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Amizade

As HISTORIAS BOAS NOS CONVIDAM a entrar no papel de outras pessoas, passo cru­
cial na aquisição da perspectiva moral. Histórias sobre a amizade exigem que se
adote a perspectiva de amigo, da solidariedade com o outro.
Amizade é mais que afinidade e envolve mais que afeição. As exigências da
amizade - franqueza, sinceridade, aceitar com a mesma seriedade as críticas e os
elogios do amigo, lealdade incondicional e auxílio a ponto do sacrifício - são
estímulos poderosos para o amadurecimento moral e o enobrecimento.
A amizade genuína requer tempo, esforço e trabalho para ser mantida.
A amizade é algo profundo. De fato, é uma forma de amor.
A M I ZA D E

CANTAR DE VERO AMoR


(Cecília Meireles, 1901-1964)
A Heitor Grillo

Assim aos poucos vai sendo levada


a tua Amiga, a tua Amada!

E assim de longe ouvirás a cantiga


da tua Amada, da tua Amiga.

Abrem-se os olhos - e é de sombra a estrada


para chegar-se à Amiga, à Amada!

Fecham-se os olhos - e eis a estrada antiga,


a que levaria à Amada, à Amiga.

(Se me encontrares novamente, nada


te faça esquecer a Amiga, a Amada!

Se te encontrar, pode ser que eu consiga


ser para sempre a Amada Amiga!)

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E assim aos poucos vai sendo levada


a tua Amiga, a tua Amada!

E talvez apenas uma estrelinha siga


a tua Amada, a tua Amiga.

Para muito longe vai sendo levada,


desfigurada e transfigurada,

sem que ela mesma já não consiga


dizer que era a tua profunda Amiga,
Compaixão

AssiM COMO A C ORAGEM toma posição pelo outro em situações de perigo, a com­
paixão toma posição com o outro em horas de infortúnio. É uma disposição ativa
para a amizade e a participação, é a vontade de estar ao lado do outro, trazendo
consolo e apoio na tristeza e na aflição.
As sementes da compaixão estão plantadas na própria natureza dos seres
humanos. "Existe alguma benevolência, ainda que pequena, incutida em nosso
peito, uma centelha de amizade pela espécie humana, uma partícula da pomba
branca convivendo em nossa estrutura com os elementos do lobo e da serpente",
disse David Hume. Seu contemporâneo Jean-Jacques Rousseau concorda: "com­
paixão é um sentimento natural que, por moderar a violência do amor a si mesmo
no indivíduo, contribui para a preservação de toda a espécie. É a compaixão que
nos impele, sem refletir, a levar alívio aos que sofrem".
Como se pode cultivar a compaixão natural da criança? H istórias e provér­
bios úteis são inúmeros. O passo principal é impedir que a animosidade e o pre­
conceito prej udiquem o crescimento natural da virtude. Os "ismos" sectários são
os maiores obstáculos: racismo, sexismo e outros.
C O M P A I XÃ O 77

VELHAS ÁRVORES
Olavo Bilac (1865-1918)

Olha estas velhas árvores, mais belas


Do que as árvores mais novas, mais amigas:
Tanto mais belas quanto m ais antigas,
Vencedoras da idade e das procelas . . .

O homem, a fera, e o inseto, à sombra delas


Vivem, livres de fomes e fadigas;
E em seus galhos abrigam-se as cantigas
E os amores das aves tagarelas.

Não choremos, amigo, a mocidade!


Envelheçamos rindo! envelheçamos
Como as árvores fortes envelhecem:

Na glória da alegria e da bondade,


Agasalhando os pássaros nos ramos,
Dando sombra e consolo aos que padecem!
Coragem

A PESSOA CORAJOSA NÃO É a que jamais tem medo. O grande romancista america­
no Herman Melville ilustra isso com perfeição na passagem de Moby Dick em que
Starbuck, capitão do Pequod, se dirige à tripulação: "Não quero no meu barco
nenhum homem que não tenha medo de baleia. "
A natureza contagiante de uma atitude corajosa por parte de alguém pode
inspirar um grupo inteiro. É a chave da coragem inspirada por Horácio na ponte
e por Henrique V em Agincourt. Foi a chave para a coragem demonstrada por
aqueles que, em silêncio, suportaram insultos ao se unir a Gandhi e a Martin
Luther King Jr. , em atos de protesto pacífico, para despertar a consciência pública
contra a inj ustiça.
C O RA G E M 333

PROCURA-SE
Ernest Shackleton

Sir Emest Shackleton (1 874-1922}, explorador inglês da Antdrtica, colocou este anún­
cio nos jornais de Londres em 1900, quando preparava a Expedição Antdrtica Na­
cional (que não chegou a alcançar o Pólo Sul}. A propósito da procura de voluntdrios,
Shackleton disse mais tarde que "a julgar pelo volume de respostas, parecia que todos
os homens da Inglaterra estavam decididos a me acompanhar':

PROCURO HOMENS PARA VIAGEM ARRISCADA. Salário baixo, frio


enregelante, longos meses de completa escuridão, perigo constante, retorno duvi­
doso. Honra e reconhecimento em caso de sucesso. - Ernest Shackleton.
Disciplina

NA DISCIPLINA, o indivíduo se torna "discípulo" de si mesmo. É seu próprio pro­


fessor, treinador, técnico e orientador.
Platão dividiu a alma em três partes, ou funções - razão, paixão e desejo ­
e disse que o comportamento correto resulta da harmonia entre esses elementos.
Santo Agostinho procurou entender a alma hierarquizando as diversas formas de
amor, em seu famoso ordo amoris: amor a Deus, ao próximo, a si mesmo e aos
bens materiais. Sigmund Freud dividiu a psique em id, ego e superego. E vemos
William Shakespeare observando os conflitos da alma, a luta entre o bem e o mal ,
e m obras imortais como Rei Lear, Macbeth, Otelo e Hamlet. O problema volta
sempre ao equilíbrio da alma.
Mas a questão da ordem correta da alma não se atém ao domínio sublime da
filosofia e do drama. Ela está no cerne da perfeita conduta no cotidiano. Apren­
demos a organizar a alma da mesma maneira que aprendemos a resolver proble-.
mas de matemática e a jogar futebol - com a prática.
O caso de Demóstenes, contemporâneo de Aristóteles, ilustra o tema. De­
móstenes tinha grande ambição de se tornar orador, mas tinha limitações naturais
da fala. A vontade firme é essencial , mas insuficiente. Segundo Plutarco, "sua
pronúncia inarticulada e gaguejante foi superada e tornou-se mais distinta porque
ele treinou falar com pedras na boca" . Aumentando o problema que desejamos
superar desenvolvemos o poder necessário para vencer a dificuldade inicial. De­
móstenes usou estratégia semelhante no treinamento da voz, que "ele disciplinou
declamando versos e fazendo discursos quando estava quase sem fôlego, correndo
ou subindo montanhas".
DISCIPLINA

SoNETO INGLÊS N° 2
Manuel Bandeira (1886- 1968)

Aceitar o castigo imerecido,


Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE são chamadas de "virtudes teologais" na doutrina cristã.


Assinalam disposições de pessoas que se desenvolvem na vida a partir dessa pers­
pectiva religiosa. Entretanto, nada há de especificamente cristão em reconhecer
que a fé acrescenta uma dimensão significativa à vida moral da humanidade. A fé
é uma fonte de disciplina, força e poder na vida dos fiéis de qualquer credo reli­
gioso. É uma força poderosa na experiência humana. A fé compartilhada une as
pessoas de uma maneira que não pode ser alcançada por outros meios.
A diferença de fé, por outro lado, cria divisões violentas entre as pessoas.
A história mundial das religiões infelizmente confirma a análise de James Madi­
son: "Tão forte é essa propensão da humanidade para cair em animosidades
recíprocas que, quando não se apresenta uma ocasião substancial , as mais frívo­
las e fantasiosas diferenças são suficientes para acirrar suas paixões de inimizade
e alimentar os mais violentos conflitos. "
A fé contribui para a forma e o conteúdo dos ideais que guiam as aspirações
que adotamos para nossa própria vida e afeta a maneira de ver e se conduzir em
relação aos outros. Quando Paulo cita como "frutos do espírito" - o amor, a
alegria, a paz, a paciência, a bondade, a generosidade, a confiança, a gentileza e o
auto-controle (Gálatas, 5 : 22-23) , está de acordo com todas as religiões. Um ser
humano sem fé, sem reverência por qualquer coisa, está moralmente à deriva.
Num mundo tão fragmentado e cheio de tristezas, a fé, em sua unidade e bonda­
de subjacentes, é um apoio e um estímulo àqueles que trabalham na "superfície"
da realidade - seja qual for a tradição religiosa - em busca de amor, alegria, paz,
paciência, bondade, generosidade, confiança, gentileza e auto-controle.
FÉ 499

O DrscíPULO HoNESTo
Lenda judaica

Uma vez, um rabino resolveu testar a honestidade de seus discípulos e convocou­


os para uma reunião em que lhes foi feita uma pergunta:
- O que fariam se encontrassem pelo caminho uma carteira cheia de di-
nheiro?
Um dos discípulos respondeu:
- Devolveria para o dono.
O rabino pensou: "A resposta veio tão rapidamente que devo considerar se
foi realmente sincera. "
Um outro falou:
- Ficaria com o dinheiro se ninguém tivesse me visto.
O rabino disse consigo mesmo: "A língua é sincera, mas o coração é per-
verso. "
E um terceiro foi dizendo:
- Bem, rabino, para ser honesto, ficaria tentado a guardar o dinheiro para
mim. Portanto, pediria a Deus que me desse forças para resistir à tentação e agir
corretamente.
E o rabino concluiu: "Aí está. Eis o homem em quem eu confiaria. "

(RS)
Honestidade

POR QUE ALGUÉM QUERERIA SER DESONESTO? É uma questão provocativa com que o
satírico irlandês Jonathan Swift confronta o leitor em "A viagem a Houyhnhnms",
nas Viagem de Gulliver. Os houyhnhnms são criaturas tão racionais que acham a
desonestidade incompreensível. Como um deles explica a Gulliver, "o uso da fala
é para as pessoas se entenderem e para receber informação sobre os fatos; se alguém
dissesse a coisa que não é (a esquisita locução dos houyhnhnms para se referir à
curiosa prática de dizer mentiras) , essas finalidades não são cumpridas".
A desonestidade não teria papel nenhum a desempenhar num mundo que
reverencia a realidade e é habitado por criaturas totalmente racionais. Os seres
humanos, porém, não são totalmente racionais, como Swift adorava apontar.
Os humanos, ao contrário dos houyhnhnms, abrigam um conj unto disparatado
de tendências e impulsos que não se harmonizam espontaneamente com a razão.
Os seres humanos precisam de anos, tanto de prática como de estudos, para se
tornarem pessoas íntegras e de boa vontade.
"Odeio o homem que, como o Portal da Morte, diz uma coisa mas esconde
outra em seu coração" , grita o angustiado Aquiles na Ilíada de Homero. Disse
profeta Jeremias: "Percorram as ruas de Jerusalém, procurem e observem! Procu­
rem nas praças, vejam se encontram um homem justo e que busque a verdade. "
É a honestidade que o filósofo Diógenes procurou e m Atenas e Corinto, numa
imagem perene: "Com lampião e lanterna, à luz do sol, procurei um homem
honesto, mas nenhum pude encontrar", conforme uma narrativa do século XVII .
O LIVRO DAS VIRT U D ES

Ü MENINO QUE MENTIA


Esopo

Um pastor levava o rebanho para fora da aldeia. Um dia quis pregar uma peça nos
vizinhos.
- Um lobo! Um lobo! Socorro! Ele vai comer minhas ovelhas!
Os vizinhos largaram o trabalho e saíram correndo para o campo para socor­
rer o menino. Mas ele estava às gargalhadas. Não havia lobo nenhum.
Outra vez ele fez a mesma brincadeira e todo mundo veio aj udar. E ele
caçoou de todos.
Mas um dia o lobo apareceu mesmo e começou a atacar as ovelhas. Morren­
do de medo, o menino saiu correndo.
- Um lobo! Um lobo! Socorro!
Os vizinhos ouviram mas acharam que era caçoada. Ninguém socorreu e o
pastor perdeu todo o rebanho.

Ninguém acredita quando o mentiroso fala a verdade.

(LRM)
Lealdade

A LEALDADE É A MARCA DA CONSTÂNCIA, da solidez dos elos com as pessoas, grupos,


instituições e ideais a que deliberadamente nos associamos. Ser um cidadão e um
amigo leal significa agir com atenção e seriedade para com o país e os amigos. É
muito diferente de estar sempre de acordo com as instituições. A lealdade opera
num nível bem mais elevado.
A Bíblia fornece vários exemplos ilustrativos. Putifar encarregou José de cui­
dar de sua casa. - "O meu senhor, tendo entregue tudo em minhas mãos, não
pede contas do que tem em sua casa . . . " (Gênesis, 3 9 : 8 ) , diz José à mulher de
Putifar ao recusar suas propostas. Ele é um servo leal e não trairia a confiança de
Putifar. Mas Putifar também é um marido leal. Acreditando na calúnia da mu­
lher, manda prender José (Gênesis, 39 :19-20) . A virtude por si só não é garantia
da ação correta, que exige mais do que boas intenções. É preciso ter também a
sabedoria para distinguir o que é correto e ter vontade de fazê-lo.
Em outra passagem exemplar, Davi permanece leal a seu rei - Saul, ungido
pelo Senhor e pai de seu melhor amigo, Jônatas - mesmo quando Saul tenta
matá-lo. Em duas ocasiões Davi tem oportunidade de destruir Saul , mas a lealda­
de o contém (I Samuel, 24 e 26) . Depois que Saul e Jônatas morrem na batalha,
o famoso lamento de Davi - "Como caíram os poderosos"- é por ambos (2
Samuel, 1 :17 -27) . Não precisamos gostar daqueles a quem somos leais e eles não
precisam gostar de nós. A lealdade é muito diferente da amizade, embora fre­
qüentemente andem j untas.
O LIVRO DAS VIRTUDES

S ONETO DE FIDELIDADE
Vinicius de Moraes (1913-1980)

De tudo, ao meu amor serei atento


Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Que vivê-lo em cada vão momento


E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure


Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Perseverança

A PERSEVERANÇA É ESSENCIAL A TODOS . Sócrates, que se comparava a uma mosca


para os atenienses, declarou com absoluta seriedade em seu julgamento (segundo
a Apologia de Platão) : "Enquanto eu respirar não pararei de praticar a filosofia, de
exortá-los a meu modo e de apontar a qualquer um que eu encontre: és um
ateniense, um cidadão da maior cidade, com a melhor reputação de sabedoria e
de poder; não te envergonhas do teu interesse em possuir tanta reputação, tantas
riquezas e honras e não cuidar da sabedoria e da verdade, do melhor estado pos­
sível do teu espírito?" A persistência das exortações de Sócrates, entretanto, foi
demais para os atenienses e ele foi condenado. Mas existem fatos piores, como o
próprio Sócrates mostrou: enquanto ele foi meramente condenado à morte, seus
acusadores, pelo mesmo ato, foram condenados ao mal!
"Devagar se vai ao longe", diz a moral da conhecida fábula de Esopo, da
tartaruga e a lebre. Na Vida de Sertório, Plutarco narra como esse grande soldado
romano, enquanto pretor na Espanha no século I a. C., deu uma demonstração
semelhante às tropas, terminando com o seguinte discurso: "Vejam, soldados,
que a perseverança é superior à violência e muitas coisas que não podem ser
superadas de imediato cedem quando enfrentadas pouco a pouco. A assiduidade
e a persistência são irresistíveis e, com o tempo, superam e destroem as mais
poderosas forças, pois o tempo é amigo e protetor daqueles que usam o juízo para
aguardar a melhor ocasião e é inimigo destruidor daqueles que se adiantam sem
pensar".
O LIVRO DAS VIRTUDES

A TARTARUGA E A LEBRE
Esopo

A lebre estava caçoando da lerdeza da tartaruga. A tartaruga se abespinhou e


desafiou a lebre para uma corrida. A lebre, cheia de si, aceitou a aposta. A raposa
foi escolhida como j uiz por ser muito sabida e correta. A tartaruga não perdeu
tempo e começou a se arrastar. A lebre logo ultrapassou a adversária e, vendo que
ia ganhar fácil, resolveu dar um cochilo. Acordou assustada e correu como louca.
Na linha de chegada, a tartaruga esperava a lebre toda contente.

Devagar se vai ao longe.

(LRM)

Ü CORVO E O VASO
Esopo

O corvo estava morrendo de sede. Viu um vaso que tinha tão pouca água que o
bico não alcançava. Tentou derrubar o vaso com as asas mas era muito pesado.
Tentou quebrar com o bico e as garras mas era muito duro.
O corvo, com medo de morrer de sede tão perto da água, teve uma idéia
brilhante. Pegou umas pedrinhas e foi jogando dentro do vaso. A água subiu e ele
pôde beber.

Não hd beco sem saída pra quem se esforça na lida.

(LRM)
Resp onsabilidade

SER "RESPONSÁVEL " é "responder pelos próprios atos" , é corresponder. No Jardim


do Éden, foi um Adão imaturo que, ao descobrir que comera o fruto proibido,
colocou a responsabilidade em Eva. E foi uma Eva imatura que, por sua vez, co­
locou-a na tentação da serpente. Aristóteles foi um dos primeiros a observar que
nos tornamos as pessoas que somos devido às nossas próprias decisões. A filósofa
inglesa Mary Midgley diz que "o ponto central, de verdadeira excelência do Exis­
tencialismo [é] a aceitação da responsabilidade de ser como nos fizemos, a recusa
a dar falsas desculpas".
Soren Kierkegaard, um dos pioneiros do Existencialismo do século XIX, de­
plorava os efeitos nocivos dos grupos e das multidões em nosso senso de respon­
sabilidade. Ele diz: "Uma multidão em seu próprio conceito é o falso, pelo fato
de deixar o indivíduo completamente impune e irresponsável ou, no mínimo,
enfraquecer seu senso de responsabilidade, reduzindo-o a uma fração". Nas Con­
fissões, Santo Agostinho usou esse senso de responsabilidade enfraquecido pela
pressão dos pares como traço central da meditação sobre o vandalismo de sua
juventude "porque temos vergonha de recuar quando os outros dizem 'Vamos! ' . "
E insistiu tanto quanto Aristóteles e o s existencialistas n o reconhecimento da
responsabilidade pessoal pelo que fazemos. Um senso de responsabilidade enfra­
quecido não enfraquece o foto da responsabilidade.
RES P ONSAB I L I DADE 1 41

Os OMBRos SuPoRTAM o MuNDO


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

CHEGA um tempo em que não se diz mais: meu Deus.


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho .
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.


Ficaste sozinho, a luz apagou-se
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?


Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Trabalho

O TRABALHO É o ESI'OR<,:O APLICADO;é qualquer coisa a que nos dedicamos, qual­


quer coisa em que gastamos energia para conquistar ou adquirir algo. O sentido
fundamental do trabalho não é aquilo por que lutamos para viver, mas o que
fazemos com nossa vida.
A felicidade, como Aristóteles disse há muito tempo, reside na atividade,
tanto física como mental. Reside em fazer coisas de que se possa orgulhar por
fazer bem e, portanto, que se tenha prazer em fazer.
TRABALHO 239

A CIGARRA E A FORMIGA

La Fontaine (1621-1695)
Tradução de Bocage (I 765-1805)

Tendo a cigarra, em cantigas,


Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema,
Na tormentosa estação.

Não lhe restando migalha


Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.

- Amiga - diz a cigarra -


Prometo, à fé de animal,
Pagar-vos, antes de agosto,
Os juros e o principal.

A formiga nunca empresta,


Nunca dá; por isso, j unta.
- No verão, em que lidavas? ­
À pedinte, ela pergunta.

Responde a outra: - Eu cantava


Noite e dia, a toda hora.
- Oh! Bravo! - torna a formiga -
Cantavas? Pois então dança agora!

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