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FACULDADE DE LETRAS
LITERATURA BRASILEIRA 2
Goiânia
2016
Poucos autores conseguem sintetizar assuntos densos em um livro pequeno e de forma
clara. Graciliano Ramos exemplifica com maestria esse hall de escritores felizardos.
Admirado por seu estilo meticuloso, Graciliano dá cabo a tudo que não é essencial em sua
escrita, evita detalhamentos exacerbados, o senso comum e a oratória tendenciosa. O mundo
de Graciliano Ramos em suas narrativas é um mundo em si só, fechado em si mesmo,
apresentando a sua própria realidade, árida e pessoal. (CARPEAUX, 1978, p. 30)
Os romances de Graciliano Ramos se passam no tortuoso e enevoado mundo do
sonho, segundo Otto Maria Carpeaux, no lugar em que tudo se é permitido, a realidade é
distorcida para melhor ambientar o enredo, Carpeaux (1978, p. 31) afirma que “explica-se
assim o extremo egoísmo dos heróis de Graciliano Ramos: é o egoísmo daquele que sonha e
para o qual, prisioneiro dum mundo irreal, só ele mesmo existe realmente.”
O autor busca empreender o caminho da rijeza em seus romances, demonstrando a
vida dura de seus personagens e a sua ligação com a sociedade que os cercam. Seus
personagens são frutos da sociedade, influenciados pelo meio em que habitam, são moldados
pelo enredo pouco dinâmico e, por vezes, inflexível. Seu herói não vê saída de sua condição,
como se estivesse preso em um deserto de angústia e sofrimento em que não houvesse saída
para seu destino algoz. As narrativas pessimistas e irritadiças serão presentes em toda a sua
coletânea. Ora, talvez por passar esta ideia de deserto e vastidão seus romances são
ambientados no Nordeste brasileiro, cabendo-lhe críticas sociais pungentes correlacionadas ao
tempo do escritor, embora seus romances não apresentem um tempo definido como o nosso,
não há um época exata em que é narrado o romance, são, assim como sonhos, atemporais, se
passam nem tão perto e nem tão longe, parece aquele passado distante, mas palpável. O
sentimento de proximidade com o leitor é imediato.
A narrativa concisa, os diálogos sem floreios retratam a aspereza das personagens e
dão uma nova dinâmica para os seus romances. Em São Bernardo, a figura de seu personagem
principal Paulo Honório é a de um homem do campo, maltratado pela vida, mas que
conseguiu se sobressair por seus próprios meios. Enrijecido pelo tempo e por sua história não
consegue enxergar além dos seus próprios ganhos, vendo no acúmulo e na prosperidade
econômica o seu objetivo último.
Narrado em primeira pessoa, em tom confessional de quem se dirige ao padre para
extrema unção, São Bernardo se inicia com a dificuldade de um homem velho e caduco em
escrever suas memórias, muitas vezes faltosas pelo avanço da idade e os truques que a própria
mente prega. Com o seguimento da narrativa outros personagens vão surgindo como o matuto
Casimiro Lopes, o fanfarrão Padilha, velho e infeliz Seu Ribeiro, o letrado Azevedo Gondim e
Padre Silvestre. Estes se apresentam como uma face do próprio Paulo Honório em meios
diversos e complementa o enredo para a chegada da personagem que dará o clímax da
história, Madalena.
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos
e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. (2007, p.
221)
Madalena era, e foi até o seu final, o extremo oposto de Paulo Honório ou para aquilo
que o personagem havia imaginado do que seria sua esposa. Voluntariosa e inteligente parecia
a Paulo Honório uma excelente aquisição para compor o seu cenário ideal, sua fazenda
prosperava como jamais visto, tinha lá seus amigos, seus empregados, o que lhe faltava era
uma mulher e descendentes. Após ser apresentado a Madalena, o amor romântico não surge
com uma paixão avassaladora, se é que o surge na narrativa, o que é retratado é um contrato,
firmado entre dois adultos, ambos concordando com suas vantagens em união.
Assim Paulo Honório possuiu Madalena, e como coisa adquirida despertava interesse
e complacência nos primeiros anos, todavia, como coisa adquirida Madalena deveria se
comportar como tal, seguir os desejos de seu marido, o que não pode fazê-lo. O conflito entre
os personagens é inevitável, o ciúme fantasioso e doentio de posse de Paulo Honório para
com Madalena, faz com que ela sucumba em sofrimento. A coruja, animal noturno sempre
presente na narrativa como alegoria a transformação do personagem em animal, à
zoomorfização dos sentimentos do próprio Paulo Honório.
Fui indo sempre de mal a pior. Tive a impressão de que me achava doente, muito
doente. Fastio, inquietação constante e raiva. Madalena, Padilha, dona Glória, que
trempe! O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca.
Pancada em d. Glória também, que tinha gasto anos trabalhando como cavalo de
matuto para criar aquela cobrinha. Os fatos mais insignificantes avultaram em
demasia. Um gesto, uma palavra à toa logo me despertavam suspeitas. (2007, p.
163)
Só então a partir da morte de Madalena e de sua derrocada que Paulo Honório passa a
conhecer ele mesmo, se volta para si e não mais paras as coisas, começa a problematizar sua
vida, suas escolhas, por isso o livro se passa com o errante personagem narrado suas
memórias, ele as fuça como quem empreende uma cruzada em seu interior, se desbravando e
se conhecendo.
A verdadeira busca começa onde termina a vida de Paulo Honório. A busca
verdadeira, entende-se, a procura dos verdadeiros e autênticos valores que deveriam
reger as relações entre os homens. A vida terminou, o romance começa. O romance,
segundo Lukács, é a história da busca de valores autênticos por um personagem
problemático, dentro de um universo vazio e degradado, o sentido da vida
desaparece. Antes, Paulo Honório fora um personagem coeso e forte, movendo-se
em um mundo de objetivos claros e (ainda que ilusório) repleto de significado: a
propriedade. O suicídio de Madalena desmascara a falsidade do sentido e
problematiza tudo. Agir para quê? – pergunta-se ele. ‘Nesse movimento e nesse
rumor haveria muito choro e muita praga.’ (LAFETÁ, p. 210)
Talvez Graciliano não tenha jamais especificado formalmente o que entendesse por
verossimilhança. Para Cristóvão (1998, p. 34), no juízo do escritor, o significado de
verossímil associa-se à correspondência do discurso do relato ao discurso da opinião
pública: “Aquilo que a maioria crê como real, possível e coerente — tal é o padrão
comparativo para o discurso narrativo do escritor, que não hesita em submeter-lhe a
ficção e as memórias [...]”. A opinião pública deverá significar, pois, os leitores de
Graciliano, cujo comportamento poderá então mostrar uma compatibilidade aos
valores ostensivos da narrativa, como a omissão de acontecimentos talvez
fundamentais e a projeção de insignificâncias, através do ato da recriação.
(CRISTOVÃO apud AMORIM, p. 7)
Graciliano Ramos popular por seus romances, engajado politicamente, fora exilado
por sua ideologia, e por ser ideológico, não isolou esta parte sua na confecção de seus
romances, aparecendo em suas obras, tanto características pessoais como o pessimismo, a
angústia, a tristeza e incerteza da vida, como características sociais, sobre luta de classes, o
dominador e o dominado. Personalíssimo como só ele o poderia ser, trazia a tona críticas
sociais de forma sutil, seu personagem Paulo Honório para ascender economicamente abre
mão de sua humanidade. É crítica à sociedade de consumo mascarado em um personagem
tenro que não faz alusão a isto abertamente.
Narrado em primeira pessoa, a voz do narrador-personagem e do autor se entrelaçam,
O estudioso Bahktin desenvolve um pensamento em relação a voz do autor em romances
monológicos e o monopólio avaliativo na escolha da memória como ponto de partida para o
desenrolar da história; ora, uma vez que eleito o passado para a construção da narrativa os
fatos não poderão ser alterados, cabendo ao narrador a avaliação da melhor memória a ser
contada, para ele:
De que modo e em que momento da totalidade da fala a última instância semântica
do autor se realiza? Para o romance monológico a resposta a essa pergunta é muito
fácil. Sejam quais forem os tipos de discurso introduzidos pelo autor do romance
monológico e seja qual for a distribuição composicional desses tipos, as elucidações
e avaliações do autor devem dominar todas as demais e constituir-se num todo
compacto e preciso. Qualquer intensificação das entonações do outro num ou noutro
discurso, numa ou noutra parte da obra é apenas um jogo que o autor se permite para
em seguida dar uma ressonância mais energética ao seu próprio discurso direto ou
refratado. Qualquer discussão entre duas vozes num discurso com o intuito de
assenhorear-se dele, de dominá-lo, é resolvida antecipadamente, sendo apenas uma
discussão aparente. Cedo ou tarde, todas as elucidações pleni-significativas do autor
se incorporarão a um centro do discurso e a uma consciência, todos os acentos, a
uma voz (BAKHTIN, 1997, p.204-205 apud CASTRO).
Graciliano, escritor nordestino, empresta aos seus personagens aquilo que sente e que
vê, por isso a correspondência entre o autor e seu personagem Paulo Honório, a vida social
que o autor vive é pano de fundo da história de São Bernardo, pode não ser do interesse de
Graciliano que este fosse o principal, mas não está lá por acaso, fora escolhida
minuciosamente por um escritor detalhista.