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Foi também na forma de texto que, ao longo de 2020, nós, do Projeto Analisar,
tentamos transmitir algumas elaborações acerca dos acontecimentos que mudaram
radicalmente nosso modo de viver e nossa forma de trabalhar. Um ano em que
manter acesa a luz do desejo foi um desafio diário! Em nenhum momento do meu
percurso na psicanálise (e creio que no de vocês também não) assistimos a
tamanha mobilização do universo psicanalítico em torno de um mesmo tema: a
COVID 19 e seus reflexos nos tratamentos, na sociedade,nas atividades diárias…
Uma realidade que necessitou ser reconstruída frente ao real que nos arrebatou. A
“coisa COVID”, como escreveu nossa colega Shana Nakoneczny Pimenta veio “sem
um porquê, sem um para quê, numa velocidade alucinante, virando nossas
vidas de cabeça para baixo(...). Por quê para quê não acredito. Porquê para
quê não acredito.Porquê para quê não acredito”. Sem pontuação, sem
intervalos, sem tempo de compreender...Nosso tempo de elaboração que ocorria
mais ou menos pareado ao dos paciente, necessitou ser cuidadosamente ser
deixado de lado no momento da escuta analítica. Entre os atendimentos, fomos
inundados por uma enxurrada de notícias que violentamente inseriram novos
significantes no nosso repertório: novas formas de dizer o mundo e de nos
colocarmos nele.
“Ficamos assustados por essa ameaça invisível que nos fere de tantas
maneiras. O temor à doença e à morte nos leva a nos enxergarmos como
seres suscetíveis e vulneráveis perante o outro como eventual portador de
uma ameaça”. As palavras de Consuelo Arancibia Patitucci, traduzem a urgência
com que tivemos que criar novas formas para manter nossa condição subjetiva, pois
de um dia para outro, ficamos sem anteparo, sem moldura, sem os alicerces
simbólicos que nos sustentavam. E quando algo dessa ordem chega
repentinamente, colocando à prova as possibilidades psíquicas de representação,
também os ideais caem por terra, incluindo os que muitas vezes assombram o fazer
psicanalítico.
Nas conversas com os pacientes, mantivemos um ar de serenidade e controle da
situação; nos bastidores, parecíamos baratas tontas sem saber pra onde ir.
Rapidamente aceitamos questionar os preceitos que sustentavam a prática clínica
para seguir adiante. A urgência em manter os laços e o trabalho, fez com que
profissionais do mundo inteiro se colocassem em movimento e, como em uma
anamorfose (deformação da técnica sem que seja degradada), reposicionamos a
técnica sem deixar de lado sua consistência . Os ideais foram sendo derrubados um
a um para dar lugar ao novo: saímos detrás dos divãs, enfrentamos nossas
resistências e fomos para a frente das telas. E mesmo com uma vontade imensa de
sair correndo, nos reinventamos. Também assistimos emocionados, a reinvenção
que surgiu dos lado dos analisantes que inauguraram espaços inusitados para
preservar seu lugar de fala.
Mais do que nunca, nos agarramos com unhas e dentes ao desejo do analista e
constatamos dia após dia a importância da análise pessoal para a sustentação da
prática. Nossa tarefa certamente ainda não terminou, mas arriscaria dizer que
estamos encarando com coragem a missão de manter viva psicanálise. Estamos
fazendo história, ou pelo menos, tentando… Como bem nos lembra André Ehrlich,
para elaborarmos um evento traumático é necessário a constituição de uma
metáfora; uma forma de dizer que introduz temporalidade aos eventos e possibilita
um olhar para o futuro. Sem esse trabalho, assistimos o passado “viver de modo
contínuo no presente, sem a ruptura oportunizada pela metáfora! (...) o
passado não está dado, só se faz no só depois; o passado, não tendo
passado, permanece presente bloqueando o futuro”.
Um futuro que se abre com a condição de colocarmos na conta as inumeráveis
perdas deste período e as que ainda estamos vivendo diariamente, que como faz
notar Camila Zoschke Freire “vão desde as coisas efêmeras do cotidiano até a
assimilação das milhares de mortes que ocorreram no mundo inteiro”. “O
desligamento que o trabalho de luto possibilita”, segue dizendo, “passa por
contar histórias, instituir uma narrativa - em última instância, sustentar a vida
no campo simbólico”.
Eu também não fiquei de fora! Costurando as citas dos textos dos meus colegas,
estão as minhas elaborações, que certamente se sustentam a partir do trabalho que
realizamos ao longo do ano. Os participantes dos grupos se mantiveram firmes,
seguraram nossas mãos e não nos deixaram recuar. Ao contrário: nos lembraram
em cada encontro que o pior exílio é o do nosso desejo. Também por isso, os
agradeço profundamente.
Dito isso, declaro aberta II Jornada do Projeto Analisar!