Você está na página 1de 1

Read in the Substack app Open app

#4 O Nordeste
não quer salvar
ninguém
Um manifesto sobre como estamos
nos manifestando

Davi Boaventura
Oct 6

Olha, sinceramente, preciso fazer um


desabafo, não vai ser fácil, e nem sei se vou
conseguir dizer tudo, mas estou cansado, ou
melhor, estou exausto, e estou exausto de
deixar isso entalado só para evitar o con<ito,
e também não magoar pessoas que me são
muito queridas, por mais que eu entenda de
onde está vindo essa questão, essa
impotência, mas, olha só, de quatro em
quatro anos é essa mesma merda, a
mesmíssima merda, o Nordeste é burro, o
Nordeste é uma maravilha, o Nordeste não
sabe votar, o Nordeste vai nos salvar, o
Nordeste é analfabeto, o Nordeste tem as
melhores notas no ENEM, o Nordeste é o
céu, o Nordeste é o diabo, o Nordeste nem
existe, você já leu autores do Nordeste?, mas
você nem parece nordestino, Davi, você nem
gosta de pimenta, que baiano é esse?, estou
há quase dez anos na região Sul, já é minha
terceira eleição presidencial morando aqui, e
nada muda, nada, absolutamente nada, você
abre a internet e surge uma enxurrada
inInita de memes e de textões e de stories e o
Nordeste é isso e o Nordeste é aquilo, o
Nordeste tem que acabar, o Nordeste está
carregando o país nas costas, meu deus eu
quero morar no Nordeste, mas depois de me
aposentar, claro, porque agora é trabalho e lá
a situação é mais difícil, né, pois é, é bem
difícil, e nada muda, nada muda porque o que
muita, muita, muita gente não percebe é que,
nessa gritaria toda, nesse tiroteio de
postagens, nesse vômito de ansiedade, o
Nordeste vira apenas um objeto, um espelho,
um band-aid para a ferida narcísica do Sul-
Sudeste, e que, nos quatro anos seguintes,
não só é esquecido, largado na gaveta meio
emporcalhada das redes sociais, como
reconduzido ao lugar de subalterno na
hierarquia moral do país, nossos problemas
continuam, nossa falta de estrutura continua,
nossa pobreza continua, nossas disputas
ideológicas continuam, tudo continua igual,
cadê investimento federal, cadê emprego,
cadê escola, hospital, transporte público,
cadê o turista gastando dinheiro por lá ao
invés de torrar tudo naquele mochilão na
Europa, cadê projeto sério e não somente
paliativo, cadê, hein, cadê, temos
desigualdades gritantes, é assustador ver a
pobreza e a riqueza conviverem tão de perto,
é desesperador ver que esse barril de pólvora
já deveria ter explodido há pelo menos
duzentos anos, mas que a tensão continua e
continua e continua e não para de matar os
pretos, os pobres e os periféricos, é de revirar
qualquer estômago, são nove estados, porra,
cada um com seu sotaque, sua história, sua
particularidade, a área do Nordeste é quase
do tamanho da Europa Ocidental, faz,
inclusive, um frio do caralho na Chapada
Diamantina (e em Conquista), Salvador é a
terceira maior cidade do país e a terceira com
maior número de ricos 3A, mas temos
também o Alagados e a feira do rolo, Recife
tem praia, mas tem tubarão, o Rio Grande do
Norte produz cerca de 90% do sal do país,
Teresina Ica à beira de um rio bem longe do
litoral e o Piauí possui o maior e mais antigo
sítio arqueológico da América, Sergipe não
aguenta mais ser chamada de quintal da
Bahia, um bairro de Maceió simplesmente
afundou por causa de uma empresa-cujo-
nome-tenho-até-medo-de-falar-pra-não-
receber-processo e mesmo assim a cidade
promove uma bienal literária das mais
bonitas, Fortaleza tem uma saúde
psiquiátrica de qualidade (onde minha mãe,
inclusive, fez residência como graduada em
psicologia), São Luís exala amor pelo reggae,
a Paraíba organiza o maior São João do
mundo, porque, sim, tem reggae, tem rock,
tem forró, tem carnaval (e também todos os
invisíveis que dormem debaixo de um isopor
pra não perder o lugar da venda e ganhar
Dengoletter
um
Fazer login
dinheiro que só aparece mesmo naqueles dez
dias do ano), tem a porratoda, e, por mais que
eu não possa falar pelos meus conterrâneos,
acho que não é exagerado dizer: sim, é
bastante compreensível o que está
acontecendo, do ponto de vista lógico e
social, mas, por favor, pelamordedeus, parem
de nos tratar como se fôssemos somente um
pedaço do mapa preenchido por uma turba
ignara, festeira e que vai resgatar o Brasil do
fundo do poço eleitoral, o Nordeste não é
lugar de gente burra, o Nordeste não quer
salvar ninguém, o Nordeste só quer existir
em paz e com dignidade, sem ninguém
enchendo nosso saco e tentando imitar nosso
sotaque.

No mais, vamos levantar a cabeça. O jogo


está longe de acabar. Se queremos mesmo
fazer um Brasil melhor para todo mundo, e
tirar da presidência esse energúmeno que
hoje ocupa o Planalto e faz troça das pessoas
que morreram sufocadas pela covid, vamos
precisar de muita sensatez, muita resiliência
e muito trabalho. Um esforço de vinte, trinta
anos até desaparecer da nossa boca esse
gosto amargo de fracasso.

Até a vitória, sempre.

Quando você escreve um livro, você nunca


sabe o que vai acontecer com ele, quais vão
ser as surpresas pelo caminho, onde esse livro
vai parar. Pois eis que, agora em outubro,
Carlos Eduardo Pereira (autor do ótimo
Enquanto os Dentes, Inalista do prêmio São
Paulo, e do recente Agora Agora) me trouxe
uma das surpresas mais inesperadas e
gratiIcantes: Mônica vai jantar vai ser
assunto de uma das quatro aulas que ele vai
dar no curso Quem está falando? ― narradores
na literatura brasileira contemporânea,
organizado pela Escrevedeira e que vai
acontecer virtualmente entre os dias 19 de
outubro e 9 de novembro, sempre às
quartas-feiras.

Companhia de luxo nessas aulas: além do


meu livro, entram na discussão os trabalhos
de Aline Bei, Geovani Martins e Amara
Moira, três dos principais nomes da
literatura contemporânea local. “Cada
encontro destaca uma das obras, com análise
seguida de exercícios práticos que exploram
modos distintos de trabalhar o foco narrativo,
estimulando os participantes a
desenvolverem uma voz particular nos seus
próprios textos”.

Para quem quiser se inscrever ou saber mais


sobre o curso, só CLICAR AQUI.

E você já conhece o Mônica vai jantar? Não?


Oxente, diacho. Corre aqui no site da
editora e usa o cupom saudadesdabahia para
aproveitar 25% de desconto!

Para terminar, vou me permitir a contradição


(porque, né, somos coalhados de contradições) e,
apesar de lutar para desmistiBcar essa ideia de
que a Bahia é só a terra do carnaval, vou deixar
aqui, bom, um vídeo do carnaval de 2018.

É um vídeo que assisto toda vez que sinto


saudade de Salvador. Também pela música e pelo
carnaval. Mas muito mais pela potência, pela
energia, por me fazer pensar no impulso de vida
(e de como temos medo dela).

É um vídeo que sempre me esquenta e começa um


incêndio dentro de mim.

Baiana System tocando “Forasteiro” no


Furdunço 1 de 2018.

Baiana System Furdunço …

(Sim, eu estava lá. Mas não aconteceu nada,


velha, relaxe, tô vivo).

Um xêro,

Davi B.

P.S.: É sua primeira vez por aqui e ainda não


se inscreveu na dengoletter? A hora é essa,
só depositar seu e-mail na caixinha aqui
embaixo, ó:

lanylinkletras@gmail.com ✓

1 O Furdunço é o pré-carnaval que, na prática,


dá início ao carnaval. Dá uma olhada aqui para
entender: https://bit.ly/3yiel1K

Like Comment Share

15 likes

Previous

1 Comment

Write a comment…

Suellen Rubira

Writes Perdi o bonde e a esperança Oct 6

Liked by Davi Boaventura

Impecável, Davi.
1 Reply Collapse

Top New Community

Dengo nº 03
Aquela dengoletter em que se fala sobre Kiese
Laymon e se relata um desagradável episódio
envolvendo a cor da literatura brasileira
DAVI BOAVENTURA SEP 15 16 4

Dengo nº 01
não tenho mais nada a dizer é isso, não tenho
mais nada a dizer, e eu sei que não é de bom
tom começar assim uma newsletter, mas este
é o dilema com o…
DAVI BOAVENTURA JUL 28 1

Dengo nº 02
Oxe, cadê o doce que tava aqui? É curioso,
embora não seja surpreendente, mas a sina
desta dengoletter talvez seja começar por um
caminho e, no meio do…
DAVI BOAVENTURA AUG 25 1

© 2022 Davi Boaventura

Privacy ∙ Terms ∙ Collection notice

Publish on Substack Get the app

Substack is the home for great writing


15 1

Você também pode gostar