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ACÓRDÃO N.º 687/2020

Processo n.º 726/20


2.ª Secção
Relator: Conselheiro Pedro Machete

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I. Relatório
1. A Secretaria Regional da Saúde dos Açores, através do Delegado de Saúde, requereu
junto do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada, do Tribunal Judicial da Comarca dos
Açores, ao abrigo do disposto no n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020,
de 31 de julho de 2020, a validação judicial da decisão de quarentena obrigatória de A.
e das decisões de isolamento profilático de B., C. e de D., tomada em 7 de setembro de 2020.

Aquele tribunal, por decisão de 11 de setembro de 2020, indeferiu liminarmente o


requerido, tendo para o efeito recusado a aplicação da referida norma do n.º 6 da
Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, com fundamento em
inconstitucionalidade, nos seguintes termos:

«O Estado português subordina-se à constituição, dependendo a validade das leis e dos


demais atos do Estado da sua conformidade à Constituição – artigo 3.º da CRP.
Constitui tarefa fundamental do Estado, entre outras, garantir os direitos e liberdades
fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático – art. 9º/b) da
CRP.
A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente
previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – art. 18º/2 da CRP.
Todos têm direito à liberdade e à sua segurança e ninguém pode ser privado da liberdade
a não ser em consequência de condenação judicial por violar a lei, estando apenas previsto o
internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado,
decretado ou confirmado por autoridade judicial competente – artigo 27º/1/2/3 da CRP.
Os órgãos de soberania não podem., conjunta ou separadamente, suspender o exercício
dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de
emergência, declarados na forma prevista na Constituição – art. 19º/1 da CRP.
*
O decretamento do estado de emergência, único mecanismo constitucional que permite
a suspensão de direitos, liberdades e garantias, envolve três órgãos de soberania, a saber o
Presidente da República que o convoca, a Assembleia da República que o aprova, e o
Governo da República que o executa (cf. artigo 17º da Lei 44/86, de 30.09 (regime do Estado
de Sítio e do Estado de Emergência).
Em Portugal cessou o estado de emergência, estando por isso vedada a suspensão do
direito à liberdade, com aquele fundamento.
*
As restrições de direitos, liberdades e garantias constitucionais, previstas e admitidas no
artigo 18º/2 da CRP, e sujeitas aos princípios constitucionais da proporcionalidade, da
necessidade e da adequação, constituem matéria da competência da reserva relativa de
competência da Assembleia da República, pelo que apenas podem operar por lei da
Assembleia da República, ou então por decreto lei do governo, dispondo este de lei de
autorização legislativa do Parlamento, e não por normativos emanados dos órgãos próprios
da Região Autónoma.
Assim, da mesma forma que enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação
dos artigos 18º/2/3, 110º, 112º, n.º 2 e 4, 165/1/b), 225º/3 e 227° da CRP, os normativos
legitimadores da quarentena obrigatória e o isolamento profilático, designadamente os pontos
1, al. b), c), 4, 5 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020 de 31 de Julho de 2020,
também o ponto 6 da mesma Resolução que cria procedimento de validação judicial das
mesmas quarentena e isolamento profilático, padece de inconstitucionalidade orgânica por
violação dos mesmos normativos, por se tratar de matéria de competência reservada da
Assembleia da República.
E se assim é não valida o tribunal tal procedimento, indeferindo liminarmente o
requerido.
*
DECISÃO:
Desaplico por inconstitucionalidade orgânica o ponto 6 da Resolução do Conselho do
Governo n.º 207/2020 de 31 de julho de 2020 e em consequência, indefiro liminarmente o
pedido de validação do decretamento de quarentena obrigatória de A. e do isolamento
profilático de B., C. e de D., decretado pelo Delegado de Saúde de Lagoa.». Comentado [HM1]: Decisão do Tribunal a quo

2. O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade desta decisão, ao Comentado [HM2]: MP recorre – 280 n.º 1 al. a) e n.º 3 da
abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, CRP
de 15 de novembro, “LTC”), na parte em que desaplicou o n.º 6 da Resolução do Conselho
do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho de 2020, que cria um procedimento de validação
judicial da quarentena e isolamento profilático, com fundamento em inconstitucionalidade
orgânica, por violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º, n.º 2 e 4, 165.º, n.º 1, al. b),
225.º, n.º 3 e 227.° da CRP.

3. Admitido o recurso e subidos os autos, foi determinada a produção de alegações. O


Ministério Público apresentou alegações nos seguintes termos:
«3.3 Da análise desta Decisão decorre que o Tribunal não fez qualquer apreciação, factual
ou jurídica, dos factos constantes do requerimento, nem quanto à comprovação dos mesmos
e à sua conformidade legal, nem quanto à verificação ou não dos pressupostos de prazo
exigidos por lei para a o requerimento de validação judicial previsto na Resolução ora em
causa.
Optou o Tribunal por fundamentar a sua decisão de indeferimento liminar do pedido de
validação do decretamento da quarentena e de isolamento profilático, na
inconstitucionalidade orgânica do ponto 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º
207/2020 de 31 de julho de 2020, baseando-se na consideração de que se o ponto n.º 1,
alíneas b) e c) e os pontos 4 e 5 dessa mesma Resolução padecem de inconstitucionalidade
orgânica por violação dos artigos n.ºs 18.º n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º nºs 2 e 4, 165.º n.ºs 1 alínea
b), 225.º, n.º 3 e 227° da CRP, também, e consequentemente, o ponto 6 da mesma resolução
enferma da mesma inconstitucionalidade orgânica.
Veja-se que o Tribunal, no caso vertente, não se pronuncia sobre se é ou não aplicável à
situação, aliás distinta entre si, de cada um dos passageiros em causa algumas, e quais, das
disposições dos pontos 1, alíneas b) e c), e pontos 4 e 5 da Resolução que considera sofrerem
de inconstitucionalidade orgânica.
Limita-se a considerações genéricas sobre pontos do diploma e respetiva
inconstitucionalidade, por referência a um conjunto de normativos constitucionais, como
base de raciocínio para considerar organicamente inconstitucional a norma do ponto 6 da
Resolução n.º 207/2020, de 31 de julho.
Não está, assim, em causa no presente recurso, a apreciação da constitucionalidade das
normas do ponto n.º 1 alíneas b) e c) e pontos nºs 4 e 5 da Resolução, nem poderia estar,
dado que nenhum destes dispositivos foi aplicado ou recusada a respetiva aplicação na
decisão em apreciação.
Por outro lado, não é conhecida qualquer jurisprudência deste Tribunal Constitucional
relativa às referidas normas da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de
julho. Nem existe qualquer declaração de inconstitucionalidade das mesmas com natureza
vinculativa para o Tribunal.
Afigura-se-nos, assim, algo incompreensível a pressuposição, sem mais, de
inconstitucionalidade de que se parte na decisão, relativamente a determinadas normas da
Resolução, como fundamento para concluir por um juízo de inconstitucionalidade de outra
norma, distinta daquelas, do mesmo diploma.
De qualquer modo, mesmo a verificar-se, no campo meramente hipotético, que tais
normas tivessem sido, pelas entidades competentes e segundo a forma prevista na lei,
consideradas inconstitucionais, tal decisão não seria suscetível de abranger, automaticamente,
outra norma do mesmo diploma.
A apreciação da constitucionalidade, em qualquer uma das suas formas, faz-se
relativamente a normas e não quanto a diplomas no seu conjunto, mesmo quando está em
causa, a apreciação de todas as normas de um determinado diploma.
3.4 O que está aqui em causa, como claramente decorre da decisão recorrida e do
requerimento de recurso interposto pelo Ministério Público, é a apreciação da
constitucionalidade da norma do ponto 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º
207/2020, de 31 de julho de 2020, na medida em que cria um procedimento de validação
judicial da decisão da autoridade de saúde de decretar quarentena e isolamento profilático
face ao disposto nos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º, n.º 2 e 4, 165.º, n.º 1, al. b), 225.º, n.º
3 e 227.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
A decisão recorrida na sua fundamentação não explicita qual o direito
constitucionalmente protegido é restringido ou limitado pela previsão de um procedimento
de intervenção judicial que, na sua essência, determina a apreciação por um tribunal de uma
decisão da administração. Apesar de na decisão existir uma referência ao direito à liberdade
e segurança dos cidadãos, não se nos afigura que a norma do ponto 6 da Resolução do
Governo n.º 207/20, de 15 de julho, consubstancie qualquer violação de tais direitos.
Também nos parece claro que tal norma não coloca em causa nenhum dos direitos
enunciados no título II da Parte I da Constituição da República Portuguesa (artigos 24º a
57º), que determine estarmos perante matéria de reserva relativa de competência legislativa
da Assembleia da República, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição
da República Portuguesa.
Note-se que nos termos da decisão recorrida não se verificou qualquer ponderação de
eventual violação de outras disposições constitucionais, que não as referidas, cuja matéria se
constitui, igualmente como reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República, como acontece com a organização e competência dos Tribunais e do Ministério
Público.
4. Em conclusão:
A norma do ponto 6. da Resolução do Conselho do Governo dos Açores n.º 207/20,
de 15 de julho, quando estabelece um procedimento de validação judicial da decisão da
autoridade de saúde que decreta a quarentena ou o isolamento profilático, não é
organicamente inconstitucional, uma vez que esta matéria, por não se enquadrar em qualquer
um dos dispositivos constitucionais, relativos a direitos, liberdades e garantias enunciados no
título II da Parte I da Constituição da República Portuguesa (artigos 24º a 57º), não é matéria
de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos da
alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
Pelo que, não subsiste, no caso vertente, violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º,
n.º 2 e 4, 165.º, n.º 1, al. b), 225.º, n.º 3 e 227.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
5. Assim, por todas as razões invocadas deve este Tribunal:
a) Dar provimento ao recurso obrigatório de constitucionalidade interposto pelo
Ministério Público;
b) Considerar constitucionalmente conforme o ponto 6 da Resolução do Governo dos
Açores n.º 207/20, de 31 de julho.
c) Revogar, nessa medida a Decisão do Juízo de Instrução Criminal de Ponta Delgada,
do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, proferido no dia 11 de setembro de 2020, no
processo n.º 1930/20.9T8PDL».

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação
A) Da delimitação do objeto do recurso
4. A decisão recorrida desaplicou, com fundamento em inconstitucionalidade
orgânica, o n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho
de 2020, emanada do Governo Regional da Região Autónoma dos Açores, que estatui
o seguinte:
«Nos casos em que seja decretada quarentena obrigatória pela autoridade de saúde, a
mesma deve, no prazo de 24 horas, ser submetida a validação judicial junto do tribunal
competente.» Comentado [HM3]: Objeto do recurso e reprodução da
norma em causa
A Resolução em causa foi aprovada «nos termos das alíneas c) do n.º 2 do artigo 59.º e
b) do n.º 2 do artigo 66.º e b), d) e l) do n.º 1 do artigo 90.º, todos do Estatuto Político-
Administrativo da Região Autónoma dos Açores, do n.º 2 do artigo 2.º da Lei de Bases da
Proteção Civil, da Base 34 da Lei de Bases da Saúde, os Capítulos IV e V do Regulamento
Sanitário Internacional, aprovado para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 299/71, de 13 de
julho, conjugados com os artigos 6.º, 11.º e 12.º do Decreto Legislativo Regional n.º
26/2019/A, de 22 de novembro, com o artigo 45.º do Decreto Legislativo Regional n.º
28/99/A, de 31 de Julho, na sua redação atual, e com as alíneas a), e) e f) do n.º 1 do artigo
4.º e c), d) g) e l) do artigo 7.º, todos do Decreto Regulamentar Regional n.º 11/2001/A, de
10 de Setembro, na sua redação atual».
Na fundamentação da decisão recorrida, refere-se que «da mesma forma que
enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação dos artigos 18º/2/3, 110º,
112º, n.º 2 e 4, 165/1/b), 225º/3 e 227° da CRP, os normativos legitimadores da
quarentena obrigatória e o isolamento profilático, designadamente os pontos 1, al.
b), c), 4, 5 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020 de 31 de Julho de 2020,
também o ponto 6 da mesma Resolução que cria procedimento de validação judicial
das mesmas quarentena e isolamento profilático, padece de inconstitucionalidade
orgânica por violação dos mesmos normativos, por se tratar de matéria de
competência reservada da Assembleia da República».
Os citados n.ºs 1, al. b), 4 e 5 daquela Resolução preveem, segundo a interpretação feita
pelo tribunal recorrido, as situações em que a autoridade regional de saúde pode decretar
medida de confinamento – quarentena ou isolamento profilático – sujeita ao procedimento
de validação a que se reporta o n.º 6 do mesmo normativo. É o seguinte o teor de tais
preceitos:
«1 - Todos os passageiros que desembarquem nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria,
São Miguel, Terceira, Pico e Faial, provenientes de aeroportos localizados em zonas
consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão
comunitária ativa ou com cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2, ficam
obrigados a cumprir, em alternativa, um dos seguintes procedimentos:
a) Apresentar comprovativo, em suporte digital ou de papel, de documento emitido por
laboratório nacional ou internacional, que ateste a realização de teste de despiste ao SARS-
CoV-2, realizado pela metodologia RT-PCR, nas 72 horas antes da partida do voo com
destino final aos Açores, de onde conste a identificação do passageiro, o laboratório onde o
mesmo foi realizado, a data de realização do teste e o resultado NEGATIVO. Neste caso, e
prolongando-se a estadia por sete ou mais dias, o mesmo deve, no 6.º dia, a contar da data
de realização do teste de despiste ao SARS-CoV-2, contactar a autoridade de saúde do
concelho em que reside ou está alojado, tendo em vista a realização de novo teste de despiste
ao SARS-CoV-2, a promover pela autoridade de saúde local, cujo resultado ser-lhe-á
comunicado; ou
b) Realizar, com recolha de amostras biológicas à chegada, teste de despiste ao SARS-
CoV-2, a promover pela autoridade de saúde, devendo permanecer em isolamento profilático
no seu domicílio ou local onde está alojado, até lhe ser comunicado o resultado do mesmo.
Neste caso, e prolongando-se a estadia por sete ou mais dias, o mesmo deve, no 6.º dia, a
contar da data de realização do teste de despiste ao SARS-CoV-2, contactar a autoridade de
saúde do concelho em que reside ou está alojado, tendo em vista a realização de novo teste
de despiste ao SARS-CoV-2, a promover pela autoridade de saúde local, cujo resultado ser-
lhe-á comunicado; ou
c) Regressar ao destino de origem ou deslocar-se para qualquer destino fora da Região,
cumprindo, até à hora do voo, isolamento profilático em hotel indicado para o efeito.
[…]
4 - Nos casos do resultado do teste ao vírus ao SARS-CoV-2 ser POSITIVO, a
autoridade de saúde local, no âmbito das suas competências, determinará os procedimentos
a seguir.
5 - Caso o passageiro recuse o cumprimento de todos os procedimentos previstos no
número 1, a autoridade de saúde local pode, no âmbito das suas competências, determinar a
realização de quarentena obrigatória, pelo período de tempo necessário à obtenção de
resultado de teste de despiste ao vírus SARS-CoV-2, ou, caso o passageiro não concorde
realizá-lo, pelo período de tempo necessário a completarem-se catorze dias desde a sua
chegada à Região, em hotel definido para o efeito, sendo os custos da mesma imputados ao
passageiro que assim proceda.».
Embora faça referência aos n.ºs 1, alíneas b) e c), e aos n.ºs 4 e 5 da Resolução do
Conselho do Governo n.º 207/2020, que considera inconstitucionais, a verdade é que a única
norma efetivamente desaplicada pela decisão recorrida é o referido n.º 6 daquela Resolução,
sendo que, na perspetiva do tribunal a quo, são idênticos os fundamentos que determinam a
inconstitucionalidade orgânica de todos aqueles preceitos.
No caso concreto, tendo sido requerida, na sequência de rastreio a viajantes
desembarcados no aeroporto de Ponta Delgada, a validação da quarentena obrigatória de um
passageiro que testou positivo para o vírus SARS-COV-2, bem como do isolamento
profilático de outras três pessoas, consideradas «contatos próximos de alto risco», o tribunal a
quo indeferiu liminarmente tal pedido, com fundamento na desaplicação da norma que criou
o procedimento de validação judicial ao abrigo do qual o mesmo havia sido formulado, isto
é, o referido n.º 6 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020.
Consequentemente, não estão em causa nem os restantes preceitos da referida
Resolução, nem os preceitos ao abrigo dos quais a autoridade regional de saúde determinou
tais medidas – no caso da quarentena obrigatória, a «Norma n.º 004/2020, de 25 de abril da
Direção Geral da Saúde [...], considerando o disposto no artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de
21 de agosto, e na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do regime da situação de alerta e de
contingência anexo à Resolução do Conselho de Ministros n.º 55-A/2020, de 31 de julho, na
sua atual redação» (cf. fls. 4) ; e, quanto aos isolamentos profiláticos, a «Norma n.º 15/2020, de
24 de julho da Direção Geral da Saúde […] considerando o disposto no artigo 17.º da Lei n.º
81/2009, de 21 de agosto» (cf. fls. 5 a 7).
Em qualquer caso, refira-se que o âmbito de aplicação do n.º 6 em apreciação é mais
amplo, na medida em que vale igualmente em caso de inobservância das regras relativas às
«deslocações interilhas, por via aérea ou marítima», de «passageiros provenientes do exterior
da Região» (n.º 10, alínea e), e aos «tripulantes dos iates que atraquem nos portos e marinas
da Região» (n.º 11).
O objeto material do presente recurso integra, por isso, apenas a norma do n.º 6 da
Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, emanada do Governo Regional da Região
Autónoma dos Açores, que cria um procedimento de validação judicial da quarentena obrigatória ou
isolamento profilático decretados pela autoridade de saúde regional relativamente a passageiros que
desembarquem nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial, provenientes de
aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização Mundial de Saúde como sendo zonas de
transmissão comunitária ativa ou com cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2.

B) Do mérito do recurso
5. Na sua fundamentação, o tribunal a quo partiu do pressuposto de que o n.º 1, alíneas
b) e c), e os n.ºs 4 e 5 da Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020 são
organicamente inconstitucionais, por violação dos artigos 18.º, n.ºs 2 e 3, 110.º, 112.º, n.º 2 e
4, 165.º, n.º 1, b), 225.º, n.º 3, e 227.º da Constituição, e, por idênticos fundamentos, concluiu
pela inconstitucionalidade do n.º 6 da mesma Resolução, única norma que efetivamente
desaplicou. Com efeito, segundo a decisão recorrida, estão em causa «restrições de
direitos, liberdades e garantias constitucionais, previstas e admitidas no artigo 18º/2
da CRP, e sujeitas aos princípios constitucionais da proporcionalidade, da
necessidade e da adequação», as quais «constituem matéria da competência da
reserva relativa de competência da Assembleia da República, pelo que apenas podem
operar por lei da Assembleia da República, ou então por decreto lei do governo,
dispondo este de lei de autorização legislativa do Parlamento, e não por normativos
emanados dos órgãos próprios da Região Autónoma».
O recorrente opõe-se a esta perspetiva, entendendo que não se vê que «direito
constitucionalmente protegido é restringido ou limitado pela previsão de um procedimento
de intervenção judicial que, na sua essência, determina a apreciação por um tribunal de uma
decisão da administração. Apesar de na decisão [recorrida] existir uma referência ao direito à
liberdade e segurança dos cidadãos, não se nos afigura que a norma do ponto 6 da Resolução
do Governo n.º 207/20, de 15 de julho, consubstancie qualquer violação de tais direitos».
Cumpre, por isso, apreciar se a norma desaplicada, por tratar de matéria enquadrável na
previsão do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, invade a reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República. Com efeito, tal preceito, constitucional,
sob a epígrafe «Reserva relativa de competência legislativa», estabelece o seguinte:
«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes
matérias, salvo autorização ao Governo:
[…]
b) Direitos, liberdades e garantias;».

6. Sobre o alcance deste preceito constitucional, referiu-se o seguinte no Acórdão n.º


424/2020 (acessível, assim como os demais adiante referidos, a partir da
ligação, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/):
«Esta previsão “[…] inclui seguramente a regulamentação de todos os direitos
enunciados no Título II da Parte I da Constituição [contêm-se neste título os artigos 24.º a
57.º] […]. A reserva de competência legislativa da AR nesta matéria vale não apenas para as
restrições (art. 18.º), mas também para toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos,
liberdades e garantias” […].
Trata-se de um entendimento pacificamente consolidado na jurisprudência
constitucional, entendendo-se que (tomando de empréstimo as palavras do Acórdão n.º
362/2011):
“[T]odo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva
relativa de competência da Assembleia da República (art. 165.º, n.º 1, al. b), da CRP).
Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza
carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha
particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um
direito.”.»
Assim, seguindo este entendimento, mesmo que a norma em causa não se configure, em
si mesma, como restritiva de direitos liberdades e garantias, importa analisar se a mesma
constitui norma disciplinadora de algum dos direitos, liberdades e garantias previstos na
Constituição, estando, por isso, abrangida na previsão do referido artigo 165.º, n.º 1, alínea
b).

7. Se é verdade que a norma questionada nos presentes autos, ao criar um procedimento


de validação judicial de confinamento obrigatório decretado pela autoridade regional de
saúde, não constitui, em si mesma, uma restrição que afete direitos, liberdades e garantias,
isto é, que contenda diretamente com qualquer dos direitos enunciados no título II da Parte
I da Constituição da República Portuguesa (artigos 24.º a 57.º); não é menos verdade, que,
ao estatuir sobre a validação de medidas administrativas lesivas de direitos, liberdades e
garantias – desde logo, ao direito à liberdade, na vertente da circulação e de não se ficar
circunscrito a um determinado local (habitação ou quarto de hotel, por exemplo) –, a mesma
norma também respeita necessariamente à disciplina de tal matéria.
De resto, a validação judicial só se justifica por estar em causa uma liberdade
fundamental – trata-se da instituição de uma garantia destinada a proteger o direito à
liberdade afetado, analogamente ao que se prevê nas diversas situações mencionadas no n.º 3
do artigo 27.º da Constituição. A conexão entre a garantia judicial instituída no n.º 6 da
Resolução em análise e a ingerência no referido direito consequente da determinação de
quarentena obrigatória ou de isolamento profilático é evidente.
Com interesse para esta matéria, no já referido Acórdão n.º 424/2020, a respeito das
medidas previstas nas normas contidas nos n.ºs 1 a 4 e 7 da Resolução do Conselho do
Governo n.º 77/2020 e nos n.ºs 3, alínea e), e 11 da Resolução do Conselho do Governo n.º
123/2020 (nos termos das quais era imposto o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos
passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores), depois de se transcrever os n.ºs
1 a 3 do artigo 27.º da Constituição, escreveu-se o seguinte:
«No Acórdão n.º 479/94, o Tribunal pronunciou-se sobre o sentido da norma do artigo
27.º da Constituição nos termos seguintes:
“[…]
A norma do artigo 27.º da Constituição é particularmente exigente em relação às restrições que
consente ao direito fundamental nela consagrado, impondo ao legislador um grau de vinculação muito
intenso.
Antes ainda da revisão constitucional de 1982, Figueiredo Dias considerava que “nenhuma ordem
jurídica pode viver e manter-se sem a utilização de certas medidas que obriguem fisicamente as pessoas a
apresentarem-se a certos atos ou a submeterem-se a certas formalidades”, sustentando não encontrar
qualquer óbice a que, “para além da prisão preventiva, seja constitucionalmente admissível a detenção, a
custódia, a guarda à vista ou a vinculação de presença. Ponto é que, naturalmente, a aplicação de tais
medidas seja contida dentro de um estrito princípio de necessidade e de proporcionalidade e seja revestido de
efetivas garantias, nomeadamente quanto à sua judicialidade tendencialmente imediata nos casos em que a
situação de restrição ou privação da liberdade deva manter-se” (cfr. “A Revisão Constitucional, o Processo
Penal e os Tribunais”, Livros Horizonte, 1981, pp. 86 e 87).
Mas, como já se observou, as revisões constitucionais não alargaram significativamente o quadro das
exceções ao princípio do direito à liberdade, havendo até, a revisão de 1982, introduzindo uma alteração
na regra do n.º 2 em termos de lhe emprestar, se não um acréscimo, ao menos uma acrescida precisão na
garantia ali consagrada.
Neste contexto jurídico-constitucional tem sido reconhecido pela doutrina como de “duvidosa
constitucionalidade” a consagração legal de uma medida de detenção para fins exclusivos de identificação,
quando a identificação não puder ser de imediato provada (cfr. Maia Gonçalves, ob. cit., pp. 319 e 324 e
João Castro e Sousa, Os meios de coação no novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual
Penal – O novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1992, pp. 160 e 161).
Com efeito, o procedimento de identificação a que se reporta o artigo 3.º, n.º 1, do Decreto sob exame,
ao permitir que se imponha aos identificandos, com base em exclusivas razões de segurança interna, uma
permanência num posto policial que pode prolongar-se até seis horas, há de considerar-se como uma privação
total da liberdade não cabível no quadro das exceções que taxativa e tarifadamente a Constituição prevê.
Tem-se por inaceitável o entendimento de que a privação da liberdade assim verificada possa ser
entendida como mera restrição da liberdade, implicando tão só um condicionamento da liberdade
ambulatória dos identificandos autorizado no quadro das restrições consentidas pela Constituição em sede
de direitos, liberdades e garantias.
E tem-se por inaceitável, porque a norma sob sindicância na sua “máxima dimensão abstrata” –
permanência coativa até seis horas em posto policial para efeito de identificação por razões de segurança
interna – (e só esta aqui importa considerar, sendo de todo irrelevante, dentro da delimitação do objeto do
pedido, a consideração de outras hipotéticas dimensões), se traduz manifestamente numa privação da
liberdade, numa privação total da liberdade, já que o identificando durante este lapso temporal fica
circunscrito ao espaço confinado das instalações de um posto policial, de todo impedido de circular e de
livremente se movimentar.
Independentemente da questão de se averiguar, com inteiro rigor dogmático, qual a diferença de
natureza ou de grau e de intensidade entre a “privação total ou parcial da liberdade” e “as restrições à
liberdade que não se traduzem na sua privação total ou parcial” [cfr. a decisão de 6 de novembro de 1980
(Caso Guzzardi contra a Itália) do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, Publications de
la Cour Européenne des Droits de l'Homme, Série A – Arrêts et decisions, vol.
39, Affaire Guzzardi, Conseil de L'Europe, Strasbourg, 1981, pp. 32 e 33, na qual se considera a
situação da “privação da liberdade” (artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e a
restrição à liberdade de circulação (artigo 2.º do Protocolo Adicional n.º 4)] poder-se-á dizer que a distinção
se suporta num critério qualitativo e não quantitativo, isto é, a privação da liberdade atinge diretamente
uma dimensão da dignidade da pessoa humana, enquanto a mera restrição ou limitação da liberdade
apenas condiciona o pleno desenvolvimento dessa dimensão.
Segundo Maunz-Dürig, a privação da liberdade (Freiheitsentziehung) existe quando alguém
contra a sua vontade é confinado, coativamente, através do poder público, a um local delimitado, de modo
que a liberdade corporal-espacial de movimento lhe é subtraída. Local delimitado (eng umgrenzter Ort)
pode ser o espaço de um edifício ou um acampamento. Haverá ainda privação da liberdade quando a pessoa
detida puder deixar o estabelecimento prisional para trabalhar sob vigilância das autoridades prisionais.
A mera limitação de liberdade (Freiheitsbeschränkung) existe quando alguém é impedido, contra
a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer
num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade,
subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12).
A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à
liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência
do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida).
A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma
perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades
fundamentais que o integram.
[…]” (…).
Se é certo que os âmbitos dogmáticos de privação e de restrição e, acima de tudo, a
delimitação da sua fronteira in concreto não são unívocos (cfr., designadamente, as declarações
de voto apostas ao Acórdão n.º 479/94), o certo é que o Tribunal tem regressado a esta
jurisprudência (cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 185/96, 83/2001, 471/2001,
204/2015, 220/2015, 228/2015 e 463/2016) e o Tribunal Constitucional Federal Alemão
também não abandonou, no essencial, os traços gerais da apontada distinção [cfr.,
recentemente, o acórdão de 24/07/2018 (2 BvR 309/15 e 2 BvR 502/16), §67, bem como
as citações ali indicadas: “2. a) O âmbito de proteção do artigo 2.º, n.º 2-2, da Lei Fundamental
abrange tanto as medidas restritivas da liberdade (freiheitsbeschränkende Maßnahme) como as
medidas privativas da liberdade (freiheitsentziehende Maßnahme); o Tribunal Constitucional
distingue estas categorias de medidas com base na intensidade da interferência [na liberdade].
Um ato constituirá uma restrição da liberdade se alguém for impedido por autoridade pública,
contra a sua vontade, de se deslocar para um lugar ou de permanecer num lugar que, de outro
modo seria – no plano de facto e no plano jurídico – de acesso livre para si. Um ato constituirá
uma privação da liberdade, o modo mais severo de restrição da liberdade, se suprimir a
liberdade de movimento – que exista, em termos gerais, nas concretas circunstâncias de facto
e de direito – nas suas diversas vertentes. A privação da liberdade caracteriza-se pela particular
intensidade da interferência, e ainda pela sua duração, que não deve ser meramente de curto
prazo” – v., ainda, o acórdão de 15/05/2002 (2 BvR 2292/00), §§ 24 e 25, ambos disponíveis
em www.bundesverfassungsgericht.de/].
Está em causa, em suma, no artigo 27.º da Constituição, “[…] o direito à liberdade física,
à possibilidade de movimentação sem constrangimentos. Tutela-se aqui, conforme tem sido
consensualmente reconhecido, um aspeto parcelar e específico das diversas dimensões em
que se manifesta a liberdade humana, o direito à liberdade física, entendida «como liberdade
de movimentos corpóreos, de ‘ir e vir’, a liberdade ambulatória ou de locomoção» (cfr. Jorge
Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra
Editora, 2010, p. 638) ou como «direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo
fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar» (cfr. J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª
Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 478). É este também o entendimento que, de forma
reiterada, tem sido sustentado pelo Tribunal Constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos
n.ºs 479/94, 663/98, 471/2001, 71/2010, 181/2010 e 54/2012)” (Acórdão n.º 204/2015),
incluindo “o direito de não ser aprisionado ou fisicamente impedido ou constrangido por
parte de outrem” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 479).
Como explica José Lobo Moutinho, “[o] facto de a Constituição, e também a doutrina e
a jurisprudência, falarem a propósito da liberdade física assim entendida, de
liberdade tout court (ou, como faz a Constituição italiana, de liberdade pessoal), sem outra
adjetivação, é uma mera figura de estilo, explicável pelo facto de a liberdade física, como as
suas restrições, enquanto justamente físicas, se mostrarem mais claramente apreensíveis e
aparecerem como a forma mais direta de compressão da liberdade humana, pelo facto de,
por elas, se limitarem indiretamente muitas outras expressões da liberdade – pelo que se pode
dizer que a liberdade física as precede e condiciona
(Vezio Crisafulli/Livio Paladin, Commentario breve alla Constituzione, Padova, 1990, pág.
79) – e pela gravidade que daí lhes advém (bem expressa no facto de, entre nós, a sua privação
estar incluída no conteúdo das mais graves de entre as penas: as de prisão” (anotação ao
artigo 27.º, Constituição Portuguesa Anotada, org. Jorge Miranda e Rui Medeiros, vol. II, 2.ª
ed., Lisboa, 2018, p. 544). Este entendimento da “liberdade” prevista no artigo 27.º da
Constituição enquanto (também e principalmente) “liberdade física”, que as exceções do n.º
3 confirmam em polo negativo, corresponde ao sentido interpretativo que tem sido adotado
na jurisprudência constitucional – v., designadamente, os Acórdãos n.ºs 479/94, 185/96,
83/2001, 471/2001, 204/2015, 220/2015, 228/2015 e 463/2016.».
Seguidamente, considerando que este Tribunal, «para aferir de uma eventual privação ou
restrição, deve atentar, particularmente, na intensidade da afetação da liberdade resultante da
aplicação das normas cuja aplicação foi recusada» e, tendo em conta, para o efeito, o contexto
dos factos fixados na decisão então recorrida, apenas «na medida em que estes revelam a
potencialidade abstrata de restrição resultante da execução das normas aplicadas» e
«enquanto acontecimentos reveladores da intensidade da afetação visada ou consentida pelas
normas», conclui-se o seguinte em tal aresto:
«Medidas como as que se acabam de traçar – elencadas no contexto já referido no
começo deste item – têm, evidentemente, um impacto significativo (o que quase corresponde
a um eufemismo) na liberdade dos cidadãos [“[o] gozo do direito à liberdade pessoal é afetado
pela imposição de quarentena obrigatória aos passageiros provenientes do estrangeiro e pela
imposição de isolamento a pessoas suspeitas ou confirmadas com teste positivo de infeção
pelo novo coronavírus” – Alessandra
Spadaro,COVID19: Testing the Limits of Human Rights, European Journal of Risk Regula
tion, European Journal of Risk Regulation, 11(2), 317-325. doi:10.1017/err.2020.27].
Em coerência com a jurisprudência constitucional anterior, impõe-se concluir que a
maior parte das restrições descritas – mas, acima de tudo, o seu conjunto – corresponde,
inequivocamente (e recuperando a classificação do Acórdão n.º 479/94), a uma “privação
total da liberdade”. Assim se conclui, seja pela verificação de que a norma, “na sua máxima
dimensão abstrata”, implica que o visado “fica circunscrito [a um] espaço confinado […], de
todo impedido de circular e de livremente se movimentar” (expressões do referido Acórdão),
seja ao constatar, por comparação, que a execução de uma medida como a descrita em muito
pouco [e, descontada a envolvência (um quarto de hotel) porventura mais “amigável”, em
nada de substancialmente significativo] se afasta do que resultaria da aplicação de uma
(hipotética) pena curta de prisão, porventura até com aspetos mais gravosos (por exemplo, a
falta de acesso a um espaço comum para exercício físico), seja até, por maioria de razão, face
ao que se concluiu no citado Acórdão n.º 479/94, no qual se qualificou como inequívoca
privação da liberdade a circunscrição a um espaço confinado até 6 horas (quando no caso
dos autos está em causa um período até 56 vezes superior a esse).
Em suma, as normas sub judice preveem medidas de privação da liberdade, de sinal
contrário à previsão do artigo 27.º, n.º 2, da Constituição e ao direito à liberdade consagrado
no n.º 1 do mesmo artigo, na sua vertente de liberdade pessoal.».

8. Estas considerações, respeitantes às medidas de “confinamento obrigatório”


analisadas neste aresto, são transponíveis para o caso dos autos. Isto é, deverá igualmente
entender-se que as medidas de confinamento obrigatório – quarentena e isolamento
profilático – decretadas pela autoridade regional de saúde (que a norma objeto dos
presentes autos exige que sejam submetidas a validação judicial) constituem, em si
mesmas, pelos constrangimentos que implicam para os visados (o confinamento a
um espaço circunscrito, com a consequente restrição à liberdade de circulação e de
movimentação), uma restrição ao direito à liberdade, previsto no artigo 27.º da CRP.
Assim, a norma ora questionada, embora não estabeleça qualquer privação da liberdade,
ao sujeitar a validação judicial as citadas medidas de confinamento obrigatório decretadas
pela autoridade regional de saúde – que são medidas administrativas lesivas do direito à liberdade das
pessoas visadas –, está a disciplinar matéria respeitante ao regime dos direitos, liberdades e
garantias, mais concretamente, matéria atinente ao direito à liberdade consagrado no referido
artigo 27.º da Constituição. A validação judicial é instituída porque está em causa uma
liberdade pessoal fundamental e destina-se a garantir que a limitação de tal liberdade só
ocorre nos casos normativamente previstos. A validação judicial em apreço é, deste modo,
uma medida de controlo da legalidade de medidas administrativas lesivas do direito à
liberdade.
Na perspetiva do autor da norma, o confinamento decretado administrativamente e o
seu controlo judicial são indissociáveis: o primeiro é legítimo (e proporcional) desde que (e
porque) controlado pelo poder judicial. Neste caso, até os termos legais apontam neste
sentido: sem a “validação judicial”, o confinamento administrativo é “inválido” (ou
ilegítimo).
Por estas razões, entende-se que a matéria sobre que incide o n.º 6 da Resolução
do Conselho do Governo n.º 207/2020 se encontra abrangida pela reserva de
competência legislativa da Assembleia da República prevista na alínea b) do n.º 1 do
artigo 165.º da Constituição. Sendo certo que a competência para legislar sobre tal
matéria só pode ser objeto de autorização ao Governo (da República), e não ao
Governo Regional (cf. os artigos 227.º, n.º 1, alínea b), e 228.º, n.º 1, da Constituição),
é de concluir pela inconstitucionalidade orgânica da norma cuja aplicação foi
recusada e pela consequente improcedência do presente recurso.

III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nas alíneas b) e p) do n.º 1 do
artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, a norma contida no n.º 6 da
Resolução do Conselho do Governo n.º 207/2020, de 31 de julho de 2020, emanada
do Governo Regional da Região Autónoma dos Açores, que cria um procedimento
de validação judicial da quarentena obrigatória ou isolamento profilático decretados
pela autoridade regional de saúde relativamente a passageiros que desembarquem
nos aeroportos nas ilhas de Santa Maria, São Miguel, Terceira, Pico e Faial,
provenientes de aeroportos localizados em zonas consideradas pela Organização
Mundial de Saúde como sendo zonas de transmissão comunitária ativa ou com
cadeias de transmissão ativas do vírus SARS-CoV-2; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso.
Sem custas.

Lisboa, 26 de novembro de 2020 - Pedro Machete – Fernando Vaz Ventura – Mariana Canotilho
– Manuel da Costa Andrade
O relator atesta o voto de conformidade ao presente acórdão da Senhora
Conselheira Assunção Raimundo.
Pedro Machete

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