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S.

BERNARDO
RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. 88° ed. Rio de Janeiro: Record, 2009

Graciliano Ramos é um dos maiores escritores, se não o maior, da Geração


de 30. Nascido em Quebrangulo, Alagoas, no ano de 1892,o autor publicou seu
primeiro romance, Caetés, em 1933. Após ter morado algum tempo no Rio de Janeiro,
onde trabalhou como jornalista, Graciliano regressou ao seu estado natal em 1915,
devido a morte de três de seus irmãos. Se instalando na cidade de Palmeira dos
Índios, Ramos não se absteve da vida política: em 1927 foi eleito prefeito da cidade
e em 1936, durante a ditadura Vargas, foi preso por atividades consideradas
subversivas, mesmo não tendo sido acusado formalmente. Depois de ser solto, o
alagoano, anos mais tarde, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro e viajou pelos
países socialistas do Leste Europeu, o que acabou lhe rendendo memórias e
experiências descritas em seu livro “Viagem”. O romancista morreu no Rio em 1953,
aos 60 anos de idade.
Lançado em 1934, S. Bernardo é narrado em primeira pessoa pelo narrador-
personagem Paulo Honório, um sertanejo órfão que principia a vida como guia de
cego e vendedor de doces, mas, em virtude de sua ambição, se torna um grande
latifundiário. A história passa-se, em grande parte, na zona rural da cidade de Viçosa,
Alagoas, e aborda os caminhos andados por Honório na busca do prestígio financeiro
e, paralelamente, a transformação e a corrupção do seu ser. Pela narrativa ser feita
através das memórias de Paulo, a obra é escrita a partir de um tempo psicológico,
permitindo que o personagem possa apresentar os devaneios que lhe ocorrem no
presente, em meio a transcrição dos eventos que lhe aconteceram no passado.
A obra inicia-se através do forte uso da metalinguagem, onde o “pseudoautor”,
Paulo Honório, deixa claro ao leitor que não é um homem dotado de grande
conhecimento literário. Ele não entende o porquê de tanto rebuscamento e
“enrolação” nos romances e isso quase o faz desistir de compor. Mas a culpa e a
inquietação do seu eu-interior o forçam a despejar nas folhas de papel suas
lembranças e pensamentos. Honório, no entanto, utiliza-se da sua própria linguagem,
sucinta e repleta de expressões regionais, para produzir sua narrativa.
Com tudo isso esclarecido, o narrador começa então a contar a história da sua
vida. Paulo Honório nunca conheceu sua família, nem mesmo sua certidão de batismo
continha o nome dos seus progenitores. Assim, ele cresceu a esmo, sem uma figura
moralizante que lhe guiasse através da sua juventude. Trabalhou até os 18 anos na
lavoura das terras de São Bernardo, e foi exatamente durante esse período que
cometeu seu primeiro ato de brutalidade: Paulo esfaqueou um homem por ter dormido
com Germana, uma mulher com quem ele também havia mantido relações sexuais.
Em consequência de tal atrocidade, Honório acabou sendo preso. Durante os
3 anos que passou trancafiado, sua mente encheu-se de pensamentos ávidos e
gananciosos. Assim, ao sair da cadeia, a única coisa em que conseguia pensar era
em como ganhar dinheiro.
Por não possuir capital para dar início ao seus planos, Paulo viu como única
saída pegar dinheiro emprestado com o agiota Pereira. Com a quantia que havia
conseguido, Honório começou a negociar vários objetos e gado pelo sertão, onde
precisou lutar contra a seca e a violência dos poderosos fazendeiros. Durante uma
empreitada que armara contra um comprador de gado que não queria lhe pagar o que
devia, Paulo Honório conheceu Casimiro Lopes, homem que acabou se tornando seu
capanga e amigo de maior confiança.
Cansado daquela vida sofrida, o comerciante, já com a intenção de se apossar
das terras de São Bernardo, retornou a cidade de Viçosa. Porém, o sertanejo acabou
encontrando duas dificuldades em seu caminho: a fazenda não estava a venda e,
mesmo que estivesse, não possuía dinheiro o suficiente para comprá-la. Então, Paulo
Honório faz amizade com o filho do seu antigo patrão, Luís Padilha, a quem vive a
emprestar dinheiro a juros, visando deixar o jovem moço no vermelho. Padilha,
devendo até os ossos a Honório, não vê saída se não vender a ele, a um baixo preço,
as terras que herdara.
Tendo finalmente o que tanto desejava em suas mãos, Honório viu a
necessidade de restabelecer os limites de São Bernardo, limites que foram violados
pelas cercas do Mendonça, o dono do terreno vizinho. Como nenhum dos dois
conseguiu resolver o problema na conversa, Paulo Honório encomenda a morte de
Mendonça a Casimiro Lopes.
Com o tempo e o pesado investimento, S. Bernardo cresce. Máquinas,
plantações e trabalhadores são vistos por todos os lados, e, visando agradar os
políticos, uma capela e uma escola também são construídas nas terras. Honório leva
seu Ribeiro, um senhor que conheceu na capital, para servir de contador, coloca
Padilha para dar aulas, entrega a capela ao padre Silvestre e alia-se a João Nogueira,
advogado sagaz que lhe ajudou em diversos esquemas, e ao redator do jornal local,
Azevedo Gondim.
Paulo Honório agora necessita de um herdeiro para tudo aquilo e é assim que
começa sua busca por uma esposa, não vendo o casamento como uma situação
amorosa, e sim reprodutiva. Por acaso do destino, acaba conhecendo Madalena, uma
jovem professora bastante inteligente, e a convence a se casar com ele. Após o
casamento, a moça e sua tia Glória se mudam para a casa de Paulo Honório.
Madalena possui uma grande moral, não aceitando, assim, as violências
cometidas por seu marido contra os trabalhadores de S. Bernardo. Por sempre estar
ao lado desses e nunca baixar a cabeça diante de seu esposo, o casal começa a
discutir. Tudo piora quando uma carga de ciúmes desemboca no meio da história,
levando Paulo Honório a um estado de obsessão e quase loucura. Madalena, grande
alma livre e intelectual, vê-se presa naquela situação opressora, passando viver em
grande desgosto, onde nem mesmo o nascimento do seu filho conseguiu lhe trazer
ânimo. Exausta daquele desespero, Madalena se mata.
Com a morte de Madalena, Dona Glória deixa a casa, sendo acompanhada
por seu Ribeiro. Padre Silvestre e Padilha, que sempre foram contra o sistema, vão
embora da fazenda para fazer parte da Revolução de 30. Até mesmo João Nogueira
e o Azevedo Gondim deixam de o visitar com o tempo. A crise de 1929 afeta seus
empréstimo bancários e as empresas que lhe compravam algodão, de forma
simbólica até o dinheiro começa a lhe abandonar. Assim, Paulo Honório se encontra
sozinho, tendo como única companhia Casimiro Lopes e seus pensamentos.
Percebendo que não poderia escapar da brutalidade que o formou, Honório
resolve escrever esse livro sobre sua vida, como uma forma de entender a si mesmo
e se redimir, de alguma forma.
S. Bernardo é uma das grandes obras-primas que retratam a vida no nordeste
brasileiro. O romance, por se constar das memórias de Honório, sendo escritas por
ele mesmo, possui características peculiares. O tempo psicológico e a metalinguagem
marcam definitivamente o texto, assim a interrupção do fluxo de eventos pelo
“pseudoautor” é algo constante, que serve para que ele explicite as dificuldades que
lhe acometem durante a elaboração do livro, explique o contexto das memórias que
narra, justifique a omissão de certos detalhes e possa sair de suas recordações para
transcrever as aflições que permeiam sua mente enquanto revive todos aqueles
acontecimentos.
O livro, escrito durante a segunda fase do modernismo brasileiro, apresenta
alguns atributos clássicos desse movimento literário, aqui destacando-se
principalmente: o regionalismo (todo o enredo se passa no nordeste, e, mesmo que o
ambiente urbano chegue a aparecer, o sertão e a vida agreste é o grande foco do
autor. Altas descrições e expressões idiomáticas são usadas para lapidar e dar forma
ao meio rural e aos personagens que ali habitam), a análise e a denúncia social
(demonstrada principalmente na submissão dos trabalhadores rurais e as esposas
aos poderosos fazendeiros) e o questionamento de si mesmo e seu fim no mundo.
Graciliano Ramos escreve com maestria, sua linguagem sucinta e simples dá
um tom mais real ao livro, e, embora conte uma história em particular, consegue
alcançar algo universal. A obra contém um fundo político discreto, chegando a
explicar as consequências da revolução e crise de 30, do poder dos fazendeiros sobre
os eleitores e da ineficácia da lei no sertão, tudo isso sem recorrer a termos muito
técnicos, que acabariam por afastar um leitor que não gostasse desses assuntos.
A formação do personagem principal, Paulo Honório, tem um grande
embasamento psicológico e até mesmo filosófico. Suas ações são movidas e
justificadas pelo seus fins, não importando o que ele precise fazer no meio do caminho
para alcançar seus objetivos. Paulo passou a sua vida inteira em busca do ápice
financeiro, só para então perceber que jogou seus 50 anos no lixo, não tendo
produzido nada de verdadeiro valor na vida, como afirmado por ele mesmo ao final
da narrativa.
Outro grande elemento da história é o ciúme e a submissão da mulher em
relação ao esposo. Madalena era uma mulher muito inteligente, politizada e astuta, o
que depreciava Paulo Honório e o fazia se auto-questionar sobre sua forma física e
mental. Afinal, o que uma mulher tão excelente iria querer com uma pessoa como
ele? É justamente assim que sua obsessão por manchar sua esposa com uma traição
se inicia: a partir da sua autoconsciência e do sentimento que Madalena, assim como
seus outros trabalhadores, era uma coisa que lhe pertencia, era sua propriedade. Mas
como não consegue submeter a mulher a suas rédeas, diferentemente do que fez
com sua própria vida, o personagem quase enlouquece, reduzindo a mãe do seu filho
a um estado de desespero absoluto onde a única saída que lhe resta é a morte
Por fim, Paulo Honório chega a conclusão que tudo aquilo que conquistara não
serviu para lhe trazer satisfação emocional. Ele sabe que se tivesse vivido de outra
forma, sem a ambição e a brutalidade como sua motriz, poderia ter sido bem mais
feliz. Mas, acima de tudo, sabe que nunca poderia ter mudado seu eu.

Mirelle Ramalho
Colégio Cenecista Santana, 3° ano “U’
21/04/2018

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