Você está na página 1de 108

FACULDADE AUTÔNOMA DE DIREITO DE SÃO PAULO

CURSO DIREITO

EMILIO BRACONI NETO

A ATUAL PROBLEMÁTICA JURÍDICO-ADMINISTRATIVA DO


SISTEMA DUALISTA DE INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES
AERONÁUTICOS

SÃO PAULO
2020

EMILIO BRACONI NETO

A ATUAL PROBLEMÁTICA JURÍDICO-ADMINISTRATIVA DO


SISTEMA DUALISTA DE INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES
AERONÁUTICOS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à FADISP – Faculdade
Autônoma de Direito – como requisito à
obtenção de título de Bacharel em Direito.
Orientador: Professor Dr. Ricardo Ferreira
Dias.

SÃO PAULO

2020
B797a
Braconi Neto, Emilio
A atual problemática jurídico-administrativa do sistema dualista de
investigação de acidentes aeronáuticos / Emilio Braconi Neto. –
2020.

97 f.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Ferreira Dias.


Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Faculdade
Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP) – São Paulo, 2020.

1. Acidente aeronáutico. 2. Investigação. 3. Sipaer. I. Braconi


Neto, Emilio. II. FADISP – Faculdade Autônoma de Direito de
São Paulo. III. Título.

CDU: 347.823.37/.826
EMILIO BRACONI NETO

A ATUAL PROBLEMÁTICA JURÍDICO-ADMINISTRATIVA DO


SISTEMA DUALISTA DE INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES
AERONÁUTICOS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à FADISP – Faculdade
Autônoma de Direito – como requisito à
obtenção de título de Bacharel em Direito.
Orientador: Professor Dr. Ricardo Ferreira
Dias.

São Paulo, 12 de dezembro de 2020.

Banca Examinadora:

_________________________________________________

Professor Ricardo Ferreira Dias - Prof. Orientador

_________________________________________________

Professora Carolina Noura de Moraes Rêgo - Examinadora

_________________________________________________

Professor Joaquim Eduardo Pereira - Examinador


Dedico este trabalho àqueles que
julgarem-no digno de crítica.
Aos meus pais, pelo dom da vida
Aos meus mestres,
por terem me mostrado o caminho do saber.
Um agradecimento especial ao meu
Orientador, sempre firme e paciente.
RESUMO

No curso de ações judiciais, cujo pano de fundo seja a ocorrência de acidentes


aeronáuticos, o emprego de provas baseadas em dados extraídos de investigações
administrativo-preventivas aeronáuticas, sem que sejam observados os devidos
aspectos legais, tem se demonstrado como uma prática preocupante e
potencialmente capaz de prejudicar a prestação da tutela jurisdicional pretendida, bem
como impactar sobre o desempenho geral das atividades de prevenção a acidentes
aéreos. Diante disso, o presente trabalho propõe um estudo acerca da problemática
decorrente da empregabilidade da investigação técnica de acidentes aéreos para fins
probatórios judiciais e administrativos, com foco sobre a cadeia de efeitos colaterais
que o emprego descriterioso dessas informações podem deflagrar no âmbito da
atuação dos diferentes órgãos envolvidos. Com supedâneo na interpretação
sistemática e no diálogo das diferentes fontes normativas que regem o sistema de
investigação judicial e administrativa, tem-se como expectativa encontrar-se respostas
capazes de tornarem inequívocas as vedações legais que limitam o alcance da
investigação aeronáutica para fins probatórios, analisando-se os principais aspectos
principiológicos e teleológicos da legislação aeronáutica pertinente, bem como sua
contraposição face aos ditames gerais que balizam o sistema jurídico-processual.
Com a ótica voltada às linhas que tangem a relativa incompatibilidade das provas
extraídas da investigação aeronáutica diante de garantias fundamentais do direito,
pretende-se, ao fim e ao cabo, demonstrar-se à luz do devido processo legal: os
critérios essenciais para o justo ingresso das fontes aeronáuticas ao restrito universo
do direito probatório; de modo a tornar evidente que a estrita observância aos critérios
legais, possibilita não somente a admissão da prova ao bojo da ação judicial, como
também a justa consecução do direito de pleno acesso ao Judiciário; sem que disso,
registrem-se decisões judiciais obtusas; além de prejuízos colaterais à atividade
preventiva de cunho administrativo aeronáutico.

Palavras-chave: Acidente aeronáutico. Investigação. Sipaer. Direito penal. Provas


técnicas.
ABSTRACT

In lawsuits arising from airplane accidents, the use of technical data extracted from
safety investigations as matter of judicial proof, without watching rules and precepts of
law, may lead into a worrisome practice, capable to affect, at same time, the judicial
activity and the air safety and accident prevention system effectiveness. This paper
proposes the analysis under such scenario, regarding the use of technical data from
air crashes safety investigations, unduly destined to the evidential instruction in
lawsuits based on aviation accidents cases, in addition to the respective list of side
effects that the practice starts in the scope of the public bodies involved. Regarding
the systematic law interpretation and dialogue of legal sources, it´s expected to
overcome the general difficulties imposed by the different normative sources, in such
a way as to identify the basic aspects that guide the various systems involved, in order
to find answers capable of making unambiguous the legal restrictions that limit the
scope of certain types of evidence in the judicial and administrative process. To this
end, the detachment of the complex thematic requires the mandatory transit through
the main principles of principle and teleology that inform the system of investigation
and prevention of aeronautical accidents, as well as its opposition to the general
dictates that guide the procedural and material systems. Focusing on relative
incompatibility of aeronautical investigations in face of the fundamental guarantees of
the law, it is intended, after all, to demonstrate in the light of due legal process: the
essential criteria for the fair entry of aeronautical sources to the restricted universe
evidential law; so that, once these steps are overcome, it remains evident that strict
observance of the legal criteria allows not only the admission of evidence to the bulge
of the lawsuit, but also the fair achievement of full judiciary service access, and unfair
judicial decisions prevention, in order to, in the other hand, to provide the increasing of
the of the judicial activity and air safety and accident prevention system effectiveness.

Keywords: Aviation accident. Investigation. Sipaer. Criminal law. Technical evidence.


LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

ADIn / ADI – Ação Declaratória de Inconstitucionalidade

CBA - Código Brasileiro de Aeronáutica

CC – Código Civil Brasileiro

CENIPA – Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos

CF – Constituição Federal

CP – Código Penal Brasileiro

CPC – Código de Processo Civil

CPP – Código de Processo Penal

ICAO – Organização da Aviação Civil Internacional (OACI)

IMC – Instrument Meteorological Conditions

MCA – Manual do Comando da Aeronáutica

MP – Ministério Público

NSCA – Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica

SIPAER - Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos

STF – Supremo Tribunal Federal

STJ – Superior Tribunal de Justiça


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................1

2. O SIPAER E A INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES AÉREOS ............................4

2.1. O panorama do sistema dualista de investigação...............................................6

2.2. Breve digressão histórico-cultural do Sipaer.....................................................8

3. ELEMENTOS DICOTÔMICOS DA INVESTIGAÇÃO......................................12

3.1. O problema da terminologia.............................................................................13

3.2. Objetos da investigação administrativo-preventiva do Sipaer..........................16

3.2.1. Acidentes aeronáuticos...................................................................................18

3.2.2. Incidentes aeronáuticos...................................................................................20

3.2.3. Ocorrências de solo.........................................................................................21

3.3. Objetos do Inquérito Policial............................................................................22

3.3.1. Crime aeronáutico próprio e impróprio............................................................24

3.4. A cooperação técnica do Sipaer.....................................................................25

4. O SIPAER E SEUS PRINCÍPIOS INFORMATIVOS ......................................28

4.1. Princípio da Preservação da Vida Humana...................................................30

4.2. Princípio da Neutralidade Jurisdicional ..........................................................33

4.3. Princípio da Máxima Eficácia Preventiva........................................................36

4.4. Fontes Sipaer e os Princípios do Sigilo e da Proteção....................................41

4.4.1. Princípio da proteção......................................................................................44

4.4.2. A sigilosidade das fontes e informações Sipaer.............................................47

4.5. Princípios da Participação Voluntária e da Confiança....................................49

4.5.1. Princípio da participação voluntária................................................................50

4.5.2. Princípio da confiança....................................................................................52


5. A IMPRESTABILIDADE DA INVESTIGAÇÃO SIPAER NOS TRIBUNAIS...54

5.1. Caso helicóptero Super-Lynx (AH-11A) - MARINHA N-4008.........................55

5.2. Caso helicóptero Bell 205 – (UH-1H) – FAB 8687...........................................58

5.3. Casos envolvendo a aviação civil...................................................................59

5.3.1 Acidente LET410 – NOAR – Voo 4896 .........................................................60

5.3.2 Acidente AIRBUS A-320 – TAM – Voo 3054.................................................62

6. A INFLUÊNCIA DA INVESTIGAÇÃO SIPAER EM JULGAMENTOS..........65

6.1. Caso INFRAERO – Responsabilidade Civil.....................................................66

6.2. Caso Bandeirante P95-FAB – Colisão em voo...............................................72

7. A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E A ADI 5667/DF.......77

7.1. A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.667/DF.......................................79

7.2. Da inconstitucionalidade perante ao art. 5º da Constituição Federal.............81

7.3. Da inconstitucionalidade perante aos arts. 129 e 144 da Constituição..........82

7.4. Da inconstitucionalidade da precedência da investigação Sipaer..................84

7.5. Inconstitucionalidade da Opinio Delicti do Sipaer..........................................85

CONCLUSÃO ............................................................................................................87

REFERÊNCIAS..........................................................................................................95
1

1 - INTRODUÇÃO

O acidente aéreo é a espécie de ocorrência aeronáutica que certamente mais


abala a sociedade, e que nela deflagra uma série de debates, inclusive midiáticos,
acerca das prováveis causas da tragédia, bem como a respeito da segurança das
atividades do setor; afora os inúmeros clamores populares voltados à punição dos
responsáveis pelas eventuais mortes e destruição, comumente colhidos em eventos
trágicos de quedas de aeronaves.

Sinistros aeronáuticos configuram o provável desfecho em cenários onde a


segurança de aeronaves e da navegação aérea são submetidos a perigo, resultando,
pois, em episódios potencialmente capazes de lesarem uma imensurável gama de
bens jurídicos tutelados juridicamente, tais como a vida humana e o patrimônio; de
modo que, uma vez consumado, o acidente aéreo, é impossível dissociar sua
existência de uma incontável gama de pretensões que mais tarde repercutirão em
diferentes áreas das esferas judicial e administrativa.

Embora diversas sejam as consequências de um acidente aéreo, é no âmbito


judicial que se deflagram os mais complexos embates, posto que sob tal dimensão o
acidente aéreo afeta de modo mais contundente sensíveis bens jurídicos, em tutela
dos quais o Estado é incumbido de perquirir a responsabilidade delitiva de quem
eventualmente tenham lhes infligido algum tipo de lesão; momento em que uma série
de expedientes investigativos são então deflagrados, para que ao final, possam as
autoridades, em havendo responsáveis, impor-lhes a justa reprimenda.

A repercussão cível e penal de um acidente aéreo, ante a tutela jurisdicional


pretendida, demanda, todavia, a prévia condução da respectiva investigação policial,
que ao seu turno, será conduzida pelo órgão policial científico competente, possuindo,
ao cabo, a finalidade de apurar fatos e coletar provas; perfazendo, desse modo, o
Inquérito Policial, função investigativa essencial à elucidação dos fatos por trás de um
sinistro aeronáutico.

Todavia, o Estado, em face a um mesmo acidente aeroviário, reserva para si


uma segunda competência investigativa, esta, por sua vez, engendrada em sede de
tratado internacional, e através do qual este se compromete a investigar acidentes
2

aeronáuticos ocorridos sob sua jurisdição; realizando, porém, o referido procedimento


de modo totalmente autônomo e independente da investigação conduzida sob a égide
da polícia judiciária e dos ditames da legislação substantiva e processual penal.

O sistema de investigação dualista1 observado, portanto, é composto de duas


frentes de investigação orgânica e teleologicamente distintas, cujas atuações são
balizadas por normas especialmente designadas para que a atuação de um sistema
não interfira na atuação do outro, inclusive de modo reflexo, sob pena de resultar-se
efeitos de aspectos nefastos sobre ambos mecanismos.

No Brasil, a competência para a prevenção e investigação de acidentes


aeronáuticos é atribuída ao Sipaer 2 ; ficando, por sua vez, a cargo das polícias
científicas judiciárias a investigação do acidente sob o cunho persecutório penal - para
que ao final a jurisdição penal, possa estabelecer o veredito, ato via do qual
consubstancia-se a resposta final do Estado, por meio de seu Poder Judiciário.

Recentemente, muito se refletiu acerca de medidas capazes de mitigarem as


consequências danosas que a exploração desarrazoada de informações extraídas de
investigações de acidentes, travestidas de prova técnica, estavam produzindo no
cerne das esferas judiciais e administrativas; questionando-se, diante da
fragmentariedade da lei, se as disposições normativas positivadas no ordenamento
legal e infralegal eram, de tal sorte, capazes de sistematicamente informar e nortear
o devido proceder de cada um dos atores envolvidos.

1
Com tal aperfeiçoamento, pode-se compreender e visualizar que o Brasil adotou, assim como os demais países
pactuantes da Convenção de Chicago, o modelo dualista de investigação de acidentes aeronáuticos: o sistema
policial - judiciário e o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos (SIPAER), este último
independente e neutro. BRASIL. CENIPA.ESTUDO PREPARATÓRIO Nº: 001/2017/CENIPA. Brasília, DF, 14 de mar.
2017. p. 06. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=648345511>
. Acesso em: 15: jul. 2020.
2
SIPAER – Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos: órgão subordinado ao Comando da
Aeronáutica. Tem a finalidade de planejar, orientar, coordenar, controlar e executar as atividades de investigação
e prevenção de acidentes aeronáuticos no Brasil. Disponível em: <https://www.decea.gov.br/
sirius/index.php/2011/06/14/sipaer-sistema-de-investigacao-e-prevencao-de-acidentes-aeronauticos>. Acesso
em: 26 mar. 2020.
3

Empenhada em oferecer respostas, a comunidade aeronáutica internacional,


por meio da OACI3, firmou orientações aos Estados-partes, no sentido de se adotarem
medidas legislativas capazes de mitigar a colisão entre a normativa aeronáutica
internacional e seus respectivos ordenamento jurídicos internos. Com efeito, o Brasil
no ano de 2014, por meio do Poder Legislativo, operou uma série de alterações no
código aviatório, baseando-se nesse conjunto de instruções.

Contudo, com a nova legislação, a questão envolvendo a investigação de


acidentes experimentou um acirramento de tensão; de tal sorte que o Ministério
Público Federal passou a pugnar pela inconstitucionalidade de alguns dos seus
dispositivos através da propositura de uma ADIN4, que porquanto não seja julgada,
reveste o cenário atual com uma parcela extra de incerteza jurídica, por sua vez, algo
nada salutar para o bom funcionamento do sistema.

É, portanto, com objetivo de se elucidar as questões que orbitam a flagrante


problemática, que se reitera a proposta deste trabalho: de modo a se realizar uma
ampla análise acerca da concepção e manipulação das provas técnicas no cerne do
sistema investigativo dualista brasileiro - para que se possa lançar luz, e, enfim
clarear-se a via legal por meio da qual os diversos atores envolvidos possam exercer
suas respectivas missões institucionais, de modo inteiramente harmônico entre si,
com vistas à legislação e ao bem comum.

3
A OACI é a agência especializada das Nações Unidas responsável pela promoção do desenvolvimento seguro e
ordenado da aviação civil mundial, por meio do estabelecimento de normas e regulamentos necessários para a
segurança, eficiência e regularidade aéreas, bem como para a proteção ambiental da aviação. Com sede em
Montreal, Canadá, a OACI é a principal organização governamental de aviação civil, sendo formada por 191
Estados-contratantes e representantes da indústria e de profissionais da aviação. Disponível em:
https://www.anac.gov.br/A_Anac/internacional/organismos-internacionais/organizacao-da-aviacao-civil-intern
acional-oaci> Acesso em: 01 de jul. de 2020.
4
Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIN Nº5667/DF, por meio da qual o legitimado Ministério Público
Federal defende a inconstitucionalidade de parte dos dispositivos que versam sobre a investigação e acesso a
material procedente da investigação SIPAER. O tema será analisado em capítulo específico deste trabalho.
4

2 – O ANEXO - 13 DA CONVENÇÃO DE CHICAGO E O SIPAER

O Brasil é signatário da Convenção de Chicago de 1944 5 , e, portanto, um


Estado juridicamente comprometido com a uniformização operacional do modal
aeronáutico civil, nos limites de seu território, bem como onde quer que venham operar
as aeronaves que ostentem registro brasileiro, em observâncias as regras e
diferenças estabelecidas pelos demais Estados-Partes.

A Convenção de Chicago é um dentre muitos outros tratados de Direito


Internacional Aeronáutico, por meio do qual estados soberanos se comprometem a
observarem um conjunto normativo específico, que no caso desta convenção, visa
estabelecer a uniformização internacional acerca de normas métodos e
procedimentos estabelecidos ao longo de 19 anexos – cada qual versando sobre uma
respectiva temática operacional.

O Anexo-13 6 , por seu turno, preconiza o conjunto de normas, métodos e


procedimentos praticáveis em face da ocorrência de acidentes aeronáuticos, e visa
uniformizar a atuação dos Estados signatários no tocante às ações que vão desde de
o sistema de busca e salvamento até a investigação dos prováveis fatores
contribuintes que potencialmente ou eventualmente tenham contribuído para a
consumação de um acidente ou incidente aeronáutico.

Dentre as suas disposições, o Anexo-13 orienta com que cada um dos Estados-
partes constitua em seus ordenamentos jurídicos internos, um sistema paralelo de
investigação de acidentes, que seja teleologicamente destinado exclusivamente aos
fins de prevenção. Tal orientação existe no sentido de que este sistema seja dotado
de órgãos autônomos e possua a exclusiva finalidade preventiva; atuando, assim, na

5
The History of ICAO and the Chicago Convention. ICAO. Disponível em: <https://www.icao.int/about-
icao/History/Pages/default.aspx> Acesso em: 06 jul. 2020.
6
ICAO. Annex 13. Disponível em: <https://www.icao.int/safety/airnavigation/AIG/Pages/Documents.aspx>
Acesso em: 05 jul. 2020.
5

elucidação dos fatores que deram azo à ocorrência de acidentes, sem perquirir sob
nenhum aspecto a culpabilidade de quem quer que esteja envolvido no caso.

Conforme determina o Anexo-13, a investigação aeronáutica ocorrerá de modo


totalmente independente de investigações policiais, bem como livre de ingerências
por parte dos diferentes órgãos do sistema acusatório e judicante penal; sendo
vedado, a quaisquer destes, o emprego de elementos advindos da atuação dos
órgãos aeronáuticos cuja intenção seja servir de lastro probatório para a imputação
de culpa a quaisquer dos envolvidos em um acidente aeronáutico.

Busca-se, com isso, elidir-se desvios de finalidade ou o emprego de material


extraído do bojo de investigações, sob motivação acusatória, conduta esta que possui
o nefasto potencial de acometer as atividades investigativas, acusatórias e judiciais
com grave patologia, tendente a esvaziar de sentido a própria natureza da atuação
dos órgãos envolvidos, além de influenciar o Poder Judiciário ou a Administração
Pública ao cometimento de potenciais injustiças contra envolvidos em acidentes
aéreos.

No Brasil, a coexistência de ambos modais investigativos flerta com uma


frequente deflagração de conflitos, o que de certa forma contribuiu para a ocorrência
de diversas crises institucionais, ingerências inoportunas, bem como acusações
desarrazoadas e decisões judiciais descabidas. Tanto o é que, em 20147, houve a
necessidade de intervenção legislativa por meio da edição de norma de cunho mais
restritivo, versando sobre limitações, bem como a coordenação e cooperação entre
os sujeitos da investigação do sistema dualista.

Ocorre, porém, que passados seis anos desde a intervenção legislativa no


setor, o Brasil não vivenciou ainda nenhum evento catastrófico que colocasse em
prova tais mudanças, além de parecer ainda não gozar da estabilidade idealizada na

7
Trata-se da Lei ordinária nº 12.970 de 2014, que alterou o Capítulo VI do Título III, art. 302 e revogou os arts.
89, 91 e 92 da Lei nº 7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica), para dispor sobre as investigações do Sistema
de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos - SIPAER e o acesso aos destroços de aeronave.
6

Lei, que enfrenta na suprema corte a arguição de inconstitucionalidade 8; estando,


então, o atual modelo a mercê de uma decisão da jurisdição constitucional, ou de um
eventual batismo de fogo. Qual desses ocorrer primeiro – indicará qual será o
panorama futuro do modelo dualista em vigor.

2.1 - O Sipaer e o sistema dualista de investigação

Sinistros aeronáuticos deflagram uma série de perturbações no universo que


abrange as inúmeras relações jurídicas pré e pós-constituídas ao tempo de
consumação do fato catastrófico. Estas perturbações não estão, porém, adstritas
apenas às questões legais que englobam a responsabilidade do operador aéreo;
sendo que, também, podem estender-se ao cerne da atuação dos órgãos estatais de
investigação; revelando, na maioria dos casos, um notável despreparo para o
respectivo desempenho de suas atribuições sob regramento do modelo em vigor
(HONORATO, 2014, p.519).

Compreender as origens acerca de como tais perturbações acometem a


atuação dos diferentes órgãos estatais no exercício de suas atividades investigativas,
revela-se como passo obrigatório aos diferentes atores das esferas investigativas e
judiciais, sob a mais dura pena, de em não se pautando na estrita legalidade, de se
promover uma perigosa supressão da eficácia dos mecanismos administrativos e
judicantes responsáveis pela distribuição da justiça no julgamento de casos que
envolvam a ocorrência de acidentes ou incidentes aéreos.

Ter consigo as peculiaridades do sistema de investigação de catástrofes


aéreas, é o remédio que tende de modo mediato a: prevenir assédios e ingerências
indevidas em órgãos administrativos de investigação aeronáutica, o engendramento
de teses acusatórias lastreadas em provas ilícitas, condenações para além dos limites
da responsabilidade cível ou penal, bem como elidir, na seara privada, a repercussão

8
Encontra-se em trâmite no Supremo Tribunal Federal a ADI N.5667/DF, proposta no ano de 2017 e de relatoria
do Ministro Celso de Mello, a ADI versa sobre a arguição de inconstitucionalidade dos artigos 88-C, 88-D, 88-I, §
2o, 88-K, 88-N e 88-P inseridos na Lei 7.565/861986 (Código Brasileiro de Aeronáutica), por meio da Lei 12.970,
de 8 de maio de 2014).
7

de problemas de aspecto análogo em sede de pleitos cíveis e trabalhistas que tenham


como pano de fundo casos de acidentes aéreos.

Prima facie, acidentes aeroviários deflagram a atuação de diferentes frentes da


atividade estatal, entre estas: a investigação preventiva – exercida pelo Sipaer; a
investigação criminal - conduzida pelas polícias cientificas; a atividade acusatória –
exercida exclusivamente pelo Ministério Público, e, por fim: a atividade jurisdicional -
responsável por colocar termo aos diferentes conflitos emanados de um acidente
aéreo; sendo que a atuação de cada um destes órgãos, é suscetível, dentro de uma
cadeia sequencial lógica de atuação, a sofrer influência mútua e reflexa dos demais,
dada a interdependência dos sistemas.

Nesse modelo, compete, na linha de frente, ao Estado-investigador, no


exercício de suas atribuições legais, apurar os fatos, para que tão somente após
concluídos os trabalhos, seus subsídios indiciários capacitem o órgão acusador a
engendrar e sustentar a tese acusatória que moverá frente aos órgãos judicantes. No
entanto, a narrativa acusatória deverá ser concebida em estrita observância às regras
de direito probatório presentes na normativa processual aplicável, bem como no
próprio CBA.

Tal regramento decorre de normas internalizadas em nosso ordenamento


jurídico por força de tratados internacionais, que desdobram a investigação em uma
dupla via, passando a existir uma segunda linha investigativa (administrativo-
preventiva) conduzida por órgão, que não a polícia científica, sob metodologia e
finalidade completamente estranha à investigação criminal e cuja destinação não visa
apurar culpa e tampouco se submeterá aos preceitos e garantias ínsitos ao processo
penal.

Para o desempenho da investigação administrativo-preventiva, o Estado


brasileiro atribui, por meio do código aviatório nacional, ao sistema de prevenção e
investigação de acidentes aéreos – Sipaer e ao seu órgão central, Cenipa, a
competência exclusiva para desempenhar investigações com a precípua finalidade
preventiva, sendo que a investigação promovida pela autoridade aeronáutica possui
8

cunho estritamente preventivo, voltado para o desempenho das atividades futuras de


segurança da atividade aviatória em geral.

O fato de que tal atividade preventiva possua cunho investigativo e seja


conduzida por órgão da administração direta, pode causar, a princípio, a errônea visão
de que o Sipaer seja uma extensão, uma espécie de longa manus técnica das polícias
cientificas, e, que por isso, o produto de sua atividade seja um híbrido de impecável
procedência técnica e carga acusatória arraigada da mais profunda credibilidade.

Esta tendência à leitura que é feita dos trabalhos dos órgãos de investigação,
sob tonalidade estritamente acusatória possui uma gama de efeitos colaterais que há
tempos vem chamando a atenção dos Estados-membros e a OACI, tendo-se
orientado os signatários da Convenção de Chicago, acerca da importância de, em
âmbito interno, buscar-se formas de mitigar os riscos inerentes ao uso inapropriado
do produto das investigações preventivas exercidas pela autoridade aeronáutica.

No Brasil, o fruto desses esforços consolidou-se por meio da Lei nº


12.970/2014, que inseriu no bojo do CBA uma série de normas voltadas ao
regramento e a destinação da investigação aeronáutica, tendente a limitar a instrução
probatória técnica voltada à imputação de culpa a quaisquer envolvidos em um sinistro
aeronáutico, permitindo-se constatar que a medida legislativa em comento veio
restabelecer o devido funcionamento do sistema dualista de investigação.

Outrossim, tem-se que o advento da nova legislação marcou uma importante


etapa do constante processo de aperfeiçoamento do sistema de prevenção de
acidentes aeronáuticos; possuindo relevante importância. Porém, que se tenha em
mente os fundamentos históricos, legais e teleológicos que consubstanciam o sistema
dualista de investigação, para que em o conhecendo, a manutenção do paralelismo
de ambas linhas de investigação ocorra de forma harmônica e nos limites de suas
finalidades.

2.2 - Breve digressão histórico-cultural do Sipaer

Na década de 1940, com a instituição do Ministério da Aeronáutica, o Brasil


instituiu um sistema unificado de investigação denominado à época por Inquérito
9

Técnico Sumário, e que visava a apuração dos fatos concomitantemente à


responsabilização de envolvidos no acidente. Tal modelo de investigação, que ocorria
de maneira inquisitiva e sumária, se mostrou com resultados pobres, escassos de
informações voluntárias, carente de análises detalhadas e sistêmicas, com pouca,
senão rara, contribuição prática para a prevenção (BRASIL, 2017, p.5).

O modelo “monista” perdurou até o ano de 1944, pois com a celebração da


Convenção de Chicago, o sistema de prevenção e investigação a acidentes aéreos
passou por amplas mudanças, sendo que por meio de um paulatino processo de
aperfeiçoamento e uniformização, deu-se origem a um sistema de aspecto dualista;
ficando a cargo de um ente, que não o policial, o ônus de fomentar o sistema de
prevenção e realizar investigações com a precípua finalidade de se elucidar fatores
que potencialmente contribuam em acidentes, para que uma vez identificados, a sua
reincidência possa ser mitigada – ou seja: prevenida.

Muito embora esta vertente preventiva atue por meio de expedientes análogos
àqueles praticados pelos órgãos policiais de investigação criminal, a exemplo da
tomada de depoimentos de envolvidos e de testemunhas9, este é constituído de uma
sistemática complemente diversa da existente no inquérito policial de investigação e
do sistema de acusação penal, sendo o seu principal recurso a participação voluntária
e a confiança dos envolvidos que fornecem informações úteis à elucidação dos fatos
– sob plenas garantias de não deflagração de repercussão penal em nenhum aspecto.

Prepondera, neste cenário, no sistema de investigação administrativo-


preventivo, as máximas consagradas pelas práticas de cultura de segurança (just
culture, safety culture) 10 , que se tratam de um conjunto de medidas que se
consolidaram firmemente ao longo de décadas como o meio mais eficaz de se prevenir
acidentes, e que passou a ganhar espaço no cenário mundial a partir de tragédias

9
Na investigação SIPAER, o termo “testemunha” é substituído por “entrevistado”. Assim como o ato, através do
qual são colhidas suas declarações, designa-se pelo termo entrevista.
10
Safety Culture. Air safety support international. Disponível em: < https://www.airsafety.aero/Safety-
Information-and-Reporting/Safety-Management-Systems/Safety-Culture.aspx> Acesso em: 15 jul. 2020.
10

como a da usina nuclear de Chernobyl, e se popularizou na aviação mundial, bem


como em diversas outras práticas que envolvam alto grau de risco à coletividade.

Este conjunto de “boas práticas” conhecido por cultura de segurança não


possui, por sua vez, uma previsão normativa que o positive no bojo de um diploma
legal, tampouco no âmbito do Anexo-13 da Convenção de Chicago ou na legislação
infralegal de cada estado. Seus alicerces invisíveis são amparados por princípios
como o da participação voluntária e da confiança, que coexistem tal como norma de
direito consuetudinário, ou seja: prática costumeira dotada de animus e corpus.

A manutenção dessa cultura organizacional depende, contudo, de um aspecto


central de sua concepção que, seja no ambiente institucional corriqueiro de um
operador aéreo, ou no decorrer de uma investigação administrativo-preventiva, haverá
de ser limitada à elucidação unicamente de fatores que contribuíram com um acidente
ou situação de risco, vedando-se, veementemente, a performance de análises
subjetivas de aspecto anímico, ou tampouco a emissão de opiniões acerca da
culpabilidade de quem quer que sejam os envolvidos.

O traço principal da cultura justa (just culture: não vinculação dos fatos
reportados à análises subjetivas visando a imputação de culpa), representa uma
importante garantia que consolida a cultura de segurança uma metodologia de
prevenção a riscos cujo aspecto subjetivo “animus”, goza de amplo nível de adesão
por parte de indivíduos, que em diferentes circunstancias. que vão desde um reporte
rotineiro de segurança até a participação voluntária em sede de uma eventual
investigação de acidentes aeronáuticos, colaboram amplamente com as atividades do
Sipaer.

A preservação de vidas humanas é, senão, um dos elementos centrais da


cultura de segurança, e depende da voluntariedade e confiança por parte daqueles
que cooperam com o processo, que, para tal, não pode sofrer nenhum tipo de
embaraço ou burocratização na coleta e processamento das informações; haja vista
que, diante de um acidente aeronáutico, quanto antes sejam conhecidos seus
possíveis fatores, mais rápidas e eficazes serão as medidas tendentes a mitigar novas
ocorrências.
11

Contudo, o uso de depoimentos coletados em sede de investigação


administrativo-preventivas de acidentes, ou o emprego de provas extraídas de autos
ou conclusões de acidentes, uma vez carreadas aos autos de processos penais cíveis
e trabalhistas representam uma ameaça ao sistema de prevenção podendo
potencialmente esvaziar o elemento subjetivo da confiança abalando, assim, a
confiança geral depositada sobre o Sipaer.

As interferências na atuação dos órgãos aeronáuticos, bem como o emprego


indevido de materiais extraídos de investigações são fatos que não encontram amparo
na lei e não se justificam na lacunosidade das normas vigentes. Contudo, dadas as
reiteradas investidas por parte de diferentes atores do sistema em vigor, que com fito
na organização das diversas atribuições e atuação paralela dos diferentes órgãos
engajados na investigação, que o poder legislativo inseriu no corpo do CBA o conjunto
de normas tendentes a regrar objetivamente o procedimento.

Em suma, perpassadas essas questões, a leitura parcial acerca do status quo


do sistema dualista revela-se ainda imersa em dúvidas, de modo que a recente
alteração promovida na lei aeronáutica permite uma dupla afirmação: a primeira delas
como resposta ao clamor social que exigiu o aperfeiçoamento do sistema de
investigação; ao passo que a lei, em si, que reafirmou textualmente no corpo do CBA
a existência de um sistema dualístico, necessariamente regrado no sentido a permitir-
se a atuação paralela pautada pela harmônica cooperação e coordenação dos entes
envolvidos, onde a lei assim o exigir.
12

3 – ELEMENTOS DICOTÔMICOS DA INVESTIGAÇÃO

Tão logo os órgãos de investigação judiciário e preventivo obtêm ciência da


ocorrência de um acidente aeronáutico, eles estarão vinculados ao dever de iniciar o
respectivo procedimento investigativo de sua competência, de acordo com as
circunstância e natureza do acidente ocorrido; sendo que, a cada um dos expedientes
técnicos de investigação, aplica-se um conjunto de regras próprias, responsáveis por
garantir a respectiva consecução dos meios e fins idealizados pelos órgãos
legislativos e internacionais.

Todavia, é válido anotar além das duas modalidades de investigação que


compõem o modelo em estudo, a ocorrência de um acidente aéreo, a depender do
caso concreto, poderá mobilizar outros órgãos e desencadear outros procedimentos
específicos, além daqueles adstritos ao modelo dualista, de tal sorte que o legislador
elencou cada uma das hipóteses ao longo do texto normativo do Código Aeronáutico,
conforme expõe o Magistrado Souza Brasil em artigo dedicado à temática da
segurança de voo:

Bem leciona o Dr. José da Silva Pacheco, in Comentários ao Código


Brasileiro de Aeronáutica (4a ed., Forense, Rio de Janeiro, 2006, p.
148), verbis:
De um acidente aéreo pode decorrer:
1º) a investigação para o efeito de prevenção de acidentes com
aeronaves (arts. 86 a 93);
2º) o inquérito policial, para apurar ilícito penal, se houver veemente
indício de sua prática (art. 92);
3º) o inquérito policial-militar, para apurar ilícito penal militar, se houver
militar ou aeronave militar (art. 92);
4º) a ação de responsabilidade civil dos prejudicados contra o
causador de eventuais danos (arts. 246 a 287);
5º) o inquérito para apurar infração administrativa e aplicação de
sanção administrativa (art. 291);
6º) o inquérito ou procedimento administrativo para apurar acidente
relacionado com a infra-estrutura aeronáutica (§ 2º do art. 86);
7º) o inquérito ou procedimento administrativo para apurar o
abandono, perecimento, perda ou alteração substancial de aeronave
(art. 120 e §§).
13

Por aí se vê que, conforme o enfoque dado ao acidente e ao objetivo


que se tem em vista, pode-se desenvolver um determinado tipo de
procedimento (PACHECO, 2006, p.148 apud BRASIL, 2012, p.61).

Verifica-se que o CBA contém em seu bojo um leque de hipóteses que poderão
ser postas em prática em casos de acidentes aeronáuticos, e que, em comum, visam
direta e indiretamente à prevenção e segurança da aviação, seja pela via preventiva
ou repressiva, como é o caso da sanção administrativa ou judicial. Nesse aspecto, o
papel do Poder Judiciário não pode ser desprezado, sobretudo no âmbito da Justiça
Federal, detentora da competência para julgar grande parte dos casos envolvendo
acidentes aéreos, conforme obtempera Souza Brasil:

Pretende-se, a partir da sistematização dos temas e ensinamentos


colhidos, contribuir para a melhoria da qualidade dos serviços
prestados aos jurisdicionados no que toca a eventuais decisões
judiciais que tenham por objeto a segurança de voo (2012, p.62).

Tal inserção demonstra que, na Justiça Federal, o constante processo de


aperfeiçoamento da magistratura11 tem ampliado a importância do papel exercido pelo
Poder Judiciário no mister de sua jurisdição cível e penal, fomentando não tão
somente a proba distribuição da justiça, como também a segurança jurídica, sendo
exemplo dessa evolução as recentes atuações das varas e tribunais federais, no
âmbito das ações penais que envolveram o julgamento do emblemático caso do
acidente com o jato Airbus A-320, operado pela empresa TAM linhas aéreas.

3.1 – O problema da terminologia

Nesse sentido, tem-se que o aperfeiçoamento do modo com que se conduz a


correta manipulação do material investigativo e probatório, sobretudo por parte dos
entes responsáveis pela investigação judicial, acusação, apreciação e valoração das
provas, possui diante si desafios amplos, tais como o obstáculo do tecnicismo da
linguagem, que abarca um elevado grau de equivocidade procedente dos múltiplos

11
Em referência ao Seminário denominado “O papel do Poder Judiciário na segurança de voo” realizado nos dias
25 a 27 de abril de 2012, na Escola da Magistratura Federal da 5a Região – ESMAFE, em Recife-PE, com apoio dos
seguintes órgãos: Segundo Comando Aéreo Regional (II COMAR), Centro de Investigação e Prevenção de
Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) e Segundo Serviço Regional de Investigação e Prevenção de Acidentes
Aeronáuticos (SERIPA II). Esses últimos integram o Sistema de Prevenção e Investigação de Acidentes
Aeronáuticos (SIPAER).
14

termos técnicos empregados no modal aeronáutico, que naturalmente tendem a não


ser devidamente traduzidos ao serem compartilhados nas diferentes esferas em que
transitam; demandando, assim, cautelosa atenção por parte daqueles que a
manuseiam, sobretudo o Relatório Final Sipaer.

Não raro, o emprego de dados de investigações Sipaer gerou verdadeiras


armadilhas terminológicas que conduziram os diferentes atores ministeriais e
jurisdicionais ao exercício de valorações equivocadas, dissociadas da concepção
técnica e teleológica adequada, ao ponto de resultarem em errores in judicando de
considerável monta no julgamentos de ações; o que denunciou, à época, a existência
de certa carência de domínio terminológico acerca dos termos e expressões técnicas
extraídas das investigações aeronáuticas.

À guisa de exemplo, termos como: acidente aéreo e acidente aeronáutico,


embora pareçam transmitir significados sinônimos12, conservam relevante distinção,
que, ao fundo, sob a ótica da significação jurídica dos termos, nota-se a existência de
certo grau de equivocidade. O termo acidente aéreo possui uma acepção ampliativa
– o que engloba ocorrências envolvendo qualquer tipo de veículo aéreo em voo, ao
passo que acidente aeronáutico tende a significar a espécie de ocorrência aeronáutica
envolvendo aeródinos 13 inseridos em seus respectivos escopos operacionais,
existindo nessa aparente insignificante diferença, relevante peso para fins judiciais
(HONORATO, 2014, p.7).

Nessa esteira exemplificativa, a exegese apropriada do art. 261 do Código


Penal 14 , requer do interprete certo esforço hermenêutico no que tange à correta
interpretação do termo “aeronave”, por sua vez: elementar objetiva do tipo em

12
Embora existam distinções entre os termos, nada obsta o emprego de ambos em relação de sinonímia.
(HONORATO, Marcelo. Crimes Aeronáuticos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p.7)
13
Aeronave cuja sustentação no ar provém principalmente de forças aerodinâmicas; são aeródinos: aviões,
planadores, helicópteros, autogiros, motoplanadores e ultraleves. Disponível em:
https://www2.anac.gov.br/anacpedia/por_ing/tr1250.htm Acesso em: 19 set. 2020.
14
Art. 261 - Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a
impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
15

questão. Tendo em vista que, em matéria de direito penal, é vedado alargar o alcance
de definições de termos presentes na lei, sob pena de quebra do princípio da tipicidade
penal, a interpretação adequada do termo requer com que o exegeta se socorra da
lei, que no caso o remeteria ao Código Brasileiro de Aeronáutica, ao seu art. 106 do
CBA15.

Partindo-se do princípio que a lei não contém palavras inúteis, quis o legislador
definir um aspecto técnico de crucial importância na classificação do que seja uma
aeronave sob estrito sentido legal. Outrossim, ao incorporar o termo reações
aerodinâmicas no texto normativo, foi opção do legislador restringir o objeto da tutela
penal do art. 261 do CP, somente às aeronaves aeródinas como os aviões de asas
fixas ou rotativas – a exemplo dos helicópteros ou autogiros (HOMA, 2009, p.2).

Uma possível armadilha terminológica ao interprete incauto, será o balão de ar


quente tripulado16, que enquanto exemplo de aeróstato, cujo voo se dá através de
reações aerostáticas (HOMA, 2009, p.1), ou seja: diferentemente do que prescreve o
art. 106 do CBA, pois inexistem reações aerodinâmicas uteis às operações desses
veículos. Tal característica distancia os balões da classe dos aeródinos, e neutraliza

15Art. 106. Considera-se aeronave todo aparelho manobrável em vôo, que possa sustentar-se e circular no
espaço aéreo, mediante reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas.

16
CONSTITUCIONAL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ACIDENTE AÉREO ENVOLVENDO BALÕES DE AR
QUENTE TRIPULADOS. INQUÉRITO POLICIAL. HOMICÍDIOS CULPOSOS E LESÕES CORPORAIS CULPOSAS.
DEFINIÇÃO JURÍDICA DE AERONAVE PARA FIXAÇÃO DA COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL X JUSTIÇA ESTADUAL.
INTELIGÊNCIA DO ART. 106 DA LEI N. 7.565/1986. CONFLITO CONHECIDO. DECLARADA A COMPETÊNCIA DO
JUÍZO SUSCITADO. 1. Conflito negativo de competência conhecido, porquanto se trata de incidente estabelecido
entre juízes vinculados a tribunais diversos, nos termos do art. 105, I, d, da Constituição Federal. 2. A
jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que "É da competência da Justiça Federal processar e julgar
delitos cometidos a bordo de aeronaves, nos termos do inciso IX do art. 109 da Constituição Federal. Devendo-
se ressaltar ser despiciendo se a aeronave encontra-se em solo ou sobrevoando." (CC 143.343/MS, Rel. Ministro
JOEL ILAN PACIORNIK, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 30/11/2016). 3. O art. 106 da Lei n. 7.565/1986 estabelece que
aeronave é "todo aparelho manobrável em vôo, que possa sustentar-se e circular no espaço aéreo, mediante
reações aerodinâmicas, apto a transportar pessoas ou coisas". 4. No caso em exame, contudo, ainda que de difícil
definição jurídica, o termo AERONAVE deve ser aquele adotado pela Lei n. 7. 565/1986 em seu art. 106, o que
de fato, afasta dessa conceituação "balões de ar quente tripulados". 5. Conflito conhecido para declarar a
competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Cível de Boituva/SP, o suscitado, para processamento e julgamento
de eventual ação decorrente do IPL que deu origem ao presente conflito.
(STJ - CC: 143400 SP 2015/0244056-4, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 24/04/2019, S3 -
TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 15/05/2019)
16

totalmente qualquer esforço hermenêutico tendente a enquadrá-los como elementar


objetiva do tipo penal, conforme pondera Honorato:

Conclui-se que qualquer perigo ao qual é exposto a risco um balão ou


dirigível, torna-se inviável tipifica-lo pelo delito do art. 261 do CP,
havendo melhor adequação típica ao art. 262, que se refere a “outro
meio de transporte público”, isso se o aparelho aéreo estiver prestando
alguma das modalidades de serviço de transporte público, como o
próprio tipo penal exige (2014, p.17).

Conforme pode-se ver, para que se possa manusear precisamente as


informações extraídas de uma investigação aeronáutica, repleta de minúcias técnicas,
exige-se certa cota de esforço, requerendo por vezes com que, além do socorro nas
ciências aeronáuticas, o emprego de interpretações sistemática, para que seja
possível comaltar lacunas existentes na norma, ou preencher aspectos “em branco”
associados a termos técnicos sensíveis e dependentes de cautelosa interpretação.

3.2 - Objetos da investigação administrativo-preventiva do Sipaer

Outro aspecto de suma importância no cenário dicotômico em estudo, são as


incontáveis minúcias conceituais que distinguem as diferentes formas com que um
mesmo acidente aéreo poderá ser abordado no cerne de cada uma das linhas de
investigação. Para identificar os respectivos critérios e requisitos para que a devida
modalidade investigativa seja deflagrada, exige-se uma atenta leitura da legislação.

O capítulo VI do CBA, na Seção I, que versa sobre a investigação Sipaer,


dispõe por meio da redação do art. 86-A, que a investigação de acidentes e incidentes
aeronáuticos tem por objetivo único a prevenção de outros “acidentes e incidentes”,
ficando a cargo da redação do art. 88-B, ampliar o rol de objetos da investigação,
quando o referido artigo faz menção à: “ocorrências de solo”.

Tem-se em mãos, portanto, extraídos da Lei, os possíveis objetos da


investigação administrativo-preventiva do Sipaer, a saber: (i) acidentes aeronáuticos;
(ii) incidentes aeronáuticos; (iii) ocorrências de solo, que conforme disposto na Norma
17

de Sistema do Comando da aeronáutica - NSCA 3-13/201717, são espécie do gênero


ocorrência aeronáutica.

O art. 86 do CBA 18 , cuja redação delega ao Sipaer a competência para a


investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos, não faz nenhuma menção aos
incidentes aeronáuticos e ocorrências de solo, restando concluir-se que o legislador
optou por atribuir ao termo acidente aeronáutico um amplo significado, sob o qual deve
ser também compreender as demais espécies de ocorrências aeronáuticas.

A concepção dos elementos objetivos e fáticos necessários para classificar


cada uma das ocorrências aeronáuticas descritas na redação do CBA, demandam
uma análise criteriosa das disposições da NSCA 3-13/2017, que replicando a redação
do Anexo – 13 da OACI, comportam, ao seu turno, extensas descrições de cada um
dos elementos que compõe cada uma das espécies de ocorrências em comento.

Outro aspecto crucial referente às ocorrências aeronáuticas, decorre que a


tipificação de cada uma delas se dá apenas sob o plano unicamente objetivo, ou seja:
a caracterização de qualquer das espécies de ocorrências aeronáuticas prescinde de
elementos de ordem subjetiva, fato que comporta uma relevante distinção entre a
abordagem normativa do CBA e NSCA e as normas descritas no Código Penal e
legislação estravagante que aborda crimes aeronáuticos impróprios.

Posto isso, compete ressaltar que a exata definição de cada umas das espécies
de ocorrências aeronáuticas, decorre daquilo que foi convencionado no Anexo -13,
que ao serem recepcionadas em nosso ordenamento jurídico aeronáutico, foram
adaptadas a atos administrativos técnicos, dos quais são exemplos as Normas de
Sistema do Comando da Aeronáutica – NSCA 3-133/2017, que contém as exatas
definições padronizadas extraídas da redação do tratado internacional.

17
1.5.31 OCORRÊNCIA AERONÁUTICA: Qualquer evento envolvendo aeronave que poderá ser classificado como
acidente aeronáutico, incidente aeronáutico grave, incidente aeronáutico ou ocorrência de solo, permitindo ao
SIPAER a adoção dos procedimentos pertinentes.
18
Art. 86. Compete ao Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos planejar, orientar,
coordenar, controlar e executar as atividades de investigação e de prevenção de acidentes Aeronáuticos.
18

3.2.1 Acidentes aeronáuticos:

Conforme dispõe o a seção 1.5.4 da NSCA 31-13/2017 19 , o acidente


aeronáutico é a ocorrência havida entre o momento inicial e final de uma operação
que envolva real intenção de voo, onde pessoas possam sofrer grave lesão ou
falecerem por decorrência de um ou mais dos fenômenos deflagrados durante a
operação; ou a aeronave venha a colher danos estruturais gerais ou localizados, bem
como seja declarada desaparecida ou em local inacessível.

O conceito acima aplica-se também às aeronaves não tripuladas, porém para


o caso de aeronaves capazes de transportar pessoas, a possibilidade de
caracterização do acidente existirá somente após o instante em que alguém embarcar
no aparelho. Contudo, no que tange à intenção de realizar um voo, muito embora o
termo possa denotar a existência de um aspecto subjetivo, este só poderá ser
comprovado no plano objetivo, por meio de elementos que demonstrem a real

19
1.5.4 ACIDENTE AERONÁUTICO: Toda ocorrência aeronáutica relacionada à operação de uma aeronave
tripulada, havida entre o momento em que uma pessoa nela embarca com a intenção de realizar um voo até o
momento em que todas as pessoas tenham dela desembarcado ou; no caso de uma aeronave não tripulada,
toda ocorrência havida entre o momento que a aeronave está pronta para se movimentar, com a intenção de
voo, até a sua parada total pelo término do voo, e seu sistema de propulsão tenha sido desligado e, durante os
quais, pelo menos uma das situações abaixo ocorra:
a) uma pessoa sofra lesão grave ou venha a falecer como resultado de:
- estar na aeronave;
- ter contato direto com qualquer parte da aeronave, incluindo aquelas que dela tenham se desprendido; ou
- ser submetida à exposição direta do sopro de hélice, de rotor ou de escapamento de jato, ou às suas
consequências.
[...]
b) a aeronave tenha falha estrutural ou dano que:
- afete a resistência estrutural, o seu desempenho ou as suas características de voo; ou - normalmente exija a
realização de grande reparo ou a substituição do componente afetado.
[...]
c) a aeronave seja considerada desaparecida ou esteja em local inacessível.
[...]
19

intenção de voo, ex.: planos ou notificações de voo, notas de abastecimento de


aeronave, fichas de navegação e etc.

A título de comparação, o fato descrito por acidente aeronáutico sob a égide da


normativa Sipaer, corresponde em matéria de Direito Penal, ao resultado naturalístico
previsto no §1º do art. 26120, sendo classificado pela legislação penal como “sinistro
aeronáutico”, especificamente para o caso de consequente destruição da aeronave.
Todavia, à luz do Direito Penal Aeronáutico, não se aplicaria ao mesmo fato o conceito
legal de queda, pois conforme leciona Honorato:

A queda tem relação, na verdade, com a insuficiência da sustentação


aerodinâmica ou com alguma falha técnica grave que não permita
prosseguir o voo nivelado, forçando o piloto a proceder a um pouso
imediato em qualquer lugar que seja (2014, p. 57):

Extrai-se do dialogo das fontes, portanto, que o legislador codificou na norma


penal, sob a classificação de sinistro aeronáutico ambas ocorrências aeronáuticas de
acidente e incidente, posto que ao acidente aeronáutico a lei penal atribui
obrigatoriamente o resultado “destruição”, ao passo que ao termo queda: qualquer
outra situação de elevado risco concreto ao aparelho e que tenha o condão de forçar
o respectivo pouso da aeronave.

O termo queda, ao cabo, não possui o significado cabal de precipitação contra


o solo e consequente destruição, algo que a ótica do homem médio ordinariamente
faria, por via de interpretação literal, ante o sentido denotativo do vocábulo, visto que,
o termo: queda, uma vez enquadrado na norma emanada do § 1º do art. 261 do CP,
adquire valor equivalente àquele denominado na legislação aeronáutica por “incidente
aeronáutico”. Todavia, cabe ressaltar, que de modo distinto do extraído da lei penal,

20
Art. 261 - Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a
impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
[...]
Sinistro em transporte marítimo, fluvial ou aéreo
§ 1º - Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a queda ou destruição de
aeronave: (grifou-se)
20

visto que o termo “incidente aeronáutico” não engloba a destruição do aparelho, bem
como é desprovido de qualquer valor de antijuridicidade.

3.2.2 Incidentes aeronáuticos

A NSCA 3-13/2017, na seção 1.5.2121, define o incidente aeronáutico como


espécie do gênero de ocorrências aeronáuticas onde a integridade das operações de
uma aeronave seja exposta a condições de riscos, permitindo-se que o elemento
segurança sofra algum tipo de deterioração, que poderá ser escalonado em risco
ordinário (risco abstrato) ou seja: hipoteticamente afeta-se segurança; ou, de fato, no
plano concreto, ocorra a exposição a um grau mais elevado de risco (concreto): uma
situação dotada de elementos tangíveis, onde a ocorrência de um acidente seja
potencialmente possível.

Da leitura da seção 1.5.22 22 , verifica-se que para que seja configurada a


ocorrência de um incidente aeronáutico, elementos objetivos essenciais precisam
estar presentes cumulativamente, tais como a presença de vida(s) humana(s)
embarcadas e a real intenção de voo, para o caso de aeronaves que estiverem em
solo. É possível observar, também, que a apesar da existência de uma escala de
graduação quanto ao risco experimentado em uma ocorrência de incidente, o fato de
a norma aeronáutica prescrever tal distinção quanto à abstração ou concretude do
risco observado, este em nada interfere quanto ao nível de relevância da ocorrência
à esfera preventiva; podendo, até mesmo, ser deflagrada a investigação23 Sipaer, a
depender dos elementos objetivos do caso.

21
1.5.21 INCIDENTE AERONÁUTICO: Uma ocorrência aeronáutica, não classificada como um acidente, associada
à operação de uma aeronave, que afete ou possa afetar a segurança da operação.
22
1.5.22 INCIDENTE AERONÁUTICO GRAVE: Incidente aeronáutico envolvendo circunstâncias que indiquem que
houve elevado risco de acidente relacionado à operação de uma aeronave que, no caso de aeronave tripulada,
ocorre entre o momento em que uma pessoa nela embarca, com a intenção de realizar um voo, até o momento
em que todas as pessoas tenham dela desembarcado; ou, no caso de uma aeronave não tripulada, ocorre entre
o momento em que a aeronave está pronta para se movimentar, com a intenção de voo, até a sua parada total
pelo término do voo, e seu sistema de propulsão tenha sido desligado.
23
NSCA 3-13/2017, Seção 5.2.1: Serão investigados os incidentes aeronáuticos graves que envolvam aeronaves
com peso máximo de decolagem acima de 2.250 kg.
21

Por fim, traçando-se um paralelo comparativo com referencial na norma penal


do art. 261 do CP, tendo que um incidente aeronáutico grave pode envolver o risco
concreto de produzir um acidente aeronáutico (sinistro aeronáutico em matéria de
direito penal), pode-se falar em subsunção ao tipo penal, que prevê a tipicidade da
conduta de exposição de aeronave a risco concreto, desde que esta encontre-se em
operação e realizando o transporte coletivo de pessoas, ao passo que o mero
incidente cujo risco seja ameno “abstrato”, não haverá de demonstrar relevância ao
Direito Penal.

3.2.3 Ocorrências de solo

A redação da NSCA 3-13/2017, define em sua seção 1.5.3424 a ocorrência de


solo, sendo possível notar certa similitude entre os elementos objetivos da espécie
acidente aeronáutico, no tocante ao resultado lesão corporal ou morte, bem como aos
danos estruturais provocados ao aparelho. Contudo, a grande diferenciação existente
entre ambas, recai sobre a ausência de operação da aeronave, o que importa dizer: a
aeronave deve se encontrar fora de serviço, podendo, todavia, até mesmo se
encontrar em movimento, desde que não seja por meios próprios25.

Além os elementos objetivos de resultado, a ocorrência de solo exige


participação de elementos inerentes à operação de solo do aeródromo, tais como os
diversos veículos e equipamentos que são operados e circulam pela área de
movimento local26; podendo ser facilmente exemplificada, a ocorrência de solo, por
meio de uma situação onde uma aeronave, fora de operação, esteja estacionada em

24
1.5.34 OCORRÊNCIA DE SOLO: Ocorrência, envolvendo aeronave no solo, da qual resulte dano à aeronave ou
lesão à pessoa(s), sendo o(s) fato(s) motivador(es) diretamente relacionado(s) aos serviços de rampa, aí incluídos
os de apoio e infraestrutura aeroportuários; e não tenha(m) tido qualquer contribuição da movimentação da
aeronave por meios próprios ou da operação de qualquer um de seus sistemas, não estando relacionado à
operação da aeronave.
25
Em alguns aeródromos é comum ocorrer a movimentação de aeronaves, fora de serviço, que poderão ser
deslocadas por meio de esforço humano ou utilizando-se veículos de reboque. A referida movimentação se dá
visando a reacomodação do aparelho em áreas de estacionamento ou locais destinados a inspeção/manutenção
e ocorre com os motores desligados.
26
ÁREA DE MOVIMENTO: Parte do aeródromo destinada ao pouso, decolagem e táxi de aeronaves e está
integrada pela área de manobras e os pátios. Conforme definição do termo constante da Instrução do Comando
da Aeronáutica – ICA 100-12 / 2016.
22

um pátio de aeródromo, quando, no local, um veículo de carga em circulação venha a


colidir com a sua fuselagem, causando-lhe substancial dano estrutural.

No quadro hipotético acima, assumindo-se que a aeronave se encontrasse


imobilizada e fora de operação, a classificação da ocorrência aeronáutica seria a de
ocorrência de solo. Contudo, bastasse que a aeronave do exemplo estivesse
engajada à operação, isto é: vinculada a um plano de voo para o qual partiria ou o
qual estivesse em vias de encerramento no local, para que a classificação da
ocorrência se readequasse para um acidente aeronáutico.

Veja-se que, para caso da segunda hipótese retratada, a classificação de


acidente aeronáutico atrairia automaticamente a investigação Sipaer ao cenário; no
entanto, o caso exemplificado de ocorrência de solo estaria adstrito, em tese, ao
procedimento de apuração por parte do operador local do aeródromo ou da aeronave
envolvida. Todavia, o Sipaer, por meio do Cenipa, reserva-se o direito de, a qualquer
momento, discricionariamente avocar 27 para si a condução da investigação da
ocorrência de solo, se julgá-la de seu interesse.

3.3 – Objetos do Inquérito Policial

Perpassadas as nuances das distintas espécies de ocorrências aeronáuticas


capazes de deflagrar a investigação administrativo-preventiva sob a égide do Sipaer,
tem-se que, sob a roupagem de sinistro aeronáutico, conferida pelo legislador na lei
penal, o mesmo evento atrairá para si a investigação judicial que será conduzida por
meio de inquérito policial, sob minuciosa ótica legal, na qual evento será investigado.

Assim, no que compete ao inquérito policial, a inteligência do art. 4º, parágrafo


único do CPP28, delega à Polícia Judiciária competência para apurar infrações penais
sob o plano de sua existência material e autoral, sem prejuízo de eventuais outros

27
Seção 5.4.4 da NSCA 3-13 / 2017: 5.4.4. O CENIPA avocará para si a condição de organização encarregada da
investigação de uma ocorrência de solo, sempre que julgado do interesse do SIPAER.
28
Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas
circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
23

procedimentos administrativos existentes, cabendo nos casos de crimes cuja ação


penal seja pública, a instauração ope legis do inquérito policial, conforme dicção ao
art. 5º, I do CPP29.

Em paralelo a isso, a instauração do inquérito policial em caso de sinistros


aéreos, por força da dicção do inciso I do § 1º do art. 144 da CF/8830, será atribuída à
Polícia Federal, haja vista que o acidente aeronáutico afeta diretamente a fruição de
serviço de interesse da União, da mesma forma que a Constituição também atribui
aos juízes federais competência originária para julgar grande parte das ações que
tenham como pano de fundo acidentes aéreos, porquanto crimes aeronáuticos
próprios.

Dada a competência exclusiva da autoridade policial judiciária para apurar a


ocorrência de crimes, o CBA31, no âmbito de suas disposições estabelece que no
decorrer de qualquer atividade de apuração de infração aeronáutica na qual a
autoridade administrativa se deparar com indício de crime, o fato deverá ser levado
ao conhecimento imediato da autoridade policial competente. Regra que também se
aplica àa investigação Sipaer, conforme art. 88-D32, introduzido pela Lei nº 12.970/14.

29
Art. 5º Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado:
I - de ofício;
30
Art. 144 [...]
[...]
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado
em carreira, destina-se a:
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da
União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha
repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
31
Art. 291. Toda vez que se verifique a ocorrência de infração prevista neste Código ou na legislação
complementar, a autoridade aeronáutica lavrará o respectivo auto, remetendo-o à autoridade ou ao órgão
competente para a apuração, julgamento ou providência administrativa cabível.
§ 1° Quando a infração constituir crime, a autoridade levará, imediatamente, o fato ao conhecimento da
autoridade policial ou judicial competente.

32Art. 88-D. Se, no curso de investigação Sipaer, forem encontrados indícios de crime, relacionados ou não à
cadeia de eventos do acidente, far-se-á a comunicação à autoridade policial competente.
24

Os crimes cujo código aviatório faz menção, estão, em tese, conexos às


atividades diversas exercidas no modal aeronáutico, contudo, constituem fato típico
previsto na legislação penal comum ou estravagante, extrapolando o alcance das
atribuições dos órgãos aeronáuticos administrativos, como é o caso do art. 88-D do
CBA, que torna visível a separação estanque existente entre a investigação criminal
das causas de um sinistro aeronáutico e a apuração de fatores associados à
deflagração de qualquer das ocorrências aeronáuticas alhures abordadas.

3.3.1 – Crime aeronáutico próprio e impróprio

As condutas delitivas as quais o código aviatório faz menção nos arts. 88-D e
289, inciso I, poderão se relacionar com a aviação de duas formas distintas, podendo
haver tipificação diretamente no Código Penal ou na legislação penal extravagante;
sendo que de acordo com o bem jurídico tutelado e os elementos objetivos do crime
em questão, a doutrina lhe atribuirá uma dúplice classificação, de modo a dividi-los
em crime aeronáutico improprio e crime aeronáutico próprio, conforme leciona
Honorato:

Crimes propriamente aeronáuticos são condutas típicas que visam


tutelar bens jurídicos específicos da atividade aviatória, como a
segurança das aeronaves e da navegação aérea, por exemplo. [...] Já
os crimes impropriamente aeronáuticos são condutas tipificadas em
delitos comuns, mas que decorrem de fatos relacionados à aviação
[...] (2014, p.7).

Os crimes aeronáuticos impróprios, portanto, configuram um ataque a bem


jurídicos tutelados, que não a segurança da aviação, ou seja: crimes que apesar de
conexos à aviação, não configuram ofensa à segurança de voo, como por exemplo
um crime de homicídio cometido a bordo de uma aeronave, na medida que não
configura ofensa ao bem jurídico aeronáutico (a incolumidade pública), recebe a
tipificação comum tal como prevista no art. 121 do CP.

Da mesma forma, incorrem na classificação de crime aeronáutico impróprio os


crimes de falsidade ideológica na apresentação de plano de voo (art. 299 do CP), que
constitui ofensa ao bem jurídico: “fé pública”, além do mais comum e frequente crime
de tráfico de drogas a bordo de aeronave. Cabe ressaltar, porém, que em qualquer
das situações onde seja cometido crime conexo à operação de uma aeronave,
25

qualquer ato tendente a resvalar em ofensa à segurança de uma aeronave, permitirá


a hipótese de concurso formal de crimes (HONORATO, 2014, p.11).

Por sua vez, o crime aeronáutico próprio é aquele cujos elementos objetivos
essenciais para tipificação da conduta efetivamente se aproximam daqueles
presentes nas espécies de ocorrências aeronáuticas previstas no Anexo-13 da OACI,
tendo recebido do legislador a tipificação no Código Penal (art. 261), e no Código
Penal Militar (art. 283). No crime aeronáutico próprio a segurança da aeronave e da
navegação aérea são os objetos diretamente passíveis de ofensa, sendo o bem
jurídico tutelado pela lei: a incolumidade pública.

Muito embora exista certa similitude entre elementos objetivos dos crimes
aeronáuticos próprios (arts. 261 do CP e 283 do CPM) e os elementos objetivos que
compõem as ocorrências aeronáuticas descritas na NSCA 3-13/2017, deve-se anotar
que para a lei penal, a existência do aspecto anímico dos agentes envolvidos em um
sinistro aeronáutico, cumpre um papel essencial para a tipificação de quaisquer dos
crimes tipificados na lei penal, razão pela qual a investigação judicial haverá de
obrigatoriamente perquirir os elementos subjetivos inerentes a cada uma das
condutas externadas pelo envolvidos no acidente aeronáutico.

Por seu turno, o Estado relega ao Sipaer a análise perfunctória da cadeia de


desdobramento fático que resulta em um acidente, pautada pela cognição
especulativa dos fatos, de modo totalmente alheia às questões subjetivas, sendo
adstrita apenas ao plano fático objetivo, como forma de se extrair da ocorrência dados
capazes de se promover máxima eficácia preventiva. Tal distinção onto-teleológica
permite a visualização de uma separação estanque legal de suma importância para
análise da atual problemática que acomete o modelo dualista.

3.4 - A cooperação técnica do Sipaer

Embora o sistema dualista de investigação seja pautado por uma rígida


separação estanque entre as distintas linhas de investigação criminal e administrativo-
preventiva do Sipaer, prevalece no modelo estudado um constante dever mútuo de
cooperação entre os diferentes órgãos envolvidos no sistema, onde, nos limites legais,
26

a coexistência de ambas investigações não esbarre em óbices de nenhuma natureza,


sob pena de que se configurarem sérias ofensas às atividades de persecução penal
e preventiva de acidentes aéreos.

Nessa linha, verifica-se que a cooperação necessária ao salutar funcionamento


do sistema se apresenta sob uma dimensão negativa, onde presume-se que os
diferentes atores do modelo de investigação dualista devam se abster de interferir ou
obstar quaisquer dos expedientes investigativos realizados por outrem, permitindo-se
o amplo acesso aos objetos da investigação e à consecução de seus respectivos
trabalhos.

No entanto, ciente da existência de uma visível carência técnica no âmbito das


ciências periciais, que não dispõe de número satisfatório de peritos para o
desempenho de grandes investigações, além da baixa capacitação nos campos da
engenharia e ciências aeronáuticas, o legislador cunhou, no bojo do CBA 33 , uma
importante previsão de cooperação que, além de afirmar uma dimensão positiva de
natureza técnica no modelo dualista, visa a atender uma antiga demanda do poder
judiciário.

Como pode-se constatar, por intermédio da disposição normativa inserida no


art. 88-E do CBA, o legislador facultou aos órgãos de investigação criminal, para os
casos onde inexistirem profissionais qualificados em seus quadros internos, a
solicitação de peritos aeronáuticos do Sipaer para cooperarem com a investigação

33
Art. 88-E. Mediante pedido da autoridade policial ou judicial, a autoridade de investigação Sipaer colocará
especialistas à disposição para os exames necessários às diligências sobre o acidente aeronáutico com aeronave
civil, desde que:
I - não exista, no quadro de pessoal do órgão solicitante, técnico capacitado ou equipamento apropriado para os
exames requeridos;
II - a autoridade solicitante discrimine os exames a serem feitos;
III - exista, no quadro de pessoal da autoridade de investigação Sipaer, técnico capacitado e equipamento
apropriado para os exames requeridos;
IV - a entidade solicitante custeie todas as despesas decorrentes da solicitação.
Parágrafo único. O pessoal colocado à disposição pela autoridade de investigação Sipaer não poderá ter
participado da investigação Sipaer do mesmo acidente.
27

judicial, onde atuarão como peritos forenses em demandas previamente especificadas


pelo órgão demandante no momento em que os requisitar.

A observação que se faz, porém, remonta o próprio dever de estrita separação


existente entre as investigações, de tal sorte que a designação de peritos oriundos do
Sipaer, para cooperarem com a investigação criminal, deverá ser observante ao
histórico de atuação de seus membros no que compete ao sinistro investigado, bem
como qualquer contato com um de seus objetos sob a égide da investigação Sipaer
referentes à investigação em curso.

Oportunamente, tais restrições vêm a conferir maior credibilidade e


imparcialidade a atuação desses peritos, evitando que qualquer contato pregresso
com o objeto da investigação, sob prisma diverso da investigação criminal, possa
contaminar suas opiniões acerca das análises técnicas que realizarão de modo
inteiramente independente do Sipaer, a serviço da polícia judiciária.

O CBA, por seu turno, em seu art.88-B 34 , abarca a estrita previsão nesse
sentido, onde quaisquer confusões subjetivas entre os diferentes elos da investigação
dualista de acidentes aeronáuticos haverão de mutuamente contaminar o produto de
todo um extenso trabalho, além de deflagrar uma série de efeitos na seara processual
cível e penal35, que impactarão no custo e economia processual – afora na eficácia e
credibilidade dos órgãos envolvidos no sistema.

34Art. 88-B. A investigação Sipaer de um determinado acidente, incidente aeronáutico ou ocorrência de solo
deverá desenvolver-se de forma independente de quaisquer outras investigações sobre o mesmo evento, sendo
vedada a participação nestas de qualquer pessoa que esteja participando ou tenha participado da primeira.

35
Conforme inciso II do art. 279:
Art. 279. Não poderão ser peritos:
[...]
II - os que tiverem prestado depoimento no processo ou opinado anteriormente sobre o objeto da perícia;
28

4 – O SIPAER E SEUS PRINCÍPIOS INFORMATIVOS

Conforme abordado anteriormente, o sistema de investigação e prevenção de


acidentes aeronáuticos – Sipaer é parte integrante do sistema de infraestrutura
aeronáutica brasileiro, cuja previsão encontra-se no código aviatório pátrio, art. 25, V
do CBA36, sendo juntamente ao Sisceab37, órgão da administração direta subordinado
diretamente ao Comando da Aeronáutica.

Mesmo após a ampla descentralização ocorrida na administração da


infraestrutura aeronáutica, no ano de 2005, que incumbiu à Agência nacional de
aviação civil - Anac, de uma série de atribuições previstas no art. 25 do CBA, o controle
do Sipaer foi estrategicamente mantido sob o manto diretivo do Comando da
Aeronáutica, pois conforme expõe oportunamente Honorato:

[...] o deferimento da competência de regular e fiscalizar as atividades


de prevenção à ANAC se mostra como incompatível com as demais
atribuições da agência e, talvez, tenha sido esse o intento do legislador
ordinário em excluir, expressamente, tal competência da ANAC (2011,
p.51).

Com efeito, o legislador ordinário cunhou expressamente no inciso XXI, do art.


8º da Lei n. 11.182 de 200538, que compete à Autarquia a regulação e fiscalização da

36
Lei Federal 7.565 de 1986 - Art. 25. Constitui infra-estrutura aeronáutica o conjunto de órgãos, instalações ou
estruturas terrestres de apoio à navegação aérea, para promover-lhe a segurança, regularidade e eficiência,
compreendendo:
[...]
V - o sistema de investigação e prevenção de acidentes aeronáuticos (artigos 86 a 93);
[...]
37
É o conjunto de órgãos e instalações – tais como auxílios à navegação aérea, radares de vigilância, centros de
controle e torres de controle de aeródromo, estações de telecomunicações, recursos humanos, etc. – que tem
como objetivo proporcionar regularidade, segurança e eficiência do fluxo de tráfego nos aeroportos e no espaço
aéreo. Disponível em: <https://www.decea.gov.br/sirius/index.php/2011/06/14/sisceab-sistema-de-controle-
do-espaco-aereo-brasileiro/#:~:text=%E2%80%93%20Supervis%C3%A3o%20de%20fabrica%C3%A7%C3%A3o%
2C%20reparo%2C,de%20aux%C3%ADlio%20%C3%A0%20navega%C3%A7%C3%A3o%20a%C3%A9rea> Acesso
em 10 de jul. 2020.
38
Art. 8° Cabe à ANAC adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o
desenvolvimento e fomento da aviação civil, da infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária do País, atuando
com independência, legalidade, impessoalidade e publicidade, competindo- lhe:
(...)
29

infraestrutura aeronáutica no Brasil, excetuando-se, contudo, e de forma expressa, o


Sipaer do rol de atribuições à Anac, em atenção à disparidade finalística que recobre
o escopo de atuação de ambas entidades, e que se justifica mediante a atuação
fiscalizadora e administrativa da Autarquia, bem como motiva a limitação da agência
no âmbito do Sipaer, conforme colhe-se do art. 4º, §3º, do Decreto n. 9.540/2018:

Art. 4º [...]
[...]
§ 3º A Anac poderá solicitar à autoridade de investigação Sipaer a
participação de seu representante nas ocorrências de seu interesse,
com vistas à prevenção de novas ocorrências aeronáuticas, vedada a
participação daquele representante para fins de imputação de
responsabilidade administrativa, civil ou penal. (Grifou-se)

O Sipaer, por seu turno, realiza em meio a cadeia de infraestrutura aeronáutica


brasileira uma dupla função, sendo responsável pela condução das atividades de
prevenção e de investigação de acidentes aeronáuticos; englobando em seu bojo uma
série de princípios e autonomias amparados por tratados internacionais e leis, que o
elevam à categoria de microssistema jurídico de suma importância ao Direito
Aeronáutico, conforme lição do Magistrado Marcelo Honorato:

O Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos,


atualmente sob a atribuição da Autoridade Aeronáutica, desenvolve-
se sob balizas absolutamente diferentes do sistema jurisdicional
brasileiro, possuindo princípios jurídicos específicos, capazes de
tornar tal sistema um verdadeiro microssistema jurídico especial
(2012. p.30).

O amplo arcabouço principiológico do Sipaer exerce um importante papel


hermenêutico no que tange à interpretação e alcance das disposições normativas do
CBA, que requerem do interprete e aplicador da norma uma maior observância quanto
aos aspectos sistemáticos e técnicos que a legislação, sobretudo no tocante à
ponderação de seus valores ante a existência de conflitos com outras normas.

XXI - regular e fiscalizar a infra-estrutura aeronáutica e aeroportuária, com exceção das atividades e
procedimentos relacionados com o sistema de controle do espaço aéreo e com o sistema de investigação e
prevenção de acidentes aeronáuticos; (grifo nosso)
30

4.1 - Princípio Da Preservação Da Vida Humana

O princípio da preservação da vida humana, no oportuno enquadramento de


Honorato (2014, p.437), afigura-se como princípio-matriz em torno do qual todos os
esforços do Sipaer são concentrados. Sob o seu manto de proteção encontram-se a
coletividade em sua ampla acepção, pois abrange a preservação da vida de todos os
indivíduos diretamente expostos aos riscos da aviação, ou seja: vidas embarcadas,
bem como a população em solo sob áreas destinadas ao tráfego aéreo.

Os alicerces que conferem sólida sustentação ao princípio da preservação da


vida humana remontam a própria instituição do Sipaer, tratando-se de um dos
compromissos firmados por todos os países signatários da OACI, que se
comprometem a estabelecer sistemas independentes de investigação e prevenção de
acidentes (modelo dualista); sendo expressa e categórica a sua menção na redação
do §1º do art. 1º do Decreto nº 87.249/82, por meio do qual instituiu-se o Sipaer:

Art. 1º. O Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes


Aeronáuticos (SIPAER), instituído pelo Decreto nº 69.565, de 19 de
novembro de 1971, tem a finalidade de planejar, orientar, coordenar,
controlar e executar as atividades de investigação e prevenção de
acidentes aeronáuticos.
§ 1º. Para efeito deste Decreto, as atividades de investigação e
prevenção de acidentes aeronáuticos são as que envolvem as tarefas
realizadas com a finalidade de evitar perdas de vidas e de material
decorrentes de acidentes aeronáuticos. (grifou-se)

Posteriormente, no ano de 2018, o Poder Executivo da União editou o


Decreto nº 9.540 de 2018, que revogou o ato normativo de 1982, trazendo à luz uma
nova redação onde, embora a menção à finalidade de evitar perdas de vidas humanas
tenha sido suprimida, parece-nos que acertada foi a opção do órgão legislador atípico
ao ampliar o senso de proteção ao bem jurídico vida, quando inseriu no bojo do
dispositivo a expressão: “finalidade de reduzir a probabilidade de lesões às
pessoas”39, que, por meio do emprego do substantivo “probabilidade”, faz implícita

39
Art. 1º [...]
31

homenagem ao princípio da máxima eficácia preventiva, detentor de suma


importância no estudo do Sipaer.

A relevância do princípio protetivo em comento, justifica, por si só, a prevalência


deste sobre os demais, de modo que, não debalde, ele costuma encabeçar o rol
principiológico que norteia o microssistema jurídico albergado pelo Sipaer. A
prevalência do princípio da preservação da vida humana reafirma a sua importância,
também, no momento em que fundamenta uma importante medida legislativa que
preconiza a precedência da investigação Sipaer sobre as demais investigações e
procedimentos, conforme dispõe o art. 88-C do CBA:

Art. 88-C. A investigação Sipaer não impedirá a instauração nem


suprirá a necessidade de outras investigações, inclusive para fins de
prevenção, e, em razão de objetivar a preservação de vidas
humanas, por intermédio da segurança do transporte aéreo, terá
precedência sobre os procedimentos concomitantes ou não das
demais investigações no tocante ao acesso e à guarda de itens de
interesse da investigação. (grifou-se)

A norma do art. 88-C do CBA, inserida por meio da Lei nº 12.970/14, é resultado
dos esforços da comunidade aeronáutica internacional que associada a uma intensa
pauta reivindicatória interna, por meio da qual a sociedade civil brasileira exigiu
mudanças, sobretudo de caráter preventivo e de investigação, conforme rememora o
órgão central do Sipaer, em estudo destinado ao Supremo Tribunal Federal, que
analisa uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Ministério Público
Federal, que segue:

10. Entre os anos de 2006 e 2007, o Brasil foi assolado por duas
grandes tragédias aeronáuticas, envolvendo duas das maiores
companhias aéreas do país, as quais vitimaram centenas de cidadãos
e atingiram outras centenas de familiares dos vitimados.
11. Impulsionada pelos nefastos impactos dessas catástrofes, a
sociedade brasileira pôs em pauta um longo debate legislativo para o
melhoramento e aperfeiçoamento da atividade aérea no país,
inserindo-se, nesse contexto, a investigação de acidentes
aeronáuticos.

§ 4º A investigação e a prevenção têm a finalidade de reduzir a probabilidade de lesões às pessoas ou de danos


aos bens decorrentes de acidentes ou incidentes aeronáuticos e de ocorrências de solo e não têm o propósito
de atribuir culpa ou responsabilização no âmbito administrativo, civil ou penal.
32

12. Desse modo, após longos 8 anos, aproximadamente, de amplos


debates na Câmara dos Deputados e Senado Federal , ao cabo de
todo o processo legislativo pertinente, o Poder Legislativo aprovou a
Lei Ordinária nº 12.970/2014, que alterou e inseriu dispositivos no
CBA, como um produto e resposta aos anseios e demandas sociais
para o aperfeiçoamento operacional da aviação civil brasileira, com o
escopo de mitigar ou reduzir a possibilidade de repetição de novas
tragédias (evitar a recorrência). (grifos do autor) (2017, n.p, grifo do
autor).

A positivação da norma que garante a precedência da investigação Sipaer


sobre as demais é manifestação direta dos efeitos do princípio da preservação da vida
e possui seus fundamentos em aspectos teleológicos devidamente dimensionados a
conjugar a especificidade técnica da investigação junto à potencial capacidade de
identificar fatores de riscos por meio da análise de destroços, e, assim, excluir ou
mitigar de modo célere um iminente risco, análogo àquele que deflagrou do sinistro
investigado.

Com pertinência, Honorato ilustra a questão da precedência à luz de um icônico


caso concreto, em que a autoridade Sipaer fora demandada por autoridade policial de
modo a fornecer-lhe livre acesso a destroços de aeronaves acidentadas, no fatídico
episódio do sinistro aéreo envolvendo a aeronave matrícula PT-NOB, operada pela
empresa Noar linhas aéreas, em 2011. No caso em comento, provocado, o juízo
federal do estado de Pernambuco, prolatou-se denegando o acesso, sob seguinte
fundamento:

É que a autoridade aeronáutica, a teor do art. 89 do Código Brasileiro


de Aeronáutica (lei Federal n. 7.656, de 26 de dezembro de 1986), em
interpretação in contrário sensu, detém prioridade de acesso aos
destroços de aeronave acidentada, norma essa especial em relação
ao CPP.
Desse modo, todas as pesquisas e análises de materiais irão
ocorrer, primeiramente, sob o escopo do Sistema de Investigação
e Prevenção a Acidente Aeronáuticos [sic] (art. 86 a 93 do CBA).
Por outro lado, tal prioridade não pode, por outra vertente, inviabilizar
a atuação dos órgãos policiais e jurisdicionais, na determinação da
responsabilidade civil e penal.
IP 0010878-51.2011.4.05.8300, Juíza Federal Flávia Tavares Dantas,
JFPE, Data: 09/09/20011 (2014, p.506, grifo do autor).

Por sua vez, no caso do sinistro envolvendo a aeronave Airbus A-320,


matricula: PR-MBK, operada pela TAM Linhas Aéreas, ocorrido no ano de 2007, na
33

cidade de São Paulo, o Sipaer pôde demonstrar o papel principiológico que a


preservação da vida humana exerceu no cenário prático, a partir do momento em que
o acesso aos destroços foram prioritariamente voltado às análises do Cenipa, permitiu
que a autoridade aeronáutica pudesse, em tempo hábil, identificar situações de risco
e preliminarmente emitir recomendações de segurança aos diferentes atores
envolvidos na ocorrência.

O acidente ocorreu no dia 17 de julho de 2007, ao passo que o Relatório Final


fora divulgado na data de 27 de outubro de 2009. Contudo, cerca de 60 dias após o
acidente, um número de 19 das 83 recomendações de segurança40 já haviam sido
emitidas e remetidas aos respectivos destinatários, dentre os quais se encontravam o
operador da aeronave, a Anac e a Infraero. Tal celeridade, possivelmente não teria
sido alcançada se a investigação Sipaer não gozasse da precedência de acesso aos
destroços da aeronave acidentada.

4.2 - Princípio da Neutralidade Jurisdicional

Conforme explanado alhures, a investigação conduzida sob a égide do Sipaer


difere-se de qualquer outro procedimento investigativo administrativo ou judicial cuja
finalidade precípua seja a apuração de culpa dos envolvidos na ocorrência
aeronáutica. Trata-se, inclusive, de premissa recorrente nos diversos diplomas e
textos normativos: a expressa vedação à finalidade persecutória ou probatória penal
por meio das fontes oriundas das análises e conclusões especulativas do Sipaer.

Tem-se, portanto, o traço fundamental que diferencia tal expediente


investigativo dos demais que se voltam aos fins punitivos: a apuração de fatos
destinada a identificar situações de riscos que contribuíram para o desfecho trágico
de uma operação aeronáutica, para que, dessa forma, seja possível excluir-se ou
mitigar-se a recorrência de tais fenômenos catastróficos.

40
BRASIL. Comando da Aeronáutica. Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Relatório
final A-nº67/CENIPA/2009. Recomendações de Segurança. Disponível em: http://sistema.cenipa.aer.mil
.br/cenipa/paginas/relatorios/recomendacoes.php?numero_relatorio=A-067/C ENIPA/2009. Acesso em: 12 jul.
2020.
34

Para que se possa, porém, chegar a um patamar conclusivo acerca dos fatores
que resultaram em um acidente aeronáutico, diversos são os expedientes
investigativos que podem consistir desde a degravação de dispositivos de coleta de
dados de voo (FDR - Flight Data Recorder e CVR - Cockpit Voice Recorder), análises
e ensaios laboratoriais, até a oitiva de um incontável rol de pessoas cujas declarações
voluntárias poderão auxiliar positivamente na investigação.

Para que esse conjunto de ações concentrados na investigação Sipaer


possibilite a máxima abrangência e eficácia preventiva, exige-se dela uma ampla
análise através da especulação cognitiva de todos os elementos prováveis que
contribuíram com o acidente. Tal método, por sua vez, não se atém às certezas
cartesianas comum à investigação criminal, pois visa percorrer todas as linhas de
desdobramento fático possíveis, conforme colhe-se do art. 88-A do Código Brasileiro
de aeronáutica.

Art. 88-A. A investigação Sistema de Investigação e Prevenção de


Acidentes Aeronáuticos - SIPAER englobará práticas, técnicas,
processos, procedimentos e métodos empregados para a identificação
de atos, condições ou circunstâncias que, isolada ou conjuntamente,
representem risco à integridade de pessoas, aeronaves e outros bens,
unicamente em proveito da prevenção de acidentes aeronáuticos,
incidentes aeronáuticos e ocorrências de solo.

Todavia, paira por sobre a investigação Sipaer uma ampla gama de interesses
corporativos e pessoais inerentes aos envolvidos em um acidente aéreo, indivíduos
estes cujas esferas jurídicas passam a orbitar preocupantemente os potenciais
desfechos de responsabilização cível, penal ou administrativa; desencadeando, por
vezes, ao longo de uma investigação, uma equivocada tendência à invocação das
máximas da ampla defesa e do contraditório, tratando-se, pois, de um contrassenso.

É certo que não se pode perder de vista que o direito à ampla defesa e ao
contraditório, por sua vez, afigura-se como uma das mais importantes e brilhantes
conquistas do estado democrático de direito, e decorrem de um super princípio cuja
norma encontra-se insculpida no inciso LV do art. 5º da CF/88, sendo a sua redação
objetivamente sucinta:

Art. 5º [...]
35

LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos


acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes; (grifou-se)

Nas lições de Grecco Filho (2014, p. 55 a 57) a ampla defesa consiste do direito
que o acusado possui de contraditar a acusação mediante prévio conhecimento de
todos os seus aspectos, ao passo que o contraditório se afigura como meio técnico
de efetivação da ampla defesa; sendo requisito, a luz da norma constitucional, a
presença de litígio ou acusação – o que não se subsome ao cenário existente por trás
da investigação administrativo-preventiva do Sipaer, haja vista de que nesta inexistem
imputações de qualquer espécie.

A finalidade estritamente preventiva da investigação Sipaer, por sua própria


natureza, que não visa a responsabilização, não poderia encontrar óbices que
dificultassem a célere elucidação de fatores de risco, sobretudo à incolumidade
pública; o que, associado a ausência de vinculação ad hominem direta ou de terceiros,
não haveria de colidir com direitos e garantias fundamentais que versam sobre a
ampla defesa e ao contraditório, em apertada definição, conforme Honorato sintetiza:

A investigação aeronáutica é um procedimento administrativo


investigativo e de cognição essencialmente especulativa, instaurada
no intuito de prover uma maior segurança às atividades aéreas.
Caracteriza-se ainda por desenvolver sem rígidos formalismos e
afastada da observância do contraditório e ampla defesa, pois visa,
exclusivamente, a evitar novos acidentes “art. 86-A do CBA” (2014, p.
440).

A redação do art. 86-A do código aviatório, na qual o douto magistrado e autor


balizou-se para tecer tal assertiva, ao encerrar os limites teleológicos da investigação
de acidentes aeronáuticos, termina por excluir todo e qualquer fim distinto daquele
que o legislador propõe, elidindo, com isso, precedente para que haja espaço a
quaisquer pleitos de responsabilização, e, por corolário: o cabimento ao argumento
da ampla defesa e contraditório.

A total ausência de acusação ou litigiosidade de qualquer aspecto ou


potencialidade para que efeitos jurídicos de responsabilização e desfavoráveis
possam alcançar os agentes diretamente envolvidos no sinistro investigado, poderia
somente ser deflagrada, se por ato deliberado e voltado à acusação, amparando-se
36

em uma ou mais provas; no entanto, repise-se: trata-se de ato vedado pela legislação
e fadado a sucumbir dada a flagrante ineficácia processual e ilicitude probatória.

Desse modo, a neutralidade jurisdicional da investigação Sipaer afirma-se de


um lado: pela vedação de aspecto acusatório e a ausência total de lide, o que afasta
quaisquer indagações acerca do exercício da ampla defesa e ao contraditório; ao
passo que, pelo outro lado: em sua total independência e ausência de
suplementariedade e subsidiariedade a favor de qualquer outro procedimento
investigativo judicial ou administrativo, conforme dispõe o art. 88-C do CBA:

Art. 88-C. A investigação Sipaer não impedirá a instauração nem


suprirá a necessidade de outras investigações, inclusive para fins de
prevenção, e, em razão de objetivar a preservação de vidas humanas,
por intermédio da segurança do transporte aéreo, terá precedência
sobre os procedimentos concomitantes ou não das demais
investigações no tocante ao acesso e à guarda de itens de interesse
da investigação.

O Magistrado, Marcelo Honorato (2014, p.445), ressalta, contudo, que a


vedação à suplementariedade disposta no art. 88-C do CBA, de acordo com o que
preconiza o inciso III e o §2º do art. 88-I41, aplica-se somente às análises e conclusões,
bem como às informações fornecidas voluntariamente por terceiros, sendo possível o
intercâmbio de informações onde a lei não conter expressa vedação.

4.3 - Princípio da Máxima Eficácia Preventiva

Conforme constatou-se, a ausência de lide ou de quaisquer acusações movidas


em face daqueles direta ou indiretamente envolvidos em um acidente aeronáutico cuja
a investigação seja a movida pela autoridade Sipaer, torna-se por desnecessária a

41
Art. 88-I. São fontes Sipaer:
[...]
III - dados dos sistemas de notificação voluntária de ocorrências;
[...]
§ 2º A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as análises e conclusões da investigação Sipaer
não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente
serão fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta Lei.
37

invocação das máximas protetivas do contraditório e ampla defesa, distanciando-se


objetivamente o procedimento investigativo, em comento, da sistemática reinante no
sistema acusatório pátrio.

A Investigação Sipaer possui, como já asseverado, a distinta finalidade


preventiva, e para que se realize de maneira amplamente eficaz, ei de reservar-se das
máximas inafastáveis do sistema acusatório, sem que isso lhe acometa por quaisquer
patologias que tais inobservâncias causariam ao processo judicial. O princípio da
máxima eficácia preventiva presta serviço nesse exato sentido e distancia, por sua
vez, o procedimento Sipaer das análises causais restritivas e das certezas cartesianas
que norteiam o princípio das verdades: formal e real, do processo cível e penal.

A tríplice distinção constatada, até o momento, entre o sistema de investigação


aeronáutico e o sistema acusatório tornam abundantemente claros os contornos
ontológicos das análises e conclusões da investigação Sipaer exaradas em seus
Relatórios Finais, pois constituídas totalmente às margens das principais garantias
existentes no direito; sendo, outrossim, nítidas as razões de a legislação vedar o seu
respectivo emprego para fins de responsabilização cível, penal e administrativa.

Compete, porém, a análise de como os diferentes sistemas divergem tanto em


seus meios quanto em seus fins, tornando, pois, a Investigação Sipaer imprestável
para eventuais finalidades acusatórias. Nesse sentido, o legislador define
objetivamente os meios com que os diferentes atores estatais hão de conduzir suas
respectivas tarefas, à luz da estrita legalidade, com fito na análise sequencial fática
que desencadeou o resultado naturalístico pelos diferentes prismas possíveis de
observação.

O art. 88-A do CBA abriga em sua redação o aspecto teleológico central da


Investigação Sipaer (a prevenção), abarcando, porém, a designação do método com
que a autoridade aeronáutica haverá de realizar a sua missão, a saber: “a identificação
dos fatores que tenham contribuído direta ou indiretamente, para a ocorrência”,
conforme disposto em seu caput:

Art. 86-A. A investigação de acidentes e incidentes aeronáuticos tem


por objetivo único a prevenção de outros acidentes e incidentes por
38

meio da identificação dos fatores que tenham contribuído, direta ou


indiretamente, para a ocorrência e da emissão de recomendações de
segurança operacional.

Em primeiro plano, observa-se a evidente limitação objetiva que, em


consonância à normativa internacional, norteia o código aviatório brasileiro, sentido a
restringir a destinação das investigações conduzidas sob a égide do Sipaer. Adiante,
segue o legislador, em vincular a investigação a persecução dos fatores que de
maneira próxima ou remota tenham influenciado a cadeia de desdobramento fático
causadora do acidente, para ao fim emitir recomendações de segurança aos
diferentes agentes, tendo-se por referência unicamente a conveniência e o papel que
cada um destes exerce no modal aeronáutico.

A ótica que se extrai do art. 86-A do CBA, poderá, prima facie, induzir o
interprete indevidamente familiarizado com a investigação aeronáutica, a estabelecer
uma errônea conclusão de que o fato de se editar uma recomendação de segurança
e destiná-la a um órgão, empresa ou agente específico, no curso da investigação seja
uma indicação velada de culpa. Equívocos nesse sentido já ensejaram condenação
cível42 para além da responsabilidade do réu, e demanda ampla cautela, sobretudo
do poder judiciário naquilo que tange ao alcance probatório ao ser valorar esse
específico ato administrativo estritamente preventivo.

O critério aplicado ao remeter-se uma recomendação de segurança operacional


não decorre estritamente de eventuais relações diretas ou indiretas com a cadeia
fática deflagradora do acidente, pois, quando muito, o destinatário da medida
administrativa sequer possui relação causal com o resultado. O que, de fato, se afere
no instante em que se elege um eventual destinatário a emitir-se uma recomendação
é o seu papel e competências no meio aeronáutico, bem como a sua capacidade de

42
Vide Seção 6.1: Caso INFRAERO – Reponsabilidade Civil.
39

excluir ou mitigar situações análogas de risco, conforme observado na lição de


Honorato:

As conclusões do procedimento de investigação Sipaer, pautadas na


ampla liberdade cognitivo-especulativa, resumem-se a prolatar
recomendações de segurança, cujos destinatários não são
selecionados em função de eventual relação causal com o acidente,
mas sim, com a sua capacidade funcional de excluir ou mitigar as
condições inseguras detectadas. Ou seja, até mesmo as orientações
operacionais da investigação aeronáutica são destituídas de caráter
sancionador e não evidencia autoria delitiva.
Nesse sentido, pode-se afirmar que tis atos administrativos, as
recomendações de segurança de voo, amoldam-se à classe das
medidas ou providencias operacionais administrativas [...] (2014, p.
441).

Ainda, nesse sentido, nota-se o distanciamento existente entre as análises e


conclusões da investigação Sipaer, quando contrapostas à apertada normativa penal
no tocante à relação de causalidade, posto que para o Direito Penal, a imputação de
um resultado só há de ser imposto àqueles que lhe derem causa, e uma vez rompido
tal elo casuístico, ao menor indício de causa estranha, alheia à vontade, capaz de
romper a cadeia de desdobramento fático, alterando, por si, o resultado, impossível
será qualquer imputação, conforme reza o art. 13 do Código Penal:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente


é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou
omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
§ 1º - A superveniência de causa relativamente independente exclui a
imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores,
entretanto, imputam-se a quem os praticou.

Na seara investigativa do Sipaer, determina o legislador exatamente o oposto


da ótica restritiva predominante na análise causal do direito penal, existindo, à luz do
§ 1º do art. 88-A, o dever de se considerar todas as hipóteses prováveis que tenham
contribuído com o desfecho trágico, não sendo excluídos da cadeia de especulação
investigativa a análise precisa das de causas paralelas (concausas) que
eventualmente tenham ocorrido, haja vista que nesse exercício retroditório não se
busca imputar culpa de nenhum aspecto aos agentes envolvidos.

A ótica investigativa Sipaer, para que alcance sua máxima eficácia preventiva,
precisa estender o conceito de causa cronologicamente disposta, para assumir a
40

existência de possíveis fatores contribuintes, que deverão ser perseguidos sem que a
imposição de obstáculos de ordem subjetiva, espacial ou restritiva em matéria penal
que possa impor-lhe quaisquer óbices à ampla cognição dos fatos. Tal máxima é
recorrente na normativa aeronáutica, tal como preconizam o §1º do art. 88-A e o caput
do art. 88-H, ambos do CBA:

Art. 88-A. [...]


§ 1º A investigação Sipaer deverá considerar fatos, hipóteses e
precedentes conhecidos na identificação dos possíveis fatores
contribuintes para a ocorrência ou o agravamento das consequências
de acidentes aeronáuticos, incidentes aeronáuticos e ocorrências de
solo.
Art. 88-H. A investigação Sipaer de acidente aeronáutico será
concluída com a emissão do relatório final, documento que representa
o pronunciamento da autoridade de investigação Sipaer sobre os
possíveis fatores contribuintes de determinado acidente aeronáutico e
apresenta recomendações unicamente em proveito da segurança
operacional da atividade aérea.

A diferença ontológica entre causa e fator contribuinte tange, senão, a mais


relevante distinção existente entre as diferentes investigações do modelo dualista, que
recai entre o grau de probabilidade de conexão desta com o resultado: o sinistro
aeronáutico e a fenomênica que lhe tenha antecedido. Nas precisas palavras de Luiz
Flávio Gomes et al (2015, p.221), “do ponto de vista naturalístico, tudo o que concorre
para o resultado é causa dele”; ao passo que na seara investigativa Sipaer, causa
passa a se denominar por fator contribuinte, recebendo tratamento ampliativo e
desvinculado da volição dos agentes, conforme descrito pela seção 1.5.19 da NSCA
3-13/2017:

1.5.19 FATOR CONTRIBUINTE


Ação, omissão, evento, condição ou a combinação destes que, se
eliminados, evitados ou ausentes, poderiam ter reduzido a
probabilidade de uma ocorrência aeronáutica, ou mitigado a
severidade das consequências da ocorrência aeronáutica. A
identificação do fator contribuinte não implica presunção de culpa ou
responsabilidade civil ou criminal.

Ao determinar que fatores contribuintes sejam ações, omissões, condições ou


a conjugação randômica destas, que uma vez eliminados simplesmente reduziriam a
probabilidade do resultado ter se consumado, torna-se, pois, indiscutível o amplo
distanciamento com que as análises e conclusões Sipaer conservam das certezas
41

cartesianas do sistema acusatório penal, para o qual é imprescindível grau máximo


de certeza, que uma vez ausente, prevalecerá o princípio in dubio pro reo.

A sistemática Sipaer diverge também, cabe observar, das garantias efetivadas


pelo princípio da verdade real (GOMES, 2011, n.p), por meio do qual o Estado-punidor
somente exerce o seu ius puniendi em face da inequívoca constatação, que buscará
incondicionalmente ao decorrer do processo, não estando aquele que a procurar nas
linhas da investigação Sipaer trilhando um preciso vetor informativo, eis que a lei veta
o emprego dessas informações para quaisquer fins acusatórios.

Ademais, a marcante abstração causal reinante na investigação Sipaer requer,


no intuito de prover a máxima abrangência fática possível, com que se adote a teoria
conditio sine qua non de modo absolutamente ilimitado; permitindo-se, assim com que
o curso da investigação aeronáutica regresse ao tempo dos fatos, ao modo que a
discricionariedade e tirocínio técnico do investigador lhe guiar. Nesse sentido, as
limitações legais e construções jurisprudenciais e doutrinárias não surtem efeito
restritivo algum.

Em suma, a observação que se faz sob a ótica do panorama preventivo da


investigação revela, na lição de Honorato, a distinta especificidade com que a
abordagem Sipaer ocorre, balizando-se internamente por uma principiologia particular
que a destaca e diferencia do sistema acusatório penal, atribuindo-lhe contornos
objetivos de um microssistema jurídico, cujo prévio conhecimento e domínio de sua
natureza e campo de atuação, revela-se essencial aos operadores do direito e todos
os demais atores do sistema.

4.4 - Fontes Sipaer e os princípios do sigilo e da proteção.

O Sipaer, enquanto sistema de prevenção e investigação de acidentes


aeronáuticos instituído no Brasil em observância ao Anexo-13 da Convenção de
Chicago, compreende um mecanismo cuja precípua finalidade destina-se à
investigação e prevenção de acidentes aéreos; missão, no entanto, que demanda
uma criteriosa sistemática operacional, que engloba a manipulação de um gênero
42

específico de informações organizadas de acordo com a sua origem e espécie, cada


qual hábil a suprir uma específica demanda procedimental.

Trata-se, pois, das fontes Sipaer, gênero que compreende um rol de


informações produzidas ou coletadas antes e após um acidente e que possuem
fundamental importância no desempenho de uma especifica investigação, bem como
às demais atividades preventivas do Sipaer. Por essa razão, essas informações
demandam a proteção especial no que tange ao acesso de seus respectivos
conteúdos, bem como à sua empregabilidade, de modo que a OACI orienta os
Estados-parte da Convenção de Chicago a instituir sistemas de proteção e sigilo das
fontes desse material, conforme pontua Honorato, em livre tradução da seção 5.12 do
Anexo - 13 da referida convenção:

5.12 O Estado que conduz a investigação de um acidente ou incidente


não deve disponibilizar os seguintes registros para outros fins que
não a investigação de um acidente ou incidente, a menos que a
autoridade competente para a administração da justiça do Estado
determine que a sua divulgação prevaleça sobre o impacto
adverso, nacional e internacional, em investigações futuras:
a) todas a declarações tomadas de pessoas no decurso de sua
investigação;
b) todas as comunicações entre pessoas que tenham sido envolvidas
na operação do avião;
c) informações médicas ou pessoais das pessoas envolvidas no
acidente ou incidente;
d) gravações de voz do cockpit e transcrições de tal gravações;
e) as gravações e transcrições de gravações de gravações das
unidades de controlo [sic] de trafego aéreo, e
f) pareceres sobre a análise das informações, incluindo informações
de gravadores de voo (2014, p.455, grifo do autor).

O sistema de proteção às informações e respectivas fontes as quais o Anexo -


13 da Convenção de Chicago faz menção, passou a integrar literalmente o código
aviatório brasileiro após o advento da Lei nº 12.970/2014, que introduziu na Seção III
do referido diploma, que versa sobre o sigilo profissional e proteção à informação, sob
estrita consonância ao que foi previsto no tratado internacional: o rol de informações
destinadas à prevenção e investigação de acidentes aéreos, para as quais o Estado
confere proteção especial, tendo o art. 88-I sido editado sob a seguinte redação:
43

Art. 88-I. São fontes Sipaer:


I - gravações das comunicações entre os órgãos de controle de tráfego
aéreo e suas transcrições;
II - gravações das conversas na cabine de pilotagem e suas
transcrições;
III - dados dos sistemas de notificação voluntária de ocorrências;
IV - gravações das comunicações entre a aeronave e os órgãos de
controle de tráfego aéreo e suas transcrições;
V - gravações dos dados de voo e os gráficos e parâmetros deles
extraídos ou transcritos ou extraídos e transcritos;
VI - dados dos sistemas automáticos e manuais de coleta de dados; e
VII - demais registros usados nas atividades Sipaer, incluindo os de
investigação.
[...]
§ 2º A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as
análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas
para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos
administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição
judicial, observado o art. 88-K desta Lei.
[...]
§ 4º Salvo em proveito de investigação Sipaer e de outras
atividades de prevenção, será vedado ao profissional do Sipaer
revelar suas fontes e respectivos conteúdos, aplicando-se-lhe o
disposto no art. 207 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de
1941 - Código de Processo Penal, e no art. 406 da Lei no 5.869, de
11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil. (grifou-se)

Mantendo o alinhamento à Convenção de Chicago e ao Código Brasileiro de


Aeronáutica, o Comando da Aeronáutica dispõe na seção 4.11 da NSCA 3-13 de
2017, o rol das fontes empregadas em suas atividades de investigação, remetendo o
interprete à lei no tocante às vedações processuais, haja vista que sua natureza
infralegal a impede de versar sobre matéria objeto de reserva legal. A Norma de
Sistema, em comento, atua, portanto, em sentido meramente orientador das
atividades dos órgãos de investigação, conforme dispõe:

4.11 TRATAMENTO E PROTEÇÃO DA INFORMAÇÃO


4.11.1 As seguintes informações serão utilizadas para o propósito da
investigação de ocorrências aeronáuticas, sendo a sua utilização total
ou parcial para outros propósitos regulada pela Lei nº 7.565, de 19 de
dezembro de 1986:
a) gravações das comunicações entre os órgãos de controle de tráfego
aéreo e suas transcrições;
44

b) gravações das conversas na cabine de pilotagem e suas


transcrições;
c) dados dos sistemas de notificação voluntária de ocorrências;
d) gravações das comunicações entre a aeronave e os órgãos de
controle de
tráfego aéreo e suas transcrições;
e) gravações dos dados de voo e os gráficos e parâmetros deles
extraídos ou transcritos ou extraídos e transcritos;
f) dados dos sistemas automáticos e manuais de coleta de dados; e
g) demais registros usados nas atividades SIPAER, incluindo os de
investigação.

A análise das disposições do Anexo - 13 em conjunto com as previsões legais


e normativas do SIPAER, denotam a existência de um sistema que busca, de modo
uníssono, uniformizar a atuação do Estado no que compete a tratativa dispensada ao
grupo de informações essenciais à investigação prevenção de acidentes aéreos.
Desse conjunto de normas emanam uma série de princípios basilares que norteiam e
limitam a atuação dos diversos atores da esfera administrativa e judicial.

4.4.1 - O princípio da proteção

O princípio da proteção e sigilo das fontes milita pela vedação ao emprego


descriterioso de dados colhidos pelo Sipaer, garantindo-se, com isso, a confecção de
regramento próprio voltado a condicionar o emprego das informações a quaisquer das
possíveis destinações administrativas ou judiciais, sem, com isso, contaminar os
respectivos processos com a introdução de provas ilícitas coletadas ao arrepio da lei
que institui as normas do sistema, bem como a legislação penal e demais máximas
principiológicas existentes.

Conforme disposto na redação do §2º do art. 88-I do CBA, o sistema de


proteção das fontes Sipaer atua no campo exoprocedimental do âmbito de ação da
autoridade aeronáutica, de modo que as restrições estabelecidas na lei alcançam tão
somente as manipulações externas dos dados protegidos. O acesso à informação,
45

bem como a sua destinação a fins acusatórios submete-se à reserva de jurisdição43,


devendo, portanto, o Poder Judiciário e a autoridade Sipaer pronunciarem-se nos
autos, conforme interpretação sistemática junto a art. 88-K, respectivamente:

Art. 88-I [...]


§ 2o A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as
análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas
para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos
administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição
judicial, observado o art.88-K desta Lei.
Art. 88-K. Para o uso das fontes Sipaer como prova, nos casos
permitidos por esta Lei, o juiz decidirá após oitiva do representante
judicial da autoridade Sipaer, que deverá se pronunciar no prazo de
72 (setenta e duas) horas.

Em paralelo ao regramento que visa estabelecer as condições para o acesso e


emprego das informações Sipaer, estabelece, a Lei aeronáutica, em homenagem ao
princípio da precedência da investigação Sipaer, que o acesso aos destroços de
aeronaves acidentadas, bem como ao material por ela transportada será assegurado
às demais autoridades; havendo, contudo, e existir expressa anuência da autoridade
aeronáutica no que tange a manipulação ou retenção de material, de acordo com a
disposição do art. 88-P, norma introduzida pela Lei nº 12.970/2014:

Art. 88-P. Em coordenação com a autoridade de investigação Sipaer,


ficará assegurado a outros órgãos, inclusive da autoridade de aviação
civil e da polícia judiciária, o acesso à aeronave acidentada, aos seus
destroços ou a coisas que por ela eram transportadas, somente
podendo haver manipulação ou retenção de quaisquer objetos do
acidente com anuência da autoridade de investigação Sipaer.

Observa-se que, sem a existência dos permissivos legais, no que se refere ao


acesso das informações Sipaer, destroços e materiais embarcados procedentes da
aeronave acidentada, bem como o emprego desses dados na instrução probatória,
configuraria uma situação flagrante de inconstitucionalidade , dado que ao restringir-

43 Assevera o Ministério Público Federal que a reserva de jurisdição em comento reputa-se eivada de
inconstitucionalidade, dado que o instituto da reserva de jurisdição não pode emanar do legislador
ordinário como é o caso da Lei. n. 12.970/2014. Vide: capítulo 8 desta monografia.
46

se acesso à atuação do poder judiciário ou a consecução de quaisquer outros direitos


ofendidos por decorrência do sinistro aeronáuticos tipificaria, pois, expressa ofensa
ao princípio constitucional da inafastabilidade (art. 5º, XXXV da CF/88)44.

A indiscutível força normativa do princípio constitucional da inafastabilidade


possui o condão de obstar quaisquer interpretações restritivas quanto ao acesso das
informações protegidas, colhendo-se de tais restrições a total impossibilidade de se
perseguir a verdade real dos fatos. O risco surge, porém, ao considerar-se a extensão
ilimitada de acesso ou emprego às informações constituídas sob aspecto amplamente
especulativo e às margens de quaisquer indícios de autoria delitiva ou conexão fática
indispensáveis à atividade acusatória, que é o caso de algumas fontes.

Atenta ao aspecto especulativo que a atividade investigativo-preventiva confere


à consecução da máxima eficácia preventiva, a OACI sugere aos Estados-parte a
restrição quanto ao emprego desarrazoado das análises e conclusões do exarados
nas investigações aeronáuticas, bem como em relação aos dados obtidos por meio
da notificação espontânea e voluntária. Haja vista que essas informações, por sua
vez, são fornecidas sob plena observância ao princípio do nemo tenetur se detegere,
bem como o princípio da confiança.

O princípio da proteção finca a baliza sobre a margem limítrofe que delimita a


distinção da atividade administrativo-preventiva e a atividade acusatória, de modo a
orientar a interpretação da norma conforme a Constituição, no que tange a
inafastabilidade da jurisdição; ponderando-se, todavia, que a busca da verdade real
deve se dar sob o prisma casuístico propugnado solidamente pelo art. 239 do Código
de Processo Penal45, elemento este ignorado na investigação Sipaer.

44
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
45
Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize,
por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias.
47

Não haverá, porém, limitações quanto ao acesso do Judiciário quanto aos


demais elementos (fontes) desprovidos de valorações especulativas partida da
autoridade aeronáutica, tratando-se, pois, de dados brutos ou procedente de análises
técnicas ou científicas exaradas por agentes externos ao Sipaer, tais quais
laboratórios de análises químicas, estruturais de engenharia ou de degravação de
dados extraídos de dispositivos de registros de dados e voz embarcados.

Repise-se que: mesmo nos casos em que o emprego das fontes permitidas
pelo CBA forem pleiteadas para fins probatórios de incriminação, o legislador
prescreveu a reserva de jurisdição e a oitiva do Sipaer quanto ao teor do material,
como forma de elidir quaisquer possibilidades de se carrear aos autos do processo
judicial provas que conservem o menor distanciamento das máximas protetivas
constitucionais, que possam induzir o órgão julgador à formação de seu livre
convencimento embasado em qualquer aspecto especulativo existente no teor da
prova que será apreciada.

4.4.2 - A sigilosidade das fontes e informações Sipaer

O Anexo - 13 da Convenção de Chicago de 1944 introduz no Sipaer uma cadeia


de proteção voltada a publicização de determinadas informações, que associadas a
uma série de interesses internos correlatos e de ordem processual e administrativa,
permitem com que as fontes e informações do sistema obtenham ampla proteção
desde sua obtenção, bem como ao longo de todo o seu manuseio nas searas
investigativas, judiciais e administrativas em geral.

A internalização no ordenamento jurídico brasileiro de normas que versam


sobre a restrição de acesso à informação baseado em sigilo possui guarida na Lei de
Acesso à informação – LAI (Lei n.12.257 de 2011) regulamentada pelo Decreto nº
7.724 de 2012, que abordam a manutenção do sigilo das informações. Nesse sentido,
a secção 4.11.3 da NSCA 3-13/2017 aborda os aspectos normativos por meio dos
quais a legislação brasileira normatiza a gestão do sigilo:

4.11.3 O art. 74 do Decreto nº 7.724, de 16 de Maio de 2012, que


regula a Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre
o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5º,
no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição,
48

prevê que o tratamento de informação classificada resultante de


tratados, acordos ou atos internacionais atenderá às Normas e
recomendações desses instrumentos.

O art. 88-J do Código Brasileiro de Aeronáutica, estabelece que as informações


elencadas no art. 88-I do código aviatório pátrio, ao serem carreadas aos autos de
processos judiciais ou administrativos, hão de resultar compulsoriamente na
decretação de sigilo, tratando-se, pois de norma processual extravagante, cujo
precípuo objetivo é garantir a restrição do acesso às fontes Sipaer sigilosas expostas
no bojo de processos, que, em regra, são públicos.

A sigilosidade atribuída às informações Sipaer opera os seus efeitos também


no cerne da própria atividade investigativo-preventiva da autoridade aeronáutica, que
no curso da investigação reveste o complexo de dados manuseados pelos peritos de
modo a prevenir com que investidas judiciais ou administrativas de terceiros possa
resultar no acesso de documentos protegidos por sigilo; competindo, todavia, ao poder
judiciário, em muitos dos casos, a palavra final, conforme caso de decisão denegatória
em sede de Mandado de Segurança, ilustrado por Honorato:

Mandado de Segurança, Acidente Aéreo, Indeferimento pelo


Comandante da Aeronáutica de pedido de vista de investigação, com
extração de cópias, para instruir futuras ações indenizatórias.
Investigação não concluída. Sigilo imprescindível para a
apuração. Prevalência do interesse público sobre o particular.
Ausência de direito líquido e certo. Mandado de Segurança denegado,
prejudicado o agravo regimental.
MS 12507/DF, Rel. Ministro José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministro
Teori Albino Zavasky, Primeira Seção, julgado em 22/04/2009, DJe
21/08/2009 (2014, p . 467, grifo do autor).

Pode-se observar pela ementa da decisão acima, que durante o seu curso, a
investigação aeronáutica se desenvolve através de uma série de etapas, ao longo das
quais o manuseio interno de fontes e informações recobertas de sigilo impede o seu
livre acesso porquanto perdurar o procedimento. É, pois, somente ao seu término que
é editado o Relatório Final pelo órgão Sipaer competente, o qual reunirá o montante
de dados irrestritos pertinentes aos fins preventivos e cujo teor será ostensivo, e,
portanto, dotado de ampla publicidade.
49

4.5 - Princípios Da Participação Voluntária e da Confiança

O princípio da participação voluntária e o princípio da confiança conservam uma


importante relação de interdependência entre si, coexistindo em suas estruturas
aspectos comuns diretamente ligados à credibilidade do Sipaer, além de igual
sensibilidade em face de qualquer abalo que possa acometer os elementos centrais
inerentes à voluntariedade com que são prestadas as informações de segurança, bem
como à confiança depositada quanto à destinação das informações prestadas aos fins
estritamente preventivos – máximas da cultura de segurança e cultura justa.

Esmiuçando-se os princípios da voluntariedade e confiança, à luz das normas


penais e princípios de cunho probatório, sobretudo em matéria de prova testemunhal,
a análise pormenorizada de ambos princípios, tendo-se por base seus principais
traços ontológicos, nota-se a existência de uma série de distinções existentes entre
as normas do Sipaer e as máximas que orientam e limitam a atuação acusatória do
Estado no processo judicial; reafirmando-se, com isso, a incompatibilidade objetiva
preconizada pelo inciso III e §2º do art. 88-I do CBA:

Art. 88-I. [...]


[...]
III - dados dos sistemas de notificação voluntária de ocorrências;
[...]
§ 2º A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as
análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas
para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos
administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição
judicial, observado o art. 88-K desta Lei. (grifou-se)

A incompatibilidade das informações inerentes à segurança de voo emitidas


por meio de reportes voluntários de segurança (safety reports) ou aquelas obtidas ao
longo de entrevistas conduzidas em sede de investigações Sipaer, em face das
normas, princípios e garantias protetivas do modelo acusatório penal, permite a
visualização do quão danoso pode ser, aos acusados, o ingresso descriterioso de tais
informações no processo penal, e, de modo reflexo, à confiança depositada e a
funcionalidade do próprio Sipaer.
50

4.5.1 – O princípio da participação voluntária

A participação no procedimento investigativo Sipaer, seja no papel de mero


entrevistado em uma investigação de acidente aéreo ou simplesmente pela iniciativa
de se realizar o preenchimento de um reporte preventivo de segurança, marca uma
das grandes distinções existentes entre a investigação Sipaer e o processo judicial,
recaindo o elemento central dessa distinção sobre o aspecto volitivo com que o
declarante presta as informações ao Sipaer, que será pautado pela total
voluntariedade no tocante a sua iniciativa.

A voluntariedade permite com que o fornecimento de qualquer declaração na


esfera investigativo-preventiva do Sipaer, só ocorra por iniciativa espontânea do
respectivo entrevistado ou declarante; ao passo que no processo judicial, impera-se a
força de motores coercitivos legais que sobrepujam a vontade da parte intimada a se
pronunciar, no papel de testemunha, pois independentemente de sua vontade, em
conhecendo a verdade sobre um fato, esta deverá pronunciar-se a seu respeito, sob
pena de sanção, para o caso de omissões ilícitas.

Constata-se que a “facultatividade” com que um indivíduo pode ser manifestar


no meio operacional da aviação civil, cenário onde se operam as atividades de
segurança, prevenção e investigação de acidentes aéreos, é decorrente das máximas
propugnadas pela doutrina da cultura de segurança, inserta no paradigma de cultura
justa (safety culture e just culture), sendo a voluntariedade o aspecto subjetivo
(animus) predominante na prestação de informações, seja em sede de investigação
Sipaer ou simples reporte de segurança, conforme poder-se observar na redação do
§3º do art. 88-I do CBA:

Art. 88-I. [...]


[...]
§ 3º Toda informação prestada em proveito de investigação Sipaer e
de outras atividades afetas ao Sipaer será espontânea e baseada na
garantia legal de seu exclusivo uso para fins de prevenção.
(grifou-se)

A manutenção do animus coletivo (a disposição para relatar), da parte de cada


um dos distintos atores da aviação civil é resultado imediato da inequívoca crença da
51

não repercussão judicial ou administrativa acerca das informações prestadas. Tal


vedação é, senão, o elemento garantidor central do princípio da participação
voluntária, que faculta àqueles que obtiverem conhecimento de qualquer dado
relevante à segurança das operações ou a um dado acidente, a proatividade para
reportar-se à autoridade Sipaer.

Excetua-se, porém, do escopo de não repercutibilidade judicial ou


administrativa, condutas nitidamente dolosas que produzam riscos concretos à
segurança das operações, aquelas que resultaram na consumação de quaisquer
crimes ou infrações administrativas; estando, desse modo, a autoridade Sipaer,
legalmente vinculada à comunicação do órgão policial competente, tão logo seja
cientificada dos fatos, garantindo-se o anonimato da parte denunciante, conforme a
dicção do art. 88-D do CBA:

Art. 88-D. Se, no curso de investigação Sipaer, forem encontrados


indícios de crime, relacionados ou não à cadeia de eventos do
acidente, far-se-á a comunicação à autoridade policial competente

Outro ponto importante que marca a série de distinções do sistema dualista


recai sobre a investigação Sipaer, de modo que as partes que fornecem
voluntariamente informações por meio dos reportes de segurança ou entrevistas com
os agentes da investigação aeronáutica, não se submetem ao tratamento dispensado
às testemunhas no curso do processo penal, não havendo a prática de atos tais como
a intimação (art. 204 do CPP), o uso de conduções coercitivas (art. 218 do CPP) e
tampouco exigência de prestação de compromisso de dizer a verdade (art. 233 do
CPP), conforme resta imperativo no âmbito da legislação processual penal:

Art. 218. Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de


comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à
autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida
por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.
Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de
dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, devendo declarar
seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar
onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma
das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que
souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as
circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.
52

Por fim, assinala-se o tratamento dado às informações coletadas junto aos


entrevistados ao longo da investigação Sipaer, que no encalço da máxima eficácia
preventiva da investigação, desempenha uma ampla cognição especulativa acerca
dos dados coletados sem realizar quaisquer valorações de cunho probabilístico ou
fático. Por essa razão é afastado do curso dessas investigações a figura do crime de
falso testemunho previsto no art. 342 do CPP46, cuja dicção exclui, já no caput do
artigo, qualquer disposição voltada às figuras da investigação administrativo-
preventiva.

4.5.2 - Princípio da confiança

De modo paralelo ao princípio da participação voluntária, atua o princípio da


confiança, sob estrita proximidade, revestindo a investigação Sipaer da garantia legal
da não empregabilidade das informações fornecidas para fins judiciais e
administrativos. O princípio da confiança é, senão, um dos pilares principais da
doutrina de cultura justa (just culture), pois afasta do cerne de tratativa e manipulação
das informações pertinentes à investigação preventiva qualquer valoração de ordem
subjetiva que possa resultar em uma cultura de responsabilização (blame culture)47.

O risco de que surja uma cultura de responsabilização que venha a afetar o


aspecto central da confiança no Sipaer, por meio de desvios na destinação dos dados
coletados durante uma investigação ou por meio de reportes de segurança, tem sido
objeto de preocupação de operadores aéreos e profissionais da aviação, sendo alvo

46
Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou
intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
47
Em contraponto à cultura de “não responsabilização” (no-blame culture), que pugna pelo exercício das boas
práticas corporativas de segurança, em geral, sem penalizar o erro humano. O princípio da confiança se instala
no exato sentido induzir a participação de todos ao processo, assegurando-os da não responsabilização individual
diante de falhas, mas tão somente da identificação e revisão do processo faltoso, bem como da orientação e
reciclagem dos agentes envolvidos. Conforme pode-se extrair da leitura do artigo disponível no sítio virtual
Wikipédia: https://en.wikipedia.org/wiki/Just_culture
53

de constantes debates junto à OACI, que orienta os Estados acerca de como


administrarem internamente a questão, conforme observa Honorato:

A preocupação da OACI é justamente evitar o efeito adverso do


emprego dessas informações em processos que visem à imputação
de responsabilidade, qual seja, a inibição do fluxo de informações,
elemento vital para a própria sobrevivência dos sistemas preventivos
aviatórios. Nesse sentido, a Nota 1 do Capítulo 5 do anexo 13 da
convenção de Chicago:
Convenção de Chicago de 1944 – Anexo 13:
Nota 1 – As informações contidas nos registros listados acima, que
inclui informações fornecidas voluntariamente por pessoas
entrevistadas durante a investigação de um acidente ou incidente,
podem acabar por serem utilizados inadequadamente em processos
disciplinares e, subsequentemente, em processos civis,
administrativos e criminais. Se tais informações são disponibilizadas,
poderão, no futuro, deixar de ser abertamente fornecidas aos
investigadores. A falta de acesso a tais informações poderá
impedir o processo de investigação e afetar seriamente a
segurança de voo (2014, p.456, grifo do autor).

Balizando-se nas orientações da OACI, os países signatários da Convenção de


Chicago internalizam em seus ordenamentos jurídicos as medidas necessárias para
obstação de eventuais desvios na utilização de dados. Nesse sentido, a expressa
vedação ao emprego das informações Sipaer, referente aos dados de notificação
voluntária (inciso III do art. 88-I do CBA) foram incluídas no §2º do mesmo artigo
informações, por meio da Lei nº 12.970/2014, que o incluiu no CBA sob a seguinte
redação:

Art. 88-I. [...]


[...]
III - dados dos sistemas de notificação voluntária de ocorrências
[...]
§ 2º A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as
análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas
para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos
administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição
judicial, observado o art. 88-K desta Lei.
54

5 - A IMPRESTABILIDADE DA INVESTIGAÇÃO SIPAER NOS TRIBUNAIS

A incorporação dos princípios jurídicos e regras que conformam a aplicabilidade


e a limitação da investigação Sipaer, que o advento da Lei nº 12.970/14 consolidou no
ordenamento jurídico brasileiro, muniu a legislação aeronáutica com um sólido
arcabouço normativo, apto a fundamentar inequivocamente qualquer posicionamento
tendente a afastar, da seara judicial, o emprego das análises e conclusões, extraídas
da investigação Sipaer, sobretudo em casos de responsabilização cível ou penal.

Importante observar, porém, que a série de regras e princípios que hoje figuram
no bojo do código aviatório nacional, não se tratam de recentes inovações
engendradas pelo órgão internacional de aviação civil com o intuito de mitigar o
emprego enviesado de investigações aeronáuticas para os fins que não o estritamente
preventivos. Nesse sentido, há muito que a legislação brasileira, de modo esparso e
sedimentado, dispõe em meio às leis e normas infralegais de uma série de previsões
teleologicamente destinadas a restringir a empregabilidade das investigações de
acidentes aéreos.

A antiga concepção fragmentada das diversas normas que regulavam as


funções do Sipaer, sobretudo em matéria de investigação de acidentes aéreos e de
sua imprestabilidade ao processo judicial, figurou como uma aparente lacuna
normativa aos olhos dos atores judiciais, desatentos às minúcias materiais e
processuais do Direito Aeronáutico; o que, de fato, permitiu com que houvesse na
história dos tribunais uma série de teses de decisões judiciais construídas a partir de
meras conjecturas e hipóteses fáticas extraídas de investigações aeronáuticas.

A intervenção legislativa no CBA atuou positivamente no sentido de que


compilou no bojo da Lei o conjunto de normas princípios e regras já existentes na
legislação brasileira, outrora esparso e sedimentado, traçando claramente os
contornos do Sipaer e delineando-o tal como microssistema jurídico dotado de regras
e princípios próprios, simplificando aspectos hermenêuticos e dispensando amplos
conhecimentos do interprete no que tange à varredura da legislação com vistas à
complexas interpretações sistemáticas.
55

Anteriormente ao advento das mudanças operadas no CBA, a atuação de


magistrados e órgãos acusadores, bem como do jurisdicionado em geral em
demandas indenizatórias cíveis e trabalhistas movidas por decorrência de acidentes
aéreos, foi responsável pela produção de um conjunto de teses e decisões judiciais
construídas a partir de informações extraídas de investigações Sipaer. Contudo, a
superação desse respectivo paradigma passou a ser operado ao longo de pouco mais
de duas décadas, ainda antes da vigência da Lei nº 12.970/14, tendo sido o Superior
Tribunal Militar berço de tal transformação jurisprudencial.

Conforme pontua Honorato (2014, p.605), a construção da atual base


jurisprudencial se deu paulatinamente na Justiça Militar (Superior Tribunal Militar),
onde possivelmente a presença de três ministros oriundos do alto escalão do oficialato
da Força Aérea Brasileira, que por força do art. 123 da CF/88, compõem
obrigatoriamente a corte militar, contribuiu relevantemente para a construção de uma
jurisprudência técnica e juridicamente alinhada às disposições normativas voltadas a
limitar o alcance das investigações aeronáuticas.

A influência do quadro de oficiais aviadores investidos na magistratura, revelou,


desde então, o aspecto relevante no que tange ao teor de julgamentos envolvendo
acidentes aéreos. Evidentemente a formação técnica aeronáutica, detida pelos
Ministros do STM, exerceu influência determinante no tocante à apreciação do
conjunto probatório de natureza técnica aeronáutica, sobretudo no aspecto
especulativo e terminológico reinante na redação de Relatórios Finais, dando-se início
a um movimento jurisprudencial sólido em prol da imprestabilidade da investigação
Sipaer para fins judiciais.

5.1 - Caso helicóptero Super-Lynx (AH-11A) - MARINHA N-4008

O primeiro caso relevante versando sobre a temática da investigação Sipaer


nos tribunais, data do ano de 2000, e se deu em sede de um Habeas Corpus
impetrado com vistas à obtenção de trancamento de ação penal movida pelo
Ministério Público Militar, em face de um oficial da Marinha, que, em missão, no
comando de um helicóptero Super-Lynx (AH-11A), nº4008, colidiu com as águas do
mar no instante em que realizava uma manobra aérea de treinamento, ocasionando a
56

perda total do equipamento, bem como lesões corporais leves aos ocupantes do
aparelho.

A denúncia apresentada pelo Ministério Público Militar foi instruída com o


Inquérito Policial Militar, cujo relatório continha informações que apontavam para a
inexistência de condutas tipificadas no Código Penal Militar. Contudo, o Parquet
Militar, optou por denunciar o réu instruindo a ação penal com cópia do Relatório Final
da investigação Sipaer, sobre o qual lastreou sua acusação, engendrando sua tese
acusatória com base em hipóteses partidas dos fatores contribuintes cogitados no
bojo da investigação aeronáutica.

Conforme se extrai da precisa análise de Honorato, o próprio órgão acusador


militar revelou ter encontrado dificuldades para formar a opinio delicti diante das
informações especulativas presentes na investigação Sipaer; fato que permitiu a clara
visualização de o quão arriscada pode-se tornar a leitura de um relatório de acidente
aéreo, por agente não familiarizado com a linguagem e metodologia existente em
Relatórios Finais do Sipaer, chegando-se ao ponto do próprio órgão ministerial
colocar-se nesse sentido:

Muito embora o laudo técnico seja confuso, e até certo ponto,


paradoxal, os peritos concluíram enfaticamente pelo erro profissional
do ora paciente, resultante em prejuízo milionário para o Erário,
somado às lesões corporais, pelo que impõe-se a deflagração da Ação
Penal em razão do Fumus Boni Juris (2014, p.606, grifo do autor).

Em suma, o Ministério Público Militar fiou a sua denúncia em um documento


repleto de conjecturas acerca dos prováveis fatores que contribuíram para a queda e
destruição do helicóptero da FAB, de modo que o órgão investigador aeronáutico em
suas análises e conclusões vislumbrou que o acidente decorreu de um provável
manuseio deficiente e aplicação nos comandos de voo, que hipoteticamente
associado a um erro de julgamento do piloto teria ocasionado o impacto do aparelho
contra a água. Além do fato de que o mesmo órgão investigador estava vinculado à
análise de todas as prováveis causas, sem, contudo, aferir o grau de probabilidade
com que cada uma destas tenha contribuído com o resultado e tampouco os aspectos
subjetivos ou de culpabilidade dos tripulantes.
57

No caso em tela, o valor probatório da investigação Sipaer foi rechaçado pelo


Superior Tribunal Militar, preponderando sobre este, a natureza probatória do
Inquérito Policial Militar, que na ação, enquanto procedimento designado para
apuração de materialidade e autoria do crime aeronáutico militar nada imputou ao
paciente. A natureza amplamente especulativa voltada à prevenção de novos
acidentes foi reafirmada pelo órgão julgador militar, que conheceu do Habeas Corpus
concedendo a ordem de trancamento da ação penal sob tais argumentos, conforme
Honorato:

Tornou-se com o dogma no meio militar, quando desses acidentes


aeronáuticos, a instauração de Inquéritos Técnicos. Não com o
objetivo de apurar responsabilidades criminais, mas
fundamentalmente, para prevenir em situações futuras as causas
do sinistro, mesmo porque os supostos autores ou responsáveis
pelos acidentes, os pilotos das aeronaves, dificilmente sobrevivem
para elucidar os fatos.
HC 33-545-5, Min João Felippe Sampaio de Lacerda Junior, Pleno do
STM, Data: 20/06/2000 (HONORATO, 2014, p. 606, grifo do autor).

Em suma, o Inquérito Penal Militar apurou a inocorrência de qualquer


modalidade de conduta culposa ou dolosa do piloto em comando, aferindo que ao
longo da missão militar, o paciente não externou qualquer conduta que tenha dado
causa ao sinistro aeronáutico; tratando-se, pois, a queda, de resultado de um caso
fortuito, o que motivou o Tribunal a conceder a ordem pelo trancamento da ação penal
militar, ante a ausência de justa causa para provocação da tutela jurisdicional penal,
conforme extrai-se da ementa do Acórdão:

HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. ACIDENTE


AERONÁUTICO. AERONAVE MILITAR. DANO MATERIAL. LESÃO
CORPORAL. ERRO PROFISSIONAL. IMPERÍCIA. INÉPCIA DA
DENÚNCIA. FALTA DE JUSTA CAUSA. TUTELA JURISDICIONAL. A
Jurisprudência torrencial de nossos Tribunais inclina-se pelo
cabimento de habeas corpus como instrumento adequado para atacar
denúncias manifestamente inéptas. Acidente aeronáutico do qual
resultou a perda total de aeronave militar, um helicóptero do tipo AH-
11A, Super Lynx e lesões corporais em seus ocupantes. Não há que
se confundir erro profissional com imperícia. Enquanto esta decorre do
desconhecimento de regras técnicas, aquele (erro profissional) é
inerente à própria falibilidade humana e, por isso mesmo, via de regra,
escusável, em razão da imprevisibilidade de sua ocorrência. Do militar
aviador exige-se mais do que o preaparo técnico para o combate,
comum a todos da carreira das armas. Exige-se preparo psicológico,
equilíbrio emocional em ambiente adequado, de modo que, ao assumir
58

o comando de uma aeronave, nada possa retirar-lhe a concentração


para operar este complicado aparelho. A atipicidade da conduta induz
à falta de justa causa para proposição de ação penal. Ordem
concedida para determinar o trancamento da ação penal. Decisão
unânime.
Superior Tribunal Militar. Habeas Corpus nº 2000.01.033545-5.
Relator(a): Ministro(a) JOÃO FELIPPE SAMPAIO DE LACERDA
JUNIOR. Data de Julgamento: 20/06/2000, Data de Publicação:
16/08/2000 (BRASIL, 2000, n.p)

5.2 - Caso helicóptero Bell 205 – (UH-1H) – FAB 8687

Em 2005, o Superior Tribunal Militar enfrentou caso análogo ao ocorrido com a


aeronave da Marinha do Brasil em 2000, desta vez envolvendo, inclusive, outro
helicóptero militar, um Bell 205 (UH-1H), de registro FAB8667, operado pela Força
Aérea Brasileira, sinistrado em missão de treinamento noturno, ocasionando a morte
de um militar e lesões corporais em outros 5 (cinco) ocupantes do aparelho.

No caso em tela moveu-se em face da autoridade coatora, que conduzia a ação


penal decorrente do acidente, o pleito de trancamento desta, através da impetração
do Habeas Corpus cujos pacientes eram os tripulantes da aeronave sinistrada; haja
vista que de maneira análoga ao caso anterior, o relatório do Inquérito Penal Militar
apurou ter inexistido crime militar e o suporte probatório da tese apresentada na
denúncia dava-se unicamente em torno das informações extraídas da investigação
administrativa Sipaer.

Com efeito, diante da constatação de tramite de ação penal baseada


exclusivamente no relatório final Sipaer, aliada a flagrância de elementos capazes de
demonstrar a ausência de culpa de ambos pacientes, conforme constou no relatório
do Inquérito Penal Militar, o Superior Tribunal Militar, novamente conheceu do Habeas
Corpus, concedendo a ordem para o trancamento da ação penal, fazendo-o sob tais
argumentos:

Destaque-se que a impetração funda-se basicamente no Relatório


Final do Acidente, tecendo críticas à atuação do Ministério Público
Militar, que teria fundado sua denúncia nessa peça exclusiva. Ocorre
que, se referida peã tem fim meramente de orientação do comando,
contendo recomendações de segurança para evitar futuros
acidentes, por óbvio não poderia fundar a denúncia, nem
tampouco se trancamento. A peça, ademais, não instruiu o presente
59

feito, de forma que a ela não será feita mais nenhuma referência
nesse voto.
HC 2005.01.034113-7/PA, Min Flávio Flores da Cunha Bierrenbach,
Pleno do STM, Data: 16/12/2005 (HONORATO, 2014, p.608, grifo do
autor).

Outrossim, ante a ausência de indicação de razões convictas no que tange à


constatação de culpa dos agentes, o Egrégio Tribunal Castrense conheceu do pedido,
concedendo ordem para o trancamento da Ação Penal, favorecendo-se ambos
pacientes que conduziam o aparelho sinistrado, em decisão pacífica que
unanimemente obstou o curso da ação penal que objetivava, sem justa causa, a
aplicação da ultima ratio, tendo-se unicamente como base as análises e conclusões
do relatório Sipaer, conforme teor da ementa do Habeas Corpus:

HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO, LESÃO CORPORAL E DANO


CULPOSOS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENAL. ACIDENTE COM
HELICÓPTERO. VIOLAÇÃO DO DEVER DE CUIDADO.
INEXISTÊNCIA. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. 1. Impetração que
visa ao trancamento de ação penal instaurada por denúncia que
imputou conduta culposa ao piloto e ao instrutor de aeronave militar
acidentada em operação de treinamento realizada na Serra do
Cachimbo, Estado do Pará. 2. É requisito da denúncia a demonstração
das razões de convicção ou presunção de delinqüência, como garantia
de que se funda em prova de fato que constitui crime em tese e
indícios de autoria. A ausência dessa demonstração impõe o
reconhecimento de inépcia da denúncia. Admitir-se denúncia sem
esse requisito significa conceder ao Promotor de Justiça poderes
incompatíveis com sua função institucional. 3. Inocorrência, ademais,
de conduta violadora do dever objetivo de cuidado pelos pacientes,
afastando a necessária justa causa para a ação penal, que deve ser
trancada. 4. O habeas corpus é remédio constitucional adequado à
apreciação da existência, ou não, de justa causa para a ação penal,
mesmo que exija a apreciação de provas. 5. Ordem concedida.
Votação Unânime.
Superior Tribunal Militar. Habeas Corpus nº 2005.01.034113-7.
Relator(a): Ministro(a) FLAVIO FLORES DA CUNHA BIERRENBACH.
Data de Julgamento: 16/12/2005, Data de Publicação: 01/03/2006
(BRASIL, 2006, n.p).

5.3 – Casos envolvendo a aviação civil

No campo da aviação civil, alguns casos paradigmáticos de acidentes aéreos


foram levados à apreciação do Poder Judiciário, oportunidade em que os órgãos
judicantes tiveram de enfrentar as diferentes questões imanentes à aplicabilidade da
investigação Sipaer no processo judicial em ações de natureza cível e penal, bem
60

como em uma série de outras distintas situações que englobam desde conflitos
positivos e negativos de competência judicial, até a investida de particulares no curso
de pleitos indenizatórios.

Em muitos dos casos em que a imprestabilidade ou proteção da investigação


Sipaer foi tutelada em juízo, o Poder Judiciário, com supedâneo no complexo de
normas pertinentes e na jurisprudência aplicável, tem denegado acesso a dados de
investigações em curso (princípio da proteção e sigilosidade), bem como rechaçado,
em sede de ações penais, o valor probatório da investigação aeronáutica para fins de
condenações criminais.

Nesse sentido, pode-se citar, à guisa de exemplo, os casos de repercussão


judicial envolvendo dois acidentes com aeronaves civis de transporte de passageiros
que mobilizaram a opinião pública; sendo que um dos casos envolveu a aeronave
LET-410 operada pela empresa Noar, em 2011, além do fatídico acidente com o
Airbus A-320, operado pela empresa TAM linhas aéreas, ocorrido no ano de 2007.

5.3.1 - Acidente LET410 - NOAR - VOO 4896

No primeiro caso, a Justiça Federal do estado de Pernambuco, enfrentou um


pedido movido pelo Ministério Público Federal, no qual o Parquet requisitava amplo
acesso às informações Sipaer existentes ao longo da investigação do acidente
envolvendo a aeronave LET-410, operada pela Noar linhas aéreas, sinistrada em julho
de 2011, enquanto realizava o voo 4896, vitimando os 16 ocupantes do aparelho.

No pleito em questão, o órgão ministerial objetivava obter inteiro acesso as


informações com a precípua finalidade de extração de dados capazes de embasar
sua atividade acusatória. Debalde, haja vista que o juízo obstou o acesso, lançando
mão de sólidos argumentos consubstanciados em interpretação sistemática para
fundamentar a decisão. Note-se que a decisão foi prolatada em período anterior à Lei
nº 12.970/2014, fato que demandou do magistrado maior esforço hermenêutico,
conforme se destaca no trecho da decisão:

Porém, há que se realizar elementar diferenciação das informações


ora requeridas, sob pena de se violar a Convenção de Chicago de
61

1944 (especialmente o seu Anexo 13), diploma do qual a República


Federativa do Brasil é signatário (Decreto n. 21.713, de 27/08/1946) e
ainda trazer ao inquérito policial informações técnicas imprestáveis á
persecução penal;
É que, ao lado dos destroços e de suas específicas análises técnicas,
como laudos de engenharia de falhas de determinadas partes da
aeronave acidentada e transcrição de dados e comunicações,
informações essas fáticas, também são produzidas pelo CENIPA,
análises específicas, relacionadas às atividades de prevenção de
acidentes aeronáuticos
Essa atividade, segundo estabelece o item 3 do Anexo 13 da
Convenção de Chicago, possui como objetivo único a prevenção de
acidentes aeronáuticos, não sendo propósito de tal investigação
imputar culpa ou responsabilidade. Portanto, a incorporação de
informações deste quilate ao inquérito policial contraria diploma
internacional ao qual o Brasil é vinculado.
IP 0010878-51.2001.4.05.8300, Juíza Federal Flávia Tavares Dantas,
JFPE, Data: 09/09/2011

Constata-se, porém, que muto embora no período que antecedeu as alterações


promovidas no CBA, as normas referentes à investigação Sipaer ainda fossem
esparsas, a exegese sistemática das disposições legais e infralegais sedimentadas
no ordenamento jurídico, consolidavam um sólido cabedal normativo, cuja posse já
munia amplamente os órgãos julgadores, encontrando-se estes, desde então,
plenamente aptos para fundamentar quaisquer limitações à atividade do órgão
acusador, conforme trecho pinçado da decisão do JFPE:

Paralelamente à inviabilidade objetiva acima referida, há que se


considerar que a investigação realizada pelo CENIPA. Segundo a
Norma de Sistema do Comando da Aeronáutica (NSCA) n 3-6/2008
(item 4.1, fl. 30), busca fatores contribuintes ao acidente e não a suas
causas, levando em consideração hipóteses e conjecturas
probabilísticas, de forma a evitar novas ocorrências.
[...]
Portanto, além da incompatibilidade objetiva, fruto da restrição de
norma internacional, a investigação do CENIPA também detém forte
incompatibilidade lógica, pois não pesquisa causas, mas meros
fatores contribuintes, ainda que sejam simples hipóteses.
IP 0010878-51.2001.4.05.8300, Juíza Federal Flávia Tavares Dantas,
JFPE, Data: 09/09/2011 (HONORATO, 2014, p.611, grifo do autor).

Há de se observar, contudo, que na decisão em estudo, o juízo franqueou ao


Parquet, amplo acesso ao conjunto de informações fáticas, ou seja: as informações
associadas a registros de parâmetros de voo (FDR), gravação de voz (CVR), bem
62

como aos dados produzidos por terceiros: análises técnicas de material e dados gerais
de engenharia; haja vista que tais dados não abarcam nenhuma valoração
especulativa realizadas no âmbito da investigação Sipaer, em observância aos
princípios da máxima eficácia preventiva.

Ademais, como exaustivamente abordado, a obstaculização do livre acesso a


tais dados fáticos resultar-se-ia em grave ofensa às garantias constitucionais
basilares, não restando outra hipótese, senão, deferir o acesso ao órgão ministerial.
Deve-se, porém, observar que após o advento da Lei nº 12.970/2014, o legislador
insculpiu no bojo do CBA a necessidade de prévia oitiva dos órgãos Sipaer
anteriormente ao deferimento do acesso às informações irrestritas, regra esta ainda
não vigente ao tempo dessa decisão, conforme pode-se averiguar:

Deve ser acolhido, porém, o pedido formulado, no sentido de


determinar-se ao CENIPA que seja dado à Polícia Federal acesso às
provas técnicas de engenharia e aos dados fáticos colhidos no âmbito
da investigação da queda da aeronave LET 410, da empresa NOAR
Linhas Aéreas, que fazia o voo 4896, aí se incluído os arquivos
degravados, FDR e CVR (gravação de dados e de comunicação
interna), análises de engenharia e laudos técnicos de falha.
IP 0010878-51.2001.4.05.8300, Juíza Federal Flávia Tavares Dantas,
JFPE, Data: 09/09/2011(HONORATO, 2014, p.612, grifo do autor).

5.3.2 – Acidente Airbus A-320 - TAM – Voo JJ3054

O segundo caso que figurou na Justiça Federal do Estado de São Paulo, se


deu no âmbito da ação penal decorrente de acidente aéreo que envolveu a aeronave
tipo Airbus A-320, operada pela empresa TAM Linhas Áreas, que em julho de 2007,
ao realizar o voo TAM 3054, excursionou da pista, em tentativa de pouso mal
sucedida, vindo a colidir com edificações contiguas ao aeródromo, vitimando 199
pessoas entre passageiros embarcados e transeuntes locais.

Na ação penal proposta pelo Ministério Público Federal, o Parquet ventilou uma
série de argumentos embasados em hipóteses e cogitações extraídas do Relatório
Final do Cenipa; tendo, contudo, o órgão julgador, rigidamente afastado qualquer valor
probatório procedente das análises e conclusões extraídas do Relatório Final,
conforme é possível colher-se do respectivo trecho da sentença:
63

Nessa ordem de ideias, a investigação SIPAER tem escopo, princípios


e métodos próprios que nitidamente se mostram inservíveis como
supedâneo empírico apto a figurar como prova no processo penal.
Para tal finalidade, existe a investigação criminal que ocorre
paralelamente àquela, da qual emergirá o suporte probatório
destinado a apurar eventual ocorrência de crime e de sua autoria.
Assim, o âmbito da investigação criminal serão produzidos os laudos
periciais necessários, será realizada a colheita de dados fáticos, as
oitivas de testemunhas etc., tudo na forma determinada pelo Código
de Processo Penal e com a finalidade de verificar a ocorrência de
algum fato típico e de comportamento relacionado ao acidente que se
amoldam, em tese, a algum tipo penal.
Portanto, resta evidente que o relatório elaborado pelo CENIPA não
consiste em prova pericial, de sorte que suas conclusões não podem
nortear a decisão do magistrado acerca da responsabilidade penal.
AP 0008823-78.2007.403.6181, Juiz Federal Márcio Assad Guardia,
JFSP, Data:30/04/2015.

O respectivo teor da sentença que absolveu os réus no caso TAM JJ3054,


abarca uma série de fundamentos, por meio do quais o órgão julgador singular refutou
os argumentos que a acusação construiu a partir de elementos extraídos das análises
e conclusões da investigação Sipaer. Contudo, oportunamente, o órgão posicionou-
se adequadamente, ao expressamente excetuar do rol das restrições, a análise de
dados fáticos presentes nas investigações aeronáuticas:

Todavia, é de rigor distinguir as informações constantes do relatório


CENIPA que correspondem a dados fáticos daquilo que corresponde
a análises, conclusões, conjecturas, hipóteses e probabilidades
emanas da investigação realizada pelo CENIPA.
Com efeito, enquanto estas últimas são imprestáveis para figurar
como meio de prova no processo penal, é válido afirmar que os dados
fáticos ali consignados são imprescindíveis para que o Poder
Judiciário possa compreender o ocorrido e formar sua convicção
acerca de eventual materialidade delitivas e de sua autoria, bem como
de que modo incidirá a norma penal no caso concreto.
Nesse contexto, observa-se que os dados técnicos de engenharia e
meteorologia, as transcrições de FDR (Flight Data Recorder) e CVR
(Cockpit Voice Recorder), as comunicações com a torre de controle, a
colheita de informações técnicas do local do acidente, bem como
dados estatísticos da navegação aérea correspondentes à
identificação de dados fáticos relevantes para a compreensão do
ocorrido, de forma que podem ser utilizados pelo magistrado para
fundamentar a sua sentença. (grifos do autor)

Consoante ao sistema da persuasão racional ou livre convencimento motivado,


verifica-se que a plena possibilidade de se valorar livremente o conjunto de dados
64

fáticos extraídos da investigação Sipaer, denota a existência de inequívoco


alinhamento jurisprudencial no âmbito da Justiça Federal, conforme pode-se observar
ao confrontar-se as respectivas rationes decidendis por trás das decisões nos casos
TAM 3054 e NOAR 489648

Tais posicionamentos, contudo, decorrem da evolução da própria temática


jurisprudencial, consoante à própria restrição legal que obstará, em observância aos
princípios da sigilosidade e proteção, o acesso às fontes dos dados de sistema de
notificação voluntária de ocorrências, ao passo que, também, às análises e
conclusões da investigação Sipaer, pois arraigadas de ampla carga de subjetividade
e nenhuma valoração de culpabilidade. É o que, também, se pode colher da
literalidade do § 2º do art. 88-I do CBA49.

48
Deve ser acolhido, porém, o pedido formulado, no sentido de determinar-se ao CENIPA que seja dado à Polícia
Federal acesso às provas técnicas de engenharia e aos dados fáticos colhidos no âmbito da investigação da queda
da aeronave LET 410, da empresa NOAR Linhas Aéreas, que fazia o voo 4896, aí se incluído os arquivos
degravados, FDR e CVR (gravação de dados e de comunicação interna), análises de engenharia e laudos técnicos
de falha. (IP 0010878-51.2001.4.05.8300, Juíza Federal Flávia Tavares Dantas, JFPE, Data: 09/09/2011.)
49
Art. 88-I. São fontes Sipaer:
[...]
III - dados dos sistemas de notificação voluntária de ocorrências;
[...]
§ 2º A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as análises e conclusões da investigação Sipaer
não serão utilizadas para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos administrativos e somente
serão fornecidas mediante requisição judicial, observado o art. 88-K desta Lei.
65

6 - A INFLUÊNCIA DA INVESTIGAÇÃO SIPAER EM JULGAMENTOS

Conforme anteriormente analisado, em matéria da valoração dispensada aos


relatórios investigativos Sipaer, nos tribunais, constatou-se existir um movimento
jurisprudencial surgido na Justiça Militar, há cerca de duas décadas, que vem
paulatinamente consolidando no cerne da atividade judicante, entendimento tendente
a mitigar o valor probatório da investigação Sipaer, apto apenas a orientar o livre
convencimento do juiz, limitando-se a mero supedâneo fático subsidiário.

Oportuno, porém, observar que com exceção das análises e conclusões


exaradas pela autoridade aeronáutica, pois impregnadas de subjetividade por parte
dos peritos, inexistem óbices para que o Judiciário possa apreciar as disposições
fáticas e circunstanciais extraídas de um relatório final Sipaer, haja vista que em
muitos casos a investigação aeronáutica será a única fonte de informação existente;
tratando-se, pois, de inconteste negativa de acesso à justiça rechaçar o papel
probatório da investigação Sipaer, mesmo que sob alcance mitigado.

Nesse sentido, Garapa de Carvalho (2012, p.41), avalia que o Judiciário não
pode simplesmente furtar-se à apreciação de inúmeros elementos colhidos na
investigação Sipaer, enquanto fonte amplamente dotada de informações fáticas, sob
pena de privar o Poder Judiciário de conhecer informações mais detalhadas sobre o
sinistro aeronáutico objeto de uma ação, o que em muitos casos só estarão presentes
no relatório final da investigação.

Todavia, a valoração de elementos extraídos de tais investigações, demanda


sempre criteriosa análise dos órgãos julgadores, sob pena de levar-se em
consideração conclusões meramente especulativas exaradas pelo órgão investigador
aeronáutico, instalando, com isso, ampla insegurança jurídica no sistema. Com efeito,
D´avila, (2012, p.53), observa que entre os operadores da aviação civil, tem sido
recorrente a preocupação acerca do emprego de informações colhidas durante a
investigação Sipaer destinadas a persecução criminal, bem como em ações de
responsabilização civil ou em reclamações trabalhistas.
66

Diante dessa problemática, viu-se surgir, como resposta legislativa, a Lei nº


12.970/14, que deu novos contornos ao Sipaer e passou a balizar com maior
objetividade, sob o manto da lei, a atuação judicial e administrativa, assegurando-se
pela premissa de que a estrita observância às vedações legais atinentes ao emprego
da investigação administrativo-preventiva como meio de prova, possui o condão de
mitigar os riscos de julgamentos obtusos, resultante do emprego da interpretação
equivocada de dados extraídos de relatórios de acidentes aéreos.

Contudo, é válido pontuar-se que a nova legislação atinente ao Sipaer, cumpre


o papel de, em grande parte, elevar ao texto da legislação ordinária fragmentos de
disposições normativas pré-existentes e anteriormente vigentes ao tempo da
promulgação da Lei nº 12.970/14; para que, desse modo, sem conservar grandes
inovações legislativas, esta pudesse cumprir a função de compilar e organizar a base
normativa do Sipaer, visando conferir ao sistema maior objetividade e eficácia jurídica.

Destarte, antes da vigência da Lei nº 12.970/14, tanto os efeitos quanto a


observância aos preceitos normativos que balizavam o Sipaer, não obstante fossem
esparsos e fragmentados ao longo do amplo complexo normativo, reputavam-se
igualmente imperiosos quanto à aplicação por parte dos órgãos julgadores; de tal
modo que o quadro normativo anteriormente vigente, muito embora demandasse
maior esforço hermenêutico por parte dos tribunais, concentrava elementos jurídicos
suficientes para evitar julgamentos de aspecto questionável, tais como os que serão
agora analisados:

6.1 - Caso INFRAERO – Responsabilidade Civil.

Em julho de 2009, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região50, confirmou, em segundo


grau de jurisdição, sentença condenatória em face da empresa pública federal
Infraero, condenando-a a indenizar a título de danos morais, bem como ao pagamento
de pensão vitalícia, um piloto de linha aérea, que por decorrência de invalidez

50
BRASIL. AC 200151010230156, Desembargador Federal SÉRGIO FELTRIN CORREA, TRF2 – SÉTIMA TURMA
ESPECIALIZADA, DJU – Data: 13/07/2009. Disponível em: <http://www.trf2.gov.br/iteor/RJ0108710
1/89/263022.rtf> . Acesso em: 19 jul. 2020.
67

psíquica, causada por traumas sofridos em um acidente aeronáutico, viu-se obrigado


a encerrar prematuramente a sua carreira.

A ação de responsabilização da Infraero teve como pano de fundo o sinistro


aeronáutico que envolveu a aeronave pilotada pelo autor da demanda, que à época
do ocorrido atuava como comandante pela empresa aérea Transbrasil e realizava o
voo regular TB202, a bordo da aeronave Boeing 737-400, de registro PT-TEO, que se
envolveu em um acidente durante a realização de pouso no aeroporto Salgado Filho
em Porto Alegre - RS.

No instante em que realizava o pouso, a aeronave experimentou um fenômeno


aerodinâmico conhecido como pouso longo51, vindo a tocar tardiamente com o trem
de pouso principal sobre a pista, não conseguindo, porém, frear completamente no
limite da área asfaltada destinada à aterragem, colidindo na sequência com uma vala
e ferindo levemente três passageiros do total dos 112 embarcados na aeronave52.

Na ação cível, tendo-se como referencial técnico e fático a investigação Sipaer,


o autor da ação pugnou pela responsabilidade da Infraero ante a ocorrência do
sinistro, sob a alegação de que, à frente da torre de controle, esta forneceu
erroneamente dados de velocidade e direção do vento à aeronave sinistrada, omitiu-
se diante da inoperância de equipamentos de medição meteorológica de solo (EMS)53,
bem como diante as más condições físicas da pista de pouso, suscitando a série de
condutas como causas diretas do acidente; alegando, ao final, a existência de nexo

51
Fenômeno decorrente da flutuação excessiva da aeronave sobre o eixo da pista, possivelmente induzido pelo
emprego de deficiente técnica de pilotagem e/ou ajuste/configuração inadequados de superfícies
estabilizadoras/hipersustentadoras e/ou incidência de excessivo vento de cauda durante o pouso. Consiste do
toque tardio do trem de pouso da aeronave sobre a pista, decorrente da flutuação excessiva, podendo
potencialmente contribuir para uma eventual ocorrência de excursão de pista.
52
BRASIL. Comando da Aeronáutica. Centro de Investigação e Prevenção a Acidentes Aéreos. Síntese final PT-
TEO/CENIPA//2001. Brasília, 2001. Disponível em: <http://sistema.cenipa.aer.mil.br/cenipa/paginas/relatorios
/rf/pt/RF_PTTEO_ACIDENTE_27_02_2000.pdf> Acesso em 08 jul. 2020.
53
Estação meteorológica de superfície: tem por finalidade efetuar observações meteorológicas à superfície para
fins aeronáuticos e, quando previsto, para fins sinóticos, registrar os dados das observações para fins
climatológicos e confeccionar informes meteorológicos para divulgação das referidas observações. Disponível
em: https://www2.anac.gov.br/anacpedia/sig_por/tr305.htm. Acesso em 18 set. 2020
68

de causalidade e culpa da ré ante a negligência constatada no cumprimento de seus


deveres legais.

De outro turno, conforme colheu-se do Relatório Final Sipaer, os fatores


contribuintes para a ocorrência do acidente foram: (i). as condições meteorológicas
reinantes, extremamente hostis para o pouso; (ii). a deficiente infraestrutura local –
ausência de equipamento ativo para medição meteorológica na cabeceira da pista em
uso (EMS), e por fim: (iii). a decisão dos pilotos que, cientes do cenário atmosférico
crítico, no setor da pista de pouso, prosseguiram com a aterragem.

Foi observado na investigação Sipaer, que devido a inoperância do


equipamento EMS no setor da cabeceira, os dados de velocidade e direção de vento
foram lidos a partir de sensores instalados na torre, relativamente distantes do setor
de pouso; sendo que por essa razão, constatou-se uma divergência relevante entre o
vento informado pela torre (rajadas de 20 a 30kt)54, e o vento experimentado, de fato,
pela aeronave, que apresentou leituras de até 42kt 55 (vento de cauda), conforme
apontou a degravação de dados de voo.

Em meio aos fatores contribuintes ventilados na investigação Sipaer, que foi


conduzida pelo órgão central do sistema, o Cenipa, foi afastada, pelo próprio órgão
investigador aeronáutico, a hipótese de má condição da pista, haja vista que oito dias
após o acidente, a Infraero realizou testes dos padrões de coeficiente de atrito em
toda a extensão da pista, tendo sido obtidos resultados satisfatórios dentro do limite
de 0,50μ vigente à época da medição; permitindo, desse modo, concluir-se que não
havia irregularidades com situação geral da pista de pouso.

Contudo, dada a função prospectiva preventiva da investigação aeronáutica,


visando ampliar as margens de segurança da pista de pouso do aeroporto palco do

54 Equivalente a uma variação de 37 a 55 km/h.

55 Intensidade equivalente a 78 km/h.


69

acidente, o Cenipa emitiu duas recomendações de segurança destinadas à Infraero,


nas quais o órgão investigativo teceu recomendações de cunho preventivo no tocante
à maximização das taxas de coeficiente de atrito, conforme item nº 5 das
recomendações de segurança de voo:

5. A INFRAERO deverá, no prazo de 12 meses:


a. Muito embora os exames da Divisão de Edificações e Infra-
estrutura, datados de 07 MAR 2000, referentes aos coeficientes
de atrito da pista de SBPA (item III – 7C) tenham apresentado
resultados satisfatórios, faz necessário que ações adicionais sejam
efetivadas em prol da Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, além dos
trabalhos de desemborrachamento concluídos em 02 MAI 2000.
b. Considerar a necessidade de dotar a superfície da pista de
pouso de SBPA com características anti-derrapantes especiais (do
tipo grooving ou camada porosa de atrito), em vista do nível de tráfego
aéreo atual e previsto, bem como das condições meteorológicas
reinantes na localidade (BRASIL, 2001, p.15, grifo do autor).

Apesar de a condição física da superfície da pista de pouso não tenha sido fator
contribuinte para a ocorrência do acidente, o Cenipa emitiu recomendações de
segurança endereçadas à Infraero, unicamente para efeitos de máxima eficácia
preventiva, e não obstante tenha inserido no corpo daquela a expressa observação
de que a pista se encontrava efetivamente regular, o órgão julgador da causa valorou
a referida recomendação como prova em contrário senso, acatando que a ré tenha
atuado de modo negligente com a manutenção da pista do aeródromo, conforme se
extrai da decisão:

Como acima demonstrado, existem nos autos elementos exaustivos,


evidenciando ter sido a falta de manutenção da pista mormente em
seus 300 metros finais, o motivo determinante para a hidroplanagem
da aeronave. Neste sentido a investigação Sipaer (v. fls312/32) e o
depoimento de fls. 281, no qual o coronel João Luiz ressalvou ”que a
pista do aeroporto de Porto Alegre, era muito conhecida pelo seu
emborrachamento, na época do acidente, que o emborrachamento foi
justamente no local em que ocorreu a frenagem” (grifo do autor).

Além da responsabilização decorrente das condições da pista, repise-se: que


era regular e não contribuiu para o resultado, a Infraero também fora responsabilizada
pela falha na prestação dos serviços de informação de voo, por razão de seu nome
ter figurado indiretamente na recomendação de segurança que abordou a questão
das EMS, endereçada ao Decea. Contudo, a menção indireta à empresa pública se
70

deu unicamente por força do princípio da máxima eficácia preventiva, não englobando
o gerenciamento de radiocomunicações, o rol de atribuições nominais da Infraero,
conforme dispões o art. 12 do CBA:

Art. 12. Ressalvadas as atribuições específicas, fixadas em lei,


submetem-se às normas (artigo 1º, § 3º), orientação, coordenação,
controle e fiscalização do Ministério da Aeronáutica:
I - a navegação aérea;
II - o tráfego aéreo;
III - a infra-estrutura aeronáutica;
IV - a aeronave;
V - a tripulação;
VI - os serviços, direta ou indiretamente relacionados ao vôo.

Observa-se, inclusive, que no local dos fatos, a competência pelo serviços de


informação de voo, conforme dispõe o código aviatório, pertencia ao Comando da
Aeronáutica, de tal modo que as respectivas recomendações de segurança56 foram
endereçadas ao Decea, tendo tão somente a Infraero sido mencionada nas
recomendações, dado a efetividade que a recomendação exerce em âmbito nacional,
e em virtude de em alguns aeroportos brasileiros a empresa pública deter
competência para prestar tais serviços, a se ter por base a norma permissiva que
viabiliza tal atribuição, art. 48, parágrafo único do CBA:

Art. 48. [...]


Parágrafo único. O serviço de telecomunicações aeronáuticas poderá
ser operado:
a) diretamente pelo Ministério da Aeronáutica;
b) mediante autorização, por entidade especializada da Administração
Federal Indireta, vinculada àquele Ministério, ou por pessoas jurídicas
ou físicas dedicadas às atividades aéreas, em relação às estações
privadas de telecomunicações aeronáuticas.

Entretanto, no caso concreto, não configurava a hipótese prevista pela alínea


“b” do dispositivo em comento, inexistindo, portanto, atuação da Infraero no manejo

56
4. Em estreito contato com Infraero, realizar o levantamento dos aeródromos nos quais as informações de
vento informadas às aeronaves não estejam sendo obtidas de sensores localizados na superfície e próximos às
zonas de toque das pistas e, em paralelo, emitir alerta aos aeronavegantes.
71

das telecomunicações na exata localidade do acidente, e, uma vez ausente a


descentralização dos serviços, que se mantiveram sob inteira competência e
responsabilidade do agente legal, as saber: o Decea57; inexistiu, portanto, base legal
para se falar em legitimidade passiva ad causam por parte da Infraero na ação onde
figurou como ré.

Constata-se, outrossim, que as constantes menções à Infraero, ao longo das


distintas recomendações de segurança editadas na investigação, exerceu forte
influência quanto à apreciação do material probatório carreado aos autos, de tal modo
a induzir o órgão julgador a errôneo convencimento acerca da presença de elementos
estranhos à investigação Sipaer, tais como autoria e nexo de causalidade; a ponto de
chegar-se a conclusão da incontestável existência legitimidade passiva da Infaero,
mesmo a despeito de, no caso concreto, o serviço de informações de voo não ser
prestado pela empresa em questão.

Cabe ressaltar que o papel das recomendações de segurança, no âmbito do


Sipaer, possui a estrita finalidade de, sob força dos princípios da máxima eficácia
preventiva e neutralidade jurisdicional promover prospectivamente a segurança de
voo, quando entranhado à ação judicial poderá, como no caso concreto, confundir o
órgão julgador permitindo com que a simples menção subjetiva 58 extraída do
endereçamento da recomendação seja fruto o resultado de incontroverso juízo
positivo de autoria e nexo de causalidade, conforme evidente na decisão do TRF2:

Dissipando qualquer dúvida a respeito da ingerência da empresa Ré


sobre o medidor, o próprio Sipaer, órgão da Aeronáutica, recomendou
fosse efetivado, “em estreito contato com a Infraero”, o
levantamento dos aeródromos nos quais as informações sobre o vento

57
Em contestação, a Infraero alegou ilegitimidade passiva, sustentando ser somente responsável pela infra-
estrutura aeroportuária, não abrangendo o sistema de proteção de vôo, responsabilidade da União, a qual
deveria ser citada na presente ação. No mérito, a empresa pública argumentou inexistir nexo de causalidade
entre suas ações ou omissões e o acidente. O pedido de citação da União foi indeferido em 11 de março de 2004
(fl. 166). Não foram interpostos recursos.
58
3. A Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Vôo deverá, no prazo de seis meses:
Em estreito contato com a Infraero, realizar o levantamento dos aeródromos nos quais as informações de vento
informadas às aeronaves não estejam sendo obtidas de sensores localizados na superfície e próximos às zonas
de toque das pistas e, em paralelo, emitir alerta aos aeronavegantes. (grifo nosso)
72

prestadas às aeronaves não estejam sendo obtidas de sensores


localizados na superfície e próximos às zonas de toque das pistas e,
paralelamente, emitir alerta aos aeronavegantes (v. fl. 40). Se os
medidores de superfície fossem da competência da Aeronáutica, por
que recorrer à Infraero para levantar quais aeroportos utilizavam o
aparelho?
AC 200151010230156), Desembargador Federal SÉRGIO FELTRIN
CORREA, TRF2 – SÉTIMA TURMA ESPECIALIZADA, DJU – Data:
13/07/2009 – Página: 22 (grifo do autor)

6.2 - Caso Bandeirante P95-FAB – Colisão em voo

Em 12 de julho de 2003, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região, manteve


em sede de apelação, sentença condenatória por meio da qual a União foi
responsabilizada pela ocorrência de um acidente que vitimou nove militares da Força
Aérea Brasileira, dentre os quais estava o cônjuge da autora da ação, a favor de quem
a União fora condenada ao pagamento de indenização por dados morais decorrente
da perda do ente querido.

O acidente em pauta ocorreu no ano de 1996, no município de São


Caetano/PE, e envolveu uma aeronave militar do tipo Embraer Bandeirante P-95,
matrícula nº 7102, da Força Aérea Brasileira, que fora escalada em missão juntamente
com outras três aeronaves do mesmo tipo, todas destacadas para realizarem o voo
em formação até o seu destino, a cidade de Natal/RN.

Durante a etapa de cruzeiro, que havia sido programado para ocorrer sob
regras de voo visual, o esquadrão se deparou com a presença de formações
meteorológicas ao longo da rota planejada, ocorrendo que, ao penetrar em uma
nuvem sob condições visuais restritas, duas das três aeronaves colidiram, sendo que
uma delas perdeu o controle, vindo a se precipitar contra o solo, causando a morte de
todos os seus ocupantes – dentre os quais: o cônjuge da autora da ação cível.

Na ação, o juízo de primeiro grau reconheceu a responsabilidade objetiva da


União pela morte do militar e fixou o dano moral em R$ 80.000,00 (oitenta mil reais);
tendo o tribunal mantido o montante estabelecido na sentença recorrida; tendo, a
União, por sua vez, pugnado pela exclusão da responsabilidade pelo acidente,
sustentando que a causa determinante do acidente aéreo foi apenas a condição
climática adversa – antítese, porém, rechaçada pelo órgão julgador singular.
73

Irresignada, a União interpôs recurso de apelação pugnando pela reforma da


sentença, sustentando a existência de excludente de ilicitude advindo de caso fortuito
e força maior, a se ter que a causa do sinistro teve influência direta de elementos e
fenômenos meteorológicos extremamente dinâmicos impossíveis de se prever com
precisão; de modo que a tripulação tenha sido colhida de surpresa quando se viu
voando em formação sob condição IMC, muito próximas uma aeronave da outra.

Todavia, a influência das informações do relatório final da investigação exerceu


grande influência sobre o tribunal, conforme ementado:

CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E CIVIL. AERONAVE


MILITAR. ACIDENTE AÉREO. MORTE. RESPONSABILIDADE CIVIL
OBJETIVA CARACTERIZADA. REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS.
CABIMENTO. VALOR ARBITRADO COM RAZOABILIDADE.
MAJORAÇÃO DO QUANTUM AFASTADA. APELAÇÃO DA AUTORA,
DA UNIÃO E REMESSA OFICIAL, TIDA POR INTERPOSTA,
IMPROVIDAS.
1 - No caso em tela, diante das informações trazidas pelos relatórios
preliminar e final do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes
Aeronáuticos (CENIPA), não restam dúvidas que houve falhas e
equívocos procedimentais e operacionais no planejamento e
execução da missão, contribuindo de forma inequívoca para a colisão
aérea e conseqüente queda da aeronave Bandeirante/P-95, matrícula
FAB 7102, em razão da qual veio a falecer o cônjuge da autora, que
na ocasião era simples passageiro;
2 - Caracterizada a responsabilidade civil objetiva da UNIÃO, nos
termos do art. 37, § 6o, da CF/88, uma vez que as condições
meteorológicas não foram a causa determinante do evento danoso, o
que afasta a tese da ocorrência de força maior (excludente da
responsabilidade);
3 - O desaparecimento precoce do cônjuge da autora, decorrente do
desastre aéreo provocado pela inobservância do planejamento prévio
da missão e de regras de segurança de vôo, é motivo suficiente para
configurar os danos morais pleiteados, sendo cabível a respectiva
reparação;
4 - Não merece reparo a sentença que fixou o montante da reparação
por danos morais em R$80.000,00 (oitenta mil reais), visto que
obedeceu aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade,
evitando o arbitramento em valor excessivo, que pudesse causar
enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra,
ou em quantia irrisória, incapaz de minorar, em certa medida, o
sofrimento injustamente causado;
5 - A regra inserta no art. 20, § 4º, do CPC, não significa que, uma vez
vencida a Fazenda Pública, a verba honorária advocatícia
necessariamente deva ser arbitrada em valor inferior a 10% (dez por
cento) do valor da condenação, motivo pelo qual o quantum
74

estabelecido deve ser mantido, face à apreciação eqüitativa realizada


pelo juízo a quo;
6 - Precedentes do STJ, desta Corte e do TRF da 2a Região;
7 - Apelação da autora, da UNIÃO e remessa obrigatória, tida por
interposta, improvidas.
PROCESSO: 200305000000726, AC - Apelação Civel - 311934,
DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO GADELHA, Terceira Turma,
JULGAMENTO: 04/05/2006, PUBLICAÇÃO: DJ - Data::12/06/2006 -
Página::373 - Nº::111

A análise da decisão exarada pelo TRF5, revela, prima facie, de sua simples
leitura, que o Tribunal acatou amplamente as conclusões emitidas acerca dos fatores
contribuintes59 presentes na investigação aeronáutica, para os quais o órgão julgador
imprimiu elevado valor probatório, muito embora consistissem de meras especulações
abstratas, cujo grau probabilístico causal e aspectos anímicos dos agentes envolvidos
são completamente estranhos; não obstante tais aspectos, extrai-se do voto do
Relator, prevalência os seguintes elementos:

Ora, da leitura da conclusão (item V) do relatório final do CENIPA, mais


precisamente o subitem 2, às fls. 79/81, revelam-se os fatores
contributivos para o acidente fatal, dentre os quais merecem ser
transcritos os seguintes:
“a. Fator Humano
(1) Aspecto Psicológico – contribuiu pelas características
individuais do piloto da aeronave líder, revelados pela sua
autodeterminação e comportamento, prejudicadas por
atitudes como: excesso de confiança em seu desempenho
e no dos alas; rigidez e excessiva determinação;
improvisação e escolha de decisão errada; sentimento de
invulnerabilidade; flutuação de senso crítico; distração ou
flutuação de atenção; e baixo nível de alerta situacional.
Contribuiu pelas características dos pilotos alas, ditadas por
insegurança, insuficiente comunicação, indecisão e elevado
nível de ansiedade, resultantes de baixo nível de
operacionalidade com reflexo direto na condução da
pilotagem. (grifo do autor)

59NSCA 3-13 /2017/ 1.5.19 FATOR CONTRIBUINTE Ação, omissão, evento, condição ou a combinação destes que,
se eliminados, evitados ou ausentes, poderiam ter reduzido a probabilidade de uma ocorrência aeronáutica, ou
mitigado a severidade das consequências da ocorrência aeronáutica. A identificação do fator contribuinte não
implica presunção de culpa ou responsabilidade civil ou criminal.
75

(...)
c. Fator Operacional
(1) Deficiente Instrução – Contribuiu
- Houve insuficiente nível de instrução da fase preparatória da
missão ao brifim;
- Contribuiu pelo baixo nível de treinamento dos pilotos alas em
vôo de formação, especialmente para vôo com mais de três
aeronaves... (grifo do autor)
(2) Deficiente Supervisão – Contribuiu
- Contribuiu pela não elaboração de um anexo de segurança de
vôo; e pelo planejamento de um deslocamento em um tipo de
formatura para qual os pilotos, tanto o líder quanto os alas, não
estavam suficientemente treinados; (grifo do autor)
(...)
(7) Deficiente Planejamento
De acordo com a análise meteorológica, poderiam ser
encontradas formações de nuvens. Mesmo sabendo do fato, o
vôo foi planejado para um nível VFR* (FL 095). (*vôo visual)
Caracterizado pelo preparo inadequado da missão; pelo
desconhecimento ou desconsideração aos preceitos básicos
para o vôo de formatura... (grifo do autor)
...
(9) Indisciplina de Vôo
Apesar de ter sido preenchido um plano de vôo visual, o líder
permitiu que sua esquadrilha ingressasse em condições IMC*,
contrariando as regras de tráfego aéreo. (*vôo por instrumentos)
(grifo do autor)
(10) Outros Aspectos Operacionais
- Deficiente Doutrina para o Vôo de Formatura
(a). o líder não seguiu os preceitos doutrinários para o vôo de
formatura;
(b). foi adotado uma configuração de esquadrilha (quatro
aeronaves) não prevista e não treinada em ambiente de elevada
demanda operacional;
(c). não cumprimento, em vôo do que foi previsto no brifim com
relação aos procedimentos em caso de mau tempo; (grifo do
autor)

Ao conduzir a análise das conclusões publicadas no relatório final do acidente,


o órgão julgador transcreveu os pontos que julgou relevantes à formação do seu livre
convencimento, dando-se ênfase aos fatores contribuintes que na apuração da
investigação aeronáutica hipoteticamente colaboraram para a ocorrência do sinistro,
76

sendo elencados fatores humanos e operacionais, englobado a esse último os:


fatores meteorológicos observáveis no momento do acidente.

Como pode-se constatar, o embate processual emergido do acidente aéreo


com o FAB-7102, se deu por meio de uma pretensão indenizatória consubstanciada
em tese de responsabilidade civil objetiva do Estado, resistida sob alegação de
excludente de responsabilidade motivada por força maior. Os argumentos da União,
porém, sucumbiram em face ao convencimento que os órgãos julgadores
estabeleceram da leitura das análises de conclusões especulativas do relatório final,
conforme restou evidente no voto do relator:

Com efeito, a meu sentir, está caracterizada a responsabilidade civil


objetiva da UNIÃO, nos termos do art. 37, § 6o, da CF/88, uma vez
que as condições meteorológicas não foram a causa determinante do
evento danoso, como bem discorreu o juízo de 1o grau, à fls. 132/134,
o que afasta a tese da ocorrência de força maior (excludente da
responsabilidade). Ademais, houve descumprimento do planejamento
de vôo, uma vez que os procedimentos adequados em caso de mau
tempo não foram adotados, conforme se conclui da análise do subitem
10c, acima esposado.

Desperta a atenção o caso do FAB-7102, o fato do órgão julgador ter se valido


inteiramente dos dados extraídos do relatório final do acidente para formar o seu
convencimento acerca do nexo de causalidade e autoria para condenar a União a
indenizar o familiar de uma das vítimas do respectivo acidente.

O presente caso permite-nos observar que: em algumas ações, quando já


decorrido certo período da ocorrência do fato, na ausência de demais elementos
probatórios, tal qual o inquérito policial, a existência do Relatório Final Sipaer do
acidente poderá servir ao judiciário como única fonte para conhecimento de aspectos
fáticos; contudo, a extração de elementos voltados a imputação de culpa haverá
sempre de encontrar óbice na própria natureza especulativa das análises e
conclusões finais nele emitidas.
77

7 – A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E A ADI 5667/DF

A ação penal nos crimes aeronáuticos próprios, ou seja: aqueles em que perigo
concreto ou dano refletem diretamente sobre a aeronave ou a segurança da
aeronavegação, é de natureza pública e incondicionada, pertencendo ao Ministério
Público a respectiva titularidade persecutória penal, por força da disposição do inciso
I do art.129 da CF/8860, que delega ao Parquet a função privativa de promover a
respectiva ação penal pública.

Dada a competência da Justiça Federal para julgar crimes aeronáuticos


próprios, porquanto ilícitos cometidos em detrimento do interesse da União (CF/88,
arts. 22, I e 109, IV), o Ministério Público Federal reveste-se da função de órgão
acusador exclusivo, e, portanto, ao lado da Polícia Federal, ambos constituem-se em
órgãos diretamente interessados na investigação de acidentes aeronáuticos. Por sua
vez, no exercício desse mister, o Parquet Federal tem se demonstrado como ferrenho
defensor de tese que pugna pela máxima empregabilidade da investigação
administrativo-preventiva Sipaer para fins acusatórios

Observa-se, porém, que a referida militância existente no sentido de atribuir-se


à investigação aeronáutica a máxima utilidade para fins penais, tem gerado, em face
de um mesmo acidente aeronáutico, uma inevitável tensão entre o modelo preventivo
Sipaer e o investigativo-acusatório encabeçado pelo MPF e PF, de tal sorte que tal
antagonismo adquiriu maior proeminência com a atuação do Parquet a frente da
acusação dos envolvidos no acidente com a aeronave Airbus A-320 da TAM,
sinistrada em 2007, caso que ficou conhecido também como acidente do voo TAM-
3054.

No curso do referido pleito acusatório, julgado em 2015, o órgão ministerial, em


diversas oportunidades lançou mão de argumentos lastreados em hipóteses fáticas
que foram ventiladas pelo Cenipa em seu relatório final sobre o acidente; tendo,

60
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
78

todavia, o órgão julgador, energeticamente rechaçado tais argumentos, além de não


ter poupado o MPF de extensa crítica acerca de sua atuação acusatória, como pode-
se colher de trechos da sentença61 onde os três acusados pelo sinistro aeronáutico
foram absolvidos das condutas criminosas a eles imputadas.

61
Entremete, o que se coloca aqui é que o relatório do CENIPA não figura com meio de prova no processo penal,
exceto no que concerne à extração de dados fáticos ali expostos. Vales dizer, ele não consiste em prova pericial,
por quanto não é esta a sua natureza jurídica.
Daí porque o próprio CENIPA inicia o seu Relatório nº67/2009 com uma advertência, em destaque, na qual consta
(fls.4863):
Conforme a Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986, Artigo 86, compete ao Sistema de Investigação e
Prevenção de Acidentes Aeronáuticos – SIPAER – planejar, orientar, coordenar, controlar e executar as
atividades de investigação e de prevenção de acidentes aeronáuticos. A elaboração deste Relatório Final
foi conduzida com base em fatores contribuintes e hipóteses levantadas, sendo um documento técnico
que reflete o resultado obtido pelo SIPAER em relação às circunstâncias que contribuíram ou podem ter
contribuído para desencadear esta ocorrência.
Não é foco do mesmo quantificar o grau de contribuição dos fatores contribuintes, incluindo as variáveis
que condicionaram o desempenho humano, sejam elas individuais, psicossociais ou organizacionais que
interagiram propiciando o cenário favorável ao acidente. O objetivo exclusivo deste trabalho é
recomendar o estudo e o estabelecimento de providências de caráter preventivo, cuja decisão quanto
à pertinência em acatá-las será de responsabilidade exclusiva do Presidente, Diretor, Chefe ou o que
corresponder ao nível mais alto na hierarquia da organização para a qual estão sendo dirigidas. Este
relatório não recorre a quaisquer procedimentos de prova para apuração de responsabilidade civil ou
criminal; estando em conformidade com o item 3.1 do Anexo 13 da Convenção de Chicago, de 1944,
recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 21.713, de 27 de agosto de
1946.
Conseqüentemente, o seu uso para qualquer propósito que não o de prevenção de futuros acidentes,
poderá induzir a interpretações e conclusões errôneas. (grifos do autor)
(AP 0008823-78.2007.403.6181, Juiz Federal Márcio Assad Guardia, JFSP, Data:30/04/2015, p.31)
[...]
Novamente ignorando a advertência de fls. 4863, o MPF utiliza uma hipótese lançada no Relatório CENIPA,
transcrevendo um trecho constante de fls. 54, denominando-o impropriamente de "conclusão" (item 65 dos
memoriais finais - fls. 6711). Segundo o Parquet "o CENIPA concluiu (sic) que a mudança do procedimento de
operação da aeronave com reversor desativado previsto na MEL/MMEL ocorrida em janeiro de 2007 não havia
sido comunicada aos pilotos".
Ora, não se identifica em uma linha sequer do supracitado relatório (fls. 4862/4983) o suporte fático de tal
"conclusão". E isso ocorre porque a finalidade do trabalho da investigação do CENIPA não é produção de prova,
consoante exaustivamente demonstrado no tópico 2.3 da presente sentença. (Ibid., p.68 – grifo do autor)
[...]
Com efeito, após o supracitado parágrafo, o MPF abandona qualquer descrição f ática e cinge-se a pinçar trechos
do Relatório do CENIPA, que batiza equivocadamente de "constatações", desprezando mais uma vez a
advertência de fls. 4863. (Ibid., p.82)
79

Cabe anotar que o tramite, em 1º grau, da referida ação penal, transcorreu no


período em que se deu a promulgação da Lei nº 12.970 de 2014, momento esse cujo
Brasil ainda vivenciava os resquícios de toda a mobilização causada anos antes pela
crise na infraestrutura da aviação civil62, em face da qual, inclusive, as alterações no
CBA foram implementadas. Todavia, três anos depois, o MPF insurge-se contra a
constitucionalidade da Lei, e baseando-se em tese consubstanciada em argumentos
do procurador que esteve à frente da acusação no caso TAM3054, propôs ação direta
de inconstitucionalidade.

7.1 - Ação direta de inconstitucionalidade Nº 5.667/DF

Em março de 2017, o Ministério Público Federal, por meio de sua Procuradoria-


Geral da República, ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5667/DF)63, no
Supremo Tribunal Federal - STF, arguindo a inconstitucionalidade de uma série de
dispositivos que versam sobre o acesso à informações do Sistema de Investigação e
Prevenção de Acidentes Aeronáuticos – Sipaer, bem como sobre o sigilo nas
investigações de acidentes aéreos, inseridos no CBA através da Lei nº 12.970/2014.

A ação, que se encontra em curso no Supremo Tribunal Federal, ainda não foi
julgada e tampouco teve os pedidos liminares apreciados pelo Ministro Relator,
encontrando-se, após o último ato realizado, sem nenhuma movimentação desde o
ano de 2018. O objetivo, porém, deste trabalho não recai sobre a análise
pormenorizada do respectivo tramite processual da ação, mas tão somente os pontos
relevantes da tese de inconstitucionalidade engendrada pelo legitimado constitucional
que a propôs, o Ministério Público Federal.

62 Crise que à época foi alcunhada de “Apagão Aéreo” pelos veículos de imprensa.

63
BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Petição Inicial. Ato Nº 38.122/2017-
AsJConst/SAJ/PGR. Ação Direta de Inconstitucionalidade. ADIN nº 5667/DF. Brasília. 2017. Disponível em:
<http://apps.mpf.mp.br/aptusmpf/protected/download ?modulo=0&sistema=portal&id=23196707>. Acesso
em: 08 ago. 2020.
80

Na ação, o Parquet Federal ataca seis dispositivos inseridos no CBA por meio
da Lei nº 14.970/ 2014, tratando-se dos respectivos artigos: 88-C; 88-D; 88-I, §2º; 88-
K; 88-N e 88-P, de modo que, na tese apresentada ao Supremo Tribunal Federal, o
órgão ministerial pugna pela inconstitucionalidade dos artigos 88-I, §2º e 88-K, sendo
que para os demais dispositivos impugnados, o Ministério Público Federal requer com
que o Supremo Tribunal Federal estabeleça a estrita interpretação constitucional
conforme os ditames da Constituição Federal da República.

Conforme consignado na tese de inconstitucionalidade do Ministério Público


Federal, os dispositivos impugnados violam o art. 5º, XXXV, LIV64 no que tange aos
princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que compõem a cláusula do
devido processo legal substancial, e LV, o art. 37, caput, sendo que no concernente
ao princípio da finalidade e da eficiência, o art. 129, I, VI, VIII e IX65, e o art. 144, §§
1º, I, e 4º da Constituição Federal66.

64
Art. 5º [...]
[...]
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
[...]
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
65
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
[...]
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e
documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
[...]
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos
de suas manifestações processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe
vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.
66
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
[...]
81

7.2 - Da inconstitucionalidade perante ao art. 5º da Constituição Federal

No que compete ao aspecto da inconstitucionalidade dos dispositivos que


prescrevem o âmbito de atuação do Sipaer, bem como das vedações para fins
acusatórios e condições para acesso às informações impostas às autoridades de
polícia criminal e ao próprio Ministério Público, o primeiro aspecto da lei cuja arguição
é postulada, recai sobre o §2º do art. 88-I da lei aeronáutica, cuja aplicação requer
com que seja observado o art. 88-K, da mesma Lei, dos quais, colhe-se as seguintes
redações:

Art. 88-I. [...]


[...]
§ 2º A fonte de informações de que trata o inciso III do caput e as
análises e conclusões da investigação Sipaer não serão utilizadas
para fins probatórios nos processos judiciais e procedimentos
administrativos e somente serão fornecidas mediante requisição
judicial, observado o art. 88-K desta Lei.
Art. 88-K. Para o uso das fontes Sipaer como prova, nos casos
permitidos por esta Lei, o juiz decidirá após oitiva do representante
judicial da autoridade Sipaer, que deverá se pronunciar no prazo de
72 (setenta e duas) horas.

Defende, o MPF, que a norma do §2º do art. 88-I, impõe um entrave ilegítimo
ao obstar o acesso aos sujeitos do processo judicial e administrativo à dados do
sistema de informação de notificação voluntária de ocorrências e às análises e
conclusões de acidentes aéreos. Resultando tais vedações em flagrante colisão com
a proteção constitucional do devido processo legal, constante no art. 5º, LIV, da CF/88,
e seus consectários lógicos da ampla defesa e contraditório.

§ 1º - A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a:
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado
em carreira, destina-se a:
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da
União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha
repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
[...]
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da
União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
82

Na linha de entendimento do MPF, restringir o emprego das análises e


conclusões da investigação Sipaer para fins probatórios em processos judiciais e
administrativos, além de condicionar o acesso das demais informações à requisição
judicial, resta por obstaculizar descabidamente o acesso de pessoas e órgãos à
informações de seus legítimos interesses e essenciais ao cumprimento do mister
constitucional das polícias científicas e do próprio órgão acusador.

Aludindo ofensa ao princípio do livre convencimento motivado, comporta, o


Parquet, em sua tese de inconstitucionalidade, que os entraves legais impostos pelo
§2º do art. 88-I, impediriam o juiz de valorar diretamente as provas produzidas no
âmbito da investigação Sipaer, bem como ofender o princípio da proporcionalidade,
por considerar que o legislador atribuiu um nível de proteção descabido às fontes
Sipaer, além de restrição exacerbada de direitos e concessão de elevados poderes à
autoridade aeronáutica.

É objeto da impugnação, também, a condicionante de acesso às análises e


conclusões Sipaer, presentes no §2º do art. 88-I e art. 88-K, que estabelecem a
necessidade de obtenção de requisição judicial (mediante oitiva do Sipaer) para que
se autorize a respectiva obtenção de tais dados; caracterizando ao órgão acusador
uma imposição inconstitucional de reserva de jurisdição, que por meio de lei ordinária
não possuiria o condão de instituir, haja vista se tratar de uma competência
jurisdicional de âmbito exclusivamente constitucional.

7.3 - Da inconstitucionalidade perante aos arts. 129 e 144 da Constituição.

A Constituição Federal da Republica estabelece no art. 129, as funções


institucionais do Ministério Público, dentre os quais elenca a titularidade da ação penal
(inciso I); a prerrogativa para requisição de informações e documentos para instruir
procedimentos administrativos (inciso VI); diligenciar em sede de investigações e
inquéritos policiais (inciso VIII), além do exercício das demais funções desde que
compatíveis com a sua natureza institucional.

Por seu turno, o art. 144 da CF/88 elenca os principais órgãos responsáveis
pela manutenção da segurança pública, sendo incumbidos de garantir a preservação
83

da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Encontram-se


nesse rol de entidades, as polícias civis e militares que acumulam dentre tantas
competências a função de polícia científica no âmbito da União (Polícia Federal) e dos
Estados (Polícia Civil).

Sob o aspecto das atribuições e competências do referido órgão acusador,


entende, o MPF, que os dispositivos impugnados cerceiam os exercícios de suas
atribuições constitucionais, violando, portanto, o inciso VIII do art. 129 da CF/88, que
define a atribuição a função de realizar diligências investigatórias e instaurar inquérito
policial, aduzindo que as normas Sipaer atacadas devem interpretar-se à luz da
função constitucional do Ministério Público, como garantia de se respeitar o modelo
do sistema acusatório previsto na lei fundamental brasileira.

O mesmo argumento com que impugna a reserva de jurisdição, em desacordo


com prévia disposição constitucional, é tido para alegar que a norma restritiva extraída
do CBA, e que confere a necessidade de requisição judicial de dados concernentes
às fontes Sipaer (art. 88-I, § 2º), confronta diretamente com a liberdade de
investigação do Ministério Público no que tange ao art. 129, I, VI,VIII e IX da CF/88,
fundamentando-se em tal precedente (BRASIL, 2017, p. 6)67:

O postulado da reserva constitucional de jurisdição importa em


submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de
determinados atos cuja realização por efeito de explicita determinação
constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do
juiz, e não de terceiros, inclusive daquelas a quem se haja
eventualmente atribuído o exercício de “poderes de investigação
próprios das autoridade judiciais”.
A cláusula constitucional de reserva de jurisdição – que incide sobre
determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a
interceptação telefônica (CF, art. 5, XII) e a decretação de prisão de
qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI)
– traduz a noção de que nesses temas específicos, assiste ao ao
Poder Judiciário, não apenas o direito de proferia a última palavra,

67
BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Parecer Jurídico. Ato N.º 101/2017 –
SFCONST /PGR Sistema Único nº 337.403/2017. Ação Direta de Inconstitucionalidade. ADIN nº 5667/DF. Brasília.
2017. Disponível em: <http://apps.mpf.mp.br/aptusmpf/protected/down load?modulo=0&sistema=portal&id=
27642319> Acesso em: 08 ago. 2020
84

mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira


palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que
dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais
atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do
Estado. Doutrina [...]
(Plenário, MS 23.452/RJ, Rel.: Mion. CELSO DE MELO, 16/09/1999,
maioria. DJ, 12 maio 2000 (grifo do autor)

Assevera, o MPF, que considerando as balizas de interpretação do texto


constitucional, no que tange às limitações da reserva de jurisdição, bem como a
proteção constitucional dos poderes instrutórios do Ministério Público Federal, conclui-
se pela incongruência e inadequação do CBA, no tocante à consecução dos fins
almejados pelo legislador ordinário. Para o parquet, o excesso de normatização
legislativa ofende o princípio da proporcionalidade (art. 5º, LIV da CF/88), violando
prerrogativas investigativas do órgão ministerial.

7.4 - Da inconstitucionalidade da precedência da investigação SIPAER.

O art. 88-C do CBA, prescreve que a investigação administrativo-preventiva do


SIPAER, em homenagem ao princípio da preservação da vida humana e máxima
eficácia preventiva, terá precedência sobre os demais procedimentos investigativos
no tocante ao acesso e a guarda de itens de interesse da autoridade aeronáutica,
conforme colhe-se da redação do dispositivo:

Art. 88-C. A investigação Sipaer não impedirá a instauração nem


suprirá a necessidade de outras investigações, inclusive para fins de
prevenção, e, em razão de objetivar a preservação de vidas humanas,
por intermédio da segurança do transporte aéreo, terá precedência
sobre os procedimentos concomitantes ou não das demais
investigações no tocante ao acesso e à guarda de itens de interesse
da investigação.

Destarte, em sua tese de arguição de inconstitucionalidade, o Ministério Público


Federal entende que esse dispositivo pode ser interpretado de modo a causar sérias
lesões às atribuições constitucionais, tanto as próprias quanto as das Polícias
Judiciárias, além de também afetar o exercício de acesso à jurisdição. Argumenta, o
Parquet, que em casos decorrentes da precedência de acessibilidade, destroços de
aeronaves sinistradas são frequentemente enviados ao próprio fabricante para análise
85

pericial, ato que ocorre sem contar com a presença de peritos criminais
independentes.

Com base no argumento ministerial, a obstaculização do livre acesso de peritos


criminais ao sítio de destroços, bem como no acompanhamento das perícias
conduzidas pelos fabricantes dos produtos aeronáuticos sinistrados, que analisam os
componentes por eles produzidos, na visão do Ministério Público, poderá impedir o
Judiciário de obter provas confiáveis, e preservadas, impedido o integro exercício de
seu mister acusatório, e, em paralelo, o da jurisdição.

Conforme relata, o órgão ministerial, a análise de componentes cujas


conclusões possam gerar subsídios para imputação de responsabilidade cível e penal
aos próprios agentes que a conduzem, poderá suprimir substancialmente as chances
de se perquirir a verdade real dos fatos, e , assim, afetar o exercício da jurisdição;
concluindo que a precedência absoluta da investigação é desnecessária e exorbitante,
além de ferir a garantia de acesso à justiça e o princípio da proporcionalidade no que
tange à proibição de excessos, afora o devido processo legal a as prerrogativas
constitucionais ministeriais e da polícia criminal.

Ainda sob a questão da acessibilidade ao sítio de destroços do sinistro


aeronáutico, aduz, o Parquet, que os arts. 88-N e 88-P, restringem o acesso dos
órgãos de investigação criminal, pois condicionam o poder de manipular destroços
mediante a prévia presença do Cenipa no local, além de submeter a atuação do
Ministério Público e Polícia Científica à discricionariedade do órgão Sipaer, para que
o manuseio de partes seja permitido aos órgãos de investigação criminal. Tais
disposições, assevera o MPF, podem suprimir a eficiência da persecução penal, além
de impedir com que destroços de um acidente possam ser preservados até a chegada
da autoridade aeronáutica ao local do acidente.

7.5 - Inconstitucionalidade da Opinio Delicti do Sipaer.

A redação do CBA prevê para o caso em que, no exercício das atividades


administrativas, a autoridade aeronáutica competente se deparar com qualquer
elemento que possa apontar para a existência de um ou mais crimes, esta deverá
86

reportar-se à autoridade policial ou judicial pertinente. São exemplos de tal disposição


o art. 88-D e o §2º do art. 291, cujas redações prescrevem o seguinte:

Art. 88-D. Se, no curso de investigação Sipaer, forem encontrados


indícios de crime, relacionados ou não à cadeia de eventos do
acidente, far-se-á a comunicação à autoridade policial competente.
Art. 291. Toda vez que se verifique a ocorrência de infração prevista
neste Código ou na legislação complementar, a autoridade
aeronáutica lavrará o respectivo auto, remetendo-o à autoridade ou ao
órgão competente para a apuração, julgamento ou providência
administrativa cabível.
§ 1° Quando a infração constituir crime, a autoridade levará,
imediatamente, o fato ao conhecimento da autoridade policial ou
judicial competente.

No que compete ao art. 88-D, cuja disposição é objeto de arguição de


inconstitucionalidade por parte do Ministério Público Federal, aduz o referido órgão
ministerial, que a opinio deliciti do Sipaer, eventualmente exercida ao longo de uma
investigação de acidente aeronáutico, criaria entraves à titularidade da persecução
penal, bem como as funções investigativas da Polícia Federal, haja vista que a
competência para apuração de acidentes aéreos se dá por força do art. 109, XI, da
Constituição Federal de 1988.

Defende, o MPF, que a investigação administrativo-preventiva aeronáutica do


Sipaer, por não possuir finalidade estritamente criminal, é capaz de abrir precedentes
para que o órgão investigativo aeronáutico possa não conservar vistas (ou não se
mobilizar) no tocante a eventual existência de uma ou mais condutas criminosas,
elementos cujo, aos olhos dos órgãos incumbidos da persecução penal, poderiam ser
facilmente detectáveis e suficientes para a deflagração de uma ação penal.

De acordo com a tese ministerial, se a atuação dos órgãos de investigação


criminal passarem a depender do juízo de valor da autoridade aeronáutica, haverá no
cerne de sua atividade acusatória um inaceitável condicionamento para início da
investigação criminal, que passaria a ser submetida à avaliação discricionária dos
órgãos que compõem o Sipaer. Outrossim, conclui o Parquet, transferir a opinio delicti
à autoridade aeronáutica, de modo soberano e sem a existência de mecanismos de
controle, configuraria uma verdadeira usurpação de uma competência privativa do
Ministério Público.
87

CONCLUSÃO

A presente monografia abordou parte da problemática que acomete um


importante microssistema jurídico de segurança operacional da aviação civil, através
da qual transitou por relevantes aspectos do Sistema de Investigação e Prevenção de
Acidentes Aéreos – SIPAER, que, indubitavelmente, demonstrou-se como um
importante pilar de proteção para todo o modal aeronáutico nacional, sendo o
responsável pela gestão de programas de prevenção e pela investigação de
ocorrências de acidentes e incidentes aeronáuticos.

Em linhas gerais, foi possível demonstrar a evolução do Sipaer como


microssistema responsável por conjugar os serviços de prevenção e investigação de
acidentes aéreos, fruto de um paulatino processo de desenvolvimento técnico e
jurídico, que ao longo de sua trajetória, visando maximizar sua eficácia, dissociou-se
por completo de qualquer outro mecanismo investigativo voltado à punição,
incorporando elementos de cultura justa, que, sob a garantia de não repercutibilidade
judicial ou administrativa, conquistou ampla adesão em meio ao setor aeronáutico.

A cultura justa revelou-se, portanto, como a roda motriz do Sipaer, e


demonstrou a sua eficácia não somente no meio aeronáutico, como também em uma
série de outros campos da atividade humana que envolvem massivo risco à vida, seja
em âmbito individual ou coletivo; de modo que o fomento da cultura de segurança
(pautada pelas máximas da cultura justa), consolidou-se como modelo eficaz de
gestão de prevenção a acidentes em seguimentos associados a elevado grau de risco
operacional.

Conforme demonstrou-se com o estudo do Sipaer, modelo organizacional


amparado pelo cabedal principiológico da cultura de segurança, os princípios e
valores que dão forma ao sistema não se encontravam, a priori, dispostos em norma
cogente, e tampouco gozavam de qualquer motor coercitivo capaz de colocá-lo em
ação, de modo que a voluntariedade marcou o aspecto subjetivo principal do modelo,
movimentando um mecanismo autossuficiente de troca, onde a cooperação e o
incremento da segurança variam na exata proporção.
88

Verificou-se, também, que o Sipaer não dispunha originalmente de


mecanismos de vedação a desvios de finalidade quanto ao emprego de suas
informações; tonando-se, pois, constante, uma preocupação, a boa gestão do sistema
o uso indevido dos dados sob sua égide produzidos, com vistas à finalidade punitiva
judicial ou administrativa; sob pena de, colateralmente, reduzir-se gradativamente o
animus e voluntariedade com que todos os envolvidos alimentam o sistema.

Partindo-se de tal premissa, detectou-se na problemática abordada que a


patogênese dos males que acometem o Sipaer, possui origem externa, oriunda de
entes alheios à manutenção do sistema, que incursionam em seus diferentes elos de
atuação para colher de suas entranhas toda e qualquer informação capaz de embasar
argumentos dissociados da função preventiva, passando a fazer uso dos dados
coletados como meio de prova em pleitos diversos de responsabilização perante as
esferas judiciárias e administrativas.

Nessa esteira, atenta ao quadro patológico que paulatinamente acometia o


tecido do sistema, a comunidade aeronáutica internacional, por meio da OACI,
engendrou sua resposta à ofensiva, de modo que houve orientação aos Estados-
partes pela tomada de medidas de natureza legiferante visando a edição de normas
protetivas destinadas a trazerem maior segurança jurídica ao sistema, por vias de uma
normatização mais restritiva, sobretudo quanto às limitações da investigação de
acidentes, de modo que operou-se, no Brasil, a edição da Lei. nº 14.970 de 2014.

Não obstante a nova lei tenha logrado, até certo ponto, êxito, ao conferir maior
segurança ao sistema, a expectativa perante a vertente judicial da investigação e a
atividade acusatória estatal, demonstrou poucos resultados, deflagrando um quadro
de total irresignação do MPF, que passou a alegar a existência de inúmeras limitações
à sua atividade, e consequentemente insurgiu-se contra a Lei nº 14.970/14 através da
ADI 5.667/DF, que questiona a constitucionalidade da lei perante ao STF.

Posto o quadro geral desta problemática, em breve digressão, conclui-se que


o modelo dualista possui a árdua missão de conjugar os diferentes interesses dos
distintos agentes da investigação. Todavia, a origem da problemática hodierna que o
envolve não se explica com base unicamente em elementos e conflitos internos;
89

devendo-se considerar, portanto, uma série de elementos externos ao sistema, que


direta ou indiretamente influenciaram nas transformações ocorridas desde a sua
implementação.

Nesse sentido, não se pode perder de vista, que a aviação civil experimentou
uma série de avanços tecnológicos além de uma considerável expansão em todo o
mundo, de modo que, desde que foi implementado pela OACI, até os dias atuais, o
modelo de investigação e prevenção de acidentes sofreu ao longo de sua existência
constante influência de fatores de agentes externos, procedentes, também, de um
cenário jurídico e socioeconômico extremamente dinâmico e instável.

Com efeito, a leitura que se faz acerca da atual problemática do sistema


dualista de investigação, remonta a própria história de exercício do modelo,
relativamente ainda muito curta, se tomarmos por referência a recepção da
Convenção de Chicago, que no Brasil se efetivou a partir no ano de 1946, com a
internalização do tratado, e posteriormente com a própria evolução institucional do
Sipaer, seguido pela promulgação do Código Brasileiro de Aeronáutica em 1986.

Ao longo das sete décadas de vigência do tratado internacional aeronáutico no


Brasil, é preciso conservar-se em mente que o modal aeronáutico experimentou
profundas transformações desde que, no século passado, os pioneiros da aviação
desbravavam o país a bordo de primitivas aeronaves que operavam precárias pistas
de terra, até o momento da história em que o país passou a ocupar posições de
destaque em diversos indicadores numéricos, bem como a deter uma numerosa frota
de aeronaves comerciais e gerais, cujas operações se concentram em grandes
centros urbanos.

O status quo do cenário aeronáutico nacional, que, por seu turno, também se
replica em outros países membros da OACI, adeptos do modelo dualista, não causa
perplexidade alguma, em que pese por se considerar a breve história da Convenção
de Chicago de 1944, que permite com que se avalie a atual problemática jurídico-
normativa como amplamente previsível e naturalmente reflexa, ante o recente
fenômeno geral de massificação do modal aeronáutico, e toda sua gama de
problemas imanentes à própria complexidade operacional e jurídica do sistema.
90

O exponencial crescimento da aviação mundial, que se refletiu evidentemente


no cenário interno, associou-se a diversos fenômenos de ordem econômica
vivenciados no país nas últimas décadas, que democratizaram o acesso ao transporte
colocando-o ao alcance das diversas camadas sociais, impulsionando, por sua vez,
um amplo crescimento no sistema; fato que, consequentemente, fez com que
eclodissem no mercado da aviação uma incontável gama de fatos juridicamente
relevantes e até então inéditos.

O Direito, evidentemente, não poderia quedar-se alheio face à universalidade


de crises que o crescimento da aviação civil proporcionalmente instaurou no cenário
nacional, não sendo possível evitar com que o Poder Judiciário figurasse como
grande palco para demandas cíveis, trabalhistas e penais, onde questões atinentes
aos acidentes aéreos houvessem de ser dirimidas, amparadas quase que
exclusivamente pelo relatório final da investigação aeronáutica, fato que associado à
vedação non liquet, expuseram a investigação Sipaer a um inevitável dilema quanto
a sua real natureza probatória.

O relatório final de investigação de acidentes aéreos passava a experimentar


paulatinamente, sob a ótica dos órgãos julgadores e de investigação judicial, um
preocupante processo de vulgarização, sob o qual era visto como espécie de
sucedâneo ou mero complemento investigativo criminal; devendo-se parte desse
fenômeno ao próprio ordenamento jurídico aeronáutico que à época carecia de devida
objetividade e concisão normativa.

Nesse sentido, a Lei nº14.970/2014, afirmou-se como uma importante


intervenção legislativa, colocando, pois, termo em parte da fragmentariedade com que
as fontes formais do Sipaer eram dispostas na legislação, sobretudo as normas de
aspecto restritivo da investigação aeronáutica, que se encontravam dispersas na
legislação complementar, conferido pouca efetividade ao sistema.

Dessarte, observou-se que tão logo as normas do sistema passaram a figurar


o bojo da legislação ordinária, pôde-se efetivamente ampliar a margem de segurança
jurídica demandada pelo Sipaer, de modo que se conferiu ao sistema um sólido
91

arcabouço normativo e principiológico; constituindo-o legalmente como efetivo


microssistema jurídico em matéria de Direito Aeronáutico.

No que tange à contribuição da justiça para o desenvolvimento do sistema,


verificou-se no campo da jurisprudência temática, no início da década de 2000, o papel
precursor dos Ministros do Superior Tribunal Militar, enquanto oficiais aviadores
altamente qualificados, atuantes como verdadeiro braço técnico especializado na
esfera judicial, colocando a serviço da jurisdição um vasto cabedal de conhecimento
aeronáutico, assentando naquela corte remansoso entendimento acerca da
imprestabilidade da investigação aeronáutica para fins que não o preventivo.

No mesmo período, relevante foi o papel das varas e tribunais da Justiça


Federal, enquanto instâncias jurisdicionais competentes para dirimir quase que a
totalidade dos casos envolvendo acidentes aéreos, sobretudo no período anterior à
Lei nº 14.970/2014, em que o país atravessava o ápice da crise na infraestrutura da
aviação civil; no qual o Poder Judiciário enfrentou complexas questões envolvendo
dois dos maiores sinistros aéreos da história nacional, sem distanciar-se, da
legalidade e da mais estrita corretude em suas decisões.

Foi inteiramente possível concluir com base nos julgamentos analisados, que
inexiste uma vedação integral quanto ao emprego da investigação aeronáutica no
processo judicial, sentido em que o CBA somente faz ressalva às análises e
conclusões finais do Sipaer, pois impregnadas de ilimitada subjetividade. No tocante
aos demais elementos fáticos e periciais, conduzidos por terceiros, o CBA somente
os condiciona a prévia oitiva do Sipaer – sem que isso constitua, de imediato, em
óbice de acesso à justiça ou à atividade acusatória estatal.

Nos julgamentos em que se constataram a presença de errores in jurdicando,


aferiu-se que os órgãos julgadores imprimiram demasiada valoração probatória às
analises e conclusões do Sipaer, repise-se: meras conjecturas engendradas com fito
exclusivo à prevenção de acidentes. Como resultado, além de um desserviço
jurisdicional, o precedente criado passou a repercutir negativamente sobre os
aspectos de segurança jurídica, além de afetar profundamente critérios sensíveis do
mercado aeronáutico.
92

No tocante a ADI 5.667/DF, que pugna pela inconstitucionalidade das normas


Sipaer inseridas no CBA, o andamento da ação no STF segue desde janeiro de 2018
sem movimentação alguma, de modo que inexiste até o momento um pronunciamento
jurisdicional a respeito dos pedidos aduzidos pelo Parquet na ação constitucional; não
deixando de chamar a atenção, porém, o fato que desde a sua impetração, em
fevereiro de 2017, tampouco o pedido cautelar amparado em fumus boni iuris e o
periculum in mora tenha sido, de fato, apreciado.

Quanto ao pleito ministerial, o controle concentrado de constitucionalidade é


meio de arguição abstrata por via da qual busca-se desentranhar da legislação a
norma eivada de vício, tendo se valido, o Parquet, de tese unicamente teórica na qual
vislumbrou-se um cenário repleto de entraves e riscos jurídicos às atividades
investigatórias e acusatórias judiciais; não parecendo, porém, que a referida tese
encontre guarida no cenário predominantemente cooperativista, onde à investigação
judicial são franqueados todos os meio hábeis de persecução penal.

No capítulo inerente à da precedência da investigação Sipaer, não se pode


excluir o fato que a imediatidade com que a investigação aeronáutica estabelece
estrito contato com os destroços de uma aeronave, é o limiar da detecção e mitigação
de riscos ativos no acidente e que demandam célere notificação da comunidade
aeronáutica. Por vezes, o decurso de poucas horas, a depender do risco detectado,
pode influenciar drasticamente sobre a probabilidade de uma nova ocorrência; sendo
incompatível com o princípio da máxima eficácia preventiva qualquer morosidade
quanto ao acesso e análise dos destroços por parte do órgão aeronáutico.

Ademais, conforme visto, a investigação judicial, diferentemente daquela


conduzida pelo Sipaer, sob a baliza cognitivo-especulativa, exige um amplo grau de
certeza para amparar indubitavelmente a imputação de culpa e posterior exigência de
condenação dos envolvidos em um acidente aéreo. Muito embora o inquérito policial
seja um procedimento finito, a celeridade, como um fim em si, não é compatível com
a devida consecução dos fins objetivados à luz do devido processo legal; sentido em
que a tese ministerial demonstra-se vaga e carente de lastro sob tal aspecto.
93

Há de se convir que, no tocante à preocupação do Parquet quanto ao envio de


destroços aos fabricantes para que estes conduzam suas respectivas análises e
ensaios, a crítica ministerial reveste-se de razoabilidade, sendo, de fato, inadmissível
que partes tendencialmente interessadas em se forrar de eventuais responsabilidades
realizem quaisquer procedimentos sem acompanhamento devido de peritos do
sistema de justiça. Trata-se, pois, de um modo de coibir-se expedientes tendentes à
ocultação de fatos que possam resultar em algum tipo de responsabilização aos
fabricantes.

A questão esbarra, porém, no problema do domínio tecnológico detido por


muitos fabricantes de componentes aeronáuticos, de modo que por razões
essencialmente técnicas ou sigilosas industriais, a análise do destroço só será
possível nas dependências do fabricante, fato que os favoreceria em uma tentativa de
ocultação de algum traço faltoso no projeto. Nesse sentido, a crítica ministerial revela-
se procedente ao pugnar pelo acompanhamento de todo o processo por membros
investigação judicial como um meio hábil de se coibir eventuais condutas ilícitas.

Por fim, na ação de inconstitucionalidade, as colocações referentes à suposta


incumbência de opinio delicti atribuída aos órgãos investigativos do Sipaer não
comportam nexo com qualquer das disposições existentes no bojo do Código
Brasileiro de Aeronáutica. A bem da verdade, na Lei, aos órgãos do Sipaer recaem
unicamente uma incumbência de notificação às autoridades, todas as vezes em que,
no curso de uma investigação, estes se depararem com a ocorrência de algum fato
que contenha elementos indiciários de crime – trata-se, pois, de mera delatio criminis.

Por maior que seja o esforço hermenêutico externado na exegese da respectiva


norma do CBA, desta extrai-se unicamente um “dever ser” que recai sobre os órgãos
Sipaer, e que se traduz em conduta comissiva de mera comunicação de fato à
autoridade competente. Disposição análoga a essa já existia na redação revogada do
código aviatório, não tendo sido anotado em sua vigência quaisquer entraves à
atividade acusatória do MPF.

Não se pode, deixar-se confundir este dever de notificação, comum a muitos


outros órgãos executivos e administrativos, com o instituto da opinio delicti, privativo
94

do Ministério Público, no qual, mediante amplo grau de certeza e convencimento, o


órgão ministerial pronuncia-se realizando o exercício de subsunção da conduta
imputada em face de um suposto agente à norma penal pertinente – ato este
inteiramente distinto de se realizar uma mera notificação de fato.

Em suma, a tese ministerial de inconstitucionalidade demonstrou-se pouco


congruente ante a realidade do sistema dualista proposta pela novel legislação. As
proposições abstratas e hipotéticas de existência de óbices ao exercício do mister
investigativo e acusatório e todo o demais conjunto de ofensas aos princípios
alegados na ação, embora admissíveis em sede de controle concentrado de
constitucionalidade, em muito distanciaram-se do quadro normativo proposto e das
expectativas gerais que a Lei nº14.970/2014 trouxe consigo.

Trata-se de algo inegável a importância da irrestrita atuação do MPF, enquanto


ente diretamente interessado na investigação de acidentes aéreos. Entretanto o órgão
alcançará melhor serventia aos fins constitucionais que se reveste, se, em
consonância à nova realidade fática e jurídica da aviação civil, canalizar seus esforços
na especialização de seus agentes e na adequação do seu equipamento. Desse modo
o órgão ministerial estará melhor capacitado a, no próximo caso, enfrentar com mais
eficiência e tecnicismo toda a carga de dificuldades que uma investigação de acidente
aeronáutico naturalmente impõe.

Em linhas gerais, impera sobre os atuais questionamentos um certo grau de


inconclusividade que somente o decurso do tempo e a superveniência de alguma
ocorrência aeronáutica relevante possa submetê-los a teste. Somente a deflagração
de um fenômeno de monta permitirá a leitura empírica da efetividade do modelo em
vigor. Outrossim, as mudanças enfrentadas pelo atual modelo dualista de investigação
de acidentes aeronáuticos, carece de um batismo de fogo, para revelar a posteriori o
verdadeiro grau de eficácia que o legislador efetivamente buscou imprimir ao sistema.
95

REFERÊNCIAS:

AIR SAFETY SUPPORT INTERNATIONAL. Safety Culture. Disponível em:


<https://www.airsafety.aero/Safety-Information-and-Reporting/Safety-Management-S
ystems/Safety-Culture.aspx> Acesso em: 15 jul. 2020.

ARAÚJO, Arizona, D´avila S. A. Jr. A Investigação Sipaer e a atuação do poder


judiciário. Conexão SIPAER – Revista, Brasília, DF, v.4, n.1 set-out. 2012. Disponível
em: <http://conexaosipaer.cenipa.gov.br/index.php/sipaer/issue/view/11>. Acesso
em: 19 ago. 2020.

AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL. Organização da Aviação Civil


Internacional (OACI). Disponível em: <https://www.anac.gov.br/A_Anac/inter
nacional/organismos-internacionais/organizacao-da-aviacao-civil-internacional-oaci>
Acesso em: 01 de jul. de 2020.

BRASIL. Decreto nº 21.713, de 27 de agosto de 1946. Promulga a Convenção sôbre


Aviação Civil Internacional, concluída em Chicago a 7 de dezembro de 1944 e firmado
pelo Brasil, em Washington, a 29 de maio de 1945. Diário Oficial da União. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D21713.htm>. Acesso
em 26 março 2020.

BRASIL. Decreto nº 87.249, de 7 de junho de 1982. Dispõe sobre o Sistema de


Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos e dá outras providências. Diário
Oficial da União de 09/06/1982. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/c
civil_03/decreto/1980-1989/1980-1984/D87249.htm>. Acesso em 24 de março 2020.

BRASIL. Decreto nº 9.540, de 25 de outubro de 2018. Dispõe sobre o Sistema de


Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos. Diário Oficial da União de
26.10.2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2018/Decreto/D9540.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%209.540%2C%2
0DE%2025,vista%20o%20disposto%20nos%20arts.> Acesso em 25 de março 2020.

BRASIL. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Dispõe sobre o Código Brasileiro


de Aeronáutica. Diário Oficial da União. Brasília, 20 de dezembro de 1986. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565.htm>. Acesso em 26 março 2020.

BRASIL. Lei nº 12.970, de 8 de maio de 2014. Altera o Capítulo VI do Título III e o


art. 302 e revoga os arts. 89, 91 e 92 da Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986 -
Código Brasileiro de Aeronáutica, para dispor sobre as investigações do Sistema de
Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos - SIPAER e o acesso aos
destroços de aeronave; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565.htm>. Acesso em: 26 mar. 2020.

BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Petição Inicial.


Ato Nº 38.122/2017-AsJConst/SAJ/PGR. Ação Direta de Inconstitucionalidade. ADIN
nº 5667/DF. Brasília. 2017. Disponível em: <http://apps.mpf.mp.br/aptusmpf/protec
ted/download?modulo=0&sistema=portal&id=23196707>. Acesso em: 08 ago. 2020.
96

BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria-Geral da República. Parecer


Jurídico. Ato N.º 101/2017 – SFCONST /PGR Sistema Único nº 337.403/2017. Ação
Direta de Inconstitucionalidade. ADIN nº 5667/DF. Brasília. 2017. Disponível em:
<http://apps.mpf.mp.br/aptusmpf/protected/download?modulo=0&sistema=portal&id=
27642319>. Acesso em: 08 ago. 2020.

BRASIL. CENIPA. ESTUDO PREPARATÓRIO Nº: 001/2017/CENIPA. Brasília, DF,


14 de mar. 2017. p. 06. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=TP&docID=648345511> . Acesso em: 15: jul. 2020.

BRASIL. Comando da Aeronáutica. Centro de Investigação e Prevenção a Acidentes


Aéreos. Síntese final PT-TEO/CENIPA/2001. Brasília, 2001. Disponível em:
<http://sistema.cenipa.aer.mil.br/cenipa/paginas/relatorios/rf/pt/RF_PTTEO_ACIDEN
TE_27_02_2000.pdf> Acesso em 08 jul. 2020.

BRASIL. Comando da Aeronáutica. Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes


Aeronáuticos. Relatório final A-nº67/CENIPA/2009. Recomendações de Segurança.
Disponível em: <http://sistema.cenipa.aer.mil.br/cenipa/paginas/relatorios/recomen
dacoes.php?numero_relatorio=A-067/C ENIPA/2009>. Acesso em: 12 jul. 2020.

BRASIL. Comando da Aeronáutica. Departamento de Controle do Espaço Aéreo.


Publicações. ICA 100-12. Disponível em: <https://publicacoes.decea.gov.br/downlo
ad.cfm?d=4429>. Acesso em: 11 jul. 2020

BRASIL. Comando da Aeronáutica. Departamento de Controle do Espaço Aéreo.


Glossário. SIPAER. Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos
Disponível em: <https://www.decea.gov.br/sirius/index.php/2011/06/14/sipaer-
sistema-de-investigacao-e-prevencao-de-acidentes-aeronauticos>. Acesso em: 26
mar. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal Militar. Habeas Corpus nº 2000.01.033545-5. Relator:


Ministro João Felippe Sampaio de Lacerda Junior. Data de Julgamento: 20/06/2000,
Data de Publicação: 16/08/2000. Disponível em:
<https://www2.stm.jus.br/pesquisa/acordao/2000/180/01.033545 5/01.0335455.pdf>.
Acesso em 08 jul. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal Militar. Habeas Corpus nº 2005.01.034113-7. Relator:


Ministro Flavio Flores da Cunha Bierrenbach. Data de Julgamento: 16/12/2005, Data
de Publicação: 01/03/2006. Disponível em: <https://www2.stm.jus.
br/pesquisa/acordao/2005/180/01.0341137/ 01.0341137.pdf>. Acesso em: 09 jul.
2020.

BRASIL. Tribunal Regional Federal (2. Região). Apelação Cível nº


200151010230156, Desembargador Federal Sérgio Feltrin Correa, TRF2 – Sétima
Turma Especializada, DJU – Data: 13/07/2009. Disponível em:
<http://www.trf2.gov.br/iteor/RJ0108710 1/89/263022.rtf>. Acesso em: 19 jul. 2020.
97

BRASIL. Justiça Federal/Pernambuco. Inquérito Pena 0010878-51.2001.4.05.8300,


Juíza Federal Flávia Tavares Dantas, JFPE, Data: 09/09/2011

BRASIL. Justiça Federal/São Paulo (8ª Vara Federal Criminal – Seção Judiciária de
São Paulo). Ação Penal n. 0008823-78.2007.403.6181. Autor: Ministério Público
Federal Réu(S): Marco Aurélio Dos Santos De Miranda E Castro Alberto Fajerman
Denise Maria Ayres Abreu. Juiz Federal Márcio Assad Guardia, JFSP,
Data:30/04/2015

BRASIL, Sérgio F. T. S. de. O papel do poder judiciário na segurança de Voo:


análise de caso concreto de uso do Relatório Sipaer em processo judicial. Conexão
SIPAER – Revista, Brasília, DF, v.4, n.1 set-out. 2012. Disponível em:
<http://conexaosipaer.cenipa.gov.br/index.php/sipaer/issue/view/11>. Acesso em: 19
ago. 2020.

CARVALHO, Marcos, A.G. de. O papel do poder judiciário na segurança de Voo:


análise de caso concreto de uso do Relatório Sipaer em processo judicial. Conexão
SIPAER – Revista, Brasília, DF, v.4, n.1 set-out. 2012. Disponível em:
<http://conexaosipaer.cenipa.gov.br/index.php/sipaer/issue/view/11>. Acesso em: 19
ago. 2020.

GRECCO, V. F.; ROSSI, J. D. Manual de Processo Penal. 8 ed. Ver., atual. E ampl.
São Paulo: Saraiva, 2010.

GOMES, L. F.; BIANCHINI, A. Curso de Direito Penal: parte geral (arts. 1º a 120).
Salvador: Ed. JusPovm, 2015.

GOMES. L. F. Princípio da Verdade Real. Jusbrasil, 2011. Disponível em:


<https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121915673/principio-da-verdade-real#:~:
text=O%20pri¬meiro%20deles%3A%20princ%C3%ADpio%20da,da%20verdadeira
% 20realidade%20dos%20fatos>. Acesso em: 14 jul. 2020.

HONORATO, Marcelo. Crimes Aeronáuticos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,


2014.

HOMA, Jorge M. Aeronaves e Motores: Conhecimentos Técnicos – 29. ed. São


Paulo: ASA, 2009.

ICAO. Annex 13. Aircraft Accident and Incident Investigation. Disponível em:
<https://www.icao.int/safety/airnavigation/AIG/Pages/Documents.aspx>. Acesso em:
05 jul. 2020.

ICAO. The History of ICAO and the Chicago Convention. ICAO. Disponível em:
<https://www.icao.int/about-icao/History/Pages/default.aspx> Acesso em: 06 jul. 2020.

Você também pode gostar