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O PSIQU I AT R A ,

O P O E TA
EO LUTO

FERNANDO PORTELA CÂMARA


O PSIQU I AT R A ,
O P O E TA
EO LUTO

FERNANDO PORTELA CÂMARA


Sumário

© Fernando Portela Câmara 2023

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,


armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida
por meios mecânicos ou outros quaisquer sem a
autorização do autor. Reprodução proibida. Art. 184 do 11 Prólogo
Código Penal Brasileiro e Art. 30 da Lei 5.988/73. 14 Funeral Blues
16 A Segunda Vinda
Revisão de texto: Nathercia Martinelle 19 O Corvo
Fotografia da capa: Ophelia (John Everett Millais) 24 O Poema de Giordano Bruno
Projeto gráfico/capa: Roberto Portella 28 Franco nos Infernos!
30 Gilgamesh
O psiquiatra, o poeta e o luto – Câmara, Fernando Portela
Rio de Janeiro: 2023 − 46 p. 39 Asclépio
1. Língua portuguesa. 2. O psiquiatra, o poeta e o luto I. Título 43 Epílogo
44 Epitáfio de um Filósofo
Impresso no Brasil/printed in Brazil, 2023
ISBN: 978-65-81579-00-5
Email. fernandocamaraescritor@gmail.com
Para Annibal Portella (1899-1955),
o morto que vivia escrevendo.
A morte sussurrou em
meu ouvido: “Viva.”
E então me disse: “Eu
estou vindo.”
Virgílio
10 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 11

Nota Biográfica
Prólogo

A
Morte não negocia, mas talvez por alguma piedade nos acostuma
com a ideia do fim. The End. Primeiro, vai levando alguns entes
queridos, parentes e amigos, deixando-nos uma sensação de solidão;
depois refletimos e percebemos que algum dia será nossa vez,
e pouco a pouco aceitamos a realidade. Feliz é o teimoso, que
resiste e vai ficando até onde pode, não liga para ela e procura
viver cada dia.

Wittgenstein escreveu que a morte não está na vida. De fato, pensar


na morte e temer por ela é algo insano, pois a morte não é uma expe-
riência ou uma vivência, ela não é vivida, então por que pensar nela?
Que gozo estranho esse…

O que é perecível não é perdurável, e isso inclui, naturalmente,


o ego, não o Isso. A mortalidade é privilégio ou horror do ego,
que se forma na experiência dos sentidos, educação, cultura e
conversação. Ele não sobrevive ao corpo, não é o Self.

FERNANDO PORTELA CÂMARA Em Fédon, um dos discípulos de Sócrates, após ouvir as derradei-
é médico psiquiatra, escritor e professor. Após se ras instruções do sábio, pergunta ao mestre antes da fatal cicuta:
aposentar da UFRJ, fundou o Instituto Stokastos, “Sem dúvida que faremos tudo para que seja como dizes, mas
onde pesquisa estruturas cognitivas no sujeito
como havemos de te enterrar, mestre?
social. Gosta de dar palestras
e de organizar cursos.
“Como melhor vos aprouver”, disse Sócrates, “se me conseguirem
apanhar, e eu não vou fugir”.
12 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 13

Não se aponta para o cadáver de Sócrates e se diz: “Sócrates está Aleister Crowley, segundo a sonoridade do original inglês, que
morto!” Ora, ali está um cadáver, não é e nunca foi Sócrates. destacava sons sibilantes.

Descartes, pouco lido e muito falado, na sua Sexta Meditação, arrisca: Prefiro traduzir poemas focando o estado mental do poeta, no
“Sou verdadeiramente distinto do meu corpo e... posso viver sem momento da escrita e do coletivo em que ele se inseria na época
ele.” Naturalmente, até o momento ele não nos comunicou suas em que escreveu. E por tal, não sigo a regra poética. Mania de
experiências post-mortem. Pelo sim, pelo não, melhor contar com psiquiatra. Foi assim que traduzi o poema O Corvo (The Raven), de
esta vida. Poe, A Segunda Vinda (The Second Coming), de Yeats, e Franco nos
Infernos, de Neruda, que apareceram na Psychiatry On-line Brasil
Enquanto malham e tomam suas vitaminas, como se isso fosse anos atrás.  
um talismã contra a morte, não se esqueçam de cuidar de suas
mentes e de se alimentarem de tempo, uma iguaria muito apreciada
pelos filósofos de antão, especialmente quando bem temperada e
na companhia de amigos.

Os que morrem não sabem que morreram. Não sabemos como


começamos e nem como terminaremos, vivemos entre reticên-
cias… Cada indivíduo é um folhetim inacabado, como este que o
gentil leitor tem em mãos.

Morremos apenas para as pessoas. No nosso caso, é como se


nunca tivéssemos existido. Somos apenas memórias incômodas
para as que ficam, e algumas sentirão saudade.

O Corpo e a Alma do Texto

Fomos ensinados que a poesia deve ser traduzida como se o


autor falasse pela língua do tradutor. Isso não é uma norma,
contudo. Fernando Pessoa – que parecia gostar de algumas más
companhias – preferia traduzir poemas segundo o que ele julgava ser
a “força oculta” do texto. Assim ele traduziu Io Pan, do famigerado
Fernando Portela Câmara 15

Façam os drones gemerem sobre nossas cabeças


Funeral Blues

D
Rabiscando com laser no céu “Ele morreu”.
Ponham fitas brancas nas pombas das praças,
E que os policiais do trânsito usem hoje luvas negras.

Ele foi meu Dia e minha Noite, meu Oriente, meu Ocidente,
irijo uma lista de psiquiatras brasileiros na Internet, e houve uma Minha semana de labor e meu repouso domingueiro,
época em que ela era muito ativa; discussões de alto nível eram Meu verão, meu inverno, minhas falas, meus cantos;
trocadas. Um belo dia, dois dos nossos colegas mais ativos se E eu pensei que o amor duraria para sempre: meu engano.
apaixonaram em um congresso da especialidade, e isso foi o
grande acontecimento do ano para todos nós. Um dia, os apaixo- As estrelas não são necessárias agora; fora todas elas,
nados almoçavam e, ao saírem do restaurante de mãos dadas, ele Escondam a lua e apaguem o sol,
subitamente caiu e morreu. Foi uma tragédia para todos nós, e Drenem o oceano e derrubem os bosques;
um sofrimento por nossa colega repentinamente atravessada pelo Pois nada agora fará algum bem.  
luto. Como forma de mitigar aquela tragédia, trocamos poesias e
poemas. Uma delas me tocou profundamente, pois resumia todo o
sentimento de quem, de repente, ficou sem o seu amado. Traduzi
o poema naquele momento, como que para capturar o nosso luto.

A poesia é Funeral Blues, de W.H. Auden (1907-1973), e, como sempre


faço, traduzo livremente, sem respeitar o texto exato, mas procurando
fixar o afeto que ele emana, pois nem sempre palavras estrangeiras
têm a mesma cor das nossas. Como a poesia é atemporal, não estra-
nhe o leitor ler palavras que não estavam em uso no tempo de Auden.

Funeral Blues

Parem os relógios, desliguem os celulares,


Não deixem o cão latir, ponham-no para fora,
Silenciem toda música, rufem os tambores
E tragam o caixão, deixem as carpideiras entrarem.

14
Fernando Portela Câmara 17

temporâneo, onde redes sociais, ideologias e agitação, movidas


A Segunda Vinda

A
pelo ingrediente secreto, o ódio, vociferam nas ruas, nos celulares
e nos lares.

Eis a atmosfera em que minha tradução tenta extrair o afeto tene-


broso, em sombria homenagem às vítimas inocentes e mudas que
escatologia cristã ensina que a segunda vinda do Cristo não é para se amontoam nas consciências de almas vazias inebriadas de poder.
a paz, mas para a vingança, a purificação pela destruição dos que
perderam a fé e a humanidade, para salvar os poucos que ainda A Segunda Vinda
creem no amor e na salvação. W. B. Yeats (1865-1939), poeta e
ocultista, coloca esse acontecimento numa perspectiva aterradora. Girando e girando amplia-se o círculo,
Para o poeta, a segunda vinda é a própria Besta. Talvez com isso ele O falcão não pode mais ouvir o falcoeiro;
tenha criticado a hipocrisia da Igreja de Roma, como que moldando Tudo desaba ao redor, o centro não mais se sustenta;
aquele estado de coisas, aquela arrogância, que levou a Europa a A anarquia anda à solta pelo mundo,
duas guerras mundiais apenas no século passado. Especulo. A onda tingida de sangue se espalha por toda parte,
E a inocência é nela cerimonialmente afogada;
Concentrei-me no estado em que Yeats se encontrava, o coletivo Os melhores perderam a convicção, enquanto os piores
europeu quando a Primeira Guerra Mundial estava no fim. Havia Estão plenos de furor passional.
uma depressão geral na Europa, uma revolta dos mais sensatos
por toda aquela carnificina estúpida e perversa; prevalecia o sen- Seguramente alguma revelação está para vir;
timento geral de uma guerra cruel, desumana, com centenas de Certamente é a Segunda Vinda que está para acontecer.
milhares de mortes injustificáveis de jovens atônitos, sem nenhum A Segunda Vinda! Mal pronuncio essas palavras
significado, sacrificados no “altar da pátria”. Bah! O poema de E a vasta imagem do Spiritus Mundi
Yeats reflete esse sentimento de forma profunda e questiona a Perturba a minha visão: algo nas areias do deserto,
irracionalidade que se transforma em fúria homicida quando o Cuja forma em corpo de leão e cabeça humana,
ódio, a ideologia e a ignorância submetem a razão e dissolvem o De olhar vazio e impiedoso como o sol,
espírito humano na mais abjeta criatura que rasteja no pântano Começa a se mover lentamente, enquanto ao redor,
da insensatez. Eis aí a Besta. No deserto, agitam-se as sombras de aves agourentas.
As trevas caem mais uma vez; mas agora eu sei
Entretanto, a poesia é atemporal, e por isso o poeta é inadverti- Que esses vinte séculos de sono letárgico
damente um profeta. A mesma situação se aplica ao Brasil con Geraram um pesadelo ao ser embalado.

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18 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO

E que Besta medonha, em sua derradeira hora,


O Corvo

O
Rastejará até Belém para enfim nascer?  

Corvo, poema de Edgar Allan Poe (1809-1849), é talvez o mais conhe-


cido da cultura universal. Minha tradução não seguiu a métrica, as
rimas ou a cabala sonora das palavras, mas, como psiquiatra, queria
destacar a descrição perfeita da vivência de um luto que se tornou
depressão… e que se perpe­­tua até hoje na obra de Poe. Há muitas
traduções deste poema, inclusive duas famosas em língua portu-
gue­sa, mas na tradução presente eu quis colocar Poe na cadeira de
um consultório e deixá-lo falar, no gélido janeiro de 1845.

O Corvo

Aconteceu numa noite tempestuosa e sombria, eu refletia


Sobre uma esquecida doutrina em estranho livro escrita,
E, enquanto cochilava, subitamente despertei com batidas,
Como se alguém gentilmente batesse à porta do meu quarto.
“Deve ser alguém,” murmurei, “batendo na minha porta;
É apenas isso, nada mais.”

Ah! Claramente me lembro, foi num frio dezembro,


Enquanto o fogo da lareira projetava sombras fantasmais,
Eu ansiava pela vinda do amanhecer, e em vão buscava na leitura
Algum alento que afastasse de mim o sofrimento da perda de Lenora,
Essa pura e radiante santa que os anjos chamam Lenora,
Cujo nome aqui já não é mais.

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20 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 21

A seda rubra da cortina gemia em lúgubre surdina, Justamente no busto de Palas, acima da entrada do meu quarto.
Arrepiando-me com fantásticos terrores nunca antes sentidos Pousado ali ficou, nada mais.
E, para sossegar os sobressaltos do meu coração, eu repetia:
“É um visitante desejando entrar nos meus aposentos. Então essa negra ave fez mudar minha tristeza num sorriso,
Apenas isso, nada mais.” E, diante daquele grave semblante e rígida postura, eu disse:
“Embora tenhas a cabeça nua, és um ser nobre,
Então minha alma ficou mais forte, e, sem hesitar, falei: Majestoso e antigo Corvo que vaga nas trevas noturnas.
“Senhor”, disse eu, “ou Senhora, peço sinceramente que me perdoe, Diz-me que nome ostentas nos confins da noite sepulcral.”
pois estava a cochilar, e tão delicada foi sua batida, E ele disse: “Nunca mais.”
Tão suave foi sua batida na porta do meu quarto,
Que eu não estava certo de tê-la ouvido.” Abri então a porta, E eu fiquei maravilhado ao perceber que essa ave me compreendia,
Só vi escuridão, nada mais. E, embora sua resposta tivesse pouco sentido e relevância,
Creio que nenhum ser humano vivente conhecido
Fiquei a sondar as profundas trevas, maravilhado e temeroso,
Foi abençoado com a visão de uma ave sobre a porta do seu quarto.
Vacilante, sonhando sonhos que nenhum mortal antes sonhou;
Ave ou besta, firmemente pousada num busto acima de sua porta
Porém, o silêncio permaneceu, e o nada se manifestou,
E que se chamava: “Nunca mais.”
E a única palavra ali pronunciada foi um sussurro: “Lenora!”
Eu murmurei, e o eco da noite murmurou de volta: “Lenora!”
Mas o Corvo, solitariamente pousado naquele plácido busto, dizia apenas
Depois o silêncio, nada mais.
Aquelas únicas palavras, como se elas fossem sua própria alma,
Voltei para a minha cama, minha alma febricitava, Nada além disso ele dizia, nem mesmo uma pena ele movia.
E novamente as batidas, agora mais fortes, se fizeram ouvir. Então, cheio de mágoas, eu murmurei: “Outros amigos aqui estiveram,
“Certamente,” disse eu, “alguma coisa bate na minha janela; Mas, como a esperança, foram-se embora, e também este voará com a aurora.”
Vamos ver, então, que agouro é esse, investigar esse mistério, Então a ave disse: “Nunca mais.”
Acalma-te coração, por um momento, e decifra esse mistério:
Trata-se do vento, nada mais.” Perplexo no silêncio quebrado por essa resposta tão precisa,
“Não há dúvida”, disse eu, “que ele fala a única ciência
Abro a janela e, de repente, percebo um bater de asas, Aprendida de algum infeliz mestre castigado por destino implacável,
E eis que entra um majestoso Corvo vindo de eras ancestrais. Que, de tanto cantar cada vez mais rápido a sua desventura,
Nenhuma reverência ele fez, nem me fitou um instante sequer. Só restou de sua derradeira esperança o melancólico estribilho:
Porém, com porte de nobre estirpe, pousou sobre minha porta Nunca, nunca mais.”
22 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 23

Mas o Corvo ainda mudou minha tristeza num sorriso, Essa pura e radiante santa que os anjos chamam Lenora”.
E eu virei a poltrona para ficar face à ave, ao busto e à porta; E o Corvo respondeu: “Nunca mais.”
Então, recostado no veludo, eu buscava alguma ligação
Que pudesse explicar o que esse ominoso e antigo pássaro, Sejam estas palavras tua despedida, ave ou inimigo” gritei, erguendo-me:
Descobrir o que essa horrenda e negra ave queria “Volta à tempestade e para os confins da noite sepulcral!
Dizer grasnando: “Nunca mais.” Que nenhuma pluma de ti ateste a mentira que tua alma repete,
Deixai-me com minha solidão inquebrantável, alça-te desse busto!
Assim, sentado eu conjeturava, calado e absorto, E o Corvo respondeu: “Nunca mais.”
Sentindo o olhar da ave que agora queimava o meu ser,
Mais eu devaneava, mais a minha cabeça reclinava calmamente E de lá ele não mais saiu, ficou para sempre pousado
Sobre a almofada de veludo onde os raios da lâmpada caíam; Sobre o pálido busto de Palas acima da minha porta;
Na poltrona onde ela, sob a luz que derramava suavemente, Os seus olhos parecem sonhar com o Demônio.
Já não repousa mais. Ah! Nunca mais. E a lâmpada projeta no chão sua medonha sombra,
Que, flutuando qual dança macabra, aprisiona minha alma,
O ar pareceu-me então mais denso, perfumado por invisível incenso, Que não há de se libertar. “Nunca mais.”  
Como se Serafins ali no recinto agitassem turíbulos.
“Mísero!”, exclamou,“Eis que Deus enviou seus anjos para fazer-te esquecer
A cruel lembrança daquela que perdeste para sempre: Lenora!”
E o Corvo respondeu: “Nunca mais.”

“Profeta”, eu disse, “ser Infernal, ainda que profeta! Ave ou demônio!


Seja o Tentador que te enviou, seja a tempestade que te jogou nesta praia,
Terra deserta, desolada, assombrada e encantada,
Neste lar pelo Horror habitado, dizei-me a verdade, eu imploro!
Há, verdadeiramente, um bálsamo no mundo, dizei-me, eu imploro!”
E o Corvo respondeu: “Nunca mais.”

“Profeta”, eu disse,” “ser Infernal, ainda que profeta! Ave ou demônio!


Pelo céu que nos abriga, por esse Deus que adoramos,
Diz a esta alma que sofre se no distante Éden
Ainda pode escutar aquela que os anjos chamam Lenora,
Fernando Portela Câmara 25

A História levantará uma estátua para mim.


O Poema de Giordano Bruno

A
Eu sei que me condena vossa suma demência,
Por quê?... Porque busquei da verdade as luzes,
Não em vossa falsa ciência que o pensamento obscurece
Com dogmas e mitos roubados de outra era,
Mas no livro eterno do mundo do universo,
inda jovem adotei Giordano Bruno como um exemplo da defesa da que encerra entre suas páginas de imensa duração
liberdade de pensamento. Essa resistência o levou à inquisição pelos as sementes abençoadas de um futuro frutífero,
seus irmãos dominicanos – traição essa que ainda busca por justiça – , baseado na justiça, fundado na razão.
condenado à morte, e seus livros, censurados. Giordano Bruno, também Bem sabeis que o homem, se ele procura em sua consciência
conhecido como “o Nolano”, ou Bruno de Nola, em referência à cidade a causa das causas, o último porquê,
de seu nascimento, foi queimado vivo em Roma, na Praça Campo di há de trocar, muito em breve, a Bíblia pela ciência,
Fiori, em 17 de fevereiro de 1600, aos 52 anos de idade. Tornou-se um os templos por escolas, a fé pela razão.
mártir da liberdade de pensar e de expor suas ideias ao debate. No Eu sei que isso vos assusta como vos assusta tudo
local onde foi martirizado, ergueu-se uma estátua em sua homenagem. que é grande, e gostaríeis de poder me desmentir.
Além disso, vossa consciência jaz submersa na lama
Bruno pregava uma reforma do pensamento, libertando-o do enges- de um servilismo que faz gemer a lástima.
samento a que a aliança Igreja-Estado submetia os intelectuais e Mesmo ali, no fundo, bem sabeis que a ideia
liberais da época, e a circulação de novas ideias na sociedade. Ele é intangível, eterna, divina, imaterial.
era verdadeiramente um philosophus per ignem. Seu martírio não foi Que não é ela o Deus e a religião vossos
um evento isolado no tempo e no espaço, mas um fato atemporal se não o que forma, com suas mutações, a história do mundo.
que se repete na História. Que é ela que extrai a vida do ossuário,
que torna o homem de pó em criador,
Abaixo, minha tradução do poema de Bruno, seu estado de espírito, a que escreveu, com sangue, a cena do Calvário,
ao saber do decreto da sua morte. depois de escrever com luz a do Tabor.
Mas sois sempre os mesmos, os velhos fariseus,
Poema de Giordano Bruno aos Seus Verdugos Aqueles que rezam e se prostram onde podem ser vistos,
fingindo fé, sois falsos ao chamar por Deus, ateus
Dizei-me, qual é o meu crime? Suspeitais, sequer? Chacais que a um cadáver buscais para roer!...
E me acusais, sabendo que nunca delinqui! Qual é a vossa doutrina? Trama de mentiras,
Queimai-me, porque amanhã, onde acendeis o fogo, vossa ortodoxia, embuste; vosso patriarca, um rei;

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26 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 27

lenda é a vossa história, fantástica e estranha. Covardes! O que vos detém?... Temeis o futuro?
Vossa razão, a força; e o ouro, vossa lei. Ah! Tremeis. É porque vos falta a fé que me sobra.
Tendes todos os vícios dos antigos gentios, Olhai para mim: eu não tremo... E sou eu quem vai morrer!...   
Tendes a bacanália, sua pérfida maldade;
como eles sois farsantes, hipócritas e vis.
Quereis, como eles queriam, matar a verdade;
Mas vão é o vosso empenho, se nisso há algum;
sou eu a quem a História, no futuro, dirá:
“Eu respeito aqueles que morrem como morreu Bruno.”
E quanto aos vossos nomes, quem os lembrará?

Ah? Prefiro mil vezes minha morte à vossa sorte;


Morrer como eu morro... não é uma morte. Não!
Morrer assim é a vida; e vosso viver, a morte.
Então, quem triunfará não será Roma, serei eu!
Informeis vosso Papa, vosso senhor e mestre,
Digais que me entregastes à morte como um sonho,
porque é a morte um sonho que nos conduz a Deus...
Mas não a esse sinistro Deus, com vícios e paixões,
que ao homem dá a vida e, ao mesmo tempo, sua maldição,
Senão ao Deus-ideia, que em mil evoluções
dá forma à matéria, e vida, à criação.
Não o Deus das batalhas, mas o Deus do pensamento,
o Deus da consciência, o Deus que vive em mim,
O Deus que anima o fogo, a luz, a terra, o vento,
O Deus das bondades, não o Deus de ira sem fim.
Diga a ele que 10 anos, com febre, com delírio,
Com fome, não puderam minha vontade quebrar,
Que negue Pedro ao Mestre Jesus, que a mim, ante o martírio
da verdade, sabeis que não me fareis apostatar.
Agora basta!... Eu vos aguardo! Dai fim à sua obra,
Fernando Portela Câmara 29

Não mereces dormir.


Franco nos Infernos!

P
Ainda que pregos sejam cravados nos teus olhos,
deves estar desperto, caudilho, desperto eternamente
imerso na podridão dos recém-paridos
rebentos dilacerados no outono. Todas, todas as tristes crianças esquartejadas,
rígidas, penduradas, esperando em teu inferno
ablo Neruda (1904-1973) expressou o sentimento de luto, travestido este dia frio de sombria festa: tua chegada.
em um ódio abissal, bíblico, contra o General Franco, que neste Crianças incineradas pelas explosões,
poema é personagem secundário. O real personagem é o ódio. pedaços vermelhos de miolos, corredores de delicadas vísceras te esperam
Neruda dá a ele vida e substância, liberta o demônio. Sentimos todos, todas, na mesma atitude
essa criatura medonha pulsar em cada frase. O poema El General de atravessar a rua, de chutar a bola,
Franco en los Infiernos! mostra o quão difícil é traduzir o espanhol de comer uma fruta, de sorrir ao nascer.
para o português, e por isso é sempre bom traduzir o afeto do
poeta, captando seu sentimento no preciso momento do seu furor Como o agudo espanto ou a dor que devora,
de possessão. meu horror e minha angústia te aguardam. Só e maldito,
só e desperto sejas entre todos os mortos,
e que o sangue caia sobre ti como chuva,
Franco nos Infernos!
e que um agonizante rio de olhos arrancados
deslize e corra, fitando-te sem fim.  
Nem o fogo nem o ácido fervente
em um ninho de bruxas vulcânicas, nem o gélido vento
nem a tartaruga pútrida que, ladrando e chorando
com voz de mulher morta, te escava o ventre,
buscando um anel nupcial ou um brinquedo de criança degolada,
serão para ti apenas uma porta escura, arrasada.

Aqui estás. Estrume de sinistras aves de sepulcro


que esvai de tua triste pálpebra, pesado dejeto,
emblema da traição que o sangue não apaga. Quem, quem és,
Oh! Miserável espuma de sal. Oh! Cão da lama.
Oh! Sombra de um mal nascido amor.

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Fernando Portela Câmara 31

sua juventude. Enfim, torna-se um sábio, que reaparecerá mais


Gilgamesh

G
tarde no Eclasiastes.

Abaixo vai minha prosa do épico. Mantive o texto fiel ao poema,


deixando claros os pontos essenciais onde os significados podem
ser notados.
ilgamesh foi o quinto rei da dinastia de Uruk, na Suméria, que
durou aproximadamente de 2.800 a 2.500 anos antes de nossa era. A História de Gilgamesh
O poema épico Cantar de Gilgamesh foi escrito há cerca de 4.000
anos e resume o mito sumeriano da origem humana. A impor- Em Uruk reinava um tirano implacável, invencível entre os guerreiros,
tância desse poema é imensa, tanto histórica e mitologicamente, dois terços deus, um terço homem, seu nome era Gilgamesh.
quanto para a psicologia profunda. Existiu, de fato, um Gilgamesh
histórico, um rei famoso, guerreiro temido e herói admirado pelo Aos jovens escravizava e às jovens mulheres não deixava intactas. O
seu povo. É possível que o bíblico Nimrod tenha sido modelado povo, aterrorizado, invocou a proteção divina contra aquele gigante, e
em Gilgamesh e que a constelação que conhecemos como Órion o senhor do firmamento ordenou a Aruru, a deusa que havia modelado
talvez o tenha eternizado. o primeiro homem em barro, que fizesse um ser capaz de enfrentar e
vencer Gilgamesh, restabelecendo a paz na cidade.
Para um psiquiatra o mito revela que os sábios da Suméria conhe-
ciam profundamente a dupla natureza humana. Gilgamesh, Rei da Aruru, então, fez uma criatura a quem deu o nome de Enkidu. Era
Terra, Domador de Feras e Vencedor de Batalhas, tem uma estreita peludo e tinha longas tranças. Cobria-se com peles e vivia entre as feras,
relação vital com seu amigo Enkidu, um ser nascido na natureza, comia a erva das planícies e bebia nas fontes com as gazelas. Protegia
intuitivo, supersticioso, onírico. Gilgamesh é algo maníaco, desa- os animais e destruía as armadilhas dos caçadores.
fiador, sedento em busca de glórias; Enkidu é prudente, temeroso,
tende à dúvida e se deprime facilmente. Um vive para as sensa- Gilgamesh soube da existência desse extraordinário ser em um sonho,
ções, é extrovertido, solar; o outro é atormentado por presságios, então imaginou um estratagema para enfraquecê-lo e trazê-lo a Uruk e
é introvertido, lunar. Gilgamesh, unido a Enkidu, alcança glória e então derrotá-lo em uma contenda, como era do seu gosto. Enviou-lhe
conquistas; sem Enkidu, torna-se amargo, neurótico, melancólico. uma donzela que fez Enkidu apaixonar-se por sua beleza e nudez, que a
possuiu durante sete dias e sete noites, findas as quais as feras não mais
O épico conclui com o inevitável princípio da realidade: Gilgamesh o reconheceram. Enkidu então notou que suas pernas não eram mais
foi grande, mas mortal. Ele perde a melhor parte de si, Enkidu, e tão ligeiras quanto as das gazelas. Ele transformara-se em um homem
envelhece. Reflete a brevidade da vida e a vaidade que consumiu muito belo, e a donzela convidou-o a ir até Uruk para conhecer o templo

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32 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 33

resplandescente onde o deus e a deusa sentavam juntos. Cumpria-se o A montanha era coberta por um bosque de cedros, e o corte de uma dessas
estratagema de Gilgamesh, e Enkidu viu que era o momento de cumprir árvores provocaria a ira do horrível monstro, que fatalmente investiria
a missão dada por Aruru. sobre os invasores. Enkidu ficou temeroso, mas Gilgamesh o convenceu
com estas palavras: “Que dirás aos teus filhos quando eles te perguntarem
Gilgamesh teve outro sonho, em que um dardo flamejante precipitava-se o que fazias quando tombou Gilgamesh?”
dos céus, cravando-se em suas costas, e ele não conseguia arrancá-lo.
Logo após sonhou outro sonho, em que uma grande bola de fogo caía Isso tocou Enkidu, que decidiu aceitar a missão. Além do mais, distraído
do céu no centro de Uruk. Perturbado, procurou sua mãe, uma sábia por aventuras épicas, Gilgamesh deixaria seu povo em paz.
mulher, e pediu-lhe para interpretar esses sonhos. Então ela lhe disse
que os sonhos previam a chegada de um homem mais forte que ele e Gilgamesh comunicou seu plano aos Anciãos, ao Deus Solar e à sua
que se tornaria seu amigo. própria mãe, a Rainha Celestial Ninsum, e todos o desaprovaram.
Conhecendo a obstinação do filho, Ninsum invocou a proteção do Deus
Era véspera do Ano Novo, e Gilgamesh preparava-se para a cerimônia Solar e nomeou Enkidu para a guarda de honra de Gilgamesh.
do Hierosgamos, em que possuiria as novas virgens, quando Enkidu
entrou na cidade. Embora valente, Enkidu estava temeroso diante da gravidade da missão e era
atormentado por dúvidas e superstições. Ele estava indo contra a natureza
Sabedor da missão a que fora destinado pela deusa Aruru, Enkidu desa- que outrora protegia.
fiou Gilgamesh ante a multidão, que se sentiu surpresa e aliviada por
ter agora alguém que a defenderia do tirano. Gilgamesh já o esperava Quando os dois amigos chegaram à floresta de cedros, foram vencidos
na arena, e teve início uma luta titânica em que Enkidu foi o vencedor, pelo cansaço e pelo sono. Gilgamesh então sonhou que uma montanha
atirando Gilgamesh por terra. Mas Enkidu compreendeu que o seu desabava sobre ele e que um belo homem o liberava da pesada carga,
oponente era um homem de coragem e obstinado e logo percebeu que ajudando-o a pôr-se de pé.
não se tratava de um tirano jactancioso, mas de um homem de valor.
Levantou-o, abraçou-o, e ambos se tornaram amigos. Gilgamesh admirou Enkidu interpretou esse sonho como uma vitória sobre Humbaba, porém
em Enkidu seu espírito puro e sua valentia. ele também teve um sonho em que os céus trovejavam, a terra estremecia
e as trevas dominavam, raios caíam, semeando a morte e provocando
Aventureiro, Gilgamesh logo propôs a Enkidu uma façanha de extremo um incêndio devastador, até que no final tudo se transformava em cinzas.
perigo: iriam até a Montanha Sagrada, onde o santuário dos deuses
era guardado por Humbaba, uma besta com voz de trovão e um único Gilgamesh interpretou o sonho do amigo como um mau presságio, mas
olho, cuja mirada petrificava a quem o observava. Sua boca despejava o espírito de aventura falou mais alto que a prudência, e ele convenceu
fogo, e seu hálito disseminava a peste. Enkidu a continuar. Derrubou um dos cedros, e logo Humbaba investiu
34 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 35

sobre eles; e pela primeira vez Gilgamesh sentiu medo. Os dois amigos Mas não se pode zombar dos deuses.
conseguiram, porém, a muito custo, dominar o monstro e cortar-lhe a
cabeça, levando-a triunfalmente para Uruk. Enkidu sonhou que os deuses estavam reunidos em assembleia, deli-
berando sobre quem seria o culpado da morte de Humbaba e do
Mas ninguém provoca os deuses. Touro Celestial, se ele ou Gilgamesh. O culpado morreria. Como
os deuses não chegavam a um acordo, Anu, o pai de todos eles,
Gilgamesh subiu ao trono em suas vestes reais e saudado pelo povo. disse que Gilgamesh não apenas matou o touro, como também
A deusa Ishtar, o Eterno Feminino, que a tudo assistia, apaixonou-se tinha cortado os cedros. A discussão tornou-se violenta, e os deuses
ao ver a bela e poderosa figura do rei e, usando toda a argúcia, fez começaram a insultar uns aos outros, e nesse momento Enkidu des-
promessas tentadoras a Gilgamesh, prometendo-lhe todos os poderes, pertou, sem conhecer o veredito final, e correu a contar seu sonho
riquezas e deleites possíveis, caso ele se tornasse seu amante. Mas Gil- a Gilgamesh. Ante tanta atribulação, Enkidu arrependeu-se de
gamesh conhecia a traiçoeira e inflexível Ishtar, assassina de Tammuz ter-se tornado humano. Amargurado, elerecordava nostálgico sua
e de inúmeros amantes, e repeliu, com insultos, seu convite. anterior e despreocupada vida animal e ouvia vozes consoladoras.

Ishtar, ao ver-se rejeitada e ardendo no ódio da frustração, pediu ao Algumas noites depois, ele teve outro pesadelo. Um forte grito atravessou
pai que enviasse à Terra o gigante Touro Celestial e ameaçou romper os céus até a Terra, e uma espantosa criatura com cabeça de leão, asas
as portas do Inferno, para que os mortos sobrepujassem os vivos. Seu pai a e garras de águia o capturava e o levava ao vazio. Dos seus braços
preveniu de que, quando o touro desce dos céus, sete anos de miséria e fome saíram-lhe plumas, e começou a se parecer com o ser que o levava.
cobrem a Terra, mas ainda assim Ishtar manteve seu desejo de vingança, e Compreendeu que havia morrido e que a criatura o arrastava por um
o touro foi lançado à Terra. caminho sem retorno. Chegando à mansão das trevas, as almas dos
Grandes da Terra o rodearam. Eram demônios desajeitados, com asas
Uma grande luta teve início, e centenas de homens morreram envene- emplumadas e que se alimentavam de restos. A Rainha do Inferno lia
nados pela respiração do touro sagrado. em suas tábuas os atos dos mortos e pesava seus antecedentes.

Enkidu conseguiu derrubar o animal pelos chifres, e Gilgamesh cravou-lhe Quando despertou, doente e cansado, ele contou ao amigo o veredito
a espada no pescoço. Gilgamesh arrancou o coração do animal e ofertou-o dos deuses e, então, morreu. Gilgamesh foi invadido por uma grande
ao Deus Solar. Ishtar, que assistira à luta, louca de dor e ira, desceu sobre dor com a perda do amigo querido. Pela primeira vez viu a face da
as muralhas da cidade e amaldiçoou Gilgamesh. Enkidu, enraivecido com morte e sentiu um imenso horror.
tamanha arrogância, arrancou o pênis do touro e o atirou na face da deusa.
Desesperado, nosso herói decidiu procurar o segredo da vida eterna.
Ishtar foi derrotada, e o povo aclamou os matadores do Touro Celestial. Ouvira que numa ilha do Ocidente, nos confins da Terra, vivia Utnapishtin,
36 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 37

um homem extremamente velho e do qual todos os homens descendiam, Gilgamesh procurou o barqueiro e insistiu tanto, que ele cedeu e concor-
o único humano que se tornara imortal. dou em transportá-lo, prevenindo-o de que sob nenhuma circunstância
deveria tocar as águas do Oceano da Morte, que iriam atravessar.
Gilgamesh iniciou, então, a sua derradeira jornada. A Katabasis. Muniram-se de 120 varas, e Gilgamesh utilizou sua roupa como vela.

Após um longo percurso, Gilgamesh chegou ao fim do mundo, onde uma Quando chegaram ao destino, Gilgamesh encontrou Utnapishtin, e este
altíssima montanha de picos gêmeos elevava-se para o firmamento e lhe disse que nada havia de eterno na Terra, que tudo tinha seu tempo
fincava suas raízes no Inferno. Na base havia uma porta que davaa- e sua época, e contou-lhe seu segredo, a história do Dilúvio, que era
cesso ao mundo subterrâneo e que era guardada por terríveis criaturas conhecida apenas pelos deuses. O bondoso Ea, Deus das Águas Oceâ-
metade homem, metade escorpião. Gilgamesh avançou decidido e nicas, prevenira Utnapishtin de que um dilúvio destruiria toda a Terra
disse a essas horríveis formas que estava em busca de Utnapishtin. Os e o instruiu a construir uma arca na qual embarcou com sua família e
homens-escorpião, guardiões do Caminho do Sol, disseram-lhe que todos os seus animais. Navegaram na tempestade durante sete dias, até
nenhum mortal poderia passar por ali, porém, vendo a obstinação de que a barca encalhou no topo de uma montanha. Utnapishtin soltou uma
Gilgamesh e compreendendo que não se tratava de um mortal comum, pomba para ver se as águas haviam baixado. Porém, a ave voltou por não
permitiram-lhe a passagem. encontrar onde pousar. O mesmo ocorreu com uma andorinha no outro
dia. No terceiro dia, soltou um corvo, e esse não regressou, significando
Gilgamesh começou a descer por um longo túnel, que se fazia cada que havia encontrado terra. O velho desembarcou com sua família e fez
vez mais escuro, até que depois de um tempo uma brisa chegou ao seu oferendas aos deuses, porém o Deus dos Ventos o fez reembarcar sozinho
rosto, e ele viu uma luz. Quando saiu, viu-se em um mundo luminoso, e o conduziu para onde estava agora, onde existiria eternamente.
um jardim encantador cheio de pedras preciosas que refletiam a luz.
Nesse momento, chegou até ele a voz do Deus Solar, dizendo-lhe que Gilgamesh compreendeu, então, que o ancião não tinha nenhuma fórmula
se encontrava no Jardim das Delícias e que os deuses o proibiram aos de imortalidade para lhe dar. Era imortal, mas somente por um favor dos
mortais, portanto Gilgamesh não deveria ir mais além. deuses, e o que Gilgamesh buscava não poderia ser encontrado desse
lado da morte. Mas, antes de despedir-se, Utnapishtin resolveu revelar-
Obstinado, Gilgamesh não lhe deu ouvidos, e, contudo, decidido, continuou -lhe um segredo: contou-Ihe onde poderia encontrar uma planta cuja flor
a avançar para além do Paraíso. Caminhou bastante até que, cansado, era semelhante a uma estrela-do-mar e que tinha espinhos que picavam
chegou a uma pousada. Lá encontrou a estalajadeira, Siduri, a quem contou como víboras. A planta concedia a quem a comesse uma nova juventude.
sua história, e ela lhe disse que ele jamais encontraria o que buscava, pois os
deuses criaram os homens e lhes deram a morte por destino, enquanto para Animado por essa chance, Gilgamesh, com grande esforço, mergulhou
eles reservaram a vida eterna. Contudo, confidenciou-lhe que o barqueiro até o fundo do lago indicado por Utnapishtin e colheu a planta que o
Urshanabi, guia do barco de Utnapishtin, encontrava-se na pousada. faria recobrar o vigor da juventude.
38 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO

Embora estivesse cansado de todos os esforços que fizera, estava tomado


Asclépio

N
de alegria por aquela dádiva, sua grande última aventura. Não precisava
mais ter medo da morte. Contudo, enquanto descansava, uma serpente
se aproximou sorrateiramente e comeu a planta, desprendeu-se da sua
pele, rejuvenesceu e fugiu. Ao constatar o logro, Gilgamesh desesperou-se
pela perda da preciosa promessa. Frustrado e triste, esquecera que os
deuses haviam reservado só para si o privilégio da imortalidade. o Corpus Hermeticum há um livro que, pela sua importância, é
geralmente colocado à parte como uma obra-chave do hermetismo.
Ele compreendeu, por fim, que seu destino não era diferente do resto É o Discurso de Iniciação ou Asclépio, um diálogo entre Hermes e
da humanidade e regressou a Uruk. Estabeleceu novos planos para Asclépio (não se trata do tutelar da medicina, esse é outro), em que
fortificar a cidade; entretanto, ao ver-se privado da imortalidade, Hermes dá a direção da prática religiosa e mágica do hermetismo.
agitava-se, querendo saber o que acontecia com os homens após a morte. De fato, percebemos a influência desse livro em obras desde o
Com muito esforço conseguiu invocar o espírito de Enkidu, que saiu do temível tratado de magia medieval, o Picatrix, aos neoplatônicos
fundo da terra e lhe falou coisas melancólicas. A amargura invadiu seu do Renascimento. A Igreja condenou esse livro como demoníaco,
coração, pois restavam-lhe apenas as lembranças dos seus feitos. já que ele ensina como animar ou dar vida às estátuas de deuses
egípcios, atraindo para elas os demônios decanos do zodíaco.
E assim termina a história de um homem obstinado que, enfim, aceitou Muitas novas técnicas de magia astral foram nele inspiradas, e
a realidade.   o Picatrix é o melhor exemplo. Ora, a Igreja, com seus santos e
cultos de devoção, usa as diretrizes mágicas do Asclépio, mas, ao
proibi-lo, na verdade quis garantir o monopólio da magia para
si; e o que são todas aquelas ladainhas, terços, eucaristia senão
magia cerimonial? Santo Agostinho e Tomás de Aquino formula-
ram proibições sob esse livro, uma vez que tudo que se invoca se
dirige a alguém inteligente, e como os deuses superiores – anjos
e arcanjos, espiritualidades planetárias – são puro intelecto, sem
necessidade de entendimento e razão, então quem ou o que res-
ponde a esses chamados? Agostinho e Tomás de Aquino sabiam

Querelas à parte, uma das passagens mais sublimes do hermetismo


está no Asclépio, quando Hermes faz a profecia do fim da ligação
dos deuses com o Egito, a Terra Santa. Toda profecia aplica-se a

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40 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO Fernando Portela Câmara 41

qualquer época pelo único fato de ser um discurso atemporal. E …As trevas serão preferidas à luz, achar-se-á mais útil morrer que viver,
como escrevo num Brasil, nosso Egito, em caos – permanente por os olhos não mais se elevarão para o céu; o piedoso será visto como
sinal –, quem está vivendo esta época verá exposta nessa profecia um louco, o ímpio, como um sábio; o louco furioso, como um valente,
a angústia que percola a mente coletiva do país e que parece se o pior criminoso, como um homem de bem. A religião será motivo de
repetir a cada 30 anos, ou mais especificamente, 29,5 anos. riso, e será um crime capital, segundo os textos da lei, dedicar-se a uma
religião. Um novo direito será criado, novas leis serão promulgadas. O
O Brasil que queremos ainda é uma terra média, não saiu do sagrado será apagado das almas, não se achará fé em parte alguma.
Grande Sertão, não se estabeleceu aqui embaixo. Pacientemente
esperam os deuses que haja homens e mulheres de boa vontade. A separação entre homens e deuses será definitiva e não sem dor; restarão
apenas os anjos malignos que se mesclam aos humanos e os incitam à
A Profecia do Asclépio violência e excessos de audácia criminosa, fomentando guerras, saques,
estupros e tudo que é contrário à natureza da alma. A Terra perderá então
Oh! Egito, Egito! De teus cultos restarão apenas mitos, e teus filhos não seu equilíbrio, o mar invadirá terras, e o ar será pesado; a voz divina será
mais crerão neles, restarão apenas palavras gravadas sobre as pedras forçada a se calar; os frutos da terra apodrecerão, o solo deixará de ser fértil.
a contar teus piedosos feitos...
…E quando tudo isso tiver sucedido, oh, Asclépio, então o Senhor Deus
Um vizinho bárbaro invadirá e ocupará o Egito. e seu Demiurgo, depois de ter pesado esses costumes e esses crimes volun-
tários, oferecerão resistência com sua vontade, que é a bondade divina,
E eis que a divindade retornará ao céu, abandonando o país santo. Os aos vícios e à corrupção, e corrigirão o erro, aniquilarão toda a malícia,
homens morrerão, e então, sem deus e sem humanos, o Egito não será extinguindo-a com um dilúvio, consumindo-a com o fogo, dizimando-a
mais que um deserto... Desolação e abominação. Oh, rio santíssimo, a com pestilências estendidas por muitos lugares. Então reconduzirá o
ti predigo as coisas do futuro: torrentes de sangue tingirão tuas águas, e mundo à sua beleza primordial, para que seja digno de reverência e
também fará que transbordes de teu leito, havendo muito mais mortos que admiração e para que Deus seja glorificado por sua obra. 
vivos, e os que sobreviverem serão reconhecidos como egípcios apenas
pela língua, mas na forma de agir parecerão humanos de outra raça…

O Egito será maculado por graves crimes. Ele, o país da terra que os
deuses escolheram por morada, e que ensinou aos homens a santidade e a
piedade, será o cenário da mais atroz crueldade. E, nessa hora, cansados
de viver em tanta desgraça, os humanos estarão em perigo de perecer e
não amarão mais o conjunto do Universo, obra gloriosa de Deus…
Fernando Portela Câmara 43

Epílogo

Ninguém morre, some;


A morte é um sumiço.
Estou agora aqui e agora não estou mais;
Nem lá, nem cá, aonde? Onde?

Não se vai e não se fica,


Lá é que não estou, muito menos aqui.
Você viu o Fulano, Maria?
Eu não, e você? Tem notícia dele?

Ninguém sabe, muito menos eu!


E já que estamos aqui, ou não,
Melhor ir ficando…

Os Pastores da Arcádia de Nicolas Poussin (Et in Arcadia Ego) – pintura

Fernando Portela Câmara


44 O PSIQUIATRA, O POETA E O LUTO

Epitáfio de um Filósofo

Algo evoluiu em mim:


Um vírus,
Que se transmite quando
Converso,
Escrevo,
Apareço nas telas.
Me espalho.
Infecto pessoas
Na esperança que algumas,
Ao se contaminarem,
Se transformem.
Desse modo, propago
Minhas ideias,
Minha filosofia.
Só existo agora,
Na força do contágio,
Não mais em um
Corpo,
Mas em muitas
Mentes.

Fernando Portela Câmara


Na minha experiência de velho e psiquiatra
lidando com velhos iguais a mim, uma
coisa é constante na minha escuta: o medo
da morte. Os que envelhecem começam a
temê-la – Quando virá? Vou sofrer? Vai ser
de repente? –, se tornam hipervigilantes,
e por trás dos problemas que trazem
para a cadeira diante de mim, escondem
tenazmente esse medo, constante e bobo,
que adere como pixe na trama cerebral.
É preciso desentocá-lo, como se faz com
um tatu, e então mostrá-lo à luz do dia, o
bicho enroscado. Queimar miolos nesse
isso é a maior das contradições, ninguém
vive a morte para pensar nela. Este livro
é uma espécie de estímulo para a catarse
desses sentimentos impossíveis, e nada
melhor que a vara de um poema, a que
nenhum tatu-bola de cabeça resiste.

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