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A LDB E AS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO INFANTIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS1

Tizuko Morchida KISHIMOTO*

A Educação infantil, primeira educação, fatores de ordem conjuntural e


etapa da educação básica, tem como inadequação de processos de formação que
finalidade o desenvolvimento integral precisam ser explicitados.
da criança até seis anos de idade, em Um dos grandes desafios é
seus aspectos físico, psicológico, ultrapassar a retórica da infância (Becchi & Julia,
intelectual e social, complementando a 1998), slogans e modismos, aprender a olhar a
ação da família e da comunidade (art 2. criança e dar-lhe espaço de expressão. A
LDB). valorização da infância como categoria social,
apesar de presente no discurso, não encontra
Se a legislação propõe o
espaço no cotidiano infantil.
desenvolvimento integrado da criança como A criança concebida como ser
objetivo a alcançar, como afirmar que na sala de
humano em desenvolvimento, dotado de
aula se aprende e no pátio se recreia? Qual a competências, saberes e direitos, situada em um
participação do corpo e do movimento na contexto histórico e social, contrapõe-se às
educação? A fragmentação e compartimentalização
experiências de exclusão, que separa crianças
de aspectos do desenvolvimento infantil (físico, pobres e ricas, meninos de rua, crianças com
intelectual, psicológico, social) espelham-se nas
famílias de outras abandonadas, exploradas e
concepções dos profissionais, na organização do violentadas (Pinto & Sarmento, 1997).
espaço físico, materiais e práticas pedagógicas. Na Valorizar a identidade de cada
sala de aula ocorre o desenvolvimento intelectual e criança exige reflexão sobre sua identidade e como
psicológico, no pátio, o físico e social. construí-la (Haddad, 1991). Essa é uma das
Como justificar o controle do corpo,
indicações das Diretrizes Curriculares da Educação
salas de aulas e atividades concebidas na
Infantil, aprovada em 1999, que constitui um
perspectiva do adulto, em que não há espaço para
desafio.
ações autônomas da criança? Os materiais mais
As creches e pré-escolas existentes
presentes, são os gráficos, que não privilegiam o ou que venham a ser criadas deverão, no prazo de
corpo e o movimento. As práticas pedagógicas
três anos, a contar da publicação desta Lei,
atribuem maior tempo para atividades intelectuais
integrar-se ao respectivo sistema de ensino (LDB,
voltadas para aquisição das letras e números.
Título IX, Das Disposições Transitórias, art. 89).
Brinquedos e brincadeiras aparecem no discurso,
Tal determinação desnudou concepções, práticas e
mas na prática restringem-se ao recreio e
políticas públicas.
momentos de transgressão das normas.
Não basta transferir creches para o
O trabalho com a família e a âmbito da educação. Outros aspectos precisam ser
comunidade não pode ser ocasional, mas
considerados: concepções de criança e de
complementar do pedagógico para desenvolver a
educação, níveis de formação e funções dos
criança integralmente. Como isso é possível em
profissionais, diferenças salariais, estrutura e
agrupamentos infantis que chegam a ter 30 a 40
funcionamento dos equipamentos infantis,
crianças, com profissionais sem formação, tempo e
financiamento, formação.
materiais?
Muitos privilegiam o educar e o
Na base desses problemas
cuidar apenas na dimensão pedagógica. É
encontram-se concepções de criança e de

'Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

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8 KISHIMOTO, T. M.

necessário concebê-los em perspectiva mais ampla, gráficos e conteúdos escolares, atividades


de um desenvolvimento que se processa num fragmentadas ou pouco relevantes para a educação
plano, como diria Bronfrenbrenner (1906), e o desenvolvimento infantil.
ecológico, em vários níveis que se relacionam. Como no ensino fundamental, há
Desde o berçário, em todas ações do cotidiano, é filas para entrar, carteiras alinhadas, nucas atrás de
preciso integrar ações de cuidado e educação. nucas, mesinhas de quatro a seis lugares, onde
Outras formas de integração: pré-escola e ensino apenas a proximidade física une as crianças. Não
fundamental, creche e família, creche e pré-escola. há cooperação, expressão de necessidades
Estruturas contínuas possibilitam melhor individuais e coletivas. Prevalecem atividades
atendimento à criança iguais para todas as crianças, contrariando as
Integrar significa centralizar e propostas de autonomia, expressão e identidade
aproximar serviços, buscando acomodações, infantis.
reconciliações e ajustamentos. Para o Programa O espaço para aprender é restrito à
Early Excellence Centre, uma política sala de atividades, decorrente das concepções de
governamental valoriza a integração, quando há educação (Nóvoa, 1992). O ambiente de
investimentos em todos os setores educacionais e aprendizagem deve abranger todo o contexto,
sociais, nutrição, saúde, competências familiares, avançar nos espaços públicos e privados,
igualdade de oportunidades de acesso e formação, envolvendo pais, comunidade e outros agentes, o
respeito aos problemas de gênero incluindo que parece não ocorrer.
educadores do sexo masculino e correspondente Na interação adulto-criança
valorização da profissão, cuidado e prevalece a visão adultocêntrica. Não se valoriza a
desenvolvimento de recursos humanos e atenção aprendizagem decorrente das relações entre
para as potencialidades das crianças (Pascal, crianças de diferentes idades, de adultos de
Bertram, Gasper, Mould, Ransden & Saunder, diversos meios, espontânea, construída pelas
1999, p. 11-3). próprias crianças em contato com seu meio, com
A construção da proposta pedagógica objetos e situações diversas. Grandes
é o aspecto mais relevante da dimensão cuidar- agrupamentos, com muitas crianças, inviabilizam o
educar. Conceber um projeto pedagógico não é trabalho com qualidade. Em decorrência, os
tarefa solitária do profissional encerrado nas quatro profissionais estão sempre muito ocupados,
paredes de sua sala. Não é um documento exógeno dirigindo as atividades, distribuindo materiais,
que deve ser aplicado pela instituição. É fruto de chamando a atenção das crianças, não dispondo de
trabalho coletivo, de todos os profissionais, equipe tempo para observar ou interagir com elas.
da escola, gestores, pais e comunidade. Essa tarefa É necessário pensar em formas de
demanda um diagnóstico da realidade escolar, a organização do tempo e do espaço, que evitem a
identificação do sujeito da educação, de rotinização (Barbosa, 2000), que contemplem
concepções sobre a educação que se deseja momentos individuais, em grupo, que valorizem
oferecer, a definição e detalhamento de ações, a ora a ação livre e deliberada da criança, ora a
curto, médio e longo prazos, a seleção e orientação do profissional, que incluam espaços
organização dos recursos humanos e materiais. A internos e externos, o contato com múltiplos
avaliação deve acompanhar todas as etapas do personagens da instituição, da família e da
trabalho. Não a avaliação de resultados, mas a comunidade.
avaliação do processo de trabalho, na acepção de O modelo de escolarização,
Perrenoud (1999), que parte dos interesses, hegemônico, expande suas ramificações nos cursos
necessidades, saberes e competências das crianças. de formação de professores, em nível superior,
Avalia-se não só o percurso da criança, mas o Pedagogia e, em nível médio, habilitação de
caminhar da equipe, contemplando acertos e Magistério, com um currículo de orientação
desacertos em busca das metas traçadas. disciplinar carregado de metodologias para o
Em tempos passados, concepções de ensino de Português, Matemática, Ciências,
criança e educação propunham retirar as crianças História, Geografia, Educação Física e Artes
das ruas para encerrá-las entre quatro paredes, com (Kishimoto, 1999). As creches, destinadas a
cuidados mínimos de saúde, higiene, alimentação e crianças de zero a três anos ou até seis anos,
vigilância total (Foucault 1977). Hoje, reproduzem, em sua grande maioria, a perspectiva
reproduzem-se quadros similares: disciplinar por assistencialista, de matemagem (Rayna &
meio de orações e tempo de espera, exercícios Brougère, 2000). A falta de especificidade da

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educação da criança continua nas formas de gestão, cuidado e a educação levam à suspensão de
em que um mesmo supervisor é responsável pela recursos destinados às creches através das SMAS;
faixa etária de zero a dez anos. em muitos municípios o atendimento restringe-se
A cultura que prevalece nas escolas prioritariamente à faixa etária de cindo a seis anos;
infantis (Forquin, 1996) reflete valores em decorrência de falta de financiamento próprio
cristalizados nos modelos de escolarização.2 A para educação infantil a oferta de período integral é
desigualdade social e econômica trouxe a reduzida; a ampliação do atendimento sofre
ansiedade na população em busca da ascensão redução ou paralisação. São desafios que precisam
social via escolarização, ocasionando a aceleração ser enfrentados.
do aprendizado já na fase infantil. Nessa busca A LDB determina a transferência das
esquece-se a criança, sua forma específica de creches para o âmbito educacional e exige a
aprendizagem e desenvolvimento. Toma-se a formação em nível superior de todos os
criança como pequeno adulto, com potencialidades profissionais. Tais medidas têm criado impasses e
para crescer rápido e aprender ainda mais depressa. distúrbios que redundam em maior discriminação:
Escolas infantis repletas de materiais gráficos e leigos são demitidos, há redução ou paralisação do
computadores evidenciam essa pressa. A entrada atendimento, preconceitos relacionados às funções
no mundo tecnológico, o domínio dos processos e equiparação de cargos, convênios diferenciados
informatizados, antes mesmo da construção de entre SMAS e SME dificultam a integração.
processos de representação do mundo da criança, Práticas centralizadas de aquisição de material
acaba invalidando o esforço para desenvolver a prejudicam a disponibilidade e adequação dos
criança. Antes da palavra escrita, ocorre a recursos no cotidiano; projetos sobre a prática
representação, que é simbólica, motora, expressiva. pedagógica definidos de modo exógeno, em
É preciso respeitar as características do desrespeito ao profissional como ator do processo;
desenvolvimento infantil. O letramento e a predomínio de concepções de educação infantil
aquisição da linguagem requerem a construção de fragmentadas, voltada para a escolarização ou
representações mentais, de significações para os apenas para o cuidado; precariedade de infra-
códigos escritos. Não é pelo ensino mecânico de estrutura dos equipamentos, especialmente das
símbolos escritos que se chega à linguagem. É entidades conveniadas; complexidade e diversidade
preciso que a atividade simbólica, responsável na estrutura, no funcionamento e no tamanho das
pelas representações construídas nas brincadeiras e redes que, se, em Limeira, conta com 13 creches,
atividades, seja experimentada para que a criança na cidade de São Paulo, ultrapassa 700 unidades. A
possa construir sua linguagem. formação profissional constitui a principal ação
Brincadeiras são formas de capaz de enfrentar a maioria dos problemas da
comunicação que permitem partilhar significados e educação infantil.
conceber regras (Bateson, 1977; Bruner, 1996) Outro desafio é a implementação do
para desenvolver e educar as crianças. Pelo brincar complexo e polissêmico conceito de qualidade na
se pode compartilhar valores culturais e educação infantil (Dahberg, Oliveira-Formosinho
significações, expressar idéias, compartilhar & Formosinho, 2001; Moss & Pence, 1999). Quer
emoções, aprender a tomar decisões, cooperar, se trate de produtos (leis e normas sobre a estrutura
socializar e utilizar a motricidade. e funcionamento da educação infantil,
O direito à educação infantil não é financiamento, etc.), processos (formação
respeitado não só pela taxa de demanda que, profissional, elaboração de propostas pedagógicas,
segundo o censo de 2000, gira em tomo de 54% inovações, pesquisa, etc.) ou concepções, é
para crianças de quatro a seis anos e 10% para as necessário um esforço para que cada segmento da
de zero a três anos. Na rede de educação infantil sociedade cumpra sua função para melhorar
nos municípios de São Paulo e Grande São Paulo, processos, produtos e concepções que beneficiem a
as creches que atendiam crianças de zero a seis educação de crianças pequenas.
anos, em tempo integral, passam a oferecer, às de Não se pode pensar em
zero a três anos, período parcial ou integral; desenvolvimentó integral da criança sem
crianças de quatro a seis anos passam a ser incorporar o corpo. A educação infantil esqueceu
atendidas prioritariamente em tempo parcial; as que o corpo é o primeiro brinquedo. Não só na
crianças de seis anos são absorvidas no ensino perspectiva de jogo de exercício, mas de
fundamental sem adequações no projeto representação de brincadeiras pelo movimento.
pedagógico; as indefinições da integração entre o Rodar como pião, cantando parlendas e músicas

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que falam sobre a alegria de rodopiar, expressa o brinquedos ou brincadeiras que movimentam o
prazer anunciado por Caillois (1967), no ato da corpo é fundamental para a educação da criança
vertigem. Unir a representação pelo gesto à da pequena.
palavra cantada e recriada é ser criança, é deixar No mundo das miniaturas se brinca
que o corpo se una ao lúdico e expresse os códigos sozinho, sentado, com pequenos brinquedos.
da cultura em que a criança vive. Mesmo que a representação esteja presente, não
Um dedo que se transforma em ocorre a ampla motricidade, os amigos para dividir
personagem da história, que encanta qualquer brincadeiras. O brincar solitário explica-se pelo
criança, inclusive no recinto frio e ameaçador do novo modo de vida da família que se reduz, às
hospital, que a faz esquecer a dor física, a violência vezes, à mãe, que trabalha e deixa a criança, em
à que está submetida, quando é afastada de seus recintos pequenos, com a TV ou com seus
familiares, amigos, brinquedos, traz o equilíbrio brinquedos.
necessário para superar as dificuldades (Lindquist, Num mundo violento em que novas
1993). É como uma “resiliência” para a criança configurações inauguram o novo milênio, com o
(Kotiarenco, 1997). Toma o hospital e as terrorismo, a intolerância, o radicalismo, é preciso
condições hospitalares mais humanas. Não anula a recuperar as cem linguagens da criança (Edwards,
infância. Permite que a criança seja criança, não Gandini & Forman, 1999), lendas da Amazônia
importa o lugar em que esteja. (Faria, 1999), os muiraquitãs, os contos e mitos
O corpo carrega a dimensão de indígenas, o “velho Chico” o rio da integração
integrar emoções, contatos sociais e relações nacional, que corta inúmeros Estados, trazendo a
(Wallon, 1966). O cotidiano de nossas práticas mãe d água, o nego do rio, o cachorro do mato, o
tende a separar o corpo de outras dimensões. É barco fantasma, o boto cor de rosa que mergulha
mais uma vez a violência simbólica (Biamès, nas águas claras dos rios amazônicos e carrega
1999) de construções sociais que esquecem a moças bonitas para dentro do rio.
criança, o brincar, o prazer, a emoção, a parceria, a Nas cidades do interior, a mula sem
socialização e a recriação. cabeça assombrava crianças, nas noites escuras de
A Educação Física, no processo de Brodósqui, nas lembranças de Portinari. Nos
construção de seu campo disciplinar, prioriza a tempos da escravidão, meninos de engenho, da
ginástica e o esporte. Despreza a singeleza da Casa Grande, brincavam, com seus irmãos e
natureza que criou o ser humano dotado de primos, de ser dono de engenho de açúcar, de
dimensões que se integram. Separou o homem em construir um capa-bode, uma engenhoca para obter
biojógico, social, emocional e cognitivo. Criou o caldo da cana. As brincadeiras do moleque
esferas de estimulação para cada dimensão e sapeca, o menino-diabo, que, na descrição de
esqueceu-se de que o ser humano é o conjunto Machado de Assis, batia no lombo do negrinho da
delas. A nova taxionomia criada pelas áreas do senzala, seu companheiro de brincadeira, com uma
conhecimento desintegrou o ser humano, impediu vara de laranjeira, transformando-o em burro de
o brincar, emoções que conduzem ações, carga ou, ainda, o capitão do mato ou capitão do
possibilitam relações e representações. campo, o caçador de negros, o cangaceiro, com
O corpo se integra na representação e chapéu e espada formando o batalhão do sertão
no brincar, quando o faz-de-conta acontece em nordestino são as marcas do imaginário infantil,
ambiente dotado de materiais e brinquedos, personagens construídas nos contextos sociais da
similares ao ambiente natural em que vivem as
i
escravidão, do canavial, do início da
crianças. Uma cozinha, na dimensão da criança, industrialização, compartilhadas pelo mundo
possibilita andar, abaixar, esticar, movimentos que infantil, na forma de faz-de-conta..
se integram à representação de ser cozinheiro, dona O brincar era possível nas ruas,
de casa, mãe, que possibilitam a socialização, a quintais, nas casas espaçosas que abrigavam uma
exploração. Não é a ação que dirige a família ampliada com avós, tios, amigos. Nesse
representação, mas a representação que dirige a “locus”, a socialização e o aprender novas
ação (Vygotski, 1988, 1982). Nesse espaço, a modalidades de brincadeiras eram o oficio da
criança se curva para pegar um bebê, fica de pé criança. Construíam-se piões de madeira, cascas,
para preparar a comida no fogão, dá uma volta para sementes de frutas e legumes; bonecas de espigas
chegar ao berço, anda em direção ao amigo que de milho e palha, acompanhadas de histórias dos
desempenha o papel de motorista. A integração tempos passados.
entre o corpo, o movimento e os objetos chamados

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A LDB e as instituições de educação infantil 11

Hoje, os pais não têm tempo. com salas abarrotadas de mesas e cadeiras, no
Guardaram nas gavetas do passado seus sonhos, quadro para o reprodução da escrita, em armários
sua história, brinquedos e brincadeiras e compram que impedem a autonomia e a escolha de materiais,
brinquedos para os filhos. É a rotinização da que fecham as portas para o imaginário, na
infância (Barbosa, 2000) em ambientes fechados, repetição de monótonos exercícios motores ou na
em salas de aulas com crianças apenas da mesma proibição da motricidade inerente às crianças
idade, nos cursos extracurriculares que se pequenas. Multiplicam-se atividades repetitivas e
multiplicam para o desespero dos pequenos. Tais fragmentadas com materiais, como papel e lápis,
práticas, homogeneizadoras, liberam os pais e que poucas oportunidades oferecem às crianças de
ocupam a criança, eliminando o tempo da infância. se engajar na exploração de seu ambiente.
Fala-se da importância da infância, Estruturas inadequadas não disponibilizam
mas são poucos os projetos com sua participação. profissionais em tempo e em número suficientes
Os adultos falam pelas crianças, que não têm voz, para o desenvolvimento de propostas das crianças.
não são ouvidas. À semelhança dos orfanatos e asilos (Foucault,
Com a urbanização, industrialização 1977), a escola fechou as portas para a expressão e
e novos modos de vida, esqueceu-se a criança, a exploração da criança.
encurtou-se a infância, a criança tomou-se um O censo de educação infantil (2000)
precoce aprendiz. aponta a existência de brinquedos em 84% das
Em 1840, Froebel (1913) introduziu escolas, jogos didáticos, em 74%, material para
o lúdico nos jardins de infância. Nas Cartas às expressão artística, em 62%, sucata, 83% e livros
Mães (Froebel, 1912), orientava-as para brincar de literatura em 58% dos estabelecimentos (INEP,
com seus filhos, estimular a representação Censo 2000).
simbólica, utilizando músicas, danças, movimento Tais diagnósticos, tipo surveys, não
e o corpo. Sua proposta incluía a formação das explicitam a adequação dos materiais e brinquedos
jardineiras, o uso de brinquedos (de construção) nem seus usos. Geralmente, mesmo disponíveis nas
para ensinar números, formas, conceitos. escolas, ficam guardados, são utilizados de vez em
Ao propor movimentos associados à quando ou são insuficientes para o número de
representação, o psicólogo da infância deixou seu crianças ou inadequados para a faixa etária. Para
legado à educação infantil (Kishimoto, 1996). Mas Machado (2001) pesquisas similares indicam que
a apropriação de teorias nem sempre caminha os materiais tecnológicos encontram-se em quase
conforme os pressupostos do criador. Da teoria todas as escolas paulistas, mas 54% estão sem
froebeliana foram mais divulgados os dons que condições de uso, a maioria não conhece os
serviram para ensinar por meio dos jogos. É a programas da TV Escola (66%) e apenas 32%
pedagogia dos jogos dirigidos, que prevaleceu na conhecem algumas programações.
expansão dos jogos froebelianos e conquistou o Kishimoto (1998), ao pesquisar os
espaço da educação infantil. Nesse caminho, brinquedos e materiais pedagógicos na rede
Dewey introduziu o faz-de-conta na escola, trouxe municipal de São Paulo, no período de 1996-1998,
os brinquedos na dimensão da criança, evidenciou aponta a relevância da pesquisa quantitativa
a importância da representação dos problemas da complementada pela qualitativa. Enquanto os
sociedade nas brincadeiras infantis. Outros, como dados quantitativos evidenciam a pouca
Montessori, continuaram a enfatizar jogos para disponibilidade de brinquedos de faz-de-conta,
encaixar, seriar, somar... (Kishimoto, 1998). No construção e socialização e um alto percentual de
longo caminho percorrido pela constituição do recursos que favorecem a escolarização, a pesquisa
campo da educação infantil, entre a assistência e a qualitativa indica que tais materiais, mesmo
educação, a matemagem e a profissionalização, a disponíveis, são pouco utilizados em decorrência
escolarização e a vivência de experiências de concepções de criança e de educação associados
significativas, o brincar foi sendo marginalizado. a fatores estruturais.
A escola fechou as portas para a Em Braga, Portugal, uma criança de
cultura, tirou as brincadeiras, privilegiou o quatro anos dizia à professora que gostaria de
conhecimento sistematizado (Bruner, 1996). A brincar sem ter que planejar, executar e avaliar no
educação para o brincar deu lugar à educação pelo momento dos pequenos grupos.
brincar e à educação para outras finalidades. No bojo da questão está a concepção
Surge a violência simbólica (Biamés, de brincar como ação livre, iniciada, motivada e
1997) na forma de organizar o ambiente da escola, mantida pela criança. Como admitir a descrição

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prévia de uma ação que nasce das motivações da 6 estimular ,a iniciativa das crianças e sustentá-la
criança, não tem rumo, não pode ser antecipada? O por meio de regras e acordos;
High-Scope3 cria um ambiente propício ao lúdico, 7 examinar sua relação com cada criança e a das
quando é usado conforme as intenções da criança,
9
crianças entre si e procurar melhorá-las;
em um tempo e espaço que fazem parte do ato 8 oferecer atividades que auxiliem as crianças a
lúdico. Se o modelo obriga a planejar a atividade explorarem o mundo dos sentimentos, valores e
que a criança escolhe livremente, antes da ação de experiências;
brincar, há uma incoerência que precisa ser 9 reconhecer as crianças que têm problemas
explicitada. Descrever a atividade antes não é socioemocionais e ajudar por meio de intervenções
substituir o lúdico pelo não brincar? O lúdico é que resultem em seu bem-estar e
imprevisível. Os temas e processos do brincar 10 reconhecer as crianças que têm necessidades
nascem e se desenvolvem no contexto lúdico e particulares no plano do desenvolvimento e ajudá-
mudam por razões que, às vezes, nem o sujeito que las por meio de intervenções que visem aumentar
brinca pode explicar. Narrar o resultado da sua implicação nos domínios ameaçados (Leavers,
brincadeira é ato pedagógico relevante para a 2000, p.311).
aquisição da oralidade, mas descrever o que se Tais princípios focalizam espaços e
pretende fazer descontextualizado do processo de materiais para brincar e podem dar ao profissional
brincar é, em muitos casos, prender o lúdico ao melhores condições para avaliar e decidir sobre
quadro dirigido das práticas pedagógicas. A rotina alternativas que ofereçam equilíbrio entre a
do High-Scope4 de planejar, executar e rever opõe- orientação e a livre ação da criança de acordo com
se ao ato lúdico que prescinde da revisão. O brincar suas possibilidades e necessidades.
se esgota no próprio processo de brincar. Por seu O brincar é o caminho que possibilita
caráter improdutivo, não há um produto para ser a flexibilidade, a recriação, as relações e a
avaliado. Seria mais coerente deixar a criança comunicação entre os homens (Bateson, 1977).
escolher a área, brincar no tempo de atividade Brincam apenas as pessoas que se
livre, sem exigir explicações (Brougère ,1995; comunicam, que decodificam a linguagem, os
Caillois, 1967; Huizinga, 1951; Kishimoto, 1995). gestos, as significações de cada cultura. O autor
Para Buges (2000), citando Foucault aponta que os loucos não conseguem se comunicar
(1988), o currículo, em geral, é instrumento de por meio de brincadeiras. Na demência, as visões
poder sobre a criança. Já outras propostas como as se misturam à realidade. A representação da
escolas italianas, as do norte da Europa e os jardins perseguição leva o sujeito a pensar que está sendo
de infância japoneses disponibilizam brinquedos e perseguido. O sujeito não discrimina o sonho da
materiais para uso independente (Kishimoto, 1995, realidade, o imaginário do real. Não se pode
1997, 1998). Cabe analisar se estruturas dirigidas, misturar o real com o imaginário. Afirmar que os
livres ou ambas possibilitam uma melhor brinquedos de guerra podem tomar a criança
organização das atividades infantis. violenta é considerar que a criança tem psicose,
Pouco se sabe se o jogo livre ou a confunde o real e o imaginário. Se consideramos a
atividade dirigida contribui para a qualidade da educação como a busca de finalidade, pode-se
educação infantil. A educação para o brincar5 pelo admitir a interdição de brinquedos de guerra na
brincar6 e para outras finalidades7 é tema que exige educação das crianças pequenas assim como se
pesquisa. Leavers (2000), propõe uma escala para escolhe uma religião, uma atividade ou curso de
avaliar o envolvimento da criança, incluindo o língua estrangeira. Não se trata de misturar a
brincar, com 10 princípios8 realidade com a fantasia.
1 repartir o espaço da classe em cantos atrativos; Se a Constituição de 1988 e a Lei de
2 controlar equipamento de cantos e substituir os Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996
materiais pouco interessantes pelos mais são marcos históricos, conceituais e simbólicos,
interessantes; por verem a criança de zero a seis anos como
3 introduzir novos materiais e atividades não- sujeito de direitos e proporem a igualdade de
convencionais; oportunidades para uma educação de qualidade, é
4 observar as crianças, sondar seus interesses, preciso analisar como tais significados são
conceber e oferecer atividades relacionadas; transformados em ações. Subterfúgios retóricos
5 sustentar as atividades por meio de impulsos criam instrumentos de poder sobre a criança como
estimulantes e intervenções enriquecedoras; os currículos e orientações exógenos (Buges,
2000). Para ultrapassar posturas que não chegam a

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A LDB e as instituições de educação infantil 13

uma Pedagogia da Transformação, é preciso BECCHI, E.; JULIA, D. Histoire de 1'enfance en


eliminar o isolamento, valorizar os saberes Occident de 1'antiquité au XVIIe. siècle. Paris,
profissionais (Nóvoa, 1992), caminhar em direção Éditions du Seuil, 1998.
às comunidades educativas (Machado, 1999), BIARNÈS, J. Universalité, diversité, sujet dans
Fespace pédagogique. Paris, Harmattan, 1999.
construir, em parceria com a universidade, os
BRONFENBRENNER, U. A ecologia do
centros de formação, a escola, a família, a desenvolvimento humano: experimentos naturais e
comunidade e as crianças, um processo de planejados. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996.
formação inicial que se integre à continuada, que BROUGERE, G. Jeu et éducation. Paris, Harmattan,
melhore a qualidade da educação das crianças e de 1995.
suas famílias (Oliveira-Formosinho & Formosinho, BRUNER, J.S. L’éducation entrée dans la culture: les
2001), superando os desencontros na formação dos problèmes de 1'école à la lumière de la psychologie
profissionais de educação infantil (Kishimoto, culturelle. Trad. Yves Bonin. Paris, Retz, 1996.
1999). BUGES, M.I.E. O fio e a trama: as crianças nas malhas
do poder. Educação & Realidade, v.25, n.l, p.25-
44,2000.
CADWELL, L.B. Bringing reggio Emilia home.
Columbia, Columbia University/Teachers College,
NOTAS 1999.
CAILLOIS, R. Les jeux et les hommes. Paris,
1. Conferência de abertura. Gallimard, 1967.
2. Na educação infantil o termo escolarização é DAHBERG, G.; MOSS, P.; PENCE, A. Beyond
utilizado como inadequação de práticas de leitura, quality in early childhood education and care.
escrita e cálculo, desrespeitando a aquisição de London, Routledge Palmer, 1999.
experiências significativas da criança. EDWARDS, C.; GAND1NI, L.; FORMAM, G. As cem
3. E um modelo curricular para a infância que prioriza linguagens da criança. São Paulo, Artes Médicas,
áreas do conhecimento e formas de organização da 1999.
rotina. Ver Oliveira - Formosinho (1998) e Holmann FARIA, A.L.G. Educação pré-escolar e cultura: para
& Weikart (1997). uma pedagogia da educação infantil. São Paulo,
4. O High-Scope, embora com rotina e áreas fixas, Cortez, 1999.
distancia-se do modelo escolarizado. FORQUIN, J.-C. École et culture: le point de vue des
5. Respeita-se a iniciativa e os interesses das crianças sociologues britanniques. 2.ed. Paris, Le Boeck &
no processo de brincar. Larcier, 1996.
6. O brinquedo é instrumento da educação. É um jogo FOUCAULT, M. História da sexualidade 1: a vontade
educativo. de saber. Trad, de Maria Thereza da Costa
7. A educação infantil deve prever experiências Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. 12.ed.
estruturadas que possibilitem a aquisição de Rio de janeiro, Edições GRAAL, 1988.
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ENDEREÇO: Tizuko Morchida Kishimoto


Faculdade de Educação - USP
Av. da Universidade, 308
05508-900 - São Paulo - SP - BRASIL

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