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Revista Panorâmica On-Line. Barra do Garças – MT, vol.

23,
p. 230 - 240, jul./dez. 2017. ISSN - 2238-921-0

NA FLORESTA DO ALHEAMENTO: da dissimulação ao absurdo

Leicina Alves Xavier Pires1


Maria Aparecida Rodrigues2

Resumo:
O propósito deste trabalho é mostrar o processo artístico de Fernando Pessoa em Na Floresta
do Alheamento, fragmento do Livro do Desassossego (2011), sob a abordagem
fenomenológica do absurdo – ou seja, a ausência de um sentido e de uma unidade na obra.
Pretendemos demonstrar que a prosa poética se encontra na passagem da simulação para a
dissimulação, rumo ao absurdo. A dissimulação refere-se a uma presença, e a simulação a uma
ausência. Há uma dissimulação discursiva do sujeito lírico sobre o fazer poético, e, dessa
maneira, o eu ficcional cria um jogo de fingimento, de modo a se esconder no seu próprio
discurso, confundindo-nos, e não nos permitindo identificar se ele se encontra no mundo real
ou no mundo irreal, aproximando-se até mesmo do caos, do absurdo, que nasce do espetáculo
da desrazão. O absurdo confere à obra a vivência do caos no seu próprio experimento e no
assassinato do seu ser original. Nessa dinâmica, o absurdo a transmuta em outro não ser,
permitindo, também, a dissimulação de si mesma e, contraditoriamente, anulando as suas
próprias razões.

Palavras-chave:
Simulação. Dissimulação. Absurdo.

NA FLORESTA DO ALHEAMENTO: from the dissimulation to the absurd

Abstract:
The purpose of this work is to show Fernando Pessoa’s artistic process in ‘Na Floresta do
Alheamento’, a fragment of ‘Livro do Desassossego’ (2011), under the phenomenological
approach of the absurd – that is, the absence of a sense and unity in the work. We intend to
demonstrate that poetic prose is in the passage from the simulation to the dissimulation,
towards the absurd. The dissimulation refers to a presence, and simulation to an absence.
There is a discursive dissimulation of the lyrical subject over the poetic making, and, in this
way, the fictional self creates a play of make believing, so as to hide itself in its own
discourse, confusing us, not allowing us to identify if it is in the real world, created by him, or
in the unreal world, approaching even the chaos, the absurd, born from the spectacle of
unreason. The absurd confers on the work the experience of chaos in its own experiment and
the murder of its original being. In this dynamic, the absurd transmutes it in another not being,
allowing, also, the dissimulation of itself and, contradictorily, annulling its own reasons.
1
Mestrado em Letras: Literatura e Crítica Literária. Colégio Estadual João Gomes. E-mail:
leicina@hotmail.com.
2
Pós-doutorado em Linguística, Letras e Artes. Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail:
mariacidarodrigues2013@gmail.com.

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Keywords:
Simulation. Dissimulation. Absurd.

Introdução

O conceito de absurdo foi amplamente estudado e discutido pelo estudioso Camus


(2016), em várias de suas obras, e também por Esslin (1968). Diante disso, utilizaremos a
teoria desses dois teóricos a fim de embasar nossa hipótese de que a prosa poética pessoana,
em Na Floresta do Alheamento, é pautada no absurdo.
A prosa poética pessoana de Na Floresta do Alheamento encontra-se na transição da
modernidade para a contemporaneidade. Ela está inserida no Livro do Desassossego, de
Fernando Pessoa, único texto publicado pelo poeta em vida. Essa obra foi escrita por
Bernardo Soares, um semi-heterônimo de Fernando Pessoa. O próprio título já remete a algo
sombrio, obscuro, desconhecido: “floresta do alheamento”.
Segundo o dicionário de símbolos, o vocábulo “floresta” simboliza “o aspecto
perigoso do inconsciente, sua natureza devoradora e ocultante (da razão); a floresta contém
toda espécie de perigos e demônios, de inimigos e doenças” (CIRLOT, 1984, p. 257). Desde a
literatura antiga, a floresta é exaltada como geradora de angústia, serenidade e opressão. Já o
termo alheamento alude a uma alienação, uma ausência, um êxtase, de modo que o próprio
título já sugere que a prosa poética remete a uma incógnita, ao inexprimível, inexplicável, a
um mistério insolúvel, já adentra o leitor em um estado onírico e em um jogo discursivo. Ele
antevê um estilo diferente, uma polissemia discursiva e um desvio semântico.
Sendo assim, o título já reporta a uma metamorfose significante, a qual norteará toda
a prosa poética, resultando num jogo discursivo totalmente fingido. Para tentar explicitar
melhor tal jogo, utilizaremos o conceito de Baudrillard (1991), para os termos de simulacro,
simulação e dissimulação. Para ele, dissimulação é fingir não ter aquilo que se tem, enquanto
simulação é fingir ter o que não se tem. Já o simulacro é uma máscara e pertence ao mundo
das aparências, causando ilusão e parecendo ser aquilo que não é. Na Floresta do Alheamento
apresenta um jogo discursivo, em que o eu ficcional finge não ser aquilo que é, de forma a
gerar um movimento dissimulado.

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Diante dessa ideia de fingimento como dissimulação da dissimulação, o eu artístico


encontra-se no entrelugar, em que ele não nos permite identificar onde está, nem o que ele
realmente é. Para o conceito desse termo, utilizaremos a teoria de Bhabha (1998) e de
Hanciau (2005). O entrelugar seria uma terceira margem, um caminho do meio, um espaço
intersticial, fundamentado nos procedimentos de deslocamento, de forma a fazer surgir algo
novo, híbrido e diferente. Essa passagem que o eu lírico pessoano realiza permite conduzi-lo à
estética do absurdo, para a qual utilizaremos a teoria de Camus (2016) e de Esslin (1968).
O absurdo é a densidade; e a estranheza do mundo é o mal-estar diante da
desumanidade do próprio homem, é a queda diante daquilo que somos, é esse enjoo, essa
náusea diante do universo (CAMUS, 2016). A prosa poética pessoana possui um caráter
fragmentário e não há um núcleo na mesma. O leitor pode lê-la como achar conveniente: do
início ao fim, do meio ao início, do fim ao meio. Há também nela um imenso desconsolo,
tédio, amargura, estranhamento e até mesmo uma sensação de exílio. Nessa obra, há uma total
ausência de sentido e de unidade, gerando o absurdo, o qual confere a ela a vivência do caos
no seu próprio experimento e no assassinato do seu ser original. É uma obra que passa do
discurso ao contra-discurso3, pois há uma ausência do dizer, e da simulação (ausência) à
dissimulação (presença).

1 Na Floresta do Alheamento: uma obra dissimulada e absurda

Na atualidade, utiliza-se de simulacro e de simulação para a construção do hiper-real.


Esse movimento ocorre com tanta perspicácia que se torna indissociável, real e cópia da
realidade, os quais são interligados, visto que o mundo se transformou em pura imagem. A
imagem em si não constitui o objeto, mas é seu simulacro. Para Baudrillard (1991), é
impossível isolar o processo do real e provar o real. O mundo se transformou em imagem e
não existe dissociado dela, e ela não constitui o objeto em si, mas é sua representação. À
medida que a representação tenta absorver a simulação, interpretando-a como falsa
representação, a simulação envolve todo o edifício da representação como simulacro

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O termo contra-discurso é, também, uma expressão usada por Foucault (1999), no livro As palavras e as
Coisas.

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(BAUDRILLARD, 1991). Já o simulacro é uma máscara, pertence ao mundo das aparências,


causando ilusão, o que parece ser, mas não é. Dessa forma, a ação é uma simulação, e o objeto
dela é o simulacro, o qual se assemelha ao real na visão exterior, que até se torna difícil
separar o que é o modelo do que é imitação e suas diferenças.
Os conceitos de Baudrillard (1991, p. 9-10) apontam também para a estética da
dissimulação, diferenciando simulação de dissimulação:

Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se
tem. O primeiro refere-se a uma presença, o segundo a uma ausência. Mas é
mais complicado, pois simular não é fingir. [...] Logo fingir, ou dissimular
deixam intacto o princípio da realidade: a diferença continua a ser clara, está
apenas disfarçada, enquanto que a simulação põe em causa a diferença do
verdadeiro e do falso, do real e do imaginário.

Dessa forma, a simulação é uma ausência e a dissimulação é uma presença. A obra


Na Floresta do Alheamento é um processo dissimulativo, em que o eu lírico cria um jogo
discursivo, totalmente fingido:

Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno entre o sono e a vigília,


num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção boia entre dois
mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu,
e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou
nem o que sonho (PESSOA, 2011, p. 454).

Percebemos, nesse excerto, um jogo sonoro e uma grande força persuasiva nas
palavras, que, justapostas e opostas, produzem dissemelhanças semânticas e paradoxais, de
forma a gerar a dissimulação: torpor e lúcido; pesadamente e incorpóreo; sono e vigília; vê e
cegamente. O eu ficcional nos confunde e não nos permite identificar se ele está falando do
mundo real por ele criado, ou do mundo ficcional. As palavras contrárias se incorporam, a fim
de permitir o caos, a perturbação, numa dinâmica de unidade e movimento. O verbo “estagno”
comprova o estado de indecisão do eu lírico, o qual remete ao “parar, paralisar, interromper”,
o que comprova que ele se encontra no meio, e num ponto de transição: entre o sono e a
vigília. O excerto “Minha atenção boia entre dois mundos” comprova que o eu lírico
dissimula a sua identidade e o local onde está, confessando que se encontra num espaço
intersticial, isto é, no entrelugar, que não é aqui, nem acolá.
O conceito de entrelugar é muito importante a fim de reconfigurar os limites difusos
entre centro e periferia, cópia e simulacro, autoria e processos de textualização, literatura e

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uma multiplicidade de vertentes culturais, fazendo do mundo uma formação de entrelugares.


Esse espaço constitui-se como um local inacabado, intervalado e complexo, em que nada se
fixa, sendo sempre movediço. É um espaço intermediário que desloca sentidos e faz emergir
novos significados. Segundo Bhabha (1998, p. 19), “Uma fronteira não é o ponto onde algo
termina, mas, como os gregos reconheceram, [...] é o ponto a partir do qual algo começa a se
fazer presente”. Dessa maneira, Bernardo Soares tem a capacidade de criar algo novo e
diferente, originando novas formas de pensamento:

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu
viver, diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me,
não sei porquê... [...] Boio no ar entre velar e dormir, e uma outra espécie de
realidade surge, e eu no meio dela, não sei de que onde que não é este... [...]
O eterno estar no bifurcar dos caminhos!... (PESSOA, 2011, p. 454-455).

O eu artístico estabelece um movimento de metamorfose em que uma coisa não é ela


mesma e nem totalmente outra. O trecho “Sei que despertei e que ainda durmo” reporta a um
modo intervalado, e que não se pode estabelecer com clareza. É um espaço do meio, que se
encontra entre dois estados. Novamente, quando o eu artístico fala que “boio no ar entre velar
e dormir”, ele evoca essa condição fronteiriça. Quando Bhabha (1998) se refere a esse além
do entre, diz que não se trata de um novo horizonte, nem um abandono das coisas do passado,
mas de um para lá e para cá, de todos os lados, um interstício, um lugar de instâncias
contraditórias, de momentos híbridos, um espaço de fronteira. Percebemos o estado de
suplício do eu ficcional, quando ele declara: “o eterno estar no bifurcar dos caminhos”. É
como se ele nunca fosse sair dessa condição de hibridez, estando destinado a eternamente
estar no bifurcar dos caminhos.
De acordo com Hanciau (2005), as fronteiras são o produto da capacidade imaginária
de reconfigurar a realidade, a partir de um mundo paralelo de sinais que guiam o olhar e a
apreciação. Bernardo Soares consegue criar um local aberto e repleto de novas possibilidades.
Trata-se de um terceiro espaço, repleto de múltiplas perspectivas, o local da fronteira, não
visto como um espaço onde uma coisa acaba e outra começa, mas um local de mistura e
fusão, que reúne vocábulos que a princípio nada os aproximaria. Porém, na prosa poética
analisada, a miscigenação das palavras permite criar o jogo discursivo em que o entre é
evocado de forma a permitir que o eu lírico possa fingir duplamente, gerando um jorro

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desarticulado e descontínuo de ideias, cuja desordem cria uma imagem sintática imprecisa,
indeterminada, desconexa:

Desenganemo-nos da esperança, porque trai, do amor, porque cansa, da vida,


porque farta e não sacia, e até da morte, porque traz mais do que se quer e
menos do que se espera. Desenganemo-nos da esperança, ó Velada, do nosso
próprio tédio, porque se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a
angústia que é (PESSOA, 2011, p. 460).

Podemos perceber que esse fragmento é marcado por vírgulas sucessivas, de forma a
registrar o incômodo, o tormento, o tédio. As ideias são lançadas em forma de jato, a fim de
enfatizar o estado do eu fictício, produzindo um mundo onírico e devaneante, o que cria
conteúdos irreais e torna o texto uma figuração dissimulada do real. Dessa forma, o
imaginário adquire uma característica do real, ou seja, ele não se transfigura no real, mas
obtém um predicado de realidade. Em toda a prosa poética, estamos diante de uma enunciação
dissimulada, na qual o eu fictício finge no processo de escrita de si, num ato de encobrimento
do seu próprio eu, criando um jogo que implica aquilo que se oculta nas dobras da prosa
poética, que é o próprio ato de criar. O que realmente importa é a escrita-arte, é discorrer
sobre sua própria escritura. O eu artístico confessa estar fingindo, a fim de ocultar quem
realmente ele é, e, ao admitir sua mentira, ele passa também a associá-la com a imperfeição,
de forma a corroborar com a suposta teoria da arte como escrita do absurdo.
A prosa poética pessoana está pautada no absurdo, pois ela é indescritível e
inexplicável, de maneira a criar elementos chocantes do ilógico. Segundo Esslin (1968, p. 20),
“Absurdo é aquilo que não tem objetivo. [...] Divorciado de suas raízes religiosas,
transcendentais e metafísicas, o homem está perdido; todas as suas ações sem sentido,
absurdas e inúteis.”. Não há objetivos na obra Na Floresta do Alheamento, visto que o eu
lírico simplesmente fala de sua escritura e do mundo artístico, o qual ele almeja alcançar
ardentemente. A escritura transpõe outro espaço, no qual nada significa, onde a realidade
inexiste e não existe representação. O eu ficcional encontra-se no mundo real que ele mesmo
criou, e está rumo ao universo da arte, um local que lhe causa muita angústia, porém que ele
anseia:

De vez em quando pela floresta onde de longe me vejo e sinto, um vento


lento varre um fumo, e esse fumo é a visão nítida e escura da alcova em que
sou atual, destes vagos móveis reposteiros e do seu torpor de noturna.

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Depois esse vento passa e torna a ser toda só ela paisagem daquele outro
mundo [...] (PESSOA, 2011, p. 455).

O eu fictício possui uma “visão nítida e escura” da alcova em que se encontra, a qual
se reporta ao mundo real por ele criado. O vento passa e revela o mundo artístico, a escritura,
o local ao qual ele deseja chegar, além de observarmos que a linguagem fala dela mesma,
numa transição do discurso ao contra-discurso. Percebemos, nesse fragmento, que ainda há
um discurso, pois o eu ficcional pressupõe a presença de um público, mas que está
encaminhando-se ao contra-discurso, visto que a linguagem se apresenta no nível do
significante e se encontra ausente do “dizer”. A linguagem pessoana fala somente de si mesma
e não expressa nenhuma realidade preexistente. Ela diz respeito somente ao ato de escrever.
Diante disso, verificamos uma ausência de sentido e de unidade nessa prosa poética. O
absurdo confere a ela a existência do caos no assassinato do seu ser original.
A estética do absurdo foi amplamente estudada por Camus (2016), que desconsidera
os sistemas totalizantes de crença, os quais dão uma unidade de sentido à vida, com objetivo
de perscrutar a existência diante da vivência direta no mundo. Ou seja, segundo ele, não há
nenhum sistema holístico que explique e dê um sentido à vida. O homem absurdo não
conhece a ilusão e não se apega a ela. Ele se define e se coloca como um homem racional. A
falta de respostas é que gera o homem absurdo. Esse sentimento absurdo está intrinsecamente
ligado aos valores e à vida moderna, a qual é regida pelo mecanicismo, conforme Camus
(2016, p. 27) cita:

Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde,


quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e
sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior
parte do tempo. Um belo dia, surge o “porquê” e tudo começa a entrar numa
lassidão tingida de assombro.

Essa lassidão citada pelo teórico remete a um movimento de consciência. Diante de


uma vida maquinal, um tédio vital, uma rotina estafante e a repetição de ações, o homem
absurdo se apercebe como tal. Dessa maneira, Camus (2016) critica as contradições da
sociedade industrial e cientificista de sua época (1942), além das tragédias trazidas por duas
grandes guerras mundiais. Por isso, esse estudioso afirma que o absurdo está na junção do
homem com a vida, estabelecendo uma relação entre Sísifo (CAMUS, 2016) e o homem
moderno.

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Segundo o mito de Sísifo, ele foi condenado pelos deuses a rolar uma pedra até o
cume de uma montanha. Quando ele conseguisse esse feito, a pedra rolaria para baixo
novamente, e ele teria que retornar e levar a pedra ao alto mais uma vez, numa ação
interminável – da mesma maneira que o homem moderno realiza suas atividades rotineiras
diariamente, sem nunca ter um fim. Conforme Camus (2016), Sísifo se considera feliz, pois
não considera esse trabalho fútil, nem estéril: “A própria luta para chegar ao cume basta, para
encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz” (CAMUS, 2016, p. 124). Ao
empurrar a rocha, Sísifo demonstra ser superior ao seu destino, pois é mais forte do que a
própria rocha que empurra, já que sabe da sua condição miserável e pensa nela durante sua
descida. Sísifo é lúcido, e sua lucidez é a sua vitória. O sentimento do absurdo e a felicidade
são inseparáveis. O homem revoltado diante da absurdidade de sua existência não se curva,
lastimando o destino que lhe foi imposto. Ele quer dar um sentido à vida, conforme Sísifo fez.
Ele escolhe a revolta, em vez do desespero, e assume com persistência a sua absurdidade,
concordando e ressignificando a sua incumbência. Diante desse propósito, ele se sente feliz, e
esse contentamento é a vitória da revolta contra a absurdidade da existência.
A obra de arte é um fenômeno absurdo e um refúgio diante do mesmo. Para tornar
possível uma obra absurda, é preciso que o pensamento, na sua forma mais lúcida, esteja
inserido nela (CAMUS, 2016). Uma obra absurda requer um artista consciente dos seus
limites e uma verdadeira obra de arte é aquela que diz menos. Uma obra absurda não dá
nenhuma resposta. Bernardo Soares não nos dá nenhuma resposta – ele aponta para um vazio,
uma inquietação face às (im)possibilidades na escrita, a qual se volta para si mesma e se
confessa como escrita, fazendo-se mais nítida do que a própria vida:

Ali vivemos um tempo que não sabia decorrer, um espaço para que não
havia pensar em poder-se medi-lo. Um decorrer fora do Tempo, uma
extensão que desconhecia os hábitos da realidade no espaço... Que horas, ó
companheira inútil do meu tédio, que horas de desassossego feliz se fingiram
nossas ali!... (PESSOA, 2011, p. 457).

Ao refletir sobre sua própria escrita, o eu ficcional sente angústia, melancolia, tédio,
pois sabe de sua incapacidade de realizar uma obra perfeita. Além disso, o que também atesta
o estado de aflição criador do eu lírico são os sentidos dos contrários, que se fundem, de
forma a promover o fragmentário e o múltiplo: (desassossego e feliz). Bernardo Soares

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também busca o que está além das palavras, pois as mesmas limitam seu pensamento. O
tempo já não mais existe, não se cronometra, não mais se pode marcar: “um tempo que não
sabia decorrer”, “um decorrer fora do tempo”. O espaço não é delimitável: “um espaço para
que não havia em poder-se medi-lo”, “uma extensão que desconhecia os hábitos da realidade
no espaço”. Há somente o eu lírico e sua escritura, que lhe gera tédio, desassossego, e, ao
mesmo tempo, o faz feliz e gera o sentimento do absurdo. O absurdo corresponde a uma
consciência de um mundo vazio, em que o homem procura respostas para suas dúvidas e não
consegue encontrá-las. O absurdo não é o fim de tudo, mas o início. O homem conseguirá ser
mais feliz, quando ele tiver consciência de suas limitações e lucidez ante o mundo, ou seja,
quando ele possuir convicção de que é mortal. O homem absurdo tem convicção do seu
destino angustiante, mas vive sem resignação. Ao se revoltar contra um mundo fragmentado,
e desejar alcançar a unidade desejada, ele também se insurge a qualquer força superior que
consente que os homens subsistam de maneira caótica.
Nesse espaço transgressivo e dissimulado da prosa poética Na Floresta do
Alheamento, prevalece o absurdo, o vazio e o duplo, o fragmentário e a multiplicidade. O eu
poético dissimula uma obra não ser aquilo que é, conduzindo-a ao absurdo. Pessoa utiliza uma
linguagem que deixa a sua função referencial, para se tornar um outro tipo de linguagem, que
é poética e que apresenta uma violação da norma, uma transgressão, além de se atualizar a
todo instante. O eu ficcional confunde-se com sua arte poética num processo labiríntico difícil
de identificar, por meio de imagens esfaceladas e instantâneas que aparecem e desaparecem
entre as reflexões, gerando uma pluralidade de sentidos, de modo a integralizar os elementos
diversos num multíplice e indivisível movimento.

Considerações finais

Fernando Pessoa, por meio do seu semi-heterônimo, conseguiu criar uma prosa
poética que transita da modernidade para a contemporaneidade. É uma obra que se encontra
no espaço intersticial, no entrelugar: entre palavras, entre ideias, é o local onde o sentido se
movimenta sem encontrar ponto fixo e exato. É a passagem da simulação para a dissimulação,
confirmando-se como a obra do fingire. O eu ficcional dissimula o tempo todo, isto é, finge

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não ser aquilo que é, perdendo o vínculo com o real por ele criado. Dessa forma, essa
realidade também é um produto de formulação virtualizada e fingida, gerando um universo
fictício e absurdo.
O sentido do absurdo gera uma dupla dissimulação do eu artístico sobre o fazer
poético e reforça o movimento da arte como desassossego. Estamos diante de uma obra
caótica, lugar em que tudo é tudo e também nada; prosa poética incompleta, que nunca se
realiza, mas se conseguisse tal feito, seria imperfeita. O texto é constituído por imagens
fragmentadas e momentâneas que aparecem e desaparecem em meio às reflexões do eu lírico.
Essas imagens tornam-se independentes e ultrapassam as fronteiras do dizer, conduzindo ao
encobrimento do real verdadeiro.
Pessoa teoriza sua própria teoria, enfatizando a absurdidade da vida e da obra de arte,
de forma a permitir que a escritura seja significante de si mesma. Ele concebe um exercício
sobre o fazer artístico, refletindo suas próprias angústias acerca desse ato, num jogo
discursivo, que ecoa palavras diversas, tudo sem nexo e que, ao mesmo tempo, provoca
fascínio e sedução. A sua linguagem encontra-se na transição do discurso ao contra-discurso,
uma vez que há uma ausência do dizer. Estamos diante de uma obra fragmentária, difusa,
fluida, caótica e que pretende comunicar o indizível. O eu que cria e a coisa criada são frutos
do fazer artístico, o que potencializa a existência do eu ficcional e permite que essa criação
construa a imagem do real possível, e a obra atinja a absurdez. Dessa forma, Na Floresta do
Alheamento é uma obra que não pretende aparentar-se com a realidade, mas distanciar-se dela
pela instauração do irreal, criado pelo eu ficcional.

Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Trad. Maria João da Costa Pereira. Lisboa:
Relógio d´Água, 1991.

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman. 6. ed. Rio de Janeiro:
BestBolso, 2016.

CIRLOT, Juan Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

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ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. São Paulo: Zahar Editores, 1968.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.


Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Tópicos).

HANCIAU, Núbia Jacques. Entre-lugar. In: FIGUEIREDO, Eurídice. Conceitos de


literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005, p. 125-141.

PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Organização Richard Zenith. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

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