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João Ferrari
Universidade Federal do Rio de Janeiro
joaogabriel3006@terra.com.br
Introdução
O estudo da performance musical é vasto e variado, porém o estudo específico do corporal
gestual dos intérpretes representa uma lacuna na área, especialmente se considerarmos a
pluralidade de metodologias e fundamentações teóricas que dificultam a intertextualidade das
pesquisas acerca do corpo expressivo.
Dialogando com esta diversidade de pesquisa, Ferrari (2019a, 2019b) utilizou-se do
conceito de “gesto” de Madeira e Scarduelli (2015) e realizou uma revisão tipológica a cerca
dos “gestos” envolvidos na performance musical. A partir desta revisão definiu-se um gesto
específico da performance musical, responsável por conduzir o conteúdo expressivo do
intérprete na construção de sua performance musical.
O estudo deste gestual representa uma valorização do papel do corpo na performance
musical, fruto das teorias de cognição incorporada (Lakoff & Johnson, 1980; Johnson, 1987;
Lakoff, 1993; Grady, 2007) que fundamentam o entendimento de experiências – incluindo a
experiência musical – no corpo como formador de sentido destas.
O repertório gestual performático, entretanto, não deve ser compreendido apenas como
uma “consequência” destes processos. De fato, o presente artigo afirma que certos gestos
expressivos fazem parte do processo de entendimento do músico. Para isto, o artigo recorre
a um dos desenvolvimentos recentes da cognição incorporada: a hipótese mimética de Cox
(2011 2016).
Assim como a cognição incorporada, o autor busca explicar “como fazemos sentido da
experiência musical” (Cox, 2016, p. 2). Segundo o autor, um dos principais meios de
entendimento seria a imitação, entendida não apenas como uma ação realizada
conscientemente e às claras, mas também envolvendo todos os processos imitativos,
incluindo imaginação ou ação, consciente ou inconsciente, e voluntário ou involuntário.
Desta forma, a imitação seria realizada no sentido de “fazer para entender”, como um aluno
imitando seu professor de violão.
Entretanto, o presente artigo estende esta função imitativa ao gestual expressivo dos
intérpretes. Este gesto específico foi conceituado como “gesto mímico” por Ferrari e
Nogueira (2020), entendido como um sintoma deste processo de incorporação do sentido
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através da imitação. Este gestual já foi observado em pianistas (Zbikowski, 2011; Davidson,
2012), flautistas (Santos & Loureiro, 2017) e harpistas (Ferigato & Loureiro, 2018); e são
sintomas do processo de entendimento do intérprete, que se move com o tronco ou respira
de uma forma para “imitar” a música, tentando entendê-la.
Finalmente, temos que diferenciar este tipo de movimento expressivo acerca de sua
função. Embora estes gestuais sejam facilmente observáveis, considera-se que não são
realizados pelo músico para “impactar” sua plateia, de caráter cênico, e sim são gestos
realizados como parte do entendimento musical do músico para/com ele mesmo.
Resultados
O autor organizou, a partir dos dados coletados, os gestos observados em categorias
delimitadas, buscando padrões de repetição entre os tipos de gesto e o conteúdo musical,
extraindo categorias de gestuais mímicos de maior reincidência nas performances. A
performance de Fechner rendeu três categorias de gestual mímico, e a de Siqueira rendeu
cinco categorias, que podem ser consideradas sintomas da incorporação individual do sentido
musical por cada intérprete.
Ambos os intérpretes apresentaram as seguintes categorias de gestual mímico: (i)
movimentos de cabeça pendendo para baixo, realizados em caráter de antecipação a começos
de frase; (ii) olhares para longe do instrumento, realizados com o sentido em Fechner de
suspensão e em Siqueira de tensão corporal; (iii) marcações rítmicas com a cabeça, realizados
em Fechner para significar repetições de frase e em Siqueira para pontuar o tempo musical.
Além destas, a intérprete Siqueira também realizou outras duas novas categorias de
gestual: (iv) expressões faciais relacionadas à tensão e resolução narrativa; e (v) balanços de
tronco laterais e para frente e para trás, ocorrentes em momentos de transição da peça.
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Conclusão
A partir dos dados, discute-se três questões a partir da relação dos gestos com a construção
da performance. Primeiro, acerca da expressividade dos intérpretes: a quantidade de gestos
expressivos garantiria a expressividade percebida do intérprete? Segundo, a revisão do
conceito de affordance musical (Gimenes & Manzolli, 2001; Windsor & de Bezenac, 2012;
Madeira & Scarduelli, 2014): a expressão facial poderia ser considerada uma possibilidade
universal da expressividade em performance musical? Terceiro, a influência da materialidade
do instrumento na atuação técnica e expressiva do intérprete, que discutiremos a seguir.
A configuração física do instrumento privilegia e dificulta certas interações do intérprete
que influenciam e pautam a tradição da prática instrumental – certos gestos seriam mais fáceis
de serem realizados em um instrumento que em outro. Da mesma forma, o instrumento
poderia influenciar nas possibilidades expressivas do corpo do intérprete, moldando sua
expressividade de modo intimamente físico e incorporado.
Assim, o artigo expande o entendimento acerca da expressividade em performance ao
considerar a amplitude e dimensão do processo de entendimento musical a partir de um
gestual expressivo, incluindo as capacidades físicas do intérprete e seu instrumento, assim
como o contexto cultural nos quais estes estão inseridos. Considera-se que o estudo deste
gestual expressivo pode contribuir para o estudo e ensino em pedagogia da Música ao
esclarecer as diferentes interações presentes no fazer musical.
Referências
Cox, A. (2011). Embodying Music: Principles of the Mimetic Hypothesis. Music Theory Online,
17 (2), 1-24.
___________. (2016). Music and Embodied Cognition: Listening, Moving, Feeling, and Thinking.
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Davidson, J. (2007). Qualitative insights into the use of expressive body movements in solo
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__________ (2012). Bodily movement and facial actions in expressive musical performance.
Psychology of Music, 35(5), 595-633.
Ferigato, A. & Loureiro, M. A. (2018). Gesto corporal e conteúdo expressivo na construção
da performance musical de alunos de harpa. Anais do XXVIII Congresso da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, Brasil, 28.
Ferrari, J. (2019a). Performance musical e o corpo: entendendo o repertório gestual que
suporta a prática instrumental. Anais do XIV Simpósio Internacional de Cognição e Artes Musicais,
Brasil, 14, 174-184.
Ferrari, J. (2019b). Performance musical: os gestos expressivos como affordances musicais.
Anais do XXIX Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, Brasil, 29.
Ferrari, J. & Nogueira, M. (2021). Gestos mímicos: um sintoma de incorporação na
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