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24/06/2020 A fé depois da crise… - DN

A fé depois da crise… D. Manuel Clemente


09 Maio 2020 — 11:17
Como irá viver-se a fé no futuro? Foi a pergunta que o DN fez. O
Cardeal-patriarca de Lisboa responde: "Tratando-se de fé cristã,
é necessário situá-la na adesão a Cristo, no que integralmente foi
e no que realmente fez."
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D. Manuel Clemente

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SHEIK DAVID MUNIR


Lições da fé em
tempos de crise

D. Manuel Clemente© Reinaldo Rodrigues-Global Imagens

A fé cresce na crise e assim mesmo se prolonga.


Desde há 2000 anos que tal acontece, no que ao
cristianismo respeita. Nasceu na maior crise que podia ser,
com a morte do Fundador. Foi aí que um centurião romano JOSHUA RUAH
O judaísmo e as crises
a professou: "Verdadeiramente este homem era Filho de
Deus" (Marcos 15, 39). Dois dias depois, mesmo sem
ser preciso abrir-lhe a porta, os discípulos
reconheceram-no "no meio deles" (João 20, 19). Hoje
repetimos também: "Ele está no meio de nós!"
COVID-19
Os cristãos sabem-no e experimentam-no, sobretudo nos Missas presenciais
regressam, mas só
momentos difíceis. É esta a sua fé, tão original agora como com máscara e
lugares marcados
naqueles primeiros momentos. A interrupção das
celebrações comunitárias, imposta pela pandemia, custa-
lhes certamente e muito. O encontro eucarístico semanal é
o centro de tudo o mais. Quando não pode realizar-se
presencialmente, deixa pena e muita vontade de se
retomar. Como voltará, ainda com mais força, logo que
seja possível. Não acontece agora, para acontecer ainda
melhor depois, porque salvaguardámos a saúde de todos.

O encontro retraiu-se para a esfera pessoal e familiar.


Aí se tem sentido a verdade do que Jesus também
disse: "Onde estiverem dois ou três reunidos em meu
nome, eu estou no meio deles" (Mateus 18, 20). Tem
sido ocasião para as famílias cristãs se redescobrirem
como "igrejas doméstica"", rezando em conjunto e
seguindo pela televisão e pela internet as celebrações que
os seus pastores não deixam de fazer e transmitir.

Não faltam manifestações de fé


persistente e até reencontrada,
nas partilhas diárias que se
fazem. Em muitos lugares e
ocasiões, em que os crentes
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deparam com o Ressuscitado na


relação com os outros.

Aliás, noutras paragens, em tempos recuados ou recentes,


foi quase só assim que a fé cristã se manteve e transmitiu.
Foi o caso dos "cristãos ocultos" no Japão, do século XVII
ao XIX. Também dos cristãos da Coreia e do Vietname, na
mesma época - dois países onde o cristianismo agora
cresce. E, mais proximamente, em várias zonas de África
onde a vida sacramental se reduziu ao batismo, porque a
guerra não permitiu a presença de sacerdotes... Entre
nós, a pandemia e as restrições que traz serão
certamente mais breves. Mas, com tudo isto, a crise
também pode ser de crescimento.

Não faltam manifestações de fé persistente e até


reencontrada, nas partilhas diárias que se fazem. Em
muitos lugares e ocasiões, em que os crentes deparam
com o Ressuscitado na relação com os outros. Nos
contactos possíveis com parentes e vizinhos mais isolados;
nos lares de idosos e em muitos serviços públicos e
particulares, de bens essenciais e transportes, de saúde e
ensino, empresariais e laborais. Valem-lhes sempre as
palavras de Jesus. Como quando, depois de reconhecer o
serviço prestado aos outros nas várias necessidades de
saúde e ajuda, deixou claro: "Em verdade vos digo:
sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a mim mesmo o fizestes" (Mateus 25, 40).

Creio, pelo muito que vou sabendo e ouvindo todos os dias


neste sentido, que esta experiência tão essencialmente
cristã e agora reforçada se repercutirá depois na vida
comunitária e sacramental, assim que se possa retomar.
Porque é do essencial cristão que se trata e, tal como em
Cristo aconteceu, há de continuar a acontecer.

Os cristãos sabem que em todos


estes gestos se anuncia a
Eucaristia, que é ele mesmo,
como se oferece ao Pai e a nós.

Nada de abstrato. É verificar, nos trechos evangélicos onde


a alusão eucarística é evidente, como tudo começa pela
atenção precisa ao bem dos outros, a partir do que há de
mais físico e material. Jesus olha a multidão, compadece-
se dela, cura e alimenta quem precisa (cf. Mateus 14, 13
ss). Os cristãos sabem que em todos estes gestos se
anuncia a Eucaristia, que é ele mesmo, como se oferece
ao Pai e a nós. Anseiam pelo sacramento, como sempre
ansiaram. Mas procuram corresponder-lhe em cada
momento, servindo realmente os outros, para poderem
comungar legitimamente a Cristo. Não é por acaso que o

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primeiro relato escrito da Eucaristia vem numa carta
de Paulo, em que já se exige um comportamento
correto e solidário com todos para se poder comungar
Cristo com verdade e bom fruto (1 Coríntios 11, 17ss).

Faço estas alusões bíblicas para responder à pergunta:


"Como irá viver-se a fé no futuro?" Tratando-se de fé cristã,
é necessário situá-la na adesão a Cristo, no que
integralmente foi e no que realmente fez. De há 2000 anos
para cá, sucedem-se homens e mulheres que sabem que
a história de Cristo continua e alarga-se através deles,
sobretudo quando é mais urgente salvaguardar as vidas.
Não o fazem sem Cristo e sentem-no ainda mais próximo
quando repetem os seus gestos e atitudes. É uma
comunhão plenamente existencial.

Este tempo difícil tem sido também de muita fé


comprovada, nos vários campos onde os discípulos de
Cristo estão presentes, com todos os outros homens e

mulheres de boa vontade. Quando puderem retomar sem


tantas restrições sanitárias o ritmo normal da sua vida
comunitária e sacramental, hão de fazê-lo mais fortalecidos
com a experiência vivida. Como também escreveu um dos
primeiros: "Eu, pelas minhas obras, te mostrarei a
minha fé" (Tiago 2, 18). Terão muito de bom, verdadeiro e
belo para compartilhar entre si e com todos. É o seu modo
de contribuir para a sociedade mais justa e solidária que
não se pode adiar mais.

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