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Capítulo 8
Youtubers mirins e as subjetividades
infantis contemporâneas
Renata Tomaz
1 Introdução
O fenômeno dos youtubers mirins, crianças que chegam a ter milhões
de inscritos em seus canais no YouTube e bilhões de visualizações em
seus vídeos, é cada vez mais um lugar produtivo para compreendermos
a emergência de figuras públicas infantis e as reverberações dessa
presença nos diferentes cenários da contemporaneidade. A produção
de conteúdo audiovisual para a internet, por meninos e meninas que
ainda cursam o ensino fundamental, permite que se desloquem para
uma posição de relevo social e, assim, alcancem distinção em relação a
outras crianças usuárias da plataforma, revelando novos tipos subjetivos
infantis, dentre os quais está o da criança famosa.
A pesquisa da qual este paper se origina problematiza a presença
pública das crianças por meio dos usos que fazem das mídias digitais.
Intenciono investigar as repercussões de tamanha visibilidade e veri-
ficar se as práticas de youtubing podem amplificar suas vozes nas socie-
dades em que estão inseridas. Interessa-me saber, portanto, de modo
mais amplo, se a celebridade dos chamados youtubers mirins poderia se
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4 Da visibilidade à audibilidade?
Conforme exponho acima, a emergência de figuras públicas infantis é
um fenômeno localizado historicamente, de caráter cada vez mais midi-
ático. Defendi, ainda, que o YouTube contribuiu fundamentalmente para
a formação de uma nova modalidade de fama entre as crianças, permi-
57 Tradução livre de: “with its clarity, simplicity and conviction […], its seamless conso-
nance with the reigning tenets of a neoliberal ideology”.
58 Tradução livre de: “YouTube has created an opportunity for the average person to build
his or her personal brand”.
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59 Tradução livre de: “the aggregate of the actual or potential resources which are linked
to possession of a durable network of more or less institutionalized relationships of mutual
acquaintance and recognition”.
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E essa rede, por sua vez, poderá ser comodificada, na medida em que
o número de inscritos de um canal e de visualizações de seus respec-
tivos vídeos incide diretamente no CPC (Custo Por Clique), indicando
o potencial monetário de cada canal60. Quanto mais inscritos e visuali-
zações, ou seja, quanto maior for a rede do canal, mais chances ela tem
de atrair anunciantes. É possível dizer, então, que esse tipo de capital
social também confere distinção aos seus detentores, uma vez que, ao
mobilizarem milhões de usuários em torno de seus nomes, legitimam
a vida de celebridade mirim como um modo prestigioso de estar no
mundo. Valendo-se de tais recursos, distinguem-se de outras crianças
quando se deslocam para uma posição de relevância social. As intera-
ções provocadas pelos youtubers, nessa perspectiva, ensejam relações de
poder, que apontam modos eficazes pelos quais a mídia se configura
como um lugar legítimo de construção de realidades.
Com base nessa percepção, defendo que a celebridade dos produ-
tores infantis de conteúdo, sustentada por tão grande rede, repercute
nas relações sociais mais amplas. Um desses impactos pode ser visto nas
ações desencadeadas por organizações de defesa do direito das crianças,
como o Instituto Alana, que acionou o Ministério Público por meio da
denúncia de prática publicitária abusiva nos canais de youtubers mirins.
A pressão sobre as marcas e fabricantes, que interpelam as crianças
enviando produtos com a expectativa de serem gratuitamente promo-
vidos, já tem efeitos sobre o próprio conteúdo dos vídeos. Em muitos
deles, independentemente do ritmo do processo, a descrição passou
a avisar que os produtos exibidos foram comprados com recursos
próprios. A ilustração mostra que o modo como as crianças são retra-
tadas impulsiona ações, nesse caso de organizações sociais, do direito e
da justiça, que, por sua vez, afetam a própria maneira de produzir nos
canais.
As múltiplas imagens e conteúdos que circulam pelas plataformas
digitais são cotidianamente carregadas de sentidos e significados que
60 “Desde 2020, os vídeos infantis do YouTube não podem mais ser monetizados via pla-
taforma. A ação é resultado de um conjunto de medidas anunciadas depois que a empresa
Google, dona do YouTube, foi multada em 170 milhões de dólares por coletar inadvertida-
mente dados das crianças usuárias site. “
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5 Considerações finais
A passagem das crianças de uma vida comum para uma vida de cele-
bridade tem suas raízes, como posto acima, na cultura popular europeia
e estadunidense, entre os séculos XVIII e XIX. Mas se estende com as
estrelas mirins do cinema hollywoodiano e se intensifica com a ascensão
das mídias eletrônicas, ao longo do século XX. No Brasil, os rituais
midiáticos que deslocaram as crianças para o lugar da celebridade são
tributários especialmente da televisão. Contudo, mais recentemente, o
aumento do acesso de meninos e meninas às mídias digitais ampliou as
oportunidades de uma criança se tornar uma celebridade.
Procurei mostrar, ainda, que esse processo depende menos de os
mais jovens terem uma habilidade específica, e mais da sua disposição
em se constituírem como uma marca pessoal, através de uma sistemá-
tica e voluptuosa produção de conteúdo audiovisual para a internet. A
possibilidade de monetizar os vídeos publicados no YouTube insere a
produção de conteúdo em um plano de negócios no qual a capacidade
de manter-se visível é premiada e recompensada tanto em termos pecu-
niários quanto simbólicos. Além de receita, os youtubers alcançam rele-
vância social.
É a partir dessas condições de possibilidade que as meninas e
os meninos youtubers conseguem expandir cada vez mais sua rede
de inscritos e seguidores, por meio da qual se tornam cada vez mais
conhecidos, atingindo graus paulatinamente maiores de influência,
rapidamente comodificada no âmbito da plataforma. Nesse sentido, a
pergunta que faço é se tal fenômeno se restringe a conferir às crianças
visibilidade midiática ou se comporta algum tipo de audibilidade, ou
seja, se permite que as crianças sejam ouvidas em suas especificidades.
Termino este paper, portanto, não com resultados de uma busca, mas
com o problema com base no qual darei seguimento ao estudo. Não se
trata, neste sentido, do que encontrei, mas do que estou indo em busca
para compreender as repercussões da presença inconteste das crianças
no YouTube, como figuras públicas.
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