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NÚCLEO DE CAPACITAÇÃO

PROFISSIONAL

CURSO DE CAPACITAÇÃO PROFISSIONALIZANTE


Coordenação Pedagógica – IBRA

CURSO

SOCIOEDUCAÇÃO
SUMÁRIO

1 PEDAGOGIA SOCIAL DE RUA ................................................................... 06


1.1 O menino de rua e a educação social de rua no Brasil .............................. 10
1.2 A Rua como Ambiente Social ..................................................................... 14
1.3 As Famílias de Rua .................................................................................... 18

2 NOVO CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO E NOVA PEDAGOGIA


SÓCIO-POPULAR ........................................................................................... 19
2.1 Principais estratégias político-sociais para a infância e a
adolescência e a situação atual dos conselhos tutelares ................................. 20
2.2 A atuação da Pedagogia Social hoje.......................................................... 22

3 TEMAS PONTUAIS ...................................................................................... 28


3.1 O capital social ........................................................................................... 28
3.2 As organizações cooperativas.................................................................... 30
3.3 O terceiro setor........................................................................................... 33

REFERÊNCIAS CONSULTADAS E UTILIZADAS.......................................... 40


1 PEDAGOGIA SOCIAL DE RUA

Voltemos à década de 1970 que trouxe uma dura realidade para os brasileiros:
milagres não existem - ou pelo menos o chamado “milagre brasileiro” não existiu. Na
verdade, o que se chamou assim na época, para denominar esta rápida ascensão do
Brasil de uma nação de terceiro mundo para uma potência próspera e
superdesenvolvida, nunca passou de uma brincadeira, um espetáculo, ou como diz
Oliveira (2004), muito criticamente, uma “chanchada” mal resolvida.

Pois, embora o “milagre brasileiro” representasse, no imaginário popular e


da classe média, nos idos do ano de 1968, o equivalente ao que seriam os tigres
asiáticos das décadas seguintes, as suas bases eram frágeis, calcadas mais no
espetáculo e na propaganda, além, claro, dos empréstimos de alegres investidores
estrangeiros, que até hoje cobram centavo por centavo de uma dívida que cresceu
substancialmente em meio à ciranda financeira e de corrupção do projeto de
desenvolvimento. O que seria a entrada do Brasil no primeiro mundo como uma
potência emergente que, finalmente, guiada pelos tecnocratas da ditadura, ascendia
à glória acabou deixando de herança um tecido social mais solapado, a ampliação
da exclusão e uma “dívida” internacional que até hoje nos atrasa e nos escraviza
(OLIVEIRA, 2004).

Foi em meio à grande desilusão da classe média, no período pós-milagre


brasileiro, que um novo fenômeno urbano começou a preocupar profundamente
governos e cidadãos: a presença cada vez mais numerosa de crianças nas ruas das
grandes capitais. Na verdade, os “meninos de rua” tornaram-se um fenômeno social
a princípio nas cidades de médio e pequeno porte. Eram, em geral, os filhos de famílias
pobres de zonas afastadas que, em suas migrações provocadas pela miséria e
falta de opções locais, acabavam em cidades polo do interior de alguns Estados. A
constatação mais ou menos súbita de sua presença coincidiu com o desenvolvimento
de uma renovada sensibilidade social para com a pobreza, oportunizando programas
sociais que visavam a atendê-los em suas necessidades básicas.
Os primeiros programas de atendimento a “meninos de rua” eram tanto de
natureza filantrópica quanto desenvolvimentista. Assim, alguns ofereciam refeições e
local para dormir, outros se propunham ensinar a essas crianças e adolescentes
algumas habilidades que permitissem a sua inserção no mercado de trabalho.
Outros iam ainda mais longe, facilitando a organização de cooperativas de produção
e comercialização de produtos. Foram esses primeiros programas que, juntamente
com o trabalho de intelectuais, de religiosos e de trabalhadores sociais voltados para
crianças e adolescentes pobres, formaram o arcabouço de uma nova categoria de
serviços sociais: a Educação Social de Rua.
O Educador Social de Rua é um profissional remunerado ou voluntário, que
procura construir e manter um vínculo com a criança ou adolescente na rua e, a
partir desse vínculo, buscar que essa criança ou adolescente se disponha a construir
e a materializar um “projeto de vida”, ou seja, que essa criança ou adolescente
passe a buscar uma expansão das possibilidades de realização, uma possibilidade
maior do que ela normalmente teria acesso a partir de sua existência na rua. Para isso,
o Educador Social se instrumentaliza, utilizando as ferramentas pedagógicas, sociais
e institucionais que estão à sua disposição.

Em geral, essas ferramentas são os conhecimentos teóricos apreendidos em


sua formação como Educador Social, a experiência prática que vai acumulando em
seu trabalho, as conexões que estabelece no meio social e comunitário, que lhe
permitem ajudar a inclusão social da criança ou adolescente, e os meios
proporcionados pela instituição onde desenvolve seu trabalho.

Foi a partir do trabalho dos Educadores Sociais de Rua que se vislumbrou a


possibilidade de educar as crianças e os adolescentes “de” e “na” rua? Uma tarefa
pedagógica, segundo Oliveira (2004) bastante desafiadora, dadas as extremas
dificuldades apresentadas por essa população para dedicar-se a um projeto que exige
tempo, compromisso e vontade, como é o processo de educação.

Se já é difícil educar crianças bem-preparadas, bem-nutridas e bem-criadas,


com acesso a uma escola com bons recursos docentes e materiais, imagine-se a
tremenda dificuldade que é educar uma criança que não gozou, durante a maior
parte de sua vida, dos benefícios e da estrutura comumente oferecidos às outras de
classe econômica superior. O desafio pedagógico da Educação Social de Rua é, na
verdade, maior e demanda mais do educador do que a pedagogia escolar.
A Educação Social de Rua enfrentou estes desafios com brios e obteve claros
triunfos. A sua trajetória, como campo do saber e como construção profissional, é
exemplar. Conquistou seu espaço filosófico, construiu seu caminho profissional, foi
glorificada e exportada, inclusive para os Estados Unidos, que inteligentemente
incorporaram seus princípios à sua política nacional de educação.

No entanto, como a maioria das boas ideias que nascem no Brasil, foi
sufocada pelos mesmos motivos já conhecidos e que não permitem a solidificação dos
programas sociais nesse país: trocas de governo com extinção de quadros,
desconstrução de projetos, descontinuidade de financiamentos e, de maneira geral,
um descaso para com a História e o próprio destino da nação.
Seria, portanto, também um grande descaso não envidar todos os esforços
possíveis para que não se percam os frutos e a história dessa pedagogia.

A pedagogia social de rua foi construída arduamente, no contexto de uma


práxis que atravessou importantes ciclos políticos da História do Brasil, desde sua
gestação no período do “milagre brasileiro”, sua implantação, entre o final da década
de 1970 e a queda da ditadura, seu engajamento direto na luta pelos direitos
constitucionais, em que foi preponderante na promulgação do Estatuto da Criança e
do Adolescente em 1990, até sua pulverização e transformação nos projetos atuais,
nos quais ainda se mantém com algum fôlego, que esperamos possa redundar em
uma reanimação necessária ao futuro pedagógico da nação.

A Educação Social de Rua, nessa trajetória, afirmou-se como um movimento


profissional de transformação, comparável aos grandes e marcantes movimentos
pedagógicos progressistas do Ocidente moderno.

Sua retração, a partir da metade da década de 1990, ocorreu, em parte, devido


às próprias características do novo momento político e social, no qual se afirmou uma
hegemonia do processo que denominamos neoliberal e quando se retraíram todos os
movimentos sociais.
Nesse novo período, as lideranças na área da criança e do adolescente
passaram a dedicar-se com mais afinco à conquista de espaços políticos localizados
mais em repartições centrais, em detrimento do aprofundamento do trabalho “na
ponta”, junto às crianças e aos adolescentes, na rua. Com essa sequência de
mudanças, o resultado foi um adormecer mais ou menos geral da Educação Social
de Rua como programa social pedagógico e como movimento de base. Alguns
programas, é bem verdade, mantiveram-se e pode-se dizer que avançaram
pedagogicamente, como os projetos da Mangueira, no Rio de Janeiro, o Projeto Axé,
em Salvador, e a Escola de Porto Alegre. Contudo, o processo perdeu algumas de
suas características fundamentais como campo de saber em desenvolvimento.
Estagnou-se, por exemplo, a troca de informações, geralmente oferecidas em espaços
de formação profissional, como congressos, estágios e seminários, assim como
estagnou-se o processo de produção de material educativo, tanto voltado para a
prática com as crianças e os adolescentes como o voltado para o avanço da formação
dos educadores (OLIVEIRA, 2004).
O próprio campo profissional se retraiu, tornando pouco atrativo um mercado
de trabalho que, nos anos de 1980 e até meados dos 1990, se afigurava promissor.
Como consequência dessa estagnação e desse empobrecimento, o processo de
aperfeiçoamento dos educadores ficou comprometido, tanto o dos já em ação
quanto o dos novos, que surgiram depois do que chamou-se a fase áurea da Educação
Social de Rua (1979-1993).
No entanto, independente de promessas políticas e contingências
mercadológicas na área dos serviços sociais, o problema dos meninos e das
meninas de rua continuou crescendo. As populações de rua não desapareceram
com o advento da Nova República, nem no governo Collor, nem com a afirmação do
novo sistema econômico, com a implantação do Capitalismo Mundial Integrado, ou
como queiram, globalização.
Ao contrário, testemunhamos, no Brasil e em geral nos países explorados no
contexto desse modelo econômico, um aumento da miséria, do desemprego e da
violência urbana, uma piora sensível das condições gerais de vida da população de
quase todas as classes sociais e uma tendência à destruição da cultura e dos
valores locais, resultando em uma degradação cada vez maior do tecido social. Esse
é o lado perverso da globalização, diga-se de passagem.

Nesse quadro, que para muitos se afigura desesperador, os recentes


discursos eleitorais de prefeitos e governadores prometendo tirar as crianças das ruas
reeditam os de seus congêneres da década de 1980. E volta-se a falar na necessidade
de um trabalho sociopedagógico que dê conta não só das crianças e dos
adolescentes de rua, mas, também hoje, de todo um contingente enorme de excluídos,
que não têm acesso aos benefícios do capitalismo e que não dispõem de condições
mínimas de sobrevivência como preconizado pelos princípios fundamentais das
modernas democracias ocidentais.
Mais que nunca se faz necessário a utilização de uma ferramenta social que
trabalhe não só em nível do assistencialismo, mas que também pense e proponha
soluções em nível comunitário, e nas dimensões da prevenção de problemas e
promoção de qualidade de vida; uma pedagogia que seja, ao mesmo tempo,
educadora, de ação política e promotora de direitos.

Segundo Oliveira (2004) essa ferramenta já foi inventada e ignorá-Ia é voltar


à nossa sempre presente prática da reinvenção da roda. Vamos, portanto, dedicar-
nos a conhecer a Pedagogia Social de Rua, que oferece alternativas e aponta para
formas efetivas de combater a exclusão, mesmo que essas alternativas e formas
não possam ser consideradas como perfeitas ou definitivas.

1.1 O menino de rua e a educação social de rua no Brasil

O emergir deste campo de atuação profissional - a Pedagogia Social de Rua


ou Educação Social de Rua - é uma das páginas mais belas, vibrantes e poderosas
da História da Educação nas Américas. A perda de seu potencial seria um vexame
para o patrimônio intelectual da nação.

Oliveira (2004) é um apaixonado pela temática e pensando na preservação


deste material e na possibilidade de reavivar as discussões em torno dos temas que
a Educação Social de Rua mais intensamente trabalhou que decidiu contar a sua
história, a sua evolução, os seus grandes e persistentes desafios, e, assim,
proporcionar uma reflexão aos que estão hoje novamente se dedicando a pensar e
agir para a melhoria da situação de milhares de excluídos.

É, sem dúvida, uma vida de sofrimento. Quem vive na rua enfrenta muitos
estresses no cotidiano e muito raramente tem acesso a bens, para muitos de nós tão
simples, como educação, cuidados de saúde, habitação e lazer. A grande maioria
não dispõe do conforto de uma cama ou mesmo de água potável.
Para as crianças, há a ausência de adultos responsáveis, zelosos e protetores.
São, em geral, vítimas da negligência, da discriminação e da violência cometidas por
outros indivíduos ou pelas instituições sociais. Apanham, são torturados, às vezes
exterminados. Essas crianças, em sua absoluta maioria filhos e filhas de nossos
pobres, testemunham a falência da sociedade em distribuir seus bens de maneira
razoavelmente equitativa, em estabelecer serviços sociais competentes e em
assegurar oportunidades iguais. Elas são, na verdade, uma metáfora do colapso de
nossa sociedade.

Oliveira bem coloca que nossos meninos de rua passaram de uma


invisibilidade virtual para uma onipresença ostensiva e explica muito bem esse
processo.

Com a expansão da revolução industrial, da sociedade tecnológica e,


ultimamente, da era da informação, os “meninos de rua” tornaram-se onipresentes -
um problema social. E, paradoxalmente, estiveram, por muito tempo, invisíveis para
os olhos do público e inexistentes para a agenda da política social. Invisíveis
exatamente devido à sua onipresença, tendo-se tornado parte do cenário das cidades,
como as árvores, os mendigos ou os pombos.

Contudo, invisíveis também porque os governos tendem a ignorar problemas


emergentes até que uma crise ou uma grande desgraça denuncie a sua presença.

Os governos não têm, em geral, intenção de efetuar as mudanças


estruturais necessárias para a solução dos problemas que nos afligem, sobretudo
quando estão em jogo questões tão complexas, como a pobreza, o desemprego e o
déficit de habitação. E as comunidades tendem à apatia, manipuladas por esquemas
demagógicos ou voltadas para seus problemas mais óbvios, imediatos e menos
perturbadores, que podem ser “resolvidos” com obras e paternalismo.
Esse caldo político-cultural, formado pela negação dos problemas, fuga de
soluções estruturais, apatia, demagogia, egoísmo e compensações ilusórias tiveram
seu papel em manter o problema “meninos de rua” invisível por muito tempo e
certamente contribuíram para o desastre que se seguiu, o da explosão demográfica
das populações de rua. Mas, por outro lado, forças de resistência política e técnicos
dedicados teimaram em superar a inércia e a demagogia e denunciaram, clamaram
e expuseram essa chaga social que se tentava e se tenta minimizar e esconder.
Foi a partir dessas tensões, entre os que buscavam negar a gravidade da
situação e os que a denunciavam como escândalo, a partir do incômodo que as
crianças e os jovens da rua passaram a representar, e deflagrado por tragédias
pessoais, como assaltos e crimes contra a vida, que se desenvolveu uma sensibilidade
social que propiciou a busca de soluções institucionais. Os governos passaram a ter
de oferecer respostas para a vergonha que constituía a multidão de crianças e
adolescentes perambulando pelas ruas das grandes capitais do país, que ainda não
mudou e basta vermos as manchetes de alguns jornais escritos ou aqueles
programas de final de tarde de algumas emissoras brasileiras que diuturnamente
constatam as mazelas nas ruas das grandes cidades.

As soluções inicialmente propostas eram, em sua maioria, simbólicas, isto é,


ações limitadas ao mínimo necessário e lançando mão de um mínimo de recursos,
acompanhadas de discursos belos e politicamente corretos, mas sem uma prática
eficaz que lhes correspondesse. Dessa forma, satisfaziam-se cidadãos apreensivos,
compravam-se consciências culpadas e, ao mesmo tempo, dava-se conta de
exigências burocráticas. A ausência de soluções efetivas acompanhou a falência
dos programas sociais e, por conseguinte, o fracasso das tentativas de solução.

No entanto, se para os políticos é fácil manipular a realidade simbólica, a


realidade concreta teima em sua rebeldia. E o número de crianças e adolescentes nas
ruas, apesar dos discursos e práticas demagógicas, continuou, no período pós-
milagre econômico, a crescer. Continuou a incomodar, a perturbar o comércio e os
transeuntes e a envergonhar as cidades. Sua presença massivamente visível e sua
invisibilidade forçada tornaram-se uma contradição insuportável. Eles passaram a
prejudicar o próprio autoconceito de “em desenvolvimento”, tão carinhosamente
cultivado pelos governos para demonstrar que nosso país se encontrava no caminho
da ascensão política, econômica e social. Eles tornaram-se a negação do discurso
da moral e da democracia, atirando na cara da nação a nossa imoralidade e a nossa
grosseira existência subdesenvolvida e neocolonial. Para muitos, comprometidos
com o discurso do desenvolvimento, da pseudodemocracia, da moral e dos valores
preconizados pelo neocolonialismo, era melhor que essas crianças não existissem,
pois sua presença intolerável denunciava, de forma incontestável, a decadência de
nossa suposta civilização (OLIVEIRA, 2004).

E o número de populações de rua, sem teto, sem direitos, sem oportunidades,


teimava e teima em aumentar. A política do status quo insiste em mantê-los como
intrusos na vida cotidiana das comunidades, embora seja cada vez mais difícil
conservá-los invisíveis.

Não podendo ignorá-Ias, as ações continuam a ser cobradas, e nos


discursos elas continuam a ser incluídas em programas de governos de todas as cores.
Leis e políticas sociais têm sido promulgadas para proteger, educar, atender,
aconselhar, advogar e servir as crianças de rua de várias maneiras - e com diversos
graus de sucesso.

O número de serviços e organizações voltadas para o trabalho com as


crianças de rua aumentou significativamente e o interesse pela questão se estende,
hoje, ao mundo acadêmico, além da esfera política e social. E, justiça seja feita,
esse movimento tem alcançado um certo grau de sucesso, particularmente por meio
de organizações não governamentais e algumas iniciativas de governos, que
conseguem progredir apesar dos enormes obstáculos representados, sobretudo, por
dificuldades financeiras e políticas.

O sucesso alcançado por essas organizações e iniciativas se baseia muito


no trabalho das pessoas que lidam diretamente com as crianças e com os jovens -
os chamados Educadores Sociais de Rua. São eles que fazem a diferença, pois
política social nenhuma se realiza sem a ação concreta e cotidiana de seus executores
“na ponta”.

Quando uma criança decide mudar sua vida, abraçar um projeto de vida, por
trás daquela decisão se encontra uma pessoa que se dedicou de corpo e alma
àquela criança, geralmente sacrificando muito de sua própria vida pessoal e, muitas
vezes, encarando embates profissionais extremamente desgastantes. É, sobretudo,
a esses educadores que devemos a transição do fenômeno “meninos de rua”, de
sua invisibilidade virtual para uma posição de destaque no cenário da política social.
Essa mudança se deu a partir da Educação Social de Rua – um empreendimento
sociopedagógico centrado em competência profissional, mas também na força do
coração.
A emergência da Educação Social de Rua constituiu, portanto, um momento
histórico de transição no cenário político-social brasileiro, ligado diretamente a
transformações políticas, sociais e culturais que levaram a mudanças de pontos de
vista, de organizações estruturais e de modelos aplicados a um problema social
significativo.
A Educação Social de Rua protagonizou um movimento social liderado por
intelectuais e profissionais e que teve como um de seus mais importantes resultados
a promulgação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A retomada atual, por parte das lideranças políticas e intelectuais, do apoio à


Educação Popular e à Sociopedagogia de Meio Aberto representa um passo
importante em um processo de reflexão sobre os rumos da Educação e a integração
de um paradigma pedagógico-social à discussão das políticas sociais, particularmente
dos direitos humanos (OLIVEIRA, 2004).

Essa importância gera a responsabilidade de desvendar esta Pedagogia


Social de Rua, seu significado, sua trajetória histórica, seu desenvolvimento como
campo de saber, as questões que levanta quanto aos empreendimentos sociais
correlatos e ainda suas relações com o processo político e social de construção da
identidade nacional. É necessário clarificar o objeto de estudo da Educação Social
de Rua, seus objetivos e sua lógica de aplicação. Para isso, deve-se contextualizá-la
no universo em que ela se desenvolve e em relação a seus protagonistas: a rua, a sua
cultura e os meninos e as meninas que nela passam a maior parte de suas vidas.

1.2 A Rua como Ambiente Social

A rua é o principal ambiente social da criança de rua. Para essas crianças e


esses adolescentes é na rua que se faz amigos, aprendem-se ofícios, incorporam-se
valores e afirmam-se crenças e comportamentos. Esse espaço vital contextualiza a
convivência de uma população diversa, composta não só por moradores da rua, mas
também por uma miríade de trabalhadores e transeuntes que fazem daquele espaço
seu universo de atuação existencial. Estão aí incluídos também os diversos
componentes de redes de criminalidade, drogas, prostituição e, junto a esses,
policiais, profissionais de serviços sociais, agentes filantrópicos e educadores.

A população de rua mudou muito, do ponto de vista demográfico. Na década


de 1970, encontravam-se, principalmente, homens adultos, geralmente alcoólatras
ou viciados em drogas, e crianças e adolescentes a partir de sete ou oito anos. Hoje
a população de crianças e adolescentes excluídos tem, além da rua, um leque mais
amplo de inserções, como no narcotráfico ou em movimentos sociais como o dos sem-
teto. Quanto à idade, há cada vez mais jovens, famílias inteiras atingidas pelo
desemprego e uma quantidade cada vez maior de pessoas de idade avançada, vítimas
da destruição sistemática das redes de proteção social.

A “criança de rua”, hoje, tipicamente vive em um grupo familiar próprio,


sendo a rua principalmente um ambiente de trabalho; ou forma seus grupos
familiares ou substitutivos na própria rua, para poder melhor enfrentar a vida nessa
situação.

É comum agrupamentos de crianças e adolescentes, às vezes incluindo


adultos, formando o que se convencionou chamar de “famílias de rua”.

Poucas são as instituições que aceitam encarar as subculturas das ruas,


mas elas existem de fato e vieram para ficar, portanto, não há como escapar, é preciso
falar sobre elas, reconhecê-las e buscar alternativas de lidar com essas subculturas.

A relação entre as crianças de rua e a sociedade como um todo são mediadas


por uma subcultura, que inclui grupos formados na rua, uma estética da rua e estilos
próprios. Os grupos são formados pelas crianças de rua à base de afinidades e de
outras formas de identificação. As relações de grupo se mantêm à base de interesses
comuns, como o de exercer certas atividades, e alianças construídas para fins de
subsistência e de vantagens individuais ou coletivas.

Conhecer as “crianças de rua” inclui conhecer como essa subcultura se


estabelece e como se constituem essas alianças, ou, em outras palavras, saber: quem
está nas ruas, fazendo o quê? E com quem as crianças de rua estão, comumente,
aliadas?
Concordamos com Oliveira (2004) que não é muito fácil desvendar essas
questões. Do ponto de vista estatístico, não se tem muita segurança, não só graças
à fluidez dessa população, mas também o estilo da rua ser determinado pela
maneira como os seus habitantes se sustentam economicamente, em uma
sociedade que os excluiu do mercado de trabalho e da educação, em que a
comunidade em geral impõe severas restrições sobre a gente da rua. Essas restrições
determinam, em grande parte, aonde a gente da rua pode ir e o que lhes é permitido
fazer.

Inclui também uma variedade de estratégias de sobrevivência, que constituem


as negociações necessárias para que a criança e o adolescente tenham permissão
para atuar no ambiente da rua. Disso fazem parte as alianças com os diferentes grupos
pertencentes ao universo da rua, bem como as atividades que a criança e o
adolescente escolhem ou às quais devem sujeitar-se.

A subcultura da rua representa, portanto, um mundo de significados e ações e


à medida que se tornaram visíveis para a sociedade, as relações dessa gente com os
transeuntes, comerciantes, trabalhadores, profissionais do serviço social, polícia e
redes de crime organizado passaram a ser estritamente regradas.

Há, portanto, uma normatização do comportamento que determina sua


postura, seu lugar e seus “direitos adquiridos”. A subcultura das ruas também define
espaço, tanto do ponto de vista geográfico quanto político (isto é, “a rua” como espaço
público e/ou como espaço vital, lugar de viver e morar); determina papéis sociais (por
exemplo, “prostituta”, “mendigo”, “vítima,” “amigo,” “coitadinho”, “perigoso”) e
estabelece um vocabulário que define posições de inclusão ou exclusão “(por
exemplo, comunidade, marginais, “nós” e “eles”).

Tudo isso quer dizer que se encontrar com uma pessoa “da rua” é encontrar-
se com um universo estruturado, determinado e territorializado tanto do ponto de
vista de suas próprias definições quanto, e, sobretudo, como ela é definida pela
alteridade, ou seja, pela sociedade em cujo seio essa subcultura se estabelece.

O que se vê é que a identidade e a forma, o estilo e a estética da rua, estão


muito mais sob o nosso controle - da comunidade que não é “da rua” - do que sob o
deles - dos moradores da rua. Encontrar-se com a subcultura da rua significa,
também, exercer um papel. E esse papel é vivido por todos nós, que os definimos e
que determinamos, direta ou indiretamente, a maneira como “eles” vão se comportar
em relação a “nós.” Quer dizer também que viver em uma sociedade na qual essa
subcultura se tornou proporcionalmente tão importante, já que se os estima aos
milhares, senão aos milhões, é não ter chance de ser “neutro”.

De uma maneira ou de outra, estamos definindo o espaço vital da rua, a


política que a delimita, a identidade de seus habitantes e a maneira como são tratados
no âmbito do poder público. Todo contato com essa população, na verdade, tem um
impacto em ambas as direções.

A existência extremamente vulnerável e a contínua necessidade de afirmar


sua identidade, sua estética e seu estilo criam, para o morador de rua, uma enorme
necessidade de agrupar-se. O grupo é essencial para a formação continuada da
identidade e para a sobrevivência e tem um papel crucial em superar as dificuldades
do dia-a-dia, inclusive as emocionais.

O grupo provê suporte, apoio, escape e proteção, inclusive contra outros


grupos de rua. Não é à toa que o fenômeno das gangues tem crescido de forma
explosiva. A organização que se vê nas gangues, mais voltadas para a identidade
de grupo, tem, até certo ponto, uma analogia nos grupamentos de rua. Estes, apesar
de muito menos organizados, formam-se principalmente para atender prioridades e
são suficientemente estruturados, a ponto de se poder identificar uma ética própria, na
qual um valor maior é o predomínio das necessidades do grupo sobre as necessidades
individuais.

Como exemplo, tomemos a cidade de São Paulo, onde os grupos de rua, na


época em que a Praça da Sé era o QG da menina da de rua, chamavam-se “função”
e tradicionalmente estabeleciam as regras para determinar quem era aceito como
membro “da rua”, quem era “da família”, isto é, quem era identificado como parte e
que, portanto, gozava das prerrogativas do pertencer. As regras eram relativamente
simples. Por exemplo, o membro da “função” geralmente informa sobre suas
atividades, por onde anda, para onde está indo, com quem está se envolvendo, e
assim por diante. Essas confidências servem para propósitos eminentemente práticos,
sobretudo relativos à segurança (OLIVEIRA, 2004).
A “função” proporciona proteção e um senso de pertencer. Ali a criança sente-
se incluída, querida e tem a segurança de que não vai necessariamente morrer
de fome ou de falta de abrigo, pois o grupo é uma esperança viva de atmosfera afetiva,
continência e provisão. A “função” atende, ainda, à necessidade que toda criança tem
de participação social, através do lúdico, da relação emocional, do espelhar-se no
outro para formar a identidade de si. A “função” é o espaço do carinho, da ajuda,
da solidariedade e também da disciplina, às vezes do abuso e da dor. Repete, assim,
as vantagens e as agruras de certos tipos de família. O grupo ajuda a manter o clima
de motivação mesmo em meio ao desespero e conforta em meio à existência
extremamente estressante do viver ao desabrigo.

1.3 As Famílias de Rua

É comum que se formem grupos de rua nas quais adultos ou jovens de mais
idade assumam a liderança. Esses adultos ou jovens mais velhos podem ser casais
que “adotam” os mais novos e são chamados por estes de “pais” e “mães” de rua”.

Muitos deles são ou foram crianças de rua e passam a servir como substitutos
para uma família perdida e como modelos para as crianças mais jovens. Pais e mães
de rua são, em geral, os perpetuadores da subcultura da rua, administrando a
disciplina nos locais de convivência e organizando esses locais onde as crianças
de rua vivem e se escondem (os “mocós”). As mães de rua reproduzem o papel
estereotipado da mãe de família, a mulher “do lar”, tomando para si os afazeres
domésticos e representando, para seus “filhos de rua”, o papel da mãe que eles já
não possuem ou que se encontra muito distante.

Os pais e as mães de rua geralmente dividem com as crianças os parcos


lucros do trabalho, da mendicância ou do roubo. Eles exercem outros papéis, por
exemplo, de ajudar as crianças na busca de emprego e na manutenção.

Ao educador social cabe conhecer a rotina, a maneira como acontecem essas


relações, pois elas se constituem elementos importantes para conhecer a subcultura
da rua quando se quer mediar algo novo, alguma expectativa para essas crianças,
jovens e seus grupos.
2 NOVO CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO E NOVA PEDAGOGIA SÓCIO-POPULAR

O governo federal tem manifestado uma vontade de apoiar a Educação


Popular, o que pode revigorar a política social para a criança e o adolescente e para
as comunidades em geral. Este apoio se dá, principalmente, através de uma rede de
profissionais que praticam ou simpatizam com a Educação Popular, na área específica
da saúde. Essa rede, com a perspectiva do apoio do Ministério da Saúde, criou uma
Articulação Nacional de Educadores Populares em Saúde.

Duas discussões fundamentais perpassam, atualmente, o funcionamento


daquela Rede e desta Articulação. A primeira, amplamente manifestada através dos
canais de comunicação da Rede, é uma necessidade imediata de discutir a concepção
de Educação Popular adequada à atual realidade nacional.

A segunda, mais cuidadosamente ventilada, trata do grau de independência


e crítica possível em uma articulação que se dá totalmente dependente do incentivo
direto dos poderes partidários governamentais.

Estes educadores populares podem se privilegiar grandemente com o


estudo da Educação Social de Rua, adequando-a para uma população mais ampla
(adultos, idosos, excluídos, comunidade em geral). Esse conhecimento pode, ainda,
iluminar a discussão da política de independência crítica que se quer para a Educação
Popular. A Rede pode, ainda, fomentar a expansão de uma Educação Popular
comunitária para outros setores que não só a área da saúde, sensibilizando, por
exemplo, a área da Educação como um todo.

A sistemática sociopedagógica e a postura sociopolítica desenvolvidas pela


Educação Social de Rua são de grande interesse para a sociedade, pois configuram
propostas concretas e de comprovado sucesso no combate a grandes males que
hoje nos afligem.

A violência, a falta de perspectiva por parte da juventude e a crise de valores


que hoje nos atingem fomentam a desesperança e a desorganização sociocomunitária
e se alimentam da incompetência na lida com a exclusão.
A Educação Social de Rua não pode dar jeito nessas e em outras mazelas que
produzem e mantêm as grandes desigualdades sociais como a corrupção e a
impunidade, causas últimas de muitos males. Mas pode contribuir para uma melhor
estruturação dos que sofrem suas consequências, prevenindo, assim, que muitos
enveredem por um caminho indesejável para eles e para os que com eles convivem.

Em suma, as políticas sociais para a infância e a adolescência, que são


parte das políticas sociais contra a exclusão, continuam não dando conta dos
grandes problemas pelos quais passa, hoje, a sociedade brasileira. Um nó crítico,
que é o que fazer com e para os filhos da pobreza, continua sem solução.

A busca de estratégias tem acontecido de maneira caótica ou obedecendo a


interesses diversos que nem sempre conduzem ao caminho da competência na
política social, e as condições dessa busca têm implicado muito mais ações
paliativas do que prevenções bem-sucedidas. Apesar do quadro, há que ser
ressaltado, no panorama das políticas sociais, a importância da defesa do Estatuto
da Criança e do Adolescente e da ação dos Conselhos Tutelares.

2.1 Principais estratégias político-sociais para a infância e a adolescência e a


situação atual dos conselhos tutelares

Concebidos como estratégia fundamental da política social para a infância e


a adolescência, os Conselhos Municipais de Direito e os Conselhos Tutelares (CTs)
estão instalados e funcionantes em muitos municípios brasileiros.

Enfrentam, entretanto, a negligência de muitas estruturas de governo, em


parte como consequência da nossa forma tradicional de fazer política, com largo uso
do clientelismo, inclusive para influir nas eleições dos Conselheiros. Por isso, com o
intuito de diminuir esse tipo de ação, tem-se lutado para que as eleições sejam melhor
acompanhadas pela sociedade.

Para cumprir sua missão, os CTs dependem de uma sociedade crítica e organizada.
Precisa-se de comunidades que assumam responsabilidades sobre suas vidas e
seus destinos. Precisa-se, mais do que nunca, de discussão aberta, clara e sincera
sobre os problemas que afligem as comunidades. E o que se percebe nas
comunidades é que, por um lado, o avanço da conscientização sobre os direitos
da cidadania e dos consumidores continua a alimentar, timidamente e por
contiguidade, a defesa dos direitos das crianças e adolescentes.

Mas, em contraposição, o debate público é sabotado pela fomentação da


dependência político-partidária. A ignorância, consequente da pobreza do debate, leva
ao desespero social e, junto com a alienação - paradoxalmente fomentada pela
dependência política -, aponta soluções enganosas que, na resultante dialética dos
embates entre poderes, se manifestam por uma posição cada vez mais forte em
favor de uma “linha dura” para com os criminosos pobres, incluindo-se a “solução”
simbólica da diminuição da idade de responsabilidade penal e uma certa conivência
com ações violentas do Estado (OLIVEIRA, 2004).
Um exemplo flagrante está na reportagem da Revista Isto É, n. 1787, 07 de
janeiro de 2004, onde se vê que muitos populares claramente apoiam o extermínio
de marginais, enquanto a grande maioria se mantém silenciosa.

O problema é que atitudes violentas contra a violência são erros para corrigir
erros e, no fundo, criam mais violência e corroem cada vez mais os direitos de todos
os cidadãos. A diminuição da idade de responsabilidade penal não vai solucionar a
falta de medidas preventivas e socioeducativas que são necessidades absolutas em
uma sociedade desigual como a que temos.

O que se vê, afinal, é um círculo contraditório, em que uma maior


conscientização quanto aos direitos sociais das crianças e adolescentes convive
com a necessidade de soluções que não podem ser alcançadas sem a intervenção
competente do Estado. Resultam constantes violações desses direitos da cidadania
e das crianças e adolescentes por parte das famílias, da sociedade e do próprio
Estado.

O movimento para ridicularizar, difamar e cercear os direitos humanos é


contínuo e vem como resposta à crescente onda de violência que assola o país, e
da qual adolescentes pobres são muitas vezes protagonistas e vítimas. Guiados
pelo desespero e pela revolta, muitos cidadãos apontam os adolescentes pobres
levados ao crime como causa última e principal do cenário da violência, esquecendo
que há uma estrutura econômica, social e política que produz as desigualdades
absurdas que promovem o crime e a impunidade, e que esta estrutura tem
representação desde a cúpula política de Estado até os níveis mais próximos da
população. E não se enfatiza suficientemente que os que mais estão sujeitos a esta
produção contínua da cadeia de violência são os pobres, por terem menos acesso a
uma rede efetiva de proteção social.

Mas não é só a pobreza que produz violência, lembremos que um outro


aspecto importante no cenário da violência se revela nas notícias estarrecedoras sobre
atos de violência cometidos por jovens de classe média.
2.2 A atuação da Pedagogia Social hoje

Hoje há menos interesse, menos recursos e estatísticas não confiáveis


sobre o número de crianças e famílias vivendo nas ruas. Entretanto, quem passeia
pelas cidades brasileiras de grande e médio porte ou para seu carro nas esquinas
percebe imediatamente sua presença. As mesmas crianças parecem estar sempre
lá, com novos rostos, mas com as mesmas necessidades, representando as
mesmas ameaças simbólicas e concretas e levantando as mesmas questões
preocupantes. Os cortes drásticos e insuportáveis nos programas sociais têm
significado mais pessoas vivendo em favelas, mais jovens dormindo em abrigos de
papelão e mais famílias tendo seus lares debaixo de pontes.

Mas o problema da miséria, hoje, vai muito além do quadro que se vê mais
agressivamente nas ruas das cidades. Escondido nas comunidades mais pobres
encontra-se um número incalculável de pessoas sofrendo pela impotência e abandono
do Estado e das instituições sociais. São os jovens empregados do narcotráfico e suas
famílias vitimadas pela desagregação, são as favelas sem saneamento, os deficientes
sem perspectiva de inserção social, os sofredores de problemas psíquicos, alguns
enjaulados por famílias que não sabem mais o que fazer, as multidões que se
entregam, em suas últimas fases da degradação, à catação de alimentos nos lixos, ao
alcoolismo e à violência. É o retrato de uma tragédia aparentemente sem fim e sem
esperança de melhora.
Essa é uma realidade que buscamos o tempo todo não ver. Tentamos nos
enganar, nos ludibriar que isso nesta acabando e como fechamos os olhos,
fechamos os vidros dos carros nos sinais das grandes cidades, realmente não
conseguimos enxergar toda a miséria do mundo ao nosso lado.
Seria absurdo dizer que a Educação, de qualquer tipo, possa resolver os
problemas estruturais, de natureza econômica, e suas consequências sociais, bem
como a cegueira política deste país. Instituições sociais mais robustas, como a
Saúde, vêm tentando, através de estratégias bem formuladas e às vezes mal
operacionalizadas, tapar o buraco da miséria com seus programas comunitários.

Alguns destes programas têm razoável penetração, mas sofrem com os


contínuos cortes de verbas e a sempre presente manipulação político partidária, que
os transforma em palco de disputas de poder. Outras iniciativas como os
Orçamentos Participativos, tornaram-se também instrumentos de aparelhamento
partidário, corroendo na base muito de sua possibilidade de transformação social e
progresso ao nível comunitário. Muitas dessas iniciativas apenas repetem o modelo
político clientelista tradicional, trocando talvez a forma de “presentear” as
comunidades. Às ambulâncias, postos de saúde e campos de futebol, típicos do
populismo tradicional, acrescentamos hoje o asfalto, computadores e obras,
paradigmáticos do “desenvolvimento” pregado pelo populismo contemporâneo.

Em geral, nossos projetos sociais sofrem da falta de metodologias que


incluam, de forma prática, em seus objetivos, a conscientização das comunidades
visando sua organização política e social na perspectiva da autonomia, isto é, do
fomento à ampliação dos direitos da cidadania. Isto se dá porque a lógica do
controle e do poder, capitaneada por partidos e políticos, não favorece a construção
de comunidades autônomas e independentes. O modelo instaurado, que se difunde
a todos os níveis de poder, inclusive dentro das próprias comunidades, tende a
fomentar a dependência que sustenta os eternos currais eleitorais ou os tráficos de
influência. A comunidade continua sendo vista, nessa lógica, como massa de
manobra, como força política potencialmente a serviço dos projetos pessoais e
partidários, independente das cores dos partidos e das especificidades institucionais,
pessoais e profissionais. Tal situação, que corrói a própria base de funcionamento
cultural, dificulta o caminho para o progresso social.
Este caminho passa pela desconstrução deste modelo populista que assola
a política do país. Aí reside a necessidade de uma Pedagogia Social, que ajude a
criar uma consciência real e não uma falsa consciência, e ajude a motivar não só as
massas miseráveis e oprimidas, mas todos nós, a buscar, de forma organizada,
pacífica, amistosa, afetiva, sincera e, portanto, verdadeiramente libertária, uma real
evolução das comunidades, buscando os direitos da cidadania e a independência de
favores políticos e partidários.
A construção de comunidades saudáveis passa, nesse sentido, pela educação
dos políticos e por uma verdadeira reforma política, na qual se instale uma consciência
do bem coletivo. Passa pelo fortalecimento ou resgate de culturas diversas, nem
sempre coadunadas com as culturas hegemônicas, ou com a grande cultura
colonizadora do “desenvolvimento”, que se encontra de várias formas embutida nos
projetos institucionais, inclusive da Educação e da Saúde.

Há iniciativas que incorporam esta lógica, inclusive na área da saúde e nas


políticas sociais participativas, mas estes mecanismos pecam, hoje, tanto pela
subserviência às estruturas de poder controladas pelo projeto neoliberal como pela
falta de preparo dos profissionais no campo da ação e pela falta de vontade de
desconstruir poderes, o que é compreensível no caldo cultural de idolatria ao poder
que se está paulatinamente consolidando em nosso país. É aí que pode se inserir,
de forma favorável, uma Pedagogia Social metodologicamente sólida e baseada em
práticas culturais alternativas ao projeto desagregador.

O campo teórico e prático delineado pela Pedagogia Social de Rua,


adaptada à realidade contemporânea, oferece subsídios para a construção de uma
pedagogia social popular desse calibre. E não só para populações de rua, mas para
todo o contexto social da exclusão, além do próprio território daqueles que a
promovem. Vislumbra-se aí a possibilidade de uma Educação Popular crítica,
independente, politizada, pacificadora e voltada para a construção de comunidades
inclusivas, educativas e saudáveis (OLIVEIRA, 2004).
Onde quer que haja pessoas e jovens sofrendo a exclusão social, há a
necessidade concreta de uma Pedagogia Social, e não somente visando os excluídos,
mas extensiva aos que consciente ou inconscientemente facilitam a exclusão.

Atuar somente sobre o excluído é uma maneira de culpar a vítima,


“educando-a” para que ela dê jeito em uma situação sobre a qual tem pouca
influência. Este é exatamente um dos pontos mais debatidos na Pedagogia Social
de Rua, particularmente nos cânones da Pedagogia da Presença, quando critica a
simples adaptação das populações oprimidas às situações que as oprimem.

A conscientização desses oprimidos e dos que, às vezes sem o saber,


perpetuam a opressão, é parte integral da Pedagogia Social de Rua e não tem sido
devidamente considerada na implantação das políticas sociais estratégicas.
Na prática, essas políticas concretizam-se a partir de projetos que já utilizam
concepções avançadas pela Pedagogia Social de Rua. É o caso, por exemplo, do
conceito de vínculo, que constitui o tema central da Educação Social de Rua, e tornou-
se, eventualmente, um dos pontos centrais do Programa Saúde da Família (PSF),
principal estratégia de consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas o
vínculo, como concebido pelos pensadores da Educação Social de Rua, vem
sendo aos poucos adaptado, no PSF, à forma tradicional de relações praticadas na
área da saúde, que preserva a visão clínica, a distância para com os “pacientes” e
as relações de poder. O PSF, que adotou esse conceito da Educação Social de Rua
via UNICEF, parece que, por uma variedade de motivos, inclusive por problemas de
seleção de profissionais com um perfil adequado à sua implantação, não aprofunda
essa concepção metodológica ao nível de sua aplicação cotidiana, nem nos seus
ambientes de formação e capacitação.

Os profissionais do PSF têm, em geral, uma noção da importância “de um


vínculo”. Mas não está claro, ainda, se esse conceito é entendido de uma maneira
abrangente e em uma perspectiva crítica, como fundamento da organização social.
O conceito parece ter perdido, neste transplante, sua essência fundamental, sua
concepção metodológica integrada à politização e à proposta existencial que
necessariamente tem de o acompanhar para que ele se transforme em um mecanismo
efetivo de transformação. O resgate dessa concepção de vínculo, tão necessária ao
PSF e a outras políticas sociais que se pretendem participativas, pode ser facilitado
através do resgate institucional e político-social da Educação Social de Rua.
Não é só na área da Saúde que a questão do vínculo, que é a questão
metodológica central da Educação Social de Rua, tornou-se dilema fundamental. Os
sistemas formais de educação já demonstraram exaustivamente não estarem
preparados para absorver as populações marginalizadas. Isto se dá tanto nos sistemas
tradicionais quanto nas tentativas alternativas de educação por ciclos e outras formas
implementadas em vários contextos políticos e sociais no país. Aí também pode ser
de utilidade uma retomada da Pedagogia Social proposta pelos educadores sociais
de rua. As metodologias bem elaboradas e que têm sido tão úteis para a integração
das crianças com as comunidades em países como os Estados Unidos, Canadá,
Austrália e Grã-Bretanha, que adotaram a Pedagogia Social de Rua até mesmo
na educação formal, podem ser amplamente utilizadas aqui no Brasil que a gerou e
que, até agora, a tem ignorado.
Continua aumentando, no país, a miséria e o fluxo de pessoas excluídas da
sociedade como um todo. Precisamos, cada vez mais, de profissionais de educação,
saúde, serviço social, psicologia, sociologia, terapeutas, do direito, da política, da
filosofia, que promovam uma verdadeira Pedagogia Social, que apreendam o
significado de nossa realidade social, política e cultural na produção da nossa pobreza,
que entendam e compreendam as pessoas e comunidades da classe trabalhadora, os
desempregados e as famílias que vivem nas favelas e nas ruas; profissionais que
estejam dispostos a estender sua visão pedagógico-social para além do âmbito
institucional, além dos muros de escolas, prisões, hospitais e manicômios.

A Educação Social de Rua é mais que um conjunto de técnicas e propostas


metodológicas. Vai além, até mesmo, de um sistema pedagógico, embora tenha sido
assim reconhecida mundialmente. Ela se constitui em uma estratégia político-social,
na medida em que é um sistema filosófico e político com potencialidade de subsidiar
outros sistemas político-sociais, da Educação à Saúde, do Direito à Sustentabilidade
Urbana.

Ela representa, assim, uma esperança para a provisão de serviços sociais.


Não se quer fazer uma apologia da salvação a partir desse sistema, mas reconhecer
que ele pode suprir uma necessidade atual da sociedade no sentido de reavivar a
vontade e a necessidade de nossa sociedade de promover seu autoexame, o
entendimento de si mesma, de seu povo e, particularmente, de seus jovens e suas
crianças.

Esse entendimento pode ser vislumbrado nas conexões que faz a Educação
Social de Rua entre o processo de estabelecer vínculos de qualidade que, em
consequência, podem transformar a sociedade institucional. O vínculo torna o
profissional consciente de seu papel pedagógico-social, fundamental na
compreensão das relações sociais, políticas e culturais e na defesa de direitos e,
portanto, na vitalidade da cidadania.
Uma Pedagogia Social é necessária para que as propostas para a
construção de cidades e comunidades inclusivas, educativas e saudáveis sejam
efetivadas.

Essas propostas, materializadas através da práxis preconizada pela Educação


Social de Rua, a partir da aplicação de conceitos fundamentais como os de vínculo,
pedagogia da presença e educação em meio aberto, entre outros, podem facilitar a
aproximação com as pessoas que a sociedade marginalizou e potencializar
o resgate de um certo nível de confiança entre estas pessoas e os profissionais e
instituições que têm como objetivo oferecer-Ihes os serviços necessários à ampliação
dos seus direitos de cidadãos (OLIVEIRA, 2004).

O legado da Educação Social de Rua é um patrimônio concreto e disponível.


Há que estudá-Ia, e utilizar o que ela tem para contribuir para a melhoria da situação
social e para o aperfeiçoamento coletivo do ser, do saber, do fazer e do vir a ser.

3 TEMAS PONTUAIS

3.1 O capital social

Os bens utilizados para produzir outros bens (produtos) através da utilização


de processos e tecnologias de produção são considerados fatores de produção.

Tradicionalmente os economistas consideram três fatores de produção:


terra, trabalho e capital.

A terra é aquela utilizada na produção agrícola e pecuária, para instalação


dos edifícios e outras construções e os recursos minerais.

O trabalho é considerado não somente o tempo de trabalho utilizado na


produção, mas também as capacidades e conhecimentos das pessoas que
trabalham.

No capital são incluídos todos os bens duráveis que são utilizados ou apoiam
a produção de outros bens ou serviços. Aqui são incluídos as máquinas e
equipamentos (de informática, telecomunicações, de transporte etc.), as
instalações (edifícios e construções) etc.

O conceito de capital na análise organizacional deve ser ampliado para


incluir todos os fatores intangíveis que apoiam a produção de bens e serviços, e nesse
sentido surgem denominações como: capital intelectual, capital relacional, capital
organizacional, capital social etc. (DIAS, 2008).
O capital social é um dos novos fatores de produção considerados no final
do século XX. Diferentemente do capital humano, que é baseado na formação e
capacitação do indivíduo, o capital social é baseado na intensidade das relações
sociais que ocorrem na organização, e que facilitam as articulações internas dando
maior consistência ao conjunto e facilitando sua operacionalidade para atingir as metas
estabelecidas.

A concepção de capital social organizacional considera todos os aspectos


fundamentais para a criação de um clima organizacional favorável, como:
 os aspectos culturais e ideológicos da organização, formados por um
conjunto de valores e princípios, crenças, estilo de liderança,
costumes, normas escritas e tácitas, comportamentos gerenciais, sistema
de reconhecimento, recompensas e sanções, celebrações e
acontecimentos etc. que marcam o caráter e formam a identidade e cultura
de uma organização;
 os mecanismos formais e informais de comunicação;
 os conflitos existentes na organização. Há diferentes níveis de conflitos nas
organizações, que têm origem na discrepância entre os interesses esses
conflitos influencia significativamente o clima organizacional;
 as relações de poder no seio da organização, derivadas do
posicionamento das pessoas e grupos presentes na organização em
relação com as diferentes fontes de poder (autoridade formal, controle
das decisões, controle de recursos escassos, controle e manejo da
informação, poder derivado dos conhecimentos especiais sobre
determinado assunto, capacidade de influenciar nas relações sociais etc.)
(DIAS, 2008).

O capital social está diretamente relacionado com a intensidade dos


relacionamentos informais e formais existentes na organização. Quanto maior a
intensidade das relações sociais, maior será o capital social. O capital social não é
necessariamente positivo.

Nas organizações criminosas como as máfias, o capital social é intenso e


baseado fundamentalmente nas relações informais, que mantêm a coesão grupal, que
é o principal objetivo da comunidade mafiosa.

Nas organizações empresariais, é fundamental um elevado capital social


para manter a coesão da organização e a intensidade do compartilhamento interno
de informações.
No caso das organizações com foco nos objetivos, como é o caso das
organizações empresariais, é necessário haver um equilíbrio entre as relações
baseadas em contatos informais e formais, e um nítido predomínio destas últimas, o
que fortalecerá a ideia de coletividade agrupada em função de um determinado
objetivo.

Nas organizações fordistas, não há um incentivo à intensificação das


relações sociais internas e nem o compartilhamento de informações; a
especialização excessiva leva ao relativo isolamento dos funcionários, que ocorre
tão somente nos períodos de descanso, e no caso predominam relações do tipo
informal. Nesse caso, o capital social é baixo e quase inexistente.

Por outro lado, nas organizações pós-fordistas baseadas numa maior


flexibilidade organizacional há maior necessidade de intensificação das relações
internas e compartilhamento de informações, a especialização excessiva não é
incentivada e o intercâmbio de ideias ocorre com maior facilidade. Nesse caso o capital
social é significativamente maior que nas antigas corporações verticalizadas.

Na nova sociedade do conhecimento que está se constituindo neste início de


século XXI, os fatores intangíveis do capital estão se tornando cada vez mais
importantes como fonte de competitividade para as organizações. O capital social deve
ser a base de qualquer proposta de gestão do conhecimento, pois este se constrói
baseado na troca de informações que ocorre com a interação social.

Se o capital social é tanto maior quanto maior for a intensidade das interações
humanas, o conhecimento poderá se beneficiar desta troca social (DIAS,
2008).

3.2 As organizações cooperativas

Um tipo de organização pouco estudada nos cursos de administração são as


cooperativas, que constituem associações de grupos de pessoas que têm interesses
socioeconômicos comuns e para satisfazê-los desenvolvem uma ou várias
atividades empresariais.

As cooperativas podem promover a educação e a formação dos seus


membros, dos representantes eleitos e dos trabalhadores, de forma que estes possam
contribuir; eficazmente, para o desenvolvimento das suas cooperativas.

Informam o público em geral, particularmente os jovens e os líderes de opinião,


sobre a natureza e as vantagens da cooperação.
Uma cooperativa é uma organização econômica que atua no mercado e,
portanto, deve buscar atingir a eficiência e a eficácia no seu desempenho.
Diferencia-se de outros tipos de organizações, como as empresas de capitais e as
públicas, principalmente por duas características: em primeiro lugar quanto à
propriedade, que é coletiva; e em segundo quanto ao controle, que é democrático.
As cooperativas, embora sejam organizações econômicas, não têm como objetivo o
lucro e a obtenção de excedentes. Seu principal fim é prestar um serviço a seus
membros. Em consequência disso, pode-se afirmar que as decisões são tomadas
buscando-se uma rentabilidade em perfeito equilíbrio com as necessidades dos
membros e os interesses da comunidade. Deste modo o negócio gira em torno dos
membros e não do capital, como numa empresa tradicional.

Segundo Silva (2005) as cooperativas são organizações num sentido amplo,


que apresentam maior complexidade que as empresas tradicionais. Constituem uma
forma organizacional diferente destas e apresentam um estilo de gestão bastante
particular. Por exemplo, na análise da eficiência econômica e social das
cooperativas, deve-se considerar o alto grau de especificidade de sua natureza onde
mecanismos clássicos de avaliação podem não refletir o real desempenho
organizacional.

Há autores como Rothschild e Whitt (1988 citados por Dias, 2008) que
sustentam que as cooperativas operam como um modelo de organização alternativo
ao modelo burocrático. Essa corrente identifica no modelo cooperativista um controle
dos associados e processos de tomada de decisão baseados na democracia
participativa, visando atingir objetivos tanto econômicos como sociais. Entende que as
cooperativas buscam substituir as práticas hierárquicas e burocráticas por práticas
democráticas e participativas, onde o poder é exercido de modo diferente.

Nesse sentido, Dávila (2002) consegue identificar que as organizações


cooperativas se diferenciam das organizações tradicionais em pelo menos oito
dimensões: autoridade, regras, controle social, relações sociais, contratação e
ascensão de empregados, estrutura de incentivos, estratificação social e
diferenciação.
As cooperativas constituem organizações que apresentam uma dupla
característica, não funcionando somente como empresas econômicas, mas também
satisfazendo outras necessidades para as quais foram criadas. Nesse sentido, o
conceito de cooperativa apresenta um duplo significado: econômico e social ao mesmo
tempo.
 econômico: pela produção rentável de bens e serviços;

 social: pelo seu caráter de satisfazer às necessidades sociais de uma


coletividade concreta.

Na realidade, são duas dimensões distintas e que poderão ser, muitas


vezes, conflitantes. A primeira tem o foco de mercado, da lógica econômica de
maximização de resultados, da concorrência e dos preços, como sinalizadores da
alocação de fatores de produção e a segunda, o foco da sociedade, do cooperante,
da fidelidade contratual, da ética nos negócios, da transparência e do
desenvolvimento, com distribuição de renda de forma a elevar a riqueza e o bem- estar
do associado (BIALOSKORSKI NETO, 2002).

Desse modo, enquanto formas de organização, podemos caracterizar as


cooperativas de dois modos:

 como organizações empresariais: pois, para atingir seus propósitos, as


cooperativas desenvolvem uma atividade empresarial concreta para
atender aos interesses econômicos comuns dos sócios;

 como organizações sociais: as cooperativas constituem grupos de


pessoas que compartilham um fim ou objetivo comum que está explícito em
sua ata de fundação. Assim, esse conjunto de pessoas estará sujeito a
normas, tanto jurídicas como sociais, que são compartilhadas pelo grupo,
e nesse aspecto os valores assumidos pelas cooperativas, segundo a
Aliança Cooperativa Internacional, são os de: ajuda mútua, auto
responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Esses
valores a diferenciam de outras organizações econômicas, pois se trata de
pressupostos para assumir a identidade cooperativa.

Essa dupla identidade, organização econômica e social, é o que caracteriza as


cooperativas em relação às demais organizações do setor empresarial
(indústrias, bancos, lojas etc.) e das organizações sociais (organizações não
governamentais, filantrópicas etc.), o que as coloca numa posição intermediária
entre práticas essencialmente mercantis e outras próximas do idealismo social.
O conceito de cooperativa é bastante amplo e contém muitas tipologias, como,
por exemplo:

• cooperativa de crédito: oferece empréstimos aos seus associados,


empregando capital próprio obtido com a poupança dos cooperados;
• cooperativa agropecuária: reúne produtores rurais e entre seus serviços
estão a compra de insumos, a venda comum da produção dos membros, a
prestação de assistência técnica, entre outros;

• cooperativa de ensino: reúne pais e alunos para manter uma escola, por
exemplo;

• cooperativa habitacional: reúne pessoas necessitando de moradias e entre


seus serviços estão a aquisição de terreno para a construção de casas ou prédios
residenciais;

• cooperativa profissional ou por ofício: reúne pessoas por profissão ou ofício


determinado e sua ação consiste em oferecer o serviço de seus cooperados, que
podem incluir, por exemplo: médicos, taxistas, advogados etc.;

• cooperativa de saúde: reúne profissionais e usuários de serviços de saúde;

• cooperativa de consumo: reúne consumidores de bens de uso pessoal e


doméstico para a compra de mercadorias no atacado ou num supermercado para
serem utilizadas pelos cooperados;

• cooperativa de trabalho: reúne trabalhadores e entre seus serviços estão


obter clientes ou serviço para seus cooperados, dar treinamento e capacitação, etc.
(DIAS, 2008).

3.3 O terceiro setor

Entre as inúmeras transformações que vem ocorrendo desde o início do século


XXI, a que atinge o Estado é uma das mais importantes. Ao redefinir suas funções, o
Estado passa a compartilhar com outros agentes a realização de políticas públicas, que
complementam sua ação e estabelecem uma nova forma de relacionamento na
sociedade, ampliando a participação do cidadão comum, explicitando uma cidadania
ativa que se envolve na realização de atividades em diversas áreas, como saúde,
educação, serviço social, cultura, esportes, lazer, turismo e outras.
Esses novos agentes que complementam a ação do Estado, atuando em áreas
onde este não pode ou não consegue atuar, constituem um novo setor, que se contrapõe
aos setores privado e público, e tem sido denominado de terceiro setor.
Esse fenômeno, que inclui um sem-número de organizações sem fins lucrativos,
marca no início do século XXI a consolidação de um setor alternativo de atendimento a
inúmeras demandas da população. Esse setor constitui um espaço público não
pertencente ao Estado, embora realize funções anteriormente exclusivas deste.
Desse modo, ao se abordar o fenômeno de reestruturação das funções do
Estado, deve-se incluir na discussão a constituição de um espaço público não
estatal que se desenvolve e tende a crescer, motivado por um lado pelas
dificuldades por que passa o poder público, que vê esvaziada sua capacidade de
arrecadação, entre outros motivos pela volatilidade do capital financeiro e, por outro
lado, pelo aumento da complexidade das demandas da sociedade, que busca maior
qualidade de vida e passa a dar maior importância a aspectos de sua realidade
antes colocados em plano secundário, como, por exemplo: lazer, turismo, práticas de
alguma atividade esportiva, atividades culturais, cuidado com o meio ambiente etc.
O fato é que as relações estruturais tradicionais entre o Estado, o mercado e a
sociedade estão sendo modificadas substancialmente e vêm passando por um processo
de reestruturação.
O Estado deverá continuar exercendo seu papel social, embora em novas bases
e com outro conteúdo. Tradicionalmente, o Estado desempenhou uma função social
como agente econômico destinado a realocar os recursos escassos e amenizar as
contradições inerentes ao próprio desenvolvimento das forças de reprodução do capital
- como o aumento da desigualdade social e regional, entre outras -, característica esta
acentuada na configuração do Estado de bem-estar social.
Ocorre que a relação entre o Estado e o indivíduo receptor do benefício é
mecânica e, embora sua ação seja permeada por um aparato burocrático formado
por indivíduos reais, na realidade a relação se estabelece entre seres humanos e uma
engrenagem, ou seja, uma máquina animada.

Quando muito há uma solidariedade mecânica que se efetua pela intermediação


do próprio Estado tornando opacas as relações sociais reais. Essa opacidade nas
relações sociais reais tornou a ação do Estado destituída de um sentido humanitário e
consolidou a alocação não democrática dos recursos com pouca ou nenhuma
participação da comunidade na gestão dos programas. Estabeleceu-se uma estrutura
administrativa para gerir recursos destinados a benefícios sociais que não cumpre
suas funções. Esta estrutura diminui os recursos destinados aos programas em prol
de sua utilização na remuneração do pessoal administrativo. E, por outro lado,
favorece a não fiscalização dos recursos, permitindo a apropriação indevida dos
mesmos, via mecanismos de corrupção.

Ocorre que essas atividades meio - os procedimentos administrativos


encarregados de manusear os recursos - têm consumido todo ou quase todo o
orçamento social, passando o Estado, muitas vezes, a ser o receptor final de um
excedente que seria destinado a diminuir os problemas sociais, ou destinar partes
significativas desses recursos para subsidiar atividades econômicas não
competitivas e que só conseguem se manter com esse subsídio. No Brasil o latifúndio,
particularmente em áreas do Nordeste, historicamente tem se beneficiado destes
subsídios, assim como setores industriais atrasados, do ponto de vista tecnológico, no
Sul e Sudeste.
Essa atividade do Estado de gerenciar os recursos arrecadados desde o início
até o fim do processo - desde o recolhimento dos impostos até a destinação ao
beneficiário - sem um controle mais efetivo da sociedade gerou profundas distorções
que fizeram aumentar significativamente o déficit público.
Como parte da redefinição do papel do Estado há a necessidade de haver maior
controle de suas ações, ou seja, maior democratização na execução de seus
programas, o que somente poderá ser conseguido com a existência na sociedade de
uma alternativa de ação permanente e independente, que fiscalize e mantenha os
programas sociais em execução.

Na moderna e complexa sociedade globalizada, teve destaque nas duas


últimas décadas do século XX - 1980 e 1990 - o desempenho de organizações da
sociedade civil, novos atores sociais portadores de uma solidariedade não mecânica
e que substituíram, em muitos casos, os mecanismos tradicionais de regulação
social - os partidos e os sindicatos.

Como tema relativamente novo na análise social, essas organizações da


sociedade civil assumiram importância crescente como alternativa de organização
social, que apresenta como objetivo a prestação de serviços públicos nas mais
diversas áreas - educação, saúde, lazer, turismo, direitos humanos, meio ambiente,
cultura, habitação etc. - e, no entanto, permanecem como organizações privadas
sem vínculo com o Estado.

O espaço ocupado na sociedade por essas organizações constitui-se como


um terceiro setor, público não estatal, onde tomam relevância novos valores,
particularmente a solidariedade, em contraposição aos valores predominantes no setor
privado - o lucro - e no setor público - o poder.

Esse terceiro setor compreende as organizações sem fins lucrativos:


fundações, institutos, entidades filantrópicas, entidades de serviços sociais,
entidades religiosas, as organizações não governamentais (ONGs), organizações da
sociedade civil de interesse público (OSCIPs), associações comunitárias e as mais
diversas organizações de defesa dos direitos civis.

As organizações do terceiro setor podem ser definidas como um conjunto


que apresenta as seguintes características:

a) Constituídas formalmente.

b) Não governamentais em sua estrutura básica.

c) Autogovernadas.
d) Sem fins lucrativos.

e) Em grande parte formadas por voluntários.

É importante assinalar que as organizações sem fins lucrativos não representam


uma novidade no cenário social. Elas sempre existiram ao longo de todo o processo
de consolidação do sistema capitalista. São organizações que não visavam ao lucro e
não pertenciam ao Estado. O diferencial é que ao longo da história essas
organizações nunca chegaram a ter o papel que vêm assumindo atualmente, chegando
a se constituir numa alternativa aos dois setores tradicionalmente existentes.
O espaço das organizações do terceiro setor vem se ampliando porque se
caracteriza mais como uma manifestação da cidadania em um estágio superior de
organização e participação do que como uma alternativa política e social. Na realidade,
a imensa maioria dessas organizações não chega a questionar as bases do sistema, e
caracteriza-se por se ocupar de temas pontuais, não procurando disputar o poder
político e tampouco competir com os partidos.
Devido ao seu crescimento, podemos considerá-las como um pressuposto de
organização social que busca o bem-estar nas suas mais variadas formas. São, de
modo geral, monotemáticas: atuam em prol da ecologia, dos direitos humanos, das
crianças, paz e um sem-número de bandeiras sempre pontuais e bastante específicas.
Embora não necessitem do Estado para seu desempenho, elas o
consideram um interlocutor importante por este ser um ator que, além de deter muito
poder, dispõe de significativo capital retirado do processo de acumulação.
Esse novo ator social surge preenchendo lacunas na ação dos governos. Essas
organizações têm como vantagem em relação ao Estado o fato de constituírem
em sua maioria estruturas flexíveis, de baixo custo, o que lhes permite maior agilidade
e uma permanente capacidade inovadora na ação.
A globalização, ao colocar em crise o Estado de bem-estar social com todos os
aspectos negativos decorrentes, em particular o aumento da miséria e do desemprego,
coloca ao mesmo tempo a questão do retorno ao debate da ação social do Estado
e da participação (integração) da sociedade nessa ação.
As organizações do terceiro setor tornam possível a realidade de ampliar a
participação da sociedade civil na execução de serviços sociais anteriormente restritos
à ação “mecânica” do Estado, e se colocam como uma opção para o Estado transferir
parte de suas atribuições a essas entidades.
O Estado continuará tendo importante papel social dentro de uma economia
globalizada, em outros moldes não mecânicos e partilhando com outros segmentos da
sociedade esta função e os recursos destinados a cumpri-Ia.
Deve ter o cuidado em não confundir a reorganização do papel do Estado, onde
se redefinem suas funções e que certamente deverá diminuir o seu tamanho, com as
propostas existentes de Estado mínimo, e que na verdade procuram retirar seu aspecto
de agente importante de realocação de recursos e, por que não dizer, de poder na
sociedade. Defender pura e simplesmente a extinção desse agente ou propor que fique
reduzido ao mínimo, sem dizer claramente qual deve ser este mínimo, são duas
posições que não levam em consideração o importante papel social que o Estado
desempenhou, particularmente nos países desenvolvidos - na forma de Estado de bem-
estar social (welfare State) - e que não chegou a se concretizar por completo nos países
ditos subdesenvolvidos. Ora, se com um agente importante e poderoso como este se
mantém a desigualdade social, o que não aconteceria com o seu desaparecimento ou
com o seu total enfraquecimento?
Mantendo-se um Estado em condições de atuação social, o problema passa a
ser político, ou de quem detém o mando desse instrumento de ação, e aí as coisas são
colocadas em outros termos. Passa a ser responsabilidade da cidadania ativa,
participante, levar o Estado a cumprir suas funções sociais que, de modo geral, são
constitucionais. Cabe à sociedade articular-se e direcionar sua ação para o cumprimento
desses preceitos.
Outro aspecto a ser considerado é que a solidariedade humana, ausente na ação
do Estado, é um fator necessário e absolutamente indispensável no combate à pobreza,
à desigualdade e às injustiças sociais. Na sociedade globalizada as organizações do
terceiro setor apresentam esse componente fundamental da solidariedade que ocupa o
terreno abandonado pelo mercado e pelo Estado em virtude da baixa rentabilidade ou
da falta de recursos financeiros (KURZ, 1995).
As possibilidades de aumento do desempenho das organizações do terceiro setor
num mundo globalizado crescem à medida que aumenta sua autonomia.
De fato, suas ações específicas, de modo geral, podem apresentar articulações
extranacionais que lhes dão suporte e possibilitam o seu desempenho mesmo
contrariando interesses nacionais e internacionais poderosos, sejam econômicos
ou políticos.
As ações desenvolvidas pelas ONGs, de modo geral, apresentam certa
semelhança entre si. Induzem a uma ação da comunidade internacional, do Estado ou
da sociedade em aspectos pontuais da problemática social - os meninos de rua,
menores explorados no trabalho, turismo sexual, discriminação de todos os tipos,
direitos humanos. Diferentemente dos movimentos sociais, as ONGs não interrompem
sua ação após obtida a atenção do Estado: acompanham, fiscalizam, especializam-se
e capacitam-se cada vez mais.
Embora o terceiro setor venha assumindo papel cada vez mais relevante nas
economias nacionais, muitas organizações sem fins lucrativos ainda não
compreenderam ou dimensionaram as modificações que estão em curso na sociedade,
mantendo-se presas a seus objetivos específicos e evitando relacioná- los com a
realidade mais geral.
Há necessidade de uma evolução, por parte de suas próprias lideranças, da
compreensão do papel a ser desempenhado pelas organizações sociais. A visão
particularista que permitiu durante muito tempo que essas organizações realizassem um
trabalho efetivo obtendo resultados pontuais significativos deve ser substituída pela
visão holística que permita situar cada ação específica da entidade dentro de um
todo complexo que inclua a discussão de seu papel perante o Estado e o Mercado
(DIAS, 2008).

REFERÊNCIAS CONSULTADAS E UTILIZADAS

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ensaio analítico. In: Seminário de política econômica em cooperativismo e
agronegócios. Viçosa: UFV, 2002.

BULGARELLI, R. É possível educar na rua? Rio de Janeiro: MPAS/ FUNABEM,


1987.

CINTRA, M. R. L. (coord.) Educador social de rua. 1º relato da experiência dos


agentes da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo. Brasília:
UNICEF/MPAS.SAS.FUNABEM, 1983.

DÁVILA, Ricardo. As cooperativas na Colômbia: inovação, organização e


novidade acadêmica. Cadernos de Desenvolvimento rural, n. 48, 2002.

DIAS, Reinaldo. Sociologia das organizações. São Paulo: Atlas, 2008.

DIMENSTEIN, G. A guerra dos meninos. São Paulo: Brasiliense, 1990.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz
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FREIRE, Paulo. Educadores de rua. Uma abordagem crítica. Rio de Janeiro:


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KURZ, Robert. Perdedores globais. Folha de São Paulo, 1º out. 1995.

OLIVEIRA, Walter Ferreira de. Educação social de rua: as bases políticas e


pedagógicas para uma educação popular. Porto Alegre: Artmed, 2004.

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RAMOS, Lílian Maria Paes de Carvalho. Educação social e educação popular: o


que é, o que faz, o que pretende a educação de rua. Rio de Janeiro: Amais Livraria e
editora, 1999.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. São


Paulo: Cortez, 1991.

SILVA, Emanuel Sampaio. A eficiência econômica e social em cooperativas do


setor pecuário em Pernambuco. Disponível em:
www.custoseagronegocioonline.com.br Acesso em: 12 jun. 2011.

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