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https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20200687.html
I. Relatório
1. A Secretaria Regional da Saúde dos Açores, através do Delegado de Saúde, requereu
junto do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos
Açores, ao abrigo do disposto no n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020,
de 31 de julho de 2020, a validação judicial da decisão de quarentena obrigatória de A.
e das decisões de isolamento profilático de B., C. e de D., tomada em 7 de setembro de 2020.
2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade desta decisão, ao Comentado [HM2]: MP recorre – 280 n.º 1 al. a) e n.º 3 da
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, CRP
de 15 de novembro, “LTC”), na parte em que desaplicou o n.º 6 da Resolução do Conselho
do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho de 2020, que cria um procedimento de validação
judicial da quarentena e isolamento profilático, com fundamento em inconstitucionalidade
orgânica, por violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º, n.º 2 e 4, 165.º, n.º 1, al. b),
225.º, n.º 3 e 227.° da CRP.
II. Fundamentação
A) Da delimitação do objeto do recurso
4. A decisão recorrida desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade
orgânica, o n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho
de 2020, emanada do Governo Regional da Região Autónoma dos Açores, que estatui
o seguinte:
«Nos casos em que seja decretada quarentena obrigatória pela autoridade de saúde, a
mesma deve, no prazo de 24 horas, ser submetida a validação judicial junto do tribunal
competente.» Comentado [HM3]: Objeto do recurso e reprodução da
norma em causa
A Resolução em causa foi aprovada «nos termos das alíneas c) do n.º 2 do artigo 59.º e
b) do n.º 2 do artigo 66.º e b), d) e l) do n.º 1 do artigo 90.º, todos do Estatuto Político-
Administrativo da Região Autónoma dos Açores, do n.º 2 do artigo 2.º da Lei de Bases da
Proteção Civil, da Base 34 da Lei de Bases da Saúde, os Capítulos IV e V do Regulamento
Sanitário Internacional, aprovado para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 299/71, de 13 de
julho, conjugados com os artigos 6.º, 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º
26/2019/A, de 22 de novembro, com o artigo 45.º do Decreto Legislativo Regional n.º
28/99/A, de 31 de Julho, na sua redação atual, e com as alíneas a), e) e f) do n.º 1 do artigo
4.º e c), d) g) e l) do artigo 7.º, todos do Decreto Regulamentar Regional n.º 11/2001/A, de
10 de Setembro, na sua redação atual».
Na fundamentação da decisão recorrida, refere-se que «da mesma forma que
enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação dos artigos 18º/2/3, 110º,
112º, n.º 2 e 4, 165/1/b), 225º/3 e 227° da CRP, os normativos legitimadores da
quarentena obrigatória e o isolamento profilático, designadamente os pontos 1, al.
b), c), 4, 5 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020 de 31 de Julho de 2020,
também o ponto 6 da mesma Resolução que cria procedimento de validação judicial
das mesmas quarentena e isolamento profilático, padece de inconstitucionalidade
orgânica por violação dos mesmos normativos, por se tratar de matéria de
competência reservada da Assembleia da República».
Os citados n.ºs 1, al. b), 4 e 5 daquela Resolução preveem, segundo a interpretação feita
pelo tribunal recorrido, as situações em que a autoridade regional de saúde pode decretar
medida de confinamento – quarentena ou isolamento profilático – sujeita ao procedimento
de validação a que se reporta o n.º 6 do mesmo normativo. É o seguinte o teor de tais
preceitos:
«1 - Todos os passageiros que desembarquem nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria,
São Miguel, Terceira, Pico e Faial, provenientes de aeroportos localizados em zonas
consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão
comunitária ativa ou com cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2, ficam
obrigados a cumprir, em alternativa, um dos seguintes procedimentos:
a) Apresentar comprovativo, em suporte digital ou de papel, de documento emitido por
laboratório nacional ou internacional, que ateste a realização de teste de despiste ao SARS-
CoV-2, realizado pela metodologia RT-PCR, nas 72 horas antes da partida do voo com
destino final aos Açores, de onde conste a identificação do passageiro, o laboratório onde o
mesmo foi realizado, a data de realização do teste e o resultado NEGATIVO. Neste caso, e
prolongando-se a estadia por sete ou mais dias, o mesmo deve, no 6.º dia, a contar da data
de realização do teste de despiste ao SARS-CoV-2, contactar a autoridade de saúde do
concelho em que reside ou está alojado, tendo em vista a realização de novo teste de despiste
ao SARS-CoV-2, a promover pela autoridade de saúde local, cujo resultado ser-lhe-á
comunicado; ou
b) Realizar, com recolha de amostras biológicas à chegada, teste de despiste ao SARS-
CoV-2, a promover pela autoridade de saúde, devendo permanecer em isolamento profilático
no seu domicílio ou local onde está alojado, até lhe ser comunicado o resultado do mesmo.
Neste caso, e prolongando-se a estadia por sete ou mais dias, o mesmo deve, no 6.º dia, a
contar da data de realização do teste de despiste ao SARS-CoV-2, contactar a autoridade de
saúde do concelho em que reside ou está alojado, tendo em vista a realização de novo teste
de despiste ao SARS-CoV-2, a promover pela autoridade de saúde local, cujo resultado ser-
lhe-á comunicado; ou
c) Regressar ao destino de origem ou deslocar-se para qualquer destino fora da Região,
cumprindo, até à hora do voo, isolamento profilático em hotel indicado para o efeito.
[…]
4 - Nos casos do resultado do teste ao vírus ao SARS-CoV-2 ser POSITIVO, a
autoridade de saúde local, no âmbito das suas competências, determinará os procedimentos
a seguir.
5 - Caso o passageiro recuse o cumprimento de todos os procedimentos previstos no
número 1, a autoridade de saúde local pode, no âmbito das suas competências, determinar a
realização de quarentena obrigatória, pelo período de tempo necessário à obtenção de
resultado de teste de despiste ao vírus SARS-CoV-2, ou, caso o passageiro não concorde
realizá-lo, pelo período de tempo necessário a completarem-se catorze dias desde a sua
chegada à Região, em hotel definido para o efeito, sendo os custos da mesma imputados ao
passageiro que assim proceda.».
Embora faça referência aos n.ºs 1, alíneas b) e c), e aos n.ºs 4 e 5 da Resolução do
Conselho do Governo n.º 207/2020, que considera inconstitucionais, a verdade é que a única
norma efetivamente desaplicada pela decisão recorrida é o referido n.º 6 daquela Resolução,
sendo que, na perspetiva do tribunal a quo, são idênticos os fundamentos que determinam a
inconstitucionalidade orgânica de todos aqueles preceitos.
No caso concreto, tendo sido requerida, na sequência de rastreio a viajantes
desembarcados no aeroporto de Ponta Delgada, a validação da quarentena obrigatória de um
passageiro que testou positivo para o vírus SARS-COV-2, bem como do isolamento
profilático de outras três pessoas, consideradas «contatos próximos de alto risco», o tribunal a
quo indeferiu liminarmente tal pedido, com fundamento na desaplicação da norma que criou
o procedimento de validação judicial ao abrigo do qual o mesmo havia sido formulado, isto
é, o referido n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020.
Consequentemente, não estão em causa nem os restantes preceitos da referida
Resolução, nem os preceitos ao abrigo dos quais a autoridade regional de saúde determinou
tais medidas – no caso da quarentena obrigatória, a «Norma n.º 004/2020, de 25 de abril da
Direção Geral da Saúde [...], considerando o disposto no artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de
21 de agosto, e na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do regime da situação de alerta e de
contingência anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020, de 31 de julho, na
sua atual redação» (cf. fls. 4) ; e, quanto aos isolamentos profiláticos, a «Norma n.º 15/2020, de
24 de julho da Direção Geral da Saúde […] considerando o disposto no artigo 17.º da Lei n.º
81/2009, de 21 de agosto» (cf. fls. 5 a 7).
Em qualquer caso, refira-se que o âmbito de aplicação do n.º 6 em apreciação é mais
amplo, na medida em que vale igualmente em caso de inobservância das regras relativas às
«deslocações interilhas, por via aérea ou marítima», de «passageiros provenientes do exterior
da Região» (n.º 10, alínea e), e aos «tripulantes dos iates que atraquem nos portos e marinas
da Região» (n.º 11).
O objeto material do presente recurso integra, por isso, apenas a norma do n.º 6 da
Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, emanada do Governo Regional da Região
Autónoma dos Açores, que cria um procedimento de validação judicial da quarentena obrigatória ou
isolamento profilático decretados pela autoridade de saúde regional relativamente a passageiros que
desembarquem nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial, provenientes de
aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de
transmissão comunitária ativa ou com cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2.
B) Do mérito do recurso
5. Na sua fundamentação, o tribunal a quo partiu do pressuposto de que o n.º 1, alíneas
b) e c), e os n.ºs 4 e 5 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020 são
organicamente inconstitucionais, por violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º, n.º 2 e
4, 165.º, n.º 1, b), 225.º, n.º 3, e 227.º da Constituição, e, por idênticos fundamentos, concluiu
pela inconstitucionalidade do n.º 6 da mesma Resolução, única norma que efetivamente
desaplicou. Com efeito, segundo a decisão recorrida, estão em causa «restrições de
direitos, liberdades e garantias constitucionais, previstas e admitidas no artigo 18º/2
da CRP, e sujeitas aos princípios constitucionais da proporcionalidade, da
necessidade e da adequação», as quais «constituem matéria da competência da
reserva relativa de competência da Assembleia da República, pelo que apenas podem
operar por lei da Assembleia da República, ou então por decreto lei do governo,
dispondo este de lei de autorização legislativa do Parlamento, e não por normativos
emanados dos órgãos próprios da Região Autónoma».
O recorrente opõe-se a esta perspetiva, entendendo que não se vê que «direito
constitucionalmente protegido é restringido ou limitado pela previsão de um procedimento
de intervenção judicial que, na sua essência, determina a apreciação por um tribunal de uma
decisão da administração. Apesar de na decisão [recorrida] existir uma referência ao direito à
liberdade e segurança dos cidadãos, não se nos afigura que a norma do ponto 6 da Resolução
do Governo n.º 207/20, de 15 de julho, consubstancie qualquer violação de tais direitos».
Cumpre, por isso, apreciar se a norma desaplicada, por tratar de matéria enquadrável na
previsão do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, invade a reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República. Com efeito, tal preceito, constitucional,
sob a epígrafe «Reserva relativa de competência legislativa», estabelece o seguinte:
«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes
matérias, salvo autorização ao Governo:
[…]
b) Direitos, liberdades e garantias;».
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nas alíneas b) e p) do n.º 1 do
artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, a norma contida no n.º 6 da
Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho de 2020, emanada
do Governo Regional da Região Autónoma dos Açores, que cria um procedimento
de validação judicial da quarentena obrigatória ou isolamento profilático decretados
pela autoridade regional de saúde relativamente a passageiros que desembarquem
nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial,
provenientes de aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização
Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão comunitária ativa ou com
cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.
Lisboa, 26 de novembro de 2020 - Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Mariana Canotilho
– Manuel da Costa Andrade
O relator atesta o voto de conformidade ao presente acórdão da Senhora
Conselheira Assunção Raimundo.
Pedro Machete