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Arte literária e Direitos Humanos: vozes marginais em foco.

Camila Dalcin (dalcin.near)

- Quem gosta de poesia?


-Ninguém senhor.
Aí recitei Negro drama dos Racionais.
- Senhor, isso é poesia?
-É.
-Então nóis gosta.
É isso. Todo mundo gosta de poesia.
Só não sabe que gosta.
Sergio Vaz

Permito-me dialogar com a epígrafe deste texto, o poema narrativo “Fundação


Casa” de Sérgio Vaz, idealizador do Cooperifa1, para entendermos a potência da
Literatura na sociedade e seu diálogo com os Direitos humanos. Aqui o poeta nos conta
sobre a experiência das oficinas de poesia realizada com jovens privados de liberdade e
compartilha o quanto a poesia permeia a vida destes jovens, não através do cânone
clássico do que se convencionou pensar o texto poético, mas sim pelo RAP, versos
oriundos de vozes marginais, assim como o Slam poesia, objeto central desta reflexão.
Os Direitos Humanos na literatura são a garantia do testemunho sem repressão
seja institucional, seja estética, garantindo que grupos contra-hengemônicos, por muito
tempo surrupiados de suas vozes, acessem códigos literários para testemunhar e resistir.
A partir desta premissa proponho discutirmos a relação da Literatura e sua função sob a
luz dos direitos humanos, para tanto é necessário refletirmos sobre a função da arte
literária, sem perder de vista o tempo e o espaço no qual ela é produzida. O corpus
escolhido são as expressões marginais da Literatura brasileira contemporânea, com
ênfase na expressão poética Slam, colocando em perspectiva a representação das
tensões sociais na linguagem estética de sujeitos que foram relegados à margem não só
no campo social, mas também no literário. O foco se justifica por ser um movimento
poético de sujeitos urbanos periféricos que ocupam o centro das grandes cidades
brasileiras para declamar poesia autoral com temas sociais. Portanto interessa
ampliarmos a discussão de como os direitos humanos reverberam esteticamente na
linguagem poética do Slam e, por conseguinte, na função da Literatura.
Em diálogo com Antônio Candido em “Direito à Literatura”, ensaio
contemporâneo à redemocratização brasileira, compreendo a literatura como
necessidade indissociável ao desenvolvimento do indivíduo, um direito de todo ser
humano. O autor esclarece-nos uma importante finalidade da literatura ao afirmar que
ela coexiste nas dimensões individual e coletiva do ser humano, pois visa culminar em
uma situação de comunicação entre indivíduos e seu tempo. Cabe, então, refletirmos a

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A Cooperifa é um movimento poético que promove saraus toda a semana desde 2001,na Zona Sul da
cidade de São Paulo. Idealizado pelo poeta Sérgio Vaz é hoje uma manifestação periférica fundamental à
cena cultural da maior metrópole da América Latina.
respeito das consequências da privação imposta pela violência simbólica, sobre
determinados indivíduos, em relação às situações de comunicação propiciadas pelo
pensamento que se torna expressão e, por conseguinte, pela literatura.
É consenso que a criação e circulação de palavras está associada a necessidades
e interesses sociais, portanto quando estes se direcionam à exclusão, é oportuno e
conveniente para o controle conservador das relações sociais criar condições para que
não se desenvolva uma linguagem propícia à resistência. O que vale para um grupo não
é necessariamente válido para o outro. O artigo de Jaime Guinzburg em “Literatura e
Direitos humanos: notas sobre um campo de debate” esclarece que a cultura
conservadora dominante gosta, muitas vezes, de adotar uma perspectiva de
“universalismo”, como se todos os seres humanos fossem iguais, e tivessem as mesmas
necessidades. Postura questionada pelos Movimentos sociais de direitos humanos que
buscam evidenciar que diferenças estão na base de problemas de conflitos sociais. Em
larga medida, o problema das relações entre Literatura e Direitos Humanos busca a
história não contada ou: o que acontece quando o objeto (ou o subalterno) começa a
falar? Estaria o campo hegemônico disposto a ouvir? Sobretudo, quando grupos do
gueto utilizam particularidades linguísticas, marcando processos identitários - seu lugar
de fala - para impedir que o impacto das demandas desses grupos não se percam na
retórica universalista conservadora.
E é neste lugar de se fazer ouvir que o movimento Slam Poesia ou Poetry Slam
surge nos anos de 1980 em Chicago, Estados Unidos. Traduzido para o português, o
termo “slam” é uma onomatopeia que se assemelha a batida de uma porta ou janela. O
poetry slam é uma batalha de poesia falada, cujas cinco regras principais, apesar de
variarem de lugar para lugar, tendem a permanecer relativamente igual: os competidores
têm três minutos para apresentar sua poesia autoral e inédita naquele Slam, sem o
auxílio de adereços de cena ou acompanhamento musical. As poesias são julgadas pelo
público e pelos jurados imediatamente após sua leitura/recitação/acontecimento, em
uma escala de zero a dez. O júri é constituído por pessoas escolhidas aleatoriamente na
plateia. Das notas dos cinco jurados, a maior e a menor são descartadas, compondo uma
nota final que varia entre zero e trinta pontos. O poeta geralmente passa por três
rodadas, tendo que apresentar três poesias vencedoras antes de se tornar o campeão da
noite.
O espaço de realização dos Slams brasileiros constitui uma diferença
significativa com relação à versão americana: as batalhas ocorrem sempre dentro de
espaços fechados – teatros, bares ou casas de show –, onde é necessário comprar
ingresso para participar do evento. No Brasil, mesmo nas ocasiões em que ocorrem em
espaços fechados, os Slams costumam ser sempre gratuitos. É importante ressaltar que a
marca do Slam brasileiro é justamente o uso de espaços públicos, como: praças, ruas
viadutos, parques, ocupados por sujeitos, na maioria das vezes, oriundos da periferia de
grandes centros urbanos e é esta realidade a principal fonte temática das poesias.
O significado dos poemas se constitui tanto através da narrativa em primeira
pessoa sobre a experiência do/a slammer (narrativa que ele/a escreve e, desejavelmente,
memoriza antes do evento, raramente improvisa como nas batalhas de MC`s), da voz e
do corpo do/a poeta, quanto da relação com a voz, o corpo e as histórias do público que
ouve. A experiência da poesia deixa de ser sobre o privado (a relação entre autor e
público que comumente se estabelece ao lermos poesia no papel), e passa a ser a um
potencial dialógico entre autor e público. Flerta com a canção popular e torna-se uma
prática coletiva e, como tal, se estabelece no limite entre o oral, o escrito e o visual,
fazendo da performance um elemento central.
No Slam Resistência, as performances do/as poetas tendem a ser narrativas em
primeira pessoa que tematizam sua experiência de vida, traço que Roberta Estrela
D’Alva (2011) chama de “autorrepresentação”, são temas como a desigualdade, a
exclusão, o machismo, o racismo e a homofobia. Em seu artigo, a autora fala sobre o
Slam como “um espaço autônomo onde é celebrada a palavra, a fala, e, ainda mais
fundamental num mundo como o que vivemos – a escuta” (D’Alva, 2011, p. 125), para
ela o Slam é uma comunidade:
O termo “comunidade” define bem os grupos que “praticam” o poetry slam, já
que esses vêm se organizando coletivamente em torno de um interesse comum,
sob um conjunto mínimo de normas e regras. As comunidades cultivam o
respeito aos fundadores do movimento e conhecimento detalhado sobre sua
recente história, seus fundamentos e “filosofias”. Ainda dentro dessa vocação
comunitária, muito embora existam “figuras carimbadas” e habitués que
frequentam regularmente os slams, tornando-se uma espécie de “personagens”,
não há incentivo à criação de poetas “super-stars”, mas pelo contrário, prega-se
que o propósito do poetry slam não é a glorificação do poeta em detrimento de
outros, mas a celebração da comunidade à qual ele pertence (D’Alva, 2011, p.
121).
Mesmo que isso signifique pôr suas vidas em risco, os poetas e frequentadores
do Slam, ocupam a praça com seus versos. E essa nova articulação política e cultural faz
toda a diferença, dentro desse contexto, podemos perceber, então, que além da luta por
direitos ser tema e preocupação de grande parte dos poemas apresentados no Slam, ela
se reflete também na lógica da realização do próprio evento: tanto nos critérios
democráticos (Somers-Willett, 2009) que dizem respeito a quem pode ser o poeta, de
que assunto ele pode falar, quem pode assistir, quem pode julgar uma poesia, com base
em que princípios; quanto na lógica de ocupação que rege o espaço de realização do
evento em si. Portanto o Slam poesia garante que vozes insurgem da periferia e ocupem
espaços centrais democratizando o acesso à literatura.

Referências:
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva,
1998. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos. 5 ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2011.
D’ALVA, Roberta Estrela (2011). Um microfone na mão e uma ideia na cabeça: o
poetry slam entra em cena. Synergies Brésil, n. 9, p. 119-126. Disponível em:
https://gerflint.fr/Base/Bresil9/estrela.pdf. Acesso em: 20 dez. 2019.
Ginzburg, Jaime. Literatura e direitos humanos: notas sobre um campo de debates. In:
Bittar, Eduardo (org.). Educação e metodologia para os direitos humanos. São Paulo:
Quartier Landin, 2008. p. 339-360.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro, 2008.
SLAM – Voz de Levante. Direção: Tatiana Lohmann e Roberta Estrela D’Alva. Globo
Filmes. Documentário. 81 min.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010.

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