionaes de Haya de 1912 e nas
de Genebra de 1925 e 1931, referentes á materia; Considerando a conveniencia de revisão da legislação brasileira, neste
particular, de modo a facultar ás autoridades os meios indispensaveis á efficiencia de sua acção fiscalizadora e repressiva;
Considerando a opportunidade de fixar a cooperação de todos os orgãos encarregados da fiscalização do commercio de
entorpecentes e de repressão de seu trafico e uso ilícitos Considerando a necessidade de atribuir á coordenação das
actividades fiscalizadora e repressiva, caracter permanente, de forma a permittir e facilitar a estreita collaboração do Governo
brasileiro com os órgãos technicos internacionaes da Liga das Nações. [sic]

141
BRASIL, Coleção de Leis do Brasil, p.148, v.4, Catálogo de Saúde Pública: 28 de Novembro de 1938.
142
Em um trecho da circular, Belisário Penna admite as dificuldades: ―As divergências apontadas sobre a quantidade de
morphina e cocaína exportadas pela Alemanha, Suissa, França e Gran-Bretanha, com destino ao Brasil, de que trata a carta
em apreço, são motivadas pelo fato de, abrangendo as informações não só o porto do Rio de Janeiro como as referentes a
60

Médico Social, Dr. Phocion Serpa, publicou em 1936, um relatório das atividades do mesmo,
entre os anos de 1930 e 1935, onde atestava que a ―Inspetoria de Fiscalização do Exercício da
Medicina‖, teria visado naqueles cinco anos 10.441 receitas de entorpecentes e concedido 551
licenças para novas especialidades.143 Este é um indicativo para compreender a importância
da CNFE e do Decreto-Lei nº 891/1938, pois só no ano de 1939, a Seção de Fiscalização do
Exercício Profissional visou 9.576 receitas de entorpecentes.
O Decreto-Lei nº 891/1938 não só determinou novas atribuições a Seção de
Fiscalização do Exercício Profissional, como aquelas inseridas no seu artigo 24º, mas também
abriu caminhos para que esta se reformulasse objetivando a otimização de suas ações. Tal
reformulação aparece presente no anteprojeto para a criação do ―Serviço Nacional de
Fiscalização da Medicina‖ (SNFM), elaborado pelos médicos Ernani Agrícola, Décio
Parreiras e Roberval Cordeiro de Farias e apresentado ao Diretor do DNS, João de Barros
Barreto em 1939. Alegando o crescente volume de atribuições sob a responsabilidade da
Seção de Fiscalização do Exercício Profissional, ―para não tecer minúcias, assinalaremos
apenas os problemas do comércio de entorpecentes da indústria farmacêutica e da fiscalização
da medicina e profissões afins‖.144 O anteprojeto propunha como modo de dar conta da
demanda a criação de um Serviço Nacional, o mesmo trazia em seu artigo 4º uma divisão
contendo as seguintes seções: a) Seção Médica; b) Seção Farmacêutica; c) Seção
Odontológica; d) Seção de Fiscalização do Comércio e Uso de Entorpecentes; e) Seção de
Expediente145. A nova organização previa que a Seção de Fiscalização do Comércio e Uso de
Entorpecentes (S.F.C.U.E.), seria administrada pelo médico do SNFM e constituiria um órgão
executivo da CNFE. No ofício, cujo anteprojeto foi anexado, os médicos solicitavam a
contratação de funcionários ―exclusivamente nesse serviço‖, a fim de constituir um quadro
específico para o referido serviço, de modo que o SNFM pudesse ―desobrigar-se das múltiplas

outros portos, chegaram estas sempre com atraso, falhas e deficiência‖ [sic]. Arquivo Histórico Itamaraty. Secretaria de
Estado das Relações Exteriores. Correspondências Recebidas.

143
Anteprojeto para a criação do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina (SNFM): Centro de Pesquisa e
Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Capanema, Serie h – Ministério da Educação e Saúde – Saúde e
Serviço Social; Microfilme – rolo 59, fot. 1-930.

144
Idem.

145
O Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina foi efetivamente criado pelo Decreto-Lei nº 3.171, de 2 de Abril de 1941,
que reorganizou o Departamento Nacional de Saúde. Diário Oficial da União - Seção 1 - 04/04/194, Página 6815.
61

atribuições que lhe compete junto à Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes e ao


Comitê Central do Ópio da Sociedade das Nações‖ 146.
O projeto de criação de um Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina não era um
fato isolado no âmbito da saúde pública e não se dava exclusivamente pela necessidade de
assegurar a fiscalização do comércio e do uso de entorpecentes. Tratava-se antes de se fazer
confluir toda uma gama de serviços de saúde no país, porém atuando de modo
interdependente. Foi esta confluência, isto é, a adequação da política doméstica ao discurso
que se fazia nas conferências internacionais, que permitiu ao Estado brasileiro integrar a
questão das drogas no bojo das reformas implantadas entre os anos de 1937 e 1941.
Juntamente com o Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina mais onze foram criados:
Serviço Nacional da Lepra (SNL); Serviço Nacional da Tuberculose (SNT); Serviço Nacional
da Febre Amarela (SNFA); Serviço Nacional da Malária (SNM); Serviço Nacional da Peste
(SNP); Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM); Serviço Nacional da Educação
Sanitária (SNES); Serviço Nacional de Saúde dos Portos (SNSP); Serviço Federal de Águas e
Esgotos (SFAE) e Serviço Federal de Bioestatística (SFB). Segundo Cristina Fonseca, a
nacionalização de tais serviços, ―significou, antes de tudo, a centralização das atividades, e a
sua execução conforme normas e padrões estipulados pelos gestores federais.‖147 Se por um
lado, esses serviços emergem com o objetivo de ampliar as ações do governo estendendo-as
em todo território nacional, por outro, também modificaram o modelo de intervenção
sanitária, como afirmara André Vieira Campos, para quem a criação dos serviços implicou na
ruptura com a tradição da República Velha em celebrar contratos entre a União e os
Estados148.
A consolidação da estrutura organizacional e política da CNFE dependiam
fundamentalmente do fortalecimento do sistema de fiscalização nacional, o que implicava não
somente em subsidiar a Seção de Fiscalização do Exercício Profissional com uma legislação
forte, mas também criar condições físicas para a operacionalização das atribuições que esta
passou a ter a partir de 1938. Macedo Soares, já em 1936, por conta da criação da CNFE,

146
Anteprojeto para a criação do Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina (SNFM): Centro de Pesquisa e
Documentação da Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Capanema, Serie h – Ministério da Educação e Saúde – Saúde e
Serviço Social; Microfilme – rolo 59, fot. 1-930.

147
FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas (1939-1945): dualidade institucional de um bem público. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007. p.234.

148
O autor afirma que a ―velha prática‖ retornaria a partir de 1946 com a queda do Estado Novo. CAMPOS, André Luiz
Vieira. Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o serviço especial de saúde pública, 1942-1960. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 2006. p.258.
62

solicitara ao colega Capanema dois profissionais escolhidos cuidadosamente pelo chefe da


Seção, um datilógrafo e um farmacêutico, sob o argumento da necessidade de cumprir os ―os
dispositivos das ‗Instruções Sobre o Comércio de Entorpecentes‘, bem como para o
desempenho de compromissos internacionais junto ao Comité Central do Ópio‖.149 As
solicitações de pessoal e de melhores condições estruturais serão uma constante nos relatórios
elaborados pela SFEP.
Se o Decreto-Lei nº 891/1936 foi um marco da legislação proibicionista brasileira por
três décadas, muito se deve as ―instruções‖ elaboradas pela Seção de Fiscalização do
Exercício Profissional. As ―Instruções para Execução do Decreto-Lei nº 891 de 25 de
novembro de 1938‖, tornaram-se um dos mais importantes instrumentos normativos para
efetivação da política estatal sobre drogas psicoativas no Brasil. Composta por sessenta e
nove ―instruções‖, mais cinco anexos contendo tabelas de classificação de entorpecentes (de
A a E) e outros sete anexos contendo diversos tipos de mapas de controle (sete mapas), a
normativa objetivava regulamentar o comércio legal de ―entorpecentes‖ nos estabelecimentos
farmacêuticos, alfândega e instituições de pesquisa.
Entretanto era preciso fazer circular as ―instruções‘ em todo território, para isso, a
CNFE publicou 10 mil ―panfletos‖ contendo vinte oito páginas das ―Instruções gerais sobre o
uso e o comercio de entorpecentes – complementar ao decreto nº 891 de 25 de novembro de
1938‖, atitude que já havia sido tomada em relação à divulgação da lei. Os panfletos,
aprovados pela CNFE em março de 1939, só chegaram às mãos da equipe da SFEP em
dezembro, mas a burocracia não chegou a emperrar as ações, apenas retardavam um pouco
seus efeitos. Outra normativa que fora produzida nessa mesma época foi as ―Instruções
Relativas a Internação de Toxicômanos‖, dirigida a instituições hospitalares e clinicas
particulares, incumbidas de tratar indivíduos comprometidos pelo ―vício‖. Por fim, outra
normativa criada à parte das demais, determinava a padronização dos rótulos e embalagens
farmacêuticas com ―especialidades e preparações entorpecentes‖150. Toda essa circulação de
novos saberes configuravam uma pedagogia destinada à fixação de um tipo específico de
sujeição que procurava abranger todo o corpo social.151

149
Arquivo Histórico do Itamaraty, LA/193/612.4 (04), 17 de Junho de 1936.

150
CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. Arquivo Capanema, série h – Ministério da Educação e Saúde – Saúde e Serviço
Social; DNS – Seção de Fiscalização do Exercício Profissional, 1939; Fotolito, 0253.

151
Devido ao fato das ―instruções‖ serem um total de 69, ficaria inviável transcrevê-las todas aqui, por isso apresentarei
apenas uma nesta nota: 17 - Deverão ser indicados por escrito à autoridade sanitária nome do doente, residência,
justificação do emprêgo e data da aplicação da medicação entorpecente injetável, confiadas à guarda dos médicos para
63

A norma tem uma relevância significativa como procedimento técnico da biopolítica.


É ela que possibilita circular o saber/poder sobre o corpo e sobre a população. Foucault
identificou que a partir do século XIX os mecanismos disciplinares, ou seja, aqueles que
incidiam sobre os corpos individuais, passaram a articular-se com outro mecanismo; o
regulamentador, este incide nas massas humanas.152 Logo, tratava-se da coexistência de duas
séries: a série corpo – organismo – disciplina – instituições e a série população – processos
biológicos – mecanismos regulamentadores. Na sociedade normalizada, tais séries se cruzam
possibilitando a integração entre o aparelho disciplinar institucional e o aparelho
regulamentador estatal, tal integração permite, a um só tempo, produzir efeitos
individualizantes e controlar a massa viva. É neste sentido, que as ―instruções‖, associada ao
Decreto-Lei nº 891, tornaram-se um importante instrumento de biopolítica, pois ao mesmo
tempo em que estabeleciam uma conduta geral, por meio da legislação federal, também
definiam as condutas particulares, no interior das instituições como hospitais, farmácias
alopáticas e homeopáticas, laboratórios e outros serviços de saúde, fazendo com que médicos,
veterinários, farmacêuticos, dentistas, dentre outros passassem a assimilar os ―novos códigos
de conduta‖.
A farmácia foi o tipo de estabelecimento comercial mais atingido pelas ―instruções‖,
segundo o documento, as receitas só seriam aprovadas se fossem prescritas por um
profissional devidamente registrado na SFEP. A receita deveria ter um texto legível onde
constassem todos os dados do paciente e do médico, o ―profissional‖ deveria encaminhar uma
justificativa pela escolha da utilização pelo entorpecente à autoridade sanitária. Certos
entorpecentes (Grupos I e II, do Decreto-Lei nº 891/1936), deveriam ter sua venda registrada
em um livro cujo modelo era fornecido pela CNFE, os itens só poderiam ser duplicados no
livro mediante novo receituário. Além disso, deveria constar nos rótulos dos frascos que
contivesse entorpecentes o número de ordem da receita, nome do médico e data do aviamento.
Já os médicos e outros profissionais que se servissem de seus títulos para prescrever
substâncias psicoativas de forma indevida seriam responsabilizados criminalmente, podendo
pegar de três a dez anos de prisão celular, pagar entre 3.000$000 a 10.000$000 de multa, além
de ter suspenso seus direitos profissionais por dez anos.153 Conforme observou Tiago

aplicação de urgência. As receitas de entorpecentes a isso destinadas estão sempre sujeitas a VISTO prévio, limitarse-ão a
três ampôlas, e só serão atendidas quando apresentadas as indicações supra, referentes a prescrição anterior . [sic]

152
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,
2005. p.298.
153
Arquivo Histórico do Itamaraty, “Instruções para execução do decreto – lei nº 891 de 25 de novembro de
1938.‖AC/18/612.4 (04) /1939/Anexo 1º.
64

Rodrigues, a padronização do receituário ampliava o ―pacto médico-estatal‖, que legava aos


profissionais de saúde o monopólio sobre a prescrição legal de entorpecentes, ―ao passo que
os amarrava à estrita fiscalização do Estado‖.154 O tipo de controle que o Estado passa a
exercer estabelece penas mais severas para esses profissionais do que para aqueles que fazem
uso indiscriminado.155

Imagem 2 - Livro de registro das requisições de entorpecentes visadas.

Fonte: Arquivo Nacional.156

Há dois livros de registros de entorpecentes no Arquivo Nacional, um de 1940 e outro


de 1941. No cabeçalho de cada página constam as siglas e nomenclaturas do M.E.S. – de
―Ministério da Educação e Saúde‖; D.S.P. – de ―Departamento de Saúde Pública‖; e ao lado
―Secção de Fiscalização do Exercício Profissional‖, no canto esquerdo superior do cabeçalho

154
RODRIGUES, Tiago. Política e Drogas nas Américas. São Paulo. EDUC/FAPESP, 2004. p.143.

155
No artigo 33º lê-se: Se o infrator exercer profissão ou arte, que tenha servido para praticar a infração ou que tenha
facilitado - penas: além das supra indicadas, suspensão do exercício da arte ou profissão, de seis meses a dois anos. § 2 -
Sendo farmacêutico o infrator - penas: dois a cinco anos de prisão celular, multa de 2:000$000 a 6:000$000 - além da
suspensão do exercício da profissão por período de três a sete anos. (Decreto-Lei, nº 891/1938).

156
Imagem da página do livro de registros das requisições de entorpecentes visadas. (Foto minha):Arquivo Nacional,
Notação: SDE - 042/AM208 - D 9710 e 9711 - Notação: SDE - 042/AM208 - D 9710 e 9711.
65

encontramos escrito: Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Esses livros


tinham por função registrar os tipos e quantidades de entorpecentes adquiridos pelos
estabelecimentos farmacêuticos e a origem da compra, isto é, seus fornecedores. O modelo
fora fornecido pelo Comitê do Ópio e adaptado pela CNFE, nele deveria constar: a numeração
do receituário; a data com o dia, mês e ano; a descrição do entorpecente; a quantidade; os
dados do estabelecimento comprador, contendo o nome do responsável, o nome do
estabelecimento, o endereço e o estado; por fim, o nome do fornecedor. No exemplo aqui
usado (imagem 1), temos todo tipo de substâncias comercializadas, como ópio em pó e em
tintura, coca em folhas, extrato de cânhamo, morfina e codeína.
Retirado da população a autoadministração do uso de determinadas substâncias,
tornando tais usos ilícitos, se estes não contassem com a devida prescrição médica, logo
passíveis de penalização. A restrição imposta pela legislação de 1938 ampliou a lista de
produtos considerados ―nocivos‖, o que acarretou na formação do comércio clandestino dos
vários medicamentos presentes na lista de substâncias psicoativas. O Brasil informava ao
Comitê do Ópio, por meio de relatórios todas as apreensões realizadas em seu território, mas
também recebia do mesmo, relatórios contendo informações sobre apreensões de drogas
efetuadas pelos países signatários. Um ofício, com data de 10 de junho de 1939 emitido pelo
Dr. Roberval Cordeiro de Farias, comunicava ao Secretário Geral do Ministério das Relações
Exteriores, Cyro de Freitas Valle, a prisão em flagrante de Josefa Angela Gallo, efetuada no
dia 20 de maio daquele mesmo ano, no Hotel Cosmopolis, na Avenida Atlântica, nº240.
Josefa fora presa por ter sido encontrado em seu apartamento:

(...) uma caixa contendo quatro empoulas de ‗Octinum‘; uma idem contendo três empoulas de
‗cloridrato de Morfina; uma idem contendo uma empoulas de ‗Pantopon‘ e uma de ‗Sedol‘;
um tubo contendo comprimido de ‗Luminal‘; um vidro contendo parte de um líquido, com o
seguinte rótulo: ‗Guttes Nican‘ e um tubo de alumínio contendo cinco pílulas de um pó de cor
branca157.

Entre os produtos discriminados no comunicado, achavam-se aqueles que passaram a


fazer parte das chamadas ―especialidades farmacêuticas entorpecentes licenciadas‖, tratava-se
de produtos patenteados pela indústria farmacêutica, o Pantopon, comercializado pela Suíça
Roche S/A, era um produto a base de ópio, assim como o Sedol, comercializado pela Alemã
Merck. Já o Luminal, um barbitúrico à base de fenobarbital, usado para combater epilepsia,
chegou a ser motivo de debates na Academia Nacional de Medicina (ANM). Um relatório de
1929, o médico Dr. Coriolano, apontava para uma ―luminalomania‖, o que colocou o produto

157
Arquivo Histórico do Itamaraty, Ministério das Relações Exteriores – lata 612/4.
66

na lista, o conceito foi questionado pelo Dr. Adauto Botelho em 1936, para quem o Luminal
não apresentou em ―mais de vinte anos um único viciado‖158.
As apreensões feitas por outros países eram publicadas no ―Rapport Annuel‖, emitido
pelo Comitê Central do Ópio da Liga das Nações. Os relatórios de apreensão que estão no
Arquivo Histórico do Itamaraty, tendo em vista que a maioria veio dos Estados Unidos,
sugerem que ou este país era mais zeloso com a divulgação de suas informações, ou possuía
uma política de repressão muito mais ativa que o resto do mundo. Dentre todas as substâncias
mais apreendidas duas se destacavam; a maconha (marijuana, canabis) e o ópio. A maconha,
antes de ser proibida, sofrera forte taxação nos EUA a partir de 1937, seu uso era considerado
por parte da imprensa como ―coisa de mexicano preguiçoso‖, ou de negro.159 Por sua vez, o
ópio esta mesma imprensa chamava de ―perigo amarelo‖ numa referência aos chineses. Um
desses relatórios, produzido em 1939, informava que um jovem chamado Mehmet Aslan,
preso pela polícia Alexandrina no Egito, o que trouxe certo desconforto ao Itamaraty, gerando
uma sucessão de correspondências. Em 13 de janeiro de 1939, o embaixador do Brasil no
Egito, José Lavrador, endereçou ao Ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, um
ofício acompanhado de vários anexos, cujo conteúdo dizia respeito a troca de correspondência
entre o consulado brasileiro e a diretoria do ―Central Narcotics Intelligence Bureau‖ da polícia
de Alexandria. Mehmet fora condenado a cinco anos de prisão por ―contrabando de drogas
estupefacientes‖, o jovem de origem libanesa possuía passaporte brasileiro, sendo identificado
pela polícia alexandrina como brasileiro naturalizado. O cônsul José Lavrador, descobriu que
o rapaz teria conseguido seu passaporte em Beirute em 1936, este por sua vez, foi trocado por
um passaporte expedido em 1934 em Paris. O governo brasileiro tratou, desta forma, de alegar
que Mehmet Aslan estava há mais de cinco anos fora do país, portanto, teria perdido a
nacionalidade. Na verdade Mehmet não queria reivindicar sua nacionalidade, pelo contrário, o
jovem teria se declarado filho de libaneses, mas queria enviar seus pertences pessoais para o
Brasil, solicitou ao consulado que este pudesse enviá-los, o que lhe foi negado. Os
memorandos não explicitam o tipo de ―entorpecente‖ que o Mehmet estava
―contrabandeando‖, talvez vendesse ópio do Oriente para a Europa.

158
Boletim da ANM, ANO 107º, 1936. In. SILVA, M. de Lourdes. Drogas – da medicina à repressão policial: a cidade do
Rio de Janeiro entre os anos de 1921 e 1945. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, ano 2009.

159
A lei Marihuana Tax Act, criada em 1937, segundo HERER (1998), contribuiu para arruinar todos os produtos a base de
cânhamo. A rede de comunicação do jornalista William R. Hearst, com apoio de Harry Anslinger (Diretor do Federal Bureau
of Narcotics and Dangerous Drugs), atribuía todo o tipo de violência ao uso de maconha e de ópio, tratava-se de após a
revogação da lei seca, encontrar novos inimigos internos da nação.
67

As restrições ao comércio e ao uso de psicoativos trouxeram inúmeras dificuldades em


fazer circular legalmente tais substâncias. A burocracia emperrava e desestimulava os
negócios lícitos, fazendo brotar todo tipo de criatividade para burlar o sistema. Mas a
burocracia não era o único problema nesta época, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
impusera períodos de escassez no estoque de entorpecentes do mercado brasileiro. Os
importadores nacionais tinham como principal fornecedor, justamente a Alemanha. Produtos
como ópio, cocaína e morfina e seus derivados eram adquiridos de duas grandes indústrias
alemãs; Merck e Bayer. Outro fornecedor em potencial, a Roche S/A, com sede na Basiléia
(Suíça), encontrou grandes dificuldades de fazer chegar seus produtos ao Brasil.
Algumas correspondências entre CNFE e o Ministério das Relações Exteriores nos
anos de 1939 e 1941, tratam das dificuldades impostas pela guerra. Em uma dessas
correspondências o presidente da CNFE, Roberval Cordeiro de Farias, comunicava a Oswaldo
Aranha que um carregamento enviado pela Roche Farmacêutica (Basiléia - Suíça), ao passar
pela França ocupada, foi interceptado pelos alemães. Estes solicitaram que a empresa entrasse
em contato com o consulado alemão no Brasil confirmando que se tratava de mercadoria
devidamente autorizada pelo governo brasileiro. Outro caso, envolvendo a mesma Roche S/A,
mas dessa vez utilizando o porto de Roma, um carregamento contendo: 5 kg de cloridrato de
morfina, 10 kg de etilmorfina, 30 kg de codeína pura e 40 kg de fosfato de codeína,
necessitaram da intervenção do Ministério das Relações Exteriores, na correspondência o
presidente da CNFE alegava que ―sendo grande a falta de entorpecentes no mercado
brasileiro, muito agradeceria a vossa excelência o obséquio de determinar a embaixada do
Brasil em Roma a confirmação e liberação da mercadoria‖.160 O problema de abastecimento
provocado pela guerra foi tamanho, que em junho de 1940, Roberval Cordeiro de Faria
solicitou ao Ministro Macedo Soares que fosse modificado o §b do artigo 9º, que
condicionava a entrada de entorpecentes na alfândega do Rio de Janeiro e proibia que as
importações pudessem ser feitas por via postal ou aérea. Em sua carta, Roberval Cordeiro
apresentava suas justificavas:

Há no momento grande escassez de entorpecentes no comércio desta capital, já havendo


porem na alfandega uma partida de cocaína e uma outra autorização de importação de
Eucodal da Argentina, cujas entregas, entretanto, dependem do referido ante-projeto, que
autoriza temporariamente, enquanto perdurar a dificuldade de transportes marítimos, a
importação de tais substancias por via aérea e postal (sic).161

160
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores, CFE/534 – 22 de setembro de 1941.

161
Arquivo Histórico do Itamaraty – Departamento Nacional de Saúde, 27 de junho de 1940.
68

Em 1936 o cônsul do Brasil na Turquia, Affonso Lopes de Almeida, sugeriu ao


governo brasileiro que este avaliasse a possibilidade do país importar o ópio turco, ―em lugar
de conceber da Europa‖. O embaixador alegava que boa parte do ópio turco, cujo monopólio
agrícola e comercial pertencia ao Estado, era exportado para a Alemanha, Suíça e Rússia.
Affonso Lopes apontava para as vantagens, caso no Brasil houvesse fábricas ou laboratórios
que pudessem extrair ―apenas os princípios ativos do ópio‖, visto que, embora o ópio turco
não fosse muito agradável ao paladar como era o caso do chinês e do persa, era possível fazer
dele ―uma morfina superior em três quartos de grau‖ a obtida de outros ópios162. Em resposta
a sua sugestão, Affonso Lopes recebeu uma correspondência com data de 23 de março de
1936, assinada por Mário de Pimentel Brandão, que foi sucessor de Macedo Soares, onde
após elogiar a intenção do cônsul, relatou que o Brasil não dispunha de fábricas ou
laboratórios devidamente habilitados para extrair os princípios ativos do ópio. Alegou ainda
que o governo brasileiro não possuía monopólio do comércio do mesmo, ―limitando-se apenas
a conceder licença aos importadores, que mandavam vir o material de onde lhe mais
convêm‖163. A elaboração do Decreto-Lei nº 891/1938, em seu artigo 2º, §2 abria precedentes
para que ocorressem mudanças quanto à possiblidade do Estado brasileiro cultivar para fins
terapêuticos a papaver somniferum:

§2º - Em se tornando necessário, para fins terapêuticos, fará a União a cultura das plantas
dessa natureza, explorando-as e extraindo lhes os princípios ativos, desde que haja parecer
favorável da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes.164

A nova legislação permitiu ao governo brasileiro a realização de estudos sobre a


viabilização da separação alcaloides do ópio em solo nacional, um desses estudos gerou o
dossiê ―Kabay‖. Em dezembro de 1938, o Dr. Georges Balassa, representante da ―Alkaloida
Vegyeszesti GyarR.T.‖ (Alkaloida Fabrica Química S.A.), com sede em Budapeste,
apresentou ao governo brasileiro, a ―Proposta da exploração dum processo da fabricação de
alcaloides de ópio da Patente Kabay‖165. Na proposta o Dr. Balassa, após tecer elogios ao
Decreto-lei nº891/1938 dizendo ter sido este ―uma obra moderna e oportuna que resolve todos

162
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores. ―Consulado em Estambul: aos 11 de fevereiro de
1936‖.

163
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores; 23 de Março de 1936. LA/2/612.4 (59)

164
Decreto-lei nº 891 de 25 de novembro de 1938.

165
Janos Kabay, um jovem químico húngaro, descobriu um modo revolucionário de produzir morfina na década de 1920,
extraindo-a não só da cabeça da papoula nova, mas também da palha seca da papoula. Essa técnica ficou conhecida como
―Processo Kabay‖, uma de suas vantagens para época era o fato de poder produzir morfina sem que para isso se produzisse
ópio.
69

os aspectos do problema‖, o representante tratou de enaltecer o método Kabay, apresentando-


o como a melhor forma de por fim a dois infortúnios pelos quais o Brasil era acometido:

Sem dúvida é interesse de o Brasil livrar-se da importação, não sómente por que a fabricação
destes produtos offerecem vantagens materiaes ao governo como também a única
possiblidade de poder effectuar a fiscalisação que a lei prevê. (sic).166

Na prática o governo brasileiro já vinha fazendo certos experimentos para a produção


da papoula por meio da Diretoria de Fomento Vegetal, órgão do Ministério da Agricultura.
Esperava-se com certo otimismo que tais experiências resultassem na comprovação de que o
solo brasileiro, sobretudo seus planaltos, fosse próprio para a produção da ―dormideira‖, o
clima brasileiro permitiria duas colheitas anuais. A proposta elaborada para o governo
brasileiro requeria que este concedesse entre dois mil a dois mil e quatrocentos alqueires de
terra, espaço suficientemente razoável para abastecer o mercado interno, podendo o Brasil
posteriormente fornecer seus excedentes aos países vizinhos. A proposta parecia tentadora, o
governo brasileiro não teria quaisquer ônus com a instalação da fábrica, a empresa seria uma
sociedade anônima cujas ações em sua totalidade pertenceriam ao Estado, o presidente e a
diretoria seriam nomeados pelo governo, que cederia três cargos para serem ocupados por
representantes do grupo proponente. Como contrapartida pelos investimentos na construção,
instalação, operação e funcionamento da fábrica, o grupo exigia uma participação de 50% nos
lucros líquidos por cinquenta anos. Com o processo Kabay o Brasil teria condições de
produzir não só a morfina, mas também a codeína e a ethylmorphini hydrochloridum
(heroína). Entre as vantagens apresentadas pelo proponente e representante da patente Kabay,
estavam: a extinção da importação de ópio, maior facilidade para fiscalizar, eliminação do
comércio clandestino e por fim, outra grande vantagem, o processo Kabay possuía
―recomendação da Liga das Nações‖. A razão para que esse projeto não fosse levado adiante,
seria revelado mais tarde no Relatório Ministerial de 1944, assinado pelo então Ministro das
Relações Exteriores Oswaldo Aranha, o qual transcrevo aqui uma pequena parte:

Ocupou-se, também a Comissão da falta, no mercado brasileiro de ópio e seus derivados, o


que provocava grandes dificuldades para a fabricação dos medicamentos com essas
substâncias. Dada a impossibilidade de importa-las dos mercados europeus, sobretudo
ingleses, como se fazia anteriormente à guerra, entendeu-se a Comissão com o Itamaraty, no
sentido de serem aquelas substâncias importadas dos Estados Unidos da América. Nesse
sentido foram feitas as necessárias negociações, comprometendo-se o Governo americano a
fornecê-las desde que não consentíssemos na plantação, no Brasil, da papoula de ópio, recurso
167
em que se havia cogitado para sanar a falta desse produto

166
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores – Dossiê Kabay – 1938-1939.
167
BRASIL, Ministérios das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1944, p.63
70

O argumento de eliminar o contrabando condizia com as expectativas da CNFE, que


procurou articular-se com os países vizinhos na intenção de minimizar a entrada ilegal de
psicoativos no país. Uma das medidas consistiu em tomar conhecimento da legislação sobre
psicoativos de cada país da América Latina. A CNFE solicitou, via Ministério das Relações
Exteriores, cópia das publicações oficiais, cujos alguns ofícios com seus respectivos anexos
encontram-se no Arquivo Histórico do Itamaraty, mas também é possível encontrar a
legislação vigente na época de países da Europa. Os membros da Comissão apostavam na
força da circulação do saber, tinha-se certeza que era possível ―proteger o mundo das drogas‖
com uma rede internacional em comunicação constante, por isso não hesitavam em enviar
para os países signatários da Convenção de Genebra cópia do Decreto-Lei nº 891/1938.

Em boa parte dos memorandos enviados aos cuidados da CNFE pelas embaixadas
brasileiras dos países latino-americanos, o discurso sobre combate ao comércio ilegal é
recorrente. Os embaixadores informavam como os referidos países lidavam com o
―problema‖, apesar da troca de informações e das orientações do Comité Central do Ópio, não
é possível encontrar padrões bem definidos no modo como cada país aplicava sua política de
drogas. O cônsul brasileiro em Havana, José Roberto de Macedo Soares, por exemplo,
escreveu em 25 de março de 1938, sobre a entrada de maconha procedente do México em
Cuba, informava que por esse motivo a ―Polícia Secreta Nacional‖ iniciara uma campanha
―contra os entorpecentes em geral e especialmente contra a marihuana‖. O cônsul pedia que
se fizesse chegar às mãos do presidente da CNFE um estudo de caráter técnico sobre os
efeitos da intoxicação pela ―marihuana ou yerba de México‖, de autoria do Sr. H.T.
Anslinger. A ―campanha‖ iniciada em Cuba, por influência da política estadunidense
formalizada pela “marijuana tax act” em 1937, só veio se desenvolver no Brasil na primeira
metade da década de 1940, como veremos no capítulo terceiro.

O Decreto-Lei de 1938, em seu artigo primeiro colocava a maconha no mesmo grupo


que a cocaína e a heroína. Quando em 1941, a Comissão de Higiene da Liga das Nações
comunicou a CNFE a nova resolução que tornava ―aplicáveis às disposições da Convenção do
Ópio (Genebra, 1925), quanto aos preparados e extratos com base de tintura de cânhamo
indiano‖, recebeu como resposta que a legislação vigente no país considerava entorpecentes o
―cânhamo – canabis sativa – e variedades ‗indicas‘ (maconha, meconha, diamba, limba e
outras denominações vulgares)‖168 estas já encontravam-se fiscalizadas. No mesmo ano, a

168
BRASIL, Decreto-Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938, Artigo I, parágrafo XVI.
71

Comissão notificou aos inspetores alfandegários que não permitissem a entrada dos ―Cigarros
Indianos Grimault‖, produto de procedência francesa, que teve sua primeira licença nacional
em 1888, sendo esta revalidada em 1932 e novamente em 1937. A empresa foi transferida
para os Estados Unidos e necessitou de nova revalidação da licença, contudo, com o Decreto-
Lei nº 891/1938, a CNFE determinou que fosse retirado da fórmula a ―canabis sativa
(marihuana)‖, por ser tal substância considerada nociva. O posicionamento da Comissão foi
que os ―Cigarros Indianos Grimault se prestam à difusão desta nova modalidade de
toxicomania, que já está tendo um grande número de adeptos no Brasil‖. 169

Ainda em 1938, o embaixador Luiz Guimarães informava a CNFE a respeito do


imenso debate sobre o problema do tráfico de estupefacientes em Buenos Aires. Sobre o
comando do ―Departamento Nacional de Hygiene‖, o governo argentino reformulava sua
legislação, anunciando a intenção em cooperar com Brasil no sentido de reprimir o comércio
ilegal de estupefacientes. Dois anos depois alguns membros da CNFE estiveram na Argentina
para falar sobre os avanços brasileiros na política de drogas. Um documento cujo título lê-se:
―Viagem de estudos e de inspeção, autorizada pelo Sr. Presidente da República e proposta
pelo Diretor do Departamento Nacional de Saúde‖, demostra que a Comissão teria executado
algumas ações no Rio Grande do Sul, dirigindo-se a Argentina e ao Uruguai onde, segundo
Roberval Cordeiro de Farias, a CNFE realizou:

Palestra sobre a organização do serviço de fiscalização de entorpecentes no Brasil, expondo


os resultados colhidos com a sua legislação e a necessidade de um trabalho conjunto dos
países limítrofes para o pleno êxito dessa campanha. Necessidade de uma vigilância severa no
momento atual, devido à guerra europeia, por ser fato conhecido o incremento das
toxicomanias nestes períodos e sobretudo nos que lhe são subsequentes.170

A Comissão realizou visitas às indústrias farmacêuticas, laboratórios, farmácias,


drogarias e acompanharam funcionários desses países em inspeções. De acordo com Roberval
Farias, a CNFE distribuiu um ―dossiê completo‖ às autoridades sanitárias dos dois países
contendo: toda a legislação vigente, as instruções, modelo de receituário para prescrição de
entorpecentes e mapas. O Brasil tornara-se um país exemplo em termos de legislação e
fiscalização sobre psicoativos para seus vizinhos, a ponto de exportar sua tecnologia de
logística repressiva. A Comissão era apresentada como um modelo de estrutura política para
além das fronteiras nacionais. O tipo de organização que o país alcançou no início da década

169
Arquivo Histórico do Itamaraty – Ministério das Relações Exteriores; CFE/472, abril de 1941.

170
Relatório da CNFE em 1940: Arquivo Histórico do Itamaraty. O grifo é meu. Roberval Cordeiro de Farias apresentou uma
palestra em 1945 no Rotary Clube do Rio de Janeiro cujo título foi: As toxicomanias no após-guerras. Posteriormente veio a
publicá-la no Boletim da Oficina Sanitária Panamericana, Julho de 1946, p. 584.
72

de 1940, apesar das dificuldades estruturais, já era suficiente para colocá-lo a frente das várias
nações, não só na América Latina, mas também na Europa.

O investimento na formação e organização das Comissões Estaduais, ou


subcomissões, como também eram chamados, simboliza bem o esforço da CNFE em ser um
tipo de referencial, mas também servia para aumentar seu prestígio e poder no âmbito
doméstico. No entanto não era tão simples superar os obstáculos, um levantamento por meio
de consulta via memorandos aos órgãos estaduais, realizado em 1941 pela própria Comissão
em vários Estados brasileiros demonstrava as dificuldades em articular as ações nos Estados.
As Comissões Estaduais, quando estavam formalizadas, não funcionavam efetivamente,
poucas conseguiram ser atuantes. Cada subcomissão deveria ser composta pelo Diretor do
Serviço Sanitário Estadual, pelo Chefe de Segurança Pública, por um representante do
Departamento Nacional de Saúde Pública e pelo Procurador Seccional da República. Abaixo
reproduzo a situação de cada Estado revelado pelo levantamento:

Tabela 1 - Situação das Subcomissões Estaduais de Fiscalização de entorpecentes em 1941


ESTADO SITUAÇÃO EM 1941
Acre Instalada. Em resposta ao telegrama sobre o bloco de
receituário, informou terem sido tomadas providências
necessárias ao cumprimento do dispositivo legal.
Amazonas Acusou o recebimento do telegrama, não informou se
os blocos de receituários estão em uso no Estado. O
Presidente havia pedido demissão e estava sendo
providenciada a nomeação do Dr. Alberto Carreira da
Silva para a função.
Pará O presidente nunca acusou o recebimento do ofício, ou
telegrama. Estava sendo providenciado a nomeação do
Dr.Anintor Bastos.
Maranhão Instalada em fevereiro de 1940. O bloco de receituário
está em uso.
Ceará Não está instalada. O bloco de receituário acha-se me
uso.
Piauí Instalada em 5/7/1941. Não respondeu o telegrama
sobre o bloco de receituário.
Rio Grande do Norte Instalada em 30/11/1939. Não respondeu o telegrama
sobre o bloco de receituário.
Paraíba Não informou data da instalação. O bloco de
receituários acha-se em uso.
Pernambuco Não comunicou sobre a instalação, nem respondeu
qualquer ofício.
Alagoas Idem. o interventor solicitou providências, mas também
não foi respondido.
Sergipe Foi instalada em 12 de maio do ano corrente. Não
respondeu sobre o telegrama sobre os Blocos.
73

Bahia Instalada. Bloco de receituário em uso

Espírito Santo Instalada. Remeteu em 1940 relatório sobre o consumo,


mas não respondeu o telegrama sobre o bloco de
receitas.
Rio de Janeiro Instalada, porém não está em funcionamento.

São Paulo Não informou se está funcionando, o bloco de


receituário está em uso.
Paraná Não está instalada. Providenciando o bloco de
receituário.
Santa Catarina Não está instalada. Providenciando o bloco de
receituário.
Rio Grande do Sul Instalada em 1940, o bloco de receitas está em uso.

Minas Gerais Não informou se foi instalada. O receituário encontra-se


em uso
Goiás Não está instalada, não respondeu aos telegramas.

Mato Grosso Não há respostas sobre a instalação, o bloco de


receituário está em uso.
Tabela elaborada com base nos dados levantados pela C.N.F.E. em 24 de setembro de 1941, por Vera Regina Amaral Sauer,
Secretária da Comissão. Arquivo Histórico do Itamaraty. Pasta: 39214.

Dos vinte e um Estados verificados, em dez haviam subcomissões instaladas (Acre,


Amazonas, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe, Bahia, Espirito Santo, Rio de
Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul), todavia, a do Amazonas estava sem presidente e a
do Estado do Rio de Janeiro não se achava em funcionamento. Cinco Estados informaram não
ter implantado suas subcomissões, foram eles: Pará, Ceará, Paraná, Santa Catarina e Goiás,
outras seis não informaram sobre a existência das Comissões Estaduais: São Paulo, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Minas Gerais e Mato Grosso. O fato de haver dez subcomissões
instaladas, não significa que estas fossem atuantes ou que tenham realizado ações
significativas. A referência ao bloco de receituário nos telegramas estavam associadas a
implantação em todo Brasil do controle das remessas e comercialização das substâncias que
entraram na lista de entorpecentes no Decreto-Lei nº891/1938.
Em 1941 o Decreto-Lei nº 3.114, reformulava a composição da CNFE, o cargo de
presidente passou a ser ocupado pelo diretor da Seção de Fiscalização do Exercício
Profissional, com as seguintes representações:
(...) um representante da Diretoria de Saude do Exército, de um representante do Corpo de
Saude da Armada, de um representante do Ministro da Justiça e Negócios Interiores, de um
representante do Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, do Chefe da Divisão de Atos,
Congressos e Conferências Internacionais do Ministério das Relações Exteriores, do Diretor
da Secção de Fiscalização do Exercício Profissional do Ministério da Educação e Saude, da
autoridade policial encarregada do serviço de fiscalização e repressão ao uso e comércio
ilícitos de tóxicos e entorpecentes, de um conferente designado pelo Inspetor da Alfândega do
Rio de Janeiro, de um representante do Instituto de Química Agrícola do Ministério da
Agricultura, de um representante de estabelecimento clínico especializado em toxicomania, e
74

de um funcionário das classes K ou J do Ministério das Relações Exteriores, que exercerá as


funções de secretário (sic).171

A composição reunia elementos fundamentais para fortalecer a Comissão, o novo


texto acrescentava mais quatro representações importantes, as novidades estavam nas
representações do exército, da marinha, ministério da indústria e comércio e ministério da
justiça, passando dos sete membros (composição original da criação em 1936), para onze. Já
as Comissões Estaduais eram compostas pelas seguintes representações: Diretor do Serviço
Sanitário Estadual; Chefe de Segurança Pública; um representante do DNS; Procurador
Secional da Republica; um representante da classe médica da capital do Estado. O
representante da classe médica era escolhido por meio de uma lista tríplice apresentada pelo
Serviço Sanitário Estadual à CNFE. A participação das forças armadas e do ministério da
justiça na Comissão deu um novo status a Comissão, fazendo dela uma entidade de caráter
estritamente estatal, já que os representantes da classe médica normalmente eram médicos
servidores públicos. Assim a partir de 1941 a CNFE se consolidava como órgão máximo do
governo brasileiro, representado pelas diversas esferas de poder da federação para conduzir a
política estatal sobre drogas.

2.3 Os relatórios do DNS: As atuações do Serviço de Fiscalização do Exercício


Profissional e a CNFE

O Departamento Nacional de Saúde, durante a gestão de João de Barros Barreto172,


passou a produzir relatórios anuais sobre suas diversas atividades em todo o Brasil. Entre
estas atividades, encontram-se as realizadas pelo Serviço de Fiscalização do Exercício
Profissional (SFEP).173
As atividades desenvolvidas pela Seção de Fiscalização do Exercício Profissional
ocupam poucas páginas nos relatórios anuais do DNS. Estes contam com longos textos que
procuravam cobrir suas quatro áreas: saúde pública, assistência hospitalar, assistência a

171
Decreto-Lei nº 3.114 de 13 de março de 1941, artigo 1º.

172
João de Barros Barreto é apontado como o principal responsável pela implantação das reformas na área de saúde no
Brasil. Estando a frente do DNS entre os anos de 1937-1939 e 1940-1945. (Hochman, G. Reformas, instituições e políticas de
saúde no Brasil (1930-1945). Educar, Curitiba, nº25, pp.127-141: UFPR, 2005).

173
Alguns desses relatórios aparecem nos ―Arquivos de Higiene‖ (Fiocruz), outros podem ser encontrados entre a coleção
pessoal de Gustavo Capanema (CPDOC/FGV). Os relatórios encontrados nestes dois arquivos abarcam os anos de 1937 a
1946, entretanto, nem todos os anos foram localizados, utilizarei aqueles referentes aos anos de: 1937, 1939, 1942, 1944,
1945 e 1946. Alguns documentos localizados no acervo do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, não puderam ser
examinados, por medidas de proteção ao acervo, devido às obras da Torre Oscar Niemeyer, no terreno ao lado da FGV, à
consulta a esta documentação não tem prazo determinado.
75

psicopatas e amparo à maternidade e à infância. Os capítulos dedicados à Divisão de Saúde


Pública contêm detalhamentos das ações dos Serviços nacionais de combate às doenças
(peste, febre amarela, lepra, malária e tuberculose), com demandas epidemiológicas muito
aquém das provocadas por uso de ―entorpecentes‖, justificando a diferença em investimento e
estrutura na distribuição dos recursos do DNS.
Em seu primeiro relatório, intitulado ―Serviços Federais de Saúde em 1937‖, João de
Barros Barreto apresentou em um pouco mais de uma página as atividades realizadas pela
SFEP. O Diretor do DNS elogiava o trabalho desenvolvido pela seção dirigida por Roberval
Cordeiro de Farias174, tendo se destacado ―à campanha contra os entorpecentes‖. Campanha
que tinha pelo menos dois aspectos positivos, o primeiro era a instituição dos blocos de
receituário específico para entorpecentes, o segundo, a aprovação do ―ante-projeto sobre o
comercio e uso de entorpecentes, elaborado pela Comissão Nacional de Fiscalização de
Entorpecentes.‖[sic] De acordo com o relatório naquele ano foram visadas 9.450 receitas de
entorpecentes, a seção concedeu 21 certificados e 29 autorizações de importação, recebeu
4.451 mapas e balanços, assinou 421 guias de retirada de entorpecentes na alfândega e
―dentro de suas possibilidades, manteve em dia o intercâmbio com o Comitê Central do
Ópio‖. Ainda, de acordo com João de Barros, a ―eficiência das ações poderia ser
comprovada‖ pela redução do número de casos de toxicomanias que foram submetidos a
tratamento sistemático nas casas de saúde especializadas.175
Não há um relatório sobre o ano de 1938, pelo menos não entre os encontrados.
Entretanto, devido a um minucioso relatório elaborado em 1939, pelo médico responsável da
Seção de Fiscalização de Entorpecentes, Dr. Sebastião de Barros, é possível saber sobre o
volume de entorpecentes importados pelo governo brasileiro naquele ano. O médico, Ernane
Agrícola, substituiu João de Barros Barreto na direção do DNS, assumindo a confecção do
relatório de 1939. O novo diretor recebeu das mãos de Roberval Cordeiro de Farias mais de
15 páginas sobre as atividades desenvolvidas pela SFEP, contendo na introdução, uma

174
Sobre o médico Roberval Cordeiro de Farias, não encontrei registros quanto sua história pessoal. Seu nome foi dado a
uma rua no Recreio dos Bandeirantes no Rio de Janeiro. Sobre sua vida profissional, as fontes analisadas indicam que entre
1936 e 1939 ele foi diretor da Seção de Fiscalização do Exercício Profissional e entre 1940 e 1946, presidiu a Comissão
Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Em 1948 assina um documento como diretor do Serviço Nacional de
Fiscalização da Medicina. De dezembro de 1945 e dezembro de 1946, assumiu a direção do Departamento Nacional de
Saúde, substituindo João de Barros Barreto. Possivelmente tenha acumulado algumas funções durante este período. Em uma
foto publicada em 3 de setembro de 1938 pelo jornal Gazeta de Notícias, Dr. Roberval aparece ao lado de um companheiro
da ―inspetoria‖, o médico Dr. Salgado Lima, mas a imagem já desgastada, mal dá para ver seu semblante.

175
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde – Arquivos de Higiene - Departamento Nacional de Saúde. ―Serviço federais de
saúde em 1937: Relatório apresentado ao Ministro Gustavo Capanema pelo Dr. João de Barros Barreto, Diretor Geral do
Departamento Nacional de Saúde‖. p.89.
76

descrição das deficiências pelas quais a seção vinha passando. A primeira dizia respeito às
péssimas condições das instalações onde estavam alocados, tratava-se de um sobrado em um
prédio na Rua Paulo de Frontin, nº 13, propriedade da Fundação Gafrée Guinle.176 Roberval
descreveu a situação da seção farmacêutica como deplorável, que além das péssimas
condições das suas instalações não contava com laboratório de análises químicas, precisando
terceirizar o serviço em hospitais particulares. Nos departamentos ocupados pela seção de
fiscalização de entorpecentes não havia espaço para acomodar os funcionários, os mobiliários
eram insuficientes, o que fazia das condições de trabalho desconfortáveis não só para os
funcionários como também para quem precisava recorrer aos serviços daquela seção. Por fim,
o diretor da SFEP sugeria que o melhor a fazer seria transferir toda a seção para outro lugar
com melhores condições e que propiciasse o desenvolvimento mais eficiente das suas
atividades.
O relatório de 1939 contém informações até então não reveladas sobre as importações
brasileiras de substâncias psicoativas. Descreve os desafios impostos em parte pela
conflagração da guerra e em parte pelas dificuldades em fazer prevalecer o novo código legal,
o Decreto-Lei nº 891/1938. A Segunda Guerra fez com que a CNFE buscasse soluções que
pudessem evitar a liquidação total dos estoques. A seção concedeu no início do ano
certificados para suplementar as importações, mas devidos aos ―embaraços criados aos
transportes comerciais, aqui não chegaram até o último dia do ano.‖ A ausência de
alternativas para importar ópio, cocaína, cânhamo e suas ―preparações‖, configurou uma
―crise de tais entorpecentes‖ esta, afirma o relatório, ―só seria sanada com a inserção de novos
importadores ou estabelecimento de importação, quiçá preferentemente de monopólio, por
parte do Estado‖.177 O relatório apresenta um quadro comparativo para demonstrar os efeitos
da guerra nas importações de entorpecentes:
Tabela 2 - Importações de Entorpecentes.

Substâncias 1937 1938 1939


Ópio bruto 60.250gr 15.000gr 10.000gr
Ópio em pó 111.200gr 82.200gr 35.500gr
Ópio em extrato 131.000gr 55.000gr 35.000gr
Morfina e seus sáis 27.487gr 13.200gr 8.425gr
Eucodal ------ 1.000gr ------

176
Fundada em 1923 por Guilherme Guinle, dono da Companhia Docas de Santos, a Fundação Gafrée Guinle tinha por
finalidade prestar serviço de assistência a saúde à população carente na cidade do Rio de Janeiro.
177
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde – Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de Fiscalização do
Exercício Profissional, ano de 1939. CPDOC/FGV, Arquivo Gustavo Capanema.
77

Coca - folhas e pó 552.000gr 110.000gr 80.000gr


Cocaína e seus sáis 34.200gr 20.790gr 13.735gr
Cânhamo Indiano – planta 710.000gr 10.000gr 30.000gr
Cânhamo preparações 6.500gr 6.000gr ------
Codeína e seus sáis 305.840gr 185.000gr 100.015gr
Etilmorfina e seus sáis 87.480gr 47.385gr 30.638gr
Fonte: M.E.S. Departamento Nacional de Saúde.178

O volume das entradas de entorpecentes no Brasil durante os dois anos que


antecederam a guerra destoam significativamente do primeiro ano do conflito, ainda que este
tenha oficialmente iniciado em 1 de setembro, quando a Polônia é invadida pela Alemanha.
Como se verifica todas as substâncias sofreram redução nas importações, algumas chegaram a
ter queda de aproximadamente 85%, como foi o caso da coca em folha e em pó que caiu de
552 kg em 1937, para 80 kg em 1939. O ópio também sofreu forte queda, enquanto o produto
bruto passou de 60 kg em 1937 a 10 kg em 1939, uma queda de quase 80%, o ópio em pó, que
em 1937 teria passado 111 kg pela alfândega, em 1939 apenas de 35 kg chegaram ao porto do
Rio de Janeiro, uma redução de 65%.
Quanto às dificuldades em decorrência de fazer cumprir as novas exigências
estabelecidas pelo Decreto-Lei nº891, o Dr. Sebastião de Barros afirmara que ―todos os
esforços foram enviados para que o novo decreto e suas instruções fossem aplicados in
totum‖. Elogiava a boa vontade da equipe, mas reconheceu a impossibilidade de executar
plenamente o serviço. A seção não conseguiu organizar os fichários dos estabelecimentos de
pesquisa, também não conseguiram organizar um fichário especial com todas as
especialidades farmacêuticas que tivesse substâncias ―entorpecentes‖ na fórmula e por falta de
pessoal não puderam conferir todos os mapas. Entre as atividades realizadas, remeteram ao
Comité Central do Ópio, por meio da CNFE os mapas B(G) – de avaliação anual de matérias
primas; B(L) – avaliação anual de drogas; A(GL) – estatísticas trimestrais de importações e
exportações; A(L) – estatísticas anuais de importação e exportação de metilmorfina e
etilmorfina. As estatísticas anuais de consumo, mapa C (1) (GL), de produção e fabrico, mapa
C (2) (GL), de estoque, mapa D (GL) e de confiscos, mapa E (GL), não foram encaminhados
por falta de informações por parte dos estados.
Mesmo com dificuldades evidentes, foi possível identificar no relatório sucessivas
práticas que, embora pequenas, indicavam melhorias e aperfeiçoamentos nas ações, como o

178
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1939. Arquivo Gustavo Capanema.
78

aumento no quadro de funcionários (ainda que insuficiente para atender a demanda),


aquisição de novos arquivos e fichários. Logo, mesmo com as deficiências aqui citadas, é
perceptível o crescimento do alcance do trabalho fiscal em relação aos cinco últimos anos.
Abaixo reproduzo o volume das atividades executadas durante o exercício de 1939 pela Seção
de Entorpecentes:
Gráfico 1 - Atividades da Seção de Entorpecentes em 1939

Gráfico elaborado com base nos dados apresentados pelo: M.E.S. Departamento Nacional de Saúde.179

Se por um lado, devido ao menor volume de importações, as atividades de caráter


alfandegárias foram mais tranquilas, por exemplo, em 1937 a seção visou 7.370 requisições
de entorpecentes contra 4.221 em 1939. No âmbito da fiscalização, a burocratização tecnicista
tornava mais complexa à comercialização de psicoativos; novos formulários, novos livros,
tipos variados de receituários, requisições diferenciadas por cores, mapas de todos os tipos e
tamanhos, certificado para diversas situações. Se a nova racionalidade ampliou a

179
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1939. Arquivo Gustavo Capanema.
79

complexidade da atividade fiscal, também conferiu a esta mais autoridade. O fiscal era o olho
do Estado sobre o médico, dentista, veterinário e farmacêutico, mas ainda assim, a nova
política não refletiu diretamente no consumo legal de psicoativos. Os níveis de consumo no
primeiro ano da nova legislação apresentaram um pequeno aumento em comparação aos anos
anteriores, em 1937 foram visadas 9.450 receitas de entorpecentes, enquanto em 1939 o
número chegou a 9.576.
A CNFE também apresentou relatórios sobre suas atividades ao Ministério das
Relações Exteriores. Diferentemente daquelas elaboradas pelo SFEP, os relatórios da
Comissão se detinham nos aspectos referentes às ações da política interna, como as atividades
desenvolvidas nos Estados e no Distrito Federal, mas também sobre as relações com o Comité
Central do Ópio. Outras atividades contempladas nesses relatórios diziam respeito aos temas
tratados nas reuniões ordinárias e sobre suas deliberações. Infelizmente não foram
encontrados muitos desses relatórios, é possível que tenham se perdido no tempo entre os
arquivos públicos.
No ofício encaminhado a Oswaldo Aranha, cujo anexo achava-se o relatório das
atividades da CNFE em 1940, verifica-se uma fala bem diferente das apresentadas pela SFEP.
Para o presidente da Comissão, o médico Roberval Cordeiro de Farias, os resultados das
ações eram sempre motivo de orgulho para o governo brasileiro:
Vossa Excelência se dignará verificar das anotações inclusas, suas atividades nos vários
setores que lhes estão afetos tiveram sempre solução eficiente, mostrando o valor da nova lei
que regula a entrada e o uso de entorpecentes no território nacional; igualmente os trabalhos
correram em perfeita ordem e normalidade.180

Roberval Cordeiro de Farias tinha de fato, motivos para tanto otimismo, do mesmo
modo que os técnicos da Seção de Fiscalização de Entorpecentes tinham razões para
manifestar suas preocupações e deficiências, a eficiência não é o objeto desta análise. O que
se quer destacar aqui, são as práticas discursivas, os novos enunciados, uma racionalidade da
ação governamental que é a razão de Estado, onde a verdade a ser manifesta é a verdade do
Estado.181 A verdade sobre os usos nocivos e sobre as propriedades degenerativas de
determinadas substâncias passaram a ser difundidas pela CNFE, que organizava eventos e
seminários para esclarecer a nova legislação e as instruções. Em 1940 o Dr. José
Hasselmann, diretor do Instituto de Química Agrícola, proferiu duas comunicações a convite
da Comissão, cujo tema era ―plantas brasileiras com propriedades entorpecentes e euforísticas

180
CNFE. Ofício de 22 de janeiro de 1941 ao Ministro das Relações Exteriores. Arquivo Histórico do Itamaraty.

181
FOUCAULT, M. Do governo dos vivos. Curso no Collège de France, 1979-1980: aulas de 09 e 30 de Janeiro de 1980.
Nildo Novelino (Trad). São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009. p.22.
80

e que pelo seu uso, deve o plantio ser sujeito ao controle da Comissão‖. 182 Também a convite
da CNFE o Dr. Pernambuco Filho, proferiu palestras sobre o ―decréscimo do número de
toxicômanos em virtudes das medidas restritivas e da fiscalização advindas da aplicação da
nova lei de entorpecentes‖. Ainda segundo o relatório, a Comissão promoveu reuniões
visando soluções para contornar a redução dos estoques, provocado pela guerra, de modo a
não comprometer o abastecimento de entorpecentes para ―fins científicos‖.183 Foram emitidos
ofícios aos Estados recomendando a proibição e destruição dos plantios de culturas listadas no
art. 2º do Decreto-Lei nº 891 e concedidas quatro licenças para estabelecimentos de
tratamento de toxicômanos. Sobre outras atividades da CNFE reproduzo no gráfico abaixo:

Gráfico 2 - Atividades desenvolvidas pela CNFE no ano de 1940: Ofícios

Gráfico elaborado com base nos dados apresentados pelo: M.E.S. Departamento Nacional de Saúde 184

Não foram encontrados relatórios sobre o ano de 1941, nem por parte da Comissão,
nem por parte da Seção de Fiscalização de Entorpecentes. Não significa, no entanto, que estas
não tiveram atividades neste ano, ao contrário, já citei ao longo deste capítulo várias
atividades que foram mencionadas por outras fontes. Graças aos balanços anuais é possível
verificar, por exemplo, uma leve recuperação na entrada de entorpecentes no país em relação
ao ano de 1939 (tabela 2), nos anos de 1940 e 1941, conforme demonstrado na tabela abaixo:

182
Resumo das atividades da Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes em 1940. Arquivo Histórico do Itamaraty.

183
Quanto aos efeitos desses debates no âmbito da lei, o resultado foi o Decreto-Lei 4.720/1942, sobre o qual abordarei no
próximo capítulo.
184
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1940. Arquivo Gustavo Capanema.
81

Tabela 4 - Importações de Entorpecentes

Produtos 1939 1940 1941


Ópio bruto 10.000gr ---------- 25.000gr
Ópio em pó 35.500gr 49.000gr 190.000gr
Ópio em extrato 35.000gr 27.000gr 85.000gr
Morfina e seus sáis 8.425gr 12.532gr 26.200gr
Eucodal ------ 1.560gr 3.000gr
Coca - folhas e pó 80.000gr 150.000gr 100.000gr
Cocaína e seus sáis 13.735gr 18.033gr 5.700gr
Cânhamo Indiano – planta 30.000gr --------- 25.000gr
Cânhamo preparações ------ --------- 1.000gr
Tebaína ------- -------- ---------
Codeína e seus sáis 100.015gr 57.090gr 206.390gr
Etilmorfina e seus sáis 30.638gr 15.795gr 15.795gr
Tabela elaborada pelo M.E.S. Departamento Nacional de Saúde.185

Embora os anos de 1940 e 1941 tenham apresentado uma recuperação, a entrada de


entorpecentes no Brasil ainda era insuficiente para deter a crise de abastecimento. Nos anos
seguintes a CNFE apostaria em medidas mais enérgicas para restabelecer o mercado interno
de psicoativos, embora o país nunca mais tenha conseguido elevar seu estoque oficial aos
níveis de 1937. A maconha foi o produto com a maior queda nas importações no período de
1936 a 1946, quanto às razões abordarei no capítulo seguinte. Toda essa política de controle e
redução foi modificando os modos de consumo de substâncias psicoativas. Os médicos
começaram a substituir os ―entorpecentes‖, por substâncias ―menos nocivas‖, estas novas
drogas chegavam ao mercado brasileiro pelas mesmas indústrias farmacêuticas. Cabia a
CNFE fazer a gestão desses usos e consumos, determinando o que consumir, como consumir
e o quanto consumir.

185
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde, CPDOC/FGV, Relatório do Departamento Nacional de Saúde, Secção de
Fiscalização do Exercício Profissional, ano de 1942. Arquivo Gustavo Capanema.
82

3 POSITIVIDADE DO PODER E REPRESSÃO: A CNFE – ANOS 1942-1946

3.1 A ampliação do projeto pedagógico; as Comissões Estaduais e o mercado de


entorpecentes em tempo de guerra

A documentação sobre as ações no ano de 1942 são poucas, mas alguns


acontecimentos serão significativos para o incremento e ampliação dos dispositivos
regulatórios e normativos, assim como nos processos de repressão aos ―consumos ilegais‖ de
psicoativos. Em março de 1942 a CNFE baixou no Diário Oficial da União, o ―Regulamento
das Comissões Estaduais de Fiscalização de Entorpecentes‖. A regulamentação das
Comissões Estaduais, já prevista no Decreto Lei nº 891186, objetivava criar condições formais
de funcionamento, uma vez identificado, no levantamento de 1941, que apenas em onze
Estados haviam sido implantadas, e mesmo estas eram limitadas pelo fato de não estarem
regulamentadas.187
As Comissões Estaduais seriam presididas pelo diretor da repartição estadual de saúde,
contariam ainda com um representante do Departamento Nacional de Saúde e um
representante da classe médica, escolhido pela CNFE, de uma lista tríplice formulada pelo
diretor da repartição estadual. As comissões seriam secretariadas pelo representante do
Serviço de Fiscalização da Medicina. As reuniões ordinárias deveriam ocorrer uma vez a cada
mês, ainda de acordo com a regulamentação, o presidente deveria remeter à CNFE as atas
referentes às seções mensais, assim como um relatório de atividades desenvolvidas conforme
um modelo já elaborado e fornecido pela CNFE. Ao secretário caberia fornecer os dados
estatísticos do comércio legal de entorpecentes.

Ao final de 1942, todos os Estados já contavam com suas Comissões Estaduais


regulamentadas: Acre; Amazonas; Pará; Maranhão; Piauí; Ceará; Rio Grande do Norte;
Paraíba; Pernambuco; Alagoas; Sergipe; Bahia; Espírito Santo; Rio de Janeiro; São Paulo;
Paraná; Santa Catarina; Rio Grande do Sul; Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.188

186
O Decreto – Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938, em seu artigo Art. 45, lê-se: ―Nos Estados e no Território do Acre
serão organizadas Comissões estaduais nos moldes da Comissão Nacional com jurisdição nos respectivos territórios, as quais
se entenderão diretamente com a Comissão Nacional a que ficam subordinadas e, excepcionalmente nos casos de urgência,
com as dos Estados vizinhos.‖

187
Confira: tabela I - capítulo II.

188
Em 1940, o IBGE elaborou uma nova proposta de divisão para o país que, além dos aspectos físicos, levou em
consideração aspectos socioeconômicos. A região Norte era composta pelos Estados de Amazonas, Pará, Maranhão e Piauí e
o território do Acre. Goiás e Mato Grosso formavam com Minas Gerais a região Centro. Bahia, Sergipe e Espírito Santo
83

A CNFE enviou uma série de instruções aos Estados, mas também solicitou destes
informações sobre o andamento dos trabalhos. Num formulário anexado ao relatório do DNS
em 1942 é possível verificar as tentativas de avaliar a efetividade dos instrumentos de
controle e análise. Era o caso do bloco de receituário especial para prescrição dos
entorpecentes, descrevo abaixo parte das informações solicitadas no formulário às Comissões
Estaduais:

1- Se encontra-se em uso o bloco oficial do receituário de entorpecentes. Em caso de afirmativa


em que localidade do estado, em caso negativo, indicar o motivo;
2- Se é feito o fichamento da distribuição do bloco oficial do receituário de entorpecentes pelos
médicos e dentistas e a fiscalização do seu emprego;
3- Se há um fichamento individual dos doentes fazendo uso de entorpecentes pelos órgãos
competentes;
4- Se é feito o controle do receituário de entorpecentes por médico do S.F.M. e se estão sendo
tomadas medidas de restrição ao uso do receituário;
5- Se há toxicômanos notificados e em caso de positivo, qual o estabelecimento hospitalar;
6- Se estão sendo tomadas providências para a restrição do uso da maconha pelas autoridades
sanitárias e policiais – Baia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte,
Pará, Maranhão, Amazonas e Acre.189

Ainda segundo o relatório as Comissões Estaduais teriam realizado ao longo do ano de


1942 um total de 114 reuniões distribuídas da seguinte forma: 13 em Santa Catarina; 12 no
Rio Grande do Sul; 11 no Ceará; 10 no Mato Grosso; 9 no Piauí e Pará; 8 em Minas Gerais e
Rio Grande do Norte; 7 em São Paulo; 5 no Amazonas e na Paraíba; 4 em Goiás; 2 no Pará,
Maranhão e Alagoas; 1 em Pernambuco. As Comissões da Bahia e de Sergipe não tiveram
atividades. Tais informações revelam que não havia uniformidade na atuação das Comissões
Estaduais, os Estados do Sul e Sudeste realizaram um volume maior de encontros, enquanto
os Estados localizados na região Nordeste com fronteira com Pernambuco190 (Sergipe, Bahia,
Alagoas), tiveram quase nulas as atuações das Comissões (exceção do Piauí e Ceará). Não foi
sem razão que a restrição do uso da maconha, na questão nº 6 enviada aos Estados, foram
destacados aqueles a quem se destinava a mesma.191

formavam a região Leste. O Nordeste era composto por Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba e Alagoas.
Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro pertenciam à região Sul. Fonte: Brasil Escola. Acesso
em 11/01/2013: http://www.brasilescola.com/brasil/divisao-regional-brasileira.htm

189
BRASIL, Ministério da Educação e Saúde: Relatório do Departamento Nacional de Saúde – Serviço de Fiscalização da
Medicina, ano 1942. CPDOC/FGV. Arquivo Gustavo Capanema. p. 396.

190
A região em questão também é conhecida na atualidade com ―Polígono da Maconha‖, que abrange segundo dados da
Superintendência da Polícia Federal de Pernambuco, 12 municípios, todos banhados pelo Rio São Francisco. O Estado faz
divisa com Piauí, Ceará, Paraíba, Alagoas e Bahia.

191
Segundo o Relatório Ministerial de 1944, onze Estados haviam aprovado suas instruções sobre o uso e o comércio de
entorpecentes: São Paulo desde 1942. Piauí, Rio Grande do Sul, Ceará, Santa Catarina, Paraná, em 1943 e Alagoas, Pará,
Bahia, Rio de Janeiro e Sergipe em 1944. Arquivos de Higiene, Departamento Nacional de Saúde, 1944, p.460
84

A compreensão de que somente uma estrutura edificada em rede com ramificações


destinadas à fiscalização do consumo de psicoativos no Brasil obedecia a um tipo de
racionalidade que, no caso específico das drogas, já vinham sendo desenvolvidas desde a
Conferência de Genebra em 1924. Entretanto, uma sucessão de obstáculos de ordem política,
econômica e social retardou tal racionalidade, impedindo que fosse colocada em prática em
um curto espaço. Todavia, é possível delinear as continuidades de um projeto que tem início
em 1935 e que vai se fortalecendo e buscando maior extensão de cobertura efetiva. Não fosse
a criação da CNFE esse processo seria ainda mais precário, basta verificar como estes se
desenvolveram na maioria dos países latino-americanos. A criminóloga Rosa Del Olmo
localizou a criação das estruturas domésticas semelhantes nestes países:

Comissão contra o Uso Indevido de Drogas (CCUID) da Venezuela, em 1971, seguida da


Comissão Nacional de Toxicomanias e Narcóticos (CONATON) da Argentina e a Comissão
Nacional Coordenadora conta o Uso Não Autorizado de Drogas (CONADRO) da Costa Rica
em 1972. A Colômbia criou seu Conselho Nacional de Estupefacientes pelo decreto lei 1.206
em 1973, e o Uruguai a Comissão Nacional de Luta contra as Toxicomanias, 1974, pela lei nº
14.294. O México criou em 1975 o Centro Mexicano de Estudos em Farmacodependência192

Mas se por uma lado era vital estender os dispositivos de fiscalização por todos os
Estados brasileiros, ampliando o leque da vigilância aos médicos, farmacêuticos, dentistas,
veterinários, dentre outros, por meio de instrumentos que transformavam determinados
comércios e consumos em atividades ilegais, por outro lado era necessário manter os estoques
para atender às necessidades médicas legais. Ao final de 1941 um relatório elaborado pela
CNFE encaminhado ao Ministério das Relações Exteriores alertava para a necessidade de se
providenciar mudanças no sistema legislativo com vista a contornar a dificuldades impostas
pela guerra. O serviço de expedição de certificados de importação e exportação de
entorpecentes:

Que vinha funcionando normalmente no Brasil, tem sido grandemente prejudicado, nos
últimos tempos, pelas circunstâncias decorrentes da guerra: dificuldade de comunicação,
extravios de certificados em consequência de bombardeios, e afundamento de navios.
Entretanto, as autoridades brasileiras, de acordo com os convênios assinados, não consentem
na entrada, em território nacional, de quantidade alguma de entorpecentes que não tenham
sido importadas segundo os preceitos legais.193

A tentativa em suprimir o artigo 9º § b) do Decreto – Lei 891 de 1938, que proibia a


importação por via postal ou aérea demonstrou-se insuficiente para compensar as baixas nos

192
DEL OLMO, Rosa. A face oculta da droga. 1990 p.46.

193
BRASIL, Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1941, p.28
85

estoques do Estado. A CNFE propôs então uma medida mais radical, esta efetivou-se pelo
Decreto – Lei 4. 720 de 21 de setembro de 1942, que estabeleceu a fixação de ―normas para o
cultivo de plantas entorpecentes e para extração, transformação e purificação dos seus
princípios ativo-terapêuticos.‖. O novo código ia de encontro ao artigo 2º do Decreto 891, que
a rigor proibia:

(...) no território nacional o plantio, a cultura, a colheita e a exploração, por particulares, da


Dormideira Papaversomniferum e a sua variedade Album (Papaveraceae), da coca
Erythroxylum coca e suas variedades (Erythroxilaceae) do cânhamo Cannabis sativa e sua
variedade índica (Moraceae) (Cânhamo da Índia, Maconha, Meconha, Diamba Liamba e
outras denominações vulgares) e demais plantas de que se possam extrair as substâncias
entorpecentes mencionadas no Art.1 desta lei e seus parágrafos. 194

Já de acordo com o artigo primeiro do Decreto – Lei 4.720, a União concederia às


firmas particulares licenças especiais para a cultura de ―plantas entorpecentes‖. As empresas
deveriam encaminhar seus requerimentos ao Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina e
em seguida encaminhado à CNFE. Caberia ao Diretor do Departamento Nacional de Saúde,
baixar instruções para regulamentar todo o processo, entretanto, tais instruções não foram
baixadas. Os motivos, como já mencionados no capítulo anterior,195 deram-se devido ao
comprometimento dos EUA em suprir às necessidades médicas de consumo dos psicoativos
em questão.
A intervenção do governo estadunidense, nos rumos comerciais e políticos do
Brasil,196 se confirmam com a constatação oferecida pelo historiador Thomas E. Skidmore,
segundo o qual, em 1942, a participação dos EUA na economia brasileira tenha se
intensificado com a vinda de uma missão técnica chefiada por Moris Llewellyn Cooke. A
Missão Técnica Americana teria contribuído de modo significativo para o Skidmore chamou
de ―o primeiro levantamento sistemático dos recursos brasileiros‖. Ainda segundo o autor, o
governo brasileiro aproveitou-se da guerra, para promover um esforço em torno de uma

194
BRASIL, Diário Oficial da União. Seção 1. 23/09/1942. p. 14289. Dentre outras iniciativas por parte da CNFE
objetivando contornar o problema dos estoques baixos, estava a proposta ao Ministério das Relações Exteriores para uma
convocação de uma Conferência Interamericana na cidade do Rio de Janeiro, visando estudar em conjunto com os países
vizinhos, possíveis soluções para o abastecimento de entorpecentes. A referida conferência não ocorreu, o país só tornou-se
palco de um evento oficial em março de 1960, quando sediou a I Reunião Interamericana Sobre Tráfico Ilícito de Cocaína e
Folhas de Coca.

195
Veja nota nº 167 da pag. 74

196
A criação do SESP – Serviço Especial de Saúde Pública em 1942, segundo o historiador André Luiz Vieira Campos,
também é um ―produto da política externa norte-americana na conjuntura da Segunda Guerra Mundial‖. Sua organização
dera-se durante o Terceiro Encontro de Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas no Rio de Janeiro, o
SESP tornou-se uma agência bilateral de saúde pública com a gestão da Fundação Rockefeller. CAMPOS, André L. Vieira.
Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Rio de Janeiro: Editora
Fio Cruz, 2006, p.35.
86

política de industrialização.197 Neste sentido, o Decreto – Lei 4.720 de 1.942 pode ser
compreendido para além dos objetivos de suprir a carência de psicoativos no mercado
brasileiro em decorrência da guerra, muito embora, no caso específico dos entorpecentes não
se concretizou.

3.2 A CNFE e a criminalização e maconha

Um ofício encaminhado por Roberval Cordeiro de Farias ao Ministro das Relações


Exteriores, Oswaldo Aranha em janeiro de 1942, repassava uma informação enviada pela
Subcomissão Estadual do Rio Grande do Sul. Segundo o mesmo, o chefe de polícia daquele
Estado identificara a entrada de grande quantidade de entorpecentes provenientes da
Argentina, Paraguai e Uruguai, sobretudo, para as cidades de Itaqui e São Borja. O presidente
da CNFE recomendava ao ministro que, como providência, as autoridades dos referidos
países deveriam ser informadas formalmente, pedindo que estas tomassem medidas enérgicas
contra o contrabando em suas fronteiras.198
A repressão ao uso e comércio ilegal de entorpecentes já vinha ocorrendo antes mesmo
da criação da CNFE. Jornais como: ―Diário Carioca‖, ―Diário da Manhã‖ e ―Gazeta de
Notícias‖, durante toda década de 1930, noticiavam prisões de farmacêuticos, médicos,
representantes comerciais e outros ―negociantes‖. Manchetes do tipo: ―Poeira Maldita‖,
publicada na edição de terça-feira de 13 de agosto de 1935 no Diário Carioca; e ―Vendedores
da Morte‖, no Diário Nacional na quinta-feira em 13 de agosto de 1930, eram cada vez mais
comuns. A imprensa era acionada para cobrir as operações e informar a população os
resultados das ações policiais nas apreensões realizadas pelo ―Serviço de Repressão de
Tóxicos e Mystificações‖ vinculado a policia do Distrito Federal.

A CNFE, fazendo uso dos dispositivos legais elaborados pela própria Comissão,
encaminhou ao Ministro das Relações Exteriores um ofício reivindicando que fosse concedida
aos seus membros ―uma carteira ou documento outro que caracterize a função fiscalizadora e
policial dos mesmos‖, de modo que esta lhes facultassem livre ingresso a ―qualquer lugar

197
SKIDMORE, Thomas, E. Brasil: de Getúlio à Castelo Branco (1930-1964), Rio de Janeiro, 7ª ed. Paz e Terra, 1982, 68.

198
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes: Ofício de nº 567 de 14 de janeiro
de 1942. Cód. 612,4 (30)
87

onde possa haver transgressão relativa à legislação de entorpecentes‖. 199 A reivindicação,


pautada nos artigos 44º e 63º do Decreto-Lei 891 de 1938, teve o conteúdo destacado no
corpo do ofício como demonstrado abaixo:

Art. 44 - A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, criada pelo Decreto número


780, de 28 de abril de 1936, que fica mantido com as modificações nele introduzidas, terá a
seu cargo o estudo e a fixação de normas gerais, de ação fiscalizadora sobre o cultivo,
extração, produção, fabricação, posse, oferta, venda, compra, troca, cessão, transformação,
preparo, importação, exportação, reexportação, bem como repressão do tráfico e uso ilícito de
drogas entorpecentes, incumbindo-lhe todas as atribuições decorrentes dos objetivos gerais,
visados pelo referido decreto, bem como zelar pelo fiel e cabal cumprimento da presente lei.
Art. 63 - As autoridades sanitárias e policiais prestarão auxílio recíproco nas diligências que
se tornarem necessárias ao bom cumprimento dos dispositivos desta lei, atendendo
prontamente às solicitações que nesse sentido forem feitas. (Grifos originais)200

Três meses depois, a portaria nº 9169, baixada pelo chefe de polícia do Distrito
Federal, determinava que os membros da Comissão ―devidamente credenciados‖ deveriam
receber ―todo e qualquer auxilio na efetivação das diligências que se tornarem necessárias ao
cumprimento dos dispositivos do decreto-lei nº 891 de 1938.‖ Em virtude da portaria o
presidente da Comissão solicitou ao Secretário Geral da Divisão de Atos do Itamaraty que
fossem providenciadas as ―carteiras de identidade declaratórias‖ a Divisão do Cerimonial.
Assim, nos primeiros anos desde sua criação, a CNFE concentrou seus esforços na
consolidação dos dispositivos legais, normativos e regulatórios. Uma vez estabelecida às
bases que fundamentaria a política de drogas no Brasil, a Comissão deu um passo adiante;
fazer uso dos instrumentos por ela elaborados. Com plenos poderes conferidos, a CNFE
intensificou as operações de repressão ao uso e comércio de entorpecentes durante a década
de 1940, mais precisamente a partir de 1943.201
Se ao Sul do país havia entrada de drogas por parte das fronteiras com países vizinhos,
no Nordeste uma droga em especial estava sendo produzida em larga escala, mobilizando uma
grande operação; a maconha.202 As ações concentraram-se nos Estados da Bahia, Sergipe e
Alagoas, em cada Estado foram realizadas atividades diferentes. O relatório apresentado aos

199
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Entorpecentes, Ofício, n° 731, de 13 de Janeiro de 1943. Cód.
512,4

200
Ibid.

201
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Memorando ao Secretário Geral
do Itamaraty em 18 de Março de 1943. Cód.512.4

202
A intensificação da repressão contra a maconha, de modo algum pode ser considerado como um evento isolado. A partir
da Marihuana Tax Act em 1937, os EUA transportaram toda sua estrutura repressiva utilizada durante os anos de Lei Seca
para combater o novo inimigo; a canabis. Em 1942, segundo Rowan Robinson, sob o comando Harry Anslinger, a repressão
à maconha chega ao seu auge, coma prisão de jazzistas usuários de canabis. ROBINSON, Rowan. O grande livro da
cannabis. Jorge Zahar, Rio de Janeiro: 1999, p.96. Sobre a Marihuana Tax Act, Veja: ESCOHOTADO (1998) pp.692-698.
88

membros da Comissão intitulado ―Inspeção realizada de 7 a 19 de novembro de 1943 nos


Estados da Bahia, Sergipe e Alagoas, visando o problema do Comércio e uso da maconha.‖203
No relatório, o Dr. Roberval Cordeiro de Farias descreveu como se deu as intervenções na
região do Vale do São Francisco, que segundo ele, ―passa por ser um dos maiores focos de
plantação e uso da diamba em nosso país‖.
Na Bahia, onde a Comissão Estadual não efetuou um encontro sequer em 1942, os
trabalhos iniciaram-se justamente com a presença integral de todos os membros da
subcomissão, assim como de autoridades como o Cel. Médico Dr. Braga Araújo, Chefe do
Serviço de Saúde da 6ª Região Militar. O encontro teve caráter informativo, os representantes
da CNFE buscavam esclarecer as autoridades locais sobre aspectos legais e práticos sobre as
atuações e competências da subcomissão. O médico João Mendonça, membro da subcomissão
na Bahia, autor de dois trabalhos respectivamente intitulados: ―Os perigos sociais da
maconha‖ e ―Toxicomanias nas prisões e sua profilaxia‖204, apresentou uma ficha-inquérito
por ele elaborada. Segundo Roberval Cordeiro de Farias, tal instrumento poderia ―prestar
serviços inestimáveis pelos elementos informativos valiosos que nela poderão ser colhidos
sobre o problema da maconha.‖ Reproduzo abaixo cópia da ―ficha-inquérito‖:

C.E.F.E. – BAHIA

INQUÉRITO SÔBRE A MACONHA


Ficha 6.º ................ Nome .....................................................................................................................
Sexo: ............................. Apelidos: .........................................................................................................
Profissão: ........................................ Salário mensal: .............................................................................
Idade: ................ Côr ........................ Estado Civil ...............................................................................
Quantos filhos tem vivos? ................ Quantos mortos e em que idade ..................................................
..................................................................................................................................................................
Tem nos seus parentes, loucos ou obcedados, alcoólatras, suicidas, delinquentes?
..................................................................................................................................................................
Quantas pessoas sustenta? .......................................................................................................................
Vida familiar: ..........................................................................................................................................
Para que usa a M? ..................................................................................................................................
Usa diàriamente ou como? ......................................................................................................................
Desde quando? ........................................................................................................................................
Quem o iniciou? ......................................................................................................................................
Que sente com a maconha? ....................................................................................................................
Como usa? ...............................................................................................................................................
Donde vem a M? ........................................ Vendedores: ......................................................................
........................................ Custo: ............................................................................................................
Outros que a usam ..................................................................................................................................
........................................................................................ Outros nomes da M? ......................................
Cite provérbios, versos, anedotas, modinhas sôbre a M: ........................................................................

203
O Relatório em questão foi publicado em 1958 na obra: Maconha, Coletânea de Trabalhos Brasileiros. Serviço Nacional
de Educação Sanitária. A coletânea conta com 31 textos envolvendo os principais médicos e outros especialistas.

204
Ambos publicados na Coletânea de Trabalhos Brasileiros: Maconha.
89

Usa só ou em companhia, a M? ..............................................................................................................


Bebe? ......................... Conhece outros tóxicos? ....................................................................................
Que doença teve? ...................................................................................................................................
Que sofre agora? .....................................................................................................................................
Estêve prêso? ............... Porquê? ............................................................................................................
Cumpriu pena? ............. Porquê? ...........................................................................................................
Onde? ......................................................................................................................................................
Qual pena? ..............................................................................................................................................
OBSERVAÇÕES GERAIS:
(INSTRUÇÃO, Religião, Sexualidade, Altura, Pêso, Magro, Gordo)
________________________________________
Assinatura205

Dentre outras ações e propostas apresentadas no Estado da Bahia estavam as


modificações introduzidas pelo novo código penal que entrara em vigor a partir de janeiro de
1942, portanto posterior ao Decreto – Lei nº891 de 1938. Modificações essas que alteravam as
regras nos processos de internação de toxicômanos e na aplicação das penalidades.206
O presidente da Comissão da Bahia, Dr. Luiz Lessa apresentou seu plano de ação que
envolvia as seguintes orientações:
a) medidas administrativas preliminares, relativas à instalação e ao financiamento da
Comissão;
b) medidas políticas de ordem executiva, tais como instruções e adaptações regionais às
normas federais;
c) medidas jurídicas, referentes a internamento e interdição de toxicômanos;
d) medidas policiais: delegacia específica, articulação com a D.A.; fiscalização de cassinos,
casas de tolerância, com estatística dos suspeitos;
e) medidas educativas, consistindo em divulgação dos perigos das toxicomanias, vantagens do
tratamento e meios de que se pode valer o Poder
Público;
f) medidas sanitárias: fiscalização do exercício profissional, tratamento, assistência e
educação profissional;
g) medidas econômicas, representadas por sobretaxa para dificultar o uso dos tóxicos e criar o
fundo de assistência;
h) medidas éticas, representadas por sobretaxa para dificultar o uso dos tóxicos e criar o fundo
de assistência;
i) medidas éticas, representadas pela criação de serviço social para o intoxicado e sua família;
j) medidas intelectuais, visando tornar conhecido o problema social da maconha. 207

Quanto às medidas policiais, quatro propostas foram apresentadas visando serem


implementadas: 1) o fichamento dos viciados e vendedores; 2) a localização das zonas de
plantação no Vale do São Francisco; 3) atuação conjunta de diversos órgãos; 4) visitas
periódicas aos presídios e navios mercantes estacionados no porto. O relatório consta a
205
BRASIL. Serviço Nacional de Educação Sanitária, Maconha: Coletânea de Trabalhos Brasileiros, 2ª Ed.1960. Relatório
apresentado aos membros da comissão sobre a Inspeção realizada de 7 a 19 de novembro de 1943 nos Estados da Bahia,
Sergipe e Alagoas, visando o problema do Comércio e uso da maconha. Dr. Roberval Cordeiro de Farias. 1943. p.04.

206
Veja CARVALHO, Salo. A Política Criminal de Drogas no Brasil: (Estudo Criminológico e Dogmático). 6. ed. rev.,
ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006. p.23

207
BRASIL. Serviço Nacional de Educação Sanitária, Maconha: Coletânea de Trabalhos Brasileiros, 2ª Ed.1960. Relatório
apresentado aos membros da comissão sobre a Inspeção realizada de 7 a 19 de novembro de 1943 nos Estados da Bahia,
Sergipe e Alagoas, visando o problema do Comércio e uso da maconha. Dr. Roberval Cordeiro de Farias. 1943. p.05
90

opinião do major Rocha Pulchério, Secretário de Segurança do Estado, segundo o qual, o


vício da maconha na Bahia seria ainda incipiente, mas o perigo acentuava-se com a ―presença
dos americanos entre nós, pelo aumento do número de vendedores da droga vindos.‖ Uma
referência ao aquecimento do mercado de canabis devido ao poder de compra dos
estrangeiros. 208
Quanto à visita ao Estado do Sergipe, Roberval Cordeiro de Farias, faz uma breve
descrição do andamento da reunião em 13 de novembro com os membros da subcomissão e
autoridades. Sem qualquer proposta efetiva a reunião encerrou-se após uma série de
esclarecimentos técnicos. Entretanto os membros da CNFE fizeram várias visitas a diversos
lugarejos da região. Em Aquidabã, no agreste sergipano, a Comissão descobriu que a
maconha era vendida livremente na feira livre. A Comissão também visitou Propriá, cidade
margeada pelo São Francisco, realizando por lá diversas reuniões com a classe médica e
policial, do outro lado da margem, já no Estado de Alagoas, as cidades de Colégio, Penedo,
São Miguel dos Campos e Nova Igreja foram visitadas e inspecionadas. Sobre esta última,
reproduzo abaixo o registro do presidente da CNFE quanto a passagem por esta cidade:

Fomos em seguida para Igreja Nova, onde, de acôrdo com as informações que possuía o Dr.
Rodrigues Albuquerque, devia haver plantações de maconha. O Prefeito e Delegado locais
nos informaram não haver plantações de diamba na localidade. Com a indicação, porém, que
tínhamos, fomos ter, em companhia do Prefeito, à casa de um septuagenário, que declarou
fumar diamba desde menino, encontrando no quintal de sua casa uma pequena plantação e a
maconha já preparada e sêca, em pequenos sacos, na sua residência, que foi por nós
apreendida.209

Ainda em Alagoas, após novas reuniões com a subcomissão, a comitiva da CNFE


voltou a fazer inspeções, desta vez, em Palmeira dos Índios, Bom Conselho e Garanhuns, em
Pernambuco. Em Palmeira dos índios, confiscaram a maconha de mais um idoso, também
foram à feira local, atrás de um ―raizeiro‖ que costumava vender maconha, o homem, porém,
não compareceu naquele dia, possivelmente fora avisado de que poderia ser preso.
Ao concluir seu relatório, Dr. Roberval Cordeiro de Farias, procurou tecer algumas
considerações sobre os resultados da viagem ao Nordeste. A primeira é que para ele ―nestas
regiões se faz largamente uso da maconha, onde a planta é nativa e era cultivada, até pouco
tempo, sem a menor repressão.‖ Ainda segundo o médico, o uso de maconha se da entre
―indivíduos da classe baixa, os desamparados de assistência social e menores abandonados, os
chamados "maloqueiros" sendo muito difundido o seu uso entre ―criminosos e reclusos nas

208
Idem.

209
Idem.
91

penitenciárias.‖ No interior da região, muitos dos que cultivavam a diamba ignoravam a


proibição, sequer tinham conhecimento sobre a lei. Em Teresina, era possível comprar de um
plantador um quilo de maconha por Cr$ 20,00 (vinte cruzeiros), revendido pelos quitandeiros
por Cr$ 400,00 (quatrocentos cruzeiros). Ao fim, o relatório considerou que a maconha não
―constitui, felizmente, por enquanto, problema social grave,‖ atribuindo à guerra o aumento
do seu consumo. Finalmente, o presidente da CNFE afirmava que após o trabalho realizado na
região, a continuidade das ações desenvolvidas pelas subcomissões, em pouco tempo o
comércio clandestino de maconha ficaria extinto.210
As atividades na região do São Francisco foram fortemente noticiadas pela CNFE à
imprensa no Distrito Federal. O Relatório Ministerial de 1943 destacava a campanha
envolvendo as Comissões Estaduais, as Delegacias Federais de Saúde e a liderança da
Roberval Cordeiro de Faria na presidência da CNFE. Segundo o mesmo, naquele ano:

Foi possível localizar e destruir grande número de plantações de maconha nos Estados da
Bahia, Sergipe e Alagoas, sendo tomadas outras medidas de prevenção e repressão de apurada
eficácia na campanha contra o vício dessa erva211.

Essa relação entre medidas preventivas e repressivas, fazendo parte de um mesmo


conjunto, não implicam necessariamente uma contradição, não são ações estanques. Pelo
contrário, ambas, embora produzam efeitos variados, utilizando-se de relações de forças
distintas, possuem um objetivo comum de poder. Este duplo movimento é confirmado por
Roger Deacon que, após suas leituras de Foucault, afirmara que as relações de poder não são
somente ―danosas‖, isto é, negativas ou repressivas, mas são também ―benéficas‖, ou seja,
positivas e produtivas.212 O poder tem uma face produtiva, geradora de vida e de verdade,
aliás, não há verdade que não seja fruto de uma tecnologia específica de poder 213; não foi
diferente com a verdade construída sobre as drogas. Todo esse conjunto de saberes
distribuídos em fichas, formulários, questionários, cartilhas, instruções, cursos, são operações
positivadas da tecnologia de poder, uma pedagogização capaz de assegurar a aprendizagem e

210
Ibid. p.9

211
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores, Relatórios Ministeriais, 1943, p.61 O Rapports Annuels de Governements
PourL‘Année 1943, publicado pela Sociedade das Nações e distribuído entre os países signatários, também noticiava as ações
do Brasil no âmbito da política repressiva.

212
DEACON, Roger & PARKER, Ben. Educação como sujeição e como recusa. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). O sujeito
da educação: estudos foucaultianos. 5ed. Editora Vozes: Petrópolis, 2002. p.102.

213
FOUCAULT, M. Verdade e poder. In: MACHADO, Roberto. Microfísica do Poder, 4ed. Rio de Janeiro: Edições Graal,
1984. p.08
92

a aquisição de atitudes ou comportamentos desejáveis. Neste sentido, o caráter repressor do


poder seria insuficiente para explicar seu aspecto produtivo, o poder não é apenas o peso da
lei ou uma força que diz não.

Longe de ser possível definir o poder de modo a condensá-lo a um conjunto único que
o caracterize sem muitas complexidades, eis para Foucault uma das possibilidades de
descrevê-lo:

O jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os


apoios que tais relações de força encontram umas nas outras, formando cadeias ou sistemas ou
ao contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que
se originam e cujo esboço geral ou cristalização institucional toma corpo nos aparelhos
estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais. (Grifo meu)214

Entretanto isto não significa dizer que o poder compreende um conjunto de


instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos indivíduos. Para Foucault, os efeitos
mais periféricos do poder, capazes de dar alguma inteligibilidade no campo social, não devem
ser procurados em um lugar central. Não há poder que se exerça sem uma série de miras e
objetivos, o que não significa e que este seja resultado de uma decisão individual. Foucault
recomenda a não buscá-lo em uma casta governante ou em grupos que controlam os aparelhos
do Estado, a rede de relações de poder atravessam aparelhos e instituições, trata-se de um
tecido espesso que se pulveriza nas estratificações sociais. 215 Para compreender como estas
relações de poder resultaram em interditos sobre certos psicoativos pode-se aplicar às drogas a
mesma hipótese utilizada por Foucault na questão do sexo, isto é, se o poder ―pôde tomá-la
como alvo foi porque se tornou possível investir sobre ela através de técnicas de saber e de
procedimentos discursivos.‖216
Foi neste sentido que Eduardo Vargas (fundamentado em Perlonger)217 procurou
correlacionar o ―dispositivo da sexualidade‖218 com o ―dispositivo da droga‖. Este último,
assim como o sexo, nem sempre sofreu o problema da relação repressão e incitação:
É significativo, portanto, que a expansão contemporânea do uso de ―drogas‖

214
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 17ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2006. p.103.

215
Idem, ibidem, p.107

216
Ibid, p.109

217
PERLOGHER, Néstor. “Droga e Êxtase”. Religião e Sociedade, No 16/3. Rio de Janeiro: Iser (1994), p. 8-23.

218
Sobre dispositivos veja também: BENELLI, Silvio José. Dispositivos disciplinares produtores de subjetividade na
instituição total. Psicologia em Estudo, Maringá,v. 8, n, 2., p. 99-114, 2003
93

coincida, em linhas gerais, com a expansão do processo de medicalização dos corpos e


da vida (Perlongher, 1987: 3). De fato, tal processo se articula duplamente como fenômeno
das ―drogas‖, seja na medida em que, ao desencadear uma impressionante ―invasão
farmacêutica‖, ele tanto se apropria de substâncias já conhecidas, quanto cria novas
substâncias a partir de então chamadas ―drogas‖, incentivando e prescrevendo seu
consumo desde que este se dê conforme as normas médicas e seja tido como instrumento
de cura, vale dizer, desde que se dê segundo os termos da sobrecodificação normativa que
os saberes médicos lhe impõem; seja, ainda, que, estendendo-se aos usos não
medicamentosos de ―drogas‖ mediante a generalização de imagens apocalípticas e a
constituição de todo um apanágio terrorífico de corpos deformados e despedaçados, os
saberes e as práticas médicas são peça fundamental na conversão de praticamente todos
esses usos não medicamentosos em usos doentios, em modalidades anormais ou patológicas
de consumo de ―drogas‖, as quais, se não forem prevenidas pelas campanhas
educacionais, deverão ser devidamente sanadas pelos cuidados médicos oferecidos pelas
casas de recuperação de ―viciados‖ (Grifo meu). 219

O projeto que envolvia a produção de um tipo específico de saber, estabelecendo


quem poderia prescrever determinadas substâncias, a quem se poderia prescrever e como,
também definia quais os usos seriam considerados legítimos, tipificando os usos ilegítimos.
Enquanto as medidas preventivas serviam de incitação ao uso legítimo de drogas,
substanciadas pelo discurso médico, aplicadas em favor da vida, as medidas repressivas
buscavam, calcadas no discurso médico-jurídico, separar aqueles que se arriscavam no
caminho da morte. Tais saberes e práticas, instrumentalizados, permitiram o que Eduardo
Vargas chamou de ―legitimação da partilha moral entre as substâncias de uso lícito e as de uso
ilícito‖.220

O modelo como se estabeleceu a política proibicionista no Brasil e o papel


desenvolvido pela CNFE na elaboração das normativas, na regulação do consumo legal e na
criminalização do uso quando este não obedecia à norma, devem ser compreendidos para
além de uma articulação promovida por um Estado ou pela sucessão de Convenções e
Protocolos. Todo esse movimento, apesar das particularidades e raridades que implicam a
política mundial de drogas, dinamizada por engrenagens, estratégias e técnicas, inseridas em
um mecanismo específico; a governamentalização do Estado.

3.3 As estratégias para o pós-guerra

No ano de 1944, o presidente da CNFE, Dr. Roberval Cordeiro de Farias, elaborou


uma análise das condições estruturais brasileiras desde a criação da Comissão Nacional de
Fiscalização de Entorpecentes em 1936. Portanto, passados oito anos, o relatório apresentando
219
VARGAS, Eduardo Viana. Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de ―drogas‖. Tese
(doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, ano 2001.p.210

220
Ibid, p.205
94

ao Diretor Geral do DNS, João de Barros Barreto, que por sinal, boa parte fora reproduzida no
relatório anual do mesmo, contava com uma preocupação quanto ao aumento da incidência do
consumo de drogas em consequência do fim da Segunda Guerra.

Em sua análise, ―o incremento das toxicomanias‖, ocorreu após as guerras de


longo período, como nas guerras da Criméia (1853-1856), Secessão (1861-1865) e Primeira
Guerra Mundial (1914-1918). No Pós-Primeira Guerra, tal incremento, deu-se com uma
intensidade extraordinária, ―raro foi o país‖, escreveu o médico, ―que não pagou pesado
221
tributo aos tóxicos entorpecentes.‖ As razões para tal fenômeno eram fáceis de explicar,
em primeiro lugar, pelo uso indiscriminado de entorpecentes ao longo da guerra para
tratamento dos feridos, o que levaria aos soldados ―habituarem-se ao uso de tóxicos‖. Na
impossibilidade de, em momentos assim, exercer controle rigoroso do uso de entorpecentes
pelas tropas, acrescida pela ―fabricação clandestina‖, que contribui para ―aumentar o número
de traficantes e viciados‖, a toxicomania se ―estende rápida e facilmente para a população
civil‖.

Sem citar suas fontes, Roberval Cordeiro de Farias, afirmara no início da década de
1920, isto é, o pós-Primeira Guerra, o consumo de entorpecentes em alguns países teriam
subido de 30 para 40 toneladas. Já na década seguinte entre os anos de 1931 e 1936, uma vez
―restabelecido o controle sobre tais substâncias‖ as mesmas 40 toneladas dariam para atender
durante o quinquênio as necessidades de todos os países do mundo. Prosseguindo com sua
análise, no caso do ópio, por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, sua produção
anual chegara as 2,650 toneladas, enquanto às necessidades médicas calculadas para o pós-
guerra iriam além de 440 toneladas. O excedente, segundo o médico, iria para o mercado
ilícito.

Em reuniões entre abril e maio de 1944, o Comitê Central Permanente do Ópio,


segundo Roberval Cordeiro de Farias, fez recomendações sobre a necessidade de se
restabelecer o quanto antes uma fiscalização completa e rigorosa, sobretudo, nos países
invadidos pelo inimigo. O texto produzido pelo órgão multilateral afirmava que ―o sofredor
da guerra não resistirá à tentação da oferta do entorpecente que lhe for feita e o traficante não
deixará escapar a oportunidade‖. Como foi o caso do Japão, acusado de ter alargado a

221
O Departamento Nacional de Saúde em 1944. Arquivos de Higiene, p.457. O relatório de Roberval Cordeiro de Farias,
mais tarde foi publicado sob o título: As toxicomanias no após-guerras. No Boletim da Oficina Sanitária Pan-americana, em
Julho de 1946, p. 584. O artigo foi primeiramente apresentado em 14 de dezembro de 1945 em uma palestra proferida pelo
Dr. Roberval, a convite do Rotary Club do Rio de Janeiro.
95

produção de ópio na região da Manchúria, para fazer disso uma ―arma de guerra‖ destinada a
pacificar as áreas ocupadas, teve sua derrota comemorada pelo Comitê: ―A destruição da
indústria de entorpecentes do Japão é outra de histórica significação que os povos
democráticos com natural júbilo irão festejar‖ Uma recomendação especial para as áreas antes
ocupadas pelas forças nipónicas, dizia que a fiscalização nessas regiões deveriam ser feitas
com muita severidade de modo a não se restabelecer o tráfico de ópio.222

Os efeitos do pós-guerra também alcançaram o Brasil, o país teria sofrido com os


―malefícios da invasão da toxicomania‖, constituindo-se em um grave problema social para a
nação.223 Entretanto, afirma o médico que, as autoridades brasileiras não se descuidaram
quanto ao problema, pois, a partir de 1921 uma ―campanha sistemática e bem orientada‖
reunindo autoridades sanitárias e policiais empenharam-se em reprimir a proliferação do uso
indevido de entorpecentes, ―cujos resultados foram os melhores possíveis.‖ Em um salto na
história, Roberval Cordeiro de Farias passa então para 1936 ano da criação da CNFE. O
surgimento da Comissão, em sua opinião, deu-se em função da necessidade de centralizar as
informações exigidas pelo Comité Central do Ópio. O primeiro objetivo da CNFE passava por
prover o país com uma legislação sobre entorpecentes que pudesse abarcar os vários
elementos que envolvessem o consumo e comércio de entorpecentes. Neste caso, a legislação
brasileira poderia, sem exagero, ser considerada uma das ―mais completas e eficientes que
existe na atualidade‖. Dentre os elementos contemplados pela legislação, o presidente da
CNFE destacava os seguintes:

1) a limitação da entrada de entorpecentes no território nacional pela alfândega do Rio de


Janeiro; 2) exigências severas sobre os importadores de entorpecentes do que decorre a
limitação de seu número; 3) controle severo sobre o receituário médico dos entorpecentes, que
é feito em papel oficial, acompanhado de justificativa do seu emprego, do que resulta o uso
dos entorpecentes em doses reduzidas e só nos casos formais de indicação; 4) internação
obrigatória dos toxicômanos em estabelecimentos hospitalares, onde são tratados como
doentes e não como delinquentes, graças ao que se conseguiu rápida diminuição da
toxicomania no Brasil, hoje praticamente inexiste no território brasileiro; 5) fiscalização
rigorosa e generalizada do comércio de entorpecentes em todo o território nacional. 224

De acordo com Roberval Cordeiro de Farias, todas essas medidas teriam sido
integralmente alcançadas e consubstanciadas no Decreto-Lei nº 891 de 25 de novembro de
1938. Tal êxito pôde ser alcançado graças a um bem articulado entrosamento entre a CNFE e

222
Extraído de: FARIAS, Roberval Cordeiro de, As toxicomanias no após-guerras. Boletim da Oficina Sanitária Pan-
americana, em Julho de 1946, p. 584.

223
Ibid,

224
Ibid.
96

o DNS via o Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Todas estas organizações federais
criaram instâncias estaduais, como os Departamentos Estaduais de Saúde, onde eram alocados
os Serviços Estaduais de Fiscalização da Medicina que, por sua vez possuía uma seção ou
inspetoria de fiscalização de entorpecentes, todos eles atuando em conjunto com as Comissões
Estaduais de Fiscalização de Entorpecentes

Organograma 2 - Organização da política nacional de drogas entre os anos de 1942 - 1946.

Após seguir por mais algumas considerações sobre a estrutura legislativa, que àquela
altura já contava com duas décadas de experiência do governo brasileiro em lidar com o
problema (já praticamente erradicado) das drogas, o Dr. Roberval, assegurava que o país
estava preparado para ―enfrentar a avalanche de viciados e os traficantes que tentarão
disseminar o vício dos entorpecentes na nossa terra.‖225 Na exposição que fez no ano seguinte
a convite do Rotary Clube, naquele momento como Diretor Geral do Departamento Nacional
de Saúde, Roberval Cordeiro de Farias defendia que o governo brasileiro deveria prestar
―apoio irrestrito à campanha encetada pelos Estados Unidos, pela qual vem se batendo desde
os primórdios da luta contra o uso ilícito dos entorpecentes.‖226

225
Ibid, p.459
226
Extraído de: FARIAS, Roberval Cordeiro de, As toxicomanias no após-guerras. Boletim da Oficina Sanitária Pan-
americana, em Julho de 1946, p. 586
97

Outra preocupação naqueles tempos era a questão do álcool, desde os tempos de


Juvenal Lamartine (deputado federal entre 1906-1926), e das Ligas Pró-Temperança nas
décadas de 20 e 30, o álcool não retornava ao cenário político com tanto empenho.227 O
Relatório Ministerial de 1944 revela que naquele ano, ―além dos trabalhos de rotina, a CNFE
se ocupara da elaboração de uma lei geral sobre o alcoolismo.‖ O anteprojeto já havia sido
encaminhado pera o Ministério da Justiça e Negócios Interiores e retornado à Comissão.
Tratava-se, dizia o relatório, da primeira ―tentativa desse gênero e escala que se faz no
Brasil.‖228 Já o relatório do DNS daquele mesmo ano apresentava o pronunciamento por
escrito, feito pelo Serviço Nacional de Doença Mental a respeito do anteprojeto, e sobre a
temeridade apresentada pelo Ministério da Justiça:

É justo o receio do Sr. Ministro de que as medidas de repressão, expostas no projeto, gerem o
abuso na venda clandestina de bebidas alcóolicas. Contudo, sendo essa repressão o único
meio de que se dispõe, dever-se-ia, a nosso ver, estabelecer ao lado da medida repressora,
uma propaganda sanitária eficiente que visasse; a) reeducar a população, substituindo o hábito
de uma bebida por outra saudável, ou alimento líquido (leite, mate, por exemplo); b)
incrementar o hábito de preencher os dias de folga com passeios ao ar livre, esportes, etc.; c)
criar para certas camadas menos favorecidas da população um ambiente próprio para horas de
lazer, locais de reunião após o trabalho, com jogos e divertimentos de salão onde seriam
vendidas bebidas refrigerantes. (Grifo meu)229

Este projeto visando contrabalançar os efeitos das medidas repressoras deveria ser
gerido pelo Serviço Nacional de Educação Sanitária. No âmbito das medidas repressivas, o
pronunciamento do Serviço Nacional de Doença Mental defendia a proibição da venda de
bebidas alcoólicas nas proximidades das colônias, alegando que os doentes internados nesses
estabelecimentos gozavam de um regime de liberdade relativa, o que lhes deixavam em
condições de vulnerabilidade frente a tantos pontos de venda de bebidas alcóolicas. O
anteprojeto, ao que tudo indica, caiu no esquecimento, os relatórios dos anos seguintes não
fazem qualquer menção ao alcoolismo.230

227
Juvenal Lamartine não foi o primeiro a propor uma lei visando o controle do álcool, mas teve um forte apoio das
sociedades higienistas em sua época. Veja: MARQUES, Teresa Cristina Novaes. Cerveja, e aguardente sob o foco da
temperança no Brasil, no início do século XX. REHB- Revista Eletrônica de História do Brasil. UFJF, Vol.09, nº1, janeiro-
julho de 2007.

228
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Relatórios Ministeriais, 1944, pp.62-63.

229
O Departamento Nacional de Saúde em 1944. Arquivos de Higiene, p.460

230
O conteúdo do anteprojeto não foi localizado junto a documentação pesquisada. Em 1962, a CNFE comandada pelo
médico Décio Parreiras, realizou um recenseamento nacional sobre as toxicomanias, nele constataram que 94,8% das
internações eram de devidos ao abuso de álcool. Contando com o apoio da recém-criada ―Subcomissão Nacional de
Alcoolismo‖, a CNFE lançara em 1966 o livro “O álcool”, publicado pelo Ministério das Relações Exteriores.
98

3.4 As atividades da Seção de Fiscalização de Entorpecentes entre os anos de 1942 e


1946 e as mudanças nos rumos das importações

Após a reformulação do Departamento Nacional de Saúde, que instituiu o Serviço


Nacional de Fiscalização da Medicina (SNFM) em 1941, algumas mudanças ocorreram no
cotidiano da fiscalização de entorpecentes, mas foi preciso aprovar um regimento próprio do
SNFM para se concretizar o projeto de mudança.231 Mesmo que tenham ocorrido avanços no
âmbito da legislação, tornando-a mais rigorosa, e no âmbito da regulamentação, fazendo-a
mais abrangente, nos relatórios do DNS entre os anos de 1942 e 1946, sempre estiveram
presentes as queixas quanto às dificuldades de execução do trabalho devido à falta de
estruturas adequadas. Ambientes insalubres, falta de espaço, de equipamentos, e, sobretudo,
de pessoal, faziam parte das principais reclamações por parte dos diretores dos serviços ao
Diretor Geral do DNS. Em geral, todas essas queixas eram mantidas no relatório final do
Departamento Nacional de Saúde que se destinava a prestar contas ao Ministro da Educação e
Saúde Pública e à Presidência da República. Apesar da manutenção das reclamações, as
prestações de contas eram apresentadas fazendo-se alusão ao mérito de certos indivíduos ou
das equipes de trabalho, que com empenho conseguiam superar as adversidades estruturais.

Mas aos poucos os serviços se aprimoravam, seja pela incrementação de novos


elementos técnicos, que permitia novos meios de análises e propiciava a construção de novos
conhecimentos, seja pela ampliação do quadro especializado, que se desenvolvia com novas
funções e atribuições técnicas cada vez mais compartimentadas. Em 1942 duas comissões
foram criadas destinadas a contribuir diretamente com as seções de medicina, farmácia e
entorpecentes; as Comissões de Biofarmácia e de Revisão da Farmacopeia. Enquanto caberia
a biofarmácia, padronizar a qualidade, a pureza e a concentração das especialidades de toda
ordem o que incluía os entorpecentes, cabia à Comissão de Revisão da Farmacopeia redefinir
a classificação de certas especialidades, inserir e excluir outras. Mas os avanços no sistema
público de fiscalização da medicina não se davam na mesma proporção que no setor privado.
No ano de 1942, os representantes do SNFM realizaram inspeções em 3.697 estabelecimentos
farmacêuticos dos mais de 20 mil existentes, 63 novas farmácias foram abertas somente no
Distrito Federal e 163 farmacêuticos foram diplomados. Tal disparidade era motivo de críticas

231
O novo regimento foi aprovado pelo Decreto nº 21.339, de 20 de Junho de 1946, sobre o qual tratarei mais à frente.
99

e preocupações quanto aos rumos que o país tomava, por parte dos setores responsáveis pelo
controle e fiscalização de entorpecentes.232

No que diz respeito à fiscalização de entorpecentes, o ano de 1942 apresentou poucas


diferenças aos anos anteriores.233 Um total de 10.649 receitas de entorpecentes foram visadas,
contra 9.576 em 1939, uma diferença de um pouco mais de mil receituários em três anos. Já
sobre os blocos de receituário, em 1942 foram fornecidos aos estabelecimentos farmacêuticos
731 blocos, 55 blocos a menos que em 1939. Mais receitas visadas e menos blocos de
receituário circulando pode ser um indicativo de aumento da eficiência nas atividades
fiscalizadoras. O relatório de 1945, apresentado pelo próprio Roberval Cordeiro de Farias,
traz mais detalhes sobre atividade desenvolvida pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes.

Gráfico 3 - Seção de Fiscalização de Entorpecentes - 1945

232
O Departamento Nacional de Saúde em 1942. Arquivos de Higiene, Ministério da Educação e Saúde p. 294R: 614.06 -
B277a
233
Devido a falta de padronização na apresentação dos relatórios anuais, alguns não revelaram informações sobre as
inspeções nos estabelecimentos farmacêuticos. O relatório de 1939, por exemplo, há uma tabela bem elaborada, com os
detalhes da atuação da seção, como apresentei em forma de gráfico no capítulo dois. Já os dados de 1940 e 1941, não
aparecem nas fontes, sobre o ano de 1942 é possível saber apenas poucas informações, somente com os dados de 1945 será
possível comparar (com 1939) com mais precisão os avanços na fiscalização.
100

Gráfico elaborado a partir da planilha organizada pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes. 234

O relatório de 1945, se comparado ao de 1939, pode se verificar o aumento das


atividades em alguns quesitos, em outros, estagnação, em poucas houve um recuo. O volume
referente à comunicação e informação produzida na Seção de Entorpecentes dobrou, passando
de 243 em 1939 para 403 em 1945, essa diferença, deve-se em boa parte intensificação nas
relações com os Estados. Só no ano de 1945 a Seção emitiu pareceres sobre as ―instruções‖
estaduais sobre o uso e comércio de entorpecentes para os Estados do Maranhão, Amazonas,
Mato Grosso e Goiás. Outro indicativo, ainda referente ao trabalho feito junto às
subcomissões, está nas ―requisições de outros Estados visadas‖, que passaram de 1.735 para
2.784 em seis anos, um aumento de 1.049 requisições, que mesmo com a abertura de novos
estabelecimentos farmacêuticos, demonstra maior controle das saídas e entradas em todo o
país. Se houve um empreendimento maior em relação à distribuição da política de fiscalização
para além da Capital, tal processo deu-se deliberadamente, o projeto de descentralização que
ocorreu em virtude da ativação do trabalho de fiscalização nos Estados refletiu direta e
positivamente no volume das atividades no Distrito Federal. Tal reflexo implicou na
diminuição de praticamente todas as operações pertinentes ao trabalho na Capital. No caso
das ―requisições do Distrito Federal visadas‖ em 1945, o volume sofreu uma queda de 1.105,
passando de 4.221 requisições visadas em 1939 para 3.116 em 1945. O mesmo se deu com as
relações de venda mensais e os mapas mensais, como se pode verificar no gráfico
comparativo abaixo.

234
O Departamento Nacional de Saúde em 1945. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene, Ano
16 junho-dezembro nº 1 e 2 - 1946. p. 127.
101

Gráfico 4 - Comparativo das Atividades da Seção de Fiscalização de antorpecentes


1939/1945.

Gráfico produzido a partir dos dados fornecidos nos relatórios do DNS nos anos de 1939 e 1945.

No que competiu às ações referentes às importações, observa-se um aumento


significativo nas expedições de autorizações e certificações de substâncias psicoativas. No
decorrer do ano de 1945, a Seção de Fiscalização de Entorpecentes concedeu 17 certificados e
36 autorizações de importação, apenas uma autorização foi emitida para a exportação de 16
mil ampolas de Sedol (produto à base de cloridato de morfina) com destino a Cuba. Em 1939,
o volume das importações fora distribuído em 11 certificados e 15 autorizações, entretanto,
essa diferença nas expedições de importação não constituiu em aumento na entrada de todos
os psicoativos. No caso do ópio em pó, por exemplo, em 1939 houve uma entrada de 35,5 kg,
contra 32kg em 1945 e 24kg em 1946. Já a cocaína, o país importou 13,73kg em 1939 e na
metade da década de quarenta elevou a compra para 24,10Kg em 1946 e 23,79kg em 1946.
102

Tabela 5 - Importações de psicoativos entre os anos de 1939 e 1946

Dados fornecidos pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes entre os anos de 1939 e 1946, em gramas. 235

Para além dos volumes das importações estava em jogo a mudança no comportamento
das drogas adquiridas. Os efeitos de poder que envolviam a racionalidade no mercado
farmacêutico se deram na substituição das ―drogas nocivas‖ pelas novas substâncias ―menos
nocivas.‖ No caso da heroína, a CNFE adotou uma política de zerar a importações, prática
esta que pode ser confirmada nas transações comerciais de psicoativos a partir de 1939. Esta
prática deliberada é apresentada por Roberval Cordeiro de Farias:

A heroína, o mais traiçoeiro dos entorpecentes foi cancelado da nossa importação, atendendo
à justa solicitação da Sociedade das Nações. A morfina vem sendo substituída pela codeína e
dionina, muito menos nocivas, graças à campanha educativa exercida junto às classes médica
e farmacêutica do nosso país. A cocaína vai sendo também aos poucos retirada do uso clínico,
e substituída por outros anestésicos que não estabelecem vício.236

A ―campanha educativa‖ mencionada por Roberval Cordeiro de Farias, apresentava-se


muitas vezes na forma de cursos práticos sobre os usos adequados de entorpecentes,
questionários que eram enviados aos médicos com perguntas sobre os direitos e deveres
destes conforme o Decreto-Lei nº 891 de 1938. Em um desses cursos educativos era aplicado
um ―Questionário relativo ao critério prático jurídico adotado ao uso de drogas e
235
O Departamento Nacional de Saúde em 1946. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene, Ano
16 junho-dezembro nº 1 e 2 - 1946. p. 128

236
FARIAS, Roberval Cordeiro de, As toxicomanias no após-guerras. Boletim da Oficina Sanitária Pan-americana, em Julho
de 1946, p.583.
103

toxicômanos‖, composto por uma série de perguntas cujas respostas remetiam aos médicos o
conhecimento da lei. Transcrevo abaixo algumas perguntas com as respostas consideradas
corretas em um modelo pronto:

Tem os médicos o direito de tratar toxicômanos administrando-lhes narcóticos?


Resposta: Só para a tóxi-privação, obedecido o disposto nos artigos 24,25 e 26 das
―Instruções Gerais sobre o uso e comércio dos entorpecentes‖.
Tem o médico poderes discricionários para receitar tóxicos aos toxicômanos ou é ele obrigado
a receitar doses decrescentes até a completa privação?
Resposta: o médico é obrigado a submeter o plano de tratamento do toxicômano à autoridade
sanitária (§7º do art. 29 do decreto-lei 891).
Quais os limites fixados para o tratamento de um toxicômano por médicos?
Resposta: a toxi-privação deve ser feita, de modo geral, no prazo máximo de quinze dias.237

A substituição de certos psicoativos veio acompanhada de outra mudança


significativa; o mercado abastecedor. Se nas décadas de 20 e 30 os principais mercados
exportadores para o Brasil estavam na Europa (Inglaterra, Suíça e Alemanha), na década de
40 os EUA assumiu o topo da lista de principal fornecedor. Em 1945 das 36 autorizações de
importação expedidas pelo governo brasileiro, 25 foram para empresas estadunidenses e das
17 certificações concedidas, 9 ficaram na América. Em 1946 essa vantagem aumentou ainda
mais, das 48 certificações 29 foram dadas à indústria norte-americana e das 55 autorizações
expedidas 35 tiveram o mesmo destino.

Tabela 4 - Distribuição do mercado de fornecedores de psicoativos no Brasil em 1945

Dados fornecidos pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes. 238

Assim, se a entrada de substâncias como o ópio, heroína, maconha e cocaína passaram


a entrar em declínio no mercado brasileiro, os preparados sintéticos derivados do ópio como a
codeína (Etilmorfina e Metilmorfina), industrializadas nos EUA, tiveram saltos substanciais.
A entrada de codeína pura no país passou de 100 kg anuais em 1939 para 470,54kg em 1946

237
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Questionário relativo ao critério
prático jurídico adotado ao uso de drogas e toxicômanos.

238
O Departamento Nacional de Saúde em 1945. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene, Ano
16 junho-dezembro nº 1 e 2 - 1946. p. 127
104

enquanto a codeína em fosfato saltou de 30.63kg em 1939 chagando a 166,96kg em 1946.


Tanto em 1945 quanto em 1946 o governo brasileiro solicitou ao Comitê Central o Ópio
suplementação das importações de codeína pura e em fosfato, sendo 96 kg a mais da primeira
em 1945 e 102 kg em 1946, já da segunda foram 27 kg em 1945, e 53kg em 1946.

Tabela 6 - Distribuição do abastecimento do mercado de psicoativos no Brasil em


1945.
Importações EUA Inglaterra Suíça Outra Total
Ópio Pó 99.792 180.675 40.000 320.467
Ópio Extrato 87.500 40.000 127.500
Morfina 5.000 6.000 3.000 14.000
Pantopon pó 7.994,50 7.994,50
Cocaína 2.000 20.000 2.100 24.100,00
Dionina 59.416,50 20.500 20.000 99.916,50
Codeína Pura 121.407,75 45.000 18.000 184.407,75
Codeína Fosfato 96.477,70 31.000 23.000 150.477,70
Tabela elaborada a partir dos dados informados pela Seção de Fiscalização de Entorpecentes. 239

A maior participação dos EUA nas importações de psicoativos no Brasil não implicou
apenas na substituição de determinadas substâncias e no aumento da entrada das drogas
produzidas por este. A pressão exercida pela política proibicionista estadunidense em alguns
casos fizeram com que a CNFE adotasse medidas de restrição a substâncias que sequer faziam
parte da lista aprovada pelo Comitê Central do Ópio. Um exemplo foi a ―Papaverina‖, um
vasodilatador derivado do ópio, que em 1945 foi incluída no segundo grupo do artigo 1º do
Decreto-Lei de 1938. Na justificativa apresentada pela Seção de Fiscalização de
Entorpecentes estava justamente o fato de que, embora tal substância não figurasse na relação
do Comitê, ―os Estados Unidos da América do Norte também a consideram como
entorpecentes‖.

Havia, em 1946, 16 empresas com registros legais para importar psicoativos para o
Brasil, a CNFE entendendo que o volume das importações era insuficiente para garantir cotas
satisfatórias a todas, resolveu elevar os valores da caução como forma de inibir as inscrições
de novas empresas. O Decreto-Lei nº 891 de 1938 definia em seu artigo 4º que as empresas
importadoras de entorpecentes deveriam depositar junto à Caixa Econômica Federal, caução
239
O Departamento Nacional de Saúde. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene. Anos de 1945 e
1946. Na tabela acima não foram computados a suplementação de codeína.
105

que poderia variar entre 10 a 30 mil cruzeiros, valores que eram para prevenir ―eventuais
multas e custas processuais.‖ Assim o Decreto-Lei 8.646 de 11 de janeiro de 1946 elevava a
caução para as importadoras para 30 a 50 mil cruzeiros. O procedimento, em questão, teve
como resultado prático quatro depósitos na quantia de 50 mil cruzeiros, pertinente a quatro
empresas que solicitaram o registro de importação de entorpecentes, o que demonstra a
lucratividade do negócio.240

Os compromissos com o Comitê Central do Ópio também atingiram níveis mais


satisfatórios a partir da década de 1940, os envios de mapas estatísticos e formulários que em
1939 atingiram apenas 6 relatórios, em 1945 chegaram a 11. A política de estruturação das
subcomissões resultou em maior volume de informações das necessidades médicas no
território nacional, mesmo que estes mecanismos de controle não correspondessem a
resultados reais, tendo em vista todo o conjunto de artifícios desenvolvidos para vazar pelas
fendas da barragem criada pela regulamentação. Ainda assim, a Seção de Fiscalização de
Entorpecentes pôde, valendo-se dos dados de todos os Estados, preencher informações que na
década anterior não eram possíveis de reunir.

Com a chegada da segunda metade da década de 1940 a CNFE encontrava-se melhor


estruturada. O Decreto-Lei nº 891 de 1938 fora colocado em prática em quase todos os seus
artigos, a exceção àqueles pertinentes ao tratamento dos toxicômanos previstos no capítulo
III, por exemplo, o parágrafo 12º do artigo 29º que versava sobre a obrigatoriedade dos
estabelecimentos médicos fossem eles públicos ou privados, serem obrigados a possuir um
livro específico no qual deveriam ser relatados à história clínica e o tratamento dos pacientes
vitimadas pelo vício.241 Entretanto, no que tangeu a aplicação dos dispositivos legais quanto à
criação dos aparelhos fiscalizadores do comércio e da repressão aos usos ilegais, as estratégias
desenvolvidas pela CNFE atingiram níveis até então nunca alcançados.

Ao comparar, porém, a entrada de psicoativos no Brasil com os demais países da


América Latina, apenas a Argentina atingia um volume superior de importação. O mercado
brasileiro era inferior ao de países bem menores da Europa, como por exemplo, a Bélgica.
Quando comparado com as potências mundiais, como EUA e URSS as diferenças destes com
o mercado brasileiro se acentuavam significativamente. A Argentina em 1946 havia
importado mais que o dobro que o Brasil em morfina (50kg / 20kg) e mais que o triplo em

240
O Departamento Nacional de Saúde em 1946. Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina. Arquivos de Higiene. p.255.

241
Decreto- Lei nº 891 de 25 de novembro de 1938. Capítulo III, art.29º §12º.
106

cocaína (80kg / 25kg), além disso, o país ainda fazia importação legal de heroína. Já os EUA
obtinham um patamar de consumo muito superior ao Brasil, a projeção apresentada pelo
governo estadunidense para o ano de 1946 em morfina chegara a 2.250kg, em cocaína 900kg.

Tabela 4 - Evolução dos requerimentos de drogas nocivas em


1946

Dados obtidos do Relatório Anual do Comitê Central do Ópio em 1946.242

Há de se questionar, não sendo o Brasil produtor das substâncias em questão e cujas


importações para o consumo interno não representavam algo significativo ante o mercado
mundial de drogas, o porquê de seu pioneirismo em criar uma organização doméstica
destinada a centralizar as políticas regulatórias sobre drogas. Entendo que as condições
políticas de possibilidades para a criação desta estrutura estão diretamente relacionadas com o
projeto de agenciamento e centralização das políticas sociais de saúde pública pelo Estado a
partir do primeiro governo de Getúlio Vargas. As reformas políticas no pós 1930, segundo a
historiadora Ana Lúcia Vieira, permitiram um articulado:

242
Arquivo Histórico do Itamaraty. Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. Lata 1892/ Maços: 36264-36265.
A União Soviética em 1945 importou 1.550kg de morfina, 1.000kg de cocaína, 7.000 kg de metilmorfina, 650kg de
etilmorfina e 50kg de diacetilmorfina (heroína).
107

―tipo de governamentalidade que se constituiu em rede de modo a poder avançar


simultaneamente sobre o maior número de questões vinculadas ao governo da
sociedade, e ao mesmo tempo sem permitir espaços de autonomia e posturas de
enfrentamento‖ 243

A CNFE é, portanto, efeito dessas relações de poder que convergiram não de modo
natural, mas sob uma série de conflitos e disputas, onde o modo de conduzir a vida das
pessoas tornou-se vital para governar bem. O discurso médico-jurídico fez emergir um
―Estado sanitário‖, cujo objetivo era tornar são o corpo social. A administração de psicoativos
passou a ser de exclusividade médica, o uso recreativo foi criminalizado, a gestão de toda
tecnologia desenvolvida para fazer valer a nova razão de Estado ficou a cargo da CNFE por
um período de quatro décadas, o que faz da Comissão um importante instrumento da
internalização do proibicionismo no Brasil.
Em 11 de dezembro de 1946, foi assinado o protocolo que transferia para as Nações
Unidas os poderes e funções exercidas pela Liga das Nações no que dizia respeito à política
mundial de drogas. O governo brasileiro, cujo projeto em consonância com os objetivos da
CNFE, visava conseguir uma vaga permanente no Comitê Central do Ópio, aos fins de 1947
ainda não havia ratificado tal protocolo. A delegação brasileira representada na Conferência
de Nova Iorque, pelo diplomata João Carlos Muniz, solicitou por telegrama a urgência na
ratificação, justificando que esta poderia colocar o país em uma situação de inferioridade na
indicação dos candidatos brasileiros junto ao órgão. Nos anos que viriam, isto é, nas duas
décadas seguintes a CNFE seguiu procurando acompanhar a política mundial de drogas. A
Comissão participou ativamente de todas as alterações legais que permitiram ampliar o
aparelhamento do Estado na luta contra as drogas. A atuação da CNFE, ao longo de quase
quatro décadas, serviu para dar sustentação à política proibicionista no Brasil. Ultrapassando
governos e lideranças políticas, as leis, os regulamentos e normativas cristalizaram práticas
sociais que eram latentes e que foram apropriadas pelo Estado, como alertou Thiago
Rodrigues.244

243
VIEIRA, Ana Lúcia .op. cit. p.65

244
RODRIGUES, Tiago. op.cit.p.161.
108

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta dissertação procurei compreender as ações desenvolvidas pela CNFE no Brasil,


como uma estratégia da governamentalização do Estado, cuja racionalidade possibilitou a
internalização do proibicionismo via tratados internacionais. Tais convenções, segundo
Thiago Rodrigues, devem também ser compreendidas como ―condensações dos controles
nacionais‖,245 assim a governamentalidade do Estado, parte das práticas sociais que emanam
do corpo social e extrapolam o próprio Estado ao estabelecer-se como acordos de ordem
internacional. Por outro lado, tais dispositivos, ao tornarem-se compromissos internacionais,
agem num processo de retroalimentação à medida que retornam na forma de tratados e
convenções propiciam ao Estado as condições para intervir no corpo social por meio de um
saber-poder que está acima do próprio Estado.
Neste sentido, busquei identificar nas atividades da CNFE as práticas de saber-poder
que caracterizaram uma sofisticação dos métodos e técnicas utilizadas no Brasil desde a
década de 1920. Procurei analisar as políticas desenvolvidas pela Comissão de modo a não
naturalizá-las, mas situando-as a partir das suas matrizes discursivas, sobretudo àquelas
referentes ao discurso médico-jurídico. Estas podem ser compreendidas pela internalização do
modelo mundial de políticas de drogas centradas no Comitê Central do Ópio órgão
multilateral vinculado a Liga das Nações.
A CNFE a partir da segunda metade da década de 1930 até sua extinção constituiu-se
na principal instrumentalidade de uma engrenagem multiforme, capitaneada pelo Estado
brasileiro em articulação profunda com diversos setores e estamentos da sociedade civil. Sua
organização não foi um fato isolado, tratava-se da conversão de diversos enunciados que
culminaram em práticas discursivas direcionadas para a gestão da vida. Considerei ser de
suma importância, para compreender o modo como a política proibicionista foi sendo
internalizada no Brasil, analisar a participação dessa organização que passou a centralizar as
condutas a serem desenvolvidas no âmbito da regulamentação das drogas no país.
O modelo de organização da CNFE, envolvendo diversos ministérios, permitiu a esta
articular-se em várias frentes levando a cabo uma série de estratégias, que englobavam a
constituição de dispositivos legais, como a fiscalização na alfândega, repressão policial,

245
RODRIGUES, Tiago. op.cit. p.167
109

controle do comércio legal nas farmácias e junto à classe médica, dispositivos pedagógicos,
por meio das instruções, normativas, questionários, palestras, e por fim, na patologização dos
usuários, por meio de uma sucessão publicações científicas que reforçavam o vínculo entre
uso recreativo e a toxicomania. Tal modelo de organização, ao ser desenvolvido nos Estados
da Federação com a criação das subcomissões Estaduais possibilitou a amplificação de um
sistema ramificado e hierarquizado. Desse modo foi possível incitar o consumo de
determinadas substâncias e reprimir outras, caracterizando um jogo complexo do ―dispositivo
drogas‖.
A complexidade na relação entre as sociedades e as drogas está presente no próprio
termo droga (Phármakon em grego) como percebeu Jacques Derridá.246 O termo poderia
significar como em Fedro,247 remédio ou veneno, o φάρμακοv (Phármakon), significou em
Odisséia,248 ora a poção mágica de Circe, ora o antídoto que Hermes oferece a Odisseu. O
phármakon em outro momento é também o remédio que Helena deita no vinho, ou o veneno
no qual Odisseu embebeda suas flechas.249 Como observou Jacques Derrida:
Sócrates compara a uma droga (phármakon) os textos escritos que Fedro trouxe consigo. Esse
phármakon, essa "medicina", esse filtro, ao mesmo tempo remédio e veneno, já se introduz no
corpo do discurso com toda sua ambivalência. Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa
potência de feitiço podem ser — alternada ou simultaneamente — benéficas e maléficas.250

É este caráter ambíguo, e, por vezes contraditório (veneno/antídoto), que ao


longo da história divide homens e mulheres nas formas de uso e administração de substâncias
psicoativas. As drogas são associadas a medicamentos capazes de sanar ou curar, apesar de
seus efeitos colaterais, mas também estão associadas a ―substâncias de prazer‖ e mesmo
denotando a ideia de degradação e sofrimento, seus consumidores são conduzidos a ―paraísos
artificiais‖.251 Michel Foucault, ao tratar da questão da proibição das drogas, compreendeu
que a ambivalência envolvendo seus usos, recebeu por parte da política liberal um tratamento
dicotômico que ele classificou como frustrante:

246
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005.

247
PLATÃO. Fedro. Trad. J. Ribeiro Ferreira. Lisboa: Verbo, 1973.

248
HOMERO. Odisseia. Trad. Carlos Alberto Nunes; rev. Marcus Rei Pinheiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

249
MARCHELLI, Clarissa. O Phármakon na Odisséia: Ambiguidade e função Narrativa. In. Anais do I Congresso
Internacional de Religião Mito e Magia no mundo Antigo. UERJ – 2010. ISSN: 1984-3615.

250
DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo: Iluminuras, 2005. p.14.

251
FIORE, Maurício. Prazer e Risco: uma discussão a respeito dos saberes médicos sobre o uso de ―drogas‖. In. LABATE,
Beatriz. CARNEIRO, Henrique. (et.al.), (orgs.) – Drogas e Cultura: Novas Perspectivas. Salvador: Edufba, 2008. p.144.
110

- O que me frustra, por exemplo, que se considere sempre o problema das drogas
exclusivamente em termos de liberdade ou de proibição. Penso que as drogas deveriam
tornar-se elemento de nossa cultura.
- Enquanto fonte de prazer?
- Enquanto fonte de prazer. Devemos estudar as drogas. Devemos experimentar as drogas.
Devemos fabricar boas drogas - capazes de produzir um prazer muito intenso. O puritanismo,
que coloca o problema das drogas - um puritanismo que implica o que se deve estar contra ou
a favor - é uma atitude errônea. As drogas já fazem parte de nossa cultura. Da mesma forma
que há boa música e má música, há boas e más drogas. E então, da mesma forma que não
podemos dizer que somos "contra" a música, não podemos dizer que somos "contra" as
drogas. 252

Cabe ressaltar que o puritanismo a que Foucault se refere em 1982, se fazia atuante em
organizações reformadoras pró-temperança no início do século XX, e ainda encontra-se
presente nas concepções proibicionistas de hoje. Segundo Becker253, alguns valores morais
são afrontados ao se liberar ou descriminalizar o uso de drogas. O primeiro está diretamente
calcado na ética protestante cuja consciência e responsabilidade dos atos devem estar pura ou
limpa diante de Deus. Neste caso o consumo de drogas implicaria na ―perda da consciência‖
ou ―descontrole‖, isto é, interferiria no autocontrole, logo deveria ser condenado. Outro valor
seria a busca inadequada por prazer e estados de êxtase, tal busca só seria considerada
legítima se associada ao trabalho ou a experiências religiosas, mas não no caso de uso de
psicoativos.
São justamente estes efeitos de poder que esta dissertação procura desnaturalizar.
Todo conhecimento construído com objetivo de regulamentar determinadas substâncias e
criminalizar outras, se cristalizaram por uma série de técnicas que necessariamente não são do
âmbito da proibição. Logo, defendo que os estudos sobre o proibicionismo não devem se
limitar apenas aos aspectos do seu caráter repressivo, mas antes, considerar sua positividade,
sua produtividade, sua eficácia. A ―cruzada contra as drogas‖ é tão somente uma das faces da
tecnologia de poder que envolve o ―dispositivo drogas‖. É nessa lógica que Foucault inverte o
aforismo de Clausewitz ao afirmar que a política é a guerra continuada por outros meios.254
Desta forma, não é apenas no campo das interdições que reside o poder constitutivo do
―dispositivo drogas‖, mas nos saberes e nas práticas discursivas que buscam construir regimes
de verdades que atravessam o corpo social. Foram esses regimes próprios, isto é, específicos

252
Michel Foucault, an Interview: Sex, Power and the Politics of Identity; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto,
junho de 1982; The Advocate, n. 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58. Esta entrevista estava destinada à revista
canadense Body Politic. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.

253
BECKER, H.S. Apud. MORAIS, Paulo César, Drogas e Políticas Públicas. Tese de doutorado, FAFICH/UFMG, ano
2005. p. 78.

254
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.
p.22.
111

do dispositivo em questão, que produziram e sistematizaram diversos tipos de conhecimentos,


cujos efeitos fizeram surgir não apenas novos objetos e novos conceitos (ou enunciados)
como: a ―guerra às drogas‖, ‗narcotráfico‖, ―narcodólares‖; mas também novas técnicas
como: ―política mundial sobre drogas‘ ou ―tratamento e prevenção ao uso indevido de
drogas‖; novos sujeitos: ―traficante‖, ‗viciado‖, ―narcoguerrilheiro‖; ou ainda, novos sujeitos
255
do conhecimento: ―estrategistas em warondrugs‖. É neste sentido que a concepção da
CNFE deve ser compreendida, como um centro de difusão do saber/poder sobre drogas, ao
mesmo passo que também era atravessada por este saber/poder.
Há ainda muito que se estudar sobre as três décadas de atuação da CNFE não
contempladas neste trabalho. A documentação apesar de precária e repleta de lacunas, permite
o desenvolvimento de novas reflexões. No início da década de 1960, por exemplo, a
Comissão assume o protagonismo nas Américas ao conseguir fazer do Brasil o anfitrião da
Conferência Interamericana em março de 1960 com a participação de 12 países. Também fora
relativamente significativo o volume de memorandos trocados entre a delegação brasileira por
meio de seus delegados Ciro de Freitas-Valle e Aluysio Regis Bittencourt, na Convenção
Única de 1961, considerada um marco legislativo no recrudescimento repressivo da política
mundial de drogas. A Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes fora um agente
atuante na política de drogas brasileira. Encarregada por promover mudanças no âmbito
legislativo, assim como efetuar ações de caráter fiscalizador além de se tornar responsável
pela produção de conhecimento sobre o mercado legal e ilegal de drogas por décadas. A
história do proibicionismo no Brasil, o modo como este fora internalizado em todas as regiões
e a CNFE estão intimamente imbricadas. Localizar estas imbricações, transcrevê-las mesmo
que sem aprofundar suas problematizações, talvez seja a maior contribuição deste trabalho a
historiografia dos interditos dos psicoativos no Brasil.

255
CARVALHO. Jonatas. A América Latina e a criminalização das drogas entre 1960-1970 : Prenúncios de outra guerra por
outra América. Anais do XV encontro regional de história da Anpuh-Rio. ISBN. 978-85-65957-00-7. 2011
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