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ESCOLA DE MÚSICA E BELAS ARTES DO PARANÁ – EMBAP

DIEGO ERNESTO BASTOS ZORRILLA

A OBRA PIANÍSTICA DE HENRIQUE DE CURITIBA:

UM ESTUDO ANALÍTICO SOBRE “PRIMEIRO CADERNO DA KARINA – 12


CANÇÕES FOLCLÓRICAS EM ARRANJOS SIMPLES”

CURITIBA

2010
2

DIEGO ERNESTO BASTOS ZORRILLA

A OBRA PIANÍSTICA DE HENRIQUE DE CURITIBA:

UM ESTUDO ANALÍTICO SOBRE “PRIMEIRO CADERNO DA KARINA – 12


CANÇÕES FOLCLÓRICAS EM ARRANJOS SIMPLES”

Trabalho de pesquisa pertencente ao Programa de


Iniciação Científica – PIC – da Escola de Música e
Belas Artes do Paraná – EMBAP, na área de
análise musical.

Orientadora: Profª. Salete Chiamulera

Co-orientador: Prof. Carlos Alberto Assis

CURITIBA

2010
3

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, pelo apoio incondicional desde sempre.

À professora Salete Chiamulera, pela confiança em mim depositada, incentivo e


precioso direcionamento nos momentos de necessidade e dúvida.

Ao professor Carlos Assis, pelos preciosos auxílios bibliográficos, incentivo e sempre


disposição quando precisei.

À Caroline Caregnato, pelas leituras cuidadosas, apoio nos momentos difíceis e


comentários preciosos.

Aos demais professores, amigos e colegas que, de alguma forma, contribuíram no


desenvolvimento do trabalho.

À Escola de Música e Belas Artes do Paraná – EMPAP, pela oportunidade de


realização deste trabalho.

À Fundação Araucária, pelo auxílio financeiro.


4

RESUMO

Henrique Morozowicz (1934 – 2008), também conhecido como Henrique de Curitiba,


foi um dos principais compositores paranaenses do século XX, tendo um significativo
número de obras destinadas ao piano. O objetivo do presente trabalho foi identificar
determinados elementos característicos de seu estilo de composição em uma de
suas obras para piano, que possam servir de subsídio para a interpretação da
mesma. A identificação desses elementos foi realizada na obra “Primeiro Caderno
da Karina – 12 canções folclóricas em arranjos simples” (1973) a partir da análise
musical focada em cinco aspectos musicais: harmonia, forma, estrutura, fraseologia
e rítmica, análises essas que constituem outro objetivo deste trabalho.
Primeiramente foi feito um levantamento bibliográfico do compositor, seguido da
elaboração das análises supracitadas. Obteve-se resultado positivo sobre a
existência de determinados elementos característicos na obra em questão a partir da
comparação entre as análises de cada uma das doze pequenas peças, que permitiu
a identificação de elementos em comum nas pequenas peças, que as tornam uma
unidade musical.

Palavras-chave: Henrique de Curitiba. Obra para piano. Análise musical.


5

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...............................................................................................07

1.1 OBJETIVOS.................................................................................................08
1.1.1 Objetivos gerais......................................................................................08
1.1.2 Objetivos específicos..............................................................................08
1.2 REVISÃO LITERÁRIA.................................................................................09
1.2.1 Sobre performance musical....................................................................09
1.2.2 Análise e interpretação de uma obra musical.........................................11
1.2.3 Análises musicais...................................................................................12
1.2.3.1 Harmonia...........................................................................................12
1.2.3.2 Forma e estrutura..............................................................................14
1.2.3.3 Fraseologia e rítmica.........................................................................15
2 ANÁLISE MUSICAL DA OBRA “PRIMEIRO CADERNO DA KARINA”...18
2.1 ATIREI UM PAU NO GATO.........................................................................18
2.1.1 Harmonia.................................................................................................18
2.1.2 Forma e estrutura....................................................................................23
2.1.3 Fraseologia e rítmica...............................................................................24
2.2 CAI, CAI, BALÃO.........................................................................................27
2.2.1 Harmonia................................................................................................27
2.2.2 Forma e estrutura...................................................................................31
2.2.3 Fraseologia e rítmica..............................................................................32
2.3 RODA COTIA..............................................................................................38
2.3.1 Harmonia................................................................................................38
2.3.2 Forma e estrutura...................................................................................47
2.3.3 Fraseologia e rítmica..............................................................................48
2.4 TIRI LA-LA-LA.............................................................................................54
2.4.1 Harmonia................................................................................................54
2.4.2 Forma e estrutura...................................................................................60
2.4.3 Fraseologia e rítmica..............................................................................62
2.5 – CIRANDA, CIRANDINHA.........................................................................67
2.5.1 Harmonia................................................................................................67
2.5.2 Forma e estrutura...................................................................................75
2.5.3 Fraseologia e rítmica..............................................................................77
2.6 TERESINHA DE JESUS.............................................................................81
2.6.1 Harmonia................................................................................................81
2.6.2 Forma e estrutura...................................................................................91
2.6.3 Fraseologia e rítmica..............................................................................93
2.7 FRÈRE JACQUES.....................................................................................100
2.7.1 Harmonia...............................................................................................100
2.7.2 Forma e estrutura..................................................................................110
2.7.3 Fraseologia e rítmica.............................................................................112
2.8 FUKS DU HAST.........................................................................................120
2.8.1 Harmonia...............................................................................................120
2.8.2 Forma e estrutura..................................................................................124
2.8.3 Fraseologia e rítmica.............................................................................126
2.9 A. A. KOTKI DWA......................................................................................129
2.9.1 Harmonia...............................................................................................129
6

2.9.2 Forma e estrutura.............................................................................135


2.9.3 Fraseologia e rítmica........................................................................137
2.10 MIETZE, MIETZE, KATZE................................................................140
2.10.1 Harmonia..........................................................................................140
2.10.2 Forma e estrutura.............................................................................145
2.10.3 Fraseologia e rítmica........................................................................146
2.11 WLAS KOTEK NA PLOTEK.............................................................154
2.11.1 Harmonia..........................................................................................154
2.11.2 Forma e estrutura.............................................................................159
2.11.3 Fraseologia e rítmica........................................................................159
2.12 HOP, HOP, HOP GALOP.................................................................164
2.12.1 Harmonia..........................................................................................164
2.12.2 Forma e estrutura.............................................................................168
2.12.3 Fraseologia e rítmica........................................................................170
3 CONCLUSÕES......................................................................................177
REFERÊNCIAS...........................................................................................184

ANEXOS......................................................................................................186
7

1 - INTRODUÇÃO

Como já foi mencionado em um trabalho de pós-graduação pela Escola de


Música e Belas Artes do Paraná, realizado por Szewczak e Rocha (1993, p. 1),
“Henrique de Curitiba é figura por demais importante no meio musical curitibano,
como pianista e compositor”. O reconhecimento do compositor foi adquirido não só
na cidade de Curitiba, mas também no Brasil e no exterior, como comprova a
gravação das Variações Frère Jaques para piano, realizada pela pianista belga
Miereille Gleizes, no cd Le Nouvelle Musique Consonante (edição Allan van
Kerckhoven, AVK001, 1993). Apesar de Henrique de Curitiba ter importância
reconhecida no cenário da música, ainda na atualidade (onde os meios de
comunicação se tornam cada vez mais eficientes) é possível verificar a carência de
dados bibliográficos sobre a vida e a obra deste compositor.

O objetivo do trabalho de pesquisa baseou-se no estudo analítico-musical da


obra 1º Caderno da Karina, buscando a identificação de elementos característicos
da escrita pianística de Henrique Morozowicz na referida obra. Pretendeu-se
também uma pequena ampliação do referencial bibliográfico sobre o compositor.

A primeira parte da metodologia consistiu no levantamento bibliográfico do


compositor, em busca de um alicerce para o estudo da obra proposta. Esse estudo,
segunda parte da metodologia, consistiu em um grupo de análises musicais sob
diferentes ângulos (harmônico, formal, estrutural, fraseológico e rítmico), com o
intuito de obter conhecimento acerca de cada uma das composições.

O corpo da pesquisa consiste de três capítulos. O primeiro consta uma


revisão literária, fazendo menção aos principais elementos utilizados no trabalho de
análise da obra proposta. O segundo capítulo consta das análises formal, estrutural,
harmônica, rítmica e fraseológica, da obra supracitada, a serem realizadas,
identificando elementos característicos da produção pianística do compositor. O
terceiro refere-se à parte conclusiva da pesquisa, apresentando os resultados
obtidos nas referidas análises.

Em suma, este trabalho de pesquisa vem propor um trabalho de análise


musical das obras 1º Caderno da Karina, para a contribuição na ampliação dos
8

referenciais de consulta e pesquisa acerca do compositor Henrique de Curitiba, bem


como divulgação de sua obra pianística, além de fornecer subsídios para a
interpretação musical das mesmas.

1.1 - OBJETIVOS

1.1.1 - Objetivo Geral

 Aprofundamento do conhecimento da literatura para piano de Henrique


Morozowicz (conhecido como Henrique de Curitiba), realizado através da análise
musical de uma obra da literatura pianística do compositor, pertencente à década
de 70;

1.1.2 - Objetivos Específicos

 Realizar a análise musical da obra “Primeiro Caderno da Karina” sob cinco focos:
harmonia, forma, estrutura, fraseologia e rítmica.
 Identificar os elementos característicos da escrita musical do compositor através
das análises supracitadas.
9

1.2 - REVISÃO LITERÁRIA

1.2.1 – Sobre performance musical.

Dentre as várias artes que fazem parte do universo do ser humano, a música
é uma das únicas em que a obra não se completa apenas com o trabalho do seu
autor. Uma partitura musical contém apenas a representação simbólica daquilo que
o compositor espera ser o resultado artístico, sendo necessária a presença de um
segundo elemento, o intérprete1, para que a obra de arte realmente aconteça.
Portanto, a música difere um pouco das outras artes, em principal das artes visuais,
onde o trabalho realizado pelo autor (um pintor ou um escultor, por exemplo)
representa o resultado final da obra, sem a necessidade de um elemento
intermediário. A necessidade do intérprete na realização de uma obra musical é
responsável por uma série de diferenças entre a composição da mesma e sua
execução. Historicamente, o violoncelista e regente Nikolaus Harnoncourt (1998)
divide em dois períodos a notação musical:

1. É a obra, a composição em si, que é notada, não sendo sua execução


indicada por esta notação; 2. É a execução que é notada, sendo, ao mesmo
tempo, uma indicação da maneira de tocar; (...) Em geral, a música
composta até cerca de 1800 é notada seguindo o primeiro princípio, o da
obra e, em seguida, como uma indicação de execução. (HARNONCOURT,
1998, Pg. 35).

Esses dois princípios de notação podem ser diferenciados ao se comparar,


por exemplo, uma partitura de Johann Sebastian Bach (1685 – 1750) e uma partitura
de Claude Debussy (1872 – 1918). Na primeira, observam-se pouquíssimas
informações a respeito de dinâmica, de fraseado ou de articulação, o que deixa a
forma de execução desses elementos a critério do intérprete. Já na segunda, pode-
se observar uma riqueza muito maior de detalhes gráficos para a execução,
deixando ao intérprete uma liberdade menor na escolha dos critérios para a
execução da notação musical. Essa comparação permite observar que os

1
Dentre as diversas possibilidades de definição para a palavra “intérprete” na música, neste caso,
refere-se à figura do instrumentista ou cantor (intérprete de um texto musical).
10

compositores tenderam, com o passar do tempo, a diminuir cada vez mais essa
série de diferenças entre a composição e sua execução, tentando o máximo possível
a chegar ao resultado artístico das outras artes como pintura e escultura, por
exemplo, onde o produto final pensado pelo autor é o resultado mais próximo do
definitivo da obra de arte. Um exemplo disso pode ser observado na peça nº147 do
Mikrokosmos vol. VI2, para piano, de Béla Bartok, onde a duração total da obra é
indicada pelo compositor na partitura, restringindo as liberdades do intérprete
relacionadas ao andamento. O compositor foco deste trabalho, Henrique de Curitiba,
assim descreve sua visão a respeito da relação entre compositor e intérprete e sobre
a tendência de aproximação entre composição e execução de uma obra musical:

Eu sempre achei que o intérprete é uma peça fundamental para a música.


(...) Agora, tem o compositor que quer se livrar do intérprete: „Vou escrever
uma música com aparelho eletrônico e aí eu não preciso de intérprete, e ai
eu faço a minha própria música‟. (MOROZOWICZ, apud GONZAGA, 2002).

Embora compositores tenham tentado cada vez mais essa aproximação entre
obra e execução, na prática é impossível eliminar todas as diferenças entre esses
termos, ou seja, a obra tocada uma segunda vez se diferenciará, de alguma forma,
da tocada pela primeira vez3. Assim sendo, a interpretação é parte necessária da
obra musical, cabendo ao intérprete a responsabilidade de transformar a notação
musical em música propriamente dita. O finado pianista Luis Thomaszeck (1950 –
1978) referiu-se da seguinte forma:

No entanto, a partitura ai está, resguardando e revelando ao mesmo tempo


regiões profundas e misteriosas. É nela, ou melhor, através dela que
deveremos encontrar, apesar de tudo o pensamento vivo dos compositores.
(THOMASZECK, Luis. Aspectos da Fenomenologia Musical4.).

A partitura (notação musical), dessa forma, é a principal fonte de informação


para o intérprete a respeito das intenções artísticas contidas na obra musical do

2
BARTOK, Bèla. Mikrokosmos Vol. VI. Boosey y Hawkes. 1987. Pg.2.
3
Não se leva em consideração, nesse caso, a música feita para aparelhos eletrônicos.
4
Cópia de texto original datilografado. Sem data de edição.
11

compositor, o que significa dizer que quanto mais profundo for o entendimento da
notação musical da obra, maior é a possibilidade de o intérprete realizar uma
execução “adequada” dessa obra.

1.2.2 – Análise e interpretação de uma obra musical.

Ian Bent (1987) define análise musical como sendo a resolução de uma
estrutura musical em elementos constituintes relativamente mais simples, e a
investigação da função desses elementos dentro dessa estrutura 5. Alguns dos
principais elementos em questão são: harmonia, melodia, ritmo, forma, estrutura e
timbre6. Assim como a transformação da notação musical em música, a análise
musical é passível de várias interpretações possíveis para a mesma notação
musical, o que permite dizer que o analista musical interfere tanto quanto o
intérprete na obra musical, porém, as interferências são de diferentes naturezas
(teoria e prática). Nicholas Cook (1994. Pg. 1) expressa essa idéia da seguinte
forma: “...when you analyze a piece of music you are in effect recreating it for
yourself; you end up with the same sense of possession that a composer feels for a
piece he has written”. Isso significa dizer que a análise de uma obra musical é, de
fato, uma atividade musical que acaba tendo uma influência pessoal no resultado, se
aproximando, em essência, da interpretação musical e fornecendo subsídios para
essa última.

Para Ian Bent (1987), a frase “análise musical”, em um sentido geral, abrange
um número grande de atividades, sendo que algumas dessas atividades
fundamentalmente representam diferentes visões sobre a natureza da música, o
papel da música na vida humana e o papel do intelecto humano que diz respeito à
música7. Alguns desses aspectos da natureza da música dizem respeito à sua
construção e são abordados no presente trabalho, entre eles harmonia, forma,
estrutura, fraseologia e rítmica.

5
Texto original: “Musical analysis is the resolution of a musical structure into relatively simpler
constituent elements, and the investigation of the functions of those elements within that structure.”
(BENT, 1987, Pg 1).
6
Além da análise musical da obra (partitura), existem outros tipos de análise, que são aquelas que
dizem respeito ao estilo de época, relação com as outras artes, entre outros.
7
Texto original: “The phrase „musical analysis‟, taken in a general sense, embraces a large number of
diverse activities. Some of these are mutually exclusive: they represent fundamentally different views
of the nature of music, music´s role in human life, and the role f the human intellect with regard to
music.” (BENT, 1987, Pg 1).
12

De acordo com Salete Chiamulera (2009), na análise musical, ouvir a música,


(des) construindo as estruturas que são apresentadas é um procedimento
importante para assimilar conceitos novos e inusitadas possibilidades de
interpretação – isto é, trabalhar e desenvolver a perspicácia da investigação do
fenômeno musical8. Nesse caso, o “ouvir a música” representa uma das possíveis
atividades que constituem a análise musical (de acordo com Ian Bent) cujo
procedimento gera uma influência no campo da interpretação musical. Jonathan
Dunsby (1995) cita um exemplo de como uma análise da estrutura de uma obra
musical influi no resultado da interpretação: “Formal „repeat marks‟ offer many cases
where performers think they have the option to ignore the composer´s instructions
and in doing so damage the composer´s design and thus the listener enjoyment.”9
Bohumil Med (1996) complementa a importância da análise para a interpretação:

Alguns instrumentistas limitam-se apenas a dominar a técnica de seu


instrumento. Estes nunca irão atingir a perfeição, pois, além da habilidade
mecânica, o músico precisa ter o domínio de toda a ciência musical, que se
estrutura em diversas disciplinas: teoria (básica) da música, solfejo, ritmo,
percepção melódica, rítmica, tímbrica e dinâmica, harmonia, contraponto,
formas musicais... (...). Essas disciplinas são um meio e não um fim. No
entanto, são um meio indispensável. (MED, 1996. Pg. 9 – 10).

1.2.3 – Análises musicais.

Dentre as várias ramificações pertencentes à atividade da análise musical, o


presente trabalho se concentra em cinco tópicos: harmonia, forma, estrutura,
fraseologia e rítmica.

1.2.3.1 – Harmonia.

Sobre harmonia, o compositor Henrique Morozowicz (1934 – 2008) –


compositor da obra “Primeiro Caderno da Karina” (1979) cujas peças serão neste
trabalho analisadas – se expressa da seguinte forma: “Penso que a música como tal
foi construída ao longo de séculos através das culturas e que fazemos música

8
CHIAMULERA, 2009, pg. 11.
9
DUNSBY, 1995, pg. 83.
13

porque o animal humano tem uma certa genética, uma certa conformação psíquica e
precisa da frase, da tonalidade (em uma nova concepção), auditivamente cheia de
novidades agradáveis ao ouvido”10. A análise harmônica de “Primeiro Caderno da
Karina” tem como uma das finalidades a procura de caminhos para o entendimento
da nova concepção de tonalidade à qual o compositor se refere, utilizando para isso
a relação entre sua escrita harmônica e os conceitos da harmonia tonal, bem como
da harmonia utilizada por compositores do século XX.

A harmonia representa um papel fundamental na construção de uma obra


musical como as que serão neste trabalho analisadas (obras não monofônicas
baseadas em uma melodia folclórica), uma vez que ela se apresenta em todo o
complemento musical dessa melodia, escrito pelo compositor. É exatamente esse
complemento que torna a melodia de uma canção folclórica em uma obra musical
completa e diferenciada. Bohumil Med (1996) divide a música em quatro elementos
formadores principais: melodia (concepção horizontal da música), harmonia
(concepção vertical da música), contraponto (concepção ao mesmo tempo horizontal
e vertical da música) e ritmo (ordem e proporção em que estão dispostos os sons
que constituem a melodia e a harmonia11). Portanto, para que exista de fato a
concepção vertical da música, (conjunto de sons dispostos em ordem simultânea 12)
– a harmonia – é imprescindível a presença de mais de um som acontecendo ao
mesmo tempo, sendo que esse som, ou conjunto de sons, não fazem parte da
melodia folclórica original. Isso significa dizer que uma melodia folclórica original
apresenta, no máximo, dois dos elementos formadores da música citados por
Bohumil Med: melodia e o ritmo, não sendo, portanto, uma obra musical mais
completa por não conter uma harmonia. É nesse ponto onde entra a contribuição do
compositor, cujo acompanhamento melódico por ele escrito introduz os elementos
harmonia e/ou contraponto, que torna uma simples melodia folclórica em uma obra
musical mais completa. Sendo a harmonia uma parte integrante das peças do ciclo
“Primeiro Caderno da Karina”, seu estudo fornecerá subsídios para a melhor
compreensão da obra, o que, inevitavelmente, complementa a performance musical
da mesma. Vincent Persichetti (1985) relata a dimensão da harmonia na música do
século XX:

10
(Henrique Morozowicz apud PROSSER in NETO, 2004, pg. 185).
11
MED, 1996, pg 11.
12
Ibid, pg 11.
14

La música de la primera mitad del siglo veinte ha producido una práctica


armónica que puede ser definida. Durante estos sesenta años, las ideas
armónicas han estado en constante fusión; los compositores han creado
nuevos mecanismos y técnicas. (...) La rica mezcla de materiales y estilos
está compuesta por muchos ingredientes: energía rítmica, tejido armónico
vívido, colorido melódico, y fresca escritura lineal. Hay exposiciones
audaces y ornamentos delicados, momentos de fantasía y fuerzas
evolutivas que se oponen a ser atadas por um severo plan formal. Hay
fuerzas atrevidamente experimentales y fuertemente tradicionales que
reúnem materiales divergentes. (PERSICHETTI, 1985, pg. 5).

1.2.3.2 – Forma e estrutura.

A forma e a estrutura são outros dois aspectos de grande importância na


construção de uma obra musical. Nicholas Cook define análise formal da seguinte
maneira: “As its simplest „formal analysis‟ means any kind of analysis that involves
coding music into symbols and deducting the musical structure from the pattern
these symbols make” (COOK, 1994, Pg. 116). Partindo desse ponto, pode-se afirmar
que a estrutura musical é deduzida através dos padrões que os símbolos contidos
na música apresentam. Ian Bent propõe três processos básicos de construção da
forma – recorrência, contraste e variação, expressos, respectivamente, como AA, AB
e AA‟ – e afirma que a análise formal está interessada no reconhecimento desses
três processos e a descrição de obras nos termos desses processos. 13 Bent ainda
afirma que nos séculos XVIII e XIX teóricos musicais definiram certos padrões
estruturais que são chamados freqüentemente de modelos formais, sendo AB e ABA
os dois padrões fundamentais.14 Dai surge a seguinte questão: qual a diferença
entre forma e estrutura? Se Bent define AB e ABA como padrões estruturais, não é
incorreto dizer que esses padrões representam a estrutura da obra. Porém, ao
mesmo tempo, Bent propõe AA, AB e AA‟ como processos de construção da forma,
o que acaba causando ambigüidade no termo (representação por letras). Ao se
observar as colocações de Bent e Cook, chega-se a uma possível diferenciação:

13
Texto original: “... the three basic form-building processes were proposed as „recurrence‟, „contrast‟
and „variation‟, expressible as AA, AB and AA‟. Formal analysis is concerned with the recognition of
these three processes and the description of works in terms of them.” (BENT, 1987, Pg. 88).
14 th
Texto original: “During the late 18th century and the 19 , music theorists defined certain structural
patterns – not genres or species such as concerto or minuet, but more widely applicable processes of
formal construction common to many genres and species, and now often called formal models. These
are in turn reducible to two fundamental patterns: AB and ABA” (BENT, 1987, Pg . 88).
15

estrutura musical diz respeito aos processos de construção propostos por Bent,
enquanto que a forma vem a ser o resultado da combinação desses processos de
construção. Resumidamente, estrutura é a construção interna da obra, enquanto que
a forma é a organização da estrutura a nível externo. Uma forma rondó, por
exemplo, é denominada pela estrutura ABACADA, enquanto que um rondó-sonata é
denominado pela estrutura ABACAB‟A.15

A análise formal/estrutural de “Primeiro Caderno da Karina”, proposta neste


trabalho, pretende identificar a ocorrência dos processos de construção, propostos
por Ian Bent (1987) (recorrência, repetição e variação), nesse ciclo de 12 pequenas
peças de Henrique de Curitiba, buscando fornecer uma espécie de guia para a
compreensão fraseológica das mesmas, servindo, assim, de subsídio para a
performance musical.

1.2.3.3 – Fraseologia e rítmica.

Segundo o pensar musical de Henrique Morozowicz, o ser humano precisa da


frase musical (e da tonalidade, em uma nova concepção) na composição da música
(MOROZOWICZ apud PROSSER in NETO, 1994, pg. 185). Uma composição
baseada em melodias de canções folclóricas – como é o caso da obra a ser
estudada neste trabalho – é uma forma de o compositor colocar em relevo a frase,
uma vez que canções folclóricas são, de maneira geral, aprendidas pelas pessoas
ainda na idade infantil e acabam se tornando conhecidas dentro do meio (local) onde
essas canções se originaram. Isso faz com que a melodia ganhe certo “destaque
extra” dentro da peça musical, voltando a atenção do ouvinte para ela.

Frase musical, segundo a teoria de Hugo Riemann (apud BENT, 1987), é


baseada no postulado de que o padrão forte-fraco é a base da construção musical,
sendo o motivo a unidade fundamental dessa base. O motivo representa, ainda, uma
única unidade de energia passando de um crescimento para um decaimento por
meio de um ponto de tensão central 16. Em outras palavras, frase musical vem a ser
uma linha melódica cuja energia cresce até um ponto de tensão máximo e decresce

15
BENT, 1987, Pg. 88.
16
Texto original: “Riemann´s theory of phrase structure rests on the postulate that the pattern weak-
strong is the „sole basis for all musical construction‟ (1895 – 1901, i, 1962). This fundamental unit is
termed the Motiv. It is fundamental because it represents a single unit of energy passing from growth
to decay by way of a central stress point”. (BENT, 1987, pg. 90)
16

até um ponto de descanso, valendo complementar que os pontos de tensão e


relaxamento são, geralmente, postulados pela harmonia através das cadências. Há,
ainda, o que Riemann (apud BENT, 1987) chama por níveis de estrutura da frase:
duas pequenas unidades de motivo formam o primeiro nível de estrutura; duas
unidades de motivo maiores formam um motivo em nível estrutural maior e assim
hierarquicamente. Um esquema hierárquico de frase musical proposto por Riemann
(apud BENT, 1987, pg. 91) é o modelo de oito compassos: a estrutura menor é
chamada de zweitaktgruppe e representa um par de motivos expostos em dois
compassos. A segunda estrutura é uma unidade de quatro compassos, chamada de
halbsatz, também chamada de antecedente ou conseqüente. A maior das estruturas
é o modelo de oito compassos, chamado por Riemann de periode (período).
Panoramicamente, o modelo representa uma frase (período) de oito compassos,
contendo duas unidades menores de quatro compassos, também chamadas,
respectivamente, de antecedente e conseqüente (cuja unidade formadora de
antecedente e conseqüente vem a ser o par de unidades de motivo que formam o
primeiro nível de estrutura).

Há também o que BENT (1987) define como “processos de perturbação da


simetria”,17 que são recursos de composição utilizados para alongar ou encurtar o
modelo fraseológico simétrico, sendo alguns desses processos extraídos abaixo:

(a) Elision (Auslassung): the suppression of the growth phase of a unit


(the first element of a Motiv, the first Motiv of a two-bar group, the first two-
bar group of a four-bar half-phrase etc), thus yielding a strong-weak-strong
pattern.
(b) Cadential repetition: restatement of the stress point and decay phase
of a unit at any level of structure.
(c) Dovetailing: a transfer of function whereby a final stressed unit is
converted into an initial unstressed one (i.e. decay is converted into growth
phase), for example when the eighty bar of a period becomes the fist of the
new period.
(d) General upbeat (Generalauftakt): a large-scale upbeat, often
occupying only the space of the upbeat to a Motiv but functioning as the
upbeat to a larger formal unit.
(e) Annexed Motif (Anschlussmotiv): a subsidiary phrase unit placed
immediately after the strong beat of a main phrase unit. It serves to generate
a second strong beat where a weak beat would normally occur. (BENT,
1987, pg. 91 – 92).

A análise fraseológica no presente trabalho visa mostrar a forma como o


compositor Henrique de Curitiba utiliza os conceitos da teoria de simetria

17
Symmetry-disturbing processes (BENT, 1987, pg. 91)
17

fraseológica de Hugo Riemann, bem como a utilização de processos de perturbação


da simetria para a transformação da melodia folclórica em peça musical para piano.

Med (1996) define ritmo como sendo a ordem e proporção em que estão
dispostos os sons que constituem a melodia e a harmonia 18. Em outras palavras,
ritmo está relacionado com a disposição dos sons e pausas em relação a um
conjunto de pulsações de padrão, geralmente, constante19. Assim sendo, a análise
rítmica das peças de “Primeiro Caderno da Karina” visa identificar os padrões
rítmicos que compõem cada uma das 12 melodias folclóricas, bem como a relação
rítmica existente na estrutura harmônica que sustenta cada uma dessas melodias,
ou seja, a análise rítmica engloba as características do ritmo presentes na melodia e
na harmonia, visando entender o panorama rítmico geral de cada uma das peças do
ciclo.

18
MED, Bohumil. Teoria da Música. Ed. Musimed. Brasilia, 1996. Pg. 11.
19
A partir do final do século XIX e inicio do século XX, a padronização do ritmo em uma determinada
obra começou a sofrer modificações. Uma das obras que destacam essa idéia é a Le Sacre du
Printemps (1913), de Igor Stravinsky (1882 - 1971)
18

2 - ANÁLISE MUSICAL DA OBRA “PRIMEIRO CADERNO DA KARINA”

2.1 – ATIREI UM PAU NO GATO

2.1.1 – Harmonia: a melodia da canção encontra-se em sol maior. O


acompanhamento harmônico é baseado em notas duplas (com intervalo de segunda
entre si, aqui denominado de mini cluster20, conforme as figuras 1 e 2) praticamente
no decorrer de toda a obra, havendo dois grupos quando o compasso é binário e
três grupos quando o compasso é ternário. Dentro de cada compasso, a disposição
rítmica dos grupos pode ser tética ou acéfala, como mostram as figuras 1a e 1b:

Figura 1a - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um pau no gato. Clave inferior, compassos 1 a 4.

Figura 1b - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um pau no gato. Clave inferior, compassos 9 a 13.

O acompanhamento em mini clusters resulta em uma harmonia ambígua em


termos de tonalidade, podendo haver mais de uma interpretação harmônica, que
dependerá da maneira como se relacionará os grupos de clusters com a melodia.
Uma das formas de relação possíveis consiste na fragmentação dos grupos para o
fim de valorizar as notas pertencentes aos acordes, ou seja, retira-se (teoricamente),
das notas duplas, aquelas que não pertencem ao acorde, deixando apenas as notas
que, juntamente com as notas da melodia, compõem o acorde cuja função tonal
melhor se enquadra no âmbito de sol maior.

Um dos recursos harmônicos utilizados na harmonia do século XX é o que


Persichetti (1985) chama de acordes com sons adicionados: “Un acorde com sonido
20
Tone cluster: A highly dissonant, closely spaced collection of pitches sounded simultaneously, at
the piano usually by striking a large number of keys with the hand or arm. (Randel, Don Michael. The
new Harvard dictionary of music.1986, pg. 863). Dada essa definição de cluster, utiliza-se, aqui, o
termo mini-cluster para uma formação de intervalo de segunda com característica harmônica
altamente dissonante.
19

añadido es uma formación armónica básica cuya cualidad de textura há sido


modificada por la agregación de sonidos no próprios del acorde original”
(PERSICHETTI, 1985, pg. 111). Esses sons adicionados, segundo ele, formam uma
ou mais segundas maiores ou menores com qualquer membro de um acorde por
terças ou por quartas. Persichetti diz ainda que os sons adicionais são elementos
modificadores do acorde, modificação essa que afeta mais a textura do acorde do
que sua função básica21. A disposição das notas do acompanhamento melódico
sugere a possibilidade de se formar, no contexto geral, acordes com sons adicionais,
mantendo a função semelhante à do acorde comum, ou seja, as notas adicionais
presentes nos mini clusters são modificadores apenas de textura e não de função.
Dessa forma, toma-se como exemplo os quatro primeiros compassos da obra: as
notas duplas do acompanhamento são: sol-lá e dó-ré (primeiro compasso); lá-si e ré-
mi (segundo compasso); sol-lá e dó-ré (terceiro compasso); lá-si e ré-mi (quarto
compasso). Considerando-se que a obra inicia com a tônica (de acordo com a já
citada melodia na tonalidade de sol maior), tomam-se nos dois primeiros compassos
da clave inferior as notas sol, ré, si e ré do primeiro, segundo, terceiro e quarto mini
cluster, respectivamente, como mostra a figura 3. Repara-se que, ao unir, no
primeiro compasso, as notas sol e ré com a nota si da melodia tem-se o acorde da
tônica, seguido no segundo compasso do mesmo acorde em primeira inversão (a
omissão da fundamental no segundo compasso não descaracteriza o acorde devido
ao fato de ser uma continuação do mesmo acorde do compasso anterior, apenas
exaltando a terça do mesmo e, conseqüentemente, sua inversão).

Figura 2 - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um pau no gato. Compassos 1 e 2, notas
selecionadas entre os clusters na clave de fá.

21
Texto original: “El sonido o sonidos añadidos son elementos modificadores pegados al acorde, de
claros poderes direccionales y, como modificaciones de color, varían la textura más que la función de
la estructura básica” (PERSICHETTI, 1985, pg. 111)
20

Tomando-se, a partir dos mini clusters, as combinações que geram acordes


com as relações tonais mais próximas de sol maior, ao selecionar, na primeira
exposição da melodia (oito primeiros compassos), as notas sol e ré (primeiro
compasso); si e ré (segundo compasso); lá e dó (terceiro compasso); si e ré (quarto
compasso); sol e dó (quinto compasso); sol e si (sexto compasso); mi e lá (sétimo
compasso); mi, si e mi (oitavo compasso) e uni-las às notas da melodia si (primeiro
compasso), ré (segundo compasso), ré (terceiro compasso), sol (quarto compasso),
mi (quinto compasso), ré (sexto compasso), dó (sétimo compasso) e sol (oitavo
compasso), obter-se-á, do primeiro ao oitavo compasso, respectivamente a seguinte
seqüência harmônica: I - I6 - V43 - I6 - IV64 - I6 - ii64 - vi (como mostra a figura 3a
abaixo).

Figura 3a - Primeiro Caderno da Karina: Atirei um pau no gato. Compassos 1 – 8,


possibilidade harmônica a partir das notas selecionadas entre os clusters na clave inferior.

Para deixar mais claro a harmonia, a figura 3b mostra, em acordes cheios, as


notas selecionadas dos clusters e da linha melódica:
21

Figura 3b - Primeiro Caderno da Karina nº1 : Atirei um pau no gato. Compassos 1 – 8.


Esquema em acordes da harmonia a partir das notas selecionadas no acompanhamento e na linha
melódica.

Essa é apenas uma das possibilidades harmônicas tonais que se pode obter
através da fragmentação das notas duplas que compõem o acompanhamento dessa
obra, não impedindo a existência de uma margem para outras interpretações
harmônicas igualmente válidas. Um exemplo disso pode ser percebido no compasso
quatro, ao se valorizar a nota mi ao invés de ré no segundo grupo, mudando a
função harmônica do acorde de I6 para vi43 gerando uma cadência suspensiva (V –
vi) no lugar da perfeita (V – I). Isso ocorre devido ao fato de o acorde gerado ser,
nessa ocasião, si – mi – sol ao invés de si – ré – sol. Ainda no primeiro compasso,
podem-se considerar, no acompanhamento, as notas lá e ré, que somadas à nota dó
da linha melódica geram um acorde de sétima da dominante, que também é uma
possibilidade harmônica para o primeiro compasso da obra em questão. Segue
abaixo algumas das possibilidades harmônicas, para os oito primeiros compassos, a
partir do método de fragmentação aqui utilizado:

 I – I6 – V43 – I6 – IV64 – I – ii64 – vi


 I – I6 – V43 – vi43 – IV43 – I – ii64 – vi
 V – I6 – V43 – I6 – IV64 – I – ii64 – vi
 V – I6 – V43 – vi43 – IV64 – I – ii64 – vi
22

Observa-se, então, a relatividade harmônica que dois grupos simples de


notas duplas, em intervalos de segunda, dentro de um compasso são capazes de
gerar. Seguindo o mesmo raciocínio de fragmentação dos mini clusters, nos
compassos de 9 a 18, mostra-se na figura 5 abaixo uma das possibilidades de
interpretação harmônica da seção B (segunda exposição da melodia) possível: I - I -
I6 - V43 – viiº43/IV - vi – I64 – V7 (subentendido na melodia do 16º compasso) - vi –
ii7 e vi7 no último ataque de clusters que encerra obra (ataque esse que acaba por
formar o acorde mi – lá – ré – sol de estrutura quartal, tornando ambígua a sua
interpretação harmônica). A possibilidade harmônica acima é mostrada na figura 4 a
partir da fragmentação das notas duplas como a usada na seção A; algumas outras
possibilidades harmônicas são relacionadas abaixo, havendo muitas outras
combinações possíveis não citadas nessa mesma relação (compassos 9 – 18):

 I – I – I6 – ii64 – I – ii64 – vi7 – V7 – V64/IV – [vi/IV – vi7]


 I – I – I6 – V43 – V2/IV – vi/IV – I64 – V7 – vi – [ii7 – vi7]

Figura 4 - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um pau no gato. Compassos 9 – 18. Possibilidade
harmônica a partir das notas selecionadas do acompanhamento e da linha melódica da seção B.

A multiplicidade de interpretações harmônicas possíveis para esta obra


“corrobora” o que o compositor disse a respeito de sua linguagem musical: “Penso
que a música como tal foi construída ao longo de séculos através das culturas e que
23

fazemos música porque o animal humano tem uma certa genética, uma certa
conformação psíquica e precisa da frase, da tonalidade (em uma nova concepção),
auditivamente cheia de novidades agradáveis ao ouvido” (MOROZOWICZ, apud
PROSSER in NETO, 2004). Certamente o acompanhamento dessa melodia
folclórica, tão singela e conhecida, usado pelo compositor pode produzir as
novidades auditivas na qual o compositor se refere.

2.1.2 – Forma e estrutura: A peça foi composta sob uma forma seccionada
em estrutura binária, com a melodia folclórica sendo acompanhada por uma base
essencialmente harmônico-rítmica, em uma tessitura homofônica. Sua estrutura
consiste em duas seções que constituem a exposição da melodia e sua repetição,
sendo que o elemento característico que diferencia as duas seções é o
deslocamento rítmico, entre melodia e acompanhamento, sendo o acompanhamento
de ritmo tético na primeira seção e acéfalo na segunda. A primeira seção consiste
dos oito primeiros compassos da obra onde a melodia é exposta, finalizando com
um acorde vi através de uma cadência plagal onde vi adquire função temporária de
tônica, nos compassos 7 e 8. A segunda seção consiste dos dez compassos
restantes onde a melodia é re-exposta com uma disposição rítmica diferente da
utilizada na exposição, além de algumas variações nos mini-clusters do
acompanhamento que indicam uma pequena alteração na função harmônica dos
mesmos em determinados compassos, o que significa dizer que a harmonia é outro
elemento de diferenciação entre as seções. No fim da peça (compassos 16 a 18) o
compositor utiliza de uma tessitura relativamente mais polifônica ao fazer um cânone
da melodia correspondente ao último verso da canção (“do berrão que o gato deu”),
finalizando a obra com um ataque de um acorde em quartas sobre a nota mi (como
pode ser observado na figura 4 acima).

Dessas pequenas variações entre as duas seções, subentende-se que a


segunda seção seja basicamente uma repetição da primeira, variando-se apenas
algumas disposições de altura dos mini clusters utilizados para o mesmo trecho
melódico na primeira seção (variações essas que acabam por supor uma função
harmônica diferente), bem como a disposição rítmica tanto do acompanhamento
quanto da melodia (que será analisado a seguir) e a presença de uma pequena
extensão da melodia do último verso nos dois últimos compassos que constitui uma
pequena coda. Assim sendo, a estrutura dessa pequena peça é A A' coda, com duas
24

seções bem definidas pela apresentação do tema (melodia) e as pequenas


variações de acompanhamento entre exposição e re-exposição da mesma.

2.1.3 – Fraseologia e rítmica: Fraseologicamente, a peça está dividida em


dois períodos (grupos fraseológicos que compõem cada seção), que correspondem
à melodia da canção folclórica e sua repetição na segunda seção. O primeiro
período corresponde aos oito primeiros compassos da obra (que constituem a
primeira seção), sendo dividido em duas frases de quatro compassos cada, como
mostra a figura 5 logo abaixo:

Figura 5 - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um Pau no Gato. Primeiro período em duas frases
musicais (compassos 1 – 8).

O segundo período corresponde aos dez compassos seguintes (que


constituem a segunda seção), igualmente divididos em duas frases, sendo que a
primeira frase corresponde dos compassos 9 ao 13 e a segunda frase dos
compassos 14 a 16, havendo uma elisão entre a segunda frase e a coda no
compasso 16, onde se segue com a coda até o compasso 18, como mostra a figura
6:
25

Figura 6 - Primeiro Caderno da Karina nº 1: Atirei um pau no gato. Compassos 9 – 18. Segundo
período.

Em ambos os períodos, o inciso fraseológico 22 pode ser considerado como


sendo os dois intervalos de segunda descentes e consecutivos das três primeiras
notas da melodia, célula essa que aparece insistentemente por todo o período nos
anacruses dos compassos 3, 4 e 6, na segunda metade do compasso 6 e no
compasso 7, podendo-se ainda mencionar sua aparição com os intervalos invertidos
na anacruse do compasso 2 (últimas duas semicolcheias do compasso 1) mais a
primeira colcheia do compasso 2.

O grande fator que contribui para a diferenciação entre os dois períodos da


obra é – como já anteriormente dito – o ritmo, que passa a assumir um caráter de
extrema importância para esta obra. Na primeira seção (primeiro período), o ritmo
sincopado do acompanhamento traz à melodia um movimento balançado devido à
sua disposição nos contratempos do compasso durante todo o primeiro período.

22
Inciso fraseológico vem a ser o menor elemento musical, presente na obra, que serve de base para
a construção da fraseologia musical da mesma. Pode ser um intervalo melódico, uma célula rítmica
ou outro elemento musical que possua essa característica.
26

Figura 7a - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um pau no gato. Compassos 1 a 4.


Deslocamento rítmico do acompanhamento sobre disposição tética da melodia durante a seção A.

Figura 7b - Primeiro Caderno da Karina nº1: Atirei um pau no gato Compassos 9 – 13. Deslocamento
rítmico da melodia sobre a disposição tética do acompanhamento durante a seção B.

Como pode ser observado na figura acima, na segunda frase o elemento que
sofre deslocamento rítmico é a melodia, enquanto que o acompanhamento aparece
agora de forma tética, dando a sensação de que a melodia estaria acontecendo “fora
do ritmo”. O que requer atenção aqui é que, em ambas as seções, a disposição
vertical de melodia e acompanhamento é exatamente a mesma por praticamente
toda a obra (exceção ao primeiro e aos dois últimos compassos da melodia), sendo
que a maneira como ambas estão dispostas dentro do compasso faz com que soem
diferentes entre si. O comum dessa melodia (original folclórico) é que a mesma se
encontre em estado tético, como o que acontece durante o primeiro período,
fazendo com que a síncope do acompanhamento crie um balanço de fácil
entendimento rítmico para o ouvido cerebral devido ao fato de que a melodia se
encontra escrita como usualmente costuma-se cantá-la. Porém, durante o segundo
período ela aparece de forma anacrústica, com uma colcheia de adiantamento, ou
seja, a melodia inicia na última colcheia do compasso anterior ao invés de iniciar na
cabeça do compasso como ocorre na exposição. Isso faz com que o ritmo do
acompanhamento, aparentemente igual, cause um deslocamento no resultado final
do ritmo entre melodia e acompanhamento, como mostraram as figuras 7a e 7b.
27

Como se pode observar, o desequilíbrio é a grande característica dessa


pequena obra, aparecendo na harmonia em forma de mini clusters no
acompanhamento que terminam por dar à mesma um caráter ambíguo, bem como
no ritmo, em forma de deslocamento tético - anacrúsico entre as seções A e B, com
incomum sensação rítmica da canção folclórica.

2.2 – CAI, CAI, BALÃO

2.2.1 – Harmonia: partindo-se do mesmo pressuposto utilizado na obra


anterior, a melodia de “Cai, cai, balão” encontra-se em fá maior durante a primeira
seção (seção A) e em sol maior durante a maior parte da segunda seção (exceção
aos quatro últimos compassos onde o compositor utiliza do contraponto para
retornar à tonalidade de fá maior). Na primeira seção (compassos 1 – 10) o
acompanhamento aparece em forma de ostinato harmônico por basicamente toda a
exposição melódica, mantendo o acorde de primeiro grau com quarta e sem terça (fá
- sib - dó) durante todo o trecho, com exceção ao último tempo do compasso 7 ao
segundo tempo do compasso 9, onde o acorde passa a ser o de primeiro grau com
quarta aumentada (fá - si - dó), como mostra a figura 8:

Figura 8 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 1 – 10. Seção A.
28

O estilo do acompanhamento harmônico indica um caráter de modalismo,


principalmente quando o acompanhamento vai para o primeiro grau com quarta
aumentada, sugerindo uma passagem lídia (compassos 8 a 10). Durante o acorde
de primeiro grau com quarta, o caráter modal acaba por se tornar ambíguo devido
ao fato de haverem dois modos nos quais o pentacorde construído a partir do
primeiro grau é maior (modos jônio e mixolídio). Considerando-se o aspecto tonal do
original folclórico da melodia, há uma probabilidade maior pela intenção jônia (modo
maior) quando o acompanhamento harmônico for de primeiro grau com quarta.

Na segunda seção (compassos 13 – 22) a melodia inicialmente encontra-se


na região do baixo (clave inferior) e na tonalidade de sol maior, que segue do
compasso 13 ao início do compasso 19, onde passa para a região do soprano (clave
superior) e com seqüência intervalar modificada com relação à melodia inicial da
segunda seção. A partir de então (segunda metade do compasso 19), a melodia soa
um tom abaixo da mesma. Nessa mudança de tom, torna-se novamente uma
melodia lídia, que entrará em contraponto, na segunda metade do compasso 21,
com a mesma melodia na região do baixo, porém com uma alteração intervalar (si
bemol) que a caracteriza agora como jônia e retornando ao início da seção A, como
mostra a figura 9:

Figura 9 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 13 – 22. Seção B.

Voltando à parte do acompanhamento harmônico entre os compassos 13 e


19, nota-se que, apesar da melodia se encontrar na tonalidade de sol maior, a
29

harmonia (a partir dos acordes escritos na clave de sol) sugere, em relação com
essa mesma melodia, mi menor como tônica: i (compassos 13 a 16) – iv (compassos
17 a 19, aonde o primeiro grau vem acrescido da sétima menor (ré) e o quarto grau
de nona no compasso 17 e de nona e décima primeira (si e ré) nos compassos 18 e
19), seqüência essa que segue até o momento em que a melodia muda de tom e
passa para o soprano, iniciando a breve passagem contrapontística já mencionada.
Assim sendo, o que ocorre em questões de harmonia é o choque de intenções
modais diferentes entre melodia e acompanhamento. Além disso, há a diferença de
intenções modais e tonais entre as seções A e B, que provoca um contraste de uma
seção para a outra.

Dessa forma, observa-se que em uma obra bastante curta é possível se obter
diversos efeitos apenas com o artifício de sobreposição de modos diferentes, sendo
que o compositor utilizou os dois compassos finais (como mostra a figura 10) para
ratificar ainda mais essa sobreposição modal. Durante quase toda a seção A o
acompanhamento é formado por um acorde de tônica com quarta (fá – sib – dó),
cuja resolução natural da quarta indo para a terça só ocorre nesses dois compassos
finais, justificando, por fim, um caráter de harmonia tonal. Porém, simultaneamente
na clave superior, há um acorde (em segunda inversão) formado sobre o primeiro
grau com a quarta aumentada característico do modo lídio, que faz com que
novamente o caráter de interposição modal fique claro. Ainda, é observável que o
mini cluster – intervalo de segunda dentro do acorde no acompanhamento – é um
elemento causador de tensão harmônica, bem como elemento diferenciador modal
da obra, a partir das notas sib – dó (jônio) e si – dó (lídio).

Figura 10 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 11 e 12, utilizados apenas
para a coda da obra.
30

Finalizando, um detalhe pendente ainda não comentado é que o acorde de


quarta apojatura como o utilizado pelo compositor possui geralmente a função de um
acorde de dominante e não de tônica, como mostra a figura 11a:

Figura 11a - excerto de Chopin: Noturno op.15 nº3 em sol menor. Compassos 150 – 152.

O fato de o acorde de quarta geralmente ter uma função cadencial de


dominante torna vaga a hipótese de a obra de Henrique de Curitiba aqui em questão
ser tonal. A razão para tal é que, considerando-se essa característica tonal do
acorde de quarta, o acorde em questão (fá – sib – dó) deveria possuir um caráter
igualmente de dominante, o que não condiria com a linha melódica da obra e
tornaria o caráter harmônico ainda mais ambíguo. Ainda assim, há alguns casos de
cadência plagal (inferiores em quantidade ao caso recém discutido) em que o acorde
de quarta possui realmente a função de tônica, como mostra a figura 11b, levando a
se reconsiderar a hipótese de a obra aqui analisada realmente possuir um caráter
tonal.

Figura 11b - excerto de Chopin: Noturno op.27 nº1 em dó sustenido menor. Compassos 99 – 101.
31

2.2.2 – Forma e estrutura: “Cai, cai, balão” foi escrita sobre uma forma em
estrutura ternária simples, cujo acompanhamento é caracterizado pelo ritmo acéfalo,
em caráter de contratempo. Sua estrutura é parecida com a aria da capo, com um
artifício diferente: o compositor escreveu separadamente dois compassos para o
final e os colocou logo após a barra de repetição da primeira seção (nos compassos
11 e 12) sob a indicação “só para o fim” (figura 11), onde normalmente haveria a
indicação “D.C. al fine” no final da segunda seção e a palavra “fine” indicada no final
da seção A.

Figura 12 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 6 – 16, com a coda
interposta entre as seções A e B.

Assim sendo, é coerente dizer que essa pequena peça característica, de


apenas 22 compassos, possui uma forma ternária do tipo ABA coda, com uma
escrita um pouco incomum para uma forma aria da capo. De uma maneira mais
específica, a seção A da obra compreende os dez primeiros compassos, com a
melodia folclórica na tonalidade de fá maior (modo jônio), havendo barra de
repetição no compasso 10 para indicar o fim da seção. A seguir, nos compassos 11
e 12, foi escrito o trecho da coda que deve ser executado somente no final da seção
A após a execução da segunda seção. Logo após a coda, compasso 13, inicia no a
seção B, com a melodia inicialmente em mi menor (modo eólio) e modulando para fá
maior através de uma pequena passagem em fá lídio, como visto na figura 9.

Para finalizar, menciona-se que os compassos 11 e 12 (coda) correspondem


ao elemento de variação entre a seção A e a sua repetição posterior, permitindo-se
concluir que “Cai, cai, balão” possui uma estrutura do tipo ABA‟.
32

2.2.3 – Fraseologia e rítmica: Como grande parte das canções folclóricas


brasileiras, a música “Cai, cai, balão” possui uma divisão fraseológica em quatro
versos, cuja melodia costuma ser dividida em um período de duas frases musicais
(que incluem a letra de dois versos cada). Observa-se, nessa obra, a composição da
seção A em duas frases de cinco compassos, ao invés da tradicional métrica de
quatro compassos, ainda mencionando o fato de que o primeiro e o último compasso
(compassos 1 e 10, respectivamente) são compostos, em sua maioria, de silêncio
musical, como mostra a figura 13:

Figura 13 - Primeiro Caderno da Karina nº 2: Cai, cai, balão. Compassos 1 – 10, primeiro período
dividido em duas frases de 5 compassos.

Essa divisão de frases em cinco compassos produz um efeito que só pode ser
percebido no momento em que houver a execução do ritornelo da seção A: a grande
pausa entre o final do compasso 10 e o início do compasso 1 é a indicação de que a
melodia começa, de forma acéfala, na anacruse do segundo compasso, sendo que,
inicialmente, a impressão que se tem é de que a melodia começa com a tradicional
anacruse do primeiro compasso. O recurso da repetição foi utilizado como forma de
expor mais claramente a construção da primeira frase em cinco compassos, uma
vez que, durante a exposição, as pausas de semínima e colcheia do primeiro
compasso não podem ser percebidas devido ao fato de o material sonoro ainda não
ter se iniciado (a não ser que já se conheça a partitura da peça).
33

Como se pode perceber, a presença da barra de repetição no compasso 10 é


responsável pelo efeito de prolongamento periódico que perdura por praticamente
toda a obra (esse mesmo efeito ocorre durante a segunda seção da obra), além criar
a sensação de que a primeira frase possui um início acéfalo – devido à grande
pausa do compasso inicial – em contraste com o início anacrústico da segunda frase
do período, como mostra a seguir a figura 14:

Figura 14 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 1 – 9, clave superior.

Ao se observar a figura acima, nota-se que a pausa de semínima pontuada no


primeiro compasso explicita uma ambigüidade rítmica na primeira frase do período 1
que só pode ser entendida auditivamente durante a repetição da seção. Na segunda
frase, o início da mesma é anacrústico devido ao fato de a primeira nota sol do
compasso 5 (semínima pontuada) pertencer à primeira frase, o que evita uma
ambigüidade de interpretação rítmica como no caso anterior. Voltando à primeira
frase, para que a primeira frase fosse claramente anacrústica não deveria existir a
pausa de semínima do primeiro compasso, conforme mostra a figura abaixo:

Figura 15a - Início da obra escrito de forma anacrústica.

Figura 15b - Início da obra originalmente escrito de forma acéfala.


34

Segundo outro grande compositor paranaense contemporâneo de Henrique


Morozowicz, Pe. José Penalva, a obra de Henrique de Curitiba possui uma
“tendência ao humor, à sátira manifesta” (PENALVA, apud NETO, 2004, Pg. 183 –
184). Essa tendência pode ser percebida na opção por escrever um início acéfalo
em uma canção de caráter anacrústico, utilizando também recursos fraseológicos (5
compassos ao invés de 4) para dar um toque de humor e diferenciar sua
composição dessa canção bastante comum e conhecida (Cai, cai, balão). A idéia
humorística dessa alteração é exatamente o fato de que o ouvinte somente percebe
a frase de 5 compassos no momento em que a repetição ocorre, uma vez que na
exposição a impressão que se tem é de que a canção é, como usualmente,
anacrústica. Assim sendo, a barra de repetição acaba por insinuar essa tendência
ao humor mencionada pelo compositor Pe. Penalva.

A segunda seção, que inicia no compasso 13, é semelhante à seção A, com um


acompanhamento melódico similar em termos de ritmo. O que difere as seções é,
primeiramente, a mudança da melodia da canção de um timbre agudo (soprano)
para um timbre grave (baixo), que perdura por boa parte da segunda seção (entre os
compassos 13 e 19), bem como a presença de uma passagem musical de cunho
contrapontístico a partir da segunda metade do compasso 19 até o compasso 22,
conforme pode ser observado na figura abaixo:

Figura 16 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 13 – 22, segundo período dividido em duas frases de
cinco compassos.
35

A estrutura fraseológica da segunda seção é similar à da primeira, com um


período dividido em duas frases de cinco compassos cada. Além do contraste já
citado entre a melodia nas regiões grave e aguda, outro contraste entre os períodos
acontece na harmonia: no início da seção B a melodia encontra-se sob uma
harmonia no modo menor, mais precisamente na tonalidade da relativa menor
àquela correspondente à tonalidade maior da melodia (relativa de sol maior). O fato
de atenção nesse contraste harmônico é que no início da segunda seção a
tonalidade, apesar de evidentemente menor de acordo com a escrita, soa ambígua
devido ao fato de a melodia ser harmonicamente de tonalidade maior. Esse efeito de
ambigüidade ocorre provavelmente devido ao fato de que, na escrita do
acompanhamento entre os compassos 14 e 19 (clave superior), a nota sol da tônica
melódica não aparece sequer uma vez em todo o trecho, provocando uma tendência
maior para o estabelecimento da nota mi como tônica (vide figura 16 acima).

Quanto ao ritmo do acompanhamento, na primeira seção ocorre um fato que


requer atenção: a variação da célula rítmica por diminuição, isto é, em determinado
momento uma célula rítmica padrão é executada com notas cujo valor corresponde
à metade do valor inicial, como mostra a figura 17:

Figura 17a - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 2 – 4, clave inferior. Célula
rítmica inicial.

Figura 17b - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 6 – 7, clave inferior. Célula
rítmica por diminuição.

É importante ressaltar que, embora o valor entre as células corresponda ao


fenômeno de diminuição, isso não fica tão evidente auditivamente devido ao fato de
haver um pequeno deslocamento na primeira célula em relação à segunda: para que
a característica de diminuição fosse totalmente uniforme, a primeira pausa do
compasso deveria ser de semínima – ao invés de colcheia – e a nota seguinte
36

corresponderia ao restante, deslocando a pausa de colcheia do último tempo para o


compasso seguinte, e assim por diante.

Figura 18 - Deslocamento rítmico da primeira célula em relação à segunda célula.

Na figura 18, a primeira linha representa a célula rítmica que aparece no


acompanhamento dos compassos 2 a 4, enquanto que a terceira linha representa a
célula rítmica que aparece nos compassos 6 a 8 (até o primeiro tempo deste). A
linha intermediária representa a célula rítmica que seria uniformemente uma
aumentação da segunda célula (terceira linha), com todas as figuras dobrando de
valor e encaixando-se perfeitamente na métrica do compasso, isto é, a célula rítmica
apenas diminuiria seu valor à metade sem estar deslocada (como na primeira linha).

Para deixar mais claro o que ocorre, é de bom cunho que aqui se exponha
uma relação entre a primeira célula rítmica e uma hipotética segunda célula rítmica
uniformemente diminuída da primeira, como mostra a figura abaixo:

Figura 19 - Relação hipotética de diminuição entre a célula rítmica original dos compassos 2 – 4 (linha
superior) e aquela dos compassos 6 – 7 (alterada).

A figura 19 mostra o que seria uma relação de diminuição uniforme (sem


deslocamento métrico) entre as duas células rítmicas em questão, ou seja, haveria
um deslocamento de ¼ de tempo para trás na segunda célula rítmica original
(compassos 6 – 7) que transformaria a célula em exatamente a metade métrica da
37

primeira. Assim sendo, é mais correto afirmar que a segunda célula é uma
diminuição à metade da primeira com um deslocamento de ¼ de tempo para frente,
em vez da afirmação anterior de que a primeira célula seria uma aumentação da
segunda com deslocamento de ½ tempo para trás. Segundo o compositor Edino
Krieger, a obra de Henrique de Curitiba “é bem humorada na expressão de certos
condimentos brejeiros da rítmica brasileira” (KRIEGER, apud PROSSER in NETO,
2004, Pg. 184). Esse comentário que parece se aplicar ao fenômeno rítmico que
ocorre nesta obra justamente pelo fato de haver essa síncope rítmica responsável
pelo efeito que ocorre na primeira seção, gerando um balanço no acompanhamento
melódico.

Na segunda seção, o que ocorre com o acompanhamento em termos rítmicos


é semelhante ao que ocorre na primeira seção, porém com alguma diferença: uma
delas é que, pela primeira vez até então, uma das células rítmicas acompanhantes
principais é transformada em ritmo tético, exatamente como ocorre no compasso 18
em relação ao compasso 16, mostrado na figura abaixo:

Figura 20 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 16 – 18. Deslocamento de
célula rítmica acéfala (c. 16) para tética (c. 18).

Para finalizar, verifica-se o trecho rítmico que precede o compasso 18: o


comportamento rítmico do acompanhamento segue um padrão parecido com o de
diminuição, gerando uma sensação de accelerando rítmico entre os compassos 14 e
17 devido ao aumento de ataques acordais dentro da métrica, como mostra a figura
abaixo:
38

Figura 21 - Primeiro Caderno da Karina nº2: Cai, cai, balão. Compassos 13 – 17, aumento seqüente
de ataques acordais no entre os compassos 14 – 17.

Uma vez mais é notada a característica do compositor de promover diversos


efeitos musicais em uma melodia bastante singela e em um espaço musical
relativamente curto de apenas 4 compassos. Essa característica do compositor de
ponderar o simples e o complexo dentro do espaço musical é, de certa maneira,
mencionada por Vargas (1988), ao dizer que Henrique Morozowicz “é autor de uma
obra que podemos chamar de primorosa, sem a mínima concessão à mediocridade
ou a experimentalismos modernosos”.23

2.3 – RODA COTIA

2.3.1 – Harmonia: “Roda cotia” apresenta-se mais complexa harmonicamente


do que a anterior “Cai, cai, balão”, devido à escrita polifônica a duas vozes durante
toda a obra. Com relação à tonalidade, a melodia da canção (exposta pela voz
superior inicialmente nos compassos 1 a 8) encontra-se na tonalidade de mi maior,
conforme a figura abaixo:

Figura 22 - Primeiro Caderno da Karina nº 3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8, clave superior. Melodia
da canção folclórica.

23
VARGAS, Túlio. Porta Retratos: Henrique Morozowicz. Gazeta do Povo, Curitiba, v.70, nº 21485,
pg. 8, 18 jun. 1988.
39

Com exceção da última nota do compasso 6 (dó), todas as notas da melodia


se encontram dentro da escala de mi maior, cuja tonalidade é firmada logo nos dois
compassos iniciais com a melodia (escrita em forma de arpejos descendente e
ascendente, respectivamente, sobre o acorde da tônica). O modo mais simples de
se harmonizar essa melodia com um caráter tonal fixo seria com as seguintes
funções tonais: Tônica para os compassos 1 a 3, seguido de dominante para os
compassos 4 a 7 e tônica novamente no compasso 8, o que, de acordo com
Schoemberg (1922), já apresenta uma harmonia tonal: “...existem casos em que
basta a citação I – V – I para fixar nitidamente a tonalidade” (SCHOEMBERG, A.
Harmonia. Ed. Unesp, 1999. Pg. 200). Porém, o que ocorre nesta obra é que o
acompanhamento é feito em forma de contraponto de primeira espécie (nota contra
nota) em sua maioria e, em alguns momentos, de segunda espécie (duas notas
contra uma), transformando o âmbito harmônico em algo mais complexo com
relação ao acompanhamento de caráter homofônico comumente usado, como se
pode observar na figura abaixo:

Figura 23 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8, contraponto da melodia.

O contraponto aparece como elemento causador de ambigüidade tonal:


enquanto a melodia permanece harmonicamente adepta à tonalidade de mi maior
(exceção ao dó natural no compasso 6), a melodia contrapontística da clave inferior
produz efeito no direcionamento harmônico da seção A, bem como de todo o
restante da obra. Para melhor entender os efeitos harmônicos gerados pelo
contraponto, analisar-se-á separadamente as duas linhas melódicas utilizadas na
figura 23.
40

Figura 24 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8, clave superior,
possibilidades harmônicas comumente usadas para essa melodia folclórica.

Figura 25 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8, clave inferior.
Contraponto da melodia.

Na figura 25, é possível perceber que são praticamente inexistentes


momentos em que a harmonia sugerida na figura 24 pode ser diretamente sentida,
ou seja, é praticamente impossível afirmar que a melodia encontra-se harmonizada,
segundo os princípios tonais, em mi maior. Porém há indícios que podem sugerir
acordes que se encaixam em funções harmônicas próximas a mi maior, ainda que
não remetam diretamente a ela. É o caso dos compassos 2 e 4 (somados às notas
iniciais dos compassos 3 e 5, respectivamente), onde os arpejos descendentes
foram feitos sobre notas que sugerem o acorde lá# - dó# - mi, acorde de sensível do
tom da dominante (si maior). Esse parece ser o indício mais próximo ligado a uma
possibilidade tonal na obra, mas que não define por si só uma tonalidade para a
mesma. Uma segunda possibilidade harmônica, que pode ser observada na melodia
contrapontística, aparece ao se unir os arpejos ascendentes e descendentes entre
os compassos 2, 3 e 4. O arpejo é feito sobre as notas dó#, mi, sol# e lá#, o que, em
terças sobrepostas, forma a tétrade lá# - dó# - mi – sol#, que representa o acorde de
sétima da sensível de si maior (tom da dominante), bastante análogo à já citada
tríade sobre a sensível da dominante.

Ainda sobre o contraponto da melodia, notam-se traços modais ao se analisar


alguns compassos separadamente, como, por exemplo, os compassos 3 e 5 (que
são compostos pelas notas mi, sol# e lá#), onde o intervalo de quarta aumentada
entre mi e lá sustenido sugere uma intenção modal lídia. A figura abaixo mostra as
duas possibilidades harmônicas sugeridas na clave inferior:
41

Figura 26 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda cotia. Compassos 1 – 8, clave inferior.
Possibilidades harmônicas da contra-melodia.

O arpejo sobre a tríade do sétimo grau da dominante escrito em segunda


inversão é possivelmente o principal responsável pela ambigüidade existente nesse
trecho da obra, pois o baixo recai sobre a nota mi no tempo forte dos compassos 3 e
5, fazendo com que a união às notas sol# e lá# desperte uma sensação de modo
lídio, enquanto que os tempos fortes dos compassos 2 e 4 mudam o caráter
harmônico para um acorde de qualidade tonal, ao serem preenchidos pela nota dó#.
De uma maneira mais simples, há uma alternância de trechos harmônicos modais e
tonais a cada compasso, variando da seguinte forma: “modal – tonal – modal – tonal
– modal” entre os compassos 1 e 5, como mostrado na figura 26.

Após observar separadamente as possibilidades harmônicas sugeridas nas


duas linhas melódicas, é necessária a análise contrapontística entre as duas vozes
da seção A, a fim de entender o real efeito harmônico gerado pela combinação das
mesmas.

Figura 27 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8. Seção A.

Segundo Bohumil Med, harmonia vem a ser o “conjunto de sons dispostos em


ordem simultânea (concepção vertical da música)” (MED, 1996, Pg. 11) e, partindo
dessa afirmação, buscar-se-ão, então, alguns pontos da seção A, mostrada na figura
27, onde a concepção vertical simultânea contenha notas que induzam a
determinados acordes. Levando-se em conta que o movimento rítmico das vozes é
basicamente o mesmo em toda a seção (exceção ao compasso 6), os tempos fortes
42

de cada compasso são aqueles em que a harmonia possui um impacto maior,


devido à sua maior duração sonora. No compasso 1, observa-se que as notas
verticais insinuam um acorde distante da tonalidade pressuposta pela melodia
folclórica: sol maior, mediante maior bemol de mi maior. No compasso 2, as notas
verticais do primeiro tempo são dó# - mi e pressupõem o acorde de dó# menor, tom
da relativa de mi maior. No terceiro compasso, as notas mi – si insinuam o acorde da
tônica sem a terça, que, apesar de não possuir a mesma força do acorde completo
(tríade maior), não deixa de ser harmonicamente sugerido. O primeiro tempo do
quarto compasso é composto pelas notas dó# - fá#, que ao serem invertidas
induzem ao acorde do segundo grau novamente sem a terça. No primeiro tempo do
quinto compasso encontram-se as notas mi e lá, que pressupõem o acorde da
dominante sem a terça. No compasso a seguir as notas são dó# e si, representando
tônica e sétima do acorde da relativa de mi maior (dó sustenido menor). O mesmo
acontece no compasso 7, onde as notas lá e si representam a sétima da dominante
em terceira inversão (V2). No último compasso as notas são ré e mi, cuja força
representa uma dominante individual do acorde de quarto grau (V/IV), novamente
em terceira inversão.

Figura 28 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8: esquema harmônico da
seção A a partir da análise vertical das notas de maior duração dos compassos.

Ao se observar o esquema harmônico da figura acima, nota-se a existência


de um trajeto harmônico tonal de mi maior, devido à presença da cadência V – V/IV,
além de toda a preparação cadencial ii – IV – vi. Assim sendo, a relação vertical dos
tempos fortes dos compassos 1 – 8 indicam um trajeto harmônico, de certa forma,
similar ao mostrado na figura 24, ou seja, ainda que a melodia contrapontística
pareça levar a harmonias distantes de mi maior, a análise vertical da figura 28
parece mostrar que a contramelodia corrobora a tonalidade de mi maior da melodia
folclórica, obscurecida pelo efeito horizontal do contraponto.
43

A seção B é constituída dos compassos 9 ao 18, sendo 9 e 10 compassos de


ligação e o contraponto melódico propriamente dito iniciando no compasso 11, com
um tratamento polifônico similar àquele utilizado na seção anterior. A figura abaixo
representa o conteúdo da seção B da obra:

Figura 29 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia.Compassos 9 – 18. Seção B.

O compasso 9, mostrado na figura acima, traz novamente uma idéia similar à


do compasso 1, com a diferença de que aqui não há outra nota acompanhante. A
nota fá adota um papel semelhante à nota sol do compasso 1, que é o de causar um
breve desequilíbrio harmônico que gere uma sensação de movimento e balanço
(condizente com a expressão “balançando de leve” indicada no início da partitura).
Para a análise do que ocorre harmonicamente na seção B, tomar-se-á aqui o
mesmo método utilizado na seção anterior, primeiramente examinando a
contramelodia situada na clave inferior:
44

Figura 30 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 9 – 18, clave inferior.
Contramelodia.

A figura demonstra que a contramelodia possui semelhanças com a da seção


anterior, principalmente no que se refere a alternâncias entre passagens modais
lídias e passagens tonais em forma de tríade sobre o sétimo grau diminuto (vide
figura 26). No que concerne às diferenças entre elas, o principal ponto a ser
observado são as notas pertencentes aos primeiros tempos dos compassos 14, 16 e
18, que provocam um resultado harmônico diferente ao serem combinadas com
suas respectivas notas da melodia. A análise harmônica horizontal da contramelodia
revela uma similaridade entre esta e aquela pertencente à seção anterior, sendo a
voz superior o grande diferencial harmônico da segunda seção devido ao resultado
vertical obtido através da combinação entre as duas vozes:
45

Figura 31 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 9 – 18. Seção B. Harmonização
vertical.

Acima é apresentado apenas uma das possíveis formações harmônicas a


partir da combinação vertical das vozes, o que não significa que a mesma seja uma
formação decisiva, principalmente pelo fato de a obra possuir um resultado tonal não
muito claro que se deve à ausência de uma ou mais notas das tríades (ou tétrades).
A característica polifônica amplia a margem harmônica da peça a partir de uma
análise horizontal como a que foi feita na figura 30, embora não seja possível se
obter uma relação harmônica tonal absoluta da seção.

A harmonia na terceira seção é praticamente a mesma da seção A,


diferenciando-se apenas a partir do compasso 24 em diante – que representa a coda
da obra – e também da primeira nota na clave inferior do compasso 19, que agora é
um mi 2 em vez de sol 2:
46

Figura 32 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 19 – 28. Seção A'.

As pequenas diferenças dessa seção em relação à seção A são: variação na


primeira nota da voz inferior pertencente ao compasso 19, variação melódica da voz
superior no compasso 21 e a coda adicional, que inicia no compasso 24. É de suma
importância notar que a variação da primeira nota do compasso 19 transforma o
acorde vertical em mi maior, modificando levemente a estrutura harmônica da seção
em relação ao início da obra. É também de igual importância notar que a variação
melódica do compasso 21 não altera a harmonia do trecho em relação ao seu
equivalente na seção A. Dessa forma, entre os compassos 19 e 24, a única
alteração harmônica se encontra no primeiro compasso da frase (compasso 19),
sendo o restante harmonicamente igual à primeira seção. Para finalizar, abaixo se
encontra um esquema harmônico dos compassos 24 a 28 que representam a coda
da obra:

Figura 33 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 24 – 28. Esquema harmônico
da coda.
47

A figura acima mostra mais uma vez a característica de interposição modal


usada pelo compositor, que cria uma ambigüidade harmônica. Neste caso, as notas
prolongadas dó sustenido (clave inferior) e mi (clave superior) são essenciais para o
entendimento do esquema harmônico da figura 33: todos os acordes foram
embasados na concepção vertical dos tempos fortes de cada compasso, uma vez
que as mínimas se prolongam pelos respectivos compassos seguintes formando as
combinações que insinuam as ilustradas funções tonais. Além disso, há ainda as
duas frases melódicas que se contrastam horizontalmente através da alternância
modal, evidenciando mais uma vez a característica do compositor de entrelaçar
diversos eventos musicais em um curto espaço musical.

2.3.2 – Forma e estrutura: foi a forma de peça característica a escolhida pelo


compositor para construir a música. Um dos pontos que chamam a atenção sobre o
fato de Henrique de Curitiba escrever a maioria de sua obra para piano nessa forma
possivelmente se refere às suas origens européias, ou seja, a Polônia: “A minha
casa era freqüentada preponderantemente por gente da colônia polonesa, mas de
um grupo da intelectualidade polonesa e havia muitos saraus de música, poesia, etc”
(MOROZOWICZ apud GONZAGA, 2002)24. Assim sendo, existe a possibilidade de a
música polonesa, principalmente do século XIX onde a peça característica estava no
seu auge com compositores como Chopin, ter influenciado a composição pianística
de Henrique de Curitiba em termos de forma.

“Roda Cotia” foi escrita em uma estrutura ternária do tipo ABA', com uma
coda adicional de quatro compassos. A seção A expõe a melodia folclórica na clave
superior com um acompanhamento polifônico na clave inferior que percorrem os oito
primeiros compassos da obra, tendo um sinal de repetição no final do compasso oito
(vide figura 27). Após a exposição da melodia folclórica tem início a seção B, desde
o compasso 9 logo após a barra de repetição até o compasso 18, contendo material
musical utilizado na seção anterior (vide figura 29). O desenho melódico da clave
inferior é similar (como já foi previamente observado) ao da primeira seção e serve
como base para o material da clave superior, que contém a variação característica
da seção, presente nos compassos 15 e 17. O caráter da variação será analisado

24
Gonzaga, Maria Clara de Almeida. Música cênica para piano: Cinco peças brasileiras. Dissertação
de Mestrado pela Universidade de Campinas UNICAMP. 2002. Pgs 114 – 115
48

posteriormente, uma vez que o mesmo possui sua base em aspectos principalmente
rítmicos.

O que torna a terceira seção um A' e não um A é, principalmente, a presença


do elemento de variação da seção B nos compassos 21 e 23, além da primeira nota
da clave inferior do compasso 19 e da presença da coda. A estrutura ternária é
bastante comum em peças cuja forma é livre, talvez pela sensação de totalidade e
ciclo (começo, meio e fim) que ela imprime. Embora a sensação de ciclo tenha sido
idealizada pelo sistema tonal – onde há um ponto de partida e chegada, ou seja, a
tônica – a obra em questão é, apesar da análise harmônica anterior, dificilmente
encarada como sendo, de fato, tonal, utilizando então de outros meios para
completar a idéia de ciclo. Uma tessitura polifônica com uma linguagem harmônica
mais moderna anexada a uma estrutura que por si só justifica uma das principais
ideologias do sistema tonal é um caso, por mais que indireto, da sátira musical
aparentemente recorrente nas composições de Henrique de Curitiba.

2.3.3 – Fraseologia e rítmica: a análise fraseológica de “Roda Cotia”


apresenta alguns aspectos de complexidade escondidos por detrás de uma divisão
de frases relativamente simples. A melodia folclórica está escrita na clave superior, o
que supõe que a análise fraseológica da obra se oriente por ela, considerando a
melodia contrapontística como acompanhamento da frase melódica principal. A
seção A é composta de um período de oito compassos dividido em duas frases de
quatro compassos cada, cuja divisão foi feita com base na letra da canção: a
primeira frase engloba a melodia de “roda cotia de noite e de dia”, enquanto que a
segunda engloba “o galo cantou e a casa caiu”, como mostra a figura 34 a seguir:

Figura 34 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 1 – 8. Divisão fraseológica da
seção A.
49

Na figura acima, notam-se duas frases de inícios diferentes (uma tética e a


outra anacrústica, respectivamente) em um período com simetria rítmica, do início ao
fim. Nesse caso, a letra da canção teve influência decisiva na divisão sugerida, uma
vez que o mais provável (em termos somente musicais) fosse uma divisão de duas
frases téticas percorrendo, respectivamente, os compassos 1 a 4 e 5 a 8. Outro fator
que define as duas frases é a relação intervalar: a primeira é composta por
intervalos de terça ascendentes e descendentes que compõem um arpejo, enquanto
que os intervalos de segunda, terça e quarta, dispostos em ordem aleatória na
segunda frase, representam um contraste à simetria da primeira frase. Dessa forma,
se formam as frases, antecedente e conseqüente, da primeira seção.

O inciso fraseológico da seção A, bem como do restante da obra, tem maior


relação com o ritmo, uma vez que um ostinato rítmico está presente em
praticamente todo o decorrer da peça com exceção da coda. A célula rítmica
semínima – colcheia – colcheia pode ser considerada o inciso fraseológico principal
da peça, uma vez que ele aparece em todos os compassos, com exceção de 25, 26
e 28, em pelo menos uma das duas melodias contrapontísticas.

Uma segunda possibilidade de inciso fraseológico possui caráter melódico e


remete ao intervalo de terça, bastante utilizado no decorrer da obra: a primeira frase
da seção A é quase que inteiramente formada por esse tipo de intervalo, bem como
alguns pontos importantes da seção B (figura 35) e no elemento de variação na
terceira seção. Considerando que uma análise musical se baseia na percepção dos
elementos que se repetem (como se repetem) e aqueles que não se repetem
25
(variam) , o inciso fraseológico é considerado a partir de um termo que, de uma
forma ou de outra, se repete no decorrer da obra, motivo esse que pode levar à
sugestão do intervalo de terça como inciso fraseológico.

25
CHIAMULERA, Salete. Caderno de Trabalho (Análise Musical). 2009. Pg. 16
50

Figura 35 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 9 – 18. Inciso melódico na
seção B.

O motivo a favor de um inciso melódico na seção B é que o intervalo de terça


ganha uma força expressiva ao ser colocado na anacruse para o tempo forte dos
compassos 12, 14 e 16, como mostra a figura 35. Levando-se em consideração que
a clave inferior, que contém o ostinato rítmico, serve de acompanhamento melódico
nesta análise fraseológica, é possível afirmar que os intervalos de terça sublinhados
possuem, na seção em questão, uma força expressiva tal qual a célula rítmica já
citada. A coda é outra região em que o intervalo de terça possui grande força,
principalmente pelo fato do mesmo se encontrar no final da coda e, particularmente,
por ser o último intervalo melódico da obra, o que lhe gera uma grande importância,
como mostra a figura abaixo:

Figura 36 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 24 – 28. Inciso melódico na
coda.
51

Sobre o inciso da obra, a conclusão que se chega é a de que, embora o


intervalo de terça seja expressivo, a célula rítmica semínima – colcheia – colcheia
apresenta-se mais presente no decorrer da peça. Um exemplo disso é observado na
própria coda, onde a presença da célula rítmica ocorre justamente em lugares onde
o intervalo de terça é importante, como os dois últimos compassos da obra, além de
ser o elemento base de variação nas seções B e A'. A expressão “balançando de
leve”, escrita no início da obra, é o primeiro sinal da possibilidade de o inciso
fraseológico da obra ser de caráter rítmico.

Voltando à divisão fraseológica, passar-se-á agora para a segunda seção da


obra, que remete aos compassos 9 – 18. Os compassos 9 e 10 apresentam uma
questão fraseológica: eles fazem parte da frase ou apenas representam uma
afirmação do inciso fraseológico da mesma? Ao se levar em conta que a análise
fraseológica está sendo feita a partir da melodia superior (clave de sol), não é
incorreto dizer que o período real inicia no compasso 11 e que os dois compassos
anteriores representam apenas uma exposição do ostinato rítmico do
acompanhamento, o que assim revelaria, a princípio, uma perfeita simetria de oito
compassos como a do período da seção anterior. Por outro lado, não há razão
decisiva para desconsiderar um período de dez compassos, com dois compassos
iniciais de pausa, uma vez que há material sonoro no acompanhamento (compassos
9 e 10). Tomando-se como ponto de partida que a frase musical considerada é a da
clave superior, convém nesse caso dar maior importância à segunda hipótese.

Assim como na primeira seção, a seção B é composta de um período musical


dividido em duas frases de quatro compassos cada, com a diferença de que agora
ambas possuem a disposição tética e são mais similares entre si do que aquelas da
seção A, diferenciando-se (frases da seção B) apenas pelo elemento rítmico de
variação anteriormente mencionado. A figura 37 mostra um esquema da divisão
fraseológica da segunda seção da obra, mostrando a semelhança entre as duas
frases:
52

Figura 37 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 9 – 18. Divisão fraseológica da
seção B.

O material sonoro da clave superior dos compassos 11 e 12 representam o


que Hugo Riemann chama de unidade de motivo26, que compõe o primeiro nível de
estrutura fraseológica. A combinação das duas unidades de motivos nos compassos
11 a 14 apresentam a primeira frase, ou seja, segundo nível de estrutura
fraseológica. Já a variação da primeira frase (compassos 15 – 18) representa a
segunda frase, que, juntamente com a primeira frase, formam a terceiro nível de
estrutura fraseológica (período de oito compassos). Nota-se que há apenas um
elemento rítmico responsável pela diferença entre ambas as frases, mantendo-se,
entretanto, idêntica a disposição intervalar: as semínimas da primeira frase se
transformaram em duas colcheias na frase seguinte, mantendo a mesma nota da
anterior e as mesmas relações intervalares, o que gera a sensação auditiva de que a
frase é de oito (e não dez) compassos. É possível que os compassos 9 e 10
possuam a função de ratificar a importância do ritmo na obra, além de servir como
interlúdio entre os dois períodos das seções A e B.

A terceira seção é fraseologicamente análoga à primeira seção, com exceção


da coda, sendo que o que as diferencia é exatamente o mesmo elemento rítmico
que diferencia as duas frases da seção B, podendo ser observado nos compassos
21, 23 e 25 (voz superior) da seção A'. A figura 38 mostra a divisão fraseológica da

26
RIEMANN, apud BENT, 1987 pg. 91
53

terceira seção, evidenciando a interposição entre a frase de oito compassos e a


coda de cinco compassos:

Figura 38 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Roda Cotia. Compassos 19 – 28. Divisão fraseológica da
seção A'.

Na figura acima, as duas ligaduras de frase representam, respectivamente,


primeira e segunda frases da seção, enquanto que o material sublinhado representa
as duas frases da coda. A razão para se considerar a coda a partir do segundo
tempo do compasso 24 provém do fato de que a célula rítmica padrão do
acompanhamento na voz inferior deixa de acontecer nesse ponto, dando uma
pequena mudança de caráter que pode, dessa forma, se denominar como sendo o
início coda. Ainda assim, por mais que o caráter do acompanhamento mude no
compasso 24, a frase inteira termina apenas no compasso 26 com a nota da
fermata, revelando uma grande elisão27 entre o final da segunda frase e o início da
coda.

Quanto ao ritmo, já está bem expressa sua importância, servindo de inciso


fraseológico para a construção da obra. A célula rítmica em forma de ostinato é a
principal responsável pela sensação de balanço indicada pelo compositor no início
da escrita. Em resumo, esta é uma obra polifônica em que o principal elemento
27
Elisão, segundo BENT (1987), é a supressão da fase crescente de uma unidade (o primeiro
elemento de um motivo, o primeiro motivo de um grupo de 2 compassos, o primeiro grupo de 2
compassos de uma frase de quatro compassos, etc.), produzindo um padrão fraseológico de forte –
fraco – forte.
54

característico é o ritmo, e não o entrelaçamento das vozes comum em obras com


esse tipo de textura. A obra mostra, mais uma vez, a característica de Henrique de
Curitiba de unir diversos elementos em um espaço musical relativamente curto: três
seções, elementos polifônicos (contraponto de primeira espécie e, nos elementos de
variação, segunda espécie), importância rítmica e conceitos de variação melódica.

2.4 – TIRI-LA-LA-LA

2.4.1 – Harmonia: Trata-se de uma composição a duas vozes (com exceção


da coda), com uma textura homofônica presente em uma estrutura musical que
tende a ser, primariamente, polifônica.

Embora a obra pareça harmonicamente simples à primeira vista, uma análise


mais profunda mostra relativa complexidade em sua estrutura harmônica. Ao se
observar somente a melodia folclórica (clave superior) durante os compassos 1 a 9,
percebe-se uma forte tendência melódica de descanso na nota dó, o que sugere que
a peça se encontre na tonalidade de dó maior. A figura abaixo expõe a provável
possibilidade de progressão harmônica a partir da melodia folclórica:

Figura 39 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 1 – 9, clave superior. Melodia
folclórica.

Na figura acima, os compassos 1 – 5 e 6 – 9 representam, respectivamente,


antecedente e conseqüente da frase melódica correspondente à canção folclórica. A
primeira frase (compassos 1 – 5) possui uma meia cadência I – V (terminando no
tom da dominante) bastante comum em frases antecedentes, enquanto que a frase
seguinte (conseqüente) encerra com uma cadência perfeita V – I, concluindo o ciclo
harmônico tonal. Isso corresponde apenas à análise inicial da clave superior dos
primeiros nove compassos da obra, o que significa que a notação harmônica
55

proposta na figura 39 não pode ser necessariamente tomada como real. Ao se unir a
melodia folclórica com o acompanhamento da clave inferior, constata-se que as
combinações entre as vozes levam a acordes cuja relação harmônica é mais
distante de dó maior do que a observada na melodia:

Figura 40 – Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 1 – 9. Seção A.

O principal ponto responsável pelo afastamento do centro tonal de dó maior


está presente, como se pode observar na figura 40, no quarto compasso, onde a
combinação sib – ré pressupõe o acorde de si bemol maior. Isso provoca o
surgimento de ambigüidades harmônicas na primeira seção, bem como algumas
hipóteses referentes à tonalidade: considerando-se que o quarto compasso (lá – si)
é na verdade um lá menor com apoggiatura em si, o acorde de si bemol maior pode
ser considerado um segundo grau napolitano de lá menor? Dada a sua relação com
os acordes do terceiro e do quinto compasso, essa é uma possibilidade remota, uma
vez que o segundo grau napolitano possui uma função de subdominante com
relação ao primeiro grau, o que não vem a ser a ocasião, além de que o acorde de
sexta napolitana geralmente aparece, por motivos cadenciais (que são importantes
aqui para se definir a tonalidade) em primeira inversão, o que não é o caso do
acorde de si bemol maior no compasso 4.

A seguinte hipótese é, embora exótica, a mais provável: poderia o si bemol


maior funcionar como subdominante de fá maior? A parte exótica da questão é que
em absolutamente nenhum momento da obra o acorde de fá maior é evidenciado
pela combinação das vozes, tornando difícil uma comprovação direta de que a obra
56

estaria nessa tonalidade. A segunda frase é a responsável por fazer validar essa
segunda hipótese devido à localização do acorde de si bemol maior entre dó maior
(compasso 7) e a nota dó (compasso 9). A relação entre esses acordes sugere a
relação cadencial V – IV – V na frase conseqüente, o que explica a possibilidade de
um centro tonal em fá maior. A figura abaixo apresenta um possível harmônico
esquema da seção A:

Figura 41 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 1 – 9. Esquema


harmônico tonal da seção A.

Harmonicamente, o que ocorre durante a segunda secção (compassos 10 a


17) é análogo à seção A, diferenciando-se no último compasso do antecedente (que
passa de iii grau para V grau) e na natureza invertida de alguns acordes. A figura
abaixo apresenta a seção B, com uma progressão harmônica baseada nos mesmos
princípios dos utilizados para o esquema harmônico da primeira seção:
57

Figura 42 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 10 – 17. Esquema harmônico
tonal da seção B.

As figuras 41 e 42 mostram que as duas seções diferenciam-se mais pela


tessitura do que pela harmonia em si. No que diz respeito à harmonia, com exceção
do compasso 13 – onde aparece um acorde de dominante – as funções harmônicas
são iguais entre as seções. Por possuir um caráter mais horizontal, a segunda seção
se apresenta mais complexa no estabelecimento da função harmônica, cujo exemplo
pode ser observado no compasso 17, onde o acorde de si bemol maior é
definitivamente sentido somente no último tempo28. Nos quatro últimos compassos,
o acompanhamento da obra sofre nova mudança, passando a ser apenas uma nota
de acento (semínima) no tempo forte de cada compasso, como mostra a figura 43
abaixo:

28
Local onde a nota si bemol aparece pela primeira vez no compasso.
58

Figura 43 - Primeiro Caderno da Karina nº3: Tiri-la-la-la. Compassos 18 – 21. Esquemático harmônico
tonal da coda.

A coda é o único trecho da peça que não possui, em seu todo, características
tonais de fá maior: no compasso 20 o acorde é formado a partir das notas láb – dó –
ré – fá# (com omissão da terça). O acorde em questão é um acorde de sexta
aumentada (estilo francês), em terceira inversão, que serve indiretamente como
subdominante de dó maior, através da função de dominante da dominante, conforme
diz Piston (1991):

El cuarto grado elevado, como sensible de la dominante, es el indicio de la función de


dominante secundaria de três de los cuatro acordes de sexta aumentada 29. El intervalo de
sexta aumentada se abre em su resolución normal a la octava sobre la dominante. (PISTON,
Walter. Armonía. Editorial Labor, S.A. Barcelona, 1991).

Dessa forma, nota-se que um acorde de sexta aumentada possui expressiva


função cadencial dentro da tonalidade. Na peça, esse acorde de sexta aumentada é,
como se pode observar na figura 43, precedido e sucedido por um acorde menor
com sétima na tônica de lá, o que põe em xeque a teoria comum de sua função
cadencial de subdominante. Nesse caso houve uma diferente resolução das notas
atrativas que culminaram em outro acorde que não o da dominante:

29
Piston cita em seu livro quatro tipos de acordes de sexta aumentada: italiana, francesa, alemã e
suíça. No caso em questão, os três acordes referidos pelo compositor são o de sexta aumentada
italiana, francesa e alemã.
59

Figura 44 - diferentes resoluções de um acorde de sexta aumentada, bem como uma transposição
enarmônica na terceira linha para fins de notas atrativas.

A primeira linha da figura 44 mostra a resolução comum do acorde de sexta


aumentada sob o papel de subdominante indireta, com ambas, lá bemol e fá
sustenido, resolvendo, respectivamente descendente e ascendente, em sol natural
(dominante). Nesse caso, o acorde de sexta aumentada resolve em um acorde de
dominante, o que sugere para si um papel de pré-dominante devido à sua função de
preparação. A segunda linha apresenta uma segunda possível resolução desse
acorde, que foi a empregada pelo compositor, mostrada na figura em estado
fundamental para facilitar o entendimento.

Nessa segunda hipótese, a nota inferior resolve na superior lá natural, em vez


da inferior sol natural, e o resultado final é um acorde formado sobre as notas lá – dó
– sol, diferente do usual sol maior. Nesse ponto (segunda linha da figura) a
resolução do acorde é de descanso ao invés do aumento de tensão, o que sugere
uma função cadencial de dominante para o acorde de sexta aumentada neste caso.
Assim sendo, a função de dominante imposta pelo acorde do compasso 20 sugere
uma nova tônica para o trecho da coda (lá menor, ao invés da proposta fá maior), o
que contribui para a elevação da ambigüidade harmônica.

Concluindo-se a hipótese tonal da análise harmônica, percebe-se um jogo de


ambigüidades durante todo o decorrer da obra. Há uma alusão à tonalidade de fá
maior em uma cadeia harmônica composta sobre uma melodia na escala de dó
maior, sem que, entretanto, ocorra a presença da tônica de fá maior. A coda é
também um motivador da ambigüidade harmônica, pois sugere uma tônica final que
60

mais se relaciona a dó maior (tônica relativa deste) do que a fá maior (sendo


mediante). Ainda há a possibilidade de um mesmo acorde representar duas funções
diferentes, como é o que acontece com o acorde de lá menor com sétima nos
compassos 19 (função de passagem) e 21 (função de tônica) devido à relação com
os acordes vizinhos, como mostrado na figura 43.

Uma segunda interpretação harmônica sugere um caráter modal da obra. O


modo mixolídio sobre a nota dó pode ser percebido principalmente na segunda
seção, onde o si bemol apresenta um papel melódico que reforça, juntamente com o
resultado harmônico do contraponto, a presença da harmonia mixolídia. Por mais
que existam características modais no decorrer da obra, o intervalo característico de
sétima menor pertencente a esse modo aparece raramente (e em forma invertida de
segunda maior), o que dificulta uma confirmação do modo mixolídio na obra.
Concluindo, a análise harmônica dessa obra mostra mais uma vez a tendência do
compositor “ao humor e à sátira manifesta”30 já mencionada anteriormente, indo
além dos “condimentos brejeiros da rítmica brasileira31 para esse fim, mais uma vez
tratada com a “seriedade de um mestre polifonista”32.

2.4.2 – Forma e estrutura: A estrutura na qual “Tiri-la-la-la” foi composta


é comum em obras com forma de peça característica: estrutura binária AB com
coda. A primeira seção, correspondente aos compassos 1 a 9, é caracterizada por
uma invenção a duas vozes com características de tessitura homofônica sugeridas
pela na simultaneidade das vozes durante a seção:

Figura 45 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 2 – 4. Homofonia na seção A.

Na figura acima, as partes sublinhadas representam as notas duplas


responsáveis pela homofonia, ou seja, é a partir delas que são formados os acordes

30
PENALVA, apud NETO, 2004.
31
KRIEGER, apud NETO, 2004.
32
PENALVA, apud NETO, 2004.
61

responsáveis pela harmonia. Nota-se que as colcheias da melodia (clave superior)


têm dupla função na seção A: função harmônica de servir como base para o
acompanhamento (juntamente com as colcheias da clave inferior) e a função
melódica natural. A seção B (anacruse do compasso 9 ao compasso 17) apresenta
uma harmonia semelhante àquela da seção precedente, o que pode deixar a
impressão de ser um “A‟”. O principal diferenciador das suas seções é a organização
das vozes no conteúdo musical, sendo na seção B de caráter mais polifônico do que
a seção anterior na maneira de conduzir o discurso musical. Enquanto na seção A o
inciso fraseológico (que será posteriormente analisado com mais profundidade) é
representado somente pela voz superior e acompanhado pela voz inferior, na seção
B o inciso é tratado em forma de cânone entre as duas vozes que busca o resultado
harmônico semelhante ao da seção A (com exceção, já comentada, ao terceiro
compasso da seção), bem como recorrer ao já utilizado aspecto homofônico em
alguns momentos (como nos compassos 15 e 16) para um novo contraste na obra.
A figura 46 apresenta a diferença entre o tipo de tessitura na qual as duas vozes
estão relacionadas nas seções A e B:

Figura 46 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 1 – 4 (primeiro sistema) e 10 –


12 (segundo sistema). Diferença entre as tessituras das seções A e B.

Na figura acima, o primeiro sistema apresenta os compassos 1 a 4 (quatro


primeiros compassos da seção A), enquanto que o segundo sistema apresenta os
três primeiros compassos da seção B (compassos 10 a 12). Os inícios de cada
seção, expostos na figura, mostram com clareza a diferença de tessitura
responsável pelo contraste entre as seções, bem como a identidade entre as
62

relações harmônicas das mesmas. Em suma, a tessitura é responsável por conferir


contraste à obra, assim como contrastes dentro das seções, como é o caso dos
compassos 15 e 16 em relação ao restante da seção B. Já o fator que representa a
unidade da obra possui característica fortemente rítmica e será analisado
posteriormente.

Para encerrar, uma análise da coda: é constituída dos compassos 18 a 21 e


possui uma textura homofônica contrastante com a seção B. O elemento novidade,
que aparece somente na coda, é a presença de mais de uma voz na clave inferior, o
que reforça a tessitura homofônica, como mostra a figura 47:

Figura 47 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 18 – 21. Coda.

2.4.3 – Fraseologia e rítmica: Um dos aspectos que, usualmente, são


marcantes em uma melodia folclórica infantil (ou pelo menos a grande maioria delas)
é a característica rítmica, na maioria das vezes, forte. Como foi visto nas canções
deste ciclo até aqui analisadas, em todas as melodias o ritmo funciona com
fragmento de importância na organização do discurso musical e por vezes é o
aspecto principal do inciso fraseológico (vide a terceira peça do ciclo, “Roda Cotia”).
Como poderá ser observado, o ritmo possui, também, grande importância na
fraseologia de “Tiri-la-la-la”.

A seção A é composta de um período dividida em duas frases de quatro


compassos cada.33 A figura 48 mostra o esquema fraseológico da primeira secção
musical da obra, revelando a presença de uma anacruse no início de cada frase
presente na seção:
33
A diferença entre “Tiri-la-la-la” e “Cai, cai, balão” é que na segunda o primeiro compasso de pausa
evidentemente fazia parte da frase devido à presença do sinal de repetição, fato esse que não ocorre
em “Tiri-la-la-la” e pode gerar dúvidas quanto à existência real do compasso inicial, podendo ser
apenas um erro de edição (Biblioteca Renée Devrainne Frank SEEC).
63

Figura 48 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 1 – 9. Esquema fraseológico da


seção A.

O que diferencia as duas frases (representadas na figura pelas ligaduras) são


as notas mais longas no fim de ambas, que indicam, respectivamente, tensão
(compasso 5) e descanso (compasso 8). Como já foi comentado durante a análise
harmônica, no aspecto melódico a tonalidade seria a de dó maior, enquanto, que em
termos homofônicos, a tonalidade se torna ambígua; Com base nesse ponto, utilizar
da harmonia para analisar a fraseologia da seção poderia parecer complicado e
causar dúvidas quanto ao direcionamento entre tensão e relaxamento devido ao fato
de que a ambigüidade harmônica do trecho pode transformar a nota dó tanto em
tônica como em dominante.

O compositor parece, entretanto, ter utilizado de outro recurso para diferenciar


a frase antecedente da conseqüente: o conceito de consonância e dissonância. No
compasso 5 (final da primeira frase) o intervalo entre a nota longa da voz superior e
as notas repetidas da voz inferior é o de segunda maior, considerado uma
dissonância forte e exaltando um aspecto de tensão, enquanto que o intervalo de
uníssono compasso 9, o último da segunda frase, representa a perfeita consonância
entre duas vozes, ou seja, um aspecto de repouso que exalta o caráter comum de
frase conseqüente de um período musical34. Em suma, a seção A é composta por

34
BENT (1991, pg 90 – 91) diz que, na frase musical, uma unidade de energia (chamada por ele de
motivo) passa de um crescimento para um decaimento por meio de um ponto central de tensão
harmônica. A fase crescente da melodia é o que RIEMANN (apud BENT, 1991) chama de
64

um período musical dividido em duas frases distintas pelo conceito de consonância e


dissonância representado pelos intervalos entre as vozes nos finais de frase.

Antes de passar para a seção B, far-se-á um estudo do inciso fraseológico da


obra. Pode ser observada uma estrutura rítmica que perdura por toda a obra, desde
o início da primeira frase da seção A até o fim da coda: trata-se de uma anacruse de
duas semicolcheias seguida por um grupo de três colcheias, como mostra a figura
abaixo:

Figura 49 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Célula rítmica do inciso fraseológico.

A célula rítmica mostrada na figura acima preenche praticamente todos os


compassos da obra, inteiramente ou em partes (como nos compassos 5, 9, 19 e 21),
ou ainda de forma modificada (compasso 17). Essa presença é o suficiente para a
célula rítmica se firmar como elemento de unificação da obra. Na melodia, é possível
considerar as três colcheias em uníssono (dó no compasso 1, sol no compasso 2, ré
no compasso 3, etc.) como outro possível inciso fraseológico, embora a célula
rítmica recém exposta seja mais presente no decorrer da obra. No caso da seção A,
porém, essa segunda hipótese é reforçada pela presença das mesmas três
colcheias em uníssono no acompanhamento que acabam por desvalorizar a
anacruse da célula rítmica, o que não ocorre na seção B, que será analisada a
seguir.

Assim como a seção anterior reforça a presença do triplo uníssono como


inciso da obra, a seção B acaba por reforçar a célula rítmica sugerida na figura 49.
Nesse caso, o cânone no qual as vozes estão dispostas acaba por supervalorizar a
anacruse da célula rítmica já exposta, o que permite dizer que o mesmo reforça a
primeira hipótese de inciso fraseológico apresentada. Por ter uma disposição mais
horizontal do que a seção anterior, as frases da seção B não pertencem somente à
voz superior, mas sim intercaladas entre esta e a voz inferior, como mostra a figura
50:

antecedente (vordersatz), enquanto que a fase decrescente (repouso) é denominada conseqüente


(nachsatz).
65

Figura 50 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 10 – 17. Esquemático


fraseológico da seção B.

Na figura acima, as duas frases da seção são representadas pelas grandes


ligaduras na parte superior dos sistemas (compassos 10 – 13 e compassos 14 – 17).
As ligaduras menores representam os fragmentos melódicos que compõem as
frases. Nota-se a forte presença da célula rítmica do inciso fraseológico em todos os
fragmentos melódicos35. Um aspecto na segunda frase é a presença de trechos de
caráter homofônico semelhantes aos da seção A como nos compassos 15 e 16,
sugerindo uma nova idéia de contraste, ou seja, além do contraste seccional, há
agora o contraste dentro da frase, o que de certa forma cria uma sensação de stretto
(vindo a indicar proximidade do fim da peça).

Um segundo aspecto de atenção, na seção B, é que o compositor utilizou,


pela segunda vez na peça, relações intervalares para diferenciar a frase
antecedente da conseqüente: ascendência e descendência de intervalos. Intervalos
ascendentes partindo da tônica tendem no início a gerar uma sensação de tensão
(por exemplo, um pentacorde ascendente dó – ré – mi – fá – sol) por caminharem
em direção à dominante, enquanto que os correspondentes descendentes (sol – fá –
mi – ré – dó) tendem a gerar uma sensação contrária, por caminharem na direção da
tônica. Nos compassos 13 e 17, respectivamente, tem-se a seqüência melódica dó –
ré – mi (voz superior) e mi – ré – dó (voz inferior), ambos os compassos sobre a
35
A disposição em forma de cânone, na primeira frase principalmente, valoriza o caráter anacrúsico
da célula rítmica, como supramencionado
66

tônica melódica de dó, criando dessa forma as sensações intervalares de tensão e


relaxamento presentes, respectivamente, em frases antecedentes e conseqüentes.
Novamente é possível perceber a característica do compositor de utilizar de recursos
simples para criar sensações relativamente complexas dentro do discurso musical.

A coda, por sua vez, é formada de uma pequena frase, de quatro compassos
apenas, cujo acompanhamento em forma de acordes a diferencia das seções A e B.
Como mostrada na figura 43, a harmonia formada pelos acordes indicam uma
relação de tensão e relaxamento que sugerem as duas frases mostradas na figura
abaixo:

Figura 51 – Primeiro Caderno da Karina nº4: Tiri-la-la-la. Compassos 18 – 21. Esquema fraseológico
da coda.

Como já foi dito anteriormente, a coda é o único local da obra que não possui,
em seu todo, relações tonais de fá maior, sendo essas mais tendentes a lá menor
(tônica relativa de dó maior). Portanto, a relação harmônica de antecedente e
conseqüente pode ser estabelecida com foco em lá menor, cabendo aqui dizer que a
coda é o único trecho da obra onde se pode fazer uma análise fraseológica
baseando-se na harmonia, devido à estrutura fortemente homofônica nesse último
trecho da peça. Na figura 51, as ligaduras inferiores representam as duas pequenas
sub-frases que compõem a frase apresentada através da ligadura superior. O
acorde de sexta aumentada do compasso 20 possui uma não usual função de
dominante, cuja resolução ocorre no compasso 21 indica o final da frase. O acorde
de lá menor com sétima em terceira inversão presente nos compassos 19 e 21
indicam, como dito anteriormente, duas funções diferentes: passagem (compasso
19) e tônica (compasso 21), o que possibilita dizer que a função subdominante
representa o antecedente, enquanto que a tônica (antecedida pela sexta aumentada
com função de dominante) representa o conseqüente. Esta é uma coda
67

característica de peças curtas, contendo um elemento novo e contrastante com o


restante da obra.

2.5 – CIRANDA, CIRANDINHA

2.5.1 – Harmonia: Em “ciranda, cirandinha”, a tonalidade de referência para a


melodia folclórica é a de Sol maior. É de importância que a tonalidade de referência
seja analisada devido ao fato de que a grande maioria das canções folclóricas
brasileiras (incluindo as que neste presente trabalho estão sendo analisadas)
termina com a nota da tônica, o que significa dizer que, a princípio, a tonalidade tem
uma forte presença na obra. A figura 52 representa a melodia da canção folclórica,
escrita entre os compassos 1 – 9:

Figura 52 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 2 – 9, clave superior.
Melodia folclórica.

Constata-se, na figura acima, que a melodia transcrita pelo compositor


encontra-se na tonalidade de sol maior, visto que, além do fato de a última nota da
melodia no compasso 9 ser um sol, o fá sustenido presente nos compassos 7 e 8
representam a sensível. Assim sendo, por princípios de tonalidade, pode-se deduzir
uma harmonização mais simples dessa melodia baseando-se em sol maior, sugerida
na figura abaixo:

Figura 53 - Primeiro Caderno da Karina nº4: Ciranda, cirandinha. Compassos 2 – 9, clave superior.
Proposta de harmonização tonal simples da melodia folclórica.

Embora a proposta de harmonização da figura 53 seja coerente com os


princípios tonais da melodia, o que ocorre no acompanhamento escrito pelo
compositor bastante se distancia disso. Como será posteriormente observado, a
harmonia da obra em questão alterna-se em trechos de caráter polifônico (a duas
68

vozes) e de caráter homofônico, ambos os trechos com estruturas harmônicas muito


pouco semelhantes às estruturas tonais. A obra inteira é composta de uma única
seção com repetição (além de uma pequena coda), sendo que na seção se
encontram dois períodos (compassos 1 – 11 e compassos 12 – 21) cuja voz superior
é a mesma, variando o acompanhamento e, conseqüentemente, o resultado
harmônico. Cada período é dividido em duas frases, sendo que a frase antecedente
possui característica sempre polifônica a duas vozes em contraponto de primeira
espécie (nota contra nota36) e segunda espécie (duas notas contra uma37) e a frase
conseqüente possui tanto características polifônicas quanto homofônicas.

Figura 54 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 1 – 11. Primeiro
período.38

Nota-se, através da figura 54, que são raros os momentos em que se pode
extrair no primeiro período um acorde com características tonais, ou seja, um acorde
formado por terças sobrepostas. O final da segunda frase (segundo tempo do
compasso 8 e primeiro tempo do compasso 9) é o único local do período onde um
acorde dessa natureza de fato aparece, fazendo com que a possibilidade de uma
harmonia tonal seja remota. O que parece sustentar esse “momento tonal” na obra
são os cromatismos, presentes em ambas as vozes, que dão um aspecto de notas
sensíveis, como mostra a figura abaixo:

36
KOELLREUTTER, 1996, pg. 28.
37
KOELLREUTTER, 1996, pg. 30.
38
No compasso 11, clave superior, a última colcheia corresponde, na verdade, à nota ré 3 – anacruse
do segundo período – ao invés da pausa de colcheia colocada na figura 54. Modificou-se apenas
para fins de clareza ilustrativa dos objetivos da figura.
69

Figura 55 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 8 – 9.

A região sublinhada na figura 55 mostra uma situação de triplo cromatismo:


fá# – sol na voz superior, fá – mi na voz intermediária e dó – si na voz inferior. A
presença do trítono fá# – dó resolvendo em sol – si é um resultado sonoro de caráter
tonal, sendo que nesse caso o terceiro cromatismo (fá – mi) funciona como definidor
da tônica sobre o acorde mi – sol – si. Levando-se em conta que a tonalidade usual
da melodia (como já foi dito) é a da última nota da mesma, a presença de um
cromatismo cadencial em mi menor representa uma resolução no tom da relativa
menor, podendo assim ser considerado como um dos únicos momentos em que o
período possui um caráter tonal. São passagens como essa que parecem supor a
“tonalidade, em uma nova concepção” mencionada pelo compositor (apud
PROSSER in NETO, 2004).

Analisando com mais profundidade a primeira frase do período, nota-se a


presença de uma tessitura mais polifônica, com duas vozes se dirigindo em
movimentos independentes uma da outra, conforme é mostrado pela figura 56:

Figura 56 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 1 – 5. Primeira frase.

Como se pode, então, perceber, a primeira frase (antecedente) é basicamente


composta de polifonia a duas vozes elaborada a contraponto de primeira espécie e
segunda espécie, sendo que a linha principal vem a ser a linha melódica da canção
70

folclórica. Efeitos contrastantes são obtidos através das combinações de


consonâncias de terça menor, quarta justa e sexta menor, com dissonâncias de
nona maior e segunda maior (compassos 3 – 4). A composição em primeira espécie
produz uma sensação de movimento maior do que a segunda espécie, sendo assim
uma opção de composição para ressaltar a indicação de “ligeirinho”, no início da
obra.

Outro detalhe a ser analisado é a presença de duas notas simultâneas, na


clave inferior, no primeiro tempo do compasso 5, que juntamente com a nota da
melodia (clave superior) formam um acorde com quarta apojatura sol – dó – ré (que
pelas regras tonais mais tradicionais resolveria na terça e formaria o acorde de sol
maior sol – si – ré) em primeira inversão. Esse detalhe permite perceber que são os
finais de frase aqueles momentos em que resquícios da tonalidade de sol maior
aparecem, servindo de contraste com a polifonia do início das frases. Esse contraste
entre final de frase com possibilidade tonal e meio de frase polifônico atonal acaba
por apresentar suma importância nas características harmônicas referentes à obra
em questão.

Além desse, há um detalhe ainda mais implícito no início da primeira frase


(compasso 2), cujas notas mi e sol formam tônica e terça do acorde de mi menor,
embora esse seja uma hipótese mais de mais difícil sustento. O fator responsável
pela consideração do primeiro tempo do compasso 2 como sendo um acorde de mi
menor com a quinta omitida é apenas a possibilidade de uma simetria harmônica
cíclica entre as frases antecedente e conseqüente: o período inicia-se no tom da
relativa menor (compasso 2), culmina no tom da tônica (compasso 5) e retorna ao
tom da relativa no compasso 9, formando uma seqüência harmônica vi – I – vi
implícita no emaranhado atonal que ocorre no restante do período. Um terceiro
ponto a ser considerado no período, em termos harmônicos, vem a ser a presença
de estruturas de quartas no decorrer a obra: essas estruturas aparecem não só na
base da estrutura homofônica, como também de forma mais omissa em trechos de
estrutura polifônica:
71

Figura 57 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 6 – 11. Estruturas de
quartas no primeiro período.39

A figura 57 mostra o trecho do primeiro período onde há a forte presença do


intervalo de quarta na estrutura harmônica. No compasso 6, o intervalo aparece na
tessitura polifônica em forma de quartas paralelas, estrutura essa que logo a partir
do compasso 7 passa a ser homofônica, servindo de acompanhamento para a
melodia. Observa-se, então, que a estrutura quartal engloba tanto trechos do
acompanhamento como também da melodia, caminhando de modo paralelo e
descendente. Um último trecho a ser observado é aquele que engloba os
compassos 9 a 11: no momento em que se alcança a nota final da melodia, inicia no
acompanhamento uma contramelodia descendente na voz superior do
acompanhamento, cujo complemento é feito com intervalos harmônicos de quarta e
segunda:

Figura 58 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 9 – 11, clave inferior.

O fator de atenção desse trecho se refere ao âmbito das notas: a estrutura é


feita sobre todas as notas da escala frigia de mi: mi – fá – sol – lá – si – dó – ré – mi.
Muito embora a seqüência intervalar da figura 58 seja desenvolvida sobre a escala
em questão, um resultado sonoro característico desse modo é dificilmente percebido
nessa passagem, principalmente devido aos contrastes existentes nos arredores do
trecho. Convém apenas mostrar a existência da possibilidade de um trecho modal
para enfatizar o caráter contrastante da harmonia da obra, passando não somente

39
Omitiu-se, assim como na figura 54, a nota melódica anacruse do segundo período para fins de
clareza ilustrativa dos objetivos da figura.
72

por trechos atonais e tonais, como também modais. O segundo período possui
exatamente a mesma melodia do primeiro, dividido igualmente em antecedente e
conseqüente, porém com acompanhamento diferente daquele utilizado pelo
compositor no primeiro período da seção:

Figura 59 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 12 – 21. Segundo
período.

A primeira diferença entre os períodos a ser observada é a ausência de notas


com acidentes no acompanhamento durante o trecho polifônico, como pode ser
observada no primeiro sistema da figura 59. Essa ausência de acidentes, aliada à
independência das duas vozes, tende a revelar interposições modais, como
observado na frase antecedente das duas vozes (de acordo com a figura abaixo):

Figura 60a - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 12 – 15, clave
superior. Frase antecedente.
73

Figura 60b - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 12 – 16, clave inferior.
Frase antecedente.

A figura 60a mostra uma frase de caráter anacrústico e tônica em sol,


podendo pertencer a dois distintos modos: jônio e mixolídio. O fato de a frase
conseqüente conter o sétimo grau sustenido (fá#) é decisivo na escolha do modo
jônio para a frase antecedente. A figura 60b mostra uma frase de caráter acéfalo,
com tônica em lá, enquadrando-se no modo eólio. Esse é mais um caso de
interposição modal característico da escrita do compositor.40

Assim como no período anterior, a frase conseqüente é marcada pelo


contraste das tessituras polifônica e homofônica. Como observado nas figuras 60a e
60b, as duas linhas melódicas da frase antecedente não possuem exatamente o
mesmo tamanho: a frase conseqüente da voz superior (segunda metade do
compasso 15 ao compasso 21) inicia enquanto a frase antecedente da voz inferior
ainda não terminou, vindo a assumirem um caráter homofônico somente na segunda
metade do compasso 17.

Além da diferença na parte polifônica, a parte homofônica também apresenta


algumas diferenças com relação ao primeiro período: em ambos os períodos as
quartas paralelas iniciam exatamente no mesmo ponto da melodia folclórica, porém
há uma breve mudança de altura de nota, além de uma diferença na estrutura
rítmica, como mostra a figura abaixo:

Figura 61a - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 7 – 11, clave inferior.

40
Característica observável, também, na segunda peça do ciclo “Cai, cai, balão”.
74

Figura 61b - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 17 – 21, clave inferior.

Essa pequena diferença de meio tom entre o início da cada uma das
estruturas da figura 61 é suficiente para causar uma mudança no resultado
harmônico final: a última nota da melodia forma (início do compasso 19) um acorde
por quartas ao invés de um por terças como o de mi menor do início do compasso 9,
fazendo com que agora não haja uma estrutura tonal como anteriormente. Apesar
das diferenças, ambas as estruturas culminam na nota dupla fá – sol (observável na
figura 61) que acaba por criar uma sensação de unidade na estrutura harmônica,
uma vez que essa nota dupla é responsável por conduzir a harmonia de volta ao
início da melodia. Assim sendo, esse intervalo de segunda maior 41 acaba por
assumir extrema importância no direcionamento da obra, uma vez que o mesmo se
encontra em todas as anacruses dos inícios de período (com exceção da anacruse
inicial).

Em suma, o segundo período da seção é caracterizado harmonicamente pela


presença de uma interposição modal entre duas linhas polifônicas, bem como a
presença de acordes formados por quartas (observável nas cabeças de tempo dos
compassos 18 e 19.

Para finalizar, a casa 2 da repetição representa a coda da obra, onde o já


citado intervalo de segunda maior fá – sol aparece de forma constante na clave
inferior e uma pequena melodia surge na clave inferior, como mostra a figura 62
abaixo:

41
Intervalo característico do “mini-cluster”.
75

Figura 62 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 21 – 23. Coda.

Um detalhe presente na coda é a presença de uma relação intervalar da


melodia que expõe o principal acidente ocorrente utilizado no decorrer da obra: fá
sustenido – fá natural, que ocorre no acompanhamento homofônico das quartas
paralelas. Essa relação acontece a partir dos dois intervalos de terça, maior e
menor, formados pelas notas da voz superior nos compassos 22 e 23. Talvez a
união das notas da melodia com as do acompanhamento possa sugerir um acorde
de sétima com a terça omitida, o que significaria um acorde final com ambigüidade
de modo (uma vez que a falta da terça permite imaginá-lo como acorde maior ou
menor), dando à coda um significado harmônico mais concreto do que simplesmente
a relação intervalar sugerida pela melodia. Considerando-se a hipótese do acorde
ambíguo no final, a tônica do mesmo é sol, o que acaba por dar mais um significado
para a tonalidade sugerida de sol maior para a melodia folclórica e para o contraste
harmônico entre tonalismo e atonalismo existente na obra.

2.5.2 – Forma e estrutura: “Ciranda, cirandinha” é uma obra em forma de


peça característica que apresenta uma estrutura diferente das usuais: o sinal de
repetição entre os compassos 2 e 21 indica uma única seção, com a presença de
uma pequena coda após a repetição.

Primeiramente, analisar-se-á o conteúdo musical que se encontra dentro dos


sinais de repetição: há uma grande similaridade entre os dois períodos musicais –
devido à presença do tema folclórico em ambos – que permitiria chegar à conclusão
de que a obra possui uma estrutura AA‟ (com coda) caso não existisse o sinal de
repetição. Porém, a barra de repetição acaba por tornar os dois períodos em uma
única seção, cuja repetição é diferenciada pela coda e pela anacruse inicial da voz
inferior.

Assim sendo, o que se apresenta nessa obra é uma estrutura interna AA‟
(variação) – representada pelos dois períodos existentes dentro da seção – contida
dentro de uma estrutura externa AA (recorrência) representada pelos sinais de
repetição. O que diferencia as diferentes partes da estrutura interna são os
diferentes acompanhamentos da melodia folclórica que tornam os períodos
similares, porém diferentes. Já as grandes partes (seções) são diferenciadas pelos
“arredores” da repetição, ou seja, o compasso 1 e as casas 1 e 2 da repetição, que
76

contém materiais diferentes entre si e são responsáveis por tornar as seções


externas similares, porém diferentes, assim como as partes internas.

Figura 63a - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 1 – 5. Início da seção
A1.

Figura 63b - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 21 e retorno ao
compasso 2 – 5. Início da seção A2.

As figuras 63a e 63b mostram como seria a leitura se a repetição fosse escrita
por extenso, com as semelhanças e diferenças entre si. A figura 63c abaixo mostra o
final da seção A2 a partir do mesmo compasso 21, expondo a diferença entre o a
repetição da seção e o fim da mesma:

Figura 63c - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 21 – 23. Seção A2.
Coda.

Uma vez que o conteúdo dos períodos um e dois é o mesmo dentro dos
sinais de repetição, essas pequenas diferenças de casa 1 e casa 2, que tornam as
77

grandes seções brevemente diferentes entre si, não impõem um caráter de variação
entre as seções, chegando-se à conclusão da estrutura AA coda para esta obra.

2.5.3 – Fraseologia e rítmica: “Ciranda, cirandinha” apresenta uma estrutura


fraseológica baseada no princípio da repetição melódica, utilizando da variação no
acompanhamento para dar riqueza à obra. Sem levar em conta o sinal de repetição,
a obra apresenta dois períodos divididos em duas frases cada, além de uma
pequena coda. A figura abaixo representa a divisão fraseológica do primeiro período
da peça:

Figura 64 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 1 – 11. Primeiro período
dividido em duas frases (representadas pelas grades ligaduras).

O primeiro detalhe na figura 64 se refere ao caráter inicial da frase: seria ele


acéfalo42 ou anacrústico? O sinal de repetição colocado no compasso 2 acaba
deixando uma dúvida a respeito do primeiro compasso, cuja possibilidade de ser
uma anacruse de um tempo para o compasso após a barra de repetição, não pode
ser descartada. O sinal de repetição colocado a partir do segundo compasso 43 torna
irrelevantes as pausas anteriores ao material sonoro inicial. Assim sendo, a hipótese
de um início anacrústico é sustentável, cujo exemplo é mostrado na figura 65 e
modificaria a quantidade total de compassos da obra (22 ao invés de 23).

42
Como no caso de “Cai, cai, balão”.
43
O número do compasso está designado conforme a edição pertencente à Biblioteca Renée
Devrainne Frank SEEC, cujo primeiro compasso é preenchido na escrita com pausas antes do início
musical propriamente dito, conforme a figura 64.
78

Figura 65 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Hipótese de início anacrústico
(fazendo com que o primeiro período corresponda aos compassos 1 a 10 ao invés de 1 a 11).

Voltando para a análise do primeiro período da peça, nota-se que as frases


antecedente e conseqüente possuem pouca variação rítmica, sendo formadas
basicamente por colcheias durante todo o tempo, com exceção à ultima nota de
ambas as frases. A partir dessa verificação, chega-se à conclusão de que o inciso
fraseológico da obra possui caráter melódico.

Uma hipótese de inciso fraseológico da obra vem a ser o intervalo de terça na


melodia, que aparece em locais importantes do período como no início e no fim,
conforme a figura 66:

Figura 66 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 1 – 11. Intervalos de
terça no primeiro período.

Dos intervalos sublinhados na figura acima, os dois primeiros e os três últimos


são os principais responsáveis pela hipótese, devido principalmente a dois fatores:
os mesmos encontram-se em lugares estratégicos, como proximidades de início e
79

de fim do período, e possuem construção diferente. O primeiro fator é importante


devido ao impacto auditivo que os intervalos causam por serem início e fim de idéia
musical. A importância do segundo fator se deve ao contraste entre intervalos
ascendentes sucessivos (dois primeiros sublinhados) e intervalos descendentes
quebrados (três últimos sublinhados), que ressaltam os dois extremos do período.
Esses são dois pontos de importância na sustentação do intervalo de terça como
inciso fraseológico da obra.

Outro aspecto é a presença do intervalo de segunda na construção melódica.


Ao se analisar a melodia, observa-se que a mesma é inteiramente construída com
intervalos de segunda e terça (com exceção ao intervalo de quarta entre a anacruse
e a primeira nota do primeiro compasso e ao intervalo de sétima menor no
compasso 7), o que confere ao intervalo de segunda uma importância equivalente
àquela conferida ao intervalo de terça. O que leva a se considerar o intervalo de
terça, e não o de segunda, como inciso da obra é a forma como o intervalo de terça
aparece implicitamente entre as notas das cabeças de tempo dos compassos. A
figura abaixo apresenta a melodia reduzia às notas em questão, procurando
evidenciar a importância do intervalo de terça na construção melódica:

Figura 67 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 2 – 9. Melodia da


canção reduzida às notas que compõem as cabeças de tempo dos referidos compassos.

Novamente o intervalo aparece em locais importantes como o início das


frases antecedente e conseqüente, representados na figura pelos colchetes
superiores (além de outros pontos representados pelos colchetes inferiores). O
intervalo de segunda aparece expressivamente apenas no final da melodia reduzida
(3 últimos compassos), não possuindo a mesma presença do intervalo de terça na
construção da frase.

Até o momento, toda a análise sobre o inciso fraseológico da peça foi


baseada apenas na linha melódica da canção folclórica, ou seja, sem levar em
consideração a contribuição do compositor. Ao se encaixar a melodia com o
acompanhamento criado por Henrique de Curitiba, passa a surgir alguns aspectos
80

com relação ao inciso da melodia. O primeiro deles se refere ao acompanhamento


melódico nos compassos 7 a 11: todas as notas duplas são formadas por intervalos
de quarta e segunda, ou seja, o compositor utiliza os intervalos menos expressivos
da melodia folclórica para compor a contramelodia do acompanhamento, conforme
mostra a figura abaixo:

Figura 68 - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 7 – 11, clave inferior.

Ao se unir o acompanhamento da figura 68 com a respectiva parte da melodia


(referente aos compassos 7 – 11), nota-se que os intervalos em questão são ainda
mais valorizados a partir do compasso 9, momento onde a melodia folclórica termina
e dá espaço para a contramelodia. Assim sendo, observa-se um contraste entre o
intervalo do inciso fraseológico da melodia folclórica e os intervalos harmônicos
utilizados no acompanhamento feito pelo compositor, que – coincidentemente ou
não – são os intervalos pertencentes à melodia que não fazem parte do inciso
fraseológico da mesma, o que permite dizer que houve uma exploração de uma
parte menos expressiva da melodia na composição do acompanhamento nessa
peça.

O segundo período apresenta exatamente a mesma melodia folclórica,


apenas com algumas pequenas diferenças quanto ao acompanhamento. Embora
haja pequenas diferenças, o acompanhamento do segundo período igualmente
valoriza os intervalos de segunda (melodicamente) e quarta (harmonicamente),
conforme mostram as figuras 69a e 69b:

Figura 69a - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 12 – 16, clave inferior.
Acompanhamento melódico, cujo trecho marcado com colchete representa a valorização do intervalo
de segunda.
81

Figura 69b - Primeiro Caderno da Karina nº5: Ciranda, cirandinha. Compassos 17 – 21, clave inferior.
Acompanhamento melódico, cujo trecho marcado com colchete representa a valorização do intervalo
de quarta.

Em ambos os períodos, o acompanhamento melódico busca ressaltar os


intervalos menos presentes na melodia folclórica, dando maior importância ao
intervalo de quarta, presente unicamente, na melodia, na anacruse do primeiro
compasso. Após toda a valorização dos intervalos de segunda e quarta, o intervalo
de terça, volta a ser valorizado na pequena coda da peça, conforme o mostrado na
figura 63c. Nota-se que enquanto o intervalo de terça compõe o trecho melódico da
coda, o intervalo de segunda compõe o trecho harmônico da mesma, dando a
impressão de agora salientar a antiga questão sobre os intervalos de segunda e de
terça no inciso fraseológico da melodia folclórica.

Quanto ao aspecto rítmico da obra, há a célula rítmica colcheia – colcheia –


semínima, que se apresenta no momento em que o intervalo de quarta é mais
valorizado no acompanhamento melódico (compassos 9 – 10 e compassos 19 – 21).
Talvez esse seja o único aspecto de caráter rítmico a ser ressaltado na obra, além
de que tanto frase antecedente quanto frase conseqüente é formada basicamente
pela constância rítmica de colcheias (com exceção à última nota de cada frase).

2.6 – TERESINHA DE JESUS

2.6.1 – Harmonia: “Terezinha de Jesus” é a primeira peça do ciclo com uma


melodia escrita em modo menor (no caso, modo menor natural). Levando-se em
consideração somente a melodia, não se pode, neste caso, atribuir a ela a
tonalidade de ré menor devido à ausência da nota sensível (dó#) em seu conteúdo,
nota essa que é fundamental para a definição da tonalidade. Para ser caracterizada
como melodia totalmente tonal, deveria haver um dó# no lugar da nota dó, no
compasso 6 (vide figura 70a), o que garantiria ao sétimo grau alterado uma função
de sensível.
82

Figura 70a - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 9, clave inferior.
Melodia da canção folclórica.

Embora a melodia, que está escrita no modo eólio de ré, não possua a nota
sensível característica da tonalidade de ré menor, ainda assim é possível associá-la
a essa tonalidade, para isso utilizando o artifício de denominar determinadas notas
como sendo não pertencentes ao acorde, conforme a figura 70b:

Figura 70b - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 9, clave inferior.
Progressão harmônica simples da melodia folclórica.

Considerando as notas marcadas na figura 70b como sendo apojaturas em


relação às notas principais do acorde, a progressão harmônica indicada se torna
compatível com a melodia, sendo essa sucessão harmônica de uso comum para o
acompanhamento harmônico dessa melodia folclórica. Notar-se-á que, ao se
associar a melodia com o acompanhamento criado pelo compositor, a progressão
harmônica indicada na figura 70b ocorre, embora camuflada em um movimento de
vozes mais complexo, na maior parte da peça (exceção à coda).

O acompanhamento da melodia (clave superior) consiste, em sua maior parte


(novamente com exceção à coda), de duas vozes que a princípio parecem ser
independentes entre si a ponto de caracterizarem uma polifonia. Na maioria dos
83

compassos (2 – 8), essas duas vozes caminham ora em direções opostas e ora
paralelas, sempre iguais ritmicamente e com início acéfalo, conforme a figura 71:

Figura 71 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 8, clave superior.
Acompanhamento da melodia (clave inferior).

A figura 71 mostra o acompanhamento, originalmente escrito em notas duplas


(duas notas escritas com a mesma haste), dividido em duas vozes distintas, para
melhor verificar a relação de movimento entre ambas. Entre os compassos 2 e 5,
essa relação se faz em forma de movimento contrário, na qual as vozes saem de um
intervalo de quinta justa e caminham em direção a uma segunda maior (primeira e
segunda ligaduras de frase da figura). Essa relação muda entre os compassos 6 e 8,
com as vozes caminhando agora em movimento paralelo entre si. As duas vozes
(notas duplas) do acompanhamento, por si só, parecem não ser o suficiente para
dizer o que ocorre harmonicamente (aspectos tonais) na obra, ou então suas
combinações induzem a acordes que, como será observado posteriormente, diferem
daqueles induzidos a partir da combinação das duas vozes com a linha melódica.

Considerar-se-ão, entre os compassos 2 e 5, as mínimas como sendo notas


do acorde e as semínimas como nota de passagem. O primeiro intervalo entre as
vozes (compasso 2) é uma quinta justa dó – fá, cuja relação mais identificável é a de
tônica e quinta do acorde de fá maior com a terça omitida (relativo de ré menor,
tonalidade relacionada à melodia folclórica). O segundo intervalo de importância
harmônica é uma segunda maior sol – lá, o que, colocando-se em relação de tônica,
indica uma sétima menor invertida e faz essa relação induzir ao acorde de lá maior
com sétima (dominante de ré menor). O terceiro intervalo de importância harmônica
é outra quinta justa, sib – fá, que induz ao acorde de si bemol maior (sexto grau de
ré menor) e o quarto intervalo harmonicamente importante é outra segunda maior,
dó – ré, que, seguindo o mesmo exemplo do intervalo de segunda anterior, indica o
acorde de ré maior com sétima (dominante do quarto grau). É necessário ressaltar
que esses não são os únicos acordes possíveis de serem formados com as notas
84

duplas em questão, mas convém aqui utilizá-los por questões de afinidade com a
tonalidade de ré menor. O resultado harmônico sugerido é mostrado na figura
abaixo:

Figura 72 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 2 – 5, clave superior.
Harmonia sugerida pelos intervalos entre as notas das mínimas.

Os dois grupos, ritmicamente idênticos, representam pequenos fragmentos de


frase (como se observa na figura 71) que tornam o acompanhamento, de certa
maneira, polifônico em relação à melodia. Quando ocorre a união do
acompanhamento com a melodia folclórica, esse aspecto polifônico entre as vozes
superiores e a voz da melodia folclórica pode gerar ambigüidade harmônica. Essa
ambigüidade ocorre principalmente no momento após as notas duplas de passagem,
em semínimas, na clave superior, que é quando as mínimas formam uma segunda
maior e têm grande tendência a indicar um acorde de dominante (como visto na
figura 72). Quando essa nota dupla em intervalo de segunda maior é relacionada
com a nota da melodia (sublinhada na figura 73), percebe-se que o intervalo de
segunda passa a ter uma maior tendência a representar as notas quarta e quinta do
acorde de tônica (ao invés de tônica e sétima do acorde da dominante).

Figura 73 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 5. Harmonia


sugerida a partir das notas em grifo.

A primeira diferença harmônica em relação à figura 72 aparece logo no


primeiro acorde (compasso 2), onde as notas fá e dó, da clave superior, passam a
85

ser, respectivamente, terça e sétima do acorde da tônica, evidente na clave inferior.


Com a presença da nota ré na clave inferior do terceiro compasso, as notas sol e lá,
grifadas na clave superior, passam a se relacionar com ela e formam o acorde ré –
sol – lá, ou seja, um acorde com quarta apojatura – sem sua consecutiva resolução
natural na terça. O mesmo que no compasso 4, onde a presença da nota sol grifada
na clave inferior fazem com que as notas sib e fá da clave superior se relacionem
com ela, formando o acorde sol – sib – fá, ou seja, iv com omissão da quinta. No
compasso 5 ocorre o mesmo que no compasso 3, onde se forma um acorde de
quarta apojatura – sem sua resolução natural na terça.

Nota-se, então, que ocorre, em ambos os fragmentos de frase da clave


superior, a progressão harmônica x7 – x54, onde x representa a tônica no primeiro
fragmento (compassos 2 – 3) e representa a subdominante no fragmento seguinte
(compassos 4 – 5). Essa semelhança mostra um pequeno padrão de progressão
harmônica que ocorre nesse início de peça. Uma das ambigüidades harmônicas
anteriormente mencionadas pode ser constatada no compasso 3, onde a forte
dissonância da nota dupla sol – dó pode exercer maior influência no resultado
harmônico do que a nota ré da melodia. Se, neste ponto, se tomar como verdadeira
essa influência, o acorde resultante passa a ser o de lá maior com sétima, já exposto
na figura 72, que é reforçado pela notas colcheias (na nota lá) da melodia, no último
tempo do compasso. O mesmo ocorre no compasso 5, onde a dissonância dó – ré
pode influenciar o resultado harmônico e formar o acorde resultante de ré maior com
sétima (dominante do quarto grau de ré menor) , também já mostrado na figura 72,
que é reforçado pela ultima colcheia (nota lá) da melodia no compasso. Essa
possível ambigüidade harmônica é a principal razão para se considerar a progressão
harmônica da clave superior comentada na figura 72, por mais que a tendência
harmônica seja maior em seguir a progressão mostrada na figura 73.

Passando agora à análise dos compassos 6 – 8, primeiramente observar-se-á


a clave superior, ou seja, o acompanhamento da melodia. Enquanto, no trecho
analisado anteriormente, as vozes caminhavam em direções opostas, entre os
compassos 6 e 8 as vozes caminham em movimento paralelo descendente,
movendo-se sempre em intervalos de terça, conforme a figura 74a:
86

Figura 74a - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 6 – 8, clave superior.
Acompanhamento da melodia folclórica.

Para encaixar a melodia à tonalidade de ré menor, considerou-se a nota dó


natural como sendo uma apojatura superior de si bemol (nota seguinte a esse dó na
melodia), assim como outras notas mostradas na figura 70b. De acordo com a
progressão harmônica sugerida na figura 70b, os compassos 6 e 8 estão,
respectivamente, sob as funções harmônicas iv – i64 – V7. Nota-se, na figura 74b a
seguir, que em nenhum momento as terças da clave superior se compõem de notas
que pertencem aos acordes das funções harmônicas da figura 70b, salvo a terça mi
– sol do compasso 8 que representam quinta e sétima do acorde de dominante de ré
menor. Dessa forma, ao se considerar somente a análise vertical desses
compassos, uma das possibilidades harmônicas desse trecho vem à tona ao se
considerar, dentro de cada compasso, as notas melódicas que possuem maior
afinidade com a respectiva terça da clave superior.

Figura 74b - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 6 – 8.

Na figura acima, as notas grifadas na melodia são aquelas mais propícias a


formarem estruturas acordais mais tonalmente identificáveis quando em relação com
as respectivas terças do acompanhamento. Todas as notas grifadas na figura 74b,
ao se encaixarem às respectivas terças na clave superior do compasso, tornam a
formação vertical resultante das duas claves apenas uma terça, revelando um trecho
de harmonia tonalmente ambígua. Assim sendo, uma análise vertical dentro de cada
compasso (como a mostrada na figura 74b) não induz a uma progressão harmônica
87

tonalmente definida, sem contar que a simultaneidade exata das notas da melodia
com as do acompanhamento levaria, em três dos quatro casos da figura 74b, na
formação de clusters.

Partindo-se para uma análise horizontal desse mesmo trecho (compassos 6 –


8), ocorrem algumas possibilidades harmônicas. As terças da clave superior,
mostradas na figura 74a, mostram um desenho melódico descendente em direção
da tônica ré, o que permite dizer que tanto melodia quanto acompanhamento
caminham em direção a uma tônica em comum. Considerando como apojaturas as
notas melódicas grifadas no segundo sistema da figura 70b, aparece uma relação
harmônica horizontal com a clave superior que leva à seguinte questão: poderia o
acompanhamento dos compassos 6 a 8 estar harmonicamente deslocado, formando
uma espécie de retardo de um compasso em relação à melodia? Torna-se mais fácil
entender essa questão ao se comparar a figura 74b com a figura 75a abaixo:

Figura 75a - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Mudança no acompanhamento
melódico entre os compassos 6 e 8.

A figura 75a mostra o acompanhamento do trecho em questão reescrito,


eliminando-se a primeira terça lá – dó e ajustando-se as conseguintes para obter,
com o material da clave superior, o melhor resultado harmônico vertical possível. É
possível perceber a progressão iv – i64 – V7, mencionada anteriormente, presente
nessa passagem. Essa comparação mostra que, de certa forma, há um
deslocamento horizontal, de um compasso, que produz uma sensação de retardo
harmônico nesse trecho, ou seja, é como se a melodia seguisse essa progressão a
partir do compasso 6, enquanto que o acompanhamento inicia a mesma progressão
no compasso 7, conforme a figura 75b:
88

Figura 75b - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 6 – 8. Deslocamento
horizontal da progressão harmônica sugerida na figura 70b.

Nota-se, então, que as funções harmônicas, deslocadas entre a melodia e as


vozes paralelas do acompanhamento, só se encontram no último tempo do
compasso 8, ou seja, logo antes de a melodia alcançar seu descanso final na nota
ré (compasso 9). Levando-se em consideração que harmonia é, por essência, um
aspecto referente à verticalidade na música, essa é uma possibilidade harmônica
incomum, uma vez que o compositor utilizou de aspectos horizontais para definir
uma característica vertical da composição musical.

A última nota da melodia folclórica corresponde ao início da coda, revelando a


presença de uma pequena elisão. Enquanto a melodia esteve o tempo todo na clave
inferior, na coda ocorre uma contra melodia na clave superior, sendo basicamente
uma espécie de resposta à melodia folclórica, como mostra a figura abaixo:

Figura 76 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 9 – 11. Coda.

Harmonicamente, o que ocorre na coda é a presença de um pedal de tônica


que sustenta uma contramelodia a duas vozes na clave superior, ou seja,
89

novamente a harmonia possui uma característica mais horizontal do que vertical.


Nota-se, nesse trecho, um recurso até então não utilizado, neste ciclo, pelo
compositor: a presença de um acidente ocorrente de execução opcional, indicado na
figura 76 pelo número 1. Ainda que a expressão do mesmo seja mais de cunho
melódico devido ao caráter horizontal da passagem, a opção entre fá sustenido ou fá
natural acaba exercendo uma influência harmônica. Nesse caso, se o fá for
sustenido, o resultante vertical é a terça maior ré – fá#, que induz ao acorde de ré
maior, enquanto que o fá natural leva à terça menor ré – fá, induzindo o acorde de ré
menor com quinta omitida, conforme a figura abaixo.

Figura 77 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compasso 9. Possibilidades de


acordes verticais formados a partir da nota com acidente opcional.

A figura acima serve apenas para mostrar a diferença vertical harmônica


resultante da escolha entre a utilização do fá natural ou do fá sustenido, na clave
superior do compasso 9. A possibilidade de escolha entre o fá natural e o fá
sustenido pode ter sido um artifício que o compositor encontrou para expressar a
importância dessa terça no desenvolvimento harmônico da peça, uma vez que, em
todas as outras ocasiões cadenciais presentes na obra, a quarta permanece sem
sua resolução tonal natural.
90

Os dois últimos compassos da coda apresentam um movimento paralelo que


culmina, novamente, nas notas sol e lá, que representam quarta e quinta do acorde
de ré, cuja fundamental se encontra presente na clave inferior. Ao se simplificar as
linhas melódicas das vozes superiores da coda retirando as notas de passagem, se
torna mais claro o direcionamento de ambas as melodias, conforme mostra a figura
78:

Figura 78 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 9 – 11. Simplificação da
direção melódica das vozes na coda.

A figura 78 mostra mais uma vez a presença do acorde de quarta apojatura


na peça, evidenciando a não resolução natural da mesma. O fato de esse ser o
acorde final da obra mostra que a nota de acidente opcional do compasso 9 tem o
poder de definir em que modo a coda se encontra, uma vez que fundamental e terça
definem o modo maior e o modo menor. Dada a função de ambigüidade modal que o
acorde com quarta representa na peça, é importante, neste ponto, considerar como
componentes da harmonia as notas duplas em semínimas dos compassos 3 e 5
(clave superior), outrora considerados apenas como notas de passagem (figura 72).
A figura 79 mostra a harmonia vertical dos compassos 2 e 3, quando considerados
os acordes formados entre a nota da clave inferior e a nota dupla em semínima da
clave superior:

Figura 79 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 2 – 3. Harmonia.


91

Observa-se que, no primeiro acorde, há um intervalo de terça menor entre as


notas ré e fá, enquanto que no segundo acorde há uma terça maior (ré – fá#) e, no
terceiro, uma quarta justa entre as notas ré e sol. Ocorre que, nos momentos onde
melodia não expõe a nota fá natural, o compositor escreve, no acompanhamento, a
nota fá sustenido, o que transforma o acorde, outrora ré menor, em ré maior. Após a
escrita desse acorde, há um próximo acorde onde a característica modal não
aparece devido à ausência da terça. Nota-se, então, a seqüência menor – maior –
ambíguo sobre um mesmo acorde, o que leva à conclusão de que mais uma vez o
acorde de quarta aparece como elemento causador de ambigüidade harmônica na
peça.

O mesmo recurso harmônico aparece nos compassos 4 a 6, ratificando não


só a importância das notas duplas outrora consideradas não harmônicas, mas
também desse jogo modal expresso através da seqüência de acordes supracitada.
Finalizando, este é mais um caso em que vem a tona uma característica do
compositor: utilizar uma harmonia não muito complexa, porém escondendo-a por
detrás de uma complexidade aparente44. O acompanhamento de “Terezinha de
Jesus” pode, dessa forma, fazer parte da nova concepção de tonalidade procurada
pelo compositor Henrique de Curitiba (NETO, Manoel J. De Souza, 2004).

2.6.2 – Forma e estrutura: provavelmente, “Terezinha de Jesus” é a peça


cuja forma livre de peça característica adquire, literalmente, o sinônimo “peça curta”.
Sua estrutura consiste de uma única seção, onde a melodia folclórica é exposta uma
única vez. Este é um raro caso onde a estrutura musical A aparece em uma obra de
peça característica, assim como é o único caso entre as obras do ciclo “Primeiro
Caderno da Karina” que possui, inevitavelmente, essa estrutura.

Seguindo-se a comparação, esta é a primeira obra do ciclo de estrutura mais


curta do que o comum, o que termina por causar um contraste cronológico dentro do
ciclo. Ainda assim, a observação interna da estrutura serve para evidenciar mais
uma vez a característica do compositor de organizar várias idéias musicais em um
intervalo de tempo e espaço bastante curto. Em 11 compassos de música, se
observa: ambigüidade harmônica, contraponto, opção de execução de uma

44
Essa mesma característica pode ser observada nos clusters do acompanhamento da primeira peça
do ciclo, “Atirei um pau no gato”, que camuflam as notas da harmonia mais comum para aquela
melodia folclórica.
92

determinada nota com acidente ou sem, sendo que todos esses elementos também
são encontrados em uma coda de apenas três compassos. A estrutura contém todas
as características presentes em uma peça regida pelo sistema tonal: começo, meio
e fim.

A seção A pode ser subdividida em três pequenas sub seções que


correspondem à fraseologia da peça, que será estudada logo a seguir: compassos 1
– 5, compassos 6 – 8 e compassos 9 – 11, significando, respectivamente, A1, A2 e
A3. Essa talvez seja, nesse caso, a forma máxima de se subdividir uma única seção
na qual todo o material musical se desenvolve. Outra possibilidade seria a de duas
sub seções, A1 e A2, onde a primeira apresentaria a melodia folclórica e a segunda,
a contra melodia da coda. Finalizando, seguem abaixo as duas subdivisões da
seção, cujos detalhes serão apresentados no estudo da fraseologia de “Terezinha
de Jesus”.

Figura 80a - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 11. Possibilidade
de seção dividida em três partes.

Nesse caso, a diferenciação entre as subseções seria:

 Subseção A1: acompanhamento com as vozes caminhando em


movimento contrário.
 Subseção A2: acompanhamento com as vozes caminhando em
movimento paralelo.
93

 Subseção A3: contra melodia da coda.

Figura 80b - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 11. Possibilidade
de seção dividida em duas partes.

Tem-se, nesse caso, a seguinte diferenciação:

 Subseção A1: melodia folclórica.


 Subseção A2: contra melodia da coda.

É de bom cunho que aqui se ressalte as características das subdivisões da


seção em 2 e em 3. AS três subdivisões da figura 80a são embasadas
principalmente nas diferenças presentes no acompanhamento melódico, enquanto
que as duas subdivisões da figura 80b tomam por base a divisão fraseológica entre
a melodia folclórica e a contramelodia da coda.

2.6.3 – Fraseologia e rítmica: “Terezinha de Jesus”, por se tratar de uma


obra de aspecto polifônico, apresenta uma fraseologia influenciada pela voz da
melodia folclórica e por aquelas que compõem o acompanhamento da mesma.
Primeiramente analisar-se-á a melodia folclórica: a seção (única nesta peça) é
composta de uma única execução da melodia folclórica na clave superior, que aqui
será considerado como período da obra. Esse período percorre os 11 compassos da
94

peça45 e é dividido em duas frases de 5 e 6 compassos, respectivamente, conforme


a figura abaixo:

Figura 81 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 11, clave inferior.
Melodia folclórica dividida em duas frases (compassos 1 – 5 e compassos 6 – 11, respectivamente).

Nota-se primeiramente uma extensão na duração da segunda frase, motivo


esse devido à presença de uma nova frase, na clave superior, entre os compassos 9
e 11, que será analisada posteriormente. A principal característica de ambas as
frases é a constância rítmica, que permite subdividir a primeira frase em duas sub-
frases que seguem o mesmo padrão rítmico e variam entre si através da disposição
intervalar. O recurso utilizado pelo compositor para realçar o efeito da divisão da
primeira frase foi o de compor um fragmento fraseológico, também de caráter
rítmico, que se encaixa perfeitamente na proporção de metade da frase, o que
matematicamente enfatiza uma subdivisão da primeira frase, conforme a figura
abaixo:

Figura 82 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 2 – 5. Subdivisão da


primeira frase.

45
Poderiam ser excetuados os dois primeiros tempos do primeiro compasso, pois se compõem
apenas de pausas e, com a ausência de um sinal de repetição, se tornam existencialmente
irrelevantes. Porém, por motivos da edição da Biblioteca Renée Devrainne Frank SEEC é
conveniente considerar os dois tempos em questão como componentes da obra.
95

A figura acima deixa mais clara a presença de uma constância rítmica tanto
entre as sub-frases como entre os fragmentos fraseológicos que compõem o
acompanhamento. Pode-se também observar uma similaridade entre as células
rítmica das sub-frases e dos fragmentos fraseológicos: grande parte da célula
rítmica das sub-frases tem relação de diminuição com a célula rítmica dos
fragmentos fraseológicos, o que mostra um padrão entre as mesmas. A figura
abaixo apresenta essa relação de diminuição.

Figura 83 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 2 – 3. Relação de


diminuição entre as células rítmicas da primeira sub-frase e do primeiro fragmento fraseológico.

Considerando-se que a sub-frase da melodia tem início anacrústico e que o


fragmento fraseológico tem início acéfalo, nota-se que ambos têm a mesma duração
cronológica, diferenciando-se apenas pelo deslocamento de um tempo do fragmento
com relação à sub frase. Se ambos fossem sobrepostos perfeitamente com relação
à duração, perceber-se-ia diretamente a relação de diminuição da melodia com
relação ao fragmento fraseológico nos trechos marcados, o que significa dizer que
há um breve deslocamento métrico entre as mesmas, provocando uma sensação de
balanço durante a execução, quase que um “cânone rítmico”. Esse mesmo cânone
rítmico acontece nos compassos 4 e 5, variando-se apenas a linha melódica e a
relação intervalar do fragmento. Assim sendo, pode-se dizer que a primeira frase é
uma linha melódica baseada na repetição de uma mesma célula rítmica, padrão
esse que acaba por aparecer em praticamente toda a melodia folclórica, como será
visto posteriormente.
96

Figura 84a - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Célula rítmica da primeira sub-
frase.

Sendo essa célula rítmica um elemento de grande presença na melodia de


“Terezinha de Jesus”, observa-se que o acompanhamento, para a primeira sub-
frase, escrito pelo compositor foi baseado nesse mesmo aspecto rítmico, o que
reforça a sua importância na construção da obra e, conseqüentemente, no inciso
fraseológico da mesma, como será analisado posteriormente.

A principal diferença entre as frases – além da linha melódica – é uma


variação da célula rítmica supracitada, que ocorre no compasso 6, bem como uma
extensão da última nota melódica e sua repetição uma oitava acima no último
compasso da obra. A variação da célula rítmica se dá da seguinte forma: a segunda
semínima é transformada em duas colcheias e a mínima em duas semínimas, ou
seja, ocorre uma diferença através de pontos de diminuição localizados dentro da
célula rítmica com relação à célula “original”. A célula rítmica com variação é
apresentada na figura 84b abaixo:

Figura 84b - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Variação na célula rítmica
principal.

O fato de haver essa variação na célula rítmica durante a segunda frase da


melodia folclórica faz com que uma subdivisão da mesma não seja tão adequada
quanto no caso anterior, visto que antes havia um padrão rítmico que justificava uma
subdivisão, enquanto que na segunda frase essa justificativa não acontece. Da
mesma forma que utilizou um fragmento melódico idêntico ritmicamente para, de
certa maneira, ressaltar a subdivisão da primeira frase, o compositor escreve um
acompanhamento para a segunda frase que ressalta a não-subdivisão da mesma,
pois nesse acompanhamento, além de não haver um padrão rítmico que permita
97

uma repartição da frase melódica, o encadeamento de terças paralelas funciona


como unificador da segunda frase melódica, conforme mostra a figura 85:

Figura 85 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 6 – 9. Segunda frase.

Ao se observar o acompanhamento da segunda frase, nota-se que uma


característica constante em sua construção é a presença dos intervalos de terça
descendentes e paralelos, dificultando a idéia de uma subdivisão. Por outro lado, a
diferença no acompanhamento ente as frases ressalta a diferença entre as mesmas,
o que ajuda na identificação da relação de antecedente e conseqüente. Usualmente,
a melodia é dividida em duas frases de acordo com a harmonia comum, ou seja, a
primeira frase inicia na tônica e termina na subdominante (i – iv), enquanto que a
segunda inicia na subdominante e volta à tônica através de uma situação cadencial
(iv – [i64/V7] – i). Como o acompanhamento dessa peça não é harmonicamente
claro como o mostrado na figura 72b, o recurso utilizado para estabelecer o
contraste entre as frases foi o de variar o caráter do acompanhamento entre as
mesmas.

Após observação do comportamento das duas frases e seus respectivos


acompanhamentos, passa-se agora ao inciso fraseológico. Dada a força rítmica da
melodia, é possível e provável que o inciso tenha maior qualidade em aspectos
rítmicos. A célula rítmica principal (figura 84a) é demasiada grande para ser
considerada como inciso fraseológico, o que leva a um detalhamento do mesmo em
busca de um padrão rítmico de tamanho menor que possa ser considerado como
elemento construtor da obra. Ao se analisar os 3 primeiros compassos da melodia,
nota-se que todos os compassos da peça, nota-se que as anacruses dos
compassos 2 e 3 estão escritas, na peça, com ligadura de frase (vide figura 86).
Essa ligadura reforça a idéia de que a célula rítmica colcheia – colcheia – semínima
98

pode, de fato, ser considerada como inciso fraseológico da obra, visto que essa
célula rítmica compõe praticamente todos os compassos da peça.

Figura 86a - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 3, clave inferior.

Considerando-se, na figura 86a, a mínima do compasso 3 como duas


semínimas ligadas, fica mais fácil identificar o inciso rítmico na segunda ligadura
(vide figura abaixo):

Figura 86b - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 3, clave inferior.
Inciso fraseológico, representado pela ligadura de frase.

Abaixo segue a divisão fraseológica da melodia folclórica segundo a teoria de


Riemann (apud BENT, 1987): Zweitaktgruppe para um par de unidades de motivo,
Halbsatz para frase antecedente de quatro compassos, Nachsatz para frase
conseqüente de quatro compassos e Periode para período de oito compassos.

Figura 87 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 1 – 9. Aplicação da


teoria de divisão fraseológica de Hugo Riemann na melodia folclórica.

Observa-se, na figura 87, a seqüência de semelhanças entre os diferentes


níveis estruturais da frase: a célula rítmica do inciso fraseológico (figura 86b)
compõe o par de unidades de motivo que representam o primeiro nível estrutural
99

(zweitaktgruppe). Essa estrutura rítmica presente no par de unidades de motivo é o


elemento unificador do segundo nível de organização estrutural (halbsatz), pois é
igual entre os compassos 2 – 3 e 4 – 5, variando apenas na disposição intervalar
das notas. Essa mesma estrutura rítmica é o elemento unificador também do
próximo nível de organização estrutural, que é o período: ambos halbsatz
(antecedente) e nachsatz (conseqüente) são formados pela mesma estrutura rítmica
do zweitaktgruppe, com pequena variação rítmica no compasso 6. A melodia de
“Terezinha de Jesus” é um bom exemplo de aplicação direta da teoria fraseológica
de Hugo Riemann, cujo inciso fraseológico de caráter rítmico é facilmente
observável em todos os níveis de organização estrutural, como recém comentado.

Para finalizar, um breve estudo fraseológico da coda (compassos 9 – 11):

Figura 88 - Primeiro Caderno da Karina nº6: Terezinha de Jesus. Compassos 9 – 11. Fraseologia da
coda.

Na figura 88, o trecho sublinhado com a letra “a” mostra a estrutura rítmica do
par de unidades de motivo (zweitaktgruppe), presente em trecho melódico da coda
(voz superior). A letra “b” representa a estrutura rítmica, na voz inferior, padrão do
acompanhamento entre os compassos 2 e 5, unido agora à melodia sem estar
deslocado ritmicamente em relação à ela como o que ocorreu entre os referidos
compassos 2 e 5. A letra “c” representa o elemento de variação rítmica entre as
frases antecedente e conseqüente da melodia folclórica. Nota-se na coda uma
síntese dos principais elementos formadores da melodia e do acompanhamento,
revelando mais uma vez a importância do ritmo na formação não só da melodia,
como também do acompanhamento, uma vez que a célula rítmica do
acompanhamento é, durante a melodia, deslocada em relação à mesma, enquanto
que na coda não há deslocamento. Uma vez mais nota-se a característica do
compositor Henrique de Curitiba de unir diversos elementos em um pequeno
100

espaço, característica essa observável, nessa peça, principalmente na coda, onde


elementos presentes em oito compassos de melodia e acompanhamento são
inseridos em três compassos de desfecho musical.

2.7 – FRÈRE JACQUES

2.7.1 – Harmonia: ao se observar a relação intervalar da melodia folclórica,


chega-se à conclusão de que a melodia está escrita na tonalidade de fá maior.
Embora a tonalidade da melodia seja identificada sem muitos problemas, o
estabelecimento de uma harmonização “padrão” – como tem sido feito na análise
das melodias folclóricas utilizadas neste ciclo até então – se faz com base em um
segundo aspecto. No folclore francês, a canção é comumente cantada em forma de
cânone, o que torna a harmonização menos previsível e menos dedutível do que os
acompanhamentos homofônicos comumente utilizados nas canções folclóricas
brasileiras utilizadas neste ciclo. Para, então, estabelecer uma harmonização para
“Frère Jacques”, deve-se extraí-la não simplesmente pela observação da condução
melódica, mas sim pela observação do cânone, mostrado na figura abaixo:

Figura 89 - Melodia folclórica francesa “Frère Jacques”, apresentada em cânone.

Os dois primeiros compassos representam um pequeno motivo melódico que


pode ser considerado inteiramente sob função da tônica, sendo que os próximos
101

dois compassos (3 e 4) servem de ratificação da tônica inicial, uma vez que as


disposições de intervalos harmônicos reforçam o acorde fá – lá – dó. Nos
compassos 5 e 6, a cadência plagal (IV – I) é preferível à cadência autêntica (V – I)
devido ao movimento diferente da nota si bemol das duas melodias: na cadência V –
I, o si bemol funcionaria necessariamente como sétima da dominante, cuja resolução
seria na nota lá; a nota si bemol da melodia inferior resolve em dó, tornando a
cadência plagal mais aceitável para representar o trecho harmonicamente. Já nos
compassos 7 e 8, há um único si bemol que resolve na nota lá, ou seja, funciona
como sétima do acorde de dominante, incitando a cadência autêntica melhor
representante harmônica do trecho. Os dois últimos compassos são praticamente
uma repetição harmônica dos dois compassos anteriores, com a diferença de que
agora as vozes estão em uníssono.

Os primeiros oito compassos da peça apresentam a melodia folclórica de


“Frère Jacques” com um acompanhamento melódico que torna a textura homofônica
(ao invés da polifônica tradicional do cânone). Nota-se que o encadeamento de
notas duplas na clave inferior revela um movimento descendente da voz inferior que,
de certa maneira, se relaciona polifonicamente com a melodia (clave superior)
durante os quatro compassos iniciais, porém, o resultado vertical permanece com
soberania, conforme mostra a figura abaixo:

Figura 90 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 8. Melodia folclórica com
acompanhamento homofônico.
102

Os quatro primeiros compassos revelam um padrão de progressão harmônica


não incomum e com a presença de um acorde por quartas, escrito
enarmonicamente. Nota-se a ambigüidade funcional de alguns acordes, que será
comentada a seguir.

Figura 91a - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 4. Esquema harmônico.

As ambigüidades presentes nos acordes dos terceiros tempos dos


compassos 2 e 4 se devem ao acorde anterior: as notas do primeiro tempo do
compasso 2 incitam um acorde de dominante individual do quarto grau, cuja
resolução gera o acorde de ré menor com proximidade harmônica tanto do âmbito
tonal da subdominante quanto da tônica. A ambigüidade do último acorde do
compasso quatro se deve à semelhança de construção entre esse compasso e o
anterior: no compasso três, o acorde do terceiro tempo é dó maior – dominante da
tônica; já o acorde do terceiro tempo do compasso quatro é lá menor, tônica relativa
da dominante e mediante da tônica, novamente mantendo relações bastante
próximas com os dois âmbitos tonais (dominante e tônica). Por aproximação
cromática da voz inferior do acompanhamento (clave inferior), a seqüência atinge
um acorde com ambigüidade harmônica no compasso 2 (terceiro tempo) e um
acorde de dominante no compasso 3 (terceiro tempo). A dominante atingida por
aproximação cromática tem uma forte tendência a tornar seu acorde antecedente
em subdominante, uma vez que uma das principais funções da subdominante é
direcionar para o acorde de dominante. Assim sendo, há uma grande tendência a se
considerar o acorde anterior (compasso 2, terceiro tempo), ambíguo, como sendo
uma função de passagem para a subdominante (exercida principalmente pelos
graus iii e vi da escala maior). Como, no referido caso, a dominante é dó maior, o
acorde de passagem é aquele relacionado a fá maior, ou seja, no terceiro tempo do
compasso 2, a opção mais viável é a de vi grau, ao invés de iii/IV, que seria nesse
103

caso uma função de passagem dentro do campo harmônico da subdominante, o que


não é o caso.

O acorde por quartas (primeiro tempo do compasso 4) é um outro acorde de


ambigüidade dentro do contexto harmônico dos quatro primeiros compassos,
principalmente por ser um acorde formado por uma quarta justa (enarmonicamente
escrito como terça aumentada) e uma quarta aumentada (enarmonicamente escrito
como quinta diminuta). Segundo Persichetti (1985), na harmonia do século XX, o
intervalo de quarta justa soa consonante em ambiente dissonante e dissonante em
ambiente consonante, enquanto que o trítono soa neutro em passagens cromáticas
e instável em passagens diatônicas46. Primeiramente observar-se-á a quarta justa: o
ambiente é consonante, devido principalmente à força do acorde de dominante
anterior ao acorde em questão, ou seja, formado por terças. Dessa forma, a maior
probabilidade é do intervalo de quarta justa pertencente ao acorde soar como
dissonante nessa passagem. Já o intervalo de quarta aumentada soa neutro devido
à passagem cromática da linha do baixo. Um acorde formado por um intervalo de
quarta justa dissonante e um intervalo de trítono neutro assume um papel
harmonicamente ambíguo, podendo ser considerado com função de dominante ou
subdominante.

O terceiro acorde de ambigüidade é o acorde do terceiro tempo do quarto


compasso, podendo funcionar como mediante da tônica ou como tônica relativa da
dominante. No primeiro caso, o acorde em questão seria um acorde com função de
passagem entre a frase antecedente e a frase conseqüente, enquanto que no
segundo caso o mesmo acorde pode assumir, embora indiretamente, uma
característica de dominante devido à sua proximidade ao acorde de dó maior,
dominante real da tônica de fá maior. A primeira hipótese é a mais provável, devido
ao acorde pertencer diretamente à tonalidade da linha melódica. A segunda hipótese
leva à seguinte pergunta: poderia um acorde menor funcionar como dominante em
um contexto tonal? Para tentar responder essa pergunta, voltar-se-á a um conceito
mais elementar: tensão e relaxamento. O intervalo de trítono formado entre o
terceiro e sétimo graus do acorde de dominante torna esse mesmo acorde um
elemento de tensão dentro do contexto tonal, enquanto que os intervalos

46
PERSICHETTI, 1985, pg. 12 – 13.
104

consonantes formados pelo primeiro, terceiro e quinto graus do acorde da tônica


tornam esse mesmo acorde um elemento de relaxamento dentro do contexto tonal.
Assim sendo, tem-se a seguinte associação: tônica – relaxamento – consonância e
dominante – tensão – dissonância. Segundo Persichetti (1985), o conceito de
consonância e dissonância é variável na harmonia do século XX:

Lo mismo que varían las actitudes y practicas de los compositores el


concepto de consonância y disonancia puede variar. Los intervalos
consonantes pueden sonar disonantes em um pasaje dominado por
intervalos disonantes, y em la armonia formada por intervalos fuertemente
disonantes estas disonancias a menudo se convierten em la norma
“consonante” de la organización musical. (PERSICHETTI, 1985, pg. 14).

Dado o ambiente dissonante no qual se encontra o acorde em questão (vide


figura 91b), a característica consonante dos intervalos formadores desse acorde faz
com que o mesmo soe dissonante, uma vez que, nesse caso, as dissonâncias se
converteram na norma “consonante” da organização musical. Como um acorde de
dominante possui uma característica dissonante com relação à tônica, existe a
possibilidade do acorde de lá menor, no terceiro tempo do compasso quatro, possuir
um papel de dominante – com base nesse conceito de consonância e dissonância –
dentro do contexto harmônico dos quatro primeiros compassos da peça.

Figura 91b - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 4. Classificação dos
acordes consonantes e dissonantes dos compassos um a quatro. Ambiente dissonante.

Repara-se, na figura 91b, que os dois acordes com ambigüidade harmônica


mostrados na figura 91a são formados por intervalos consonantes. O acorde
formado por quartas foi considerado dissonante por causa da presença do trítono. A
figura reforça a função de dominante do acorde de dó maior, visto que o mesmo é,
105

naturalmente, quinto grau de fá maior e, de acordo com o conceito de consonância /


dissonância de Vincent Persichetti, consonância em um ambiente dissonante.

Figura 92a - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 5 – 8.

Nos quatro compassos seguintes, o acompanhamento melódico é feito à base


de notas duplas em segundas e em quartas, como mostra a figura acima (92a). Há
pontos que requerem atenção nos compassos cinco e seis: os dois primeiros tempos
de cada compasso. Ao se considerar ambas as colcheias como notas integrantes do
acorde, tem-se, nos dois primeiros tempos do compasso cinco, os clusters solb – láb
– dó – ré e solb – láb – sib – dó, enquanto que, nos dois primeiros tempos do
compasso 6, tem-se mi# – fá# – dó – ré e mi# – fá# – sib – dó. Seguindo o mesmo
caminho para os tempos 3 e 4 dos dois compassos, tem-se o seguinte bloco de
acordes:

Figura 92b - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 5 – 6. Acordes formados a
partir das notas do acompanhamento e melodia.

Na figura acima, observa-se que, nos dois primeiros tempos de cada


compasso, ocorre o que Persichetti chama de acorde multi-som por segundas47 (ou
seja, um acorde por segundas de quatro ou mais sons) e um acorde por quartas
47
“acordes multi - sonidos por segundas” (PERSICHETTI, 1985, pg. 127).
106

(omitido na formação dos mini-clusters), ambos de quatro sons. Há, ainda, um


elemento contrastante dentro dos compassos cinco e seis, que é um acorde por
terças nos tempos 3 e 4 de ambos os compassos. No compasso cinco, as notas
formam um acorde de ré menor com sétima em terceira inversão (vi2), que pode
também ser interpretado como fá maior em segunda inversão, com a sexta
adicional. A segunda opção é preferível para esse acorde nessa situação, ao se
levar em conta a harmonia natural da melodia folclórica que se apresenta com o
cânone (vide figura 89). Nos tempos 3 e 4 do compasso seis, esse mesmo acorde
de fá maior vem acrescido da quarta aumentada. Dessa forma, os acordes por
segundas e quartas dos tempos 1 e 2 criam um efeito contrastante com o acorde por
terças dos tempos 3 e 4, da mesma forma que o acompanhamento melódico dos
compassos 5 a 8 – de maioria harmônica por segundas/quartas – criam um
contraste com o acompanhamento dos compassos 1 a 4 – de maioria harmônica por
terças.

Para finalizar a primeira seção (compassos 1 a 8), algumas observações


sobre os compassos 7 e 8, seguido de um panorama geral da seção. O fragmento
melódico é idêntico entre os compassos, havendo mudanças apenas no
acompanhamento melódico (clave inferior). No compasso 7, o acompanhamento é
feito em notas duplas com intervalo de segunda, seguindo o mesmo padrão rítmico
da melodia, enquanto que no compasso 8 esse padrão é seguido com notas duplas
em intervalos de quarta, conforme mostra a figura abaixo:

Figura 92c - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 7 – 8. Blocos harmônicos
do acompanhamento melódico.

A figura acima (92c) chama atenção ao fato que os dois últimos compassos
terminam com um acorde de tônica relativa de fá maior, ou seja, um grau bastante
próximo à tônica. Dessa forma, obtém-se um ciclo harmônico que inicia na tônica
107

(compasso 1), passa por uma seção com caráter de dominante (compassos 3 e 4) e
segue até descansar em um acorde simples de tônica relativa (compasso 8), cujo
caminho harmônico pode ser indiretamente definido pelos graus I – V – vi, formando
uma cadência de engano. Após todas as observações, nota-se que o
acompanhamento por segundas é responsável pela sensação de tensão harmônica
do trecho, que acaba por induzir indiretamente a presença de uma função harmônica
tonal de dominante. Dessa mesma forma, o acompanhamento por quartas no
compasso oito acaba por “aliviar” a tensão harmônica gerada pelos acordes de
segundas, gerando uma sensação de relaxamento, ou seja, de volta à tônica (que,
no caso, é a tônica relativa), como mostra a figura abaixo:

Figura 93 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 8. Panorama harmônico
tonal.

Para, enfim, finalizar, relata-se o uso, pelo compositor, do conceito de


consonância/dissonância para estabelecer uma relação de tensão/relaxamento que
se assemelhe àquela existente na estrutura tonal tradicional, mesclando harmonias
mais complexas de segundas e quartas com harmonias por terças. Essa é mais uma
forma harmônica de pensar utilizada pelo compositor que justifica a sua nova
concepção de tonalidade.
108

Os compassos 9 – 15 apresentam uma textura polifônica (exceção aos dois


últimos compassos) contrastante à estrutura homofônica dos compassos 1 – 8. Os
compassos nove, dez e onze apresentam uma variação dos quatro primeiros
compassos da melodia escrita em forma de cânone, como mostrado na figura
abaixo:

Figura 94 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 9 – 11.

A passagem mostrada na figura 94 apresenta um resultado harmônico


semelhante ao cânone original, com a diferença que, nessa escrita, os intervalos
harmônicos do terceiro tempo do compasso 11 pressupõem o acorde de dominante,
diferente do mostrado na figura 89, onde a harmonia permanece na tônica. O trecho
em cânone é seguido por dois compassos (12 e 13), de mesma célula
contrapontística, conforme mostra a figura 95:

Figura 95a - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 12 – 15.

Os compassos 12 e 13 mostram, nos dois primeiros tempos, duas vozes em


contraponto de terceira espécie (quatro notas contra uma), em cuja continuação
aparece um novo aspecto: enquanto, na voz superior, a colcheia si bemol resolve
naturalmente por grau conjunto descendente em lá natural, na voz inferior a nota mi
resolve em fá sustenido, ao invés da natural resolução, por grau mais próximo, em fá
natural. Assim sendo, o que seria uma cadência V65 – I se transforma
momentaneamente em uma cadência V65 – viiº/ii, ou seja, leva à dominante
109

individual do segundo grau. Pela natureza tonal, as notas fá sustenido e lá


resolveriam ambas na nota sol (tônica do segundo grau de fá maior), porém o que
ocorre é diferente: a nota fá sustenido permanece sem resolução, enquanto que a
nota lá resolve em fá, mantendo a linha melódica original. A volta à nota fá através
da linha melódica faz com que o fá sustenido da clave inferior se comporte como
uma simples nota adicional do acorde de fá maior, provocando um choque
intencional entre a tônica (fá) e sua vizinha mais próxima:

Figura 95b - resultado harmônico dos compassos 12 e 13.

Repara-se, na figura acima, que a intenção proposital do choque é realçada


pela presença do acento na nota fá sustenido da clave inferior. Essa breve alteração
é o suficiente para provocar uma ambigüidade momentânea (V – I ou V – viiº/ii). Os
dois últimos compassos da peça apresentam uma harmonia em blocos de acordes
por quartas, embasados em uma pequena variação dos dois últimos compassos da
melodia (vide figura 95a). À primeira vista, ambos os compassos apresentam os
mesmos acordes, em primeira inversão (compasso 13) e estado fundamental
(compasso 14), o que permitiria presumir a tônica final da peça como sendo ré
(tônica relativa). Porém, segundo Persichetti (1985):

Los acordes por quartas justas son ambíguos devido a que, como todos los
acordes contruídos com intervalos eqüidistantes (acordes de séptima
disminuída o triadas aumentadas), cualquier miembro del acorde puede
funcionar como fundamental. La indiferencia a la tonalidad de estas
armonías que carecen de fundamental pone el peso de la verificación tonal
sobre la parte com línea melódica más activa. (PERSICHETTI, 1985, pg.
96).

Segundo a afirmação acima, no caso dos dois últimos compassos da peça, a


tônica dos acordes por quartas passaria a ser aquela pertencente á linha melodia
110

mais ativa, ou seja, a tônica final (igual nos últimos acordes dos dois compassos)
passa a ser fá devido à sua característica melódica na passagem. Dessa forma, a
peça se encerra harmonicamente com mais uma pequena ambigüidade que,
surpreendentemente, pende para a tônica como acorde final, fechando um ciclo
harmônico de início e fim na tônica que sustenta o caráter tonal da obra.

2.7.2 – Forma e estrutura: “Frère Jacques”, assim como a grande maioria


das peças até aqui analisadas, possui uma forma seccionada em estrutura binária. A
primeira seção corresponde aos oito primeiros compassos da obra, contendo a linha
melódica da canção folclórica e um acompanhamento baseado na homofonia, como
foi previamente analisado. O que difere “Frère Jacques” das peças anteriormente
analisadas neste trabalho é a ausência de um material com característica de coda.
Na segunda seção (compassos 9 – 15), ocorre uma re-exposição da melodia
folclórica, porém com um acompanhamento melódico de grande característica
polifônica, de contraste com o acompanhamento da primeira seção.

A primeira questão de relevância na construção estrutural da peça se refere à


segunda parte: possui características suficientes para se considerar como sendo A‟?
A seguinte passagem, retirada de Bent (1987) mostra a relatividade com que
analistas identificam as estruturas dentro da forma:

48
Quite apart from the universality of the basic models , there are many
difficulties in determining criteria for their recognition. For some analysts,
identity or non-identity is determined by thematic character; for other, by key
scheme; for other, by length of units. Thus, for Dahlhaus (RiemannL 12,
1967), the prime conditions of the two-part Liedform |:A:||:B:| are, first, that
the first part ends on a half-close in the tonic or a full close in a related key,
and, second, that the parts are melodically different (…) For Scholes („Form‟,
Oxford Companion to Music, 1938, 10/1970), binary form rests on the key
scheme |: tonic-dominant (or relative major) :||: dominant (or relative major)-
tonic:| and on the absence of „strong contrast‟ in thematic material. (BENT,
1987, pg. 89).

A figura abaixo apresenta uma comparação entre os inícios da primeira e


segunda seção:

48
BENT (1987) cita dois modelos estruturais como sendo fundamentais na construção da forma:
binário – AB – e ternário – ABA. (BENT, 1987, pg. 88)
111

Figura 96 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 4 (primeiro sistema) e
compassos 9 – 11 (segundo sistema). Inicio das seções.

De acordo com Dahlhaus (apud BENT, 1987), uma das condições para que a
forma AB ocorra é a diferenciação melódica entre as duas seções; segundo
Scholees (apud BENT, 1987), a forma AB segue uma determinada seqüência de
tonalidade entre as seções (|: tônica - dominante (ou relativa):||: dominante (ou
relativa) – tônica:|). Ao se observar a figura 96, nota-se um elevado grau de
similaridade entre o início da linha melódica das duas seções, cuja continuação
melódica é idêntica em ambas (figura 96b), mantendo-se diferentes apenas pelo
caráter do material acompanhante à melodia. O fator diferencial entre os inícios de
ambas as seções é o número de compassos da frase – quatro no início da primeira
seção e três no início da segunda – mas não chega a comprometer o caráter de
semelhança entre eles. Além disso, a relação tonal supracitada por Scholes não
ocorre nesta peça (ocorre um padrão tonal parecido com |:tônica:||:tônica:| como
visto durante a análise harmônica), se tornando dois motivos aparentemente
suficientes para denominar o padrão entre as seções como sendo de variação, e
não contraste. Dessa forma, conclui-se que o padrão estrutural que mais se encaixa
para o material da peça é AA‟ e não AB.
112

Figura 96b - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 5 – 8 (primeiro Sistema) e
compassos 12 – 15 (segundo sistema).

2.7.3 – Fraseologia e rítmica: a estrutura fraseológica da melodia folclórica


de “Frère Jacques”, assim como as demais melodias até então analisadas neste
trabalho, se encaixa no padrão periódico de oito compassos proposto por Riemann
(apud BENT, 1987, pg. 91), como mostra afigura abaixo:

Figura 97 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 8, clave superior. Divisão
fraseológica da melodia folclórica.

Primeiramente observar-se-á o inciso fraseológico da melodia. A melodia


baseia-se, ritmicamente, na exposição e variação da célula rítmica semínima –
semínima – mínima. Ao se subdividir antecedente e conseqüente em duas partes de
dois compassos cada, nota-se esse padrão rítmico existente na segunda parte de
cada frase, enquanto que, na primeira parte de cada frase, ocorrem as células
rítmicas derivadas da célula rítmica principal. A célula rítmica dos primeiros dois
113

compassos da frase antecedente apresentam a subdivisão da mínima (tempos 3 e


449), da célula principal, em duas semínimas, enquanto que a célula rítmica dos
compassos 5 e 6 apresentam uma segunda subdivisão da célula principal,
transformando as duas semínimas dos tempos 1 e 2 em 4 colcheias, conforme
mostra a figura 98:

Figura 98 - células rítmicas existentes na melodia folclórica de “Frère Jacques”.

Da figura 98 é possível extrair duas possibilidades de derivação rítmica entre


as células. A primeira delas é a de que as duas células rítmicas com variação
derivam da célula rítmica principal, com uma variando os tempos 3 e 4 (mínima em
duas semínimas) e a outra variando os quatro tempos (duas semínimas em quatro
colcheias e uma mínima em duas semínimas). A segunda hipótese é a de existe
uma derivação sucessiva entre as células rítmicas: a célula rítmica com variação nos
tempos 3 e 4 é uma derivação da célula rítmica principal, enquanto que a célula com
variação nos tempos 1 e 2 deriva da célula rítmica anterior, com variação apenas
nos dois primeiros tempos e não nos quatro tempos, como na hipótese anterior. A
figura 98 especifica a célula rítmica com colcheias como sendo derivada da célula
dos compassos iniciais, e não da célula principal. Daí surge o motivo para questionar
sobre um possível caráter rítmico como formador do inciso fraseológico: a célula
rítmica principal não se encontra nos compassos iniciais das frases, e sim nos finais.

Ainda que a célula rítmica principal não seja a inicial, as duas frases,
antecedente e conseqüente, apresentam, em sua totalidade, um padrão rítmico de

49
Apenas para fins de facilitar o estudo rítmico-melódico, considerar-se-á, neste caso, o compasso
2/2 como tendo quatro tempos com o valor de uma semínima, ou seja, um 4/4.
114

exposição e variação. Quando se considera os quatro compassos como sendo uma


macro-célula rítmica, nota-se uma forte identidade com a macro-célula rítmica dos
quatro compasso seguintes, havendo variações apenas nos dois primeiros tempos
dos compassos 5 e 6 (observável na figura 97). A existência de uma relação de
exposição-variação como essa prova um padrão rítmico em grande escala, mas não
o suficiente para provar um padrão rítmico em pequena escala característico de um
inciso fraseológico bom base no ritmo (como foi o caso de, por exemplo, “Roda
Cotia”, “Tiri-la-la-la” e “Terezinha de Jesus”).

Com a pouca probabilidade de um inciso de caráter rítmico, passa-se à


observação do comportamento intervalar da melodia. Nota-se, na figura abaixo, que
a seqüência intervalar de duas segundas conjuntas na mesma direção ocorre em
seis dos oito compassos da melodia (exceção aos dois últimos).

Figura 99 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 8, clave superior. Inciso
fraseológico da melodia folclórica.

Os intervalos de segunda em seqüência fazem parte de um elo de


estabelecimento tonal digno de atenção: observa-se, por exemplo, que as notas do
primeiro e terceiro tempos dos compassos 1 a 4 formam o acorde de fá maior, tônica
da melodia, sendo que as notas do segundo tempo de cada um desses compassos
completam, em intervalos de segunda, o pentacorde principal de fá maior:
115

Figura 100a - Compassos 1 – 4 da melodia folclórica simplificada às notas dos tempos 1 e 3 (primeiro
sistema) e tempos 1,2 e 3 (segundo sistema).

Dessa forma, os dois intervalos de segunda (ascendentes para o trecho)


representam um papel fundamental na construção da melodia, servindo, da mesma
forma, como base para a parte conseqüente da melodia folclórica, conforme a figura
abaixo:

Figura 100b - Compassos 5 - 8 melodia folclórica simplificada às notas dos tempos 1 e 3 (primeiro
sistema) e uma segunda simplificação às notas dos tempos 1,2 e 3 dos compassos 5 e 6e tempos 1 e
3 dos compassos 7 e 8 (segundo sistema). Presença do inciso melódico (sublinhado).

No caso da figura 100b serve para representar o inciso fraseológico atuando


de maneira indireta, como nos tempos fracos dos compassos 5 e 6 (sublinho
inferior), bem como no nos intervalos entre as notas dos tempos dos tempos 3
(compasso 6), 1 e 3 (compasso 7). Essa presença, de forma direta e indireta, dos
intervalos seqüentes de segunda na melodia faz com que os mesmos atuem como
unidades construtoras da melodia, desempenhando o papel de inciso fraseológico
da mesma. Após estabelecer o inciso melódico, passar-se-á, a seguir, para o estudo
fraseológico com o acompanhamento melódico feito pelo compositor.

O acompanhamento melódico da frase antecedente apresenta o inciso


fraseológico em forma de intervalo melódico de segunda, que aparece na seqüência
116

de graus conjuntos (e cromáticos) descendentes na voz inferior do


acompanhamento, conforme mostra a figura 101:

Figura 101a - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 1 – 4, clave inferior. Inciso
fraseológico, em seqüência, no acompanhamento.

Nota-se, na figura 101a, que o inciso fraseológico aparece de forma cromática


nos compassos 1 a 3, deixando apenas o segundo tempo do terceiro e o ultimo
compasso para uma aparição em sua forma diatônica original presente na melodia.
Nos quatro compassos seguintes (figura 101b), o compositor faz uma alusão ao
intervalo característico do inciso fraseológico ao colocar, em três dos quatro
compassos, o intervalo de segunda de forma harmônica (exceção ao compasso 7,
onde, além da forma harmônica, o intervalo de segunda aparece melódico e em
movimento paralelo entre as vozes nos tempos 2 e 3). Uma nova alusão ao intervalo
de segunda é feita indiretamente no acompanhamento do compasso 8, através das
quartas paralelas movendo-se no intervalo do inciso entre os tempos 2 e 3,
conforme a figura abaixo:

Figura 101b - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 5 – 8, clave inferior.
Acompanhamento melódico.

Na figura 101b, as relações intervalares melódicas e harmônicas expressam o


inciso de maneira diferente entre os compassos:

 Compasso 5: intervalos harmônicos de segunda entre intervalos melódicos


de quintas paralelas.
 Compasso 6: intervalos harmônicos de segunda entre intervalos melódicos
de quartas paralelas.
 Compasso 7: intervalos melódicos e harmônicos de segunda.
117

 Compasso 8: intervalos melódicos de segunda entre intervalos harmônicos


de quartas paralelas (inverso do compasso 6).

A segunda seção (compassos 9 – 15) apresenta uma variação da melodia


folclórica, cujo acompanhamento polifônico (em grande parte da seção) contrasta
com a homofonia da exposição melódica (compassos 1 – 8). O primeiro elemento de
variação entre as frases se remete à duração: o segundo período não se encaixa na
divisão fraseológica por oito compassos de Riemann (apud BENT, 1987), pois
possui sete compassos. A frase antecedente do segundo período inicia-se com a
disposição em cânone da célula rítmica principal (vide figura 98), sendo que houve
uma supressão na segunda parte da frase, onde dois compassos 2/2 se tornaram
um compasso 3/2, conforme mostra a figura 102a:

Figura 102a - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 9 – 15. Segunda seção,
antecedente (9 – 11) e conseqüente (12 – 15).

Além da supressão de um compasso na frase antecedente, acontece um caso


de elisão entre antecedente e conseqüente devido à disposição polifônica entre as
vozes. Pode-se observar, na figura 102a, que a melodia inicia-se, com pequena
variação, na clave inferior (cuja resposta contrapontística é dada na voz superior e
não o inverso) e passa para a clave superior no compasso 12, momento esse onde
ocorre a elisão, conforme mostra a figura 102b:
118

Figura 102b - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 9 – 15, somente a linha
melódica.

Na figura 102b é melhor observável a supressão dos dois últimos compassos


da frase antecedente, visto que o natural seria duas células rítmicas principais nas
notas lá – sib – dó (nessa seqüência), exatamente como ocorre com as notas fá –
sol – lá dos compassos 9 e 10. Com essa supressão, a segunda nota dó da frase
antecedente original da melodia folclórica se transforma em primeira nota dó da
frase conseqüente, provocando uma elisão entre as frases. Dessa forma, o que
normalmente seria um período de oito compassos – como ocorrido na seção A – se
torna um período irregular de sete compassos, provocando um efeito de
deslocamento na estrutura fraseológica da seção. Além disso, a supressão da frase
antecedente se torna o principal elemento de variação melódica entre as partes,
além de variação rítmica nos dois primeiros compassos e de variação melódica nos
dois últimos, cuja comparação é mostrada na figura abaixo:

Figura 103 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Comparação entre as melodias da
primeira seção (primeiro sistema) e segunda seção (segundo sistema).

A similaridade entre as melodias, mostrada na figura acima, é um dos fatores


que corroboram a característica de variação (AA‟) na estrutura formal da peça.
Finalizando, uma observação sobre o inciso fraseológico da segunda seção:
aparece insistentemente e de forma direta nos três primeiros compassos, e de forma
119

indireta nos compassos seguintes. Nos compassos 9 a 11, o inciso é, de fato, o


elemento de repetição contrapontística (cânone):

Figura 104 - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compasso 9 – 11. Presença do inciso
fraseológico na construção polifônica.

Já na frase conseqüente, o inciso aparece de forma indireta em sua grande


maioria, ou seja, em forma de intervalo simples de segunda (clave inferior dos
compassos 12 e 13 e nos tempos 2 e 3 dos compassos 14 e 15), bem como
diretamente em trechos da melodia nos compassos 12 e 13 (já analisados na figura
99):

Figura 104b - Primeiro Caderno da Karina nº7: Frère Jacques. Compassos 12 – 15. Presença do
inciso fraseológico na frase conseqüente da seção B.

 Compassos 12 e 13: o inciso aparece de forma direta, entre os tempos 2 e


3, na clave superior. Uma alusão ao inciso é feita através do intervalo
melódico de segunda na clave inferior.
 Compassos 14 e 15: o inciso aparece apenas de forma indireta. Todas as
quatro vozes se movimentam em intervalos melódicos de segunda entre
os tempos 2 e 3, além da presença do intervalo harmônico de segunda
entre a voz inferior da clave de sol e a voz superior da clave de fá.
120

2.8 – FUKS DU HAST50

2.8.1 – Harmonia: esta é outra peça do ciclo com caráter definitivamente


polifônico, parecendo-se em alguns aspectos com “Tiri-la-la-la” (melodia folclórica
com acompanhamento polifônico e coda homofônica). A melodia folclórica,
encontrada na clave superior, está escrita no ambiente tonal de lá maior, cuja
harmonia é pressuposta na figura 105:

Figura 105 - Fuks du hast. Melodia folclórica e harmonia pressuposta.

“Fuks du hast”, possui uma estrutura polifônica que aparentemente distorce


um centro tonal definido, pois a linha melódica do acompanhamento (clave inferior)
aparentemente não se encaixa, com exatidão, em nenhuma tonalidade. Porém,
alguns encontros verticais determinam certas intenções harmônicas.

Figura 106 - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du hast. Compassos 1 – 7.

50
Título traduzido na partitura: “Raposa malandra, você roubou o ganso.”
121

Na figura 106, observa-se, logo no primeiro compasso, que a melodia do


acompanhamento representa um ostinato melódico nas notas fá# e mi#, ou seja,
tônica e sensível da relativa menor. Embora o acompanhamento não se encaixe em
nenhum centro tonal, há um recurso do estudo polifônico que permite uma clareza
no resultado harmônico: a identificação das notas principais e notas ornamentais.
Utilizar-se-á, então, esse recurso na linha melódica do acompanhamento,
eliminando-se as notas de passagem e outros recursos ornamentais. Em suma, as
notas principais do acompanhamento se resumem às notas das cabeças de tempo
dos compassos, conforme mostra a figura 107a:

Figura 107a - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du hast. Compassos 1 – 7. Melodia com
simplificação do acompanhamento às suas notas

A simplificação da linha melódica do acompanhamento é um auxiliador na


visão vertical da peça. Se o mesmo critério for aplicado á melodia folclórica e unido
ao acompanhamento, chega-se a um diagrama onde se encontram apenas as notas
harmônicas da polifonia:
122

Figura 107b - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 1 – 7, possibilidade
harmônica.

O esquema harmônico mostrado na figura 107b representa uma possibilidade


de acordes verticais “camuflados” pelas notas ornamentais de ambas as linhas
melódicas. Elementos como fragmentos de escalas de tons inteiros no
acompanhamento (compassos 2 e 3) são empregados para enriquecer a polifonia,
bem como para auxiliar na camuflagem da harmonia tonal (um papel semelhante
aos mini clusters do acompanhamento de “Atirei um pau no gato”). Nota-se que
algumas funções harmônicas identificadas na figura 107b ocorrem indiretamente,
como, por exemplo, o último compasso, onde a tônica foi atingida por movimento
descendente de grau conjunto e a terça do acorde por aproximação cromática
ascendente. A tensão harmônica criada pelo movimento das vozes se torna similar a
um acorde com função de dominante. Em outro exemplo, no compasso 3, o acorde
com quinta aumentada está escrito de forma enarmônica no quinto grau (um acorde
de sexta aumentada – como está realmente grafado – é pouco provável, visto que
não prepara uma dominante, como normalmente). O terceiro exemplo, no compasso
6 (tempos 1 e 2), é similar: optou-se por um acorde de sexta napolitana pela sua
proximidade à tônica (o que não ocorreria com um acorde de sétima da dominante
de dó maior, outra possibilidade de interpretação para o acorde) e situação
cadencial na qual o mesmo se encontra. É importante reafirmar que essa é apenas
uma das possibilidades de interpretação harmônica, visto que a figura 107b
representa apenas entre vários panoramas harmônico-verticais existentes na
123

polifonia da peça, o que acarreta uma vez mais em uma ambigüidade harmônica
característica na escrita do compositor.

Para finalizar, um breve estudo dos compassos 8 e 9, que formam uma coda.
A coda de “Fuks du hast” apresenta um material de estrutura homofônica
contrastante à polifonia da seção que antecede a mesma 51. A melodia é bastante
singela e de caráter rítmico e marcial, com acompanhamento em notas duplas de
segunda e quarta:

Figura 108 - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 8 – 9.Coda.

A ambigüidade harmônica apresentada durante o tema aparece, de forma


semelhante, na coda. A combinação da nota melódica com as notas duplas do
acompanhamento gera acordes que podem ser escritos de duas formas: sobre a
tônica de fá sustenido menor ou sobre a tônica da melodia (lá maior).

Figura 109 - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Possibilidades harmônicas na coda.
Tônica (primeiro sistema) e tônica relativa (segundo sistema).

O primeiro sistema da figura 109 apresenta blocos de acordes na posição de


intervalos de quinta e sexta com relação ao baixo, induzindo a uma relação
harmônica com tendência a lá maior como tônica. Enquanto um fator a favor é a
sensível sol sustenido resolvendo na tônica entre os acordes do ultimo compasso,
51
Recurso semelhante ao utilizado em “Tiri-la-la-la”.
124

um fator atenuante é a ausência da terça – importante grau modal – em todos os


acordes, inclusive provocando uma resolução não natural do trítono sol# - ré do
compasso 12 (sol sustenido resolvendo em fá sustenido). Já o segundo sistema
apresenta blocos de acordes em posição de terça e sétima com relação ao baixo,
tendendo a tônica para fá sustenido menor. Nesse caso, o ponto a favor é a
presença constante da terça do acorde, enquanto que a ausência da sensível mi# se
torna um ponto atenuante. Levando-se em consideração as duas hipóteses
supracitadas, define-se fá sustenido menor como tônica devido aos seguintes
fatores:

 A resolução do primeiro acorde do ultimo compasso não ocorre de forma


característica a um acorde de sétima da dominante de lá maior, o que
ocorreria de o acorde final fosse dó# – la – mi ao invés de mi – fá# – lá.
 Blocos de acordes com a omissão da quinta são harmonicamente mais
expressivos do que blocos com omissão da terça.
 A tônica inicial da obra é fá sustenido menor, embora a melodia esteja em
lá maior.

Observa-se, enfim, a politonalidade que o acorde de primeiro grau com sexta


adicional pode gerar em um âmbito harmônico, pois pertence simultaneamente ao
campo harmônico da tônica (1 – 3 – 5 – 6) e da tônica relativa (1 – 3 – 5 – 7). Ao
mesmo tempo em que esse acorde serve para camuflar a harmonia, serve também,
graças à omissão de uma das notas (coda), para especificar a função tonal do
acorde, gerando um caminho natural para a resolução do dualismo tonal
maior/relativo menor.

2.8.2 – Forma e estrutura: dos três tipos básicos de construção formal de


uma obra musical propostos por Bent (1987) – recorrência (AA), contraste (AB) e
variação (AA‟)52 – “Fuks du Hast” é uma das quatro peças características do ciclo
que podem ser enquadradas na denominação de recorrência. Os sete primeiros
compassos correspondem à única seção musical da peça, contendo a melodia
folclórica e seu devido acompanhamento, com um sinal de ritornelo no compasso 7.
Após a barra de repetição, foram adicionados dois compassos (coda). A dúvida que
pode aparecer a respeito da construção formal da peça é sobre a assertividade a

52
BENT, 1987, pg. 88.
125

respeito do padrão de recorrência, pois existe a hipótese de a coda ser anexada à


seção repetida e se tornar um A‟, criando um padrão formal de variação ao invés de
recorrência. O grande motivo para se considerar a recorrência como modelo formal é
a exata repetição da seção antes do surgimento do material de variação, o que
possibilita concluir que são duas seções idênticas e um breve contraste após a
repetição.

Assim sendo, a estrutura de “Fuks du hast” é AA coda. Dentro da seção, nota-


se um aspecto de variação entre os primeiros três compassos e os últimos quatro,
denominando A1 (compassos 1 – 3) e A2 (compassos 4 – 7) e coda (compassos 8 –
9), conforme mostra a figura 110:

Figura 110 - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Divisão estrutural.

Finalizando, consideram-se elementos de variação entre A1 e A2 a presença


de escalas no acompanhamento de A1 e o cruzamento de vozes em A2 (compasso
5). Um terceiro padrão de variação pode ser observado nos compassos 1 e 4 (início
de cada parte da seção): há a presença de uma célula rítmico-melódica, no
acompanhamento, que se repete de forma diferente nesses dois compassos, sendo
um ostinato em colcheias mi# – fá# no primeiro compasso e um ostinato, também
em colcheias, de nota e três repetições (sol – fá# e sib – lá) no compasso 4. A
característica homofônica da coda é, por natureza, contrastante à estrutura
polifônica da seção e suas partes.
126

2.8.3 – Fraseologia e rítmica: O primeiro aspecto construtivo da melodia


folclórica de “Fuks du Hast” é a construção periódica em sete compassos,
diferenciando-se do modelo de oito compassos proposto por Riemann (apud BENT,
1987). Nesse caso, a frase antecedente possui apenas três compassos, conforme
mostra a figura abaixo:

Figura 111 - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 1 – 7, clave superior. Divisão
fraseológica.

A frase antecedente possui uma unidade rítmica principal, que vem a ser a
célula rítmica do primeiro compasso, que pode ser dividida em duas partes
correspondentes aos tempos 1 – 2 e 3 – 4, respectivamente. A primeira parte é
idêntica nos três compassos, enquanto que ocorre, na segunda parte dos
compassos (tempos 3 – 4), uma característica de elongação no tempo 3 (compasso
2) e tempos 3 – 4 (compasso 3) que cria o aspecto de contraste dentro da estrutura
rítmica da frase, conforme mostra a figura 112a:

Figura 112a - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 1 – 3, clave superior.
Divisão rítmica da frase antecedente.

Já na frase conseqüente ocorre basicamente o contrário. Enquanto a primeira


parte da célula rítmica principal (tempos 1 – 2) permanece inalterada, os quartos
tempos dos compassos 4 e 6 sofrem diminuição, enquanto que o compasso 7
apresenta a mesma variação que o compasso 3:
127

Figura 112b - Primeiro Caderno da Karina : Fuks du Hast. Compassos 4 – 7, clave superior. Divisão
rítmica da frase conseqüente.

Ao se realizar o mesmo tipo de observação na rítmica do acompanhamento


melódico, nota-se a presença de um único elemento novo, presente nos compassos
5 e 6:

Figura 112c - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 1 – 7, clave inferior. Divisão
rítmica no acompanhamento.

Na figura 112c, os compassos 1, 4 e 7 apresentam variações da célula


principal que já apareceram na melodia, sendo desnecessários maiores detalhes.
Para finalizar, observa-se que o material rítmico da coda se baseia exatamente na
célula de variação presente nos compassos 5 e 6 do acompanhamento, aparecendo
na voz superior (compasso 8) e no acompanhamento homofônico (compasso 9), que
pode ser visto no segundo sistema da figura 110. Em outras palavras, o material da
coda não se baseia, ritmicamente, no material melódico, o que acaba, então, por
enfatizar um efeito contrastante entre melodia e acompanhamento.

A melodia apresenta um padrão intervalar, de inciso característico – o


pentacorde da tônica melódica – de várias maneiras: aparece de forma direta no
compasso 1 (melodia) e de forma indireta nos compassos 4 – 5 e 6 – 7, conforme
mostra a figura abaixo:
128

Figura 113a - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 1 – 7, clave superior. Inciso
fraseológico.

Na figura 113a, o fragmento melódico dos compassos 4 – 5 e sua variação


(compassos 6 – 7) são embasados no pentacorde descendente, enquanto que o
compasso 1 apresenta o inciso de forma ascendente.

O inciso melódico do pentacorde, nos detalhes de articulação e rítmica, indica


a ênfase na utilização nota a nota nas articulações de ligadura reforçando um
elemento intervalar mais simples. O intervalo de segunda aparece de maneira
bastante sobressalente, principalmente por ser o principal elemento marcado com
ligadura de articulação, tornando-se um elemento de destaque.

Figura 113b - Primeiro Caderno da Karina nº8: Fuks du Hast. Compassos 1 – 7. Intervalos de
segunda destacados pela articulação.

A figura 113b mostra apenas os intervalos de segunda destacados pela


ligadura de articulação. Um segundo elemento, o acento rítmico, aparece sempre
129

sobre a segunda nota em um intervalo de segunda, com exceção ao acento no


primeiro compasso, destacando igualmente o intervalo em questão. Dessa forma,
percebe-se que os elementos rítmicos de melodia e acompanhamento tendem a
destacar a presença do intervalo de segunda na composição da peça. Apesar de
bastante presente, o intervalo de segunda é, ao contrário da célula rítmica principal,
muito pequeno para se caracterizar um inciso fraseológico, delimitando o pentacorde
como inciso estrutural da obra.

2.9 – A. a. KOTKI DWA53

2.9.1 – Harmonia: a nona peça do ciclo apresenta uma melodia folclórica


polonesa no âmbito tonal de ré maior, cuja harmonia pode ser expressa de acordo
com a figura 114a:

Figura 114a - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8, clave superior.
Melodia folclórica com harmonização elementar.

O acompanhamento harmônico possui duas características principais, sendo


de um movimento homofônico ostinato entre os compassos 1 – 4 e de blocos de
acordes e polifonia contrastante entre os compassos 5 – 8:

Figura 114b - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8, clave inferior.
Acompanhamento melódico.

53
Titulo traduzido na partitura: “Era uma vez dois gatinhos.”
130

É observável que o acompanhamento difere harmonicamente da melodia,


havendo uma referência direta a ré maior apenas no último compasso (repetição),
ainda assim aparecendo com o intervalo de sétima, característico da dominante. Os
quatro primeiros compassos possuem uma estrutura similar ao acompanhamento
melódico de “Atirei um pau o gato”, com a presença de sons adicionais no acorde
formado entre as notas de melodia e acompanhamento. Porém, neste caso, grande
parte das notas adicionais presentes nos mini clusters têm relação de tríade com o
acorde, podendo ser consideradas como notas pertencentes ao acorde. É o caso do
acorde do tempo 2 (compassos 1, 2 e 4) e do tempo 1 (compassos 3 e 4).

Figura 115a - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 4. Possibilidade
harmônica.

Nos demais acordes (tempo 1 dos compassos 1 e 2; tempo 2 do compasso 3)


uma das notas do mini cluster não possui relação de tríade com a fundamental do
acorde, sendo nesse caso, uma nota adicional presente na estrutura do acorde 54.

Figura 115b - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Acordes com sons adicionais nos
compassos 1 – 455.

Na figura acima (115b), os acordes foram colocados em estado fundamental


somente para maior compreensão estrutural. A presença de um acorde de quatro
sons (sétima) cria um balanço harmônico, dentro do compasso, com o contrastante
acorde de som adicional, alternando funções de tensão e relaxamento nos três

54
PERSICHETTI, 1985.
55
O acorde do primeiro tempo dos compassos 3 e 5 são, na estrutura de tríade, acordes com sétima
e quinta omitida, escritos alteradamente na figura em sua forma completa.
131

primeiros compassos. Há uma ambigüidade harmônica, ainda não comentada, nos


acordes com sons adicionais, uma vez que é possível uma relação de quarta entre
três dos quatro sons presentes nesses acordes, conforme mostra a figura abaixo.
Observa-se uma ambigüidade harmônica quanto à natureza da formação desses
acordes, podendo ser considerados como formação por terças ou por quartas, ao se
comparar a figura abaixo com a 115a.

Figura 115c - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 4. Formações de
quartas nos acordes com sons adicionais.

Os compassos 5 – 8 apresentam um acompanhamento diferente do anterior.


Nos dois primeiros (5 – 6), o acompanhamento é feito em forma de acordes na parte
forte dos tempos do compasso, cuja união à nota da melodia gera uma formação de
quatro sons, sendo um deles com nota adicional e os demais, acordes de sétima em
naturezas diferentes, conforme mostra a figura 116:

Figura 116 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 5 – 6. Possibilidade
harmônica.

A figura 116 apresenta alguma diferenciação quanto ao que seria uma


harmonização tonal tradicional, que pode ser vista no segundo acorde, onde o
acorde menor descaracteriza a função de dominante do quinto grau, enquanto que o
último acorde representa um empréstimo modal do quarto grau de fá sustenido
menor. O padrão harmônico apresentado na figura 116 apresenta, indiretamente,
uma característica de uma progressão harmônica seqüencial, de acordo com Caplin
(1998): “...sequential progressions are especially suitable for destabilizing harmonic
activity in a given key or for modulating to one key to another” (CAPLIN, 1998). No
132

caso em questão, as diferenciações aparentam ter o propósito de desestabilizar


momentaneamente a tonalidade, cumprindo o papel de uma progressão seqüencial.

Os compassos 7 – 8 (casa um) apresentam um conteúdo harmônico que


caracteriza um retorno à tonalidade principal, conteúdo esse escrito em estilo
contrapontístico contrastante à homofonia anterior. O compasso 7 apresenta um
contraponto a duas vozes descendentes que correspondem verticalmente as
funções de pré dominante e dominante, respectivamente. Já o compasso 8
apresenta uma resolução cadencial da dominante antecedente e uma continuação
cadencial, tendente à tonicização da subdominante, conforme mostra a figura 117:

Figura 117 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 7 – 8 (casa 1).
Harmonização.

Essa breve tonicização do quarto grau durante o compasso 8 (casa 1), acaba
por tornar ainda mais ambígua a harmonia dos quatro compassos iniciais da peça.
Segundo Persichetti (1985), o acorde por quartas justas, devido à sua indiferença
tonal pela formação em intervalos eqüidistantes, revela sua nota fundamental
através da linha melódica mais ativa56, o que revelaria a nota lá como fundamental
do primeiro acorde do primeiro compasso devido à sua presença na melodia
folclórica. Porém, durante a tonicização do quarto grau no compasso 8 (casa 1), há
uma linha melódica cromática descendente que culmina, na volta ao primeiro
compasso, na nota si, o que possibilita considerá-la como fundamental do primeiro
acorde por quartas da peça. Dessa forma, há duas possibilidades de fundamental no
primeiro acorde, o que modificaria sua função harmônica, gerando duas
possibilidades:

56
(PERSICHETTI, 1985, pg. 96)
133

 V – vi7 etc. (figura 115a)


 VI (por quartas) – vi7 etc.

Dentre as duas opções supracitadas, a probabilidade de a nota lá ser a


fundamental do acorde continua maior, uma vez que a linha melódica mais ativa é a
melodia folclórica. Revela-se, então, um padrão indiretamente tonal na construção
harmônica de “A. a. kotki dwa”, cujo desenrolar harmônico pode ser descrito da
seguinte forma:

 Função de tônica relativa (vi) (compassos 1 a 4) – progressão harmônica


seqüencial (compassos 5 e 6) – cadência à tônica (V – I) (compassos 7 e
8).

Embora o acorde inicial seja formado sobre a fundamental de lá (tanto por


terças quanto por quartas), a tônica funcional dos quatro primeiros compassos (vide
figura 115a) é si menor (vi). A seqüência V – vi7 – V – vi7 – v7 – V6/vi – v7 – vi65
mostra um padrão harmônico cadencial nos acordes 2, 4, 6 e 8, onde a relação [i – V
– i] em vi aparece. Dessa forma, os acordes 1, 3, 5 e 7 (lá maior e lá menor com
sétima) funcionam como acordes de passagem inseridos em um ambiente tonal no
sexto grau. Tendo-se si menor como tônica inicial, a ambigüidade gerada pela
tonicização de sol maior no último compasso pode ser esclarecida: considerando-se
a nota si bemol do acompanhamento como um lá sustenido enarmônico, tem-se o
acorde de ré com sétima e quinta aumentada, o que seria um atrativo para a tônica
si por conter as sensíveis lá sustenido e dó (além de ser o acorde do terceiro grau
da escala menor harmônica em questão). Com isso, chega-se à conclusão de que a
tonalidade mais provável da peça é si menor ao invés da esperada tônica melódica
ré maior, cujo esquema harmônico, em função da melodia, é mostrado na figura
abaixo:
134

Figura 118 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8, esquema harmônico
em função da tônica melódica ré maior.

Para finalizar, assim como o compasso 8 (casa 1), o compasso apresenta o


acorde da tônica melódica, porém agora sem a presença do si bemol no
acompanhamento. A formação do acorde é o de tônica – quinta – sétima de ré, cuja
tonalidade leva à dedução de fá sustenido como terça omitida do acorde. Isso revela
a individualização, agora não ambígua, do quarto grau de ré maior, fazendo com que
o desfecho da obra tenha uma característica de continuação (figura 119). Esse é
mais um caso que pode ser considerado como a nova concepção de tonalidade do
compositor, com novidades auditivamente agradáveis ao ouvido 57. Os compassos
finais (casa 1 e casa 2) são os únicos locais onde a tônica melódica pode ser
momentaneamente percebida por serem os únicos compassos com a presença da
tônica na melodia. O afastamento melódico da tônica nos 7 primeiros compassos dá
margem para múltiplas interpretações harmônicas, cujo artifício o compositor
explorou de forma intensa na harmonização melódica da peça.

Figura 119 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compasso 8 (casa 2). Desfecho
harmônico em uma dominante individual.

57
MOROZOWICZ, apud PROSSER in NETO, 1994, pg. 185.
135

2.9.2 – Forma e estrutura: a obra é composta de, ao todo, dezesseis


compassos, divididos em duas seções de oito cada. O que difere estruturalmente “A.
a. kotki dwa” de “Fuks du hast” é a presença da repetição parcial, ou seja,
seccionada em casa 1 e casa 2, no compasso oito, bem como a ausência de um
material de coda. Assim sendo, um dos oito compassos é diferente entre as seções,
o que pode levar à hipótese de uma estrutura de variação (AA‟), principalmente pelo
fato de a função harmônica ser diferente, como foi visto no item anterior. Porém,
como a grande maioria das seções é idêntica, pode-se concluir que o mínimo
material que as difere não é o suficiente para caracterizar uma variação entre as
seções, sendo o padrão de recorrência (AA) aquele que melhor se enquadra no
perfil estrutural da peça.

Considerando-se, então, que o padrão estrutural da peça é uma recorrência,


denominar-se-ão as seções de A1 e A2, respectivamente, cuja ilustração se
encontra nas figuras 120a e 120b:

Figura 120a - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8 (casa 1). Seção A1.
136

Figura 120b - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8 (casa 2). Seção A2.

As figuras 120a e 120b não deixam dúvida quanto à característica de


semelhança entre as seções. O acompanhamento apresenta elementos de
diferenciação que podem subdividir a seção em duas partes de quatro compassos
cada. Os compassos 1 – 4 apresentam uma estrutura acordal em ostinato, enquanto
os compassos seqüentes apresentam uma estrutura em blocos de acordes e,
depois, de estrutura polifônica, como já foi dito no item anterior. O acompanhamento
da segunda parte da seção apresenta um elemento de contraste com o
acompanhamento da primeira parte (ao invés de elemento de variação, como o
mostrado na figura 110). A figura 120c mostra o exemplo de divisão seccional na
seção A1, que serve igualmente para a seção A2:
137

Figura 120c - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. Kotki dwa. Compassos 1 – 8 (casa 1). Divisão
seccional da seção A1.

Finalizando, observa-se a presença de uma estrutura externa moldada sob


um padrão de recorrência, cuja subdivisão interna apresenta um padrão de
contraste58.

2.9.3 – Fraseologia e rítmica: a melodia folclórica apresenta um modelo de


oito compassos como o proposto por Riemann (apud BENT, 1987), contendo uma
frase antecedente e outra conseqüente, conforme a figura 121:

Figura 121 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Divisão fraseológica.

Na melodia folclórica, o que difere antecedente e conseqüente é a presença,


no primeiro, de um ostinato melódico nas notas lá e fá sustenido, como se pode

58
Esse é um aspecto de semelhança com a peça “Ciranda, cirandinha”, com a diferença de que nesta
o padrão interno é de contraste, e naquela, de variação.
138

observar na figura 121. Quando a análise passa ao âmbito da peça como um todo, a
diferença entre as frases antecedente e conseqüente passa a ser, além da melodia,
a mesma que difere os acompanhamentos das sub-seções A1 e A2. Um dos
aspectos que chamam a atenção é, na frase antecedente, a presença do elemento
ostinato tanto na melodia quanto no acompanhamento (figura 122a), fazendo com
que fique mais expressivo o contraste entre antecedente e conseqüente na melodia.

Figura 122a - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. Kotki dwa. Compassos 1 – 4. Ostinato
fraseológico no antecedente.

A frase conseqüente da seção A1 apresenta um contraste interno no


acompanhamento, dividindo-se em homofônico (compassos 5 – 6) e polifônico (7 –
8). Essa construção interna é o principal elemento de contraste externo com o
ostinato da frase antecedente da seção, ao criar um dipolo de movimento entre as
seções.

Figura 122b - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 5 – 8 (casa 1). Contraste
no conseqüente.

As figuras 122 revelam o dipolo entre antecedente e conseqüente, ao se


observar que o acompanhamento do primeiro permanece constante e de estilo
similar à melodia, o que gera um equilíbrio entre melodia e acompanhamento. Já no
segundo, nota-se uma variação no acompanhamento que gera um desequilíbrio
139

entre o mesmo e a melodia, sendo esse contraste de equilíbrio (1 – 4) x


desequilíbrio (5 – 8) o dipolo supracitado.

Ao se tratar da construção fraseológica da melodia, o ostinato melódico da


frase antecedente informa que a célula do inciso fraseológico é o intervalo de terça
menor, que aparece constantemente não só na frase antecedente como em toda a
melodia. Sendo esse intervalo a “molécula de construção fraseológica”, outro
elemento de importância vem a ser o ritmo, que neste caso é o principal aspecto de
variação, conforme mostra a figura abaixo:

Figura 123 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8 (casa 1). Inciso
melódico e células rítmicas na melodia.

Na figura 123, A, A‟‟, A‟‟‟ e B representam as diferentes células rítmicas


existentes na melodia folclórica, cuja distribuição forma um padrão cíclico. Todos os
compassos pares da melodia apresentam a célula rítmica colcheia – colcheia –
semínima (B), enquanto que os compassos ímpares apresentam as variações da
célula rítmica A. A interpolação de elementos rítmicos recorrentes (B) com
elementos de variação (A) provocam a sensação de unidade dentro da variedade.

Figura 124 - Primeiro Caderno da Karina nº9: A. a. kotki dwa. Compassos 1 – 8 (casa 1). Variação e
recorrência rítmica nas seções A1 e A2.
140

Como se pode observar, o ritmo desempenha um papel fundamental na


construção da melodia de “A. a. kotki dwa”, cujo acompanhamento – escrito pelo
compositor – apresenta a função de ressaltar, de certa maneira, o aspecto de
variação no ritmo, ao dar ênfase ao contraste entre ostinato rítmico do antecedente e
as variações no conseqüente (vide figuras 122a e 122b). Concluindo, nota-se que,
nesta obra, o compositor parece buscar resolver uma ambigüidade ao invés de
causá-la, criando uma estrutura de acompanhamento melódico que ressalte uma
das possibilidades de interpretação rítmica existentes na estrutura da peça – a
variação.

2.10 – MIETZE, MIETZE, KATZE59

2.10.1 – Harmonia: a melodia folclórica desta peça encontra-se na tonalidade


de sol maior, cuja possibilidade harmônica é mostrada na figura 125:

Figura 125 - Mietze, mietze, katze. Melodia folclórica e harmonia.

Os compassos 1 – 8 apresentam a exposição da melodia folclórica na clave


superior, sendo a melodia brevemente alterada no compasso quatro, com a colcheia
(nota sol) alterada para sol sustenido. O acompanhamento melódico foi escrito com
textura polifônica, dando à peça um caráter de invenção a duas vozes. As duas
formas de contraponto mais utilizadas nesse trecho da peça foram 1ª/2ª espécie e
imitação, dispostos segundo uma lógica espacial-temporal de meios e extremos:
contraponto direto [1 – 2] --- contraponto imitativo [3 – 6] --- contraponto direto [7 –
8], mantendo uma relação harmônica vertical como a mostrada abaixo:

59
Titulo traduzido na partitura: “Gato, gato...ei seu gato”.
141

Figura 126 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8. Harmonia e
contraponto.

No esquema representado pela figura 126, o caminho harmônico pode ser


traçado a partir dos acordes que ocorrem nos acentos rítmicos, pois estes reforçam
o valor expressivo dos mesmos, bem como o resultado harmônico. Dessa forma, os
principais pontos harmônicos do trecho em questão são aqueles uma, ou as duas,
vozes estão marcadas com um acento, como mostra a figura a seguir (o acento do
primeiro tempo do compasso 6 se encontra na clave inferior):

Figura 127 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8, clave
superior. Pontos rítmicos harmônicos.

Os principais pontos harmônicos, como se pode observar, são compostos por


dominantes individuais, ou seja, são constantes pontos de tensão harmônica cuja
resolução nunca ocorre. Essa irresolução é ainda mais declarada nos dois últimos
compassos, onde se tem uma cadência IV – I64 – ii – V – V/IV, onde a tônica sol
maior é substituída por uma dominante de dó maior. Essa diferença entre a
142

harmonia tradicional da melodia folclórica e a harmonia de dominantes individuais


utilizada pelo compositor é observável ao se comparar as figuras 125 e 127, onde se
percebe um caminho harmônico direto e simples em contraste com um caminho
divergente e complexo, com recursos de elisão harmônica60.

Observa-se, também, que os pontos de apoio harmônico mostrados na figura


127 são de uma natureza rítmica que causam uma sensação agógica de
accelerando entre os compassos 1 – 4 (3 pontos de acordes) e 5 – 6 (3 pontos de
acordes, porém na metade do número de compassos). Quando se consideram todas
as formações acordais possíveis no trecho (figura 126), há a presença de diversas
ornamentações da linha harmônica principal, formadas a partir dos acordes de
passagem, sendo alguns desses mais diretamente afins à tônica melódica do que
aqueles pertencentes à linha principal (compasso 1, tempo 3; compasso 3, tempo 1;
compasso 4, tempo 1, por exemplo).

Os compassos 9 – 16 apresentam a melodia folclórica original (sem a


alteração no compasso 4 utilizada anteriormente). Uma mudança perceptível é a
presença constante do contraponto por imitação nos quatro primeiros compassos (9
– 12), sendo o uso das espécies deixado somente para os dois últimos compassos,
com presença da terceira espécie e ausência da segunda. Há também a presença,
na concepção acordal da verticalidade das vozes, de notas adicionais, como no
compasso 9 (tempos 3 – 4) e compasso 16 (tempo 2), bem como o recurso de
opção acidental ou não no primeiro tempo do compasso 15 61 (vide figura 128), o que
poderia gerar uma ambigüidade ao ser considerado uma função harmônica (viiº7
escrito enarmonicamente como solb – dó – mib) ou simplesmente uma
ornamentação (apoggiatura inferior) do acorde IV).

60
Elisão harmônica ocorre quando uma função é suprimida. Ex: uma seqüência de dominantes
individuais por ciclos de quinta como V/vi – V/ii – V/V, que ocorre nos compassos 2,3 e 4 da peça
Liebestraume nº3 de Franz Liszt, onde todas as tônicas são suprimidas.
61
Mesmo recurso de alteração optativa utilizado em “Terezinha de Jesus” (compasso 9).
143

Figura 128 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 9 – 16. Harmonia e
contraponto.

Da mesma forma que anteriormente, os acentos marcados servem como


pontos de direcionamento harmônico, cujo caminho é mostrado na figura 129
abaixo:

Figura 129 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 9 – 16, clave
superior. Pontos rítmicos harmônicos.

É observável, já no compasso nove, uma diferença de função com relação ao


trecho anterior (vide figura 127), sendo agora a função de tônica atribuída ao início
melódico. Essa mudança se deve à ausência do acompanhamento nos tempos 1 e 2
do compasso, não permitindo a existência do acorde viiº/ii devido à falta da nota sol
sustenido, sendo que essa mesma nota caracteriza-se, agora, como nota adicional
144

do acorde de sol maior, ao aparecer no terceiro tempo do compasso. A função de


individualização do quinto grau se mantém igual no compasso 11 (em relação ao
compasso 3), porém sua resolução se altera no compasso 12, resolvendo agora
para si menor (iii, ou, funcionalmente, vi/V) e caracterizando uma cadência de
engano, diferentemente da continuação em dominante individual utilizada no
compasso 4. Já nos compassos 13 e 14 a seqüência harmônica de dominantes
individuais permanece a mesma utilizada nos compassos 5 e 6, enquanto que no
ultimo compasso a harmonia varia de uma dominante individual do quarto grau
(compasso 8) para uma tônica relativa (compasso 16), indicando um término musical
em uma nova cadência de engano.

Outra diferenciação harmônica acontece na situação cadencial dos dois


últimos compassos, cujo compasso 15 é passível de mais de uma interpretação
harmônica devido à alteração opcional no acompanhamento. Porém, ainda assim a
cadência IV – I64 permanece perceptível (vide figura 130). No último compasso,
aparece novamente um acorde com nota adicional (dó sustenido da clave inferior)
que difere do utilizado no compasso 8. Um aspecto de interesse nessa nota
adicional é que a mesma representa uma alteração do sétimo grau de um acorde de
sétima da dominante, o que camuflaria a percepção da tensão gerada pelo trítono
fá# – dó. Sendo apenas uma nota adicional, a função de dominante permanece e a
cadência V – vi acaba não sendo diretamente afetada.

Figura 130 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 15 – 16.
Ornamentações e harmonia.

Concluindo, a harmonia de “Mietze, mietze, katze” é baseada em pontos de


marcação rítmica dentro de uma estrutura inteiramente polifônica, dividindo-se um
trecho de tensão contínua por dominantes secundárias e um trecho com coloridos
harmônicos por notas adicionais aos acordes resultantes. Como já foi observado, há
145

dois planos harmônicos sobrepostos: o plano supracitado contendo a harmonia dos


pontos de marcação rítmica e o plano da harmonia existente entre esses pontos,
formando dois relevos distintos que geram o tecido harmônico peculiar desta peça.

2.10.2 – Forma e estrutura: como foi previamente observado, a peça possui


exposição e repetição da melodia folclórica, com textura polifônica que resultam em
acordes verticais distintos. Essa distinção entre exposição e repetição da mesma
melodia (exceção da última nota do compasso quatro) caracteriza o modelo
estrutural de variação (A A‟), que foi utilizado pelo compositor na construção formal
da peça. Os compassos 1 – 8 apresentam a primeira seção (A), contendo a melodia
folclórica com a alteração no compasso 4 e o padrão de simetria estrutural polifônica
[espécies – imitação – espécies] já citado anteriormente. Por motivos de
comparação entre as seções A e A‟, dividir-se-á a seção A em duas partes de quatro
compassos, conforme mostra a figura abaixo:

Figura 131 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8. Seção A.

A sub-seção A1 é composta, entre as vozes, de um motivo melódico e rítmico


disposto em contraposição (compassos 1 – 2) e em deslocamento (3 – 4), enquanto
que na sub-seção A2 aparece um segundo motivo melódico disposto em
deslocamento (compasso 5 - 6), e em contraposição (compasso 7), cuja análise
mais profunda será feita posteriormente. A seção A‟ é composta das mesmas
subseções de A, variando apenas na seqüência de disposições em contraposição e
146

deslocamento, conforme mostra a figura 132, além da já citada variação da melodia


folclórica.

Figura 132 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 9 – 16. Seção A‟.

Para especificar a diferença posicional entre as seções A e A‟, não há


contraposição do motivo melódico e rítmico nos compassos 1 – 2 da subseção A1‟,
que foi observada na seção A‟ (figura 131). Como será observado no próximo item,
as subseções correspondem às frases antecedente e conseqüente do período da
melodia folclórica. Nota-se, nesta peça, além da ausência de uma coda, a repetição
melódica escrita por extenso e com diferente acompanhamento, o que torna as duas
seções iguais em tamanho e diferentes em estrutura interna62, aspecto esse que
define o modelo de variação AA‟ (BENT, 1987) para esta peça, em decorrência do
padrão AA (recorrência).

2.10.3 – Fraseologia e rítmica: a melodia folclórica é composta de um


período de oito compassos, dividido em duas frases de quatro compassos cada.
Dessa forma, a melodia se enquadra no modelo de oito compassos de Riemann
(apud BENT), compondo-se de uma frase antecedente e outra conseqüente.

62
Em “A. a. Kotki Dwa”, a barra de repetição transforma as duas seções iguais em tamanho e em
estrutura interna, o que caracteriza o modelo estrutural de recorrência AA.
147

Figura 133 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8, clave
superior. Fraseologia da seção A.

A frase antecedente, como se nota na figura 133, apresenta um padrão de


recorrência de um mesmo motivo, mantendo a estrutura rítmica intacta. Os motivos
formam o que Riemann denomina como zweitaktgruppe63, elementos a partir dos
quais se desenvolverá a melodia.

Figura 134a - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 4, clave
superior. Construção fraseológica do antecedente.

A frase conseqüente é igualmente dividida em duas partes, cuja distinção


baseia-se principalmente no aspecto rítmico. A primeira parte (compassos 5 – 6) é
construída a partir de uma variação rítmica do elemento b da figura 134a, enquanto
que os compassos 7 – 8 correspondem a uma variação dos compassos 5 – 6,
conforme mostra a figura 134b:

Figura 134b - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 5 – 8, clave
superior. Construção fraseológica do conseqüente.

A figura 134b mostra que antecedente e conseqüente têm, além de diferentes


aspectos principais de melodia (antecedente) e ritmo (conseqüente), as duas frases

63
Grupo motívico de dois compassos.
148

diferem no tamanho do motivo construtor. No segundo caso, o motivo foi construído


em um compasso, resultando em uma frase de caráter de stretto com relação à
anterior, principalmente pelo aspecto rítmico. Nota-se também um contraste de
relações estruturais internas entre as frases: no antecedente, há um contraste dentro
do motivo construtor e uma repetição (recorrência) desse mesmo motivo, enquanto
que, no conseqüente, há uma repetição do motivo construtor em contraste com a
variação desse motivo nos dois últimos compassos. A figura 135 mostra, de uma
maneira geral, as subdivisões fraseológicas do período (melodia folclórica):

Figura 135 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8, clave
superior. Construção fraseológica do período.

Na figura acima:

 b‟: variação de b nos tempos 1 – 2.


 b‟‟: variação de b nos tempos 3 – 4.
 (b‟)‟: variação de b‟ nos tempos 3 – 4.

A melodia contrapontística possui várias relações com os elementos fraseológicos


que ocorrem na melodia principal. A figura abaixo apresenta a melodia da clave
inferior decomposta nos elementos de construção expostos na melodia principal:
149

Figura 136 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8, clave inferior.
Melodia contrapontística.

Na figura 136, ocorrem as seguintes denominações para os elementos


fraseológicos (com relação aos elementos da figura 135):

 a/2: primeira parte (tempos 1 – 2) do elemento fraseológico a.


 a/2‟: variação do elemento a/2.
 b‟/2: primeira parte (tempos 1 – 2) do elemento fraseológico b‟.
 c: novo elemento rítmico-melódico. Variação de b‟‟ no tempo 2.
 c‟: novo elemento rítmico melódico. Variação de b‟‟ no tempo 1.

Nota-se a presença de dois novos elementos fraseológicos, derivado de uma


variação rítmica do último compasso 64. Quando as duas vozes são unidas, vem a
tona uma interpolação das linguagens de cânone e espécies, feitas a partir dos
elementos designados nas figuras 135 e 136.

64
Refere-se ao elemento como c e não como (b‟‟)‟ devido a sua inexistência na melodia folclórica,
sendo que os demais elementos estão presentes diretamente na melodia.
150

Figura 137 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8. Relações de
contraponto entre as vozes na seção A.

A segunda seção possui a voz superior análoga à da primeira seção, cuja


diferenciação no compasso quatro e no valor da última nota do compasso 16 não
altera o modelo estrutural de recorrência melódica. As divisões fraseológicas de
antecedente e conseqüente permanecem as mesmas. O elemento de variação entre
as seções se encontra presente na voz inferior, tanto rítmico quanto melodicamente.
A figura abaixo apresenta a voz inferior da seção A‟, com suas divisões
fraseológicas de acordo com as nomenclaturas das figuras 135 e 136:

Figura 138 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 9 – 16, clave
inferior. Melodia contrapontística.

Observa-se a presença de um único novo elemento com relação à seção


anterior, presente no compasso 15. A mínima dos tempos 3 e 4 representa a os
tempos 3 – 4 da célula b‟‟, daí vem a nomenclatura designada na figura. Embora
151

haja uma diferença no ultimo tempo da célula b‟‟ (compasso 16), considera-se igual
à célula do compasso 8 (voz superior), visto que as funções rítmicas e melódicas
entre a melodia nesses dois compassos é semelhante 65. Afora as naturais
diferenciações melódicas entre as linhas melódicas inferiores das seções, em
especial a alteração opcional na voz inferior do compasso 15, a principal diferença
entre as seções se encontra na disposição vertical entre as vozes, mostrada na
figura abaixo:

Figura 139 - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 9 – 16. Relação de
contraponto entre as vozes na seção A‟.

Logo no início, o contraponto da seção A‟ possui, como se observa na figura


139, diferença vertical com relação ao início de A. Durante a frase antecedente
melódica da seção A‟, há a repetição do elemento em imitação de cânone, em
contraste com a variação do elemento (contraponto direto seguido de imitação) na
voz inferior da primeira seção, o que causa mudanças principalmente de aspecto
harmônico entre as mesmas. O contraponto direto aparece somente nos dois últimos
compassos, contendo a presença do contraponto de terceira espécie (quatro notas
contra uma) e ausência de segunda espécie. Dessa forma, se evidencia um
contraste de seqüência contrapontística de entre as seções: a seção A se apresenta

65
Ambas as células representam o ritmo final da frase, cuja transformação de mínima (compasso 8)
para semínima (compasso 16) não altera a intenção rítmica entre ambas. Dessa forma, dado que a
célula da clave inferior (compasso 16) é idêntica ritmicamente à da voz superior, a função permanece
a mesma, ou seja, a célula rítmica b‟‟.
152

em contraponto direto (1 – 2) – contraponto imitativo (3 – 6) – contraponto direto (7 –


8), enquanto que a seção A‟ se apresenta em contraponto imitativo (9 – 14) –
contraponto direto (17 – 18).

Para encerrar, uma análise a respeito do inciso fraseológico da peça. O


elemento de destaque na construção da peça é o pentacorde, utilizado de maneira
indireta através da melodia folclórica, em estado fundamental ou invertido a partir
dos acordes:

Figura 140a - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 1 – 8. Inciso
fraseológico no contraponto.

As duas últimas notas da melodia (figura 140a) apresentam de forma sintética


o pentacorde, a partir das notas extremas, uma nova versão do inciso, mais indireta
do que aquela exposta no primeiro compasso (tríade em estado fundamental). Na
clave inferior (compasso 1) o inciso aparece no pentacorde sol# – si – ré, escrito na
primeira inversão. Nota-se que a melodia inicia com o pentacorde em forma de
arpejo e finaliza com o pentacorde de forma quebrada (compassos 7 – 8). A seção
A‟ apresenta similaridades com relação à presença do inciso, variando em
determinados trechos de acordo com a diferença de escrita em relação à seção
anterior.
153

Figura 140b - Primeiro Caderno da Karina nº10: Mietze, mietze, katze. Compassos 9 – 16. Inciso
fraseológico no contraponto.

Com relação à seção A, não ocorre, na seção A‟, a presença do pentacorde


no acorde invertido fá# – sib – mi entre os compassos 11 – 12 na clave inferior
(equivalente ao pentacorde implícito na clave inferior dos compassos 3 – 4), bem
como a presença invertida do pentacorde na seqüência melódica dos compassos 15
– 16, onde a última nota sol acontece uma oitava acima da resolução melódica da
seção A. Observa-se que o pentacorde aparece em naturezas diferentes, como
maior (compassos 1, 7 – 8, 9, 15 – 16 da clave superior; compassos 3, 6 – 7, 14 –
15 da clave inferior) e diminuto (compassos 3 e 11 da clave superior; compassos 1 e
8 da clave inferior). Conclui-se, então, que tanto fragmentos rítmicos quanto
melódicos são elementos essenciais na construção fraseológica de “Mietze, mietze,
katze”, combinados de várias maneiras em uma polifonia a duas vozes, como pôde
ser observado anteriormente (figuras 135 e 136). Krieger (apud PROSSER in NETO,
pg. 184) diz que a obra de Henrique de Curitiba é “bem humorada na expressão de
certos condimentos brejeiros da rítmica brasileira”, porém observa-se que o
compositor apresenta um tratamento similar não só na rítmica brasileira, como na de
melodias folclóricas de outros países, como é o caso da melodia aqui em questão,
seja com tratamento homofônico66 quanto com polifônico, utilizado para a
composição desta peça.

66
Vide a peça “Cai, cai, balão”, segunda o ciclo aqui analisado.
154

2.11 – WLAS KOTEK NA PLOTEK67

2.11.1 – Harmonia: melodias folclóricas, em geral, se enquadram


perfeitamente dentro de algum centro tonal fixo, ou seja, compõem-se a partir das
notas de uma determinada escala, maior ou menor. No caso desta melodia
folclórica, comumente se enquadra em uma tonalidade maior, como a que sucede
abaixo:

Figura 141a - Wlas kotek na plotek. Melodia folclórica.

Nota-se, então, que a melodia folclórica possui uma harmonia elementar,


contendo duas cadências perfeitas apenas68. Na peça em questão, o compositor
acrescentou uma pequena alteração no primeiro compasso da melodia, tornando o
dó natural:

Figura 141b - Primeiro Caderno da Karina nº 11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 6, clave
superior. Melodia folclórica.

Com relação à melodia folclórica original, a alteração no primeiro compasso


indica um empréstimo modal do primeiro grau, diferença harmônica perceptível entre
as linhas melódicas comum e a utilizada pelo compositor, mantendo-se lá maior
como tonalidade melódica. Se o acompanhamento harmônico utilizado fosse o mais
singelo possível, esse o seria o apresentado na figura 141b. Porém, o
acompanhamento harmônico da peça, em tessitura homofônica, embora possa ser
remetida a lá maior (como será visto), possui acordes que geram um caminho
harmônico mais rico e complexo do que o mostrado acima.

67
Título traduzido na partitura: “Tinha um gatinho na cerca”.
68
Novamente, segundo SCHOEMBERG (1922), existem casos em que basta a citação I – V – I para
fixar a tonalidade.
155

Figura 142 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 6.
Encadeamento harmônico da melodia.

Como se pode observar na figura 142, somente no terceiro e último


compassos aparecem acordes com relação direta a lá maior, que é o acorde de
tônica com sétima maior adicional. Todos os demais acordes pertencem apenas
indiretamente a lá maior, o que causa uma ambigüidade tonal na exposição
melódica da peça. O terceiro compasso apresenta uma situação diferente dos
demais compassos, sendo o único trecho da exposição melódica onde ocorrem mais
de uma função harmônica. As colcheias lá e dó sustenido, somadas à nota mi do
baixo, formam o acorde de tônica em primeira inversão, sendo que a continuação da
nota melódica, mi, forma o acorde da mediante maior bemol com as notas sol e dó
do acompanhamento. Ao se analisar separadamente o que acontece em cada clave,
nota-se uma politonalidade nesse determinado compasso, com a melodia fazendo o
arpejo sobre lá maior e o baixo realizando um acompanhamento sobre dó maior. O
contraste entre acordes verticais e acordes horizontais é o principal motivo pelo qual
a harmonia do compasso 3 se torna ambígua (politonal), criando um breve balanço
no ritmo harmônico do trecho.

Figura 143 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compasso 3. Ambigüidade
harmônica.

O mesmo desenho melódico e contorno de acompanhamento acontece no


compasso 6, porém, não há um caso de ambigüidade tonal porque todas as notas
156

são pertencentes ao acorde de tônica com sétima maior adicional, não deixando
dúvidas a respeito do resultado harmônico geral do compasso. Como se pode
observar nessa exposição melódica, apenas a observação do comportamento
vertical das vozes não é suficiente para definir com precisão o caminho harmônico
da melodia, é necessária também uma análise horizontal para melhor compreender
determinados trechos onde a harmonia não aparece de forma tão clara. A
ambigüidade é um dos fatores característicos da harmonia do século XX, como pode
ser observado no trecho abaixo, extraído do livro “Armonia del siglo XX” de Vincent
Persichetti:

“Cualquier sonido puede suceder a cualquier sonido, cualquier sonido


puede sonar simultáneamente con cualquier otro sonido o sonidos, y
cualquier grupo de sonidos puede ser seguido por cualquier otro grupo de
sonidos, lo mismo que cualquier grado de tensión o matiz puede darse en
cualquier medio bajo cualquier clase de acento o duración. (...) La
comprensión del proceso armónico puede comenzar con la compreensión
de los intervalos melódicos y armónicos del sonido.” (PERSICHETTI, 1985,
pg. 11).

Persichetti menciona o uso livre do material musical para a formação de uma


idéia harmônica, em contraste com as convenções utilizadas pelos compositores
principalmente do século XVIII, durante o classicismo, bem como as rígidas normas
de contraponto de fins do século XVII e início do XVIII69. A apresentação harmônica
do compasso três representa uma aplicação desse uso livre do material musical
mencionado por Persichetti.

Os compassos 7 – 12 apresentam uma re-exposição da melodia folclórica,


contendo algumas variações quanto à altura e à duração de determinadas notas. A
figura abaixo mostra a re-exposição melódica, em comparação com a exposição dos
seis compassos iniciais:

69
Vide, por exemplo, o parte dedicada ao contraponto no tratado “ Le Institutioni Harmoniche” (1558)
de Gioseffo Zarlino. Vide também “Gradus ad Parnassum” de Johann Fux (1725).
157

Figura 144 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 12, clave
superior.

O ritmo, como se pode observar na figura acima, é o principal elemento de


variação entre as melodias (detalhes serão apresentados no item 11.3), bem como a
alteração, no primeiro compasso da re-exposição melódica, da nota dó para a nota
dó sustenido. A figura abaixo apresenta os compassos 7 – 12 com a presença do
acompanhamento melódico:

Figura 145 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 7 – 12. Harmonia
nos compassos 7 – 12.

Com a presença do acompanhamento, aparece uma nova distinção entre as


aparições melódicas, pois, na re-exposição, a melodia encontra-se na voz inferior. A
ausência de material musical no primeiro tempo dos compassos do
acompanhamento é responsável pela alteração harmônica em trechos como os
compassos 7 e 9, em relação aos mesmos compassos da exposição melódica.
Outra conseqüência dessa ausência de material musical é o ressalto das quartas
paralelas, desde o compasso 9 até o 12. Ao se considerar as quintas diminutas dos
compassos 7 e 8 como quartas aumentadas enarmônicas, observa-se a presença
constante das quartas no acompanhamento, intervalo harmônico de uso comum na
harmonia do século XX.
158

Em suma, a seção A (compassos 1 – 12) apresentam uma tessitura


homofônica, cujo resultado harmônico em blocos é mostrado na figura abaixo:

Figura 146 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 12. Harmonia
em blocos de acordes.

Nota-se então, que as vozes caminham em movimento paralelo durante todo


o encadeamento, cujo movimento descendente leva ao acorde da tônica nos
compassos 3, 6, e 12 70, o que sugere a fixação de lá maior como tônica pelo fato de
ser o caminho final do movimento das vozes. Concluindo-se, a ambigüidade
harmônica se encontra presente pela existência de acordes não tão próximos
relacionados com lá maior, com destaque para a mediante maior bemol do
compasso 3, cujo encadeamento resolve, de uma forma ou de outra, no referido
acorde. Há certo enriquecimento devido à presença quase que constante de notas
adicionais e/ou alteradas nos acordes tonalmente mais expressivos (dominante e
tônica), como quinta diminuta e sétima maior, que tornam mais surpreendente o
resultado tonal da peça. Os compassos 13 – 14 apresentam uma prolongação das
notas do acompanhamento do compasso 12, ou seja, uma afirmação da tônica lá
maior em uma pequena codetta.

Figura 147 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 7 – 14. Melodia com
variação e coda.

70
A nomenclatura em algarismos romanos corresponde àquelas presentes nas figuras 142 e 145.
159

2.11.2 – Forma e estrutura: “Wlas kotek na plotek” é mais uma das peças
deste ciclo com um padrão estrutural de recorrência (AA). Há a exata repetição dos
compassos 1 – 12 que não deixam dúvida quanto a isso. Uma análise mais interna
revela um padrão diferente daquele entre os referidos compassos. Como foi
observado no item anterior, a melodia folclórica é exposta e re-exposta de maneira
diferente, o que presume um caráter de variação e não de recorrência. Dessa forma,
divide-se a seção A (compassos 1 – 12) em suas subseções menores de seis
compassos cada, que contêm a melodia e sua variação, conforme mostra a figura
abaixo:

Figura 148 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 12. Divisão
seccional.

Ao se observar a figura 148, fica mais clara a presença do elemento variação


entre A1 e A2, responsável pelo contraste entre o padrão estrutural interno (variação
entre as subseções) e o externo (repetição da seção inteira) na peça71. Nota-se,
então, mais uma vez a presença do aspecto contraste em uma forma livre cuja
estrutura apresenta-se recorrente, fator responsável pela dinâmica de movimento
estrutural (variação) em um padrão não dinâmico por natureza (recorrência).

2.11.3 – Fraseologia e rítmica: a melodia folclórica em questão apresenta


um modelo de seis compassos, cuja divisão interna defasa da proporção do modelo
71
Padrão estrutural similar ao que ocorre na quinta peça do ciclo, “Ciranda, cirandinha”.
160

de oito compassos de Riemann (apud BENT, 1987, pg. 91). Na divisão de oito
compassos, há um par de motivos (zweitaktgruppe) que se agrupam em níveis
fraseológico-estruturais de quatro (halbsatz) e oito (periode) compassos72. Na
divisão fraseológica da melodia folclórica aqui em questão, a proporção é defasada
devido ao número ímpar (três) de compassos formando halbsatz (antecedente) e
nachtsatz (conseqüente). Como será visto na figura a seguir, o período de seis
compassos é divido em antecedente e conseqüente de três compassos cada, cujos
motivos contrastantes dividem-se em um grupo de 2 compassos e outro de um
(“eintaktgruppe”), respectivamente.

Figura 149 - Wlas kotek na plotek. Divisão fraseológica da melodia folclórica.

Há uma constância na relação rítmica entre antecedente e conseqüente da


frase, enquanto entre os grupos motívicos há um contraste nesse mesmo aspecto
musical. Nota-se a presença constante de dipolos entre constâncias e contrastes,
mesmo dentro de um espaço fraseológico relativamente pequeno de seis
compassos. O acompanhamento entre os compassos 1 – 6 apresenta-se com a
mesma estrutura de baixo – acorde – acorde, comum nos acompanhamentos de
valsas, cujos tempos fortes apresentam um padrão melódico descendente que se
repete entre os compassos 1 – 3 e 4 – 6.

Figura 150 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas Kotek na plotec. Compassos 1 – 6, clave inferior.
Linha melódica no baixo.

72
Vide: BENT, Ian. Analysis. W. W. Norton Company, NY, 1987, pg 91).
161

Observa-se a importância do aspecto da articulação para a definição de


elementos fraseológicos implícitos no acompanhamento, visto que a marcação do
acento deixa em evidência a linha melódica da figura 150. Dessa forma, pode-se
considerar uma relação polifônica entre melodia e acompanhamento, cujas notas
acentuadas apresentam um padrão melódico cromático descendente:

Figura 151 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 6. Polifonia
entre a voz melódica e as notas acentuadas do acompanhamento.

Entre os compassos 7 – 12, a melodia reaparece de forma variada, onde


novamente o ritmo tem papel fundamental na compreensão fraseológica. Enquanto
que nos compassos 1 – 6 a melodia aparece com acento natural no primeiro tempo,
nos compassos 7 – 12 o acento forte se desloca para o segundo tempo, o que
remete a duas danças comuns na polônia: valsa e mazurca 73, respectivamente.

Figura 152 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 7 – 12, clave
superior. Divisão fraseológica da melodia com variação.

73
Valsa e mazurca foram dois gêneros musicais explorados instrumentalmente pelo compositor
Fryderyk Chopin, cuja nacionalidade representa a descendência de Henrique Morozowicz, revelando
um aspecto de influência do primeiro no segundo.
162

O acompanhamento entre os compassos 7 – 12 se mostra diferente do


utilizado anteriormente: há a ausência de uma nota no tempo forte de cada
compasso, que são justamente as notas que formavam a linha melódica polifônica
com relação à melodia nos compassos 1 – 6. Essa ausência tem como finalidade
valorizar o acento melódico no segundo tempo, além de acabar se tornando um
aspecto a favor da consideração polifônica supracitada, ao valorizarem a presença
das notas no primeiro tempo dos compassos 1 – 6, uma vez que tal valorização
ocorre devido ao caráter contrastante que marca a diferença entre os
acompanhamentos. Embora não exista material musical no primeiro tempo do
acompanhamento nos compassos 7 – 11, os dois grupos de quartas paralelas
descendentes formam desenhos melódicos que se assemelham àqueles que
aparecem nos acentos rítmicos do acompanhamento na subseção A1. Enquanto em
A1 aparece uma linha cromática fá# – fá – mi, na voz superior das quartas paralelas
de A2 aparecem as linhas diatônicas mi – ré – dó e mi – ré – dó#. Ambas as linhas
estão em sintonia com os seus respectivos tempos fortes rítmicos, o que significa
dizer que há uma relação de deslocamento de um tempo entre as contramelodias de
A1 e A2.

Figura 153 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 7 – 12. Quartas
paralelas no acompanhamento melódico.

Como se pode observar, o ritmo tem participação fundamental na construção


fraseológica da peça como um todo, sendo elemento de variação tanto da melodia
quanto do acompanhamento. É também responsável pela introdução do caráter das
danças valsa e mazurca das aparições melódicas.

Para finalizar, analisar-se-á o inciso fraseológico da melodia. Embora o ritmo


tenha suma importância na construção fraseológica da obra, é o intervalo melódico
163

de terça o elemento que pode ser considerado como célula de inciso fraseológico,
visto que o mesmo aparece basicamente em toda a parte melódica da peça, como
mostra a figura abaixo:

Figura 154 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 14. Inciso
melódico na obra.

Na figura 154, as partes sublinhadas representam os intervalos de terça na


melodia, cuja presença em todos os compassos faz com que se torne o elemento do
qual toda a melodia deriva. Nota-se também que é esse intervalo o elemento de
variação melódica utilizado pelo compositor entre os compassos1 e 7, mostrando
que foi trabalhado o elemento de inciso para tal variação nesse caso. É também do
elemento inciso que provém o principal elemento de variação rítmica entre as
melodias, visto que o intervalo entre a nota do tempo 1 e a nota acentuada do tempo
2 (compassos 7 – 8 e 10 – 11) é o de terça.
164

Figura 155 - Primeiro Caderno da Karina nº11: Wlas kotek na plotek. Compassos 1 – 12, clave
superior. Relação entre ritmo e inciso fraseológico na seção A.

Conclui-se, por fim, que a rítmica da peça está inteiramente relacionada com
o inciso fraseológico da mesma, mostrando mútua presença na variação estilística
do duplo caráter de dança, principal elemento de contraste existente em uma peça
cujo modelo de recorrência AA domina a construção estrutural da mesma.

2.12 – HOP, HOP, HOP GALOP74

2.12.1 – Harmonia: de todas as peças do ciclo, “Hop, hop, hop galop” é a


única na qual a melodia não inicia no primeiro compasso. Nos compassos 1 – 2 há
um ostinato harmônico-rítmico sobre as notas dó bemol, ré e mi. Considerando dó
bemol como enarmônico de si natural, as notas formam a tétrade mi – [sol(#)] – si –
ré, havendo uma ambigüidade com relação ao modo do acorde devido à ausência
do terceiro grau.

Figura 156 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 1 – 4. Introdução.

74
Tradução escrita na partitura: Hop, hop, os cavalos à galope.
165

No compasso 5 entra a melodia folclórica que, na tonalidade de fá maior,


causa a politonalidade ao ser combinada com um acompanhamento de tônica mi. A
presença constante das notas sol# e dó# levam à hipótese de mi maior como tônica
do acompanhamento.

Figura 157 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 12. Seção A.
Harmonização.

Na figura 157, a numeração romana superior indica a harmonia melódica, em


fá maior, enquanto que a numeração inferior representa a harmonia do
acompanhamento, em mi maior. Nos dois últimos compassos da seção (11 – 12), há
a numeração central, que indica a mesma função harmônica entre melodia e
acompanhamento, ou seja, um breve momento de ausência de politonalidade na
seção. Observa-se a presença constante do mini cluster no acompanhamento da
peça, funcionando ora como nota adicional (quando o intervalo é de segunda menor)
ora como nota do acorde (intervalo de segunda maior). A indicação do compositor a
respeito da repetição dos dois últimos compassos da seção A apresenta-se como
elemento de ratificação do contraste entre a politonalidade em grande parte da
seção (5 – 10) e tonalidade singular, visto que o artifício tem como finalidade repetir
diversas vezes o pequeno trecho onde a harmonia não é politonal.
166

Figura 158 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 12. Contraste
entre tonalidade e politonalidade.

O desenvolvimento harmônico da seção A apresenta um detalhe no momento


em que ocorre a múltipla repetição dos compassos 11 – 12: As tonalidades fá maior
(clave superior) e mi maior (clave inferior) se dissolvem em uma terceira tonalidade,
dó maior, a partir da repetição constante do acorde de sétima de dominante. Essa
repetição ad libitum acaba por distanciar ainda mais a sensação de um centro tonal,
visto que, tonalmente, representa algo diferente do que ocorrera nos compassos
anteriores da seção. Em suma, a seção A apresenta um grande contraste harmônico
que é valorizado pelo “grifo musical” dos compassos 11 – 12.

A segunda seção, por se tratar de uma repetição quase integral da seção


anterior, apresenta basicamente o mesmo discurso harmônico, com exceção do
compasso final, que foi adicionado após os dois compassos de repetição indefinida.
167

Figura 159 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 13 – 21.
Politonalidade e tonalidade na seção A‟.

Nota-se que entre as seções ocorrem pontos harmônicos comuns à harmonia


tradicional: a seção A, embora inicie com uma politonalidade, finaliza em um acorde
de dominante da dominante, enquanto que o final da seção A‟, também de início
politonal, resolve em uma cadência perfeita V – I.75 Dentre as razões para se
considerar o acorde de sol bemol maior como acorde de sétima da dominante
indireto de fá maior, a principal se encontra na relação intervalar do acorde: nas
notas da terça e sétima (si bemol e fá bemol) forma-se o mesmo trítono do acorde
de sétima da dominante natural de fá maior (mi – si bemol), cuja resolução acontece
nas notas fá natural (enarmônico de sol dobrado bemol) e lá. Há ainda a nota sol
bemol, tônica do acorde de dominante, que resolve naturalmente também na nota fá,
estabelecendo a relação de tensão – relaxamento que caracteriza a cadência V – I
entre esses dois acordes, conforme mostra a figura abaixo:

75
Esse esquema harmônico foi usado pelos compositores do século XVIII, principalmente, para a
diferenciação harmônica entre exposição e re-exposição temática na forma sonata, por exemplo.
168

Figura 160 - relação indireta de dominante entre sol bemol maior com sétima e fá maior.

Conclui-se, então, que “Hop, hop, hop galop” apresenta uma ambigüidade
harmônica (elemento característico da nova concepção de tonalidade do
compositor76) a partir do uso do politonalismo, cujo contraste com trechos de
tonalidade singular reforçam os caminhos oblíquos percorridos pela harmonia.

2.12.2 – Forma e estrutura: esta peça apresenta novidades estruturais com


relação às demais peças do ciclo. Os quatro compassos iniciais, que apresentam a
estrutura rítmica principal do acompanhamento, podem ser considerados como
introdução à peça, cuja melodia inicia no compasso cinco. O que separa o material
introdutório da seção propriamente dita são, além da melodia folclórica, os sinais de
repetição entre os compassos 5 – 12, responsável pela real distinção entre as duas
referidas partes da peça. O material introdutório pode ser observado na figura 156.

Na seção A, ocorre um fenômeno musical incomum: a dilatação da seção a


partir da repetição ad libitum dos compassos 11 e 12, já mencionada. Dessa forma,
passa ao controle do intérprete a extensão da seção A‟, ou seja, a estrutura passa a
se tornar um elemento de variação dentro da peça como um todo.

76
MOROZOWICZ, apud PROSSER in NETO, 1994, pg. 185
169

Figura 161 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 12. Elemento de
variação seccional nos compassos 11 – 12.

Observa-se, então, que o trecho de repetição ad libitum influencia o conteúdo


musical não só em aspectos harmônicos, mas também em aspectos formais e
estruturais, que usualmente são modelos invariáveis77 após o momento de
finalização da peça pelo compositor. A repetição da seção foi considerada como
sendo A‟, e não A, devido à adição do compasso final contendo a relação cadencial
na tônica melódica. A resolução cadencial do compasso 13 (ou 21, considerando-se
a repetição) e a relatividade quanto à repetição dos compassos 11 – 12 e 19 – 20
(repetição) são fatores decisivos na denominação do caráter variação entre a seção
e sua repetição. Os detalhes diferenciais entre as seções podem ser observados na
figura abaixo:

77
Aspectos formais e estruturais, no geral, são modelos fixos no sentido de que, uma vez compostos,
não são passíveis de variação. A repetição indicada pelo compositor torna a estrutura variável quanto
ao número de compassos existente na mesma, de acordo com a quantidade de vezes que o trecho
será repetido pelo intérprete.
170

Figura 162 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 13 – 21. Elementos
de variação na seção A‟.

Por fim, conclui-se que o modelo estrutural obra é o de AA‟, ou seja, uma
estrutura de variação. Outro fator diferenciador na estrutura dessa peça é a
presença de um material de introdução, ao invés do comumente usado material da
coda. Como elemento de novidade presente nessa peça, tem-se a variação
estrutural no aspecto de duração seccional, como já foi supramencionado.

2.12.3 – Fraseologia e rítmica: a última peça do ciclo apresenta um


apequena introdução, de quatro compassos, que expõe a célula rítmica principal do
acompanhamento, na clave inferior (compassos 1 – 2) e na clave superior (3 – 4).

Figura 163 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 1 – 2, clave inferior.
Subdivisões da célula rítmica principal.

A figura 163 mostra dois compassos com elementos rítmicos exatamente


iguais, porém com elementos melódicos diferentes. Há uma alternância entre as
colocações das notas simples e notas duplas (mini clusters) nos tempos fortes ou
fracos da subdivisão do compasso (8/16): em A1/B1, as notas simples ocupam os
171

tempos fortes, enquanto que em A2/B2 as notas duplas o fazem, havendo, então,
uma relação de alternância entre os compassos 1 e 2. As subdivisões da célula
rítmica da figura 163 compreendem grande parte da construção do
acompanhamento melódico, sendo considerado elemento de suma importância da
composição.

Figura 164 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 12. Rítmica na
seção A.

Como se pode observar, o elemento rítmico mais explorado no


acompanhamento da seção é o elemento B2, cuja variação com relação à célula
original se encontra na parte melódica. Um segundo aspecto a ser observado se
encontra no trecho da repetição ad libitum: é o único local onde há uma variação de
elementos da primeira parte da rítmica principal (A1 e B1), ressaltando essa
determinada parte rítmica através da repetição contínua da célula variada, em
contraste com o restante do acompanhamento da seção sob exploração dos
elementos A2/B2. A repetição ad libitum também ressalta a importância do mini
cluster no discurso musical, uma vez que o mesmo se encontra presente em grande
quantidade no acompanhamento melódico. O acompanhamento da seção A‟
apresenta o mesmo material rítmico da seção anterior, além do compasso adicional
que encerra a obra. Nesse último compasso, é novamente ressaltada a importância
do mini cluster, sendo esse o intervalo, presente na nota final do acompanhamento
melódico, a encerrar a peça, como evidenciado na figura 165:
172

Figura 165 - Primeiro Caderno da Karina nº12: hop, hop, hop galop. Compasso 21 (repetição).
Rítmica.

A melodia folclórica apresenta dois elementos rítmicos em sua construção,


podendo um ser considerado como variação do outro, visto que o primeiro tempo
entre eles é ritmicamente igual, conforme mostra a figura 166:

Figura 166 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 21. Elementos
rítmicos na melodia folclórica.

Da figura 166, conclui-se que a melodia apresenta uma rítmica não complexa
– formada apenas por dois elementos, A e B – trabalhados de forma melódica em
alternância de pentacordes ascendentes, descendentes e tríades.

A melodia, na seção A, apresenta a estrutura fraseológica de oito compassos


proposta por Riemann (apud BENT, 1987), apresentando-se em antecedente e
conseqüente de compassos cada 78, havendo a repetição do par de motivos
(zweitaktgruppe) no início de cada frase:

78
Devido à repetição contínua dos compassos 11 – 12, o resultado fraseológico do período não
corresponde ao modelo proposto por Hugo Riemann devido ao aumento do número de compassos
devido à referida repetição. Apenas para fins de estudo da fraseologia, considera-se a ausência da
repetição no trecho em questão.
173

Figura 167 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 12. Divisão
fraseológica da melodia folclórica na seção A.

Na figura acima, as duas grandes ligaduras de frase representam,


respectivamente, antecedente e conseqüente do período (compassos 5 – 12). Os
motivos iniciais (compassos 1 – 2), que compõem o zweitaktgruppe, são formados
por pentacordes explorados de maneira descendente e ascendente sobre o acorde
de fá maior, enquanto que os compassos 1 – 4 apresentam a variação rítmica do
motivo principal, formada por arpejos descendentes contrastantes com os
pentacordes anteriores. Os contrastes dentro de cada frase são apresentados nas
figuras 168a e 168b:

Figura 168a - Primeiro Caderno da Karina nº12: hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 8. Contraste na
frase antecedente da melodia folclórica.

Figura 168b - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 9 – 12. Contraste
na frase conseqüente da melodia folclórica.

Da mesma forma que a repetição contínua dos compassos 11 – 12 influi na


estrutura da obra, a estrutura fraseológica recebe a mesma interferência, uma vez
que a duração frase conseqüente está diretamente relacionada com o número de
174

repetições a serem executadas. Enquanto os referidos compassos apresentam


contraste harmônico com o restante da seção, na fraseologia um segundo contraste
vem à tona: são os dois únicos compassos onde a melodia se encontra na região
grave (clave inferior), servindo a repetição, então, para reforçar o contraste de
alturas entre os diferentes trechos da melodia.

A estrutura fraseológica da segunda seção apresenta, em grande parte, a


mesma divisão de frases da seção A, diferenciando-se apenas pela adição de um
compasso no final da frase conseqüente. O compasso adicional contém, na melodia,
um dos elementos rítmicos principais (A), cujo acompanhamento harmônico conduz
à tônica de fá maior e completa o ciclo harmônico iniciado no final da frase
conseqüente da seção anterior, cuja dominante da dominante permanecera
irresoluta até então.

Figura 169 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 13 – 21. Divisão
fraseológica da seção A‟.

A estrutura fraseológica da seção A‟ também sofre alterações como


conseqüência direta do compasso adicional. A frase conseqüente passa a ter cinco
compassos, o que forma um período de nove compassos, fora da simetria
fraseológica de Riemann (apud BENT, 1987). No tratamento harmônico da segunda
frase, percebe-se que a melodia termina no quinto grau, ao invés do tradicional
primeiro grau, o que a diferencia das demais melodias utilizadas neste ciclo.

Na melodia folclórica, o inciso fraseológico vem a ser os intervalos melódicos


de terça da tríade em estado fundamental, presentes diretamente nos compassos 7
– 8 e indiretamente nos demais compassos, conforme mostra a figura abaixo:
175

Figura 170 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 13 – 21. Inciso
79
fraseológico na melodia da seção A‟.

A partir da observação da figura 170, constata-se que a maior parte dos


arpejos é formada sobre tríades maiores, o que implica na sobreposição de uma
terça maior e outra menor na formação do inciso fraseológico. Porém, há também a
tríade diminuta, que implica na sobreposição de duas terças menores. Dessa forma,
conclui-se que o inciso fraseológico vem a ser a sobreposição de um intervalo de
terça maior com outro de terça menor, sendo a tríade diminuta uma variação do
inciso fraseológico principal. Nota-se, então, uma nova importância do trecho de
repetição ad libitum, responsável por ressaltar, além dos contrastes harmônicos e
fraseológicos supracitados, o elemento de variação do inciso fraseológico.

O inciso também é demonstrado nos compassos 3 – 4 da introdução, onde os


intervalos de terça maior e terça menor são escritos separadamente,
respectivamente nos compassos 3 e 4:

Figura 171 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 1 – 4. Elementos do
inciso na introdução.

79
O inciso é equivalente na melodia da seção A. Optou-se pela demonstração na seção A‟ devido ao
compasso final adicional.
176

No acompanhamento melódico, os intervalos de terça maior e menor


aparecem constantemente, embora em grande parte indireta: estão camuflados pela
presença dos mini clusters, que fazem com que o intervalo não seja diretamente
sentido. Os intervalos de terça presentes no acompanhamento melódico são
mostrados na figura abaixo, uma vez retiradas as notas dos mini clusters que
camuflam o intervalo.

Figura 172 - Primeiro Caderno da Karina nº12: Hop, hop, hop galop. Compassos 5 – 12. Inciso
fraseológico no acompanhamento melódico.

Na figura acima, os locais sublinhados apresentam as notas do


acompanhamento melódico que formam o intervalo de terça característico do inciso.
Percebe-se, então, que a introdução tem, como uma das finalidades principais, a
apresentação do inciso fraseológico, uma vez que, na célula rítmica principal
mostrada na figura 163, o intervalo de terça se apresenta camuflado da mesma
maneira que no acompanhamento dos compassos 5 – 6, visto que são idênticos
entre si. Por fim, conclui-se que o mini cluster, a repetição ad libitum e o ritmo são
elementos fundamentais na construção da peça, sendo responsáveis na
fundamentação dos elementos recorrentes e de variação.
177

3 - CONCLUSÕES

O desenvolvimento das análises musicais sobre as peças do ciclo “Primeiro


Caderno da Karina” revelou a presença de diversos aspectos musicais que tornam
as doze peças do ciclo, avulsas a priori, em uma unidade como um todo. A esses
aspectos, denominar-se-ão, aqui, como elementos característicos da obra em
questão.

O primeiro dos elementos característicos a serem observados, na obra, é a


identificação do compositor com a música popular: “... a gente via a espontaneidade
que funcionava tão bem na música popular – e que produz música artística também”
80
. Essa identificação com a música popular aparece, na obra, através das melodias
de canções folclóricas elegidas pelo compositor para as peças, sendo valorizada
não somente música folclórica brasileira, mas também a européia – uma das raízes
étnicas do compositor. Henrique de Curitiba descreve sua música da seguinte forma:
“Eu sou o reflexo do meio em que eu vivo e esse meio é o sul do país, é Curitiba,
com todas as etnias e imigrantes. Minha música é uma mistura das tradições
81
européias e da música brasileira” . Tendo ascendência européia – polonesa, mais
especificamente – o seu natural interesse pela música popular também se imergiu
no folclore europeu, como pôde ser observado nas melodias folclóricas das peças
de nº7 a nº12.82

No aspecto da harmonia, os elementos característicos encontrados são


aqueles que, de alguma forma, contribuem para a nova concepção de tonalidade
83
objetivada pelo compositor, buscando as “novidades agradáveis ao ouvido” . Entre
essas novidades encontra-se a ambigüidade harmônica, que está presente em todas
as peças do ciclo sob diversas formas. A forma geral de ambigüidade harmônica na
obra, por se encontrar em todas as peças, é o desenvolvimento de estruturas
harmônicas de caráter atonal para acompanharem melodias cuja harmonia tonal é
80
Gonzaga, Maria Clara de Almeida. Música cênica para piano: Cinco peças brasileiras. Dissertação
de Mestrado pela Universidade de Campinas UNICAMP. 2002. Pg 113. Trecho mencionado pelo
compositor em entrevista com a autora.
81
MOROZOWICZ, apud PROSSER in NETO, 2004, pg 185.
82
Melodias folclóricas européias presentes no ciclo “Primeiro Caderno da Karina” foram material para
outras obras para piano do compositor, como “Variações Frère Jacques” (1985) e “Variações
Ingênuas” (1960).
83
MOROZOWICZ, apud PROSSER in NETO, 2004, pg. 185.
178

reconhecível ao ouvido da maioria, inclusive leigos, devido ao seu aspecto popular.


Nesse caso, a ambigüidade ocorre devido à nova harmonia inserida, que soa como
novidade auditiva.

No âmbito particular de cada peça, entre os elementos catalisadores da


ambigüidade harmônica se encontra o “mini-cluster”, termo empregado, neste
trabalho, para designar intervalos harmônicos de segunda, maiores e menores. Nas
peças do ciclo, esses intervalos causam desequilíbrio harmônico, basicamente, de
cinco formas: acordes com notas adicionais84; acordes com sexta adicional –
inversões naturais do relativo menor com sétima; intervalos característicos de modos
eclesiásticos; intervalo invertido característico de acordes de sétima da dominante;
acordes de quarta apojatura. A primeira forma é visível em especial na primeira peça
do ciclo (bem como nas peças nº7 e nº12) e causa desequilíbrio devido ao impacto
natural de dissonância gerado pelos sons adicionais do acorde, que acabam, dessa
forma, escondendo funções tonais normais existentes na harmonia da peça e geram
a ambigüidade. A segunda forma se encontra nas peças nº8 e nº9, onde o intervalo
de segunda pode ser associado, simultaneamente, aos graus 5 e 6 do acorde de
tônica e aos graus 1 e 7 do acorde de tônica relativa. A terceira forma se encontra na
peça nº2, onde os intervalos de segunda maior e menor presentes dentro do
pentacorde tornam o mesmo característico dos modos jônio/mixolídio ou lídio,
causando ambigüidade harmônica através da interposição modal. A quarta forma
aparece nas peças nº3, nº5 e nº10 (bem como na nº1), onde sua presença no
acorde da tônica final melódica transforma o acorde em dominante individual sem
resolução, tornando a harmonia ambígua. A quinta e última forma se encontra em
especial na peça nº6, onde sua presença transforma o acorde de tônica em quarta
apojatura, ambíguo devido às duas possibilidades de resolução natural na terça
maior ou terça menor do acorde. Sua não resolução desequilibra a harmonia no
sentido de que não estabelece definidamente uma tonalidade maior ou menor na
peça.

Observa-se, então, a importância do intervalo harmônico de segunda na


concepção harmônica das peças do ciclo, se tornando um dos artifícios mais
presentes na questão da novidade harmônica. Sua natural característica dissonante

84
PERSICHETTI, 1985, pg. 111.
179

cria alguma forma de tensão na estrutura harmônica, fazendo com que a melodia
folclórica soe de forma incomum e nova aos ouvidos acostumados com a harmonia
tradicional dessas canções.

Dada a característica comum de textura homofônica presente em uma canção


folclórica com acompanhamento, o emprego de textura polifônica em grande parte
das peças do ciclo acaba por se tornar um segundo elemento característico de
importância na questão do desequilíbrio harmônico. A independência das vozes,
característica dessa textura, leva à necessidade de uma análise horizontal das
mesmas para um melhor entendimento do resultado vertical. Nesse caso, a
ambigüidade harmônica acontece das seguintes formas: interposição modal;
alternância modal; atonalidade vertical. A primeira forma é observada na peça nº2,
onde duas melodias independentes expõem dois modos eclesiásticos distintos,
causando ambigüidade harmônica através da interposição. A segunda forma se
encontra na peça nº3, onde a disposição vertical das duas melodias, folclórica e
contrapontística, resulta em alternância de momentos tonais e modais. A terceira
forma ocorre nas peças nº5 e nº8, onde as melodias independentes geram
momentos de atonalidade devido à sucessão dos momentos verticais do
entrelaçamento polifônico. Há ainda uma quarta forma de desequilíbrio harmônico
através da polifonia, que é decorrente do contraponto imitativo. A imitação motívica
presente na peça nº10 causa ambigüidade harmônica devido às várias tônicas
empregadas nos motivos imitativos.

O terceiro elemento característico presente no ciclo, em aspectos harmônicos,


vem a ser o emprego eventual de harmonias por quartas, que são acordes
85
ambíguos por natureza devido à sua estrutura intervalar simétrica. A harmonia por
quartas ocorre, basicamente, de duas formas: estruturas de quartas paralelas no
acompanhamento; formação de acordes por quartas. A primeira ocorre nas peças
nº5, nº7 e nº11 e a ambigüidade ocorre devido à característica independente que a
sucessão de quartas paralelas adquire com relação à tônica da melodia folclórica
(visível especialmente na peça nº5). A segunda forma ocorre nas peças nº1, nº5, nº7
e nº9, causando ambigüidade devido à sua natural indefinição da tônica pela

85
PERSICHETTI, 1985. Pg. 96.
180

eqüidistância intervalar das notas, cabendo à melodia a proposição de uma tônica


para o acorde86.

Remetendo-se às características da harmonia presente no ciclo, os três


elementos supracitados são os principais colaboradores para a presença da
ambigüidade harmônica. Observa-se a união de várias correntes da harmonia
musical na formação de um novo panorama tonal, como o modalismo e o
atonalismo. O tonalismo acaba sendo, de uma forma indireta, também um elemento
característico da obra devido à sua onipresença nas melodias folclóricas, o que o
transforma em material recorrente na construção harmônica da obra como um todo.
Dessa forma, a união de uma estrutura de acompanhamento de caráter modal ou
atonal com uma melodia folclórica essencialmente tonal expõe, nas peças do ciclo,
uma concepção harmônica que, por sempre possuir uma referência direta ao
tonalismo através das melodias folclóricas, está relacionada ao tonalismo, podendo,
então, ser associada à nova concepção de tonalidade do compositor. 87 Maria Clara
de Almeida Gonzaga, em sua dissertação de mestrado 88, transcreveu o seguinte
trecho de uma entrevista com Henrique de Curitiba, exprimido pelo último:

“Existem compositores inovadores que querem criar aquele mundo


diferenciado da música e tem aqueles que querem escrever mais dentro da
tradição mas dando uma „rearranjada‟ nos elementos. É o que a gente vê na
Música Popular: „Não dá mais pra escrever em Dó Maior!‟.” GONZAGA,
Maria Clara de Almeida. Música Cênica para Piano: Cinco Peças
Brasileiras. Dissertação de Mestrado pela Universidade de Campinas. 2002.
Pg. 127.

No âmbito da forma e da estrutura, há um grande elemento característico, de


recorrência em todas as peças, que vem a ser a forma de peça característica,
apresentada por doze miniaturas musicais, peças de uma página apenas, que
variam entre 28 compassos e 9 compassos apenas. Gyovana Carneiro assim se
refere ao compositor:

86
Ibid. Pg 96.
87
MOROZOWICZ, apud PROSSER in NETO, 1994, pg 185.
88
GONZAGA, Maria Clara de Almeida. Musica Cênica para Piano: Cinco Peças Brasileiras.
Dissertação de Mestrado pela Universidade de Campinas – UNICAMP, sob orientação do prof. Dr.
Mauricy Martin. 2002.
181

A forma parece ser o mais importante na obra desse músico que, com seu
extraordinário poder de síntese, apresenta uma produção que funde o
compositor brasileiro com suas raízes eslavas; é significativa a sua
contribuição para o repertório pianístico de uma maneira muito pessoal, já
que o piano era o seu instrumento. (CARNEIRO, Gyovana. In Vino Veritas:
89
A viagem musical de Henrique de Curitiba, 2008, pg.232).

O poder de síntese do compositor o qual a autora se refere pode ser


observado no conteúdo musical presente nessas miniaturas musicais de “Primeiro
Caderno da Karina”, através da forma de peça característica. A partir desse
elemento característico, o compositor desenvolveu as melodias em diversos
modelos estruturais, baseados em recorrência, contraste e variação 90: AA‟, AB,
ABA‟, AA. Nota-se também a presença de peças com uma única seção, cuja
estrutura pode se denominar como sendo apenas “A”. Assim sendo, tem-se um
conjunto de diferentes modelos estruturais individuais que se enquadram, devido à
qualidade de miniatura das peças, no modelo formal de peças características.
Segundo Deloise Chagas Lima (2007, pg. 209), a respeito de Henrique de Curitiba:
“as suas obras são, na sua maioria, curtas e concisas na forma, com idéias musicais
curtas e brevemente desenvolvidas e que às vezes duram por apenas alguns
compassos. Por esta razão, pode ser considerado um miniaturista”.91 De uma
maneira geral, duas estruturas, binária e ternária, são características desse grupo de
peças, havendo, também, uma novidade, que é a existência de uma estrutura
unitária, presente na peça nº7.
Em aspectos fraseológicos, há um elemento característico que se sobressai:
a repetição, com alguma forma de variação, da melodia folclórica. Esse tipo de
repetição se encontra nas peças nº 1, 2, 3, 4, 5, 7 e 10, sendo as variações
compostas sob diferentes prismas musicais: ritmo, altura, textura musical e
harmonia. É necessário ressaltar que a variação não está necessariamente contida
na melodia, mas também no acompanhamento da mesma. É o que ocorre, por
exemplo, na peça nº10, onde a melodia contrapontística – que funciona como
acompanhamento – é diferente na exposição e repetição da melodia folclórica,
gerando uma variação através da harmonia. A peça nº1 exemplifica uma variação
através do ritmo, como pode ser observado no deslocamento relativo entre melodia

89
Disponível em: http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/RevistaCientifica3/22_Gyovana_Carneiro.pdf.
90
BENT, 1987, pg. 88.
91
Disponível em: http://www.embap.pr.gov.br/arquivos/File/deloise_lima.pdf
182

e acompanhamento nas duas seções. A variação através da altura das notas é


observável na peça nº2, onde a exposição melódica se encontra na tonalidade de fá
maior e a re-exposição uma segunda maior ascendente (sol maior). Um exemplo de
variação melódica através da textura musical está contido na peça nº 4, onde ocorre
a exposição em uma textura homofônica e a variação em uma textura polifônica. O
mesmo ocorre na peça nº7.

Ao se comparar as melodias folclóricas utilizadas no ciclo com o padrão do


período de oito compassos proposto por Hugo Riemann 92, verifica-se que grande
parte das melodias se encaixa nesse padrão fraseológico, com exceção das
melodias presentes nas peças nº8 e nº 11. Apesar de haver essa simetria
fraseológica nas melodias em questão, há, na maioria delas, algum artifício
responsável por desequilibrar, de alguma forma, essa simetria do período. Na peça
nº1, por exemplo, o último compasso ternário em uma melodia com rítmica binária é
um desses causadores de desequilíbrio da simetria. Um segundo exemplo pode ser
observado na peça nº5, onde o acompanhamento de quartas e segundas paralelas
(compassos 9 – 11) prolonga a frase, aumentando o número de compassos e
deslocando-a do padrão de Riemann. O desequilíbrio da simetria fraseológica de
Riemann através da prolongação está presente nas peças nº 1, 2, 5 e 6,
considerando-se apenas as exposições melódicas.

Quando se considera as partes em que o compositor, de alguma forma,


promove uma variação, essa atinge o aspecto da simetria fraseológica nas peças
nº1, 2, 3, 5, 7 e 12. A peça nº12 representa um caso à parte, onde a repetição ad
libitum naturalmente desequilibra a simetria. Na peça nº7, ocorre uma espécie de
elisão, na repetição melódica (seção B), que acaba por interferir na simetria,
também, na simetria fraseológica. Nas demais peças, a perturbação da simetria nas
partes de variação da melodia se dá através da supracitada prolongação. Dessa
forma, conclui-se que o processo de perturbação da simetria fraseológica de
Riemann é um dos elementos característicos, referentes ao ritmo, na obra “Primeiro
Caderno da Karina” de Henrique Morozowicz, sendo executado de diversas formas,
entre elas: prolongação pela mudança do compasso, prolongação pelo aumento de
compassos, elisão e repetição contínua de determinados trechos melódicos.

92
Apud BENT, 1987.
183

Finalizando, conclui-se que a análise do referido ciclo expõe, como


observado, uma série de traços evidentes na personalidade musical do compositor,
traços esses que acabam por se tornar importantes elementos de conhecimento
para o caráter interpretativo não só do ciclo “Primeiro Caderno da Karina”, mas
também de outras obras de Henrique de Curitiba, em especial das escritas para o
piano. De uma maneira geral, observou-se que a questão harmônica tem
fundamental relevância na concepção musical do compositor, em virtude de que
através dela uma série de canções cuja harmonia é conhecida foi apresentada sob
um diferente prisma, contendo diversos elementos de combinação que
transformaram o colorido harmônico sob novas concepções de tonalidade. Em
suma, “Primeiro Caderno da Karina” é um pequeno ciclo de doze canções folclóricas
que refletem bem uma série de características da escrita de Henrique Morozowicz
com relação à harmonia, estilo, caráter e forma/estrutura, mostrando um gênio
bastante criativo na arte da escrita de obras em miniatura, onde se há muito a dizer
em pouco material musical.
184

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ANEXOS
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