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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

Editorial

Combatendo as Causas dessa Inaceitável


Infelicidade

Das Razões de Ser da Revista GIS

Roberto Bartholo

Apresentar uma revista é explicitar seu compromisso, seu pacto fundamental. E fazemos isso
mediante a referência a um "velho" testemunho de D. Helder Câmara (1987:128-129):
".... Lembro-me de certa vez que me convidaram para a inauguração de uma grande empresa. Era um dia
de intenso calor, mas os escritórios dos diretores tinham o conforto dos aparelhos de ar condicionado. Os garçons
passavam travessas e mais travessas com garrafas de uísque. Uma, duas, muitas vezes. Eu tomava apenas
refrigerantes - não por virtude excessiva, pois até gosto de um pouco de vinho, o que não me causa nenhum
problema de ordem moral - e sim porque o álcool parece não gostar de mim... Em dado momento um dos
convidados se aproxima e, grosseiramente, me diz: ´ora, ora Dom Hélder! Como é que vai sua demagogia? O
senhor ainda tem coragem de dizer que vivemos cercados de fome e miséria aqui em Recife?´ Outras pessoas
juntaram-se a nós encorajadas por aquela provocação e querendo prossegui-la. Eu respondi a todos em alto e
bom som: ´vejam só! Eu estava tranqüilo no meu canto, mas vocês preferiram provocar-me... Pois eu lhes
garanto que se sairmos todos nos belos carros que vocês têm, em poucos minutos eu os mergulharei num ambiente
da mais terrível fome e miséria...
Para surpresa minha aceitaram o desafio. Em não mais que dez minutos chegamos a uma sapucaia, um
desses lugares onde os serviços públicos despejam e depois incineram, o lixo da cidade. Eu conhecia bem o
local... Chamei um conhecido, que é funcionário da prefeitura e por ali trabalha. Ele tem, a propósito o apelido
de Doutor Lixeira... Longa experiência lhe ensinou a ver, no meio daquele lixo todo o que ainda pode ser
aproveitado como alimento. É ele quem estabelece a classificação: comida de primeira classe, que funcionários
da prefeitura reservam para si mesmos; comida de segunda classe, boa ainda para as pessoas que nada têm do
que viver e se alojam por ali, disputando o refugo com os urubus que ciscam como galinhas pretas; comida de
terceira classe, que se coleta e guarda para vendê-la depois nas tendinhas de quarta ou quinta classe, onde
qualquer coisa serve para encher a barriga dos que vivem encharcados de álcool...
O Doutor Lixeira explicou tudo isso muito direitinho às dezenas de chefes de empresa que me haviam
acompanhado até ali. Tive a impressão de que marcara profundamente o meu ponto, ensinando-lhes uma dura
lição... Mas qual! No dia seguinte, um deles me chama ao telefone, e diz: ´Dom Hélder, que sujeito formidável
aquele Doutor Lixeira! Ele tem muita iniciativa! Bem que poderíamos empregá-lo...´
Nosso compromisso com a atualidade do testemunho de Dom Hélder pode encontrar abrigo na
afirmativa de um dos mais importantes economistas contemporâneos, A. O. Hirschman (1996: 257):
"... o progresso político e o econômico não estão ligados entre si de modo fácil, direto, funcional".
Essas conexões são construídas situacionalmente. E nesse sentido os estudos de Amartya Sen (2000,
2001) são exemplares para apontar como a igualdade formal de oportunidades deve necessariamente

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ser referida a um contexto situacional concreto.


A proposição fundamental da antropologia filosófica de Martin Buber (Bartholo, 2001) pode vir
a nosso auxílio ao confrontarmos essa questão. Ela nos afirma que antes de ser um ente político ou
econômico o ser humano é um ser relacional. As formas políticas e econômicas correspondem a
padrões historicamente construídos de institucionalização. Percebida desde essa perspectiva, como
bem aponta Hassan Zaoual (2003): "... a pobreza é irredutível a uma simples insuficiência de renda.
Todo o contexto da pessoa deve ser tomado em consideração, em particular sua capacidade de ser
livre de mudar, de agir sobre a situação, de participar da vida social etc. Os espaços da desigualdade
são, então, múltiplos e interativos; utilidades, bens de primeira necessidade, renda, liberdade, entre
outros. Todos esses espaços nem sempre estão adequadamente relacionados uns com os outros. Ao
se dar privilégio a um deles, pode-se produzir efeitos contrários sobre os outros".
Nos contextos situacionais concretos somos chamados a responder a apelos diversos. E a dimensão
ética da resposta é a responsabilidade. Responsabilidade situada, isto é, concreta, pessoal e
rigorosamente intransferível. Não apenas a retórica de uma responsabilização formal. E nesse ponto
podemos retomar o compromisso de Dom Hélder (Câmara, 1987: 129): "... lutar por meios pacíficos,
mas corajosos, contra as estruturas impiedosas que esmagam e fazem sofrer a humanidade. Pois não
basta socorrer as vítimas. É necessário atacar vigorosamente, antes de mais nada, as causas dessa
inaceitável infelicidade".
Para a Revista GIS, falar de iniciativas de interesse social é afirmar esse empenho e compromisso.

Referências bibliográficas
Bartholo Jr., Roberto S. (2001) Você e eu: Martin Buber, Presença, Palavra. Rio de Janeiro,
Garamond.
Câmara, Hélder (1987). O Evangelho com Dom Hélder. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Hirschman, Albert O. (1996). Autosubversão. São Paulo, Companhia das Letras.
Sen, Amartya (2000). Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras.

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Expediente

Sen, Amartya (2001). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro, Record.


Zaoual, Hassan (2003). Globalização e Diversidade Cultural. São Paulo, Cortez.

Informações básicas
A Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais é uma publicação científica gratuita, de
periodicidade quadrimestral, do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (Programa de
Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ).
Dedica-se a divulgar trabalhos voltados para a apresentação e análise de propostas e experiências
ligadas à gestão social. Pretende manter uma atitude prospectiva, apontando possíveis tendências
nesse campo.
Como seções fixas, reúne artigos, reportagens, entrevistas, apresentação de casos e resenhas
críticas. Procura utilizar ao máximo os recursos oferecidos pelo formato de periódico on-line,
explorando as possibilidades do meio eletrônico para oferecer e trocar informações, em particular o
recurso do hipertexto e oferecendo sempre que possível indicação de fontes de informação
complementar disponíveis na web.
O título abreviado da revista é Revista Virtual GIS, forma a ser utilizada em bibliografias, notas
e referências.

Copyright
Os conceitos emitidos em artigos são de exclusiva responsabilidade de seus autores, não refletindo,
necessariamente, a opinião da redação.
Permite-se a reprodução total ou parcial dos trabalhos, desde que seja indicada explicitamente a
sua fonte.

CORPO EDITORIAL

Editor responsável
Roberto dos Santos Bartholo Jr. - Professor do Programa Engenharia de Produção - COPPE/
UFRJ e Coordenador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social

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Comitê editorial
Carlos Renato Mota - professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador do Laboratório
de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ
Arminda Eugenia Marques Campos - pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e
Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ

Conselho Editorial
Geraldo de Souza Ferreira - DEGEO/UFOP, Ouro Preto, MG
Marcel Bursztyn - CDS/UnB, Brasília, DF
Maurício Cesar Delamaro - FEG/UNESP, Guaratinguetá, SP
Michel Thiollent - COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ
Paulo Márcio Melo - UERJ, Rio de Janeiro, RJ
Susana Finquelievich - Fac. Ciências Sociais, Universidade de Buenos Aires, Argentina

Equipe de redação
Andreia Ribeiro Ayres

Secretaria
Maria Joselina de Barros

Revisão
Arminda Eugenia Marques Campos

Concepção do projeto gráfico


Ivan Bursztyn

Webdesign
Marcos Lins Langenbach

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Apresentação

Ao prepararmos este número da Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais não definimos
com rigidez um tema a ser trabalhado com exclusividade.
Conforme chegaram as contribuições, percebemos que todas, de alguma forma, se relacionam
com a idéia presente no título da resenha: arqueologia da inclusão. Os textos que compõem este
oitavo número questionam a idéia de inclusão, como costuma ser apresentada e proposta em diferentes
contextos: no universo da educação e no mundo do trabalho, da perspectiva de formulação de
políticas públicas ou do ponto de vista da atuação empresarial. Esses textos têm em comum uma
insatisfação com idéias usualmente apresentadas como oportunidades de inclusão e a proposta de
refletir mais profundamente sobre esse tema.
Aguardamos seus comentários sobre os temas escolhidos e sobra a Revista como um todo. Seus
comentários e sugestões poderão nos ajudar a melhorar aspectos técnicos ou de conteúdo desta
publicação.
Aguardamos também suas contribuições - artigos, resenhas ou estudos de caso - para o próximo
número. Os textos submetidos serão analisados por nosso Comitê Editorial. A seção “Instruções
aos autores” contém as informações necessárias para preparar os textos que deseja apresentar.

Boa leitura!

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Sumário

Resenha Crítica
Florestan Fernandes, “O negro no mundo dos brancos” Difusão Européia do Livro
Uma arqueologia da inclusão
FERNANDES, Florestan. - Por Elzamir Gonzaga Silva ..................................................................08

Artigos
Celso Furtado e o Desenvolvimento como Invenção
Andreia Ribeiro Ayres........................................................................................................................11

O Silêncio ou a Profanação do Outro


Elizabeth Tunes.................................................................................................................................16

Igualdade dos Homens e Diversidade - algumas questões para o debate


Kátia Regina Moreno Caiado..............................................................................................................25

O Discurso e a Prática da Responsabilidade Social Empresarial: diálogo entre indústria de moda


e comunidade de trabalho artesanal
Rita de Cássia Monteiro Afonso e Francisco José de Castro Moura Duarte..................................................32

Algumas Diretrizes para o Desenvolvimento Humano


Robson Pereira de Lima......................................................................................................................40

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Resenha Crítica

Florestan Fernandes, “O negro no mundo dos brancos” Difusão


Européia do Livro
Uma arqueologia da inclusão

FERNANDES, Florestan.
São Paulo, 1972.

Elzamir Gonzaga Silva*

Quando discutimos a inclusão social tudo faz se em resultados (empíricos e teóricos) de uma
parecer que o tema é uma novidade que surgiu investigação feita em São Paulo, suplementada
nos anos 90. Isso não faz jus aos esforços de por material colhido em outra pesquisa em
pesquisadores que vêm examinando a coleções de jornais do meio negro ou fontes
organização da sociedade brasileira, no sentido estatísticas (e.g. IBGE).
exatamente de verificar a democratização das
relações sociais (leia-se situação de inclusão social Para o autor, no Brasil há um padrão de
dos diferentes componentes da sociedade equilíbrio racial baseado na falácia de que não
brasileira). existe discriminação racial e existem no país dois
pólos na perpetuação indefinida do status quo
Tentaremos demonstrar que o tema da racial: a orientação estática do comportamento
inclusão é preocupação antiga presente em dos brancos e uma certa acomodação por parte
estudos dos fenômenos sociais no Brasil. Para dos negros, descrita como “capitulação passiva.”
isto, analisamos a seguir um dos trabalhos de (pág. 10). Persistindo esse padrão, persiste a
Florestan Fernandes que trata das relações sociais desigualdade racial, pois a ascensão do negro
entre “brancos”, “negros” e “mulatos” ou as ocorre em um processo cujas vantagens
relações raciais. privilegiam o branco.
No livro O negro no mundo dos brancos o autor Três questões são comentadas pelo autor:
se ocupa em demonstrar como o racismo no primeira – os dados são históricos – a coleta
Brasil se manifesta de maneira diferente do que ocorreu quinze anos antes da publicação da
ocorre em países como Estados Unidos e África análise dos resultados. Segunda – os ensaios do
do Sul. O livro reúne escritos publicados entre livro constituem ponto de partida para reflexões,
1965 e 1969, e outros dos anos 40 e 50 (o autor não estão desenvolvidos em seu potencial pleno.
publicara em 1964 a Obra “A integração do negro Terceira – o negro no mundo dos brancos significa
no Brasil” EDUSP, 2vs.). Esses trabalhos têm que não existe a tão aclamada igualdade racial,
como foco a situação do negro e do mulato na tampouco a dita miscigenação no mundo social
sociedade brasileira, a partir da cidade de São brasileiro, o que há é uma sociedade que, mesmo
Paulo. O autor considera a cidade um padrão tendo incorporado muito da cultura negra e
brasileiro de relações raciais, cujos modelos
comportamentais se espelhavam nos mesmos do
período escravocrata, dando ao sistema de classes *
Elzamir Gonzaga Silva é graduada e mestre em Psicologia pela Universidade de
Brasília. Atualmente, exerce a função de analista de ciência e tecnologia do CNPq.
a mesma dinâmica e estrutura do sistema de
castas. A coletânea apresentada no livro baseia-

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indígena, ainda assim, essa incorporação foi futuro parece reservar ao Brasil em matéria de
montada para esse branco (que sequer existe “integração racial”.
como tal), para privilegiá-lo.
Primeiramente, segundo as conclusões das
Segundo o autor, o negro foi exposto a um pesquisas realizadas, a cor da pele é relevante no
mundo organizado socialmente para os segmentos processo de inserção social. O autor sugere que
privilegiados da raça dominante, não ficou inerte, elementos da moral cristã fizeram com que os
mas também as suas influências não mudaram o brasileiros acabassem desenvolvendo um
rumo do processo social. Submeteu-se a formas “preconceito de ter preconceito”:
de auto-afirmação que são ao mesmo tempo
“...preconceito reativo: o preconceito contra o
formas de autonegação; extração do próprio valor
preconceito ou o preconceito por ter preconceito. Ao
e reconhecimento pelos outros de seu valor não
que parece, entendia-se que ter preconceito seria
como negro ou mulato, mas pelo que não é –
degradante e o esforço maior passou a ser o de
branco! Como seria a unidade social se integrasse
combater a idéia de que existiria preconceito no
por multiplicação e não por exclusão, como visto
Brasil, sem se fazer nada no sentido de melhorar a
acima, em que se perdem heranças culturais que
situação do negro e de acabar com as misérias
não se combinam com as condições em que os
inerentes ao seu destino humano na sociedade
estratos dominantes tentam realizar a integração
brasileira.” (pág. 42).
pela sua própria dominação? Essa é a grande
pergunta do autor que permanece e se aplica Isso agiu como elemento principal na forma
também a outros grupos excluídos. disfarçada como sempre se manifestou o
preconceito racial no Brasil. A partir disso, com
O livro divide-se em cinco partes, incluída a
o fim da escravidão e a imigração, os negros
conclusão, e aborda desde pesquisas feitas sobre
passaram a ocupar os piores postos de trabalho
a questão racial brasileira, até trabalhos sobre
na economia emergente. Sua inserção na
obras literárias, artísticas e manifestações
sociedade de classes deveu-se a um fenômeno
culturais do mundo dos negros. As investigações
econômico – necessidade de mão-de-obra. São
que o autor apresenta tratam de desmascarar a
mostrados dados estatísticos com as porcentagens
falaciosa neutralidade brasileira em relação ao
de brancos, negros e mulatos que exerciam cada
preconceito racial apoiada em aspectos como:
uma das ocupações. Demonstra-se claramente a
barreiras sociais à integração; a luta dos negros
prevalência de brancos nas ocupações mais bem
contra a concentração de privilégios entre os
remuneradas e socialmente valorizadas e a quase
brancos; a distância de uma verdadeira
totalidade de negros e mulatos nas ocupações
democracia racial no Brasil; mobilidade e relações
mais mal remuneradas ou de menor valor para a
sociais; estratificação e segregação social; aspectos
sociedade, situação agravada com a imigração.
históricos que influenciam na manutenção da
Negros e mulatos formavam os grupos
discriminação; a imigração e as relações raciais;
marginalizados que viviam nas ruas, na
a situação do negro em São Paulo (foi diferente
prostituição, na degradação social, ou na
em Recife, Salvador e Rio de Janeiro). Demonstra-
economia de subsistência, que foi o que lhe
se como, na sociedade brasileira, os negros foram
garantiu alguma condição de dignidade.
relegados à condição de não-humanos,
inicialmente pela escravidão que lhes tirava o Segundo Florestan, o Brasil está longe de ser
direito da liberdade, depois pela segregação social, uma democracia racial. Entretanto, há entre os
econômica política e até cultural. negros uma resistência em manter-se sob a
sujeição dos brancos, como requer o modelo
O autor, a partir de uma primeira investigação
relacional adotado no país. Ela se constitui de
cuja hipótese era exatamente da convivência
auto-educação e auto-esclarecimento
harmônica entre os grupos raciais, concentrou-
desenvolvidos do seu próprio esforço e em escala
se em analisar a natureza do comportamento do
coletiva.
brasileiro diante do problema racial, o que há de
mito e realidade atrás desse problema, e o que o A mensagem transmitida pelo livro que mais

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interessa à inclusão aborda duas questões dos brancos ou da ordem social existente, porque o
principais: a importância da investigação científica protesto acabou se transformando num valor em si
sobre o tema das relações raciais no Brasil e o mesmo, como se o negro tomasse a si a tarefa
significado do protesto negro. histórica de exibir uma integridade que os brancos
não possuem na auto-identificação com os valores
As investigações científicas, segundo o autor,
fundamentais da civilização vigente”(175).
teriam uma relevância muito grande para a
questão da inclusão do negro na sociedade Em lugar de se insurgir contra aquele que
brasileira com ou sem o preconceito que existe exclui, trata de defender o direito à inclusão,
hoje. O conhecimento sobre a questão racial defendendo-a para si e para os outros excluídos.
brasileira seria uma maneira de demonstrar como
Nos capítulos finais da obra o autor demonstra
as relações inter-étnicas afetam o
vários aspectos da discriminação encontrados na
desenvolvimento da civilização ocidental no
expressão literária e no teatro, manifestações
Brasil. Tal conhecimento viria esclarecer e
culturais do mundo negro, assim como a história
resolver o problema racial em conformidade com
de João Camargo, considerado um líder
os critérios racionais do pensamento científico.
carismático.
Deste modo, o autor sugere que a transformação
do Brasil em uma verdadeira democracia racial A leitura é demasiado interessante e muito
requer o conhecimento explícito de como o rica para condensar em tão breve espaço. É
preconceito se manifesta na sociedade brasileira leitura obrigatória para todos que têm que lidar
e do quanto ele a impede de progredir. Em suas com a diversidade em seu trabalho: funcionários
próprias palavras: públicos, profissionais da área de educação e
saúde, além dos interessados na diversidade
“...o conhecimento da realidade presente precisa
cultural brasileira e dos estudiosos do tema.
ser bastante amplo para proporcionar-nos idéias
justas sobre os pontos em que a herança social A leitura pode concentrar-se na questão da
tradicional se opõe, como obstáculo cultural, às inclusão do negro na sociedade brasileira, mas
tendências favoráveis à democratização e para também pode-se retirar muitas conclusões acerca
revelar-nos as condições em que ela orienta da inclusão de outros grupos excluídos,
negativamente a formação de hábitos novos...” (pág. notadamente os deficientes em geral. Ambos
167). vivem num mundo criado por um grupo
majoritário e para atender às necessidades deste
Pelo que o autor demonstra, entende-se que
grupo, o que lhe rende privilégio de acesso a certos
conhecer as relações raciais ajuda a reconhecer
bens e atividades. O preconceito e a exclusão em
todos os aspectos e mecanismos que promovem
ambos os casos é semelhante:
o solapamento ou reforçam os estereótipos raciais.
Isso, do nosso ponto de vista, seria também útil confere tratamento diferenciado em função
no que se refere ao preconceito contra outros de uma marca física e é velado como resultado
grupos excluídos. da moral cristã – o preconceito de ter preconceito.
O protesto negro representa, segundo o autor,
o clímax da capacidade de um grupo se preocupar
e lutar pela sua libertação do preconceito, como
se uma minoria pudesse promover mudança nas
leis e costumes tradicionais. Tem valor de marco
histórico e de evidenciar
“...o poder assimilacionista da sociedade
inclusiva. [...] deixa patente que mantidas as atuais
condições econômicas, sociais e políticas, o altruísmo,
a nobreza e a elevação dos movimentos sociais do
meio negro não põem em questão as “injustiças”

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Artigo

Celso Furtado e o Desenvolvimento como Invenção

Andreia Ribeiro Ayres*

Resumo

Este trabalho procura apresentar o pensamento de Celso Furtado como uma referência para se
pensar estratégias alternativas ao “modelo único” de desenvolvimento e seus efeitos perversos para
economias periféricas e dependentes: concentração de renda, desigualdade social e o não atendimento
das necessidades básicas da maioria da população. Essa referência tem sua atualidade corroborada
pela necessidade de se ultrapassar os limites de uma concepção estritamente economicista do
desenvolvimento situado e sustentável.
Palavras-chave: desenvolvimento, mimetismo cultural, pensamento crítico e
criatividade

Abstract

This paper aims at presenting Celso Furtado thinking as a reference to devise strategic alternatives
different form the single model of development and its vicious effects to dependent periphery
economies. Some of those effects are income concentration, social inequality and basic needs of the
major part of the population left unattended. It tries to show that his thinking remains up-to-date,
since we need to surpass the limits of a purely economicist vision of sustainable and situated
development.
Key words: development, cultural mimesis, critical thinking, creativity

Autonomia epistemológica
Uma significativa afirmação de Celso O pensamento de Celso Furtado é de precário
Furtado é que “quando o consenso se impõe a uma enquadramento em rótulos pré-concebidos. Seu
sociedade, é porque ela atravessa uma era pouco criativa” desafio maior é a busca por caminhar em direção
(FURTADO, 2002, p.80-81). Essa é uma às respostas dos desafios da vida vivida. Daí
afirmativa coerente para a trajetória de vida de advém a força de sua autonomia epistemológica. Em
um pensador que sempre ousou a confrontação seu horizonte não se vislumbra a simples
crítica, sem medo das desqualificações que o capacidade de resolver problemas já recebidos
pensamento hegemônico costuma propagar a
*Andreia Ribeiro Ayres
respeito das heterodoxias. Sua trajetória de vida
D. Sc. (2005)
é também um testemunho do empenho tanto pela
Pesquisadora do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS)
assimilação crítica da produção e objetos do Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ.
culturais estrangeiros, como pelo risco de integrar
pensar e agir num projeto próprio.

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como estruturados e formulados, e sim a A Formação Econômica do Brasil de Celso


capacidade de indicar, discernir, formular e Furtado foi um elemento-chave na avaliação das
buscar resolver de modo autêntico e próprio possibilidades da industrialização como
problemas e prioridades. estratégia de desenvolvimento brasileiro. Seu
empenho maior foi superar, com base na
Já na década de 1950, este economista atípico
abordagem histórico-estrutural, os estreitos
não se deixava aprisionar pela algemas mentais
limites do formalismo analítico da ciência
da análise economicista, e dava expressão a um
econômica hegemônica, para com isso propor
indisfarçável incômodo diante da atitude servil
caminhos próprios para a superação do
de acadêmicos que não faziam mais que
subdesenvolvimento brasileiro. A implicação
reproduzir acriticamente as idéias hegemônicas
mais importante dessa obra é o reconhecimento
sobre desenvolvimento originadas nos debates
de que as configurações das diversas estruturas
teóricos dos países centrais, ao mesmo tempo
subdesenvolvidas diferem das suposições dos
em que pretendiam fazer de suas proposições
modelos clássicos das etapas do desenvolvimento,
referências para as políticas de desenvolvimento
portanto o subdesenvolvimento é um processo
de países e regiões, cujos processos históricos
histórico autônomo (FURTADO, 1961:180).
desconsideravam e desqualificavam.
Para Celso Furtado (1961: p.192), o Brasil é
Para Celso Furtado, as dificuldades da ciência
um caso exemplar e complexo da
econômica, advindas de seu caráter
heterogeneidade estrutural característica do
intrinsecamente dual (abstrato-formal e
subdesenvolvimento e estrutura híbrida pela
concreto-histórico), eram exacerbadas nas
coexistência dos setores de subsistência, de
chamadas teorias do desenvolvimento. Ele
exportação e o núcleo industrial voltado para o
reconhece os limites da análise abstrata que se
mercado interno. E, portanto, não pode ser
reduz à definição das relações estáveis de
analisado à luz de teorizações
variáveis importantes num esquema simplificado
descontextualizadas e incapazes de apreender as
e geral, sem, no entanto, nunca negar importância
singularidades do subdesenvolvimento.
a este instrumental analítico. E seu olhar crítico
sobre as produções estrangeiras sabe reconhecer [...] Como fenômeno específico que é, o
a importante contribuição subsidiária das obras subdesenvolvimento requer um esforço de teorização
elaboradas pelas diversas correntes de autônomo. A falta deste esforço tem levado muitos
pensamento - marxista, keynesiana, clássica, economistas a explicar, por analogia com a
neoclássica, etc. Mas sua ênfase maior é afirmar experiência das economias desenvolvidas, problemas
que as teorias do desenvolvimento, tal como que só podem ser bem equacionados a partir de
concebidas nas universidades dos países centrais, uma adequada compreensão do fenômeno do
desconsideravam as especificidades e a subdesenvolvimento. (FURTADO, 1961: p.193)
historicidade de uma trajetória efetiva de
A inserção da economia brasileira no mercado
desenvolvimento situado dos países periféricos,
internacional em condição periférica e
um desafio maior que o exercício especulativo
dependente implicou a configuração de
da determinação lógico-formal da taxa de
especificidades da formação econômica e social
investimento compatível com uma trajetória de
configuradoras de elementos estruturais rígidos,
crescimento equilibrado, construída em
característicos de uma condição de
abstração de quaisquer determinantes históricos.
subdesenvolvimento. Já nos anos 1950 Celso
Essa perspectiva pode ser percebida no esforço
Furtado refutava a reprodução da trajetória
de teorização presente em sua obra clássica
preconizada pelas nações centrais
fundamental, a Formação Econômica do Brasil1 .
1 Entre novembro de 1957 e fevereiro de 1958, primeira versão desta obra teria sido o livro A Economia
Furtado redige a Formação Econômica do Brasil. Brasileira, de 1954, inovador e corajoso, diante do
A obra que melhor expressa a consolidação da quadro de vulnerabilidade em que se encontrava a
consciência desenvolvimentista brasileira. Uma teoria estruturalista no momento que foi escrita.

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industrializadas como o “modelo único” a ser A “modernização da miséria” resulta da


seguido pela política econômica brasileira. A implementação do “modelo único” de
industrialização do Brasil, impulsionada com desenvolvimento hegemônico, cujo mimetismo
forte participação do Estado e endividamento descaracteriza as identidades culturais situadas
externo, foi acompanhada de concentração de tradicionais, num contexto onde as pessoas desses
renda e não resultou na promoção de uma maior povos, países e localidades sofrem “[...] a
igualdade e equilíbrio, tanto em nível social como despersonalização inerente à preeminência da
regional desenvolvimento. As redefinições de acumulação. Tendem a ser vistas como coisas, como
prioridades políticas que marcaram o período prolongação do mundo físico” (FURTADO: 1978:
posterior a 1980, visando promover uma maior p.40, grifo do autor).
abertura da economia, apoiada em privatizações
A acumulação de capital para Celso Furtado
como vetores de uma integração competitiva na
(1978: p.48) não é apenas um vetor de
contemporânea economia globalizada, tampouco
transformações que, apoiado em inovações
trouxe melhorias significativas para o quadro
tecnológicas, introduz modificações no sistema
vigente de concentração de renda, desigualdades
de produção e nas estruturas sociais: ela configura
e desequilíbrios.
a formação social e os modos relacionais inter-
humanos e com o meio natural. E no contexto
Perspectiva valorativa da formação econômica do Brasil a acumulação
de capital perpetuou, com base na
A obra de Celso Furtado testemunha, desde industrialização mimética implementada no
a década de 1950, a crítica da inadequação das passado recente, um quadro de dependência e
teorias econômicas hegemônicas (elaboradas nos desigualdade. E ela se torna um perverso e injusto
grandes pólos acadêmicos de produção de fim em si “[...] quando passa a constituir a base de
conhecimento dos países centrais – e dos Estados dominação social” (FURTADO, 1978: p.48) e requer
Unidos em particular) para compreender as a ilusória e insustentável difusão dos padrões de
especificidades dos processos de industrialização consumo da minoria privilegiada como espelho
tardia da periferia subdesenvolvida, bem como de seu futuro.
os efeitos perniciosos para a síntese social de um
Celso Furtado (1978: p.77) já alertava ao final
desenvolvimento mimético impulsionado por
dos anos 1970 que a ideologia desenvolvimentista
elites desenraizadas e culturalmente dependentes
substituiu o mito das vantagens da especialização
e subalternas.
internacional, concebendo o desenvolvimento como uma
Furtado não se deixa iludir pela performance adaptativa aos ditames da globalização
“modernização da miséria” promovida pelas competitiva, ignorando tanto os custos da destruição dos
políticas de desenvolvimento, tendo como valores identitários culturais como as práticas predatórias
resultante potencializar a concentração de renda ao meio ambiente. O novo mito do mimetismo consumista
como vetor de uma diversificação do consumo anestesia a responsabilidade social e política dos
de bens e serviços, incompatível com a protagonistas, num contexto geral onde “ a
sustentabilidade de um nível endógeno de possibilidade de criar algo para si próprio ou no
produtividade, apto a assegurar o atendimento quadro das relações pessoais mingua: a vida como
das necessidades básicas das amplas camadas da projeto original tende a ser substituída por um
população. Ele identifica nessa modernização processo de adaptação a estímulos exteriores”
perversa a “[...] adoção de padrões de consumo (FURTADO, 1978: p.85).
sofisticados [...] sem o correspondente processo de
A crítica de Celso Furtado expressa também
acumulação e progresso nos métodos produtivos”
o reconhecimento dos limites intrínsecos ao
(FURTADO, 1974: p.81). Nesse contexto a
economicismo e afirma a urgência de uma
modernização não corresponde a nenhuma
abordagem interdisciplinar nas teorias do
trajetória de desenvolvimento situado e
desenvolvimento econômico. Para ele,
sustentável.

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a idéia de desenvolvimento está no centro da Cumpre-nos pensar em desenvolvimento a partir


visão de mundo que prevalece na época atual. A de uma visualização dos fins substantivos que
partir dela o homem é visto como um fator de desejamos alcançar, e não da lógica dos meios que
transformação, tanto do contexto social e ecológico nos é imposta do exterior [...] (FURTADO, 1984:
em que está inserido como de si mesmo. Dá-se como p.30)
evidente que o homem guarda um equilíbrio
O desenvolvimento na perspectiva de Celso
dinâmico com esse contexto: é transformando-o que
Furtado é fundamentalmente um processo de
ele avança na realização de suas próprias
invenção, cuja intencionalidade é situada na
virtualidades. Portanto, a reflexão sobre o
concretude situacional, enraizada num contexto
desenvolvimento tem implícita uma teoria geral do
histórico-cultural determinado. Todo
homem, uma antropologia filosófica (FURTADO
desenvolvimento autêntico é também uma
1984: p.105)
resposta a necessidades básicas humanas,
Celso Furtado enfatiza que o afirmada com base na criatividade política, que não
desenvolvimento autêntico requer a abertura para se circunscreve às fórmulas prontas e
a pluralidade de expressões, a espontaneidade e pretensamente universais do economicismo
a criatividade. O consumismo de bens culturais hegemônico do “modelo único”.
é elemento limitativo que impacta negativamente
Para Celso Furtado a prevalência do modelo
sobre as identidades culturais, pois
único de desenvolvimento se vincula aos efeitos
“mais do que transformação , o perversos do mimetismo cultural promotor da
desenvolvimento é invenção, comporta um elemento acrítica transposição de modelos e do
de intencionalidade. As condições requeridas para economicismo como legitimação ideológica de
que esse elemento se manifeste com vigor dão-se na uma modernização mimética. O pensamento de
história, ou seja, são irredutíveis a esquemas Celso Furtado se apresenta como um caso
formalizáveis. (FURTADO, 1984: p.105, grifo exemplar do empenho por autonomia
do autor) epistemológica, por uma reflexão autêntica e
criativa, capaz de lidar com a diversidade de
Segundo Celso Furtado (1978: p.81-82) a
realidades situacionalmente concretas e propor
geração e realização do excedente econômico é
caminhos alternativos e projetos próprios de
um desafio à capacidade criativa do homem.
desenvolvimento.
Questão crucial nesse contexto é preservar o
gênio inventivo da cultura diante da necessidade Para Celso Furtado as políticas de
de assimilar técnicas potencializadoras da desenvolvimento econômico possuem uma
eficiência e eficácia das intervenções produtivas. dimensão antropológico-filosófica implícita que
permite conceber o desenvolvimento como um
Em sua denúncia da falsa neutralidade
processo endógeno e conduzido em função de
valorativa das técnicas, Celso Furtado dá
prioridades colocadas pelos próprios atores
visibilidade ao que designa como a dimensão
situacionalmente afetados. Essa perspectiva deve
oculta do desenvolvimento: a criação de valores
abrir espaço para a afirmação das potencialidades
substantivos. Valores que são bloqueados e
do pluralismo e da diversidade cultural. Isto
suprimidos quando prevalece a transformação de
implica conceber o desenvolvimento como um
meios em fins, pois o desafio maior das políticas
processo de invenção cuja intencionalidade é
de desenvolvimento
situada, enraizada na concretude da vida vivida
é descobrir o caminho da criatividade ao nível em contextos histórico-culturais determinados.
dos fins, lançando mão dos recursos da tecnologia Isto se traduz no “ empenho por descobrir novas
moderna na medida em que isso seja compatível com potencialidades latentes nas situações cotidianas, e
a preservação da autonomia na definição desses fins. renovada disponibilidade para a surpresa e o risco de
(FURTADO, 1984: p.118) descolonizar o futuro das efêmeras certezas de hoje.
Certezas que estruturas interessadas de poder nos
(...)

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apresentam como perenes. Dito de modo mais simples: é ¾. (1984) Cultura e Desenvolvimento em época de
urgente recuperar a faculdade de tornar possível amanhã crise, Rio de Janeiro, Paz e Terra, Coleção Estudos
o que hoje parece impossível.” (BARTHOLO, 2002) Brasileiros, v.80.
Nessa perspectiva, o legado de economistas ¾. (1998) O capitalismo global, 5.ed., Rio de
como Celso Furtado pode servir de referência Janeiro, Paz e Terra.
valorativa às estratégias de desenvolvimento de
cunho genérico e universalista, baseadas na lógica ¾. (2002) Em busca de um novo modelo: reflexões
expansiva do mercado globalizado. sobre a crise contemporânea, São Paulo, Paz e Terra.
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Artigo

O Silêncio ou a Profanação do Outro


Elizabeth Tunes*
Lilia Pinto Pedroza In memoriam

Resumo

Trata-se de um texto em que se examina a idéia de inclusão escolar sob a ótica da exclusão social.
Procura-se mostrar que o monopólio radical dos instrumentos sociais é um dos mais importantes
geradores de exclusão social e que o movimento de inclusão de pessoas ou grupos em instituições
que o exercem é um dos principais mecanismos de manutenção da exclusão social. No exame
empreendido, procura-se demonstrar como a estrutura da escola, tomada esta instituição como caso
exemplar, cria e mantém mecanismos de exclusão, no interior do movimento de inclusão, ao
transformar-se em instituição voltada para a auto-perpetuação.
Palavras-chave: exclusão social, inclusão escolar, educação

Abstract

This paper examines the idea of school inclusion from the standpoint of social exclusion. It tries
to show that the radical monopoly of social tools is a major producer of social exclusion. It also aims
at demonstrating that the movement of including people or groups in institutions that practice the
radical monopoly of social tools is one of the main mechanisms of the preservation of social exclusion.
The text intends to show how the structure of the school, this institution being considered a paradigm,
creates and keeps untouched exclusion mechanisms, despite the inclusion efforts, because the school
is an institution devoted to self-perpetuation.
Key words: social exclusion, school inclusion, education

Inclusão e exclusão: duas faces da


mesma moeda
A escolarização, na sociedade brasileira, inclusão e a obrigatoriedade de escolarização
ocupa o lugar de hegemonia na corrida pela definida em lei; do outro, há a escola promovendo
realização do sonho de um futuro promissor e de os mecanismos excludentes socialmente aceitos
uma vida digna. Famílias cultivam alta expectativa e historicamente perpetuados. A inclusão, seja
na inclusão escolar de crianças com deficiência, escolar ou de qualquer outra ordem, está, pois,
fato que gera nos filhos a idéia de que o ensino imersa na lógica da exclusão.
formal é o caminho para uma efetiva participação
social e profissional. Entretanto, na maior parte * Elizabeth Tunes é graduada em Psicologia pela Universidade de Brasília,
das vezes, a escola não corresponde à expectativa mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Atualmente, exerce
a função de pesquisador associado na Universidade de Brasília.
nela depositada e muitas crianças são obrigadas
a vivenciar o pesadelo da exclusão. Há, assim,
na sociedade, de um lado, o movimento pela

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Falar sobre exclusão tornou-se mais freqüente organização social atual. São pessoas que, por não
com a modernidade, quando relacionada ao terem as mesmas oportunidades, podem se tornar
fenômeno crescente da pobreza nas cidades. O uma ameaça para os “bem sucedidos”, que a elas
desenvolvimento urbano traçou caminhos atribuem a realização de fatos e suas
excludentes originando a pobreza metropolitana. conseqüências desastrosas e incômodas como a
Convivemos com um contingente de pessoas que violência urbana, o mercado informal e o tráfico
procuram nas brechas do capitalismo uma de drogas. Ter pessoas desempregadas e afastadas
oportunidade para sobreviver. São os ilegais, do mercado formal de trabalho gera encargos
também chamados de marginais, os diferentes, financeiros e previdenciários; sendo assim, os
os menos favorecidos, os não civilizados, os excluídos são um fardo para os economicamente
pobres, os negros, os índios, os do interior, os da tidos como “incluídos” (Bursztyn, 2005). Os que
periferia etc. estão no processo produtivo desresponsabilizam-
se pelos que estão fora dele. Acontece a ruptura
A modernidade vem modificando o interesse nos laços de solidariedade (Bursztyn, 2005). É
social pelos marginalizados (Bursztyn, 2005). O nesse contexto que podem ser vistas condutas
século XX, ao contrário das predições de século de exclusão cada vez mais acirradas, pois os
da paz, foi de rupturas nos laços de solidariedade, excluídos são ameaçadores e não mais um
das grandes guerras e do profundo aumento das interesse econômico.
desigualdades. Na década de 70, começa a se
delinear mais claramente uma inversão, deixa-se Entretanto, o termo exclusão não é sinônimo
de proteger pessoas e passa-se a proteger de pobreza. Segundo Escorel (1998) a origem do
mercados e recursos de interesse da produção. termo é atribuída ao título do livro de René
Acontece um recuo na proteção do trabalho; a Lenoir, Les exclus: un français sur dix, publicado na
correlação direta entre crescimento econômico e França em 1974. No momento da publicação, a
emprego já não acontece mais. Na atualidade, noção de exclusão foi relacionada à noção de
pode-se produzir muito com pouco trabalho. “inadequados sociais” e “desajustados”. O autor
Assim, muitos estão fora do mercado. O fundo era Secretário de Ação Social do governo de
previdenciário aumenta com pessoas Jacques Chirac e tinha como preocupação central
aposentadas, doentes e desempregadas, acontece amparar por meio de ações governamentais a
certa “antipatia” por parte daqueles que estão pobreza dependente, que acarretava gastos sociais
pagando para outros viverem à custa dos fundos crescentes.
previdenciários, gera-se um desapego, uma Após a publicação do livro na França, a partir
desresponsabilidade e por fim um esfriamento de meados dos anos 80, ocorre uma modificação
total em relação à situação em que vivem aqueles no perfil da pobreza com o aumento da
que estão excluídos. Os marginalizados, na desigualdade social. O trabalho assume o núcleo
sociedade de trinta anos atrás, eram aqueles que central como criador de vínculos e os problemas
tinham inserção como trabalhadores, embora de sociais são ancorados nas estruturas econômico-
modo informal. Geralmente, moravam sem ocupacionais. Nesse contexto, o excluído
condições mínimas de saneamento e acesso aos configura uma nova questão social e a inserção
serviços públicos; entretanto, prestavam serviços pelo trabalho uma luta contra a exclusão.
necessários à sociedade. A grande novidade da
modernidade é a nova condição da exclusão que, Baseando-se nos trabalhos de Hannah Arendt
comparada à condição da marginalidade, perde (2001) sobre a condição humana, Escorel
muitos “privilégios”, pois os excluídos não são elaborou o conceito de exclusão social, que é
mais úteis para a produção, tornam-se definido como um processo em que (no limite)
desnecessários, conforme aponta Bursztyn os indivíduos são reduzidos à condição de animais
(2005). que têm como única atividade a sua preservação
biológica e que estão impossibilitados do exercício
As pessoas tidas como “desqualificadas”, fora das potencialidades da condição humana. Assim
do padrão, já não são mais úteis para a

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ela analisa a trajetória de vulnerabilidade, de refrigerante. Já o monopólio radical acontece


fragilidade e até de ruptura de vínculos em cinco quando o homem vê-se limitado a matar a sua
dimensões da existência humana em sociedade: sede bebendo a única marca de bebida existente
a do mundo do trabalho, a sócio-familiar, a no local. “Nesse caso, um processo de produção
política, a da subjetividade e da construção das industrial exerce um controle exclusivo sobre a
identidades e, a última dimensão, a do mundo da satisfação de uma necessidade premente,
vida. Quando os grupos excluídos têm como excluindo nesse sentido qualquer recurso às
única preocupação manter o seu metabolismo em atividades não industriais.” (Illich, 1985, p.70).
funcionamento, são expulsos da idéia de
Outro exemplo de monopólio radical
humanidade e, por vezes, da própria vida.
apontado é o da circulação, quando as cidades
A exclusão como um processo de vinculação são planejadas e modeladas em função do
e desvinculação das dimensões da vida em automóvel, limitando quase que totalmente a
sociedade, segundo Escorel (1998), revela que a locomoção não motorizada como aquela feita a
trajetória da ruptura acontece em vários eixos, pé ou com bicicleta. São situações bem atuais
não é um fato isolado sem conseqüências em nossas grandes metrópoles; hoje as cidades
periféricas. É um caminho que leva à retirada do são pensadas e realizadas para atender à
caráter humano. É um quadro em que a pobreza, população motorizada, seja em transportes
dentro desse caminho, é aceita como uma coletivos seja em particulares.
fatalidade que não interpela responsabilização.
Relacionando o monopólio radical com a
Ser excluído é “não encontrar nenhum lugar
categoria exclusão social de Escorel (1998), que
social, é o não pertencimento a nenhum topos
define que, no limite, o ser excluído apenas
social, uma existência limitada à sobrevivência
consegue lutar pela sua sobrevivência,
singular e diária. No entanto, e ao mesmo tempo,
encontramos um ponto comum. Por exemplo,
o indivíduo mantêm-se prisioneiro de seu próprio
para aquele que no mundo motorizado não possui
corpo” (Escorel, 1998, p.70). A exclusão é, pois,
possibilidade de locomoção, suas escolhas e
social e historicamente condicionada e está
oportunidades são reduzidas, chegando a
configurada dentro de ações, vínculos, interações
comprometer as suas necessidades de trabalho,
e retroações que não estão isoladas no mundo e
educação, saúde, lazer, podendo limitar a sua vida
fazem parte de uma vida em relação. É, pois, no
a apenas sobreviver. O monopólio radical cria
âmbito da vida em relação que podemos
uma dependência entre o homem e as ferramentas
encontrar o caminho para compreender o
industrializadas. Desse modo, para ficar curado,
fenômeno da exclusão social.
o homem necessita de drogas fabricadas em
laboratórios; para locomover-se, precisa de
Exclusão e monopólio radical veículo motorizado; para alimentar-se, necessita
de comidas industrializadas; para comunicar-se,
Para buscar compreender a invasão do necessita do telefone e, para manter-se informado
processo de exclusão em nossas vidas, vamos sobre o padrão estipulado, necessita da televisão
apoiar-nos num conceito desenvolvido por Ivan para propagá-lo. E, assim por diante, “consiste
Illich (1985), quando analisa a organização em reclamar mais coisas úteis para mais gente
mercadológica da sociedade contemporânea: o inútil” (Illich, 1985, p.76). A exclusão social,
conceito de monopólio radical. Para o autor, o nesse encontro de idéias, seria o poder do
monopólio comum que estamos habituados a monopólio radical impossibilitando uma pessoa
conhecer é aquele que limita ou reduz a liberdade de satisfazer as necessidades prementes da
do homem. Para um consumidor, ele se dá condição humana. Logo, a inclusão de uma pessoa
quando o seu poder de compra é limitado por numa instituição que exerce o monopólio radical
uma única possibilidade de escolha. A Coca-Cola, nada mais é que a sua captura, como a um refém,
por exemplo, sendo em um país a única bebida nas malhas de uma armadilha que a mantém
gasosa, limita a possibilidade de compra de um excluída.

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Tendo como pano de fundo a idéia de gera engodos que passam pela necessidade de
monopólio radical em que a industrialização qualificação e que encontram na educação uma
capitalista transforma as relações do homem com estrutura regida pela lógica excludente. Não se
a ferramenta, Illich destaca dois tipos de saberes. trata apenas de preparar para conseguir uma
O espontâneo, que provém das relações criadoras colocação no mundo do trabalho, a rede da nova
entre o homem e o seu meio, como a situação social está bem trançada, a dualidade
aprendizagem da língua materna, e o saber das sociedades tradicionais é substituída por uma
coisificado, que é uma instrução intencional e sociedade fragmentada e complexa. Estão
programada, como o ensino das disciplinas presentes várias situações de vulnerabilidade e
escolares. O homem tem cada vez menos chance ruptura de vínculos. O caminho oposto, o da
de fazer as suas coisas e necessita do saber inclusão, não pode ser estruturado apenas por leis
escolarizado para satisfazer as necessidades que que oferecem acesso de todos aos direitos
estão dependentes das ferramentas constitucionais. É preciso uma mudança na
industrializadas. relação entre os homens, em que o valor maior
não seja a mercadoria e o seu poder de troca.
Nesse sentido, portanto, o saber é um bem
que está exposto no mercado. Para Silva (2005),
a conversão do conhecimento em mercadoria gera Exclusão Social e Exclusão Escolar
o monopólio do saber: os que detêm o
conhecimento científico, autorizado, Para a delimitação do conceito de exclusão
desqualificam os que não o têm. O conhecimento social, Escorel (1998) analisou a trajetória de
cotidiano é transformado em ciência que não está vulnerabilidade dentro do âmbito da vida social.
disponível a todos: “a ciência tutela a vida, e A fim de analisar o conceito de exclusão escolar
torna as pessoas dependentes de um e procurar configurá-lo, achamos que seria
conhecimento que elas não podem gerar, mas simplório restringir essa análise ao âmbito escolar;
somente comprar” (p.71). O crescimento contudo, a visão dicotômica de que a escola é
industrial e científico leva a educação a exercer o um lugar separado da sociedade ainda é muito
controle social para o uso dos produtos. A generalizada. A idéia de que na escola vive-se
educação transforma-se em necessidade para uma vida de preparo para a vida futura em
diplomar seletivamente pessoas e também para sociedade descaracteriza a condição humana de
controlar as que ascendem ao consumo. pertencimento a um contexto escolar que é social.
A vida não pára e perde as suas referências dentro
A institucionalização do ensino, na sociedade
do espaço escolar; muito pelo contrário, a escola
contemporânea, atrelada às necessidades do
é sociedade. Os alunos, professores e
capitalismo, assume características empresariais,
funcionários trazem suas histórias marcadas e
nas quais presenciamos a comercialização do
ancoradas em relações vividas nos diversos
conhecimento e a transformação do aluno em um
âmbitos sociais. Um professor não pára de ser
objeto de consumo. A escola alarga o campo de
um homem comum só porque está assumindo a
sua atuação e se torna um monopólio radical. A
posição de educador. Restringir a investigação da
educação é socialmente designada pela sociedade
exclusão escolar à escola é o mesmo que compará-
como a principal possibilidade de um futuro
la a uma brincadeira de faz de conta. É claro que
promissor e de um emprego digno. A escola é
as situações didáticas são em sua maioria
obrigatória e aquele que não a freqüenta está fora
artificiais; entretanto, os seus atores são
da lei, não sendo assim digno de um emprego e
verdadeiros e trazem na sua interpretação suas
impossibilitado de sonhar com um futuro melhor.
idéias, necessidades e valores.
A escola assume hoje o principal veículo de
ascensão social e, pelo seu caráter de monopólio Nesse sentido, o conceito de exclusão social
radical, também de exclusão. é importante para compreender e assim analisar
a exclusão que acontece de forma articulada
A perspectiva de inserção social pelo trabalho
dentro da escola. Encontramos reflexões que

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consideram a exclusão social e a exclusão escolar fragilidades. Estudar os grupos separadamente,


como duas instâncias desarticuladas e o peso da procurando neles uma causa para a exclusão, pode
exclusão como duplo, conforme se verifica no gerar mais exclusão, enquanto que refletir sobre
trecho a seguir. os mecanismos excludentes exige uma mudança
estrutural ampla, que não procure culpados, mas
“Estar excluído socialmente da/na
sim a transformação da situação atual.
escola pode significar estar fora da escola,
assim estar excluído também das conquistas É um desafio configurar a exclusão escolar,
sociais (...) Há assim uma dupla exclusão: a seus mecanismos e determinar, já que não se pode
exclusão social e a exclusão feita pela escola, generalizar por grupos, quem são os excluídos. É
que inviabiliza muitas vezes o acesso à necessário, então, analisar as dimensões da
melhoria da qualidade de vida” (Trindade, existência humana, estabelecidas por Escorel em
1996, p.202). sua elaboração do conceito de exclusão social,
compreendendo que sociedade e escola não estão
A exclusão acontece nas relações que
separadas e que a condição humana não se
estabelecemos pelos caminhos traçados na vida,
artificializa dentro da escola. A primeira dimensão
sejam eles na escola ou fora dela. A ilusão
é a do mundo do trabalho que é influenciada
promovida pela idéia de que a exclusão social é
diretamente pela escolarização.
conseqüência da prática da escola fortalece o mito
de que a ascensão social também dependerá O emprego é definido e definidor da escola.
apenas do nível de escolarização. Esse mito há O emprego depende da escolarização e a
muito já foi contradito; contudo, ainda é presente escolarização depende do emprego. Há uma
no ideário social que o caminho “dourado” para relação de dependência direta e muitas vezes
o futuro digno é a escola. Hoje, constatamos um ilusória, mas muito aceita e estimulada em nossa
exército de desempregados escolarizados. Separar história social de vida. Uma outra dimensão é a
a exclusão social da escolar significa criar mundos sócio-familiar em que, geralmente, a escola é
alienados, pois fazemos parte de um emaranhado concebida como esperança de ascensão social e
de influências que se estabelecem e se rompem de um futuro digno. A dimensão política
no decorrer dos momentos vividos. Há uma representa a participação do cidadão imbuído de
relação dialética de necessidades que se direitos e deveres. Vale salientar que os direitos,
desenvolvem em práticas concretas, sendo suas além de não serem de conhecimento da grande
organizações de tempo e espaço delimitadas pelo maioria da população, também não são
trabalho, escola, lazer etc. cumpridos, devido a um mecanismo de criação
de obstáculos que é imposto para determinados
No meio educacional, a exclusão escolar é
grupos. A dimensão da construção da identidade
amplamente discutida e pouco definida em seu
e da subjetividade dentro das relações
caráter conceitual. O termo é utilizado para
estabelecidas é um espaço de valores simbólicos
apontar a situação de grupos divididos em gênero,
onde é possível presenciar a discriminação, a
etnia, renda, localidade e desempenho e não para
indiferença e o conformismo. Por fim, a última
analisar possíveis engrenagens que geram a
dimensão, a da vida, é inerente ao ser humano e
exclusão. Sendo assim, a generalização: pertenço
atinge o seu limite quando é retirada a condição
a um determinado grupo e, por isso, sou excluído
humana do Outro.
seria uma postura ingênua de causa-conseqüência
que não deveria caber nas reflexões dos grupos As dimensões salientadas se entrelaçam em
das minorias supostamente excluídas. um fenômeno que possui raízes históricas e
culturais que trazem suas amarras formando um
A participação em um grupo não gera
nó que é atado e desatado em cada tempo e
forçosamente uma exclusão. As relações das
espaço. A exclusão é, portanto, um complexo
pessoas com os mecanismos excludentes criados
processo estabelecido pelo entrelace das
e legitimados socialmente é que irão determinar
dimensões em diferentes proporções. Em
os vínculos que serão estabelecidos e suas

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determinados momentos, uma dimensão poderá de patologias do desenvolvimento intelectual


estar mais vulnerável, enquanto que em outro como um desvio da norma que a escola impôs,
momento, poderá estar enraizada por fortes afirmando o caráter natural da estrutura do
vínculos. A exclusão dita escolar é histórico- desenvolvimento que inventou. Desse modo, a
culturalmente condicionada e não acontece da escola tem a prerrogativa de certificar quem está
mesma forma em lugares distintos, assim como apto e o poder de identificar quem é inepto. Assim
também não é estanque e isolada. é formado o enorme contingente de crianças e
jovens que recebem o rótulo de possuidores de
dificuldade de aprendizagem e, nos casos mais
O padrão como um monopólio graves, de portadores de uma deficiência mental.
excludente Os autores acrescentam ainda que, de um modo
geral, existe nas sociedades um velado sentimento
Se a exclusão escolar acontece de diferentes de rejeição contra tudo que é diferente, defeituoso
formas, em diferentes lugares e tempos, uma e provocador de mal estar.
perversa busca pela padronização permanece
alimentando e gerando todo esse processo. A A expressão exclusão escolar traz a idéia de
padronização que nos acompanha excluindo e que os excluídos estão fora da escola. Seriam
selecionando é o modelo de belo, de perfeição, crianças que, por contingências físicas,
de homem ideal que todos precisam alcançar. O financeiras, étnicas ou culturais, não tiveram
padrão não é estipulado apenas pela escola como, acesso ao espaço escolar. Muito já se falou sobre
por exemplo, o do aluno modelo. Ele é construído as camadas trabalhadoras que não têm como
socialmente como um referencial a ser atingido e enviar ou manter os filhos estudando e também
conquistado. A busca pelo sucesso, que só o sobre a evasão, a repetência e o fracasso escolar.
modelo pode proporcionar, gera uma proliferação Muitas estratégias foram inventadas para
e legitimação dos mecanismos excludentes minimizar os problemas educacionais como a
transformando em fracassado o caminho daqueles aprovação automática, os relatórios de avaliação,
que, por alguma razão, não conseguiram ser a transformação das séries em ciclos, a criação
parecidos com o padrão. das turmas de aceleração, o programa bolsa
escola, dentre outras. Foram estratégias que
Buscando auxílio na concepção de monopólio modificaram apenas a superficialidade da lógica
radical de Illich, trazemos a idéia de que o padrão pedagógica, mantendo toda a sua base
de homem de sucesso também é um monopólio padronizadora, hierárquica e excludente. Freitas
radical, visto que para se atingir o sucesso só existe (1995) aponta o caráter seletivo da organização
um caminho e um referencial. Fugir desse do trabalho pedagógico, demonstrando que os
caminho é o mesmo que aceitar uma vida de excluídos não estão apenas fora da escola, mas
derrota. Se não há uma opção de escolha, nem também dentro dela. Ele denomina essa situação
possibilidade de realização do que foi estipulado, como a internalização da exclusão. O mecanismo
resta apenas a sensação de fracasso e o de eliminação é substituído pelos mecanismos de
sentimento de culpa por não se conseguir o eliminação e manutenção que acorrem no
sucesso. O sistema educacional está organizado processo seletivo escolar.
para excluir os que não têm a possibilidade de
atingir o que foi estabelecido. A padronização é Dentro desse processo, Freitas (1995) afirma
uma forma de afirmação da normalidade e também que o campo da avaliação revela-se no
negação da diversidade. âmbito da hierarquia escolar por meio de quatro
níveis. O primeiro refere-se à manutenção da
Para Tunes e Bartholo (2006), a escola cria classe dominante em profissões nobres. Aqueles
um modelo de aluno por meio de um currículo que serão os futuros dirigentes geralmente
padronizado, seriado, baseado em pré-requisitos completam os seus processos de escolarização e
e linearmente organizado. Elabora mecanismos seus currículos são obtidos em instituições
de avaliação que favorecem a emergência da idéia valorizadas pelo mercado. O segundo nível é o

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da eliminação adiada; refere-se à manutenção das exclusão educacional brasileira fosse gerada pela
classes populares em profissões menos nobres. falta de vagas e escolas. Com as cotas, um novo
Ele é representado por aqueles que conseguem mecanismo de discriminação é criado e a escola
ter a qualificação básica para corresponder à nova continua a mesma.
demanda neoliberal. O terceiro nível é o da
Quem são, então, os excluídos da escola? Será
manutenção adiada ou exclusão pura e simples
possível a generalização de que todos os negros
das camadas populares da escola, ou seja, a
são excluídos, todos os repetentes são fracassados
evasão. Os alunos têm a possibilidade de entrar
e apenas aqueles que conseguem uma formação
na escola; contudo, não conseguem nela
superior são os bem sucedidos? Deveríamos criar,
permanecer. O último e quarto nível é o da
então, secretarias de inclusão para os negros,
eliminação propriamente dita, quando não há
pobres, índios, pessoas com deficiência, pessoas
acesso ao ingresso das camadas populares na
com distúrbio de aprendizagem, filhos de
escola. Esse nível concerne àqueles
trabalhadores rurais e todas as pessoas que, por
predestinados ao trabalho manual.
algum motivo, não se enquadrarem dentro das
Na procura em determinar quem são os amarras estipuladas pelo padrão da escola? Ou,
excluídos do espaço escolar, ressalta-se outro então, criar uma secretaria de inclusão da
aspecto importante dentro desse delineamento aprendizagem na escola, independente de grupos
que é a análise do grupo formado pelos filhos das ou minorias, a fim de pesquisar o porquê de tantos
classes média e alta que apresentam dificuldade fracassos em aprender o que foi estipulado, no
de aprendizagem. Eles fracassam e tropeçam em tempo determinado e da maneira esperada?
doloridos processos de escolarização. Tratam-se
No quadro aqui delineado, os excluídos da
de crianças que, em geral, não passaram por
escola são também os excluídos sociais, já que o
privações nutricionais, culturais ou médicas, mas
padrão de sucesso é reconhecido e mantido por
também apresentam problemas de inadequação
toda a estrutura social. Os excluídos são os que
escolar. Se fossem filhos de pessoas “pobres” logo
fugiram do padrão ou por alguma razão não
seriam rotulados como deficientes mentais.
conseguiram atingir o que já estava pronto e
Entretanto, normalmente, não são diagnosticados
estipulado como sucesso. A escola é obrigatória
como tais e assim reconhecidos como crianças
e tal como está estruturada funciona como um
que possuem distúrbios de aprendizagem,
monopólio radical. Não freqüentar uma escola é
recebendo atendimento especializado que sempre
como não existir socialmente. Todavia, ao mesmo
procura moldá-los em conformidade com o
tempo em que é uma condição para a existência
padrão estabelecido de homem de sucesso.
humana, torna-se, para muitos, um fardo difícil
Contudo, o problema continua no aluno, e não é
de ser carregado.
questionada a estrutura de ensino que
desconsidera a diversidade, perseverando na sua O desafio não é tentar incluir os excluídos,
seletividade excludente. mas sim incluir a diversidade como condição
humana. O desafio é incluir, na sociedade, o
Se até os filhos dos bem sucedidos encontram
enfoque na aprendizagem individual e não na
dificuldade no processo de escolarização, o que
soberania do ensino imposto, competitivo,
dizer dos índios e negros que são historicamente
classificatório e padronizador. Estamos perdendo
discriminados? Da mesma forma que se criaram
tempo com a inclusão dos “diferentes” dentro da
estratégias para minimizar a evasão e a repetência,
fabricação de “iguais”.
outras foram destinadas a facilitar a inserção
escolar desses grupos. Os governantes se A exclusão é uma invenção da modernidade.
vangloriam da expansão educacional em todo o Os descartados sempre existiram, mas, agora,
território nacional; cotas para negros, índios e houve uma mudança no seu caráter utilitário.
estudantes da escola pública são criadas a fim de Tratam-se, atualmente, de pessoas não
favorecer sua entrada em universidades públicas necessárias para o mercado que passaram a ser
e novamente o problema é distorcido como se a reconhecidas como excluídas. Para deter o

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processo de exclusão é preciso uma reestruturação A essa ampliação de sua esfera de ação
social profunda. Contudo, no momento, é mais corresponde, como é sabido, um crescimento nos
lucrativo, mais fácil, substituir essa reestruturação aparatos de poder que a estruturam e, por
por leis generalizantes e ações superficiais. O foco conseqüência, um vigor cada vez maior nas
não deveria estar nos excluídos, mas sim nos relações de poder que lhe dizem respeito (Ibáñez,
mecanismos que os excluem. 2006). Desse modo, o custo de sua própria
manutenção começa a sobrepujar em muito o das
A inclusão escolar não acontece por um
operações que justificaram a sua instituição. Não
decreto ou simplesmente pela presença de
conseguindo realizar os objetivos para os quais
crianças incluídas dentro da escola. Não é apenas
foi criada, acaba por gerar um novo objetivo que
modificando leis, papéis, currículos e métodos
é o de meramente subsistir. Sendo sua própria
didáticos que algo se faz, mas sim modificando o
existência a sua finalidade, a escola, como
olhar, que deve se orientar pelo primado da ética,
instrumento social, instrumentaliza seus fins,
do compromisso com o outro. A exclusão
deixando de servir ao homem, mas subjugando-
acontece porque os mecanismos que determinam
o. O monopólio radical parece ser, assim, um dos
os tipos de relações excludentes estão
mecanismos muito importantes de garantia de
perpetuados, vivos e a cada dia mais fortes. Eles
permanência da escola e, em todo caso, um forte
não se limitam ao universo escolar, mas abrangem
mecanismo de exclusão.
muitos espaços da vida concretamente vivida.
A escola é uma organização fortemente
A exclusão social não é uma epidemia que
conservadora. As mudanças que têm acontecido
deve ser controlada com campanhas de vacinação.
na vida social dos homens em conseqüência do
Inventar uma epidemia moderna promove ações
desenvolvimento da ciência e da tecnologia não
políticas e demagógicas heróicas que só camuflam
se fazem acompanhar de mudanças substantivas
e respaldam os que as criam. A exclusão sempre
nos meios de ensino e aprendizagem escolares.
existiu e agora só foi rebatizada e tudo permanece
O caráter anacrônico da escola contemporânea e
como antes.
sua resistência à mudança são reconhecidos,
embora não diretamente enfrentados. “Novas”
O silêncio ou a profanação do outro políticas e diretrizes educacionais são formuladas
aos borbotões, mas, na sua essência, a escola
Como qualquer organização, no princípio, a permanece a mesma. Ora, “quando a matéria
escola constitui-se como “um meio conjunturalmente sobre a qual se aplica um instrumento é por
válido para conseguir um fim que lhe é externo definição mutante, ou se modifica com ela o
(itálicos do autor)” (Ibáñez, 2006, p. 29)1 . Surge instrumento ou este passa a ter uma eficácia
como substituta dos modos de aprender que, na puramente simbólica” (Ibáñez, 2006, p. 30). Nas
Idade Média, aconteciam no seio mesmo da vida palavras de Ibáñez (2006), a solução é onírica:
concretamente vivida (Áries, 1981). “transforma-se ‘ideologicamente’ a realidade para que
permaneça camuflado o anacronismo” (p. 31, itálicos
Todavia, no seu caminhar histórico, a
do autor). Dessa forma, parodiando o autor, a
instituição escolar tende a ampliar a sua presença,
escola “está morta para seus fins, ainda que siga viva
seja na vida de cada pessoa, com o aumento das
para perpetuar-se a si mesma” (p. 28, itálicos do
exigências de tempo de escolarização, seja na
autor).
extensão do número de pessoas capturadas pelos
seus tentáculos, com a exigência crescente de Ao chegar à escola pela primeira vez, a criança
comprovada escolarização para o exercício de já encontra toda a sua vida preparada. O seu
diversas atividades, como é o caso do trabalho. presente é aquele da soberania do ritual, da
disciplina, da repetição, das normas, das
1 Aplicamos à escola idéias de Ibáñez (2005), quando analisa o “lamentável
naufrágio da CNT” (p. 8). avaliações, das hierarquias, do tempo certo.
Enfim, um padrão de ser. O seu futuro é o da
certificação, do bom sucesso, do lugar social, do

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trabalho incerto, mas dado como certo. Enfim, Utopias: Caminhos Contemporâneos do
um padrão do vir-a-ser. A criança já é de todos Desenvolvimento Situado. Tese de Doutorado,
sabida: a escola proclama, ruidosamente, quem Centro de Desenvolvimento Situado/ UnB,
ela é, quais são suas necessidades, o que deve Brasília, 2005.
fazer, o que não deve fazer, o que pode e o que
TRINDADE, Iole Maria Ferreiro. A exclusão
não pode querer. A escola fala, mas não precisa
social da/ escola. Ciências e Letras, n. 17, p.199-
ouvir. A criança não deve falar, mas somente
208, 1996.
ouvir: sua vida já lhe foi esculpida.
TUNES, E. e BARTHOLO, R. O trabalho
“Está escrito: ‘Farás para mim um altar de
pedagógico na escola inclusiva. Em M. C. V. R.
terra... e se fazes para mim um altar de pedra não
Tacca (Org.) Aprendizagem e Trabalho pedagógico.
o construirás de pedras talhadas porque se
Encaminhado para publicação. SP: Editora
levantas tua ferramenta sobre ele, o profanarás’”.
Alínea, 2006.
O rabí de Rizhyn explicava isto como se
segue: ‘O altar de terra é o altar do silêncio, que
é o mais agradável a Deus. Mas se fazes um altar
de palavras, não as talhes nem as esculpas porque
tal artifício as profanaria’.” (Buber, 1994).

Referências bibliográficas
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de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
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2. ed. Rio de Janeiro, TC, 1981.
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continuadores. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica,
1994.
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social. Palestra proferida no Seminário Nacional
sobre Preconceito, Inclusão e Deficiência, UFRJ
e UNB, junho de 2005.
ESCOREL, Sarah. Vidas ao léu: uma etnografia
da exclusão social. Tese de Doutorado,
Departamento de Sociologia, Universidade de
Brasília, Brasília, 1998.
FREITAS, L.C. de A. Crítica da organização do
trabalho pedagógico e da didática. Campinas, SP:
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IBÁÑEZ, T. Por qué A? Fragmentos dispersos
para um anarquismo sin dogmas. Barcelona:
Anthropos Editorial, 2006.
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Joaquin Mortiz/Planeta, 1985. 161 p.
SILVA, Gabriela Tunes da. Sobre Raízes e

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Artigo

Igualdade dos Homens e Diversidade - algumas questões para o


debate

Kátia Regina Moreno Caiado*

Resumo

Tendo como eixo a relação entre igualdade e diversidade, este texto procura examinar alguns
aspectos da inclusão escolar de pessoas com deficiência. Com base em estatísticas censitárias,
questiona-se o modelo político pedagógico atual que, negando a diversidade, nega a possibilidade de
igualdade de acesso das pessoas deficientes às ferramentas culturais historicamente forjadas pelo
homem. Questionando a vinculação da escola ao mercado, procura-se mostrar a necessidade de um
projeto que supere a relação educação e mercado na perspectiva de uma educação que promova a
constituição humana do homem, uma escola para além do capital.
Palavras-chave: diversidade, educação, pessoas com deficiência

Abstract

With its axis in the relation between equality and diversity, this text examines some aspects of
scholar inclusion of people with deficiencies. Based on census data, it questions the current political-
pedagogical model, which, by denying diversity, denies the possibility of equal access of deficient
people to the cultural tools that were historically molded by men. We try to show the necessity of a
project that overcomes the bond of school to the market, following the perspective of an education
that promotes the human constitution of men, a school that is beyond capital.
Key words: diversity, education, people with disabilities

1. Introdução
Atualmente, muito se tem falado sobre o diversidade é fato constituinte no processo de
direito à diversidade. No dicionário, diversidade humanização, pois para sua subsistência o
é a ‘qualidade daquilo que é diverso, diferente, homem transforma a natureza com o trabalho e
variado; conjunto variado, multiplicidade’ assim ele cria cultura. Diferentes modos de
(HOUAISS, 2001). trabalhar e de viver: diferentes culturas e,
portanto, diferentes modos de pensar, cultuar,
Ora, num simples olhar, verifica-se que a
vestir, comer, metabolizar, significar, sentir,
realidade é composta pela diversidade, pelo
peculiar, pelas diferenças, seja na natureza ou na
cultura. Ao se pensar a diversidade entre os *Kátia Regina Moreno Caiado é graduada em Educação pela PUC-Campinas,
mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos e doutora em
homens enquanto multiplicidade pode-se, por Educação pela Universidade de São Paulo. Atualmente, exerce a função de professor
titular da Puc-Campinas, onde é coordenadora do Programa de Pós-graduação em
exemplo, pensar nas diferenças biológicas, indo Educação.
de gênero a comprometimentos orgânicos, ou nas
diferentes histórias de vida, indo de culturas
distantes às diferenças sociais. Sabe-se que a

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No entanto, na discussão sobre a diversidade do acesso, permanência e apropriação do


humana, uma outra questão se coloca. Pierucci conhecimento universal e significativo para
(1999, p. 47) nos alerta para ela ao afirmar que problematizar a realidade. Utopia que se entende
“a focalização da diferença acaba roubando como o que não existe hoje, mas é projeto a ser
perigosamente a cena da igualdade”. Isso porque construído.
se pode também pensar no diverso como o que Em sociedades marcadas por desigualdades
não é igual e aí a diversidade passa para uma sociais tão profundas, sabe-se que a educação tem
perspectiva de desigualdades e não apenas de um papel estrutural na contenção dos conflitos.
diferenças. Em qualquer sociedade há muitas Dentro e fora da escola, vão se criando teias de
diferenças entre os homens, mas numa sociedade significados que são interiorizados,
dividida em classes sociais há conflitos, internalizados, pelos homens. Nessas teias,
desigualdades e exclusão social. naturaliza-se o que é social e toma-se a história
Na educação, muitas vezes, presenciamos como transcendente à ação humana. Considera-
uma discussão sobre a diversidade em que se parte se como natural que alguns homens tenham mais
do princípio de que existe igualdade de capacidade e disposição para o trabalho e, assim,
oportunidades na sociedade e que a questão, tornem-se proprietários, ditem normas e assumam
agora, seria apenas a de aceitar as diferenças entre poderes, enquanto que outros, a maioria, dotados
os homens. Entende-se aqui que a raiz dessa de menores talentos, estarão a serviço do poder
discussão é outra. O principal conflito, ou a instituído. Ou se tornam refugos, como aponta
principal diferença, que se apresenta numa Bauman (2005). Assim, reproduzir e manter o
sociedade capitalista é fruto dos antagonismos quadro de injustiça social é papel inegável da
gerados pela exploração do trabalho. Nessa educação e da escola.
perspectiva, muitas vezes, o atual discurso do Porém, se dermos como definitivo esse
direito à diversidade, discurso da inclusão do modelo de sociedade e de educação, declararemos
diferente, nega essa raiz e naturaliza a exclusão o final da história. Na compreensão da história
social. Fala-se, então, de uma escola abstrata, a- enquanto ação humana, um outro componente
histórica. Discute-se como incluir na escola precisa entrar na reflexão: o conflito, a
aqueles que vivem socialmente excluídos, como contradição, a possibilidade de organização dos
se a escola fosse uma instituição que funcionasse homens para a construção de um outro projeto
independentemente das relações sociais. Assim, de sociedade, de educação, de escola.
ao se aceitar que há as mesmas oportunidades
sociais para todos os indivíduos, discute-se, Numa sociedade de conflitos, a função da
muitas vezes, apenas o direito à diversidade de escola não é apenas a de reprodução das
corpo, de cultura, de etnia. Mas, desde que as desigualdades sociais em desigualdades escolares.
pessoas com diferenças de corpo, de diferentes Saviani (2003) afirma a necessidade de se superar
culturas e etnias, que são pobres, aceitem a impotência que pode gerar a compreensão da
permanecer nos espaços sociais que foram natureza seletiva da escola enquanto instituição
construídos para as camadas populares. apenas reprodutora das desigualdades sociais, na
medida em que “é possível encarar a escola como
Nesse quadro, refletir sobre a educação de uma realidade histórica, isto é, suscetível de ser
pessoas com deficiência não passa apenas pelas transformada intencionalmente pela ação
diferenças que trazem marcadas num corpo humana”. Longe da idéia de uma escola que
‘diferente’. Pensar na educação das pessoas transformará a sociedade, assume-se aqui a
deficientes em nosso país é pensar também nas perspectiva de uma educação que poderá
relações entre deficiência e pobreza, deficiência colaborar e participar do processo de
e políticas sociais. Portanto, na reflexão sobre o emancipação do homem.
direito à educação, assume-se como pressuposto
a relação intrínseca entre educação e sociedade.
Aqui, o direito à educação se coloca na utopia

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2. Relação entre Pobreza, Educação a proteção dos direitos humanos em educação


e Deficiência desperta atenção global irrelevante, como demonstra
a persistência da exclusão de milhares de pessoas
Quais os dados de realidade? No Brasil, dados dos direitos educativos. Pior, depois que a educação
do IBGE do último censo demográfico revelam se tornou um serviço comercial, o acesso é regido pelo
que há 16 milhões de analfabetos; no entanto, ao poder de compra.
se considerar a definição de analfabeto como O quadro é cruel. Mas é necessário lembrar
sendo a pessoa com menos de quatro séries de que há tensão e as conquistas são resultados das
estudo concluídas, o número sobe para 30 lutas dos movimentos sociais.
milhões de brasileiros, considerando a população
de 15 anos ou mais (INEP, 2003).
Na história da educação especial, o quadro 3. Pessoas com Deficiência
de exclusão repete a exclusão social e educacional Organizam-se na Luta por seus
das camadas populares em nosso país Direitos
(JANNUZZI, 2004). Pinheiro (2003, p.109)
afirma que, na área da deficiência, a trajetória das No Brasil, a partir de 1979, acompanhando o
políticas públicas no Brasil se apresenta em três movimento mundial proclamado pela Assembléia
fases distintas que coexistem: a tradicional – Geral das Nações Unidas, que instituiu o ano de
caritativa -, a de reabilitação e a da autonomia 1981 como Ano Internacional das Pessoas
pessoal ou vida independente. Os dados do Deficientes, alguns grupos organizados e dirigidos
Censo 2000 (Neri, 2003) revelam que a maioria por pessoas com diferentes deficiências
das pessoas com deficiências no Brasil vive, ainda começaram a se reunir para construir propostas e
hoje, da caridade e da assistência porque não tem planos de ação visando à luta por seus direitos.
renda e nem acesso aos serviços e bens públicos Assim, em 1980, acontece o 1º. Encontro
que garantem a dignidade da vida. Ao se tomar Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes,
como exemplo a educação, verifica-se que, dentre em Brasília, onde se reuniram cerca de 1.000
as pessoas com deficiência, consideradas com participantes, dentre pessoas cegas, surdas,
limitações mais severas, o percentual de deficientes físicas e hansenianas, vindas de todo
indivíduos sem instrução é de cerca de 42,5%, o país. Surgia, assim, o primeiro movimento em
enquanto que para o grupo sem deficiência é de que a pessoa deficiente não mais era representada
24,5%. Ao se tomar como exemplo o salário por especialistas ou porta-vozes. De objeto das
mínimo, verifica-se que 32,02% da população políticas traçadas para a área, o segmento assume-
brasileira têm renda familiar per capita inferior a se como sujeito da luta pelos direitos à cidadania.
meio salário mínimo, sendo que, dentre as pessoas Desse marco, na década de 80, surgem novas
com graves deficiências, 41,62% vivem nessa mobilizações como: a Federação Brasileira de
condição. Pobreza e deficiência se entrelaçam nas Entidades de Cegos, a Organização Nacional de
regiões mais pobres e miseráveis do país. Os Entidades de Deficientes Físicos, a Federação
dados do Censo de 2000 informam que 14,5% Nacional de Integração de Surdos e o Movimento
da população do país possuem algum tipo de de Reintegração dos Hansenianos, a Sociedade
deficiência. Porém, ao se verificar os índices de Brasileira de Ostomizados, a Associação de
alguns estados do nordeste do país, os índices Paralisia Cerebral do Brasil. Pressionado pela
alcançam quase 19% de pessoas portadoras de organização crescente dos movimentos e suas
deficiência. pautas de reivindicações, o governo federal
começou a se estruturar para criar uma política
Ou seja, estamos longe de políticas públicas em favor desse segmento historicamente
sociais que garantam direitos sociais que resultem silenciado. Estados e municípios criam órgãos de
em vida digna e independente com educação, apoio às pessoas com deficiência, com a
saúde, trabalho, moradia, transporte. Tomasevski participação ativa dos representantes do
(2006, p. 67) alerta que

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movimento. Importante destacar que os se ampliam os direitos sociais e se fortalece a


movimentos nacionais criam canais de redes de responsabilidade social do Estado, um novo
comunicação e apoio com os movimentos no cenário internacional configura-se, como nos
plano internacional. Assim, a Organização afirma Raichelis (2000, p.41):
Nacional de Entidades de Deficientes Físicos
Os modelos de Estado Social entram em crise
representa os deficientes físicos do Brasil, junto
no plano internacional, tanto os Estados do Bem-
ao Disabled Peoples Internacional, no Conselho
Estar Social quanto o Estado Socialista. E deste
Latino-Americano. O movimento das pessoas
processo emerge uma crise mais ampla, que
cegas se filia à União Mundial de Cegos e à União
desemboca no chamado projeto neoliberal e nas
Latino-Americana de Cegos. Os surdos, pela
propostas de redução do Estado e de seu papel social.
Federação Nacional de Integração de Surdos,
Isto vai ter um impacto muito grande na nossa
estão ligados ao World Federation of the Deaf
experiência de democratização das políticas sociais.
(Federação Mundial dos Surdos). Com as redes
amplia-se a atuação política e a formação das No Brasil, após a promulgação da
lideranças (CORDE, 1996). Constituição, os governos que se sucederam
(Fernando Collor de Mello, Itamar Franco e
Num contexto social mais amplo, é
Fernando Henrique Cardoso), aliados às forças
importante destacar que, a partir de 1975, nas
políticas conservadoras, implantaram um projeto
lutas pela redemocratização do Brasil, os
político econômico vinculado aos interesses do
movimentos urbanos ressurgem e se intensificam
grande capital internacional. Nesse período,
pela construção da cidadania. Trabalhadores e
poucas verbas públicas foram destinadas à área
grupos até então silenciados se reúnem e se
social. O desemprego e a miséria aumentaram de
organizam em sindicatos, movimentos,
forma perversa. No governo de Luís Inácio Lula
associações e conselhos (Gohn, 2003; Dagnino,
da Silva, os lucros dos bancos, a concentração
2002; Sader, 1995).
de riqueza, os conflitos no campo, os altos índices
Na década de 80, com o fim da ditadura de trabalhadores informais revelam que se prioriza
militar, os movimentos sociais recrudescem e o mercado em detrimento do social. As políticas
forças progressistas são representadas no debate públicas existentes são focalizadas e insuficientes
da Assembléia Constituinte. Vários grupos de para reverter o quadro da histórica desigualdade
diferentes estados e municípios enriqueceram os social no país. Resta acompanhar a mobilização
trabalhos constituintes com relatos de dos movimentos sociais que lutam pela conquista
experiências de organização no formato de de direitos e que podem, quiçá, pressionar o poder
“conselhos populares”. Nessa direção, a econômico e político para um outro projeto.
Constituição incorpora o princípio da
participação comunitária que, depois, é
regulamentado por leis que institucionalizam os 4. Direito à Educação: acesso,
Conselhos de Políticas Públicas (Teixeira, 2000, permanência e apropriação do
p.101). conhecimento. Um projeto político
Assim, em 1988, promulga-se a nova de sociedade
Constituição, intitulada a Constituição Cidadã,
uma vez que seu texto consolida várias conquistas Refletir sobre a escolarização do aluno com
de direitos e anuncia mecanismos deficiência na escola regular é considerar: acesso,
democratizadores e descentralizadores das permanência e apropriação do conhecimento. Em
políticas sociais, o que amplia os direitos de relação ao acesso, com o avanço dos movimentos
cidadania na direção do fortalecimento da sociais que lutam pelo direito à educação das
responsabilidade social do Estado. pessoas com deficiência, o número de matrículas
da educação especial vem aumentando
Porém, ao mesmo tempo em se dá no Brasil a significativamente nos últimos anos em todos os
construção de uma Constituição Cidadã em que

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níveis de ensino e nas escolas regulares. Inúmeras Enquanto os maiores índices estão localizados
publicações na área da educação analisam nas faixas etárias mais elevadas, observa-se
trajetórias escolares referentes à entrada do aluno também a existência de analfabetos nas faixas
com deficiência na escola regular (Anped, 2006; etárias que correspondem aos níveis de educação
MEC/SEESP, 2006). Além disso, os dados do fundamental e média. Isso indica a fragilidade do
censo escolar revelam que, dentre as matrículas sistema educacional brasileiro que ainda carece
na educação básica do país, em 2005, 1% refere- de qualidade para bem alfabetizar todas as
se a alunos da educação especial, consideradas crianças.
as matrículas em escolas regulares em classes
A pergunta que se faz é: qual é a qualidade
comuns e matrículas em escolas exclusivamente
da educação que o aluno com deficiência
especializadas e em classes especiais. Ou seja,
encontra na escola regular? Não bastam as vagas
em 2005, houve 640.317 matrículas de alunos
na escola regular. É preciso também discutir as
da educação especial na educação básica contra
possibilidades concretas de nela permanecer e
337.326 matrículas em 1998, o que significou no
aprender. Num projeto emancipador de educação,
período de 1998-2005 um aumento de 48% de
a função da escola é a de socializar o
matrículas de alunos da educação especial.
conhecimento historicamente construído, “a
Sobre o número de matrículas de alunos da atividade nuclear da escola é a transmissão dos
educação especial em escolas regulares em classes instrumentos de acesso ao saber elaborado”
comuns, com e sem apoio pedagógico (Saviani, 2000, p. 21).
especializado, vale observar que, em 1998, era
Na sociedade capitalista onde tudo é
de 43.923 e, em 2005, o número se eleva para
mercadoria, a educação tem sido tratada como
262.243, o que significou no período de 1998-
um negócio lucrativo e, como afirma Mészáros
2005 um aumento de 6 vezes o número de
(2005, p.35), a escola serve
matrículas.
ao propósito de não só fornecer os conhecimentos
Neri (2003, p. 120) afirma que os dados do
e o pessoal necessário à máquina produtiva em
censo demográfico de 2000
expansão do sistema do capital como também gerar
revelam que as pessoas com deficiência têm e transmitir um quadro de valores que legitima os
menor inserção na educação e, quando conseguem interesses dominantes.
ser inseridos, têm dificuldade de acompanhar os
Aprende-se na escola o que será útil ao
alunos sem deficiências. O caso é ainda mais
mercado e, assim, aprende-se a naturalizar o que
complicado pois acompanhada à dificuldade de
é histórico, ou seja, internaliza-se que as causas
inserção encontra-se o desestímulo...reflexo do grande
do não aprender estão no indivíduo, como aponta
contingente que interrompe o processo de
Freitas (2002, p.308)
aprendizado, retornando em classes não seriadas.
a exclusão é internalizada no sentido de que o
Essa análise permanece atual, como revelam
aluno permanece na instituição escolar mesmo sem
com os dados do censo escolar de 2005: de
aprendizagem, ao contrário de quando era
419.309 alunos matriculados no ensino
puramente eliminado da escola.
fundamental, apenas 10.912 matriculam-se no
ensino médio, sendo que 50.369 matriculam-se Nessa lógica, aos alunos com deficiência
na educação de jovens e adultos. bastariam vagas para acesso e alguma permanência
na escola regular porque historicamente são
É interessante notar que esse mesmo
reconhecidos como incapazes, pois as marcas
movimento de evasão escolar ocorre dentre os
socialmente atribuídas às pessoas com deficiência
alunos sem deficiência. Permanecer e aprender
estão associadas às suspeitas da incapacidade
na escola não é problema apenas para os alunos
(GOFFMAN, 1988) enquanto atributo individual.
da educação especial. Dados do INEP (2003) já
revelavam que o analfabetismo no Brasil atinge
as diferentes faixas etárias de modo distinto.

29
Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

Pois bem. Mas se a escola hoje serve ao Referências bibliográficas


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humana do homem, é preciso pensar para além FREITAS, L.C. A internalização da exclusão.
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se estabeleçam e se consolidem políticas públicas início do século XXI:antigos e novos atores
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para melhoria das condições de funcionamento HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da
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significa construir um projeto político pedagógico e VIZIM, M. (Orgs.). Políticas públicas:
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

Artigo

O Discurso e a Prática da Responsabilidade Social Empresarial:


diálogo entre indústria de moda e comunidade de trabalho artesanal

Rita de Cássia Monteiro Afonso*


Francisco José de Castro Moura Duarte**

Resumo

Este artigo mostra a distância entre o discurso e a prática da responsabilidade social empresarial-
RSE - no estudo de caso da aproximação entre a COOPA-ROCA, Cooperativa de Trabalho Artesanal
e de Costura da Rocinha Ltda, e a indústria de moda nacional. A Coopa-roca representa dois
stakeholders da indústria de moda: fornecedor, trabalha fornecendo artesanato para esta indústria; e
comunidade, é um projeto de inclusão social por meio de geração de trabalho e renda na favela da
Rocinha, Rio de Janeiro. O modelo iniciado e implementado por esta cooperativa tem servido de
referência para ações semelhantes no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, como o Projeto Arte
Indústria da Federação das Indústrias do Estado – FIRJAN. Trata-se de um projeto pioneiro,
engendrado sob a perspectiva da RSE, em 1999. O resultado econômico alcançado pelo projeto é
exitoso, porém, a implantação de produção em escala na cooperativa, fruto da parceria comercial
chamada de responsabilidade social pelas empresas, gera problemas decorrentes da organização do
trabalho que estão em aberto, oferecendo um vasto campo de atuação para a Engenharia de Produção.
Palavras-chave: Responsabilidade social empresarial, Diálogo, Cooperativas de
artesanato

Abstract

This article shows the distance between speech and practice in the domain of corporate social
responsibility CSR. It is a case study of the relations between COOPA-ROCA, Cooperative of
Artisan Work and Sewing of Rocinha and the national fashion industry. Coopa-roca represents two
stakeholders of the fashion industry: supplier, as it works to supply handicraft products to that
industry; and community, as it is a project of social inclusion by means of work and income generation
in Rocinha shanty town, in Rio de Janeiro. The model set and implemented for this cooperative has
served as reference for similar actions in Rio de Janeiro State, as the Project Art Industry of the
Federacy of the Industries of Rio de Janeiro State - FIRJAN. It is a pioneer project, designed from
CSR perspective in 1999. The economic result of the project is positive. However, the scaling-up of
production in the cooperative, fruit a commercial partnership that businesses name social
responsibility, generates problems resulting from work organization that are yet to be solved and
that offering a vast field of activity for Industrial Engineering experts.
Key words: Corporate social responsibility; Dialog; Handicraft cooperatives
*Rita de Cassia Monteiro Afonso é Bacharel em Comunicação pela Faculdade
d a
Cidade (1987), Mestre em Ciências da Engenharia de Produção pela UFRJ (2006),
pesquisadora do LTDS (Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social)
da COPPE/UFRJ.

**Francisco Duarte é Professor Adjunto do Programa de Engenharia de


Produção da COPPE/UFRJ, Engenheiro de Produção pela EESC-USP, Mestre em
E n g e n h a r i a
de Produçào pela COPPE/UFRJ e Doutor em Engenharia de Produção pela COPPE/
UFRJ, tendo realizado formação em Ergonomia pelo CNAM-Paris.

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1. A Coopa-roca e sua estratégia de 2. O discurso da responsabilidade


sustentabilidade econômica social empresarial
A Coopa-roca é uma cooperativa fundada em Não tardou que as parcerias decorrentes do
1987, decorrência de um trabalho realizado com projeto mostrassem seus resultados. Já na primeira
crianças na favela da Rocinha desde 1982. A partir edição da Retalhar, a M.Officer, grife de moda
deste trabalho e do contato com as mães destas nacional, fez pedidos, ajudando a cooperativa a
crianças, organizou-se um grupo de mulheres para sistematizar linhas de produto e produção,
o trabalho com técnicas de costura artesanais. A organizando seu trabalho e ganhando forte
cooperativa trabalha com frufru, fuxico, crochê, repercussão na mídia nacional e internacional
nozinho e retalho; estes saberes das mulheres especializada em moda. Junto com a M.Officer,
envolvidas são fruto de aprendizado familiar, em a Coopa-roca participou de desfiles das semanas
que o reaproveitamento de sobras de tecido para de moda no Rio, em São Paulo e também fora do
refazer utilidades para a casa é tradição comum. país.
Em 1999 a Coopa-roca, objetivando sua Não tardou também para que o site da grife
sustentabilidade econômica, criou e implantou o utilizasse o conceito da responsabilidade social
projeto Retalhar, estratégia para se aproximar de – RSE, quando falava desta relação em sua home
potenciais clientes e resolver, ao mesmo tempo, page; fato que se repetiu na parceria com outros
problemas de comercialização, desenvolvimento clientes e em outras parcerias de mesma
de produto e distribuição. Estes problemas foram tipificação.
conhecidos na vida vivida das artesãs da Coopa-
A responsabilidade social empresarial pode
roca, já resultado de suas atividades no mercado
ser definida como:
que geravam grande repercussão na mídia nacional
e internacional, mas não geravam resultado de “... uma forma de conduzir os negócios que torna
produção suficiente à sua saúde financeira. Nos a empresa parceira e co-responsável pelo
períodos de pouca produção, as mulheres desenvolvimento social. A empresa socialmente
cooperadas voltavam às suas atividades originais: responsável é aquela que possui a capacidade de
trabalho doméstico em suas próprias casas, ouvir os interesses das diferentes partes (acionistas,
empregadas domésticas, diaristas, babás ou funcionários, prestadores de serviço, fornecedores,
desempregadas. consumidores, comunidade, governo e meio ambiente)
O Retalhar consistiu em convidar 18 criadores e conseguir incorporá-los ao planejamento de suas
(estilistas, artistas plásticos, arquitetos de interior, atividades, buscando atender às demandas de todos,
cenógrafos, designers de produto) e, por meio de não apenas dos acionistas ou proprietários”
uma exposição de arte com projetos e produtos (INSTITUTO ETHOS, 2005).
desenvolvidos com a cooperativa, persuadi-los Para Ferrel (2000), ser socialmente
da capacidade de produção das mulheres e do responsável implica em maximizar os efeitos
valor social agregado aos seus projetos e produtos positivos sobre a sociedade e minimizar os efeitos
na associação com a marca Coopa-roca. negativos, o que no âmbito empresarial resultaria
Em 2001, iniciou-se um processo de em assumir uma dimensão social e ambiental nas
implementação da segunda edição da mesma decisões empresariais.
estratégia, com uma exposição realizada em 2002. Armstrong e Kotler (1992), corroboram com
A nova edição, com cunho mais comercial, esta visão acrescentando que poucas empresas
contava com 28 criadores, com ênfase especial no mundo de hoje podem ignorar as renovadas
nas grifes de moda nacionais, com potencial de exigências ambientalistas. A este compromisso
distribuição capaz de absorver a capacidade de que as empresas deveriam assumir no âmbito da
produção da cooperativa de maneira mais responsabilidade social, os autores chamam de
otimizada. criação de valor para os clientes. Ou seja, coloca-se

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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

uma funcionalidade como objetivo da perspectiva empresarial, alcançar credibilidade e


responsabilidade. O limite imposto à existência legitimidade sócio ambiental. As ações seriam
da empresa, pela própria sobrevivência dela, estratégicas, evitando-se assim o risco de
diante da legitimidade necessária junto à desresponsabilizá-las e, ainda, revertê-las, perante
sociedade civil, acaba por transformar a a opinião pública, contra a empresa; e deveriam
responsabilidade em valor de produto e serviço. também explorar todo o potencial de propagação
Ainda assim, este poderia ser um caminho para o de imagem possível. Desta forma, o diálogo com
diálogo – a necessidade de legitimação - mas é as partes interessadas da empresa seria
rapidamente liquidificado pela racionalidade fundamental, de maneira a legitimar o processo
capitalista. decisório de ações para a responsabilidade social.
A empresa apropria-se do discurso da Reafirmando a defasagem entre discurso e
responsabilidade social como instrumento para prática, relatório do IBASE/RJ, Instituto
valorizar suas ofertas diante dos consumidores. Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, traz
No entanto, o exercício do diálogo e a assunção constatações sobre os balanços sociais modelo
desta interlocução em suas ações ficam em IBASE das empresas. O investimento médio feito
segundo plano. Na prática, o discurso tem se por empresas em educação, por exemplo, por cada
mostrado mais forte do que a realidade, com a empregado no ano de 2000 era de R$ 514,05; em
serventia preponderante de “puxar” a discussão. 2001 baixou para R$ 421,23 e em 2002, foi para
R$ 402,27 , em valores corrigidos. O estudo
Os programas de responsabilidade social
mostra também que o número de acidentes de
empresarial impõem, na teoria, uma colaboração
trabalho cresceu no período: de 21 para 30, em
com os principais problemas do país e do mundo;
cada mil empregados. Outro aspecto que aponta
por isso, as soluções apontadas podem convergir
a distância entre discurso e prática é a questão
com a direção dos objetivos das políticas públicas
da diversidade: somente 4% de negros e 16,4%
nacionais e/ou com a melhoria da qualidade de
de mulheres ocupam cargos de chefia nas
vida de pessoas, trabalhadores ou não, e do meio
empresas.
ambiente onde se inserem. A RSE tornaria a
“empresa parceira e co-responsável pelo
desenvolvimento social” (INSTITUTO ETHOS, 3. A realidade da aproximação:
2005). Do ponto de vista estratégico, ou seja, do
lado empresarial, as ações devem mitigar os indústria e comunidade
impactos empresariais, colaborando com a área O projeto Retalhar tem resultados favoráveis
em que criam mais impactos negativos, sem no que tange a geração de trabalho e renda.
concorrer com as políticas públicas, mas Entretanto, esta mesma parceria traz resultados
complementando-as. que oferecem um campo de trabalho ainda em
No caso da indústria, onde o maior impacto aberto para que a engenharia de produção possa
negativo foi a redução dos postos de trabalho, colaborar com um de seus mais atuais temas de
estrategicamente as ações devem estar interesse: a ética e a responsabilidade social
relacionadas com educação para o trabalho e empresarial.
geração de trabalho e renda. Isto explicaria o fato As cooperativas ainda são olhadas, pela maioria de
de as indústrias de moda estarem, nós, como um projeto idealizado, fruto de um confronto
crescentemente, procurando comunidades e uma superação do capitalismo (VEIGA E
vocacionadas para o artesanato para suas FONSECA, 2001) e um possível direcionamento para
coleções. o “mundo melhor” desejado pela ideologia da
Qualquer atividade de RSE precisaria abordar responsabilidade social. Na prática, no entanto, a
de maneira afirmativa os interesses dos diversos cooperativa real enfrenta problemas em sua
atores envolvidos nas operações das empresas, imprescindível aproximação com o mercado e o
bem como buscar, de alguma forma e na mercado, representado aqui pelas indústrias, em ser
responsável.

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O estudo de caso da Coopa-roca “Dá orgulho, ver o trabalho que eu desenvolvi,


(AFONSO,2006), aponta para resultados com outros gostando. Isso é muito importante, isso é
econômicos positivos e também para muito bom” (AFONSO, 2006, p.160).
oportunidades de melhoria, tanto nas
Porém, estão ainda em aberto inúmeros
cooperativas quanto nas empresas.
espaços para estudo, que são fruto de um certo
Como resultados favoráveis para a conformismo com resultados econômicos de
cooperativa, podemos citar: geração de trabalho e renda, reduzindo a
possibilidade de se alcançar, por meio do mesmo
a) O trabalho em casa é extremamente
projeto, outros objetivos desejáveis. De alguma
positivo. Estas mulheres, como quase todas as
forma, este limite é redutor e pode ser sentido,
populações que trabalham com artesanato, têm
entre outras situações, no estresse destas
nesta atividade uma de suas atividades
mulheres com o trabalho e em alguma falta de
cotidianas, divididas com inúmeras outras;
alegria manifestada na produção em escala.
“Eu não sei se é uma ilusão ... aqui se o filho
“Trabalho trabalhoso não dá tanta renda, mas
tiver com problema ... a gente dá um jeito, troca o
tem uns que é bom” (AFONSO, 2006, p.160).
horário, trabalha de noite, pode acompanhar a
família mais de perto (...) Às vezes não compensa “Pra falar a verdade, a gente nunca negociou
você ganhar um salário e meio e pagar alguém para prazo, a gente fica mais nesse desespero. É estressante
olhar para ir trabalhar (...) eu vou trabalhar muito, para todos. A pessoa se estressa trabalhando, porque
mas semana que vem eu vou levar meu filho na trabalha muito, fica todo mundo pilhado, vai pra
escola, vou cuidar da minha vida...” (AFONSO, rua, pára o serviço a aí atrasa tudo... se apavora
2006, p.159). muito em cima da hora. A impressão que dá é que
se aprova (a empresa cliente) quando não tem muita
b) O resultado econômico desta parceria é
opção, aí, antão, vai isso mesmo” (AFONSO,
também de extrema importância, dada a
2006, p.160).
precariedade da renda familiar. Em algumas
famílias, a renda oriunda deste trabalho é Os espaços em aberto podem ser assim
complemento à renda dos maridos; em outras, relacionados:
pela ausência do marido ou pela baixa ou
a) A interface com o mercado é feita
nenhuma remuneração que este possui, o
diretamente por sua coordenação, representada
resultado econômico deste trabalho é o único,
pela socióloga que voluntariamente fundou a
garantindo-lhes uma sobrevivência com alguma
cooperativa; função externa ao organograma. A
dignidade;
atividade comercial daria às artesãs a
“Aparece mais trabalho e mais renda pessoal oportunidade de aprender a lidar com as
pra gente. Você pega o teu trabalho e vai fazer em indústrias.
casa, não tem que ficar aqui fazendo horário.
“Da nossa parte é a necessidade de fazer. A
Quanto mais trabalho, mais produção e mais renda
gente tem que trabalhar. Não dá para dizer assim,
familiar” (AFONSO, 2006, p.160).
não vou fazer. Não tem como não fazer, se você não
c) É importante a contribuição desta parceria tem condições de fazer, eles dão para outro. O
para a elevação da auto-estima, em função deste mercado é isso aí” (AFONSO, 2006, p.159).
resultado econômico e da divulgação destas ações
b) O controle sobre o processo criativo é
na mídia. Participar de desfiles, de viagens, de
potencial pouco explorado. A Coopa-roca vende,
eventos, ter suas fotos publicadas em jornais e
mais comumente, o artesanato e não o produto.
revistas dá a elas uma importância neste mundo
A criação é portanto da alçada do estilista, do
do Isso (BUBER, 2001), que agrada ao ego e as
cliente. Algumas vezes acontece de a indústria
faz sentirem-se reconhecidas e felizes. Isto deve
liberar a criação para a cooperativa, mas, na
ser valorizado.
maioria das vezes, a peça vem determinada ou

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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

até mesmo pronta, cabendo à pilotista (tarefa de moda foi opção para fazer o que realmente
algumas artesãs), descobrir como reproduzi-la e sabiam, ou seja, o artesanato, e driblar as
repassá-la ao grupo escolhido para produzir o dificuldades de desenvolvimento de produto,
trabalho, dentro de um estrito controle de distribuição e comercialização. Desta forma e
qualidade. Este limite no projeto transforma-as com a produção para a escala industrial, a solução
em operadoras da criação do estilista; é o trabalho organizado, dividido, repetido e
realizado em partes.
“Se você não tem controle sobre a criação num
trabalho com a indústria, aí é operário” d) Esta opção impõe ao fazer artesanal um
(AFONSO, 2006, p.164). ritmo que não é lhe natural, provocando longas
jornadas de trabalho em curtos espaços de tempo,
“Se eu tiver que inventar alguma coisa, eu tenho
seguidas de períodos sem trabalho. No artesanato,
o prazer de estar inventando, eu gosto de estar
ao contrário do mercado industrial, o homem se
inventando, mas depois que eu faço aquilo, eu não
impõe ao produto. No tempo industrial, o ritmo
quero ver mais aquilo” (AFONSO, 2006,
atropela o homem, podendo desenraizá-lo.
p.164).
A administração desta produção, resultando
Lima (2006) afirma que os projetos de
na perda de controle do processo de produção
pedagogia instrucional – engendrados de fora da
pela artesã, tem ainda um outro problema: a peça
comunidade – tiram o prazer do trabalho,
final muitas vezes não é de conhecimento da
subtraem a relação homem / objeto, separam o
artesã.
homem do fazer e o criador da criação. Em sua
visão, a pedagogia instrucional tenta adaptar o “Aqui, cada um de nós, nunca vê o trabalho
artesão ao mercado; Lima acredita que há espaço todo. Cê só entrega a tua parte, vai embora, outra
para adaptar o mercado ao artesão. chega e entrega a dela, você nunca vê, assim ... aí,
quando é num desfile, tem oportunidade de ver o
Em sua opinião, o controle de qualidade
trabalho todo ... aí é muito bom, muito gratificante
imposto ao artesanato pela indústria é “censura”.
saber que o teu trabalho está ali, que todo mundo
Segundo ele, a qualidade do artesanato é a
tá vendo, elogiando” (AFONSO, 2006, p.160).
funcionalidade da peça; resume-se a isto; a peça
deve servir ao que foi criada. Aquilo que a e) Outra questão, que amplifica a anterior, é
indústria costuma chamar de “defeito” para ele é a precarização generalizada desta relação de
marca cultural, traz ancestralidade e nisto residiria trabalho. Se vista pelo lado da cooperativa e, ainda
o valor do artesanato. Se o controle sobre a peça que fosse obedecida uma jornada razoável, estas
artesanal, no caso da Coopa-roca, pudesse não mulheres não possuem nenhuma seguridade social
buscar a perfeição industrial, as mulheres ou benefício. Visto este aspecto, pelo lado da
fundadoras, por exemplo, poderiam estar ainda responsabilidade social empresarial, agrava-se
trabalhando (já que têm dificuldade de adaptar- ainda mais a distância com a colaboração para o
se a produzir peças industriais porque suas mãos desenvolvimento social.
e seus olhos não obedecem mais a este controle).
Por tratar-se de trabalho manual de extrema
“Prá nós, às vez falta mesmo, mas a gente tá sofisticação e pelo controle de qualidade
satisfeita das outras também ganhá o dinheiro delas, extremamente técnico, a vista cansada ou a mão
trabaiá e ganhá o dinheiro delas” (AFONSO, trêmula, sinais da idade, são também sinais de
2006, p.164). retorno à exclusão e sobrecarga nos encargos
governamentais, já que estas mulheres não
c) A produção em escala do fazer artesanal
contribuem, enquanto economicamente ativas,
foi a solução encontrada para atender aos pedidos
para suas seguridades.
da indústria, mas talvez tenha sido, antes disto,
uma opção. f) Estando a atividade de relação com o
mercado numa função externa à cooperativa, já
No início de suas atividades, a cooperativa
qu é desempenhada pela coordenação, a gestão
fazia peças de decoração. A aproximação com a
democrática da cooperativa não é exercida em
sua potencialidade.
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As cooperativas são, em teoria, organizações trabalho de um fornecedor industrial ou de


democráticas, controladas por seus membros, que funcionários por um fornecedor artesanal e, neste
participam ativamente na formulação das suas sentido, peca, desconsiderando o ritmo e as
políticas e na tomada de decisões. No caso condições de trabalho possíveis destas
estudado, o controle, bem como as tomadas de comunidades. Gera renda, é verdade, mas
decisões, estão, no mínimo, divididos entre a negligencia aspectos fundamentais para a
coordenação externa e as cooperadas. Esta responsabilidade;
situação não dá a essas mulheres a possibilidade
b) Aquilo que está sendo implementado nesta
de serem preparadas para a independência ou a
relação é instrucional, foge ao dialogal e, neste
autonomia.
sentido, é impositivo e redutor. A relação limita-
Do lado empresarial da relação, podemos se no atendimento a pedidos, imposição de tempo
também apontar algumas constatações. Muitos de entrega e a cooperativa que dê conta do resto.
aspectos positivos fazem parte desta aproximação. Não se preocupa com as condições de trabalho e
Como trata-se de um caminho novo, existe com as possibilidades reais destas mulheres para
também, ainda, bastante potencial de realizar este trabalho. A indústria oferece à
implementação de melhorias. cooperativa, quando algo além do pedido é
oferecido, instrumentos para medir, adequar e
Um dos aspectos mais positivos desta
conformar processos. Portanto, é outra coisa que
aproximação é sem dúvida a geração de
não o diálogo;
trabalho e renda. Entretanto, no caminho do
diálogo ético e responsável, do desenvolvimento “Eu não vejo muito assim um diálogo. Acho
social e da equidade, os produtos artesanais e a que eles deixam tudo muito pra cima. Eu acho que
organização de artesãos têm mais potencial e diálogo com a própria pessoa que faz...por exemplo,
exigem mais respostas do que, comodamente, o Miéle (da M.Officer), o Oskar (da Osklen), é
está desenhado. assim: um contato no primeiro momento para ele
ver que a gente tem condição de fazer” (AFONSO,
Outro ponto inegavelmente favorável destas
2006, p.160).
iniciativas por parte das empresas é o potencial
de discussão e de propagação das idéias de A RSE, como dada, não é um mal em si, pode
responsabilidade social, podendo levar o servir para que a sociedade, contaminada pelas
cidadão comum a conhecer e debater idéias discussões e pela informação promovida pelos
relacionadas ao tema. O despertar do consumo meios de comunicação possa “puxar” o processo.
com as propostas de junção de artesanato e
O inadequado é chamar esta relação de
indústria, além de promover diferencial
responsável, palavra cuja interpretação remete a
competitivo para a indústria, pode sensibilizar o
um outro campo, que não está em jogo. O
consumidor no caminho do consumo
resultado desta relação está mais para apropriação
consciente.
de discurso sócio-engajado e não
Como principais aspectos potenciais responsabilidade. Contamina a percepção do
constatados no estudo para responsabilidade consumidor que vai, através de seu poder de
social empresarial nestas parcerias, podemos compra, colaborar para manter o status quo da elite
apontar: dominante e a concentração de riquezas, sob o
discurso de responsabilidade. É injusto, “mas a
a) O discurso da intenção de responsabilidade,
injustiça não é uma força do destino” (BARTHOLO,
de freio no desenvolvimento pelo bem comum,
sem data) e deve ser mudada.
necessita ser revisto, ou ainda, implantado. A
responsabilidade não acontece, ficando limitada c) A indústria que se relaciona com a Coopa-
à intenção. Sequer há diálogo e, por isso, não há, roca, em sua maioria, cria os produtos, limitando
conseqüentemente, influência deste nas decisões às artesãs a reprodução de produtos externos ao
empresariais. Se muito, a indústria substitui o seu universo. A criação e desenvolvimento de

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produtos são fortes instrumentos para resgatar As associações no âmbito da


identidade e gerar auto-estima; caso contrário, responsabilidade social entre indústrias e
destitui as artesãs de autoria, desconsidera o comunidades fornecedoras de artesanato
outro, não dialoga. remontam ao início da industrialização (no sentido
No projeto Arte/indústria da FIRJAN, a da precarização da relação de trabalho), sem que
criação por parte do artesão é valorizada e isto sequer seja percebido e ainda, sendo
colocada como condição e aceita no mercado. valorizado.
Vende coleções, fazendo, às vezes e a pedido, Na relação entre consumo e produtos
pequenas alterações de cor ou materiais, por produzidos por populações excluídas – como os
exemplo, para adequar o produto às ofertas artesanais, vendidos pelas indústrias com alto
industriais. valor agregado – existe uma perversão que faz
d) A forma como as relações artesanato - com que cada um de seus consumidores se sinta
indústria vêm sendo construídas necessitam de colaborando com a inclusão destas populações
ajuste de maneira que não reproduzam as formas no caminho de um mundo melhor e de uma
de poder estabelecidas e a estratificação social sociedade mais justa. Mas, pela racionalidade que
desigual que já observamos na sociedade atual, e guia estas iniciativas (tanto faz se chamada de
que se opõem ao desejo de responsabilidade pós-industrial, pós-moderna, neoliberal), estamos,
social e de desenvolvimento social; no máximo, incluindo economicamente estas
populações.
e) Nesta relação há também, como uma das
últimas constatações, uma imposição do ritmo “Esse final de ano mesmo agora (2005), teve
de trabalho industrial, que tanto é externa ao fazer noite de eu dormir duas horas por noite, trabalhando
artesanal, como ao ritmo destas comunidades. durante o dia e durante a noite ... Desfile também
é meio apertado ... aí é corrê, corrê, corrê e corrê...
As discussões decorrentes deste ritmo minha pressão chegou a subir (AFONSO, 2006,
poderiam ser contidas no estabelecimento de um p.160)”.
teto para a produção, fruto de um planejamento
de produção que relacione o número de mulheres Não se pode diminuir a importância das
e a capacidade de produção delas, dentro de tentativas de imputar responsabilidade social nas
limites de jornada de trabalho e ganhos empresas, ela é tão importante quanto a
adequados; e ainda, um planejamento por parte responsabilidade dos governos ou da sociedade
da indústria que resulte num cronograma de civil. Porém, não se pode cair na falácia de
produção que contemple suas necessidades, sim, enxergar aí a redenção do mundo neo-liberal,
mas que também contemple a possibilidade fomentando um consumo ainda maior, agora
destas mulheres, sem que lhes seja imposto um amenizado pelo “papel social” dos produtos
ritmo que desconhecem e lhes desgosta. Diálogo fabricados dentro do “guarda chuvas” da
influenciando a decisão, como parte das responsabilidade social.
responsabilidades e não só dos objetivos A característica essencial da responsabilidade
empresariais. é o ato de responder a uma presença palavra
Num primeiro momento, podemos dizer que (BUBER, 2001), é ser ético. Aquilo que tem
estamos despreparados para os desafios propostos caracterizado essencialmente o movimento de
para as mudanças na condução do desenvolvimento responsabilidade social das empresas é a
social dentro da modernidade industrial e que é instrumentalização da relação com os stakeholders,
“urgente recuperar a faculdade de tornar possível amanhã o tomando um caminho que vai se distanciando
que hoje parece ser impossível”(BARTHOLO, sem data). mais da resposta, sempre, parece eterno, na busca
prioritária e estratégica do lucro, dentro da
A responsabilidade não deve ser chamada a este racionalidade vigente, permeada de conflitos.
discurso de manutenção, nem tampouco a
colaboração das empresas com o caminho para o Sob a perspectiva econômica, a configuração
“mundo melhor” pode ou deve reproduzir as
estruturas de poder já estabelecidas.
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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

do excluído dá-se em sua desnecessidade à Brasil. São Paulo: Paz e Terra,1999.


dinâmica econômica (MOTA, 2005), podendo
BUBER, Martin. Eu e Tu. 8. ed. São Paulo:
gerar descaso em relação aos menos favorecidos,
Centauro,2001;
o que para Buarque (1999) leva a dessemelhança,
que faz com que laços de solidariedade se FERREL, O.C. FERREL, Linda e
rompam, comprometendo a coesão social. A FRAEDRICH, John. Ética Empresarial: dilemas,
exclusão (MOTA, 2005) representa a privação tomadas de decisões e casos. Rio de Janeiro,
de certas capacidades e direitos relacionados à Reichmann & Affonso Ed., 2001. 404 p: 65/90;
manutenção de uma vida digna e implica em uma
INSTITUTO ETHOS EMPRESAS E
convivência em sociedade sob um status especial,
RESPONSABILIDADE SOCIAL, consulta ao
de cidadão de segunda classe.
site em novembro de 2005: www.ethos.org.br;
Trazer estes cidadãos à primeira classe, incluí-
LIMA, Ricardo. Antropólogo, é coordenador
los, exige um olhar de igualdade sobre o outro,
da sala do artista popular e trabalha a frente de
desconstruindo a visão de que a inclusão seja um
projeto de intervenção na realidade de
desejo a ser alcançado no tempo futuro, exigindo
comunidades de artesanato há 20 anos,
portanto outra racionalidade.
depoimento informal, no Museu do Folclore
O caso da experiência da Coopa-roca e sua Edison Carneiro, em janeiro de 2006;
relação com as empresas trouxe resultados
MOTA, Carlos Renato. Questões Sociais
econômicos favoráveis e uma adaptação do
Contemporâneas. Carlos Renato Mota, Heloísa
artesão à racionalidade da indústria, sendo
Helena Gonçalves e Luis Henrique Abegão.
reducionista, numa relação impositiva e sem
Brasília: SESI/DN, 2005.
diálogo.
VEIGA, Sandra Mayrink; FONSECA,
“Nós num tem patrão” (AFONSO, 2006,
Isaque. Cooperativismo: uma revolução pacífica em ação.
p.43).
Rio de Janeiro, DP&A: Fase, 2001.p.17.
“Tetê é quem diz. Aqui eles num manda nada.
Mas só que tem que se num fizer bem feito eles num
pagam”(AFONSO, 2006, p.83).

Referências
AFONSO, R. C. M. Esse trabalho Liberta?
Produção seriada e responsabilidade social empresarial.
Dissertação de mestrado defendida na COPPE/
UFRJ. Programa de Engenharia de Produção,
2006.
ARMSTRONG, Gary; KOTLER, Philip.
Princípios de Marketing. Editora Prentice-Hall do
Brasil, Rio de Janeiro, 1998. p 527: 471/492;
BARTHOLO, Roberto. A Pirâmide, a teia e
as falácias sobre modernidade industrial e
desenvolvimento social. Texto escrito para o curso
Gestão de iniciativas sociais COPPE/ UFRJ/
UNISESI, Rio de Janeiro, sem data, p.9.
BUARQUE, C. A Segunda Abolição: um
manifesto-proposta para a erradicação da pobreza no

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Artigo

Algumas Diretrizes para o Desenvolvimento Humano


Robson Pereira de Lima*

Resumo

Este artigo apresenta alguns elementos conceituais necessários para o enriquecimento das análises
do desenvolvimento humano. Para isso recorremos à fundamentação teórica de Amartya Sen, na
perspectiva do Homem liberto como núcleo potencial do desenvolvimento, e à teoria dos sítios
simbólicos de pertencimento de Hassan Zaoual, que aborda este mesmo Homem a partir das suas
raízes culturais. Para tanto, iniciamos nossa abordagem com uma aproximação do conceito de
liberdade apresentado por Sen para, em seguida, tratamos das diversas características da vida humana,
até nos depararmos com a necessidade de recorrermos a um conjunto de informações para o
estabelecimento de critérios de justiça.
Palavras-chave: desenvolvimento humano; desenvolvimento situado

Abstract

This work presents some conceptual elements needed to the enrichment of analyses of human
development. One of this work’s basis is Amartya Sen’s theory of the freed man as the potential
nucleus of development; another basis is Hassan Zaoual’s theory of the symbolic site of belonging,
which approaches that same man’s cultural origins. Our boarding started with an approach of
freedom’s concept presented for Sen. After that, we deal several characteristics of human life to
recognize the necessary use of set of information for establishment of justice criteria.
Key words: human development, sited development

1. Introdução
O objetivo deste trabalho é despertar a “Entretanto, vivemos igualmente em um mundo
atenção de estudiosos do tema para o que pode de privação, destituição e opressão extraordinárias.
estar por trás dos discursos que tratam Existem problemas novos convivendo com antigos
desenvolvimento humano no mundo sob a – a persistência da pobreza e de necessidades
perspectiva do indivíduo. Para tanto nos essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome
apoiamos na teoria do desenvolvimento humano crônica muito disseminadas, violação de liberdades
difundida pelo indiano Amartya Sen, Prêmio políticas elementares e de liberdades formais básicas,
Nobel de Economia, na qual ele destaca o ampla negligência diante dos interesses e da condição
Homem como o protagonista em potencial do de agente das mulheres e ameaças cada vez mais
seu desenvolvimento. Dizemos “potencial” *Pesquisador do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social-
porque, para exercer tal papel, cada pessoa deve LTDS. Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense-
UFF, mestre em Ciências pelo Programa de Engenharia de Produção da COPPE/
estar destituída de diferentes formas de privação, UFRJ e doutorando da UFRJ com estudos na área de Turismo e Desenvolvimento
Social.
como o próprio Sen observa no prefácio do seu
livro Desenvolvimento como liberdade:
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graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade vida. Isso pode parecer óbvio mas, não é raro
de nossa vida econômica e social.” (Sen, 2000: p. 9). encontrarmos propostas de desenvolvimento nas
quais o ser humano aparece como um mero
Na perspectiva apontada por Sen nos
beneficiário das ações implementadas por
deparamos com o Homem como um indivíduo
pseudo-salvadores. Portanto, a nossa
liberto mais, ao mesmo tempo, integrado a um
fundamentação teórica e conceitual consiste em
contexto cultural, político e social a partir do qual
entender de que forma o Homem deve se
ele descobre e define a sua identidade. Sen
posicionar perante os diferentes contextos de
procura mostrar a ampliação da liberdade
privação.
humana como meio e, ao mesmo tempo, fim do
desenvolvimento humano, classificando-a e No final deste trabalho tratamos de
mostrando as relações existentes entre cada forma determinados critérios de justiça que
de liberdade. condicionam o processo de desenvolvimento
humano, mostrando que tais critérios se mostram
Na análise das suas idéias, trazemos a tona
com maior significância na medida que se apóiem
valores que constituem os alicerces das teorias
em informações que procuram retratar o contexto
que reconhecem o Homem como o indivíduo
que se encontra sob julgamento ou avaliação. Ou
potencialmente capaz de construir um mundo
seja, o que pretendemos é chamar atenção para a
mais justo e liberto de privações que se
importância da base informacional que
apresentam como obstáculos para o seu
fundamentará as ações de capacitação do Homem
desenvolvimento.
e de rompimento das diversos tipos de privação
Para tanto, assumimos que o ainda presentes no mundo.
desenvolvimento é para o indivíduo sim, como
afirmam alguns críticos, mas, para um indivíduo
que está em plena interação com diversos outros 2. Um Olhar sobre a Liberdade
através de relações pessoais ou institucionais.
A visão de desenvolvimento tratada aqui está
Relações essas pautadas pela ética e pelos
vinculada ao processo de expansão das liberdades
fundamentos de justiça social. Portanto, podemos
reais que as pessoas desfrutam, proporcionando
acertadamente afirmar que a valorização do
uma abordagem que vai além da medição do
indivíduo na visão de Sen não implica na rejeição
Produto Nacional Bruto (PNB), do aumento das
das práticas coletivistas. Aliás, uma das formas
rendas pessoais, da industrialização, dos avanços
de liberdade apontada por este autor é a liberdade
tecnológicos ou da modernização social. Ou seja,
de participar das discussões públicas e dos
olhar o desenvolvimento como expansão de
processos participativos de tomada de decisão.
liberdades substantivas nos permite atentar para
O leitor poderá refletir, a partir desta leitura, os fins que o tornam importante ao invés de
sobre os diferentes graus e formas de liberdade restringi-lo a alguns meios, sem desprezar a
influenciadas pelos tipos de governo vigentes – importância desses no processo (Sen, 2000).
democrático ou autoritário -, pelas diversas
Essa abordagem do desenvolvimento resgata a
formas de cultura, pelos diferentes princípios
posição do Homem que tem sido relegado ao papel de
religiosos etc. Por isso, logo no início do trabalho
mero beneficiário dos modelos de desenvolvimento de
fazemos uma abordagem que mostra a
viés “cartesiano”, nos quais são privilegiadas a lógica e
importância de diferentes formas de liberdade
a técnica. Dessa forma, devemos estar atentos para
para o desenvolvimento humano.
que os diversos segmentos da sociedade humana
Entretanto, devemos reconhecer que para não devam ser vistos, simplesmente, como “recursos
falar do desenvolvimento na perspectiva da humanos” a serem “consumidos/processados” pelos
liberdade humana precisamos conhecer mais de sistemas de produção e modernização, que nos
perto o Homem e as diversas formas de existência tempos atuais já evidenciam sua fragilidade.
deste Ser, nas suas mais variadas condições de

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A importância do Homem como agente do ou o recebimento de educação básica, seriam


processo de desenvolvimento está fortemente veículos que proporcionariam o desenvolvimento.
relacionada com os valores sociais e os costumes Com base na abordagem apresentada aqui
sustentados por ele e que têm reflexos nas podemos afirmar que essa forma de se olhar o
liberdades que as pessoas desfrutam e estão certas processo não permite perceber que as liberdades
ao prezar. Fatores como corrupção e relações substantivas estão entre os componentes
econômicas, sociais e políticas confiáveis também constitutivos do desenvolvimento.
dependem dos valores sustentados e dos Algumas formas de liberdade podem ser
costumes sociais vigentes (Sen, 2000). vistas como “instrumentos” pelos quais se alcança
O exercício contínuo da liberdade será sempre contextos de liberdade mais amplos. A interação
permeado por valores que também serão de liberdades políticas, facilidades econômicas,
influenciados pelo livre exercício de participação oportunidades sociais, garantias de transparência
das pessoas nas discussões públicas e no convívio e de uma segurança protetora proporcionaria a
social. Nesse ambiente os valores estarão sendo cada pessoa uma capacidade significativamente
expostos às opiniões diversas e poderão ter seus ampliada de atuar em prol do seu
fundamentos submetidos ao julgamento ético desenvolvimento e de influir no desenvolvimento
baseado em outros critérios de valor. da humanidade.
O aumento do exercício das liberdades O fator fundamental do reconhecimento
humanas apontará em certo grau e medida a dessas liberdades instrumentais não é a
eliminação da pobreza e da tirania, a ampliação possibilidade de se estabelecer objetivos e metas
das oportunidades econômicas, a remoção da para mensurar o grau de evolução de cada uma
intolerância ou interferência excessiva de Estados delas, mas sim o potencial de promoção do
repressivos, além da melhora dos serviços desenvolvimento a partir da coexistência delas;
públicos e do aumento do processo de inclusão e que, por fim, tornaria a afirmar a importância
social. de cada uma.
Assim sendo, podemos considerar a eficácia A importância da liberdade humana pode ser
do desenvolvimento na medida que conseguimos comprovada empiricamente evidenciando as
verificar a livre condição de agente das pessoas e prioridades valorativas definidas por cada pessoa.
tal condição está fortemente vinculada aos Isso significa que, segundo as palavras de Sen,
estados que privilegiam a democracia, considerando a antiquada distinção do Homem
independente do grau de progresso econômico como paciente e como agente, podemos afirmar
alcançado pela nação. que o processo de desenvolvimento centrado na
liberdade está voltado para o agente que, em
De acordo com Sen, embora a livre condição última instância, traçará o seu destino fazendo
de agente seja uma parte “constitutiva” do uso do seu juízo crítico e da sua impaciência para
desenvolvimento, a relação entre liberdade o desenvolvimento sustentável da humanidade
individual e realização do desenvolvimento vai (Sen, 2000).
muito além desse vínculo pois, o que as pessoas
conseguem positivamente realizar está
relacionado com as oportunidades econômicas, 3. A Diversidade Humana
as liberdades políticas e os poderes sociais que
podem usufruir (Sen, 2000). Embora não venhamos aprofundar neste
texto o processo de valorização da liberdade,
Nas visões restritas de desenvolvimento,
apresentamos aqui alguns aspectos da vida
como o crescimento do Produto Interno Bruto
humana que deverão ser considerados ao se tratar
(PIB), se questiona se determinadas liberdades
das capacidades que o Homem tem para viver da
(substantivas) políticas ou sociais, como a
forma como ele valoriza.
liberdade de participação ou dissensão política

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A discussão dos valores sustentados pelo características do homem, podemos apontar aqui
Homem está fortemente vinculada a outros temas a seguinte questão para a reflexão do leitor: Como
de extrema relevância para o desenvolvimento: a duas pessoas, compartilhando pacotes de
tradição, a cultura e a democracia. As relações mercadorias idênticos, mas apresentando
entre estes podem ser observadas em contextos características diferentes, poderiam usufruir o
onde uma tímida participação democrática pode mesmo nível de qualidade de vida?
acarretar um grande desprezo ou até mesmo o
desconhecimento de tradições e heranças culturais
de um determinado povo. Este, submetido a 4. Capacidades e Privações para o
algum modelo de desenvolvimento econômico Desenvolvimento
que prioriza a hegemonia de normas e padrões,
fica sujeito à importação de hábitos e culturas O censo comum das pessoas com respeito às
inatos ao seu meio. suas realizações atribui à renda e à riqueza
econômica um papel muito significante na
Este panorama é analisado pelo marroquino redução das suas privações, ampliando suas
Hassan Zaoual que sugere um olhar crítico sobre possibilidades de viver como desejam.
o estado de crise permanente das ciências Entretanto, esse censo, de certa forma forjado
econômica e social do Ocidente. As estruturas por uma sociedade de consumo, pormenoriza as
segmentadas e especializadas do mundo ocidental demais circunstâncias que estão relacionadas com
não consideram a pluralidade de culturas, cada a capacidade de cada pessoa realizar seus desejos.
vez mais evidentes no mundo globalizado, e que
exige da ciência um novo paradigma que considere Embora o Homem deva ter a liberdade de
a complexidade da relação entre ciência e cultura. viver da forma como valoriza, devemos analisar
(Zaoual, 2003) determinados contextos amparados por um juízo
de valor e por uma abordagem ética para termos
Na abordagem deste autor, tradição, cultura clareza dos limites da opulência, por um lado, e
e democracia devem ser consideradas a partir da da pobreza e miséria de outro. Temos que
observação do Homem como um ser que observar com cuidado os aspectos utilitaristas da
promove suas ações num determinado espaço riqueza principalmente na sua relação com as
geográfico ao qual ele pertence e sustenta sua liberdades substantivas que ela nos possibilita
identidade através, por exemplo, de uma ideologia obter.
e/ou de uma religião; dizendo de outra forma,
ele propõe uma teoria dos “sítios simbólicos de Compartilhando a visão de Sen, podemos
pertencimento” nos quais o homo situs aceita ou apontar as fomes coletivas, que ainda podem ser
recusa o que lhe é proposto ou imposto de fora e detectadas em diversas regiões deste planeta,
procura soluções originais para seus problemas. como a forma de privação de liberdade mais
(Zaoual, 2003). repugnante no mundo moderno. Não há vida sem
alimentação e, podemos ir além, não há saúde
A proposta de Zaoual visa um rompimento sem um acesso adequado a alimentos ricos em
com os antigos padrões cientificistas e nutrientes, capazes de fortalecer o sistema
deterministas, que já nos fazem evidentes as suas imunológico do ser humano.
fragilidades perante os diversos contextos
econômicos, sociais e culturais, para a definição Nas experiências de governos democráticos,
de ações em espaços localizados mobilizando o nos quais os cidadãos usufruem seus direitos
Homem, como ator enraizado em sua realidade, políticos, as chances de ocorrência de fomes
para a promoção do seu desenvolvimento. coletivas são reduzidas por representarem riscos
de descontinuidade desses governos; enquanto
Embora não tratarmos neste trabalho da nos regimes autoritários a prevenção de problemas
dificuldade do bem-estar ser medido pela renda desse gênero não é vista como prioridade.
sem se considerar diferenças de idade, sexo,
habilidades etc., ou seja, das diferentes Quando nos reportamos à importância da

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liberdade política e das liberdades civis não Todas as nossas referências aos aspectos
pretendemos justificá-las pelos seus efeitos econômicos do desenvolvimento humano não
indiretos na economia; estas por si mesmas já têm por objetivo rejeitar a influência da economia
denotam sua importância, ou melhor, não nas diversas formas de liberdade. Observamos
devemos falar de liberdade humana sem falar das apenas que o impedimento arbitrário de
liberdades políticas e civis como elementos que oportunidades de transação e troca deve ser visto
constituem e tornam exeqüível o como uma fonte de privação de liberdade e que
desenvolvimento (Sen, 2000). não deve prevalecer na relação entre mercados e
liberdade. Não vamos aqui discutir a eficiência
O usufruto de liberdade política é uma das
do mecanismo de mercado ou as possíveis
formas pelas quais os cidadãos podem debater
conseqüências da ausência deste, pretendemos
os seus valores e determinar prioridades que
apenas chamar atenção para o fato de que a
reflitam no seu desenvolvimento e no da
liberdade de troca é tão importante quanto
sociedade. Por isso devemos estar atentos aos
qualquer outra.
discursos daqueles que se recusam dispensar
atenção às liberdades políticas diante da intensa Para pensar na liberdade das pessoas como
necessidade de atendimento das questões um componente do desenvolvimento e ao mesmo
econômicas. tempo como um fruto deste, devemos considerar
todos esses fatores que constituem a substância
Em nosso estudo podemos assumir a
dessa liberdade, por mais abrangentes e
capacidade das pessoas de levar o tipo de vida
complexos que sejam. Isso pode ser dito de outra
que elas valorizam como um fator fundamental
forma, ou seja, o desenvolvimento como liberdade
para análise de políticas públicas, já que estas
está condicionado à superação das situações de
tanto contribuem para a expansão das
privação encontradas nas diversas formas de vida
capacidades como também são influenciadas pela
que cada pessoa tem razão por valorizar.
capacidade de participação do povo na sua
concepção e execução. Dessa forma o papel da
condição de agente do indivíduo que participa 5. Os Frutos e a Semeadura do
das ações econômicas, sociais e políticas é mais
uma vez ressaltada. Desenvolvimento
Não pretendemos negar a relação entre um Quando nos propomos falar dos frutos e da
baixo nível de renda e a privação de capacidades semeadura do desenvolvimento, estamos na
individuais, muito pelo contrário, estamos cientes verdade nos referindo ao “fim primordial” e ao
do forte vínculo que pode existir entre estes dois “principal meio” do desenvolvimento que é a
fatos. Entretanto, não devemos achar que expansão da liberdade, ou como Sen denominou
conhecendo as privações de renda teremos respectivamente, “o papel constitutivo e o papel
condições de dizer alguma coisa sobre a privação instrumental da liberdade no desenvolvimento”.
de capacidades. Em muitos casos, estudar o Os frutos a serem colhidos do processo de
distanciamento entre esses dois contextos pode desenvolvimento têm como nutrientes porções
ser mais enriquecedor para a concepção de de liberdade substantiva que proporcionarão o
políticas. (Sen, 2000) enriquecimento da vida humana. Ou seja, a
expansão das liberdades reais que as pessoas
A pobreza, na nossa abordagem, deve ser vista desfrutam pode ser constatada quando forem
como uma privação de capacidades básicas e não verificadas capacidades elementares como ter
somente como insuficiência de renda. Nesta condições de evitar privações como a fome, a
perspectiva podemos entender melhor os quadros subnutrição, a morbidez evitável, a morte
de mortes prematuras, de subnutrição aguda em prematura, o analfabetismo, a pequena
crianças, de analfabetismo disseminado e de participação política, a falta de liberdade de
outras deficiências de diferentes contextos sociais. expressão etc. (Sen, 2000)

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Embora devamos distinguir os fins dos meios básica para a saúde e aos processos de reforma
do desenvolvimento, não podemos atribuir pesos agrária.
diferentes para estes dois papéis da liberdade. Não
O que queremos ressaltar da constituição das
contestamos a inferência da expansão de cada tipo
disposições sociais é o fato destas não
de liberdade sobre o desenvolvimento, há muito
dependerem dum grande volume de riqueza criada
mais na relação instrumental do que esse
num país, que poderá ocorrer num prazo muito
encadeamento constitutivo, ou seja, o que nos
longo e acarretar um possível agravamento dos
importa é o reconhecimento de que a eficácia da
problemas sociais. O custeio público mostra que
liberdade como instrumento se verifica na inter-
a expansão da educação básica e a ampliação dos
relação dos diferentes tipos de liberdade e na
serviços de saúde podem ocorrer de forma muito
possível contribuição de cada uma para a
satisfatória a despeito dos baixos níveis de renda.
promoção de outras formas de liberdade. (Sen,
Um programa de serviços sociais bem elaborado
2000)
e adequadamente implementado num país pobre
Para se ter idéia das inter-relações e poderá melhorar significativamente a qualidade
complementaridade das liberdades instrumentais, de vida e, num segundo momento, ampliar o
podemos imaginar alguns reflexos das liberdades processo de desenvolvimento através do
políticas sobre o desenvolvimento. Por exemplo, crescimento econômico e do incremento das
em países com governos de perfil democrático o características clássicas da qualidade de vida
processo eleitoral tende a ocorrer sob a atenção (educação ampliada, maior acesso à cultura e ao
crítica dos cidadãos, que podem desfrutar da lazer, maior participação em mercados de
transparência do processo a ponto de decidirem consumo de bens etc.). (Sen, 2000)
a quem eleger, considerando as facilidades
Uma medida emblemática para o êxito do
econômicas (microcrédito, crédito rural,
desenvolvimento humano se observa nos
financiamento habitacional etc) e as
programas de redução da mortalidade a partir dos
oportunidades sociais (programas de saúde,
quais fica evidenciada a necessidade do
sistema de educação, acesso à cultura etc)
crescimento e do aprimoramento das disposições
constantes no seu plano de governo.
sociais. Experiências já aplicadas tanto em países
As diversas instituições sociais têm forte ricos como pobres mostraram o poder de
influência nas liberdades individuais ao contribuir aumentar significativamente a expectativa de vida
para a garantia social dessas, promovendo a ao nascer a partir da definição de estratégias para
tolerância entre os diferentes atores da sociedade os programas sociais que se baseiam no custeio
e assegurando as possibilidades de troca e público e no compartilhamento amplo dos
transações em diferentes mercados. Entretanto, serviços sociais pela sociedade.
não podemos desconsiderar a influência das ações
Podemos encerrar essa nossa breve
do Estado na determinação da natureza e do
abordagem sobre o fim e os meios do
alcance das liberdades individuais, mesmo
desenvolvimento ratificando que a expansão da
sabendo que as disposições sociais não devam
liberdade humana depende das capacidades que
ser originadas apenas a partir de planejamentos
cada pessoa terá a partir das disposições
governamentais. O Poder Público deve atuar
econômicas, sociais e políticas que ela encontrará
como facilitador na formação e no aproveitamento
no seu percurso de vida. Nessa trajetória
das capacidades humanas através dos serviços
vislumbra-se o usufruto de disposições
básicos de saúde e educação, por exemplo.
institucionais apropriadas e de tipos distintos de
Para entendermos os vínculos entre as liberdades instrumentais, considerando sempre as
oportunidades sociais e o desenvolvimento inter-relações entre estas. Ademais, cabe-nos
econômico em países como o Brasil, por exemplo, observar que esse usufruto não ocorrerá
temos que olhar para a história das políticas passivamente, as pessoas são convidadas a
públicas implementadas dando ênfase às questões participarem ativamente na conquista das suas
relacionadas à educação elementar, à assistência liberdades. Governos e organizações civis são
responsáveis pelo fortalecimento e pela proteção
das capacidades humanas.
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6. Informação, Justiça e Liberdade fazer coisas que as pessoas valorizam.


No utilitarismo clássico tudo que está em
No começo da obra de Sen podemos
sintonia com os sentimentos de prazer, felicidade
encontrar uma observação sobre o exercício
ou satisfação pode ser considerado útil,
ponderado da condição de agente das pessoas,
entretanto, um acervo de dados que não consiga
na medida em que tenham oportunidades. Essa
contemplar adequadamente as questões sobre a
nos remete à potencial tentativa de se ser justo a
liberdade substantiva das pessoas, o atendimento
partir da base de informações disponível num
de direitos reconhecidos e os aspectos da
determinado contexto. Sen, aborda tal questão
qualidade de vida, não atenderá os requisitos de
no capítulo terceiro de Desenvolvimento como
uma avaliação normativa na estrutura utilitarista.
liberdade a partir de uma parábola em que a
Em algumas formas modernas do utilitarismo a
personagem Annapurna deseja contratar uma
essência da utilidade foi alterada e pode ser vista
pessoa para cuidar do seu jardim mas se vê em
de outra maneira, ou seja, prazer, satisfação ou
meio a conflitos quando tem que escolher apenas
felicidade passam a ser vistos como a satisfação
um candidato dentre os três que se apresentaram
de um desejo ou alguma representação do
– Dinu, Bishanno e Rogini. O primeiro, embora
comportamento da escolha de um indivíduo. No
sempre tenha sido pobre, é o mais pobre de todos;
lado oposto ao utilitarismo encontramos o
o segundo candidato se deparou com a pobreza
libertarismo que não tem interesse direto na
recentemente mas se encontra muito infeliz com
felicidade ou na satisfação de desejos mas sim
a sua atual situação e a terceira candidata é
nas liberdades formais e nos diversos tipos de
portadora de uma doença crônica que poderia ser
direitos que irão dar consistência à sua base
minimizada caso viesse a ser contratada pela
informacional. (Sen, 2000)
remuneração oferecida. (Sen, 2000)
A difícil definição de alguma medida do
Caso Annapurna tivesse conhecimento de
prazer ou da felicidade e as tentativas de comparar
apenas um dos casos, ela já teria sua decisão
a felicidade entre as pessoas constituem a
previamente definida, entretanto, a personagem
fragilidade da base informacional do utilitarismo,
está informada sobre as vidas dos três candidatos
quando submetida ao uso de métodos científicos
e, portanto, terá que estabelecer para as
tradicionais. Embora a consideração do bem-estar
informações que dispõem, qual terá maior
de cada pessoa como sendo uma característica
importância. Ou seja, os princípios envolvidos
essencialmente mental dificulte a sua
no julgamento estão vinculados às suas
mensuração, não é absurdo, como observou Sen,
respectivas bases informacionais. Para Dinu o
que cada um de nós possa identificar
argumento da renda igualitária parece o mais
perfeitamente pessoas que são mais felizes ou
apropriado para defini-lo como a escolha
mais miseráveis que outras.
adequada; no caso de Bishanno o argumento
utilitarista clássico concentrado na medida do Devemos observar também que a abordagem
prazer e da felicidade iria favorecê-lo na decisão utilitarista é bastante fragilizada em função de
e, a favor de Rogini, apontamos o argumento da sua base informacional, comprometendo assim a
qualidade de vida como o mais significante para concepção utilitarista de justiça. Vejamos, por
ela ser a candidata contratada. exemplo, para o cálculo utilitarista não importa
se a distribuição da felicidade se dá de forma mais
Considerando a importância que atribuímos
ou menos desigual, esse dedica a sua atenção
no nosso trabalho para as liberdades substantivas
apenas para a magnitude agregada da felicidade.
apontadas por Sen, e a necessidade de considerá-
Ademais, reivindicações de direitos e liberdades
las nas abordagens político-filosóficas, podemos
somente são consideradas na medida em que
afirmar que tanto o utilitarismo quanto o
influenciam as utilidades.
libertarismo apresentam falhas graves nas suas
bases informacionais por não enfocarem Uma outra limitação que se pode apontar da
adequadamente as capacidades individuais para perspectiva utilitarista é a possibilidade de haver

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Revista Virtual de Gestão de Iniciativas Sociais ISSN: 1808-6535 Publicada em Fevereiro de 2007

condicionamento mental e atitudes adaptativas Uma forte crítica lançada contra a


que podem comprometer a visão do bem-estar. constituição da base informacional do
Ou seja, as pessoas ao se depararem com libertarismo se fundamenta no argumento de ser
situações de adversidade procuram ajustar os seus inaceitável um sistema avaliatório no qual se
desejos e suas habilidades para tornar a vida mais desconsidera as conseqüências em geral, inclusive
suportável, o que exigiria uma ponderação na as liberdades substantivas, por mais básicas que
escala de utilidades daqueles que são sejam, que as pessoas conseguem ou não exercer.
persistentemente destituídos e uma forma realista Ademais, a abordagem libertária não leva em
de se captar das pessoas o tipo de vida que elas consideração variáveis a que as teorias utilitaristas
gostariam de ter. Tudo isso nos faz refletir sobre e welfaristas atribuem grande valor. Ou seja, para
a necessidade de se ter uma base informacional que tenhamos justiça precisamos de uma base
que considere primordialmente a capacidade das informacional mais ampla e uma ponderação mais
pessoas escolherem a vida que elas julgam ter adequada para a liberdade formal nas teorias
valor. (Sen, 2000) libertárias.
De fato, o subjetivismo presente na tentativa A complexidade de temas e da formação de
de se estabelecer alguma medida mental dos valores oriunda dos diversos estilos de vida que
prazeres e desejos constitui uma grande limitação cada pessoa valoriza nos faz refletir sobre os
da ética utilitarista tradicional. Já na teoria desafios a serem enfrentados nas iniciativas de
utilitarista contemporânea a representação avaliação de políticas econômicas ou sociais. E,
numérica da escolha de uma pessoa passou a ser dentre todos esses desafios podemos destacar a
empregada para atender às críticas de alguns escolha do objeto central de uma consideração
‘positivistas metodológicos’ os quais procuravam normativa como sendo o foco das atenções nos
algum embasamento científico para as debates sobre alternativas de avaliação. Algumas
comparações interpessoais das mentes. prioridades assumidas nesse processo muitas
Entretanto, o que ocorre realmente em grande vezes se tornam evidentes somente após serem
escala na atualidade é a consideração da utilidade identificadas as informações que fundamentam
como a representação da preferência de uma os juízos avaliatórios nas diversas abordagens da
pessoa. Ou seja, dizer que uma pessoa tem mais ética, economia do bem-estar e filosofia política.
utilidade numa situação qualquer comparada a
uma outra é quase o mesmo que dizer que ela
preferiria estar naquela situação ao invés da outra. 7. Considerações Finais
Voltando o nosso olhar para a importância Ao longo deste trabalho, procuramos focar
da base informacional mas, desta vez, por um as diversas implicações que fatores como bases
outro ângulo, encontraremos a prioridade informacionais e critérios de justiça, por exemplo,
atribuída às liberdades formais na perspectiva do têm sobre as liberdades substantivas dos
libertarismo moderno. Sobre essa teoria, Sen indivíduos e, chegamos até aqui com
apresenta no seu Desenvolvimento como liberdade a considerações significativas sobre as capacidades
abordagem feita por John Rawls sobre tal das pessoas para fazerem coisas que têm razão
prioridade na qual ele procura contestar a para valorizar e sobre a liberdade que cada uma
“desnecessária” amplitude das classes de direitos delas deve ter para viver como gostaria.
que têm precedência política quase total sobre a
Vale ressaltar que nos diferentes usos que
promoção de objetivos sociais. Nas formulações
podemos fazer da perspectiva baseada na
de Rawls os direitos que recebem precedência são
liberdade devemos fugir do maniqueísmo pelo
muito menos amplos, e consistem essencialmente
qual deixamos de reconhecer possíveis limitações
em várias liberdades formais pessoais, como
de uma abordagem estritamente baseada na
alguns direitos políticos e civis básicos. (Sen,
liberdade desprezando outros procedimentos que,
2000)
em determinados contextos específicos, seriam

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bem aproveitados. Contudo, devemos ter em


mente que mesmo nesses casos o desprezo dos
fundamentos e da base de informações relativos
à perspectiva da liberdade poderia acarretar uma
perda significativa da qualidade das avaliações.

8. Referências bibliográficas
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