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Ano II, Edição IV, Junho de 2014

Jornal da Sociedade de Psicanálise de Brasília

A HISTÓRIA DAS IDEIAS


Apresentação Esta edição reúne temas desde a poesia de Mia Couto, por Cíntia Albu-
querque; a vida e obra de Ariano Suassuna, por Helena Pontual; às vivên-
cias pessoais, na clínica ou fora dela, de Pedro Jabur, Keyla Vale, Daniela
Boianovsky, Veridiana Guimarães e Marina Abdalla. E as ilustrações de
Alexandre Ricciardi. Sylvain Levy traz um original ensaio sobre a noite.
Às reflexões de Avelino Neto e Aurea Cerqueira sobre formação e ofício
psicanalítico, juntam-se as do filósofo Friedrich Nietzsche, num atualíssi-
mo questionamento sobre o futuro dos institutos de formação, transcrito
nestas páginas. Por fim, professor Luiz Tenório Lima conta-nos como
desenvolveu um profundo conhecimento da história das ideias. Resta citar
Mia: “Para falar destas coisas uma ciência única não basta. Nós temos que
ter vozes diversas”.
Cláudia Carneiro, editora

Mia Couto – O olhar psicanalítico do poeta biólogo ◆ Cíntia Albuquerque ◆ 3


Nesta Edição Uma pensata sobre Ariano Suassuna ◆ Helena Daltro Pontual ◆  5
A noite ◆ Sylvain Levy ◆ 8
Contador da história ◆ Entrevista com Luiz Tenório Oliveira Lima ◆  12
De coisas não só do Reino da Dinamarca ◆ Avelino Neto ◆  18
Trânsito livre para o ofício psicanalítico ◆ Aurea Chagas Cerqueira ◆  20
Pensamentos sobre o futuro de nossos institutos de formação ◆ Friedrich Nietzsche ◆ 21
Inconsciente no céu aberto da cidade ◆ Pedro de Andrade Calil Jabur ◆  23
Por um instante só... ◆ Keyla Carolina Perim Vale ◆  25
Um vaso de flor... ◆ Daniela Boianovsky ◆  26
Amor: Desejo do que não se tem ◆ Veridiana Canezin Guimarães ◆  28
Inquietações ◆ Marina Abdalla de Souza Porto ◆  30

Quem somos Edição e Revisão


Cláudia Carneiro
Diretoria da SPB
Carlos de Almeida Vieira, Presidente
Maria Helena de Oliveira Castro, Secretária
Equipe Editorial Ana Velia Vélez, Tesoureira
Carlos Cesar M. Frausino Mirian Ritter, Diretora Científica
Cíntia Xavier de Albuquerque Maria Silvia Valladares, Diretora do Instituto
Helena Daltro Pontual
Jornal da Sociedade de Psicanálise de Brasília,
Ilustrações filiada à Federação Brasileira de Psicanálise, febrapsi,
Alexandre Ricciardi e à International Psychoanalytical Association, ipa.
www.spbsb.org.br + spbsb@Spbsb.org.br
Projeto Gráfico e Diagramação jornal@spbsb.org.br
Juliana Albuquerque
www.jualbuquerque.com

Impressão e Apoio
Gráfica e Editora Positiva Ltda

Os artigos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião da SPB.
MIA COUTO
O OLHAR PSICANALÍTICO
DO POETA BIÓLOGO
Cíntia Xavier de Albuquerque

Ao ouvir a conferência de Mia Couto na UFRJ antes de nascermos!


(setembro/2013), fui tomada por espantos. Mia prossegue: “e essa vida que temos nes-
Senti desejo de partilhar com meus colegas sa câmara obscura, essa vida intrauterina, é
psicanalistas essa experiência emocional. uma espécie de uma avalanche, um furacão
Ao mesmo tempo, minha paixão e reverên- de eventos que se sucedem de uma manei-
cia pelo poeta moçambicano me fazem temer ra veloz, cada vez mais acelerada. Mas, num
interferir nas suas falas e estragá-las. Por isso certo momento – vou falar do cérebro, só –,
quis desistir. Não consegui. Tentarei, delica- há uma construção que é feita a um ritmo de
damente, extrair da fala de Mia Couto alguns 250 mil novas células por minuto. É alguma
tesouros. E vou deixá-los meio soltos... que coisa que não pode ser comparada com ne-
viva cada um sua própria rede associativa. nhuma outra máquina... dentro deste ventre,
Ele se propõe a falar da oralidade “não fa- nós começamos a ouvir muito antes de ver.
lando muito dela”. E diz que utiliza, na escri- Começamos a ouvir a partir dos três meses.”
ta, afetos, vínculos, memórias, pessoas: “não Nesse momento Mia fala de dentro de sua
há aqui um saber formal, não sei explicar- mãe, numa proximidade comovente com seu
me”. De início decide contar, aproveitando próprio interior. Agora agrega palavras . E,
o fato de ser biólogo, “como a voz se tornou abençoado como é, fala poesia:
corpo” na espécie humana: há centenas de “Então nesse momento estamos encerrados
milhares de anos houve uma mutação gené- dentro de um oceano. Acho que aqui começa
tica essencial para um grupo de símios que esse grande fascínio pelo mar. Porque vive-
tinha um crânio muito volumoso. Isso fez mos submersos nesse oceano interior... ob-
com que nascêssemos numa fase muito pre- viamente, estando dentro de um líquido, os
coce do nosso desenvolvimento, com o crânio sons são amplificados... o som, primeiro, do
um pouco menor, mas necessitando de total nosso próprio coração, que começa a bater
amparo após o nascimento. Já nascemos em antes de termos mãos ou pernas. O coração já
situação de risco. existe e nós escutamos a nós próprios, mas es-
“Tivemos que inventar uma espécie de cutamos, sobretudo, a voz da nossa mãe. Esse
um segundo ventre, um ventre protetor que é o primeiro contato com alguma coisa que é
prolongasse esse efeito de aconchego que uma espécie de um sentimento vago... está ali
era o ventre materno. Esse novo ventre, esse um outro, que também tem um coração que
novo aconchego, não é feito de carne, de ma- bate. E essa voz da nossa mãe é como se fosse
téria, mas é feito de afetos, é feito de vozes, uma espécie de parte de nós próprios, como
é feito de relações que são inventadas. Esse se fosse um eco, indistinto de nosso próprio
ventre chama-se infância. A infância não foi ser. Esse bater do coração da mãe eu acho que
inventada pela espécie humana. Na história é importante porque marca uma espécie de
da evolução quem inventou a infância foram primeiro compasso. Um primeiro tambor que
os pássaros. Curiosamente quem inventa o está sincopando o tempo. Entre o ritmo do
voo inventa também a infância. As aves são os coração, entre a voz da mãe, entre essa es-
primeiros a tratar das crias, a colocar nisso um pécie de silêncio dessa água onde vivemos
empenho tão vital que esse sentimento nós já nove meses, nós aprendemos muito a sermos
podemos chamar de amor. Começa ali. É uma nós próprios. E aprendemos a fazer uma certa
relação que acaba por confundir aquilo que é distinção, que é sempre muito fluida, entre o
mãe e o que é filho.” Então a infância começa que é do outro e o que é próprio.”

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Após o nascimento começa a construção muito de gatos) sempre surpreende: “O que
do segundo ventre, a infância. Esse ventre é me atrai nesta coisa de ser escritor é exata-
literalmente construído ... “através das vozes, mente deixar de ser escritor, é ter momentos
dessa fala que ainda não está formada por pa- em que não sou escritor... e para escutar intei-
lavras, mas a adivinhação que se faz do ros- ramente os outros eu tenho que estar dispo-
to que chega, porque vemos desfocado, esse nível, não posso ouvir os outros na condição
tempo que passa entre o chorar e a presença de escritor. Eu tenho que me apagar a mim
desfocada de alguém, essa aprendizagem que próprio ... que essas vozes que acontecem
temos do próprio tempo, é feita nesse mo- tomem posse de mim inteiramente e eu seja
mento. E, curiosamente, essa primeira lin- ocupado pela infância outra vez.”
guagem que nós temos é feita por vogais. Eu Essa intenção de disponibilidade nós tam-
gostaria de ver aqui não só uma incapacidade, bém conhecemos bem. E sabemos como é
mas as vogais são aquelas que melhor trans- enrascado querer ouvir o outro com qual-
mitem isso que é o espanto, que depois nos quer espécie de encomenda acoplada. Toda
persegue toda a vida. Há ali uma fabricação, interferência aqui é perigosa.
entre lágrimas e esperas, uma fabricação do Vamos concluir num dos espaços preferidos
tempo, e é aqui que nasce a oralidade.” por Mia: a cozinha. Ali a mãe se ocupava com
Mia justifica sua incursão pela biologia: as vizinhas, e o menino, sentado no chão para
“Para falar destas coisas uma ciência única fazer os deveres da escola, “via essas saias que
nao basta. Nós temos que ter vozes diversas, ondulavam, como se houvesse ali uma brisa,
porque somos tanto feitos de corpo quanto de um mistério”. Elas falavam baixo, “como se
palavras. Nao é possível separar.” houvesse sempre um segredo, algo que só se
A infância é toda preenchida pelas vozes da pudesse dizer naquele sussurro. E aquilo me
casa primeira, “como se elas próprias fossem encantava como se houvesse ali um templo...
uma casa”. O terceiro ventre. “Depois eu per- como se o que estivesse a acontecer fosse da
cebi que quando se perde o ventre materno, ordem da alquimia...um acontecer de coi-
que depois vai ser reinventado, a gente inven- sas... então foi nessa cozinha que eu mais me
ta sempre um novo. Eu inventei vários.” Seus fiz poeta”.
pais eram contadores de histórias, mas ele diz E agora vou saindo assim de mansinho, so-
não recordar de nenhuma: “Portanto o que nhando ter deixado espantos e encantamen-
me fascinava não era o conteúdo da história, tos salpicados por aí.
mas o momento de encantamento, era ter na
cabeceira minha mãe e meu pai só para mim,
inteiramente só para mim.”
Quando começou a “enfrentar a leitura”,
essas vozes, reminiscências com presença
quase física, o expulsavam do ato de ler. Era
preciso um esforço enorme para voltar ao
texto. Nós, psicanalistas, conhecemos isso.
Viajamos muitas vezes enquanto lemos. Não
vamos em busca das lembranças. Elas é que
nos sequestram para dentro.
Começou a escrever “muito animado por
esta ideia de autorizar, dar permissão a es-
sas vozes antigas que já me assaltavam”. Mas Cíntia Xavier de Albuquerque é membro titular
como Mia (que tem esse apelido porque gosta da Sociedade de Psicanálise de Brasília.
UMA PENSATA SOBRE
ARIANO SUASSUNA
Helena Daltro Pontual

Advogado, professor, dramaturgo, ensaísta, criança – pouco mais de três anos de idade
poeta, romancista e defensor da cultura po- – um luto que o fez vítima de intenso sofri-
pular do Nordeste, o também conhecido de- mento e que o marcaria por toda a vida: o
cifrador de brasilidades Ariano Vilar Suassu- assassinato de seu pai, João Suassuna – que
na, que faz vibrar por horas a fio uma plateia governou a Paraíba de 1924 a 1928 –, ocor-
cheia de entusiasmo, completou 87 anos no rido às vésperas da Revolução de 1930, no
dia 16 de junho de 2014. Desde 1990 ocupa Rio de Janeiro, em consequência de divisões
a cadeira 32 da Academia Brasileira de Le- e lutas políticas na Paraíba. Com isso, sua
tras, e continua nos emocionando com suas mãe, Rita de Cássia Villar, se transferiu com
obras, entrevistas e presença em palestras e os nove filhos para Taperoá, onde Ariano
bienais de livro. fez o curso primário.
Nascido em Nossa Senhora das Neves, No sertão paraibano, ele se familiari-
hoje João Pessoa (PB), Ariano sofreu, ainda zou com os temas e as formas de expres-

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são que vieram compor mais tarde toda escrita seja uma espécie de vingança de sua
a sua obra. Em 1942, a família mudou-se parte, afirmando que foi uma tentativa de re-
para Recife (PE), onde Ariano reside até cuperação (reparação?). “Por isso eu acho o
os dias de hoje. No dia seis de outubro de nome pedra muito importante. É como se eu
2010, outra tragédia na vida do escritor: encaixasse uma pedra angular para erguer um
seu filho Joaquim suicidou-se aos 50 anos monumento a meu pai”, disse.
de idade. Juca, como era conhecido, era No prefácio à edição de 1971, a escritora
médico pneumologista e pai de dois fi- Raquel de Queiroz diz que Pedra do Reino é
lhos. Segundo versões de familiares, ele muito mais do que um romance picaresco: é
sofria de depressão e teve que suspender odisseia, é poema, é epopeia, é sátira, é apo-
a medicação ao ter contraído tuberculose. calipse. É também, segundo ela, “um livro tu-
O suicídio ocorreu após almoço na casa multuoso de onde escorre sangue e lágrimas,
de Ariano, quando Juca se dirigiu para a onde há sol tirando fogo das pedras, luz que
casa da irmã, Maria. Duas grandes perdas, encandeia, um humor feroz e uma mais feroz
e de maneiras dramáticas, ressignificadas a e desabrida aceitação da fatalidade”. Entre
cada momento em sua vida e obra. todos os ricos e variados elementos da narra-
tiva, a escritora resume que o foco principal
PRIMEIROS TRABALHOS “é uma força de paixão, uma gana de recaptu-
Foi na capital pernambucana que os primei- ra, dentro do elemento criador”. Há no livro
ros textos de Ariano foram publicados, pri- “uma beleza que dói e machuca”, como no
meiramente nos jornais da cidade e, depois, personagem Rapaz-do-Cavalo-Branco, cor-
em livros, peças teatrais, ensaios e adaptações deiro inocente nascido de uma raça amal-
para a televisão e o cinema. Foi também em diçoada, cuja sina é a morte, como o Rei D.
Recife que se formou em Direito e se ligou a Sebastião – e como o pai de Ariano. Um livro
um grupo de jovens escritores e artistas. Ca- que é, enfim, o próprio Suassuna e não só seu
sou-se em 1957 com Zélia de Andrade Lima protagonista D. Pedro Dinis Quaderna, este
e teve com ela seis filhos. Lançou, em 1970, o sim, herói maldito e grotesco, um conceito
famoso Movimento Armorial, com o concerto que Suassuna faz dos homens.
Três séculos de música nordestina: do Barro- Raquel fala das perdas vividas por Suas-
co ao Armorial, e uma exposição de gravura, suna: “Lembremo-nos de que Suassuna olha
pintura e escultura. para esse mundo com a visão do exilado, ain-
Com múltiplas atividades no campo da cul- da na adolescência arrancado ao seu sertão
tura e das artes, Ariano foi ainda secretário de natal; por isso sempre o descreve muito belo
Educação e Cultura do Recife de 1975 a 1978, e mágico; por isso tem recuo suficiente para
e professor da Universidade Federal de Per- descobrir o mistério onde os da terra natural-
nambuco por mais de 30 anos, onde lecionou mente só veem o cotidiano”. Para Raquel, a
Estética e Teoria do Teatro, Literatura Brasi- inspiração de Ariano é gerada, principalmen-
leira e História da Cultura Brasileira. Nessa te, na perspectiva destorcida pela lembrança
mesma universidade, concluiu um doutorado e pela saudade. Talvez ele nem possa mais
em História. Seu Romance da Pedra do Reino e distinguir o que é concreto e o que é miragem
o príncipe de sangue do vai-e-volta, publicado e nem se importa com isso. O personagem
originalmente em 1971, foi relançado em 2005 Quaderna, no final, só quer ser um exímio
e teve sua segunda edição esgotada em menos retratista de miragens.
de um mês, coisa rara para um livro com 754 Na primeira parte do livro, a definição de
páginas. O famoso Auto da Compadecida, de Ariano sobre Pedra do Reino: “Romance enig-
1955, conquistou a medalha de ouro da Asso- mático de crime e sangue, no qual aparece o
ciação Brasileira de Críticos Teatrais. A peça, misterioso Rapaz-do-Cavalo-Branco. A em-
montada e remontada para teatro, televisão e boscada do Lajedo sertanejo. Notícia da Pedra
cinema, projetou o Brasil e foi traduzida para do Reino, com seu castelo enigmático, cheio
nove idiomas. de sentidos ocultos! Primeiras indicações so-
bre os três irmãos sertanejos Arésio, Silvestre
MONUMENTO AO PAI e Sinésio. Como seu pai foi morto por cruéis
O Romance da Pedra do Reino foi escrito e desconhecidos assassinos, que degolaram o
por Ariano em memória a seu pai, quando velho Rei e raptaram o mais moço dos jovens
se completaram 40 anos do assassinato. Foi Príncipes, sepultando-o numa Masmorra
uma forma de homenageá-lo, disse o escritor onde ele penou durante dois anos! Caçadas
em entrevista para os Cadernos de Literatu- e expedições heroicas nas serras do Sertão!
ra Brasileira. Ele nega, entretanto, que essa Aparições assombratícias e proféticas! Intri-
gas, presepadas, combates e aventuras nas É no brincar, e talvez somente no brincar,
Caatingas! Enigma, ódio, calúnia, amor, sen- que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser
sualidade e morte!” criativo e utilizar sua personalidade integral,
Assim como na vida de Ariano, existem segundo Winnicott. Esse brincar deve se dar
fogo e sangue nessa história, que acontece em um ambiente próprio que permita à crian-
numa Paraíba alucinada e lancinante, onde ça entre os brinquedos no chão e ao adulto no
a família Suassuna viveu momentos de dor, divã, por meio de um discurso livre, trans-
tragédia e alegria. Conforme frisou o escri- mitir uma sucessão de ideias, pensamentos,
tor e poeta Braulio Tavares, os personagens impulsos e sensações sem conexão aparente,
se debatem entre a visão e o erro, dilacera- que vão comunicar ao analista as conexões
dos entre a tragédia passada e a redenção existentes por meio da manifestação da an-
futura. “Sua grandeza cósmica é temperada siedade e outras defesas que buscam salva-
pelo seu senso de humor, pelo seu erotismo guardar o aspecto temido.
transgressor e convulso, e pelo impiedoso Ariano brinca o tempo todo com gestos e
desvendar das querelas municipais e di- palavras, não apenas no uso do humor em
nastias políticas do Nordeste”, observou. sua obra, mas até mesmo em sua postura de
De acordo com Tavares, Pedra do Reino é o deitar-se no chão do Aeroporto de Brasília
texto de Ariano que melhor exprime o seu para esperar o voo que o levaria de volta a
conceito de “realidade transfigurada”, visão Recife, depois de ser homenageado na Bienal
de uma realidade mais transcendente e de do Livro da capital federal. A criatividade é
outra mais pés-no-chão. o elemento que põe sua vida em movimento,
que despertou a força agressiva ressignificada
PROCESSO CRIATIVO em sua obra e o fez viver seus lutos e perdas.
“Arte pra mim não é produto de mercado. É a criatividade que lhe permite brincar com
Podem me chamar de romântico. Arte pra a realidade, desbravar o mundo em busca do
mim é missão, vocação, festa”, resume Aria- novo e conquistar espaços cada vez maiores
no, mostrando sua postura sempre lúdica para si e para a vida.
diante da vida e de sua obra. Donald Win-
nicott, em seu livro O Brincar e a Realidade
(1971), diz que a capacidade criativa é a raiz
que permitirá mais tarde à criança sustentar-
se por si mesma e suportar as desilusões e o
reconhecimento da existência de limites, em
substituição ao sentimento de onipotência
original. Essa capacidade, extraordinaria-
mente exemplar em Ariano, é o instrumento
que torna possível, no adulto, uma adaptação
não submissa do indivíduo ao meio, lhe per-
mitindo manter o sentimento de ser autêntico
nas interações com o mundo. Para Winnicott,
o viver está ligado ao criar, pois é somente Helena Daltro Pontual é membro do Instituto
sendo criativo que o indivíduo descobre seu de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da SPBsb
verdadeiro self. e jornalista.

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A noite
Sylvain Levy
A noite sempre exerceu fascínio sobre o de de contar coisas. É um conjunto infinito
homem. É nela que se expressam alguns que começa no zero e vai aumentando uma
medos ancestrais: escuro/escuridão, desco- unidade sucessivamente sem chegar a ne-
nhecido/desconhecimento, ameaça e morte. nhum final. A partir dessa concepção é de-
Muitas vezes o conceito de infinito abarca senvolvida a Teoria dos Conjuntos, que vai
esses pensamentos. representar seus elementos de duas formas
Como dizia Manuel Bandeira: “Le silence principais: quando podemos contá-los, diz-
éternel avec leurs espaces infinis m’effraie” se que é um conjunto finito e é representado
(O silencio eterno com seus espaços infinitos por uma letra ou símbolo identificador do
me assusta). conjunto de seus elementos. Entretanto,
O medo é elemento estruturador da psique quando não podemos contá-lo, dizemos que
animal. É fator de vivência e de sobrevivência. é um conjunto infinito, representado pela
O medo permite o desenvolvimento de sua an- letra N1, numa notação matemática univer-
títese e complemento, o acreditar. Engana-se salmente aceita.
quem contrapõe a coragem ao medo. São ele- Outra notação matemática universalmente
mentos constituídos por emoções diferentes. reconhecida é a que simboliza o infinito, re-
O contraponto do medo é o acreditar. Sem presentada pelo número 8 deitado, o . Ou
contar os dementes e os tendentes ao suicí- lemniscata2, figura geométrica em forma de
dio, uma pessoa comum só atravessa uma rua hélice, que tem um significado mais amplo e
(sem se valer do auxílio de semáforos e faixas muito mais antigo.
para pedestres) se acreditar que vai chegar “Simbolicamente a lemniscata representa
incólume ao outro lado. Não é preciso cora- o equilíbrio dinâmico e rítmico entre dois
gem para tomar essa atitude, só essa crença. polos opostos. Foi largamente usada nos de-
Assim, podemos pensar que só consegui- senhos celtas e insistentemente reproduzida
mos adormecer (e sonhar) se acreditamos em seus intrincados desenhos de formas. A
que vamos acordar posteriormente. Ou seja, lemniscata, principalmente em suas repre-
para dominarmos nosso medo do escuro da sentações celtas, nos remete diretamente ao
noite, do desconhecimento que vamos en- “Ouroborus”, símbolo antiguíssimo, resgata-
frentar com o desligamento da vigília pelo do pela tradição alquímica, onde se vê uma
sono, do desconhecer do que virá nos sonhos serpente que morde o próprio rabo e devora
e das ameaças irracionais do medo da morte, a si mesma”.
repetindo, para controlar tudo isso só acredi- “Ainda podemos observar a lemniscata nas
tando que vamos conseguir acordar e tudo vai curvas do Caduceus (o cetro da dupla serpen-
desaparecer até a próxima noite. te), símbolo da Medicina e manifestação de
A noite não é uma circunstância qualquer. Hermes; nos meridianos do fluir da Energia
É um acontecimento aterrador, desde que o Vital descritos pelas medicinas tradicionais
homem é...? hindu e chinesa e pela acupuntura. A lem-
A representação da noite tem muitas faces: niscata repete-se no próprio movimento das
poética, pictórica, oral e numérica e talvez galáxias, das estrelas e dos planetas, na as-
essa seja a mais expressiva. tronomia e na astrofísica. A lemniscata está
Os matemáticos usam N para se referir ao presente na dupla hélice do DNA componente
conjunto de todos os números naturais. Os de todos os seres vivos deste planeta”.
números naturais surgiram pela necessida- “A lemniscata tem significado milenar, re-

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presentando o equilíbrio dinâmico, perfeito e Português: noite = n + oite (o)
rítmico entre os polos opostos constitucionais Inglês: night = n + (e) ight
do corpo humano: o polo metabólico e o polo Alemão: nacht = n + acht
neurossensorial. Carl Gustav Jung refere-se Espanhol: noche = n + ocho (e)
a este símbolo como o ‘Mysterium Conjuc- Francês: nuit = n + (h) uit
tionis’ (Mistério da Conjunção), resultado do Italiano: notte = n + otto (e)
‘Hieroghamos’ (Casamento Sagrado), equilí- Sueco: natt = n + atta (oito)
brio do Masculino e do Feminino Universais, Dinamarquês: nætter = n + otte (ae tem som de êû)
essência fundamental da mente humana e, em Norueguês: natt = n + åtte (oito sem e)
uma visão mais ampla, da existência humana Islandês: nótt = n + atta (ó tem som de éu)
em si”. (Fonte: http://bruxasdaluz.blogspot. Iídiche: ‫( טכַאנ‬noite) (se pronuncia NACHT) - ‫טכַא‬
com.br/2010/05/lemniscata-o-simbolo-do (oito) (se pronuncia ACHT)
-infinito.html) Irlandês: noite é oíche e oito é ocht (não tem o n, mas
Em muitos idiomas do ramo indo-euro- mantém a proximidade com o infinito)
peu3, a palavra NOITE é formada pela letra Latim: noctis = n + octo (is)
“N” acrescida do número 8 na respectiva Letão: nakts = n + akts (ato) astoņi (oito)
língua. Não é preciso lembrar, mas o faço Romeno: noapte = n + opt (oito)
assim mesmo, que o 8 “deitado” também “Musicalmente, o conceito de infinito pode
simboliza infinito. ser encontrado, por exemplo, nas belíssimas
Escritos de viajantes europeus pelo conti- fugas de Bach, com notas seguindo notas de
nente asiático, nos séculos XV, XVI e XVII, forma a gerar uma sensação de verticalidade
assinalaram as semelhanças entre os idio- sonora, a música do homem ascendendo ao
mas mais antigos conhecidos – sânscrito, firmamento divino. A mesma verticalidade é
grego, latim e persa. O primeiro relato a encontrada na arquitetura das catedrais góti-
mencionar o sânscrito veio de Filippo Sas- cas ou na pintura de El Greco, com suas ima-
setti (nascido em 1540), um mercador flo- gens esticadas de Cristo, novamente ligando o
rentino que viajou ao subcontinente india- mundo dos homens ao céu de Deus. Aliás, essa
no e esteve entre os primeiros observadores também é a interpretação da primeira letra do
europeus a estudarem a antiga língua in- alfabeto hebreu, o aleph, que tem uma perna
diana. Escrevendo em 1585, notou diversas plantada no chão e outra apontando para o
semelhanças entre palavras do sânscrito e céu” (Marcelo Gleiser, Folha de São Paulo, 14
do italiano – como, por exemplo, deva / dio, de janeiro de 2001).
“Deus”; sarpaḥ / serpe, “serpente”; sapta “Nas representações do infinito, encon-
/ sette, “sete”; aṣṭa / otto, “oito”; nava / tramos uma belíssima complementaridade
nove, “nove” (Sylvain Auroux, History of entre arte e ciência. Vários exemplos de re-
the Language Sciences. Berlin, New York: presentação gráfica do infinito aparecem na
Walter de Gruyter, 2000. 1156 p). obra de M. C. Escher, um verdadeiro mestre
Em várias das línguas desse ramo, podemos do absurdo que, com suas representações de
entender a expressão NOITE como a união formas geométricas encurvadas repetidas em
dos infinitos: sequência, mas em proporções cada vez me-
nores (ou maiores, dependendo do ponto de início. No início de nossos pensares, o que
vista), reproduz em papel uma imagem do nos permite imaginar que a mente não tenha
infinito extremamente convincente e inspi- limites, assim como o universo. Esses limites
radora” (Marcelo Gleiser, idem). são sempre destruídos após a próxima desco-
A união dos infinitos pode significar uma berta, que é gerada por outra ilimitada carac-
das essências da vida, o sincretismo, a nossa terística animal, a curiosidade.
tendência a sintetizar os objetos encontra- Curiosidade e temor andam juntos como
dos (sejam reais ou imaginários, externos e irmãos siameses, ligados pela mesma pulsão
internos) ao longo da existência, e a nossa de vida. Precisamos do dormir para termos o
capacidade de racionalizar o conhecimento, acordar. Precisamos do sonhar para conhe-
aí entendido como a apreensão da realidade, cermos a vigília. Não precisamos da morte
seja ela interna ou externa. para saber da vida e, afinal, a vida é um evento
Einstein falava de um universo curvo e isso finito sem duração definida.
coloca a possibilidade de o infinito estar no

Endnotes
1  Notação matemática é uma linguagem 3  O indo-europeu é uma família (ou filo)
cuja grafia e semântica se utilizam dos sím- composta por diversas centenas de línguas
bolos matemáticos e da lógica matemática, e dialetos, que inclui as principais línguas
respectivamente. Com base nessa notação são da Europa, Irã e do norte da Índia, além dos
construídas as sentenças matemáticas. idiomas predominantes historicamente na
2  A lemniscata foi descrita primeiramente Anatólia e na Ásia Central.
por Jakob Bernoulli em 1694 como uma modi-
ficação da elipse, que é o lugar geométrico de
pontos para qual a soma das distâncias para
cada um de dois focos fixos é uma constan-
te1 . A Oval de Cassini, por sua vez, é o lu-
gar de pontos para os quais o produto destas
distâncias é constante. No caso onde a curva
atravessa o ponto no meio caminho entre os
focos, a oval é uma lemniscata de Bernoulli.
Bernoulli chamou isto de lemniscos, que em
latim significa “faixa suspensa”. A lemniscata
pode ser obtida como o inverso geométrico
de uma hipérbole, com o círculo de inversão
centrado no centro da hipérbole (bissetriz de
seus dois focos). Fonte: http://pt.wikipedia. Sylvain Levy é membro associado da
org/wiki/Lemniscata_de_Bernoulli Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Associação Livre 11
CONTADOR Da
HISTÓRIA
Entrevista com Luiz Tenório Oliveira Lima
Cláudia Carneiro e Carlos de Almeida Vieira

Luiz Tenório: leitor, na infância, do Tesouro da Juventude, ao despertar pelo estudo das humanidades.

Nas suas vindas à Sociedade de Psicanálise de AL · Como professor e pesquisador da


Brasília, onde reúne um grupo de professores obra freudiana, você denota uma paixão
em torno de seu curso sobre o desenvolvi- pelas ideias e pela história das ideias.
mento do pensamento freudiano, o professor De que modo a sua história contribuiu
Luiz Tenório Oliveira Lima nos revela que sua para você desenvolver seu método
familiaridade de transitar por distintas áreas de investigação da psicanálise?
do conhecimento humano, e reuni-las num
complexo harmonioso, vem de suas origens. Tenório · Desde a infância, lia muito. Mi-
Natural de Inhambupe (BA), antiga cidade na nha mãe era professora e tinha uma biblio-
região “entre o litoral, o agreste e o Recôncavo teca razoável, fui tomando gosto. Lia obras
baiano”, o psicanalista, membro da Sociedade de mitologia; coleções de Monteiro Lobato;
Brasileira de Psicanálise de São Paulo, médico o Tesouro da Juventude. Aquele mundo me
psiquiatra e escritor Luiz Tenório sabe cami- fascinava e fui me interessando pela leitura
nhar por fronteiras. E, desde a adolescência, de textos históricos. Na adolescência minha
seu percurso foi marcado por um profundo atração era pelo estudo das humanidades.
interesse pelas ideias – da filosofia, da antro- Mas queria um tipo de formação mais con-
pologia, da literatura, da psiquiatria, da psica- sistente e acabei fazendo o [curso] cientí-
nálise. Interesse que faz dele um apaixonado fico. Tomei gosto pelas ciências, a história
contador da História do pensamento ociden- das teorias físicas, Madame Curie, Isaac
tal, em cujo berço foi embalado o pensamento Newton. E decidi fazer medicina.
freudiano e constituído o campo psicanalítico. Quando entrei na faculdade, eu vivia na
biblioteca atrás de histórias da medicina, de- ícones como Antônio Cândido.
frontei-me com questões como especializa-
ção, cercando-me de colegas da boemia lite- Tenório · Assisti a algumas aulas dele de
rária. Entrei para a política estudantil e com literatura brasileira. Tive aproximação de
o pessoal da filosofia continuou meu real in- amigos dele, amizades mantidas até hoje:
teresse pelas humanidades. Depois do golpe Davi Arrigucci, José Miguel Wisnik, Rober-
de 64, retornei com a ideia de fazer psiquia- to Schwarz. E Fernando Novais, da História.
tria. No grupo da psiquiatria havia curso de Mas eu precisava fazer minha pesquisa de
antropologia e interesse em psicanálise. Fi- mestrado. Naquela época o Paulo Cesar San-
quei sempre com esse gosto pela antropolo- dler trabalhava na Escola de Saúde Pública
gia. A paixão pela psicanálise começou lá na e me ajudou a fazer os programas e a reco-
Bahia e vim fazer a formação em São Paulo, lher o material no laboratório da Lapa, onde
onde comecei a trabalhar como psiquiatra, os estudantes do curso experimental faziam
em sanatório, Hospital das Clínicas e Hos- estágio. Mas não concluí a pesquisa: em 1975
pital do Servidor, onde trabalhei por 12 anos nasceu minha filha, em 1976 eu já estava no
coordenando cursos e conciliando atividade Instituto de formação em psicanálise, havia
clínica com didática. a clínica, as aulas, não havia bolsa, fui fican-
do pressionado e conversei com Eunice. Até
AL · Você pensou em reunir essas áreas hoje ela não me perdoa por não concluir o
de interesse num projeto acadêmico? mestrado. Não me profissionalizei nessa
área da história das ideias, sou um militan-
Tenório · No HC veio a ideia de fazer mes- te profissional da psicanálise. Por isso, para
trado e doutorado. Minha orientadora do falar da história das ideias, estou sempre
mestrado em antropologia na USP era Eu- respaldado na leitura da Freud, pois não sou
nice Durham, grande antropóloga, e com filósofo, nem antropólogo, nem historiador
Ruth Cardoso tive seminários de estrutu- das ideias. Sou psicanalista e gosto de estu-
ralismo. Lévi-Strauss estava no auge. Nessa dar nesse enquadre.
época houve um curso extraordinário que
me orientou metodologicamente para o es- AL · Mas você já inaugurava uma
tudo da história das ideias, do professor Ruy relação de seu estudo da história das
Coelho, sobre sociologia da literatura. Tive ideias com a clínica psicanalítica.
acesso a revistas e títulos franceses nas di-
ferentes áreas e, preparando-me para entrar Tenório · Em relação à história das ideias
no Instituto da SBPSP, comecei a ler os arti- da psicanálise, este envolvimento foi surgin-
gos do Lacan. Terei sido um dos primeiros do progressivamente. Prossegui dando aula,
da psiquiatria a ler, em São Paulo, o seminá- pedi demissão como professor assistente da
rio da Carta Roubada, de Lacan, em 1972. E USP e fiquei só com clínica psiquiátrica. A
também [a ler] Michel Foucault. Propus a partir de 1978 formei grupos de estudo que
Carta Roubada como meu seminário de pós- se prolongaram até 2005. Foram gerações
-graduado. (Risos) Só um nordestino para sucessivas. Muitos dos colegas que pas-
ter a pretensão de fazer um seminário sobre saram por esses grupos hoje são analistas
Edgar Allan Poe e a Carta Roubada, a partir didatas. Estudávamos sempre Freud. Esse
do seminário de Lacan sobre esse conto! A gosto foi se desenvolvendo e, com o tempo,
repercussão foi maior do que o seminário resvalou para estudarmos os antecedentes,
mereceria, pela novidade que era! a história da psicanálise de um ângulo não
Houve um segundo e importantíssimo tradicional. Quanto às escolas psicanalíticas,
curso. Marilena Chauí havia retornado da eu não sou identificado com uma escola de
Europa com um curso extraordinário sobre forma radical. Passei a fazer seminários de
fenomenologia de Merleau-Ponty. Eu me Klein no Instituto, eventualmente de Bion.
situei na filosofia moderna, pela porta de Meu trabalho lembra o trabalho de meu ana-
Merleau-Ponty. Essas três áreas – filosofia, lista, o Laertes Ferrão, tido como kleiniano,
literatura e antropologia – consolidaram e bioniano, mas não era nem bioniano, nem
deram uma forma àquela curiosidade minha kleiniano (risos). Essa minha perspectiva
e mantiveram meu interesse, desde então. observacional tem a ver com ele, pois através
dele tive contato com Popper. Ferrão citava
AL · Nessa época, você circulava com Popper, fez várias publicações relacionadas
um grupo de intelectuais ligados à lógica da investigação científica e reapare-
à literatura e às artes, incluindo ceu em mim o gosto pela epistemologia.

Associação Livre 13
AL · Há um trabalho de Laertes uma base comum para as discussões analíti-
Ferrão, de 1977, que ficou famoso: cas. Esta já existe: são as condições em que
“Eu vi um balão no céu”. a clínica analítica se estabeleceu e permi-
te que os analistas exerçam suas funções e
Tenório · Exatamente, um trabalho ex- criem, desenvolvam ou repliquem as teorias.
traordinário. Comecei, então, a adotar uma Quanto mais diversidade, melhor.
metodologia que se afastava do modelo es-
truturalista, no qual fiz minha formação. AL · Recentemente Renato
Me afastava da natureza abstrata para algo Mezan lançou um livro com essas
mais próximo de minha clínica e provavel- características, O tronco e os ramos.
mente de minhas identificações objetais
como analista. Fiz minha primeira supervi- Tenório · Você lembrou bem. Já comprei o
são com Dona Lígia, que abriu muitas ideias livro e gostei muito do título, uma metáfora
para mim, e mais quatro anos de supervisão simples, mas muito rica, que usei muito. Esse
com Frank Philips. Esse percurso contribuiu tronco vai até 1914, a partir dessa época sur-
para eu formar uma espécie de matriz clíni- gem outros ramos. Renato é pioneiro nesse
ca, muito pessoal. Quando me vi num mo- trabalho muito antes que eu o desenvolves-
vimento mais epistemológico, com origem se. E o fez de forma muito eficiente. Antes da
entre 1985 e 90, comecei a me organizar e formação analítica, ele teve uma formação
a partir de 2000 passei a dar seminários na acadêmica em filosofia e fez sua pesquisa.
SBPSP, depois fui convidado para o Centro Vejam seus primeiros trabalhos: A trama dos
Cultural Maria Antônia e, há 10 anos, para conceitos, Freud pensador da cultura. Entre
a Casa do Saber. Com a necessidade de pre- nós, em São Paulo, Mezan é quem considero
parar cursos para uma população mais mes- mais importante nesse trabalho.
clada, entre interessados da psicanálise, fui
desenvolvendo tal habilidade. AL · Que autores contribuíram para o
método histórico de investigação que você
AL · Até que ponto seu estilo de desenvolveu para o estudo da psicanálise?
ensinar contribuiu para uma nova
maneira de se ministrar seminários Tenório · Costumo citar dois artigos os
nos Institutos de psicanálise? quais deram forma àquilo que considero a
história das ideias, no plano da psicanálise.
Tenório · Inicialmente eu não esperava Um deles é o artigo de Merleau-Ponty de
essa repercussão. Na SBPSP, esse trabalho 1951, “O homem e a adversidade”, está publi-
existe há uns 15 anos. O pessoal que se for- cado no livro Signos. A primeira parte des-
mava passou a adotar método semelhante, se artigo é dedicada a Freud e à psicanálise,
cada qual com sua característica pessoal e num período em que ela ainda não dispunha
modo de pensar a psicanálise. Isso é também de muito respaldo na filosofia. Merleau-Pon-
fruto de uma necessidade, não só do tipo de ty observa que Freud pode ser mencionado
exposição metodológica feita por mim. Não como aquele que traz, pela primeira vez, o
por acaso, está cada vez mais fácil achar lite- corpo para o primeiro plano, junto à vida
ratura psicanalítica sobre história das ideias, psíquica. Nesse artigo ele diz que a grande
com essas características. Recentemente os obra nunca é o efeito da vida, mas uma res-
livros sobre Proust e psicanálise começaram posta aos problemas da esfera íntima e aos
a surgir de forma inesperada, creio que isso problemas do seu tempo. Freud é exemplar
corresponde a um amadurecimento e uma nisso, porque busca a resolução de um pro-
renovação da leitura de Freud, mais ampla e blema íntimo e de um problema do tempo.
conceitual. A fronteira entre psicanálise, lite- O segundo artigo, de Victor GoldSchmidt,
ratura e estética é uma necessidade do tem- é de 1950/51 e está publicado no livro A Re-
po. Outro aspecto é que não há mais gran- ligião de Platão. Chama-se “Tempo histórico
des mestres, em torno dos quais formam-se e tempo lógico na interpretação dos textos
grupos. O último deles foi André Green. filosóficos”. Descreve o uso do tempo his-
Quando um grande mestre morre, sua obra tórico e do método ‘genético’, quais as suas
passa a ser vista com mais liberdade. Há uma vantagens, e propõe a leitura no tempo lógi-
multipolarização saudável, com vários polos co dos textos filosóficos, independentemen-
teóricos e clínicos. Alguns autores, o próprio te da cronologia, que é a leitura estruturalis-
Green, consideravam isso um problema. Os ta. GoldSchmidt estava no Brasil no final dos
ingleses achavam que era preciso encontrar anos 40. Até então eu não tinha noção clara
da leitura estruturalista e o tempo histórico
foi posto de lado. E percebi a diferença. O
estruturalismo tentou superar, nos estudos
históricos franceses, a tendência marxista de
usar um modelo histórico, hegeliano e posi-
tivista. Tanto que Louis Althusser fará uma
crítica a esta forma de leitura e adota uma
leitura estruturalista de Marx, no livro Pour
Marx, e uma interpretação estruturalista de
O Capital. Como Lacan recupera Freud para
o estruturalismo – a forma mais moderna
no pós-guerra, Althusser, que era do Partido
Comunista, faz isso com Marx, em seu céle-
bre livro Lire Le Capital.
Os estudos históricos ficaram restritos aos
países de língua inglesa, nos trabalhos de
Karl Popper, por exemplo. E veio o extraor-
dinário livro de Thomas Kuhn, A estrutura
das revoluções científicas. A literatura de his-
tória das ciências e história das ideias, das
universidades de língua inglesa, não se con-
taminou inteiramente pelo modelo estrutu-
ralista. O livro do Henri Ellenberger, Histó-
ria da Descoberta do Inconsciente, também
extraordinário, está sendo recuperado agora
pela Roudinesco, que fez um enorme prefá-
cio para a edição francesa. É um clássico dos
anos 70, uma obra prima.

AL · Pode citar uma vantagem de


se adotar o método histórico?

Tenório · Trabalha-se com a história das


ideias, pode até se ter uma distância crítica,
mas não se identifica e não se cria rivalidade
entre as teorias. Criam-se muitas condições
para que o leitor possa, livremente, fazer
suas relações e ter suas impressões.

AL · Em suas aulas, o pensamento de


Nietzsche ganha destaque no estudo da
história da psicanálise. Pode-se dizer que
Freud foi influenciado por Nietzsche?

Tenório · No meu modo de refletir sobre


as ideias, historicamente, não uso a noção
de influência. Até afirmaria que Freud não
foi influenciado por Nietzsche, como não foi
influenciado por John Stuart Mill, Fechner
ou Goethe. Freud viveu durante um período
sob um clima cultural, e compartilhou com
vários escritores e cientistas a mesma atmos-
fera cultural. Sofreu impacto desses autores
na medida em que esses autores sofreram
impacto de toda uma época científica sobre
eles. Freud esteve sob o impacto do positi-
vismo. Um autor que viveu na França, entre
1947 e 1980, por exemplo, viveu o impacto de

Associação Livre 15
uma geração poderosíssima de autores cria- Freud não tinha a finalidade da filosofia; ele
tivos ligados ao estruturalismo. É inequívoco. lidava com uma problemática metodológica,
Nietzsche e Freud são filhos de uma mesma vinda da medicina para resolver um proble-
atmosfera cultural e científica e procuram ma que inicialmente era da histeria. Ele tenta
responder, cada um à sua maneira, às ques- com o Projeto resolver desse modo, percebe
tões postas por essa problemática cultural. que fracassou e vai então fazer outra desco-
Da mesma forma, Edmund Russel responde berta, que é a situação intrafamiliar, a partir
às mesmas questões de Freud, construindo de sua autoanálise, e chega à situação edipia-
um modelo, a filosofia fenomenológica, que, na. Isso traz tantas consequências e é a solu-
por sua vez, será fonte de inspiração para ção de um problema, próxima à solução de
Binswanger, Ellenberger, Jaspers, e de certo problemas filosóficos. Aí Freud se aproxima
modo Heidegger. E repercutirá, no pós-guer- de Nietzsche e dos críticos da metafísica.
ra, nos autores franceses, muito mais do que
nos autores de língua inglesa. AL · É bom lembrar que Freud e Nietzsche,
pessoalmente, nunca se encontraram.
AL · Na obra de Nietzsche pode-
se ver alguns conceitos com que Tenório · Nunca se encontraram. Tiveram
Freud trabalhava em sua época. vários amigos comuns. Freud tinha um co-
lega de Liceu que teve contato com Nietzs-
Tenório · Um pouco depois, por causa che; outro colega médico era também amigo
da diferença [de tempo]. Do ponto de vis- de Nietzsche e o atendeu em Turim, antes
ta de Freud e da psicanálise, na perspecti- de morrer. E, depois, Lou-Andreas Salomé,
va da história das ideias, podemos incluir que se tornou amiga de Freud já perto dos 50
Schopenhauer, que é a grande presença no anos, por volta de 1905. Ela ficou fascinada
início do pensamento de Nietzsche, em O por Freud, tinha discussões religiosas com
Nascimento da Tragédia. Depois Nietzsche ele. Depois da publicação de O Futuro de uma
se afasta de Schopenhauer e constrói uma ilusão, em 1927, a correspondência entre os
série de modelos ainda dentro do clima po- dois é um debate religioso e Salomé, que sem-
sitivista, que vai até a Genealogia da Moral, pre manteve uma certa religiosidade, critica
textos que Freud só vai ler depois de 1886. Freud por demolir as religiões institucionais.
Mas Freud, quando retorna à questão que
chama de “a minha psicologia”, reencontra AL · Como tem sido a experiência de
esses conceitos que já vinha intuindo e for- conversar sobre essas questões com um
mulando, mas estava aprisionado ao modelo grupo de professores do Instituto da SPBsb?
da neurofisiologia. Isso ocorre só depois que
ele volta para a clínica, o que será de grande Tenório · A experiência para mim deu se-
utilidade para a psicanálise. Freud vai re- guimento ao que eu venho fazendo, de uma
conhecer explicitamente uma influência de forma que permite expandir mais esses ele-
Schopenhauer sobre ele. A teoria de Freud mentos. Além de ser uma oportunidade mui-
sobre o inconsciente, uma invenção sua, to boa, assegura a esse método a possiblidade
guarda muita relação com a teoria explici- de ele prosseguir através de outras pessoas,
tada por Schopenhauer em O mundo como com outros estilos, de outros modos. O que
vontade e representação. Esta será uma fonte estou tentando transmitir é o método, e te-
profunda de inspiração para Nietzsche, na nho tido uma boa resposta dos grupos com
leitura da Antiguidade, muito mais do que quem trabalho.
Hegel. Hegel não tem nenhuma pertinência
para a psicanálise, Lacan é que vai trazê-lo AL · Que sugestão daria aos que
para a sua própria leitura de Freud. iniciam o estudo do pensamento
freudiano? Por onde começar?
AL · Os pensamentos de Freud e Nietzsche
se encontram na crítica à metafísica? Tenório · É uma pergunta difícil de respon-
der, porque o começo é sempre casual. Tem-
Tenório · Não diria dessa forma. Nietzsche, -se que estar disponível ao acaso. Para uma
sem dúvida, faz progressivamente a crítica da pessoa iniciar, ela precisaria ter certo acesso
metafísica. Freud não, ele faz a crítica de um a esse caminho. Existem muitos termos de
tipo de empirismo, do positivismo que apri- introdução a Freud, até meu próprio livro
siona, para resolver seu problema técnico – e (Freud, Publifolha, 2001), que acho não ajuda
não filosófico – sobre a histeria. O trabalho de muito, é mais para quem já tem conhecimento.
AL · Há grande variedade de autores com Bleuer, Jung etc. Foi uma grande rup-
que apresentam o estudo de Freud. tura, expressa nos textos de Freud, tanto na
Na sua visão, como seria um programa Introdução ao narcisismo, quanto na História
para estudar o pensamento freudiano, do movimento psicanalítico. A partir dali se
dentro dos institutos de psicanálise? organizou um modelo privado de formação.
Nosso método de seleção, com acesso aberto
Tenório · Considerando um estudo curri- para quem preencher certas condições, de
cular, um módulo inicial seria a partir da for- natureza psicológica ou não, e a formação
mação do jovem Freud, suas relações com as que requer análise pessoal não são compa-
humanidades, com o curso do Franz Bren- tíveis com a Academia. Essas organizações
tano, a dedicação à pesquisa, indo até 1886. tendem a se autoconcentrar e sua renovação,
Um segundo módulo seria de 1886 a 1896, a nessas condições, é muito difícil.
clínica com Breuer, os estudos sobre a histe-
ria, o Projeto e a correspondência com Fliess. AL · Você sugere aproximar-se
E um terceiro módulo, a gênese de A Inter- da universidade?
pretação dos Sonhos, a partir de 1897. Esse
percurso pode preparar muito bem um alu- Tenório · A aproximação com a universi-
no para o estudo posterior, aí sim, de Freud. dade é muito complexa, pois uma condição
Com relação às biografias, a mais bem do- para isto é a perda da análise pessoal como
cumentada continua sendo os três volumes requisito de formação. Numa universida-
de Ernest Jones, juntamente com as cartas de não se pode obrigar uma pessoa [a fazer
trocadas com Fliess. Está resolvido até A In- análise] como condição para formação. Há
terpretação dos Sonhos. Depois disso, com- muitos problemas. Se por um lado o modelo
plica-se, principalmente em relação à crise das instituições psicanalíticas traz uma di-
de 1911 a 1914, importantíssima para a psica- ficuldade de renovação, por outro, assegura
nálise contemporânea. A ruptura teve con- condições mínimas para transmissão da ex-
sequências institucionais, no modo privado periência psicanalítica, muito mais do que
de formação, na relação com a universidade, outras instituições. As instituições lacania-
na qual até hoje há uma posição híbrida, um nas têm uma série de problemas para trans-
conflito permanente. Está tudo na história missão, porque esta é baseada na autointitu-
do movimento psicanalítico e precisa ser lação. O modelo da IPA, mesmo com todos
estudado num segundo projeto, que vai da os problemas, ao menos pode assegurar essa
primeira tópica até as mudanças que vão transmissão de uma forma mais consistente.
desembocar na segunda tópica. Dos livros O perigo de não se renovar vale para todos e
de introdução, um extraordinário chama-se é um problema para nós resolvermos ou para
As ideias de Freud, de Richard Wollheim, im- as gerações seguintes.
portante filósofo inglês que faleceu há pouco
tempo. Sua especialidade era arte e estética. AL · No debate atual, há uma
Trabalhou com Hanna Segal, participou de tendência para tornar a psicanálise
vários grupos de estudo sobre psicanálise, uma espécie de psicoterapia.
com um grupo kleiniano nos anos 60, e um
dos resultados foi esse livro. Há também um Tenório · Nada contra a psicoterapia, ou
ensaio dele maravilhoso, que o Paulo César contra analistas a exercerem, mas o modelo
Souza traduziu e publicou no livro Sigmund psicanalítico não é da mesma natureza da
Freud e o gabinete do Dr. Lacan. psicoterapia. Para formar alguém com título
de analista, ele precisa desenvolver a expe-
AL · Nessa era de velocidade e riência do modelo psicanalítico. Ele tem que
necessidades imediatas, você acha usar meios psicanalíticos para obter fins psi-
que a psicanálise continua nova? canalíticos. Isso não é claro? Se você tem um
modelo, você pode ter um aspecto mais va-
Tenório · Ela corre o risco de não se reno- lioso do ponto de vista epistemológico. Isso
var, todos nós corremos esse risco. Ele existe não o impede de usar outros modelos me-
para qualquer atividade científica. No caso nos consistentes, porém úteis. Se perdemos
da psicanálise, temos um agravante, que é a os balizamentos mais rigorosos para a for-
forma como nos organizamos. Isto foi resul- mação, corremos o risco de nos tornarmos
tado de uma escolha, depois de uma crise en- uma espécie de homeopatia, que continua
tre a aplicação da psicanálise e transmissão eficaz, tem utilidade, mas se distanciou do
do saber psicanalítico e o grupo de Zurique, mainstream da ciência médica.

Associação Livre 17
DE COISAS NÃO SÓ DO
REINO DA DINAMARCA
...Mas não necessariamente podres. Coisas de gente.

Avelino Neto

Longe de criticar colegas que compõem a de mais vida. A pulsão de morte, desmobi-
maioria silenciosa, faço em pouco espaço uma lizadora de vida e tendente ao zero, é mais
conjectura a partir de um fato não imaginário: infiltrada nos grupos do se supõe. Pode estar
de tantos e tantos membros de nossa socie- sub-repiticiamente infiltrada e sob a aparên-
dade, apenas três se manifestaram a partir de cia de qualidades virtuosas.
carta escrita por um colega, na qual fazia uma Minha conjectura referida logo no início é
análise crítica de como vê o funcionamento que a maioria não partilha da importância que
do órgão formativo de nossa sociedade, e as- aqueles três veem, além do autor da carta-es-
sumia ser um vértice particular! Como apenas tímulo! A maioria aceita convites para ouvir a
os membros associados e titulares tomaram respeito em reuniões, mas não se pronuncia.
conhecimento daquela carta, só me cabe dizer Comparo aqueles quatro, dos quais sou um,
aos naturalmente curiosos que o teor era de aos integrantes do Incrível Exército de Bran-
ideias quanto ao funcionamento da formação caleone – filme de 1966, dirigido por Mário
que nossa sociedade oferece através de seu Monicceli e magistralmente interpretado por
instituto com tal função. Não citar o autor Vittório Gassman –, mas sem o caráter burles-
da carta não tem como intenção tirar dele a co e meio idiota daquele exército. Em outras
autoria, mas proteger setting psicanalítico. palavras, tanto o alegórico exército quanto
Não vem ao caso, no momento, o fato de seus observadores silentes e bem compor-
que, se autor tivesse sido eu, a carta teria tados, como é de se esperar de uma plateia
sido distribuída para todos, por considerar que assiste a propostas de consertos (com s
que todos participam da formação e são todos mesmo) institucionais, agem em acordo com
adultos. Como não vem ao caso meu testemu- o que lhes é próprio. Uns se expõem, a maioria
nho particular de que o amadurecimento de se cala e, assim, não se caracteriza o aforismo
filhos é algo que depende intrinsecamente da de Nelson Rodrigues segundo o qual toda una-
confiança que os pais têm na possibilidade nimidade é burra. Desta praga, escapamos!
de eles se tornarem indivíduos responsáveis. Então, para o analista tem ou não relevân-
E os pais nisto ajudam permitindo-lhes o cia o assunto político-administrativo da for-
compartilhamento de questões grupais, nas mação, após ele ter concluído seu programa
quais podem desenvolver sua capacidade de formal e recebido seu diploma?
enfrentamento criativo de situações adversas Para mim é assunto em aberto, francamen-
ao indivíduo e ao grupo. te, pois é de se dar importância à maioria,
Se assim não for, ao invés de criativida- independentemente de se concordar ou não
de responsável perpetua-se a imitação de com ela. A maioria é omissa ou sábia? Obtu-
comportamentos paternos, que nem sempre sa ou perspicaz? Não sei bem. Já soube. Ou
servem, pois as circunstâncias são mutáveis. achava saber! A maioria também supõe saber
Nossos colegas em formação não são nossas mais que a minoria, vale dizer, ser sábia. E a
crianças e este é motivo suficiente para não minoria supõe o mesmo em relação à maioria.
serem tratados como tal! Que saibam do que Jamais havia pensando que o que há de
acontece em sua casa! Isto dará mais trabalho comum entre maioria e minoria é o su-
emocional para eles próprios ou seus pares posto saber. Nisto convergem, mesmo que
mais experientes, leia-se professores, super- se digladiem.
visores, analistas, diretores e diretorias? Cer- Os diversos modelos de formação psicanalí-
tamente! Mas a vida é trabalho mobilizador tica estão a serviço de quê? De favorecer ama-
durecimentos de potenciais particulares, ou psicanalítica é necessariamente diferente de
são formações reativas a supostos exércitos outras, por óbvio, e os circunstantes tornam-
estrangeiros? Não sei, mas já pensei que sabia. se diferentes, embora não virem outras perso-
Modelos de formação ou estratégias de sobre- nalidades. E não difere de uma não didática,
vivência? E o bicho nas tripas do humano? porque o que importa em uma psicanálise são
Se eu pudesse, sugeriria aos colegas assisti- as mobilizações presentes na hora da sessão.
rem ao filme alemão “A onda”, sobre formação Já ouvi dizer que a análise didática (que é
e formatação de neófitos. apenas um apelido para classificar aquela que
Certa vez, em um seminário que tive o pri- fazem um analista com função no Instituto e
vilégio de apresentar um caso clínico psico- um analisando em busca de uma formação)
terápico de uma criança psicótica no Depar- seria diferente porque, por exemplo, teria de
tamento de Psiquiatria da Universidade de se dedicar mais ao narcisismo do analista em
Brasília, o saudoso e perspicaz e perspícuo formação, ou às suas transferências e supostas
Paulo Setti, diretor do órgão, sugeriu que se contratransferências e coisas tais que, a meu
poderia fazer uma enquete para saber o que a ver, caracterizam mais uma formatação psico-
imensa maioria da população intra e extramu- pedagógica do que uma psicanálise. O mesmo
ros achava da importância de Universidades. vale para a supervisão oficial e a não oficial.
Ele achava que se poderia ter uma surpresa, Obviamente, este posicionamento decorre
nem esperada, nem agradável! de minhas vivências como analisando, e como
Em nosso caso, longe de mim a ousadia de psicanalista, de análises didáticas e não didá-
sugerir uma enquete semelhante, exceto in- ticas. Posicionamentos quanto a isso só serão
tramuros e, de antemão, com a quase certeza verdadeiros e consistentes tendo o psicanalista
de que não passariam de três gatos pingados passado por todas as experiências psicanalíti-
os que se disporiam a manifestar-se, mesmo cas, vale dizer, experiências vividas e vívidas.
sem serem identificáveis. Mas, reuniões e jor- E participado de análises e supervisões como
nadas e assembleias sempre haverá. E depois, psicanalista ligado a um instituto que se dedica
um almoço, um jantar, e agradáveis e alegres a formação de mais psicanalistas.
conversas, como em uma peça de Shakespeare. Quem não passa por isto tudo só pode ficar
Particularmente, entendo que diretorias e fazendo suposições. É bom que as faça, pois
comissões de ensino exerçam a função de pen- se um dia tornar-se didata, saberá do que se
sar e repensar a formação e fazer propostas de trata e acrescentará, ao que supunha ser, o
eventuais mudanças que entendessem neces- que de fato é! Amadurecer é ir além do que
sárias para o bom andamento de nosso Insti- se supõe, por influência da experiência real
tuto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo. Se e atual com a coisa em si.
diretorias e comissões ficarem esperando ou- Em princípio, todos têm essa possibilidade,
vir a maioria para depois fazerem propostas de se a capacidade decorrente tiver respaldo na
melhorias nas leis, um círculo vicioso se per- personalidade do psicanalista, em formação
petua, pois a maioria é silenciosa e penso que ou não, e no ambiente no qual convive.
o será sempre! E quando digo silenciosa não Oferecemos ambiente aos analistas em for-
significa com isto que não faça barulho. Faz mação e nesse ambiente há os didatas. Um
sim! Como em uma comédia de Shakespeare. conjunto e só isso. Se ali se forma uma or-
Minha suposição esperançosa, talvez in- questra ou não, sabe-se lá. Mas, sons haverá
gênua, é que se algo puder ser sugerido por sempre, em harmonia ou não!
figuras paternas e maternas, com autoridade
político-administrativa e eleitas pela maioria,
uma reação a favor ou contra poderia aconte-
cer: a manifestação de mais gatos do que os
mesmos pingados de sempre!
No balaio estamos todos.

PARÁGRAFO ÚNICO
Uma análise didática é diferente de uma
não didática?
Sim e não. Sim, porque o analista em forma-
ção é mobilizado por vivências que podem ter
semelhança com outras formações que ocor-
reram antes da psicanalítica, mas de maneira Avelino Neto é membro titular e analista didata da
alguma iguais. A circunstância da formação Sociedade de Psicanálise de Brasília.

Associação Livre 19
TRÂNSITO LIVRE PARA
O OFÍCIO PSICANALÍTICO
Aurea Chagas Cerqueira

Tive o privilégio de ter como analistas pessoas A meu ver, é no consultório que tal temática
com capacidade admirável de transitar por se apresenta de forma mais sutil e delicada.
diferentes campos do saber no decorrer dos Do lado do analisando, fazemos a recomen-
seus diálogos, fossem com pares, analisandos dação de que se expresse o mais livremente
ou outros interlocutores. Minha admiração por possível, por meio de associações livres. Do
essas pessoas manteve-me permanentemente lado do analista, a recomendação se volta para
interessada por tudo o que dissesse respeito a a atenção flutuante e a atividade interpretati-
esse belo talento no ofício psicanalítico. va. Ora, se o analista se vê diante de exigências
Entendo que essa habilidade pode ser sus- superegoicas exacerbadas, provavelmente
tentada por alguns importantes pilares. O ficará impossibilitado de uma escuta livre e
ofício psicanalítico requer do analista um in- criativa que o conduza a interpretações con-
teresse genuíno e constante de aprender; uma sistentes e pertinentes, o que poderá empo-
relação estreita com distintos olhares acerca brecer o processo analítico.
do ser humano. Além disso, necessita contar Entendo que o exercício da atenção flu-
com uma boa dose de liberdade de expressão tuante e da atividade interpretativa requer
de ideias e criatividade. do analista disponibilidade e liberdade para
Ocorrem-me três circunstâncias em que expressar suas percepções ao analisando, com
um psicanalista encontra-se envolvido com a base na premissa de que o que diz é verdadei-
expressão de ideias: com a comunidade cien- ro, mesmo que tenha sido fruto de percepção
tífica em geral, com seus pares e com seus inadequada. Logo, esse exercício necessita
analisandos. No intercâmbio de ideias com do acolhimento, por parte do analista, de
a comunidade científica e com seus pares, o seus possíveis enganos, dificuldades, ques-
profissional faz uso de conhecimentos de téc- tionamentos, o que é extremamente difícil
nicas, teorias e de sua experiência clínica. No de ocorrer caso suas exigências superegoicas
consultório, além da bagagem teórica e técni- sejam elevadas.
ca e da experiência necessária, o psicanalista É importante que o psicanalista exerça seu
lida com as singularidades humanas, o que ofício dentro das normas metodológicas re-
torna seu diálogo mais sensível às habilidades queridas; porém, sendo capaz de expressar
de transitar pelo seu cabedal científico. suas ideias e de transitar pelos diferentes
À primeira vista, pode parecer simples esse domínios do conhecimento, da forma mais
trânsito fluido pelo saber e pela expressão de livre e criativa possível. Desse modo, ganham
ideias. Há que se considerar as diferenças de o analista e seus interlocutores.
personalidade entre os analistas, como maior
ou menor extroversão ou introversão. No de-
correr da análise pessoal de todo indivíduo
interessado no exercício da função de psica-
nalista, há um aspecto de especial importân-
cia para o desenvolvimento da capacidade de
transitar livre e criativamente por reflexões:
a elaboração de sentimentos relacionados às
próprias exigências superegoicas. Refiro-me
àquelas que o profissional faz acerca de sua
personalidade, suas atitudes e desempenhos.
Quando exacerbadas e ainda inconscientes,
elas tendem a inibir o profissional, quando
em interlocução com os demais. Essa inibição, Aurea Chagas Cerqueira é psicóloga, mestre em psicologia clínica
por sua vez, tende a colaborar para certo iso- (UnB), professora de psicologia da Universidade Paulista (Campus
lamento a que o profissional se impõe. Brasília) e membro do Instituto de Psicanálise da SPBsb.
PENSAMENTOS SOBRE
O FUTURO DE NOSSOS
INSTITUTOS DE FORMAÇÃO
Do livro Cinco Prefácios para cinco livros não escritos

De Friedrich Nietzsche

O texto transcrito a seguir, cujo título e autor nos provocam instantaneamente a correr
suas linhas, introduz um livro que nunca foi escrito. Trata-se do segundo de cinco prefácios
que Friedrich Nietzsche, então um jovem professor de filologia clássica na universidade
da Basileia, deixou prontos entre 1870 e 1872, para cinco livros que não chegou a escrever.
O motivo de sua publicação nestas páginas é a tamanha pertinência e semelhança das
ideias postas pelo filósofo alemão, na segunda metade do século dezenove, com questões
atuais que reclamam atenta reflexão sobre a formação psicanalítica e sobre nossos
institutos. Reflexão frequentemente estimulada por autores que aqui publicam suas
opiniões e mantêm aberto o debate nas páginas do Associação Livre. Os cinco prefácios
reunidos no livro editado pela 7 Letras (RJ), 2007, têm tradução de Pedro Süssekind.

“O leitor do qual espero alguma coisa deve legisladores da educação cotidiana – esta que
ter três qualidades. Deve ser calmo e ler sem leva à referida formação –. Provavelmente de-
pressa. Não deve intrometer-se, nem trazer verão elaborar de novo tabelamentos. Mas
para a leitura a sua ‘formação’. Por fim, não como está longe este tempo! E o que não vai
pode esperar na conclusão, como um tipo de acontecer até lá! Talvez encontre-se entre ele
resultado, novos tabelamentos. Não prometo e o presente a dissolução do ginásio, talvez até
tabelamentos, nem novos planos de estudo mesmo a dissolução da universidade, ou pelo
para ginásios1 e outras escolas, admiro muito menos uma reformulação tão ampla dos assim
mais a natureza cheia de força daqueles que chamados institutos de formação, que seus
estão prontos para atravessar todo o caminho, antigos tabelamentos parecerão, aos olhos da
desde as profundezas do empírico até as al- posteridade, sobras do tempo das palafitas.
turas dos problemas culturais autênticos, e O livro se destina aos leitores calmos, a
novamente, dessas para as entranhas dos re- homens que ainda não estão comprometidos
gulamentos mais áridos e das tabelas arranja- pela pressa vertiginosa de nossa época rolan-
das. Mesmo satisfeito por ter subido, ofegan- te, e que ainda não sentem um prazer idólatra
te, uma montanha bem alta, e tendo recebido quando se atiram sob suas rodas, portanto a
lá em cima a alegria da vista mais livre, nunca homens que ainda não se acostumaram a es-
poderei satisfazer os amigos de tabelamentos timar o valor de cada coisa segundo o ganho
neste livro. Bem vejo chegar um tempo em ou a perda de tempo. Ou seja – a muito poucos
que homens sérios, a serviço de uma forma- homens. Esses, porém, ‘ainda têm tempo’, a
ção totalmente renovada e purificada, traba- eles é permitido, sem que fiquem ruboriza-
lhando em conjunto, vão se tornar de novo os dos, procurar a reunião dos momentos mais

Associação Livre 21
frutíferos e mais fortes de seus dias, a fim de mado para pensar em sua formação de modo
refletir sobre o futuro de nossa formação, eles restrito e até desdenhoso. Então lhe seria per-
podem até acreditar que chegam à noite de mitido abandonar-se com total confiança à
modo vantajoso e digno, quer dizer: na medi- condução do escritor que, justamente, só ousa
tatio generis futuri [meditação da raça futura falar do não-saber e do saber do não-saber.
(N.T.)]. Um homem assim ainda não desapren- Antes de tudo, o leitor não quer recorrer a
deu a pensar enquanto lê, ainda compreende nada além de um sentimento forte e agitado
o segredo de ler nas entrelinhas, sim, ele es- do que é específico em nossa barbárie presen-
banja tanto, que ainda reflete sobre o que foi te, daquilo que nos distingue como bárbaros
lido – talvez muito após ter largado o livro. E, do século dezenove diante de outros bárbaros.
contudo, não para escrever uma resenha ou Assim, com este livro na mão, ele procura os
um novo livro, mas apenas assim, para refletir! que são movidos por um sentimento seme-
Esbanjador leviano! Você é o meu leitor, pois lhante. Deixem-se encontrar, solitários, em
será calmo o suficiente para seguir um longo cuja existência eu acredito! Perdidos de si
caminho com o autor, cujas metas ele mesmo mesmos, que sofrem, em si mesmos, a dor da
não pode ver, nas quais deve acreditar hon- corrupção do espírito alemão! Contemplati-
rosamente, para que uma geração posterior, vos, cujos olhos são incapazes de escorregar
talvez distante, veja com os olhos o que só de uma superfície para a outra com uma es-
tateamos às cegas, dirigidos apenas pelo ins- piada cheia de pressa! Altivos, que Aristóteles
tinto. Se o leitor, em contrapartida, pretender celebra por atravessarem a vida hesitando e
que só um pulo ligeiro é necessário, um ato sem ação, a não ser que uma grande honra
bem-humorado, se considerar que se alcança e uma grande obra os reclame! A vocês faço
tudo o que é essencial com uma nova ‘organi- meu apelo. Não se escondam, só desta vez, na
zação’ decretada pelo estado, então devemos caverna de sua reclusão e de sua desconfian-
temer que ele não chegou a entender nem ça. Pensem que este livro é destinado a ser
o autor, nem o problema propriamente dito. seu arauto. Se vocês mesmos aparecerem no
Por fim, dirige-se ao leitor a terceira e mais campo de batalha, em sua própria armadura,
importante exigência: a de que ele não se in- quem ainda cobiçará olhar para o arauto que
trometa de modo algum, à maneira do homem os convocou? –“
moderno, e não traga para a leitura a sua ‘for- (Extraído do livro Cinco Prefácios para cin-
mação’, algo como uma medida, como se com co livros não escritos, de Friedrich Nietzsche,
isto possuísse um critério para todas as coisas. tradução e prefácio de Pedro Süssekind, 4ª
Desejamos que ele seja suficientemente for- edição, Editora 7 Letras, 2007.)

Endnotes
1  Nota: O ginásio alemão (Gymnasien) corresponde à reunião do que chamávamos no Brasil
de ginásio (quinta a oitava série do primeiro grau) e de segundo grau.
Quando Nietzsche fala, neste prefácio, de “tabelamentos” (Tabellen), ele está se referindo à
organização do ensino universitário, aos chamados organogramas.
INCONSCIENTE NO
CÉU ABERTO DA CIDADE
Pedro de Andrade Calil Jabur

"Minha vida na caverna é só mesmo para es- população em situação de rua.


cutar (...) Tenho 84 anos mais 14, menos 15, Encontramos com Lucimara de Deus dos
menos 30 e mais 12 por conta do marido que Homens, algumas vezes, andando com uma
morreu. Soma isso, mais minha experiência espécie de manto negro, pelas redondezas do
com bordado e crochê, mais a pintura que eu centro de Ceilândia, carregando sacolas gran-
sei fazer, corte e costura, peças de roupas, ter- des e cheias. A aparência: cabelos longos, cin-
nos, vestidos de casamento, festa, roupa para zas embranquecidos, quase como uma bruxa.
ir em missa. Mas o que eu sei fazer mesmo é Mora em vários lugares, prefere, segundo ela,
olhar e escutar (...) Por isso estou aqui, passa "as cavernas". Quando nos apresentamos pela
muito avião e eu consigo escutar todos eles, es- primeira vez, ela estava morando em uma de-
cuto avião, helicóptero, carro de polícia, crian- las: uma espécie de vão, embaixo do viaduto
ça pequena, escuto vocês, escuto ‘as formiga". do metrô. Se esconde de "um monte de gente,
Formiga no pântano, no açude lá na casa da mas o pior mesmo são os fantasmas que não
mina mãe. Por isso, se somar tudo, devo ter param de sorrir e puxar pelo pé".
325 anos, arredondado (risos). Meu nome é Em um primeiro impacto, estas histórias
Lucimara de Deus dos Homens. Hoje, amanhã das ruas são despejos de miséria, violência,
é outro e depois outro e depois outro. O resto delírios, cheiros, putrefações físicas e sociais,
do nome eu esqueci, deixei guardado, mas na medos e perseguições, concretas e alucinadas.
caverna, a gente guarda e depois perde e pas- Uma avalanche de perdas: até mesmo nomes
se muito tempo desses 325 anos na rua, então e idades. Lucimara poderia realmente ter 84,
perde mesmo. Se eu me lembrasse onde deixei, mais 14, menos 15 ou 325 anos de idade. Lu-
mostraria RG e carteira de trabalho. Tava lá cimara também poderia se chamar Lucimara.
escrito "costureira", centopéia de fios. Eu tive Não foram raras as vezes em que voltava
três filhos que me deixaram solta na rua, perdi para casa, emaranhado por estas vozes; as-
marido, só na ‘sofredura’ (risos) (...) A noite sustado em estar em um mundo que, de for-
eu rezo, durmo, rezo de novo, alguém que já ma direta ou indireta, possibilita a existência
conhece minha reza lá na QNL dá um prato dessa caverna (ou de uma caverna qualquer),
de comida, roupa, casaco. Você quer escutar onde, em minhas fantasias que iam se cons-
minhas rezas?! Ninguém escuta não... Sou só eu truindo através dos relatos de Lucimara, vivia
mesma. Meus filhos nunca escutaram, foi por uma bruxa esfarrapada (mentalmente tam-
isso que fui para rua... Andei, andei, cheguei bém!); dessas com que as crianças adoram
aqui a pé... andava na estrada de noite por con- se assustar.
ta do sol, "dos avião" (...) Mas aprendi que tem Trabalhar com população em situação de
sempre onça na espreita, por isso fico quieta, rua (ou com qualquer parcela de uma popu-
quieta.... tem ninguém para ouvir não. Então o lação socialmente excluída) compreende, en-
que você acha? Não tem ninguém para ouvir, tre outras coisas, o que o filósofo Guillaume
então ou só escuto (...) Escuto aquilo tudo que Le Blanc chamou de capacidade de suportar
falei, com ‘os ouvido’ e com os olhos”. gritos. Dentre as várias perdas, insucessos e
Este relato ouvido, a pedidos da entrevista- fracassos, Le Blanc cita a progressiva destrui-
da, no meio fio à beira de uma movimentada ção da capacidade de relato de si como um dos
rua na Ceilândia, faz parte de uma série de mais marcantes indicadores desse processo
pesquisas de um projeto que coordeno com o de precarização, caracterizando essa popu-
apoio do CNPq sobre o que hoje se denomina lação como "sem voz".

Associação Livre 23
Por isso, ao se abrir qualquer possibilida- “Fujo conversando”.
de de escuta, tal como uma imagem de uma Bahiano possui um carrinho de compras,
represa contendo um volume grande de lotado de pertences misturados com tudo o
água por muito tempo, que tem abertas suas que se é possível coletar e que ele chama de
comportas de uma vez, a força desses relatos peças para seu grande projeto. Parados do
aparece de forma abrupta; como um grito vio- lado de fora de um terreno cercado, Bahiano
lento de perdas e socorro. nos mostra, montando seu grande projeto.
Patrick Declerck, antropólogo e psicanalis- Tendo o carrinho de compras como base, ele
ta francês, chama essa população de náufra- encaixa, com todas as peças recolhidas, uma
gos. Diante da enxurrada contratransferencial espécie de forte-apache. Uma casa, digna de
que, assim como os cheiros fortes da miséria Professor Pardal: antena, televisão, biblioteca,
encavernada por aí, gruda em quem escuta, dois quartos e um apêndice de madeira, que
me perguntava se eu também não estaria me se transforma num bric-a-brac mágico, em
afogando em toneladas de pensamento não uma cozinha.
pensados; meus, de Lucimara, do Bahiano, “A ideia é ir fazendo crescer; arrumei um
do Fumaça. tapete, desses persa, sei lá o nome. Vou plan-
“Tenho ninguém não. Tenho medo de en- tar um jardim no tapete (risos). O senhor deve
contrar qualquer um dos filhos. As pedras na estar pensando: como esse maluco vai plantar
sacola é para não sair por aí voando de tão um jardim no tapete? Grama artificial, rapaz.
leve de dor de ter perdido cinco crianças, três Depois é só embrulhar o tapete e montar a
filhos, mulher (...) O senhor está aqui conver- casa em qualquer canto. É bom para o dia de
sando comigo e não sei quem mais vem aqui sol, deitar no jardim, olhar pro céu... Piscina
falar. Tem uma senhora que sempre ajuda eu, tem também... Só ainda não descobri como
quer me levar para igreja dela (...) Ah, mas eu dobrar água. Porque, deve ter percebido pela
fujo, fujo. Gosto muito de conversar... (risos) minha condição, que água eu não tenho não...
Não sei se percebeu, mas minhas conversa (risos) rimou”.
é tudo fugindo (risos)... Fujo conversando”. Penso que é somente pela liberdade que a
Como não se afogar? Cláudia Girola, antro- escuta psicanalítica proporciona ser possí-
póloga argentina, esclarece que a capacidade vel escutar essas rimas, mais ou menos su-
de escuta dessa população em situação de rua tis, e poder conversar sobre elas. Se em um
passa por tentar, juntamente com esse sujei- primeiro instante, a cacofonia verborrágica
to, transpor a escuta da perda, para também assusta, é preciso ouvi-las sempre, em busca
poder escutar as construções. de melodias.
Fazer pesquisa de campo na rua, no meu
caso, se dispor a escutar os da rua, é ir pro-
gressivamente percebendo, ao contrário da
imagem figurativa que possuímos, que a rua,
assim como um espaço mental, não é somente
ampla; ela esconde cavernas claustrofóbicas.
É preciso saber transitar e escutar estas va-
riações. É preciso, depois de um tempo es-
cutando, escutar mais, mais e mais: muitas
vezes por semana.
Possibilidades de sobrevivência construí-
das no dia a dia, como qualquer um de nós,
náufragos. E, muitas delas, pude observar,
de uma criatividade ímpar. A própria satis- Pedro de Andrade Calil Jabur é membro do Instituto de Psicanálise
fação do Fumaça, ao tomar posse sorrindo de Virgínia Leone Bicudo da SPBsb e coordenador do Projeto de Pesquisa
um pensamento, que não sabia que era seu: Situações de rua: histórias de vida, vínculos e sociabilidade, UnB/CNPq.
POR UM
INSTANTE
SÓ...
Keyla Carolina Perim Vale

Moro no centro... Ando e vivo por aqui... Num Velhinha...


desses dias ensolarados, com alguns trocados
no bolso, fui almoçar fora de casa. Caminha- Caminhei tempo demais?
va e, à frente, até um pouco distante, vi uma Ela recolhia papel, e eu?
velhinha e, próximo a ela, um carrinho; uma Deixei o instante passar:
espécie de carrinho de bebê, sem a parte do O instante de não querer oferecer,
bercinho que acolchoa a criança, com muitos O instante de não atrapalhar,
papelões empilhados. O instante dela e eu com o meu...
Ainda de longe percebi que alguém de pas- Passou... Ele volta?
sagem, caminhando, como eu, aproximou-se Nunca mais a vi...
dela e ofereceu algo. Talvez como num gesto Escorri inteira e deixei meu pedaço sair:
de quem aceita, ela esticou seu braço curtinho Fiquei com a meia; essa que esquenta meu pé, e ela?
e pegou o que a pessoa ofereceu. À medida Descalça, sem frio e sem medo; por um instante só...
que me aproximava, eu pensava que, com os Se tivesse muitas rugas e catasse papel
trocados do meu bolso, poderia retirar uma Seria eu essa velhinha?
pequena parte e, na minha fantasia, contribuir O que seria então?
para uma refeição dela, já que o horário, de Talvez o mesmo de agora:
uma maneira geral, coincidia com o período Alguém que chora e só sente o instante passar...
de almoço. Pus a mão no bolso da minha calça
e separei dois reais para entregar a ela...
Estava bem perto, com o braço estendido
e com a nota na ponta dos dedos, quando a
velhinha olhou para mim e, balançando a ca-
beça, disse: “Não, agora não!”. E eu no mesmo
instante me envergonhei e não associei que
minutos antes ela havia começado uma espé-
cie de louvor ou ritual, no qual levantava os
dois braços ao céu e girava, se movimentando
e cantando... Um gesto e num breve instante:
completo. Não cabe mais nada, não quer mais
nada... Tudo isso já acontecia e eu lá, com o
meu braço estendido, sem entender... Para-
lisada, totalmente impactada, abaixei o meu Keyla Carolina Perim Vale é membro do Instituto
braço, hesitei em ir, mas segui o meu cami- de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise de Brasília
nho... Já não era mais tempo! e do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Goiânia.

Associação Livre 25
UM VASO
DE FLOR...
Daniela Boianovsky

“Livre pensar é só pensar” Outro dia, caminhando por um jardim


(Millôr Fernandes) numa inspeção que pudesse me render um
vaso de flor, ao divagar sobre possíveis com-
Morei na Inglaterra por um ano, há um bom binações entre as plantas esparramadas por
tempo, e umas das peculiaridades que me hip- ali, percebi que poderia identificar, em meio
notizaram naquele país foram as suas praças, ao “disfarce” dentre tantos estímulos, novas
parques, jardins, o verde intenso que, naquela formas que me rendessem um arranjo dife-
paisagem tão chuvosa e de céu cinzento na rente daqueles que já havia feito. Para isso eu
maioria dos dias, capturava o meu olhar. Da precisava descobri-las, reinventá-las, explorá-
janela do meu apartamento eu tinha a sorte -las na diversidade de cortes, cores, galhos,
de contemplar uma típica praça inglesa, com folhas e combiná-las com os vasos que tinha
seu grande número de árvores que se trans- em mãos. Até arbustos, antes desprezados
mutavam a cada três meses: das copas cheias para este fim, se revelavam como opções es-
e do delicioso som produzido por suas folhas teticamente interessantes. Um paralelo surgiu
sacudidas pelo vento, ao silêncio seco dos ga- na minha mente: aquela busca, aqueles cortes
lhos nus; das folhas verdes àquelas que, de tão e suas novas combinações foram desenhando
avermelhadas, eram como fogo aquecendo a algo como um modelo para pensar momentos
praça; da aparente ausência de vida e de cores vividos com meus pacientes. Algo muito sim-
à força dos pequenos pontos verdes que, mila- ples, embrionário, mas, como todo modelo,
grosamente, brotavam aos milhares daqueles ilustrativo. O que antes parecia limitar-se a
galhos após longo e tenebroso inverno. Um ci- uma caminhada com um objetivo na cabeça e
clo que me causava encantamento e algumas um alicate na mão, foi se transformando num
descobertas: enquanto caminhava por aquelas exercício inusitado de associações.
ruas geladas, coberta por várias camadas de Lembrei da dificuldade, tantas vezes pre-
roupa, observava o quanto as árvores, nuas, sente na dupla psicanalítica, de identificar,
se revelavam no inverno, expostas como um em meio à enxurrada de estímulos que os
esqueleto exibindo a sua estrutura em dese- relatos nos trazem, o conteúdo latente, os
nhos, às vezes tão expressivos, que desafia- afetos relativos à transferência e contra-
vam a minha imaginação e me distraíam de transferência, o significado inconsciente do
todo aquele frio. Na estação seguinte, com a discurso manifesto. Incrustado na vegeta-
chegada das mais diversas flores, a cidade ex- ção densa da resistência, o conteúdo que
plodia numa festa que era trazida para dentro perseguimos e que melhor fala sobre o nos-
das casas através de belas combinações dessas so paciente – e sobre nós mesmos – precisa
flores em arranjos que coloriam a sala dos ser extraído/percebido, ou mesmo criado/
ingleses e... a minha! construído após muita observação e escuta.
De volta a Brasília, revisito aquele ano Como, então, criar ou recombinar a partir
cada vez que, em nossas ruas, me vejo agora da mata sensorial das histórias, das queixas,
hipnotizada com as formas do cerrado, o da dor...? Como pinçar daqueles “galhos” às
ciclo dos ipês, flamboyants, paineiras, com vezes tão secos e desvitalizados o potencial
o nosso verde renascendo quase que mila- da mudança e do crescimento, a possibili-
grosamente com as primeiras chuvas que dade de um trânsito mais livre e rico entre
encerram, enfim, nosso longo e desconfor- as estações dos estados da mente? Ou, ain-
tável período da seca. da, como perceber a folha, o galho, a flor
que existe naquela estrutura, que possam sentir o frio cinzento e angustiante do inverno
ser combinados em novos arranjos, novos inglês. Mas também é acreditar na capacida-
desenhos, novos sentidos, antes desfoca- de da dupla de produzir mudanças e novas
dos naquele jardim mal cuidado? Podemos, “paisagens”, de extrair do galho nu o sentido
na nossa dupla, transformar o desabafo, a inconsciente, do silêncio o som interno, da
evacuação, em adubo para novas associa- seca e do vazio o broto... E, se os momentos de
ções? Percebi que tinha em mente o texto de verdadeiro insight são raros, lembremo-nos
nossa colega Cláudia Carneiro, “Realidade dos ipês, com sua floração exuberante, tam-
sensorial e realidade psíquica: trânsito e bém rara, abastecendo de cor e beleza a seca
turbulência” (in Revista Brasileira de Psi- de nosso cerrado, fazendo-nos pensar que a
canálise, vol. 47, n. 4, 2013) – premiado no espera – sem flor – valeu a pena.
XXIV Congresso Brasileiro de Psicanálise,
lido recentemente por mim e cujo conteúdo
ecoava na minha caminhada.
Seguindo no passo de divagações, me vem
outra imagem: enquanto as flores são “arran-
cadas” de sua morada para compor uma nova
forma, ao construir com o paciente novos “ar-
ranjos” – entendendo, aí, o seu funcionamen-
to psíquico – estamos, juntos, identificando
e “devolvendo” algo que é próprio do sujei-
to. Aproximando-nos, quem sabe, das raízes
de sua subjetividade. Uma nova fronteira é
estabelecida para ampliar um território de
conteúdos integrados, antes dispersos, des- Daniela Boianovsky é psicóloga e membro do
garrados e não reconhecidos. Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo
Caminhar com o paciente, muitas vezes, é da SPBsb.

Associação Livre 27
Amor:
DESEJO DO QUE NÃO SE TEM
Veridiana Canezin Guimarães

Já há algum tempo o tema de Eros tem me amor: o que se ama é somente aquilo que não
instigado, principalmente, no que tange aos se tem. Disse Sócrates: o que deseja, deseja
caminhos que a pulsão sexual constrói na sua aquilo de que é carente. (...) Deseja o que não
relação com o outro para sustentar uma con- está à mão nem consigo, o que não tem, o que
dição subjetiva. Na travessia do autoerotismo não é ele próprio e o de que é carente; tais são
ao amor de objeto, na qual não se subentende mais ou menos as coisas de que há desejo e
uma visão evolucionista, múltiplas possibili- amor, não é? Esse Amor de Sócrates é amor
dades de destinos das pulsões sexuais podem de algo, certamente desejado. Mas o objeto
estar presentes. E sabemos que a força desse de amor só pode ser desejado quando não é
vínculo está na figura de Eros, que inscreve possuído, quando falta. O amor é desejo do
no psíquico os objetos do mundo externo, que não se tem.
fazendo-os internos, aludindo à realização Quando Freud, em seu texto sobre o narci-
de um investimento libidinal que implique o sismo, discorre sobre a escolha objetal narcí-
par pulsão e objeto. sica, conceitua-a como uma escolha de amar
Nessas reflexões sobre Eros, me aproximo aquilo que se foi e deixou de ser, ou amar aqui-
do poeta grego Hesíodo que, em Teogonia, lo que possui a qualidade que nunca se terá.
configura Eros fundamentalmente como “Será amado aquilo que possui uma qualidade
uma entidade abstrata, um deus portador que falta ao Eu para chegar ao ideal” (Freud,
de força cósmica, que engendra o mundo e 1914). Ama-se aquilo de que se é carente, de-
traz harmonia ao caos. Enquanto o caos é o seja-se o que não está à mão nem consigo, o
representante do vácuo primitivo reinante que não se tem, o que não é ele [si] próprio.
no universo, Eros é a energia que organiza Nesse contexto, o amor parece coadunar-se à
e unifica tudo. Mas Eros tem Anteros como necessidade de um deslizamento egóico, um
adversário no mundo divino, isto é, a manifes- afastamento da condição narcísica, embora,
tação da antipatia, da aversão e da discórdia. em certa medida, não possa também pres-
Essa divindade tem todos os atributos opostos cindir dela. Por outro lado, cabe refletir so-
aos de Eros: separa, desune, desagrega. Tal- bre a condição do amor numa cultura como
vez tão forte e poderoso como Eros, Anteros a contemporânea, marcada pela fragilidade
impede a produção de vínculos, semeando a dos laços afetivos e pela efemeridade dos en-
discórdia e o caos. contros. Esse comportamento denotaria uma
N’O Banquete de Platão, diálogo escrito por maior abertura para amar ou seria o sintoma
volta de 380 a.C, composto de discursos sobre de uma sociedade que busca freneticamente
a natureza e as qualidades do amor (Eros), o uma completude impossível de ser alcançada?
banquete consiste na celebração e no louvor a Convém lembrar que Platão concebe o
Eros. O seu objetivo é definir o amor. Entre os amor como algo intermediário, que está pre-
presentes estão Aristodemo, Fedro, Pausânias, sente entre dois extremos. “(...) São os que es-
Ágaton, Erixímaco, Aristófanes, Alcebíades tão entre esses dois extremos, e um deles seria
e Sócrates, o mais importante dentre eles. o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas
Sócrates, na sua juventude, fora iniciado na é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de
filosofia e genealogia amorosa pela sacerdo- modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sen-
tisa Diotima de Mantinéia. E entre os diver- do filósofo, estar entre o sábio e o ignorante”.
sos discursos realizados, um ponto do diálogo Platão retira de Eros (Amor) a condição de
dele com Ágaton ressalta que parece conter deus e o transforma em intermediário entre
um apontamento crucial sobre o conceito de os deuses e os mortais, o que permite pensá-lo
como mediação para a construção de laços da saúde: “Um forte egoísmo protege contra o
e relações. Dessa forma, deixa entrever que adoecimento, mas, no final, precisamos come-
ele deve ser pensado em termos relacionais. çar a amar para não adoecer, e iremos adoecer
Supondo que o homem se orienta segun- se, em consequência de impedimentos, não
do o princípio do prazer, Freud conclui pela pudermos amar.” (Freud, 1914). Só o amor
existência de uma força de sentido contrá- transforma o egoísmo em altruísmo e mantém
rio, que se opõe à descarga total de energia, vinculados os grupos humanos, principal-
e que implica desagregação, morte e retorno mente porque impõe um freio ao narcisismo,
ao inorgânico. Eros tomado em seu sentido demandando sequências mais amplas. Diante
original é o que permite o laço social e a cons- da impossibilidade de satisfação completa e
trução da civilização, aproximando-se assim das inescapáveis frustrações das fantasias de
o Eros freudiano do Eros platônico. No con- onipotência, o sujeito se vê às voltas com se
teúdo, Eros, o amor, é fundamentalmente um lançar fora do seu próprio centro, ainda que
intermediário entre homens e deuses, entre seja em busca do objeto capaz de lhe resti-
a ignorância e a inteligência, entre o feio e o tuir ilusoriamente a experiência primordial.
bonito; Eros só existe porque tem Anteros. Lembremos que no labirinto da paixão narcí-
Nesse contexto, embora tenha a intenção de sica não há espaço para diferença, separação
tudo incluir e tudo preservar, para a psicaná- ou limite. Ela é, portanto, mortífera. Já os
lise o Eros em si mesmo não traz nenhuma caminhos do amor, como nos lembra Hélio
ideia de plenitude, pois deve ser tomado na Pellegrino, nos levam a nos afastarmos da oni-
sua contradição, como desejo do que não se potência do desejo narcísico e nos condenam
tem e dividindo a batalha da vida com a atuan- à perigosa vertigem da liberdade.
te pulsão de morte. Como na direção socrática, essa reflexão
No contexto da libido objetal, sabemos que termina por demonstrar certo elogio ao amor,
toda pulsão parcial busca satisfação no pró- que se constitui responsável pelo desejo uni-
prio corpo, autoeroticamente, coadunando versal de possuir o belo e o bom; um desejo
com o estádio narcísico da libido. É apenas de continuidade; o que só pode ser pensado
num segundo momento que a pulsão parcial a partir de vínculos construídos.
separa-se do objeto de apoio para se tornar
autônoma. Para que procurar um objeto se o
ato autoerótico traz prazer? “Por que a vida
psíquica se vê forçada a ultrapassar as fron-
teiras do narcisismo e a depositar a libido nos
objetos.” (Freud, 1914). O represamento da
libido no eu é sentido como desprazeroso,
expressão de maior tensão, conferindo ao
aparelho psíquico a tarefa de lidar com essas
excitações, orientando a libido do eu para os
objetos. A construção dessas relações entre o
eu e os objetos expõe, portanto, a história dos
variados laços da economia libidinal.
Assim, há uma relação, de certo modo pre- Veridiana Canezin Guimarães é psicóloga clínica, pesquisadora
ponderante, entre a capacidade de o sujeito colaboradora e pós-doutoranda em psicologia clínica (UnB) e membro
investir em objetos e a continuidade da vida e do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da SPBsb.

Associação Livre 29
Inquietações
Marina Abdalla de Souza Porto

Já faz algum tempo que me percebi na clí- postas rápidas, conforme o modelo de vida
nica (e fora dela) envolta por temas como o veloz que seguem. Veloz e voraz. Precisam
desejo de se relacionar, a rapidez dos relacio- de objetos para investimento e a eles entre-
namentos, a insegurança de não ser amado e gam boa parte de sua energia. Voracidade que
não saber amar, a busca de reconhecimento causa empobrecimento egoico.
nas redes sociais. O que se evidenciava era a Acompanhando um dos analisandos que
necessidade dessas pessoas de sentirem sua traziam essas questões, me dei conta de que,
própria existência com a crença de que es- volta e meia, ele mencionava o livro Amor lí-
tavam dando um rumo adequado a ela. Por- quido: sobre a fragilidade dos laços humanos,
que, para além dessas questões, pairava uma de Zygmunt Bauman. Já tinha ouvido falar,
maior: “Estou sendo feliz?” mas não lido. Após uma leitura, pude pensar
O sentimento de existência se vincula à que esses analisandos estavam vivendo nessa
imagem que achamos que os outros fazem liquidez. E quantos de nós também não esta-
de nós e que fazemos de nós mesmos. Trata- ríamos? Esse também não seria por vezes meu
se daquele conhecido percurso onde a busca mundo e o seu?
de si mesmo se dá a partir da relação com o O que Bauman chamou de liquidez e me
outro. Nos dias de hoje, entretanto, para se refiro neste texto é o movimento, a transição
sentir existindo tem-se que ser visto e reco- a qualquer custo (ou sem custo algum), a co-
nhecido de forma imediata, o que esvazia o nectividade sem conexão ou engajamento. A
olhar e principalmente a sensação de como foi velocidade aqui é ponto crucial. Uma questão
olhado. As redes sociais viabilizam (e confun- já não precisa ser pensada, pois seu tempo já
dem) toda essa exposição e definem uma nova passou. Sabemos que o movimento é próprio
maneira de relação. Você tem algum valor de da psicanálise, sendo deslocamento ou trans-
acordo com o número de amigos que tem (ele formações dos esquemas de pensamento. O
deve ser alto, mesmo que você confie em pou- movimento líquido, porém, parece-me de ou-
cos), com as fotos que você publica e causam tra natureza. Que futuro teria o trabalho ana-
alvoroço na rede, com os comentários que faz. lítico num mundo líquido? O que se tem visto
É necessário dizer que algumas pessoas é um número crescente de pessoas investindo
usam essas redes de forma diferente: elas menos nas relações para conseguirem rompê
usam tais redes, mas não permitem que se- -las sem sofrer, ou com o menor sofrimento
jam usadas por elas. Digo isso porque o efeito possível. Tem se tornado mais fácil curtir
desse uso virtual tem sido o desconhecimento uma página numa rede social ou uma foto do
de si mesmo e a ilusão de que se conhece o que se aproximar da pessoa e conversar. Está
outro. Este é visto com uma vida ou aspectos cumprida a tarefa social. Relacionar-se virou
de personalidade que se gostaria de ter, mas uma tarefa, algo a se cumprir. A qualidade a se
não é possível. O que diferencia esse grupo desejar. Quantos vínculos não estariam sendo
que se sente atacado quando tenta se encon- atacados na ilusão de serem alimentados?
trar é o lugar onde as pessoas buscam a si E quantas pessoas sofrendo dor e angústia!
mesmas. Buscam fora de si, e encontram o Freud fala de dor no trauma do desmame, na
vazio, a solidão e os sentimentos de pequenez separação do objeto. E a angústia é a reação
e desamparo. E assim, com essas queixas e à ameaça de reviver essa dor. Angústia é a
assumindo um lugar de vitimização, chegam reação a uma expectativa de dor semelhan-
aos nossos consultórios. De nós exigem res- te. Quantos estão se sentindo desnutridos?
Reivindicando que o desmame (frustração) analista? Que o analista saiba esperar. Esperar
veio cedo demais? Ocorre que existência e que do silêncio brote uma emoção, do vazio
completude têm sido relacionadas e espe- surja uma lembrança, das palavras excessivas
radas juntas. Há uma grande dificuldade de venha um pensamento e que este nos pre-
se aceitar que o que nos inscreve na espécie senteie com o pensar voltado para dentro do
humana é a falta, a cesura. nosso confuso e fascinante mundo interno. E
E então me pergunto: Será que nossos ana- para não perder tal oportunidade, é preciso
lisandos estão fazendo conexões, ou estão que o analista tenha antes se atirado e sobrevi-
somente se conectando? Estão curtindo nos- vido a seus abismos para, então, se atirar mais
sas interpretações porque fazem sentido ou uma vez, agora ao abismo de seu analisando
porque não querem se revelar e correr o risco e junto dele.
de nos desagradar? E como estamos diante
deles? Como está nossa conexão com a psi-
canálise e o fazer analítico? Como está nossa
conexão com o próprio vazio, com nossa falta,
nossa liquidez? Vejo pessoas embarcando na
liquidez para ir para longe do ato de pensar
quando qualquer pensamento irrompe.
Sessões em silêncio... Longas sessões em
que, apesar de não ser pronunciada uma pa-
lavra, há muito sendo dito ali. Mas o que? Ou,
então, sessões corridas. Sim, sessões em que
tantas palavras são para confundir o analista
e nenhuma relação ou comunicação se esta-
belecer. Ou ainda, temos discurso incoerente Marina Abdalla de Souza Porto é psicóloga e membro do
com o afeto. E o que o analisando espera do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da SPBsb.

Associação Livre 31
Só con hece m os u m a real i d ad e
– a d os pe n sa m e n tos .

 Friedrich Nietzsche

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