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Crise e desagregação do socialismo

Daniel Aarão Reis Filho


Professor titular de História Contemporânea
da Universidade Federal Fluminense

O espaçoporto da
"Academia do Espaço
(1953)

A Terra e a Lua
fotografadas do espaço
(16-12-1992)

Mapas das páginas 3,4, 6, 7, 8, 11, 12 e 13: Atlas Strategique, Gérard Chaliand e Jean-Pierre Rageau
Outras imagens: arquivos dos autores
Desde meados do século XIX, quando se estruturou como teoria da História,
o socialismo contemporâneo sempre se caracterizou por uma grande
autoconfiança, manifestando a certeza de que suas propostas tenderiam a se
impor, mais cedo ou mais tarde, não principalmente pelo poder de convenci-
mento de seus argumentos, embora isto também contasse, mas porque forças
económicas, sociais e políticas, de modo objetivo, trabalhavam em favor de
sua vitória.
Assim como os iluministas haviam imaginado a sociedade humana numa
espécie de ascensão linear, expressa na crescente afirmação da razão e dos di-
reitos humanos, e no triunfo das luzes sobre as trevas, e do progresso como
uma espécie de fatalidade, da mesma forma, os socialistas, que se considera-
vam, e com razão, herdeiros dos ideais da Grande Revolução Francesa, acre-
ditavam no triunfo certo da justiça e da igualdade. E extraíam alento, mesmo
em meio a eventuais derrotas políticas, da convicção, profundamente enrai-
zada, de que a História apontava para a alternativa socialista. Eles cultiva-
vam um aforismo, muito comum entre todas as correntes socialistas, que lhes
dava energia e determinação: o mundo marcha para o socialismo. Não se
tratava de uma conclusão derivada de sonhos, ou de desejos, mas de uma
previsão científica. Esta era, com efeito, uma novidade — poderosíssima —
aportada pelo socialismo teorizado por K. Marx e F. Engels — a sociedade
socialista não era fruto de uma construção baseada na imaginação, mas uma
certeza baseada no, e autorizada pelo, conhecimento de leis científicas que
regiam o movimento da sociedade. Cabia aos seres humanos apenas adaptar-
se a estas leis, ou, no máximo, propiciar sua realização. A metáfora da revo-
lução corno a parteira da História era perfeitamente cabível nesta formula-
ção. A sociedade humana estava grávida de seu futuro — o socialismo.
Restava aos revolucionários apenas promover as condições para que o parto
pudesse acontecer da melhor forma.
O desdobramento da História, até avançado o século XX, apesar de

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muitos percalços, de sucessos imprevistos e de interpretações inusitadas do


Ásia Oriental, no Caribe — apresentariam, sobretudo nos anos imediata-
pensamento dos teóricos fundadores, parecia dar foros de verdade a estas
mente posteriores à conquista revolucionária do poder, estas mesmas carac-
propostas. Vozes mais críticas, certamente, poderiam argumentar que era
terísticas virtuosas, atribuídas por muitos à estatização da economia e ao
cada vez mais difícil conseguir um consenso, entre os próprios marxistas, a
planejamento centralizado — grande dinamismo económico e invulgar capa-
respeito do verdadeiro sentido das palavras e das previsões de Marx. Elas ha-
cidade de automodernização.
viam passado por tantas adaptações, releituras e redefinições, na longa via-
Ora, a partir dos anos 70, justamente, começaram a surgir novos e im-
gem da Europa Ocidental à Ásia Oriental, passando pelas Rússias e pelo previstos indícios, como se estivesse havendo uma espécie de inversão de
Caribe, que se tornara praticamente impossível almejar uma ortodoxia reco- temperatura e pressão. A princípio, de uma forma quase que sub-reptícia,
nhecida por todos os adeptos do socialismo marxista. A partir de certo mo-
apenas do conhecimento dos serviços de espionagem e de contra-espionagem
mento, houve, inclusive, enfrentamentos armados, de alguma envergadura,
ou de alguns especialistas refinados. Depois, cada vez mais claramente, apa-
entre Estados socialistas (URSS X China; China X Vietnã; Vietnã X Cam-
recendo em conferências académicas, transbordando para os veículos de co-
boja), sem contar experimentos socialistas esmagados a ferro e fogo... por
municação de massa: os países socialistas já não estavam mais conseguindo
outros socialistas... em nome do socialismo, naturalmente (Hungria/1956 e
fazer avançar a economia nos ritmos anteriores. O mais grave é que o pro-
Tchecoslováquia/1968, entre outros). Diante de tal diversidade de pontos de
cesso não se referia apenas a índices quantitativos — que declinavam de
vista, alguns chegaram a propor uma expressão algo tautológica que ga- forma visível, embora ainda fossem positivos — mas, principalmente, a índi-
nhou, contudo, muita notoriedade: o socialismo realmente existente não fora ces qualitativos — relativos aos produtos, aos procedimentos tecnológicos
previsto, nem talvez desejado, muito menos correspondia às elaboradas adotados, aos métodos de organização da gestão administrativa e do traba-
construções teóricas do século XIX, mas estava lá, teimoso como os fatos, lho. Enquanto os grandes países capitalistas, sobretudo os EUA, até como
como gostava de dizer um grande revolucionário, V. Lenin.
resposta à crise económica dos anos 70, ingressavam firmemente numa nova
Assim, apesar de constituído por propostas muito distintas, e, com fre-
revolução científico-tecnológica, descobrindo novas fronteiras económicas
quência, mutuamente hostis, o socialismo realmente existia — e se expandia.
— a informática, as telecomunicações, a robótica, a biotecnologia, a produ-
De sorte que, até meados dos anos 70 do século XX, partidários e inimigos
ção de novos materiais —, transformando a produção e a sociedade, anun-
das formulações de K. Marx, os primeiros com esperança, os segundos com
ciando mutações civilizatórias (Dreifuss, 1997), os Estados socialistas pare-
receio, ainda podiam dizer — e diziam: o mundo marcha — está marchando ciam incapazes de sequer acompanhar o processo.
— para o socialismo. As contradições — alguns já falavam em impasses — não se limitavam à
Ao longo dos anos 70, contudo, e sobretudo na virada para os anos 80, si- economia. Cada vez se tornava mais difícil manter padrões centralistas e di-
nais precursores de uma crise maior começaram a ser observados e apontados. tatoriais de dominação — dos partidos comunistas e/ou de líderes carismáti-
Em primeiro lugar, entrou em questão a capacidade dos países socialistas cos — sobre sociedades crescentemente urbanizadas, instruídas e informadas
em garantir taxas crescentes de desenvolvimento económico. Tal fora o gran- (Lewin, 1988). O discurso igualitário transmudava-se em retórica vazia em
de trunfo do socialismo soviético nos anos 30, quando a URSS, impulsiona- face das desigualdades gritantes que separavam os membros do partido e das
da pelos Planos Quinquenais, e ignorando a crise que abalava as economias elites políticas e económicas e o resto da população. Instaurava-se uma pro-
liberais, avançara celeremente em direção à sua modernização, em ritmos funda crise de referências, o desinteresse, a apatia e o cinismo num contexto
alucinantes, queimando etapas. Depois da Segunda Guerra Mundial, e ape- de defasagem entre valores proclamados — nos quais as próprias elites, visi-
sar de devastada, surgira no cenário internacional como uma grande super- velmente, já não acreditavam mais — e valores reconhecidos e praticados.
potência, rivalizando económica e militarmente com a maior potência mun- Mesmo entre os países socialistas, para além dos conflitos ideológicos,
dial — os EUA. políticos e armados, já referidos, reproduziam-se, na normalidade de suas re-
Mais tarde, as demais economias socialistas — na Europa Central, na lações, mecanismos de subordinação estranhos à teoria do internacionalismo

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proletário e típicos dos laços estabelecidos entre potências capitalistas e paí- militar, que era de seu interesse concentrar recursos no atendimento das de-
ses ditos subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. mandas de sua população cada vez mais urbanizada e sofisticada. Mas não
Assim, o mundo socialista surpreendeu-se em profunda crise interna, se esperava tanta ousadia. Alguns críticos, inclusive, denunciariam
agravada pelas pressões agressivas do mundo capitalista, animado por seus Gorbachev como um perigoso farsante, prometendo o que não tinha condi-
êxitos económicos e pela renascente onda neoliberal, nucleada pela Ingla- ções de cumprir. As comparações com N. Kruchev eram inevitáveis. Também
terra de Margaret Thatcher e pelos EUA de Ronald Reagan. este último pretendera inovar, mas acabara preso nas malhas do sistema e li-
Tal é o contexto em que se desdobram as tentativas de reforma empreen- quidado por ele.
didas pelo socialismo contemporâneo que passaremos agora a narrar: a as- Entretanto, e rapidamente, o líder soviético afirmou-se na cena interna-
censão de M. Gorbachev e a política da perestroika (reestruturação) soviéti- cional, ganhando simpatias, quebrando resistências e preconceitos, conquis-
ca; os estremecimentos e a derrocada do socialismo na Europa Central e, um tando, com suas propostas e seu charme, a atenção dos líderes e das popula-
pouco mais tarde, da própria URSS, a política das Quatro Modernizações na ções dos principais países capitalistas, assim como do resto do mundo.
China e, finalmente, as tentativas desesperadas de Cuba e demais periferias No plano interno, porém, prevaleciam os apelos tradicionais à discipli-
do mundo socialista, incluindo-se aí o eurocomunismo. na, ao trabalho e à necessidade de se conseguir um novo equilíbrio entre o
pesado centralismo estatal e a autonomia das empresas. O mote do novo go-
verno, num primeiro momento, resumia-se numa palavra: acelerar (uskorie-
nie). Acelerar a produção (Féron, 1995), romper a pasmaceira, superar a es-
A URSS E A PERESTROIKA tagnação, termo inventado para designar os regimes anteriores e a era de L.
Brejnev, em particular.
A eleição de M. Gorbachev para o cargo de secretário-geral do Partido Em outubro de 1985 apareceu uma nova palavra, que se tornaria mun-
Comunista da União Soviética, em março de 1985, exprimiu um consenso ge- dialmente conhecida: perestroika, ou seja, recolocar as coisas em construção,
nérico favorável a reformas, embora ainda não houvesse um programa clara- reconstruir, reestruturar. Tratava-se, portanto, de algo bem mais profundo
mente definido em relação a metas, prazos e ritmos. Uma coisa era certa: a do que apenas pôr o pé no acelerador, era preciso considerar fatores de or-
URSS não poderia mais continuar sendo governada por aquela gerontocracia dens diversas, estruturais, imaginar reformas que pusessem em questão as es-
que se havia constituído nas altas cúpulas do Estado e do partido e da qual truturas económicas do país.
eram genuínos representantes os antecessores imediatos do novo secretário-ge- O livro escrito por M. Gorbachev, com o título, justamente, de
ral: L. Brejnev, I. Andropov e K. Chernenko, aptos, no melhor dos casos, ape- Perestroika (Gorbachev, 1987), virou campeão de vendas na URSS e em todo
nas a tocar os negócios correntes, mas incapazes de enfrentar os grandes desa- o mundo. Fazia uma análise sem concessões dos males mais evidentes da eco-
fios, internos e externos, colocados pelos sinais críticos que se multiplicavam. nomia soviética: desperdícios, negligência ante as demandas dos consumido-
M. Gorbachev surpreenderia o mundo com propostas inesperadas, so- res, preocupação exagerada com a quantidade e subestimação de critérios
bretudo em relação à corrida armamentista: moratória unilateral dos testes qualitativos, centralismo excessivo. E apontava para novos horizontes: uma
nucleares, redução de 50% dos armamentos estratégicos, diminuição dos sociedade produtiva, autónoma, harmónica, comprometida com a paz e a
mísseis intermediários, destruição dos arsenais nucleares até o ano 2000, prosperidade.
controles estritos sobre as armas convencionais. Por outro lado, advogava a A questão era saber como transitar do socialismo realmente existente
desativação dos conflitos regionais, inclusive levantando, sem constrangi- para a nova sociedade que se almejava construir. Do homem velho, empare-
mentos, a delicada questão do Afeganistão. dado nos métodos e conceitos superados, para o Homem Novo, portador de
No mundo capitalista houve espanto e incredulidade. Sabia-se que a todas as virtudes. Em suma, como sair do Presente para o Futuro.
URSS estava disposta a fazer concessões para se aliviar do chamado fardo O XXVII Congresso do Partido Comunista, reunido em fevereiro de

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1986, quase um ano depois da eleição de M. Gorbachev, pouco avançou Entretanto, como pretender que as empresas pudessem se tornar autóno-
neste sentido, indicando a existência de indecisões, dúvidas, divergências. mas sem haver um sistema bancário definido para apoiá-las, sem uma refor-
Enquanto uns preferiam denunciar as carências do sistema, mas reconhecen- ma de preços, até então fixados arbitrária e administrativamente, sem uma le-
do os aspectos positivos, outros, ao contrário, defendiam as conquistas, res- gislação prevendo — e regulando — a demissão dos trabalhadores, sem lei de
salvando a existência de contradições. No conjunto, porém, os debates per- falências? Ora, nada disso fora debatido ou votado, de sorte que a autonomia
maneciam num plano geral, não tendo sido possível definir programas con- das empresas ficava suspensa no ar, expressão mais de um desejo, do que de
cretos de enfrentamento e superação dos problemas. Todos eram a favor de uma política, sem condições de fixar-se na realidade. E assim a economia não
acelerar (uskorienie). Ninguém era contra reestruturar (perestroika). Mas as se reestruturava.
coisas não saíam do lugar. Como se houvesse ali resistências que não ousa- Mas a glasnost fazia progressos. Aproveitando-se das brechas abertas, e
vam aparecer claramente. das margens de liberdade garantidas, começou um processo impiedoso de
Houve então o desastre da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia. Pela críticas ao sistema. Nada parecia escapar àquela sociedade subitamente des-
primeira vez, desde a revolução pelo alto em fins dos anos 20, a URSS expu- perta. O arco das denúncias não podia ser mais amplo. O meio ambiente de-
nha de modo tão evidente suas feridas. Para os soviéticos e para todo o predado, comprometendo a atual e as futuras gerações; o alcoolismo e o con-
mundo. Os partidários das reformas utilizaram-se então do acontecimento sumo de drogas em geral; a má qualidade dos produtos oferecidos aos con-
para reforçar as críticas às mazelas do sistema. E fizeram surgir um outro sumidores, evidenciando a subestimação dos interesses dos cidadãos; os mé-
termo russo, que também daria a volta ao mundo: glasnost, ou seja, publici- todos burocráticos e autoritários de gestão e administração; as penosas con-
dade dos atos de interesse público ou, numa outra versão, transparência. Se dições das mulheres, obrigadas a cumprir estafantes jornadas de trabalho
tivesse havido transparência na gestão da usina, argumentaram os reformis- fora do lar, e ainda a desincumbir-se do trabalho doméstico (sem o auxílio
tas, o desastre teria sido certamente evitado. dos eletrodomésticos, caros e de baixa qualidade), e aturar as intermináveis
As reformas pareceram ganhar alento. Em novembro de 1986, aprovou- filas e o machismo renitente do homem soviético. Como se não bastasse,
se uma lei sobre o trabalho individual privado. Em maio de 1987, um novo
ainda eram carentes de educação sexual e/ou de suficiente disponibilidade de
estatuto para as cooperativas. Em ambas as iniciativas, a intenção de auto-
métodos anticoncepcionais. Entre outras estatísticas alarmantes, citava-se o
nomizar as atividades económicas, enfraquecendo os controles centralistas
fato de que a URSS, com o equivalente a 5 ou 6% da população mundial, re-
tradicionais. Mas os receios ainda eram muito grandes, de modo que a nova
gistrava 25% dos abortos no mundo, segundo a Organização Mundial da
legislação veio marcada por uma série de restrições e sanções, desestimulan-
do, na prática, aquilo que se queria, na teoria, encorajar. Em meados de Saúde, duas a quatro vezes mais do que nos demais países socialistas, seis a
1988, não havia mais do que 370 mil pessoas legalmente habilitadas para o dez vezes mais do que nos países capitalistas. Nem a educação e a saúde, con-
trabalho individual, autónomo, e mais 246 mil nas cerca de 20 mil coopera- sideradas até então setores modelares do socialismo soviético, eram poupa-
tivas em funcionamento. Para um país de 280 milhões de habitantes, não das, acusadas de equipamento obsoleto e pessoal mal treinado. Sem falar nas
fazia muita diferença. desigualdades irritantes que privilegiavam os comunistas, sobretudo os diri-
Em junho de 1987, mais um avanço formal: aprovou-se uma lei sobre a gentes, estes seres mais iguais entre os iguais (Orwell, 1984).
autonomia da empresa, para vigorar a partir de janeiro do ano seguinte. M. Finalmente, mas não menos importante, a corrupção, invadindo e trans-
Gorbachev dizia que era preciso substituir métodos essencialmente adminis- bordando por todos os poros da sociedade.
trativos por métodos essencialmente económicos, conferindo às empresas O escândalo do tráfico do algodão no Usbequistão, entre outros, chocou
autonomia para estabelecer contratos com fornecedores e clientes, admitir e a sociedade: 4 milhões de toneladas em cerca de dez anos haviam sido desvia-
demitir funcionários, estabelecer metas e beneficiar-se com os ganhos obti- dos. A fraude envolvia altas autoridades, inclusive em Moscou, mas implica-
dos. O Plano Quinquenal tenderia a assumir caráter indicativo, limitando-se va milhares de pessoas. Não havia como colocar toda aquela gente na cadeia.
a fixar índices de produtividade a serem considerados pelas empresas. Na verdade, tratava-se de uma prática largamente disseminada. Para escapar

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dos rigores e da ineficácia do centralismo excessivo, constituíam-se na URSS consagrado como o The man of the year, da revista Time. Na URSS, porém,
redes autónomas de poder para impulsionar atividades, negócios, autoprote- avolumavam-se as contradições.
ção, como se fossem feudos, embora o conceito fosse impróprio. Na própria, Convocou-se, então, no intuito de resolver os impasses, a XIX Confe-
cúpula do poder não existira durante anos o grupo (que as más línguas cha- rência Pan-Soviética do Partido Comunista. Congregando milhares de dele-
mavam de máfia) de Dniepropetrovsk (formado em torno da construção da gados, eleitos num processo de grandes debates a respeito de teses previa-
grande hidrelétrica do mesmo nome), cujo chefe era o próprio L. Brejnev? mente publicadas, esperava-se que dali pudesse se constituir a requerida legi-
Voltara também com grande ênfase o debate sobre o stalinismo, agora não timidade democrática para fixar rumos e avançar na sua consecução.
mais restrito, como nos tempos de N. Kruchev, aos anos 30 e ao âmbito do Mais uma vez, fez-se o consenso sobre generalidades: críticas ao centra-
partido. Questionava-se agora a coletivização forçada. A questão dos campos lismo, ao quantitativismo, ao autoritarismo, elogio da autonomia, dos crité-
de trabalho. As antigas dissidências, os líderes apagados da memória como rios qualitativos, da democracia. A principal decisão, contudo, foi a de...
Bukharin e Zinoviev. O próprio Trotski, figura maldita, emergia do passado. convocar uma outra assembleia, a ser eleita por toda a sociedade, um Con-
Solicitava-se, agora, sua reinclusão no panteão das lideranças revolucionárias. gresso dos Deputados do Povo, formado por 2.250 eleitos. Eles debateriam
Um grupo de jornais e revistas, entre os quais se destacavam Ogoniok (V. uma agenda e elegeriam um Soviete Supremo, com cerca de 500 deputados,
Korotitch) e Notícias de Moscou (E. lakovlev), abria espaço para denúncias, que, por sua vez, através do voto secreto, elegeria um presidente com amplos
críticas e artigos heréticos. As edições e reedições esgotavam-se, disputadas poderes para implementar as deliberações tomadas.
; nas ruas. Havia uma atmosfera de ajuste de contas. Uma ânsia de tabula ra- Mudanças políticas importantes, sem dúvida. Na prática, o partido esta-
sa, como um messianismo às avessas. Em parte alguma, argumentava-se, va passando à sociedade os poderes para eleger deputados que decidiriam o
houvera tantos desastres e tanta ignomínia como na URSS. Os chefes, tira- rumo do país. O presidente a ser eleito não seria mais responsável perante o
nos. Os génios, imbecis. O paraíso socialista, um inferno. O Homem Novo, partido, mas perante a assembleia que o elegera. No entanto, em termos de
uma farsa. programas concretos para fazer avançar a perestroika, salvo a legislação já
A resistência começou a se explicitar, rejeitando com violência as críticas, aprovada, de efeitos escassos, as coisas continuavam empacadas.
numa reação de ex-combatentes. O receio da mudança: aonde aquilo tudo Seguiu-se a campanha para a eleição do Congresso. Os debates, acalora-
iria parar? Afinal, tratava-se de renovar ou de destruir o socialismo? Todos dos, contraditórios, públicos, mobilizaram intensamente uma sociedade
ainda se diziam favoráveis à perestroika e à glasnost, mas o que significavam acostumada ao silêncio, mas que parecia tomar gosto por aquela agitação.
exatamente aquelas palavras? Nunca jornais e revistas venderam tanto suas edições, nem as emissões de
Na alta cúpula, sob o fogo contraditório de reformistas (partidários de ra- rádio e televisão foram tão ouvidas e vistas quanto naqueles meses do inver-
dicalizar a perestroika) e conservadores (receosos de que o processo pudesse no de 1988-89. Todos os termas foram debatidos: desde questões relativas à
perder o rumo), instalava-se a dúvida. Duas reuniões do Comité Central, rea- organização geral da sociedade, como, por exemplo, de que modo poderiam
lizadas em junho e outubro de 1987, evidenciaram uma atmosfera de oscila- ser combinadas as virtudes do mercado e do plano, até assuntos atinentes ao
ções. Na primeira, efetuaram-se mudanças importantes, reforçando as corren- cotidiano, como as questões do aborto, das drogas, dos hospitais, dos salá-
tes reformistas. Contudo, na segunda, demitiu-se B. Yeltsin, que dirigia então rios. M. Gorbachev aparecia em toda a parte, incentivando, suscitando o de-
o partido em Moscou e que se notabilizara na denúncia às resistências à pe- bate e a crítica, visitando minas, fábricas e kolkhozes. Permanecia como o
restroika, convertendo-se, em função de sua ação e de seus discursos, numa grande líder do processo, galvanizando as vontades, consagrando-se. Tudo
espécie de líder da corrente reformista. Nas duas reuniões, como se fosse um aquilo começara em 1985, há quase quatro anos, mas, agora, finalmente,
pêndulo, dando no cravo e na ferradura, fortalecia-se, sempre, M. Gorbachev, havia a esperança de que as reformas, devidamente respaldadas por amplas
numa posição de liderança, distante de extremos considerados igualmente maiorias, se convertessem em realidade palpável.
equivocados. Internacionalmente, seu prestígio continuava alto, ascendendo, Entretanto, certas dissonâncias começaram a surgir, formuladas, com

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frequência, pelas pessoas comuns. Corria a anedota de que as pessoas, ao batalha campal entre russos e ucranianos. O estopim fora um banal jogo de
abrirem a geladeira, não encontravam a perestroika. As filas aumentavam de futebol, mas foi possível perceber a força dos ódios nacionais latejando.
tamanho. Reapareceu o racionamento de alguns produtos, como a gasolina, Como se o vírus do nacionalismo estivesse à solta.
a manteiga, a carne e o açúcar. A colheita de cereais, em 1988, fora um fra- Em fevereiro de 1988, veio à luz o conflito entre arménios e azerbaijanos
casso, quase 20% a menos do que o patamar alcançado dez anos antes. Gor- em torno da região do Alto Karabach. Tratava-se de um território majorita-
bachev responsabilizava o passado, naturalmente. Mas aquele passado esta- riamente povoado de arménios encravado na República do Azerbaijão. O im-
va custando a passar. Afinal, a perestroika viera para melhorar ou para pio- bróglio fora criado ainda no período de Stalin. Ora, os arménios queixavam-
rar a vida das pessoas? se de discriminação e de perseguições. E solicitavam a transferência do terri-
Uma outra catástrofe, um terremoto na Arménia, em dezembro de 1988, tório para a jurisdição da República da Arménia. No Azerbaijão, a popula-
uma espécie de novo Chernobyl, contribuiu para estimular as incertezas, evi- ção sentiu-se ameaçada e reagiu com massacres (pogroms), a arma tradicio-
denciando as carências técnicas, a precariedade do socorro, a falta de medi- nal do nacionalismo exacerbado. Os arménios deram o troco e se instaurou
camentos, os erros grosseiros no planejamento da construção dos prédios. A uma verdadeira guerra civil, que não foi possível debelar até o fim da URSS.
URSS, superpotência, mostrava, mais uma vez, suas chagas e elas pareciam, Assim, desenharam-se múltiplos focos de tensão. No Extremo Ocidente,
estranhamente, com as dos países subdesenvolvidos. os países bálticos e a Moldávia. Em novembro de 1988, o Parlamento esto-
Apesar de tudo, a participação nas eleições foi maciça. Contudo, os re- niano proclamou o primado das leis da república sobre as leis soviéticas. Em
sultados geraram apreciações diversas. De um lado, os partidários da acele- fevereiro do ano seguinte, a Lituânia anunciou seu direito à autodetermina-
ração das reformas foram vitoriosos nos grandes centros urbanos. B. Yeltsin, ção. No Cáucaso, as nacionalidades não paravam de se engalfinhar, suceden-
por exemplo, embora tendo sido expurgado do Bureau Político em fins de do-se grandes manifestações nacionalistas nas capitais da região. Numa
1987, teve quase 90% dos votos em Moscou. De outro lado, na URSS pro- delas, em Tbilissi, na Geórgia, em abril de 1989, o exército soviético abriu
funda, em 25% das circunscrições, houve candidaturas únicas, embora a lei fogo contra os manifestantes, matando 16 pessoas. Na Ásia Central, a iden-
facultasse múltiplos candidatos. Nas 17 regiões do Casaquistão, república tidade muçulmana surgia das sombras. Até os ucranianos e bielo-russos, es-
soviética da Ásia Central, os primeiros-secretários do partido foram candida- tes últimos sem nenhuma tradição estatal nacional, formulavam programas
tos únicos e, naturalmente, vencedores. nacionalistas. Entre os próprios russos apareciam vozes pregando a ideia de
Um outro aspecto que se evidenciou no processo eleitoral: o reforço das que talvez fosse o caso liquidar com aquele império, que cada um seguisse o
identidades nacionais, sobretudo nos chamados países bálticos (Lituânia, seu caminho.
Letónia e Estónia), onde se constituíram, e foram vitoriosas, as autodenomi- Entretanto, o Congresso dos Deputados do Povo instalara-se. Grandes
nadas frentes populares, que já começavam a advogar a separação da URSS. maiorias aprovaram todas as reformas propostas por Gorbachev, elegendo-o
A questão nacional, largamente subestimada pelas elites dirigentes sovié- presidente do Parlamento com 94,35% dos votos. Todos os poderes lhe
ticas, tenderia, desde então, a se afirmar no centro da cena política. foram concedidos. Aparentemente, contudo, as coisas não melhoravam. Em
O primeiro alarme soara em dezembro de 1986, no Casaquistão. A ten- julho, um amplo movimento grevista nas minas de carvão espalhou-se pela
tativa, contrariando as tradições, de impor um russo como primeiro-secretá- Ucrânia. Durou duas semanas e estimulou uma série de outras manifestações
por toda a URSS. As prateleiras das lojas continuavam vazias. A escassez e as
rio do partido desencadeara a cólera popular na capital do país, Alma-Ata,
filas, o racionamento e o mercado negro atormentavam o cotidiano das pes-
obrigando Moscou a recuar. No ano seguinte, no centro do sistema, na pró-
pria Rússia, surgira uma organização ultranacionalista, Patniat (Memória). soas comuns. Até os preços do petróleo, principal produto de exportação e
Poucos meses depois, ainda em 1987, uma grande manifestação nacionalista gerador de divisas, despencavam nas cotações internacionais, aumentando
em Riga, capital da Letónia, reivindicou autonomia e respeito pela identida- os déficits e provocando inflação. A impressionante popularidade de
de do país. Ainda naquele ano, em Kiev, na Ucrânia, houve uma verdadeira Gorbachev no mundo, que, em toda uma primeira fase, legitimara com o

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selo internacional suas promessas e ousadias, pesava cada vez menos em face fugir do controle. Em toda a parte, os parlamentos locais proclamavam a res-
do descalabro que passara a dominar a sociedade e a economia soviéticas. De pectiva soberania, ou seja, somente admitiam as leis da União quando não
que adiantava todo o prestígio do líder da perestroika, se os capitais interna- entrassem em desacordo com á própria legislação. Na prática, era um pro-
cionais teimavam em não afluir? Quanto aos empréstimos e aos financia- cesso de secessão que ainda não dizia o seu nome. Contudo, e apesar das evi-
mentos das agências internacionais, aportavam a conta-gotas, não conse- dências, quase ninguém ainda ousava dizer o indizível: a URSS estava pres-
guindo alterar o quadro crítico. tes a desaparecer.
Sucediam-se as equipes económicas e as propostas mais originais e inte- Das próprias nações eslavas (Rússia, Ucrânia e Bielo-Rússia), considera-
ressantes. Contudo, nada, ou quase nada, funcionava. As reformas, os decre- das até então como os mais sólidos baluartes da União Soviética, desponta-
tos e as leis eram anunciados, mas não passavam à realidade, como se traga- vam forças desagregadoras. Em junho de 1990, depois de eleger triunfalmen-
dos por mal definidas resistências. te B. Yeltsin seu presidente, o Parlamento russo aprovou a soberania. No mês
Em 1989, o socialismo desapareceu na Europa Central. Um prenúncio? seguinte, os parlamentos da Ucrânia e da Bielo-Rússia tomaram, por ampla
Na Polónia, o Solidariedade assumira o poder. Na República Democrática maioria, a mesma decisão política.
Alemã, apresentada como o mais próspero país socialista do mundo, grandes M. Gorbachev, apoiando-se na tradição, aparentava ainda estar nos con-
manifestações tinham levado à queda do todo-poderoso E. Honecher e, um troles. Em julho de 1990, quando do XVIII Congresso do Partido Comu-
pouco mais tarde, à do Muro de Berlim, erguido em 1961, e que parecia eter- nista, conseguiu aprovar todas as suas propostas. Em setembro do mesmo
no. Na Hungria, eleições livres eram convocadas e nenhum analista previa a ano, o Soviete Supremo voltou a lhe conferir poderes extraordinários para
vitória dos comunistas locais. Pouco depois, uma revolução pacífica, dita de implementar as reformas consideradas necessárias por decreto. Mas de que
veludo, na Tchecoslováquia e uma outra, violenta, na Roménia, apearam os lhe servia concentrar poderes, se, visivelmente, não sabia como exercê-los?
comunistas do poder. Indagado sobre como a URSS reagiria a esta debanda- Não definia um programa claro de enfrentamento das crises. Oscilava entre
da, o porta-voz de Gorbachev cantarolou os versos de My way, ou seja, como reformistas e conservadores.
na canção, cada um seria livre para traçar o próprio destino. Desta vez os tan- No segundo semestre de 1990, passou a chamar para o governo homens
ques permaneceriam tranquilos nos quartéis. mais decididos a preservar, a qualquer custo, a URSS de um processo de de-
Como não poderia deixar de ser, o processo fulminante de desmantela- sagregação, do que conduzi-la no rumo das reformas tão anunciadas mas
mento das mal chamadas democracias populares reforçou as correntes que que não se concretizavam. No Ministério do Interior (B. Pugo), no KGB (V.
estavam apostando na desagregação da URSS. Os parlamentos dos países Kriuchkov), no cargo de primeiro-ministro (V. Pavlov), no comando das re-
bálticos, eleitos em 1989, aprovavam leis que apontavam para a secessão. De lações externas (A. Bessmertnykh), no novo posto de vice-presidente da
um lado, criavam símbolos típicos de estados-nações, como bandeiras e URSS (G. lanaev), instalavam-se personagens estranhos às perspectivas da
hinos próprios. De outro lado, estabeleciam legislações que garantiam auto- perestroika/glasnost. Ao mesmo tempo, seus aliados mais fiéis, como E.
nomia em assuntos fiscais e culturais, enfatizando sempre que as leis das re- Chevarnadze, ex-ministro de Relações Exteriores, e A. lakovlev, ex-respon-
públicas deveriam primar sobre as da União, num desafio claro às tradições sável pelas questões ideológicas no Partido Comunista, afastavam-se do cen-
centralistas soviéticas. Na Lituânia, num gesto ousado, em março de 1990, o tro do palco, denunciando conspirações golpistas, favoráveis à restauração
Parlamento local proclamou a independência do país. M. Gorbachev reagiu da ditadura do Partido Comunista.
com dureza ao ato e até mesmo líderes políticos ocidentais, como F. A muito custo, conseguiu-se formular a proposta para um novo pacto fe-
Mitterrand e H. Khol, aconselharam prudência aos lituanos. derativo. Teria o nome de União das Repúblicas Soberanas e seria levado a
No Cáucaso, assim como na Ásia Central, generalizava-se uma situação referendo em todas as repúblicas soviéticas.
de guerra civil. As tentativas conciliatórias eram recusadas num contexto de As correntes mais radicais, porém, sobretudo entre as nações não-russas,
massacres de caráter étnico. As contradições radicalizavam-se e pareciam recusavam-se sequer a participar do referendo, preferindo a solução do des-

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compromisso total com a URSS. Na Lituânia, onde o processo independen- mente definido: impostos, jurisdições respectivas, forças armadas, diplomacia,
tista fora mais longe, sucediam-se as manifestações. Em janeiro, choques prevaleciam as declarações genéricas, exprimindo indecisões, divergências.
com tropas especiais enviadas por Moscou resultaram em mortes de manifes- M. Gorbachev parecia desorientado. No plano internacional, seu prestí-
tantes, radicalizando os antagonismos. Gorbachev desautorizou os coman- gio não mais rendia dividendos para seu país. Os investimentos tardavam.
dantes locais, deplorou os excessos e mandou instaurar inquéritos. Os empréstimos pingavam devagar. A ida de Gorbachev à reunião do Grupo
A perestroika aproximava-se do fim? dos 7, reunindo os principais capitalistas do mundo, em julho, foi patética.
Em 17 de março de 1991, afinal, houve o referendo tão anunciado. Mais Inquirido por G. Bush, presidente dos Estados Unidos, como um mau aluno
uma consulta à população. Seis repúblicas não participaram do voto por um severo mestre-escola, não teve forças para se impor. Como se os paí-
(Lituânia, Letónia, Estónia, Geórgia, Moldávia e Arménia). A grande maio- ses mais ricos do planeja já estivessem desconfiando de seu poder real, apos-
ria, 76,4%, votara pela manutenção da União. Mas o voto era carregado de tando numa outra alternativa (B. Yeltsin).
ambiguidades porque, no âmbito de várias repúblicas, como na Ucrânia, Foi então que sobreveio o golpe restaurador.
votou-se também, e também por ampla maioria, em favor da soberania local Aproveitando-se da ausência de M. Gorbachev, em férias no Mar Negro,
e regional, o que relativizava em muito o sim dado à União Soviética. os golpistas o prenderam em sua casa de veraneio, anunciaram que estava
De sorte que, uma vez mais, todas as ilações eram possíveis. enfermo e desferiram o movimento de sua deposição. Em suas declarações,
A Geórgia, por exemplo, proclamou sua independência, em abril de não falavam em nome do socialismo, nem do comunismo, mas na necessida-
1991. O mesmo já fizera a Lituânia, reafirmando sua independência em fe- de de salvar a União.
vereiro, através de um referendo, com 90,5% dos votos favoráveis. Faltou-lhes, contudo, força para alcançar seus objetivos. A cadeia de co-
Foi nesta atmosfera oscilante que se abriram as conversações a respeito mando simplesmente não funcionou. As ordens, recebidas, não eram cum-
de um novo Tratado da União. Um novo pacto, capaz de reconhecer a auto- pridas. B. Yeltsin tomou o comando da oposição, mas nem foi necessário
nomia das repúblicas, porém, mantendo a União. lutar porque o golpe desagregou-se por si mesmo, sem alento, sem organiza-
Foi uma barganha dura. Participaram as três repúblicas eslavas (Rússia, ção e sem consistência. Um fiasco.
Ucrânia e Bielo-Rússia), as cinco da Ásia Central (Turcomenistão, Tadjiquis- M. Gorbachev, liberado, ainda tentou se equilibrar, mas era terrível seu
tão, Casaquistão, Usbequistão e Quirguistão) e a do Azerbaijão, no Cáucaso. desgaste, inclusive porque todos os golpistas eram seus homens de confian-
Formulou-se um texto que agradou a todos mas completamente inócuo. Não ça, ocupando altas posições de mando, nomeados por ele.
seria possível reconstruir uma União em bases tão indefinidas. Acelerou-se o desmoronamento.
Nessa ocasião, em eleições diretas, inéditas na história da URSS, realizadas Às duas repúblicas, que já haviam proclamado a independência (Li-
em junho de 1991, B. Yeltsin foi eleito presidente da República da Rússia, logo tuânia e Geórgia), se seguiram as demais: Estónia (20 de agosto), Letónia (21
no primeiro turno, com 57,3% dos sufrágios. Ao mesmo tempo, aliados seus de agosto), Ucrânia (24 de agosto), Bielo-Rússia (25 de agosto), Moldávia
foram eleitos, também pelo voto direto, prefeitos das principais cidades russas, (27 de agosto), Casaquistão e Quirguistão (28 de agosto), Azerbaijão (30 de
como Leningrado e Moscou. Rapidamente, B. Yeltsin e seus simpatizantes, em agosto), Usbequistão (31 de agosto), Tadjiquistão (9 de setembro), Arménia
decorrência da legitimidade democrática adquirida, começaram a radicalizar (21 de setembro) e Turcomenistão (26 de outubro).
seus propósitos favoráveis à soberania da Rússia. Neste sentido, cabia ao novo Em rápidos movimentos, B. Yeltsin dissolveu o Partido Comunista e o
governo russo exercê-la, em todos os níveis (controle das riquezas, arrecadação KGB, recebendo do Parlamento russo plenos poderes para implementar as
de impostos, política externa, organização das forças armadas etc.). Se o fizes- decantadas reformas.
se, de fato, que poder restaria à União e a M. Gorbachev? No começo de dezembro, os dirigentes das três repúblicas eslavas, reuni-
Em agosto de 1991, afinal, foi possível chegar a um texto de compromisso dos em Minsk, capital da Bielo-Rússia, anunciaram a fundação de uma
sobre uma nova União, renovada. Mais uma vez, contudo, nada ficava clara- Comunidade de Estados Independentes, aberta às repúblicas que formavam

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a URSS, sem sequer consultar M. Gorbachev. Em 21 de dezembro de 1991, nos lotes, válidos por quinze anos, prorrogáveis (segundo dados oficiais, 220
em Alma-Ata, capital do Casaquistão, formou-se a Comunidade com 11 ex- milhões de contratos, num universo de 900 milhões de pessoas). Um novo
repúblicas soviéticas. Um comunicado reiterou que a União Soviética deixa- processo de reforma agrária descoletivizou o campo chinês, apostando na
ra de existir. Foram ainda necessários quatro dias para Gorbachev assumir a ambição de lucro e de realização pessoal e familiar dos pequenos campone-
nova realidade e assinar sua renúncia. ses, ainda viva, apesar, ou por causa, dos experimentos (na maior parte, de-
O verdadeiramente inacreditável acontecera: a União Soviética deixara sastrados) de coletivização empreendidos (Pomar, 1987).
de existir. Como resultado, houve um gigantesco crescimento da produção agríco-
la, de 240 milhões de toneladas de cereais, em 1979, para quase 500 milhões
de toneladas (dados de 1997), dinamizando o conjunto da economia. Por
outro lado, e de forma controlada pelo Estado, abriram-se zonas económicas
A CRISE DO SOCIALISMO CONTEMPORÂNEO especiais para o ingresso seletivo de capitais internacionais, promovendo-se
o crescimento industrial e as exportações, além de importação de tecnologia.
A desintegração da União Soviética, que acompanhou a do socialismo na Um ritmo febril de negócios tomou conta do país, acentuado recente-
Europa Central, pôs em evidência uma crise maior: a do socialismo contem- mente pela incorporação de Hong Kong, onde se mantiveram intactas as
porâneo. bases do desenvolvimento económico anterior, do qual, aliás, já fazia parte,
Ela teria outras incidências, afetando as principais propostas e experiên- em larga medida, o Estado chinês.
cias revolucionárias que surgiram no século XX. No plano político, o Partido Comunista manteve firme o comando do
Na China, desde os anos 70, e sobretudo após a morte de Mão Tsé-tung, Estado e da sociedade. Os sucessivos movimentos que pretenderam questio-
em 1976, a preocupação e os debates a respeito do socialismo tenderam a nar esta Ordem foram reprimidos com violência, notadamente o processo
dar lugar à preocupação e aos debates a respeito da modernização e do enri- que levou, em 1989, ao massacre da Praça da Paz Celestial, quando, em
quecimento do país. nome do socialismo, mais uma vez, lutas pela liberdade e pela democracia
A política dita das Quatro Modernizações (da indústria, da agricultura, foram silenciadas com tiros e tanques (Andrade e Favre, 1989).
da ciência e da tecnologia e das forças armadas), sob a direção de Deng Xiao A repressão, passado um momento de constrangimento, quando se fize-
Ping, embora mantendo uma retórica de adesão ao socialismo, e mesmo ao ram ouvir os protestos de praxe, não inibiu os negócios; ao contrário, eles
comunismo, e apesar de reverenciar a pessoa do próprio Mão, na prática, eli- tenderam a crescer e seguem em ritmo ascendente, constituindo a China uma
minou gradual e firmemente todo o legado do maoísmo, enquanto estratégia fronteira económica e geográfica crucial para a atual prosperidade do capi-
de luta revolucionária pela tomada do poder político e enquanto tentativa de talismo internacional.
construção de um padrão próprio de socialismo. O interessante é que o marxismo e o socialismo continuam sendo ritual-
O fracasso do Grande Salto para a Frente (1958-1959) — na verdade, mente invocados por um partido comunista que, na prática, rege o mais fre-
um salto para trás — e as enormes frustrações associadas à Grande Revo- nético desenvolvimento capitalista. A isto as autoridades chamam o socialis-
lução Cultural Proletária (1965-1969) prepararam um terreno fértil para a mo com características chinesas.
descrença nas utopias socialistas e, no mesmo movimento, para o investi- As duas outras experiências socialistas da Ásia Oriental — a Coreia e o
mento em métodos e processos unicamente voltados para o desenvolvimen- Vietnã — também não conseguiram afirmar-se como focos de irradiação de
to económico e para o reforço do Estado nacional. propostas inovadoras. Na Coreia, a longa ditadura pessoal de Kim Il-Sung,
Assim, desde 1979, liquidaram-se as comunas populares, restabelecen- transmitida a seu filho, apresenta como saldo um país faminto e com reduzi-
do-se a família nuclear como unidade de produção básica, com a qual são as- díssima capacidade de sedução política. Já o Vietnã, que galvanizou imensas
sinados contratos de responsabilidade de arrendamento e gestão de peque- esperanças, mobilizando em seu favor a opinião pública internacional duran-

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CRISE E DESAGREGAÇÃO DO S O C I A L I S M O
te mais de uma década, até a vitória da guerra de libertação nacional, em
1975, não soube, ou não pôde, manter o mesmo nível de solidariedade. Ao drástica de influência. Longe de se beneficiarem da derrota do socialismo so-
contrário, nas guerras travadas contra os vizinhos próximos (China e viético, centralista, estatista e ditatorial, e apesar de todo o esforço em se
Camboja), ou na manutenção de um regime alérgico à democracia, perdeu atualizarem (a tentativa de aggiornamento dos comunistas italianos), pro-
progressivamente a capacidade de entusiasmar, que era sua marca registrada pondo-se a encarnar um socialismo plural e democrático, os eurocomunistas
enquanto viveu o grande líder revolucionário nacional Ho Chi Minh. tenderam a se enfraquecer, e até mesmo a desaparecer como alternativa ali,
No outro extremo do mundo, a revolução cubana, depois de incendiar as onde chegaram a adquirir força nos anos 60 e 70.
Finalmente, as correntes social-democratas, antigas rivais, desde os anos
imaginações, e de ter se convertido num território onde disputavam-se a ou-
20, sempre denunciando as derivas ditatoriais do socialismo soviético, passa-
sadia e a originalilidade, sobretudo ao longo dos anos 60, tendeu a perder au-
ram por um processo de crescente dissociação em relação ao socialismo
tonomia no quadro de uma aliança cada vez mais dependente com a URSS.
(Przeworski, 1989). Na prática, abandonaram-no como perspectiva, aproxi-
Nos anos da perestroika, percebendo a hipótese da falência que se avizi-
mando-se, gradativamente, das correntes liberais, adotando seus padrões de
nhava, o socialismo cubano recobrou uma certa vitalidade, enfatizando as
política económica, formando com elas alianças que até hoje perduram e das
tradições e as características nacionais (Bandeira, 1998). Entretanto, num
quais são expressão todos estes partidos social-democratas atualmente exer-
quadro de circunstâncias extremamente desfavoráveis, o país teve que se
cendo o poder em países europeus, mas que não ameaçam, nem teórica, nem
abrir para o capital internacional, para o turismo e para o dólar, e para as
praticamente, a ordem capitalista.
práticas e os valores associados — o câmbio paralelo, a prostituição, o arri-
E assim, neste fim de século XX, inícios de um novo século, as revoluções
vismo e os pequenos tráficos. Como na China, o Partido Comunista tenta se-
que assaltaram os céus, e desafiaram o capitalismo, empreendendo a cons-
gurar o rumo, mantendo e reforçando a estrutura centralizada e ditatorial do
poder, apesar de algumas aberturas parciais. trução de modelos alternativos, desagregaram-se (URSS e Europa Central),
evocam apenas ritualmente o socialismo (China), abandonaram-no comple-
A resistência cubana tem algo de patético, consideradas as desproporção
de forças e falta de alternativas imediatas. Mas conserva também um caráter tamente como proposta (correntes social-democráticas) ou, no limite, encon-
tram-se numa resistência desesperada, mais associada à luta pela sobrevivên-
épico, a dignidade desse pequeno povo, muito maior do que as suas circuns-
tâncias, desafiando as armadilhas do destino. cia nacional-estatal (Cuba) do que a efetivas promessas socialistas.
Não é possível, entretanto, negar o impacto que tiveram na aventura hu-
Não escaparam do terremoto que desagregou o socialismo soviético nem
mana do século que está terminando. E talvez a melhor maneira de avaliar as
mesmo as correntes socialistas que lhe moviam oposição.
suas chances de futuro seja efetuar um balanço de suas heranças, construti-
As mais radicais, decididas a um enfrentamento aberto contra o capita-
vas e destrutivas.
lismo, como os trotskistas e os conselhistas, sem falar das diversas tendências
anarquistas, esperavam prosperar à sombra da crise, ou do fim, do socialis-
mo soviético. Nunca imaginaram, na perspectiva de que o mundo marchava
para a frente, e para o auto-aperfeiçoamento, que o socialismo soviético pu-
AS AMBÍGUAS HERANÇAS DO SOCIALISMO QUE REALMENTE EXISTIU
desse evoluir para o capitalismo. Entretanto, no contexto da crise geral de
confiança na alternativa socialista, viram os seus já reduzidos contingentes
O socialismo foi decisivo para a destruição do nazismo. Sem a URSS, a his-
estreitarem-se ainda mais.
tória da humanidade, dominada pela besta nazista, poderia ter sido radical-
Num outro extremo, os eurocomunistas, que defendiam propostas de
mente diferente.
uma transição pacífica e institucional para o socialismo, e que chegaram,
Pode-se dizer o mesmo dos impérios coloniais europeus. Sem a retaguarda
num certo momento, a ganhar projeção, sobretudo em alguns países da
soviética, política, militar, diplomática, moral, seria impensável a sua desagre-
Europa Ocidental (Itália, Espanha e França), também registraram queda
gação, pelo menos na velocidade em que se verificou.

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C R I S E E D E S A G R E G A Ç Ã O DO S O C I A L I S M O

As referências socialistas também seriam de capital importância para a capitalismo. Seus valores mais centrais — igualitarismo, solidariedade, coope-
constituição das correntes nacional-estatistas na América Latina, na Ásia e ração, coletivismo —, além do fato de que não eram levados a sério pelas pró-
na África. Mais ou menos revolucionárias, elas foram muito importantes na prias elites socialistas, acabaram associados à ineficiência e à ditadura.
afirmação das soberanias nacionais, na modernização das economias e no es- Talvez esteja aí — no enfraquecimendo de seus valores — um dos aspec-
tabelecimento de alianças com os interesses dos trabalhadores urbanos. tos centrais do declínio do socialismo neste fim de século. Enquanto não for
O Estado do bem-estar social (welfare state), basicamente construído após possível extrair de suas ambíguas heranças uma reatualização destes valores,
a Segunda Guerra Mundial, embora já esboçado no período entre as duas será difícil imaginar o renascimento do socialismo.
Guerras (Constituição de Weimar, Frente Popular na França etc.), e que aten-
deu às demandas históricas dos trabalhadores, sobretudo na área da Europa
Ocidental, deveu-se também, e amplamente, à existência do socialismo soviéti-
co e seus congéneres. A ameaça vermelha aconselhava à prudência e às conces- BIBLIOGRAFIA
sões. Em determinadas circunstâncias, mais valia perder os anéis do que os
dedos, ou a cabeça. Andrade, M. e Favre, L. 1989. A Comuna de Pequim. São Paulo, Busca Vida.
Finalmente, e apesar de todos os pesares, os regimes socialistas, frequen- Bandeira, L. A. M. 1998. De Marti a Fidel. A Revolução Cubana e a América Latina. Rio
temente, foram capazes, internamente, de afirmar a soberania das sociedades de Janeiro, Civilização Brasileira.
sob sua orientação, de modernizar as respectivas economias e de melhorar, às Blackburn, R. (org.). 1992. Depois da queda. São Paulo, Paz e Terra.
vezes substancialmente, os padrões das condições de vida e de trabalho de Dreifuss, R. 1997. A época das perplexidade!. Petrópolis, Vozes.
seus habitantes. Féron, B. 1995. La Russie, espoirs et dangers. Paris, Lê Monde/Marabout.
Gorbachev, M. 1987. Perestroika. Rio de Janeiro, Best-Seller.
Como heranças destrutivas, o socialismo deixou, sem dúvida, um rastro Gorender, J. 1992. Origens e fracasso da perestroika. São Paulo, Atual.
de intolerância. A negação das liberdades e do pluralismo, a cultura do cen- Lewin, M. 1988. O fenómeno Gorbachev. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
tralismo e da ditadura, se, por vezes, pôde ser legitimada em face do cerco e Orwell, G. 1984. 1984, São Paulo, Ática.
das ameaças dos países capitalistas, nem sempre correspondeu a situações de Pomar, V. 1987. O enigma chinês: capitalismo ou socialismo. São Paulo, Alfa-ômega.
perigo iminente. Ao contrário, o que se verificou, constantemente, foi que o Przeworski, A. 1989. Capitalismo e social-democracia. São Paulo, Companhia das Letras.
socialismo tendeu a apertar os laços do constrangimento e da repressão na Reis Filho, D. 1997. Uma revolução perdida. São Paulo, Fundação Perseu Abramo.
medida mesma da força que adquiria. O que autoriza a hipótese de que a in-
clinação ditatorial-repressiva esteja ligada, de certo modo, a algumas de suas
referências fundadoras (a política como ciência, o messianismo operário, as
vanguardas iluminadas etc.).
O fato é que as ditaduras passaram a ser consideradas intoleráveis, prin-
cipalmente ali, onde o socialismo formou sociedades mais complexas, ins-
truídas e urbanizadas, como no caso da URSS.
Do mesmo modo, se o estatismo centralista jogou papel dinâmico no
processo da decolagem modernizante, ele se revelaria particularmente inca-
paz de assegurar ritmos ascendentes de desenvolvimento em sociedades mais
sofisticadas.
Num plano mais geral, o socialismo que realmente existiu não foi capaz,
historicamente, de construir e de gestar uma alternativa ética, convincente, ao

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