Você está na página 1de 7

NUVEM

1)

Desde as margens

Incubo esse nó no peito que me fará adulta

suficientemente adulta para depois odiar as margens

Aquilo que acho que me protege será minha suspeita e meu inimigo

Acaso ser adulta não é isso? Não é?

Eu pai ensaia uma caricia, mas não é pra mim

É pro cachorro novo, ele gosta de fazer carinho nos cães

Faz dois dias ele achou um novo, abandonado, todo peludo e faminto

“carente de um amo” ele disse

Por isso faz carinho nele, ensina com o gesto essa ordem

E o cachorro agradece cada volta de meu pai para a casa

Eles quase nem olham pra mim, nem o cachorro nem meu pai

Tão ocupados no seu afazer

Eu olho pela janela embaçada

Na qual com meu dedinho desenhei outra menina e seu sorriso

Ela sorri só pra mim, não gosta de cachorros nem de pais

Às vezes tem medo deles, às vezes fica horrorizada, às vezes, só às vezes

Lhes dá um pouco de atenção pra aprender as manhas deles


Se o cachorro já comeu, faz dois passos e inevitavelmente caga

Se o pai chega tarde e correndo, não tem jeito dialogar com ele

nem com sua esposa, aquela ex-menina que agora é cinza, que lhe fala, nem com nenhum

lado da minha alma

essa janela embaçada onde a menina sim olha para mim

ela sempre me olha, poderosamente, sempre está disposta a me olhar

é só me aproximar e ela estoura em piruetas, em festa, em borboletas soltas

2)

Eu também sou um cachorro

Mas, faz um tempo que à minha sombra

lhe vou desenhando outras asas

mas, ninguém aqui em casa percebeu

nem meu pai, nem aquela ex-menina agora cinzenta, nem o outro cachorro

tão ocupados no seu acontecer cotidiano

no germinar de um legado cotidiano de fracassos

acaso não é isso o mundo adulto?

Pergunto para a menina

Minha amiga da janela embaçada

Que me pede que por um instante não olhe pra eles


Que me pede que por um segundo não lhes obedeça

Que tente me sonhar no seu reflexo

Tentar ser minha outra menina para poder fugir pela janela

E me povoar de sonhos e de aves e manhãs

Mas, agora todos voltam

O pai que procura nervoso suas chaves

A ex-menina agora cinzenta que enumera ingredientes e falhas

E o cachorro que come e novamente anda dois passos e caga

Ninguém me vê, eu acompanho cada um de seus passos

Como se trás esse gesto houvesse piedade ao olhar pra eles

Por que correm essa gente e esse pequeno não humano?

Que miserável e cruel relógio está possuindo-os?

Sinto que me dá vontade de ser pássaro

Por isso desenhei um, com meu dedinho, bem do lado de uma árvore

que olha divertido para aquela outra menina que brinca serelepe na janela embaçada

Essa paisagem que de tão sonhada, é verdadeira

Sou mais livre na minha paisagem com asas

Não preciso mais que esse cantinho no mundo, suspeito

e sei por que tudo isso será tirado de mim

Ser adulta não é acaso morrer um pouco disso?


3)
Às vezes sinto que essa casa pequena, pequenininha

na qual toda essa humanidade e o cachorro se ancoram, não me pertence

tem na porta o endereço e outros dados que coincidem, é verdade,

com os que se detalham non meu documento pessoal

mas, não os sinto como meus

acho que até os lembro de cor, é verdade

mas, não os sinto como meus

Acho que posso com o mesmo dedinho que vou inventando na minha janela embaçada

pousar e achá-los em qualquer mapa da memória

mas, nem sequer isso faz com que os sinta meus

No meu mundo embaçado tenho outro endereço e outra caixa-postal

e lá quem recebe as cartas é minha menina amiga

que olha pra minha cédula de identidade e não se acha

por isso seu nome é Nuvem

por isso na sua casa inventada não tem muitos móveis

nem nada que tenha correntes nem porcelana

só um jardim de girassóis que olham e sonham além das montanhas

hoje ela serve o chá verde pra nós duas numa mesma grande xícara

e corta pedaços de bolo de coco que nunca vi que ela fizera


mas, ela é assim, anfitriã de nossas tardes com todos os doces que encontra

troca suas roupas e suas palavras

e ensaia canções que me espreguiçam

eu, que odeio dormir sonecas, ou os pré-anúncios de reuniões familiares

me entrego às suas cerimônias onde posso ser gaivota ou cotovia

ou qualquer ave migrante que deseje enquanto envolvo suas asas com as minhas

Que bonito ser menina no teu espelho embaçado!

Que bonito sentir que há alívio na tua janela!

Enquanto o canto desse inverno seca meus sonhos de uma abrupta passada

E o pai faminto volta, e a ex-menina agora cinzenta se levanta

E o cachorro mexe ansioso o rabo e late e late e irremediavelmente late

4)

Mais uma vez, volta aquela ex-menina agora cinzenta

mexe nas gavetas procurando as roupas que insistirá em que eu vista

porque é dia de saída e de uniformes

assim gosto de descrever as roupas que ela escolhe e me coloca

uniformes de tecido que gritam o que deveria ser

mas, nuca o que sinto mesmo

uma máscara externa de cara aos espelhos e às cautelas e às certezas


mas, nunca às asas que faz tempo invento

por isso minha verdadeira saída não é a rua

senão percorrer um caminho imaginário nas nuvens

essa seguirá sendo minha guia, eu pressinto

voar cada vez mais alto com ela

embora seja inverno e meu uniforme de dia seja duro e feio

eu com ela vou leve, faço acrobacias e sonho

que isso não é um ônibus, que não vou pra nenhuma escola

que amanhã serei eu quem olhei gavetas e armários

e que minhas roupas serão levíssimas e com muitos véus

e que aquela ex-menina agora cinzenta, talvez me escute

5)

Gostaria de contar sobre minha amiga na janela embaçada

esse é um segredo que ninguém na casinha pequena sabe

mas, não tenho as palavras certas pra fazê-lo

ou será que imagino que meu pesadelo do terremoto explode

e então meu pai fica brabo e nunca, mas nunca mais me fala

ou aquela ex‐menina, agora, chora, chora e chora, chora tanto que nunca calma

E até o cachorro me late, late, late e me caga


não quero esse terremoto da casinha pequena virando pó

e ficar sozinha entre as ruínas e os cadáveres

por isso meu dedinho desenha sorrisos e um parque onde meu brincar me alivia e me

salva

sou mágica das formas e das asas que cada vez mais crescem em mim e em afogam

porque ninguém sabe de minha amiga da janela embaçada

e isso mesmo, que me dá vida, sinto que assim escondida me mata

Mas, calma, essa morte não é drama

mudar a pele, as roupas, que não fique nada do velho

ser outra, ser eu, até que enfim

Minha própria Nuvem.

Você também pode gostar