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ENTREVISTA

COM ERIKA
HILTON:
“APESAR DOS
RETROCESSOS,
ESTAMOS
CONSTRUINDO
NOVOS MARCOS
DE CIVILIDADE”
A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 375 JUNHO DE 2023

ESCOLAS
SOB ATAQUE QUASE METADE DOS
ATENTADOS EM INSTITUIÇÕES
DE ENSINO NA HISTÓRIA DO
PAÍS OCORRERAM NO ÚLTIMO
ANO. O QUE EXPLICA O
DISPARO DESSES CRIMES?
COMPOSIÇÃO
JUNHO DE 2023

03
CAPA
ESPECIALISTAS
ANALISAM ORIGEM
DE ATAQUES A
ESCOLAS
NO PAÍS

“Apesar dos retrocessos, estamos


construindo novos marcos de civilidade”
19 Entrevista com Erika Hilton

35
SAÚDE

PESQUISAS COM CÉLULAS-


-TRONCO AVANÇAM NO MUNDO 47
— E BRASIL É DESTAQUE QUER QUE EU DESENHE?
SOCIEDADE
TEXTO André Bernardo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Igor Frederico DESIGN Flavia Hashimoto

ESCOLAS
SOB ATAQUE DESDE 2002, BRASIL
JÁ TESTEMUNHOU
22 ATENTADOS A
ESCOLAS. DESSES, 12
FORAM COM ARMAS DE
FOGO. ESPECIALISTAS
ANALISAM O FENÔMENO E
APONTAM ALTERNATIVAS
PARA UM MAL QUE JÁ
MATOU 35 PESSOAS,
FERIU 72 E PODE GERAR
AINDA MAIS VÍTIMAS
A
Ainda hoje, 12 anos depois da tragédia que ficou
nacionalmente conhecida como Massacre de Re-
alengo, Adriana Maria da Silveira Machado, de 52
anos, sente o coração disparar toda vez que es-
cuta hélice de helicóptero ou sirene de ambulân-
cia. No mesmo instante, ela é transportada, invo-
luntariamente, para a manhã do dia 7 de abril de
2011, uma quinta-feira, quando um ex-aluno da
Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo,
Zona Norte do Rio de Janeiro, entrou na unida-
de e, com dois revólveres calibre 38, efetuou 62
disparos. Segundo os sobreviventes, o assassino,
de 23 anos, mirava na cabeça das meninas e no
corpo dos meninos. Um dos disparos atingiu Lui-
za Paula da Silveira Machado, de 14 anos. A filha
de Adriana cursava o oitavo ano.

Mesmo ferido no rosto, no ombro e em uma


das mãos, um dos alunos, Allan Mendes da Sil-
va, de 13 anos, conseguiu escapar e pedir so-
corro a três policiais militares que faziam ronda
a 200 metros da escola. O primeiro a chegar ao
local foi o sargento Márcio Alexandre Alves. O
atirador se preparava para ir ao terceiro andar,
à caça de mais vítimas indefesas, quando ouviu
o oficial gritar: “Larga a arma. É a polícia!”. O
criminoso apontou o revólver em sua direção,
5

mas não apertou o gatilho. Em vez disso, foi atingido com um tiro
de fuzil na barriga. Caído no chão, atirou contra a própria cabeça.
O delegado Felipe Ettore descartou a hipótese de o atirador fazer
parte de algum grupo extremista. Para o então titular da Divisão
de Homicídios (DH), ele agira sozinho.

O Massacre de Realengo durou apenas 15 minutos, mas terminou


com 12 crianças mortas, com idades entre 13 e 15 anos. Dessas, dez
eram meninas. Para sobreviver à perda de sua caçula, Adriana fun-
dou a associação Anjos de Realengo, que reúne as famílias das ví-
timas da tragédia e luta por mais segurança nas escolas. Machado
passou a dar palestras sobre combate ao bullying em escolas para
pais e alunos. “Certo dia, minha filha inventou que estava ficando
gordinha. Virei para ela e, levantando a blusa, disse: ‘Garota, vou te
mostrar o que é ser gordinha!’. Ela caiu na risada: ‘Mãe, você é o má-
ximo!’”, lembra Adriana. “Toda vez que chegava em casa, a primeira
coisa que ela fazia era dizer: ‘Mãe, te amo!’. Não economizava amor.
Por isso, digo sempre aos pais e responsáveis: ‘Procurem saber o
que seus filhos estão fazendo ou com quem andam conversando
nas redes sociais. Sejam mais presentes e atuantes!’. Perder uma
filha dentro da escola é algo que eu nunca vou aceitar.”

A ORIGEM DO MAL
O Massacre de Realengo não foi o primeiro ataque a escola regis-
trado no Brasil. Nem o último. Mas foi o mais letal — nenhum outro
provocou tantas mortes. O primeiro caso que teve desfecho trági-
co aconteceu em 28 de outubro de 2002, quando um estudante
6

de 17 anos matou a tiros duas colegas de turma: Vanessa Carvalho


Batista e Natasha Silva Ferreira, ambas de 15 anos. O crime ocor-
reu em um colégio particular de Salvador, o Sigma. Desde então,
outros nove ataques com vítimas fatais foram registrados no país.
O mais recente ocorreu na Escola Estadual Thomazia Montoro, em
São Paulo. Na manhã de 27 de março de 2023, um aluno de 13 anos
do oitavo ano matou a facadas a professora de biologia Elisabete
Tenreiro, de 71 anos.

Ao todo, o Brasil já contabilizou 22 ataques a escolas cometidos por


alunos ou ex-alunos das instituições alvos. É o que aponta o estudo
Ataques de Violência Extrema em Escolas no Brasil, realizado pelo
Instituto de Estudos Avançados (IdEA), da Universidade Estadu-
al de Campinas (Unicamp). Os 22 ataques deixaram um rastro de
35 mortos e 72 feridos. Entre as vítimas, 24 eram estudantes (14
meninas e 10 meninos), quatro professores, dois profissionais de
educação e cinco atiradores. Quanto aos algozes, 16 eram alunos
e 12 ex-alunos, tinham entre 10 e 25 anos e 12 utilizaram armas
de fogo. Desses, seis tinham arma em casa e quatro compraram
de terceiros. No caso dos outros dois, a origem é desconhecida.
“Em sua maioria, esses assassinos são homens, brancos e jovens, e
também misóginos, racistas e homofóbicos”, descreve a pedagoga
Telma Vinha, doutora em Educação pela Unicamp e uma das coor-
denadoras do estudo. “Têm, entre outras características, o gosto
pela violência, o culto às armas, o isolamento social, a falta de um
propósito na vida e um histórico de transtornos psiquiátricos sem
diagnóstico ou tratamento”.
7

Os 22 episódios, ainda segundo o estudo da


Unicamp, ocorreram em 23 escolas, sendo 10
estaduais, nove municipais — uma delas, o Co-
légio Municipal Eurides Sant’Anna, em Barreira
(BA), é cívico-militar — e quatro particulares. O
número de ataques é menor que o de escolas
porque em um deles, na cidade de Aracruz (ES),
o agressor, de 16 anos, atacou duas unidades
no mesmo dia: uma pública, a Escola Estadual
Primo Bitti, e outra particular, o Centro Educa-
cional Praia de Coqueiral. O levantamento não
incluiu atentados desbaratados pela polícia, co-
metidos por adultos ou não planejados, isto é,
que ocorreram em decorrência de fatores alea-
tórios, como briga entre alunos. “Seus alvos são
escolas porque, em termos de segurança, são
lugares vulneráveis. Não têm vigilância arma-
da como shopping centers”, explica a pedagoga

“ALGUNS DESSES ATAQUES FORAM MOTIVADOS


POR FALTA DE ESCUTA. OUTROS PELO NÃO
RECONHECIMENTO DESSES JOVENS NO ESPAÇO
ESCOLAR. ONDE ENCONTRARAM RESPEITO,
ACOLHIDA E ESCUTA? EM GRUPOS EXTREMISTAS.”
Loriane Trombini Frick, coordenadora do Observatório do Clima Institucional
e Prevenção da Violência em Contextos Educacionais da UFPR
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Luciene Tognetta, doutora em Psicologia Escolar e do Desenvol-


vimento Humano e professora de Psicologia da Educação na Uni-
versidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara. “Além disso,
ataques às escolas causam comoção e perplexidade. E tudo o que
os assassinos em massa querem é chamar a atenção da opinião
pública. Quanto mais inocentes morrerem, pensam eles, melhor”.

Dois ataques a creches, ambos em Santa Catarina, não entraram na


estatística por terem sido praticados por “estranhos no ninho”, indi-
víduos alheios às instituições. O primeiro ocorreu em 4 de maio de
2021, no município de Saudades, a 446 quilômetros de Florianópo-
lis. Um jovem de 18 anos invadiu o Centro de Educação Infantil Pró-
-Infância Aquarela e, a golpes de facão, matou três crianças, todas
menores de 2 anos, e duas professoras. O réu vai a júri popular no
próximo dia 9 de agosto. O segundo caso aconteceu no último dia 5
de abril, em Blumenau. Um homem de 25 anos, com uma machadi-
nha e uma faca, matou quatro crianças com idades entre 4 e 7 anos,
e deixou cinco feridas na Creche Cantinho do Bom Pastor. O crimi-
noso se entregou e vai responder por quatro homicídios triplamente
qualificados. Ele já tinha sete passagens pela polícia.

Um fato que chamou a atenção das pesquisadoras Telma Vinha e


Cleo Garcia, que integram o Grupo de Estudos e Pesquisas em Edu-
cação Moral (Gepem), da Unicamp e da Unesp, é que, dos 22 ata-
ques, 10 ocorreram entre maio de 2022 e março de 2023. Juntos,
totalizam sete mortos. Raiva, vingança e extremismo, apontam as
especialistas, estão entre as principais motivações dos assassinos.
9

“O bullying deixou de ser o motivo central dos ataques. É um pro-


blema mais complexo”, analisa a pedagoga Loriane Trombini Frick,
coordenadora do Observatório do Clima Institucional e Prevenção
da Violência em Contextos Educacionais, da Universidade Federal
do Paraná (UFPR). “Alguns desses ataques foram motivados por
falta de escuta. Outros pelo não reconhecimento desses jovens no
espaço escolar. Eram invisíveis na escola. Onde encontraram res-
peito, acolhida e escuta? Em grupos extremistas.” Nessas comuni-
dades virtuais, crianças e jovens destilam ódio, idolatram assassi-
nos e planejam ataques.

ESCOLA OU PRESÍDIO?
O atentado que causou a morte de quatro crianças em uma creche
de Blumenau gerou comoção. Logo, o medo de o Brasil se transfor-
mar nos Estados Unidos, onde o problema é crônico, obrigou ges-
tores e autoridades a anunciar as mais variadas medidas de segu-
rança: de “botões de pânico” e detectores de metais a seguranças
armados dentro das escolas; de câmeras de vigilância e catracas
eletrônicas a rondas policiais no entorno das unidades, de proto-
colos de fuga em caso de invasão a treinamento de autodefesa
para docentes e funcionários.

“Não há soluções simples ou imediatas. Criar leis mais duras ou


reduzir a maioridade penal, por exemplo, não resolvem o proble-
ma. No Brasil, tivemos o caso de um aluno de 10 anos que praticou
ataques. Nos EUA, há outro de 6 que atirou na professora”, relata
a advogada Cleo Garcia, mestranda em Educação pela Unicamp.
NÚMERO DE MORTES EM CADA ATAQUE
2002: Salvador (BA) 2
10 2003: Taiúva (SP) 1
2008: Cariacica (ES) 0
2011: Rio de Janeiro (RJ) 13
Até hoje, foram 22 atentados em 2011: São Caetano do Sul (SP) 1
escolas no Brasil, 10 com vítimas fatais 2012: Santa Rita (PB) 0
2017: Goiânia (GO) 2
2018: Medianeira (PR) 0
2019: Suzano (SP) 9
2019: Charqueadas (RS) 0
2019: Caraí (MG) 0
2021: Americana (SP) 0
ESTADO COM MAIOR ANO COM MAIOR 2022:
MAIO: Rio de Janeiro (RJ) 0
NÚMERO DE ATAQUES NÚMERO DE ATAQUES
AGOSTO: Vitória (ES) 0
São Paulo (7) 2022 (8)
SETEMBRO: Morro (BA) 0
ESTADO COM MAIOR ANO COM MAIOR SETEMBRO: Barreiras (BA) 1
NÚMERO DE MORTES NÚMERO DE MORTES OUTUBRO: Sobral (CE) 1
Rio de Janeiro (13) 2011 (14) NOVEMBRO: Mesquita (RJ) 0
NOVEMBRO: Aracruz (ES) 4
HISTÓRICO DAS ARMAS DE FOGO DEZEMBRO: Ipaussu (SP) 0
✓ 6 tinham arma em casa 2023:
FEVEREIRO: Monte Mor (SP) 0
✓ 4 compraram de terceiros
MARÇO: São Paulo (SP) 1
✓ 2 são de origem desconhecida
TOTAL DE VITIMAS: 35

Fonte: Ataques de Violência Extrema em Escolas no Brasil (IdEA/Unicamp)

QUEM SÃO AS VÍTIMAS PERFIL DOS ALGOZES


✓ 24 estudantes (14 ✓ De 10 a 25 anos
meninas e 10 meninos) ✓ 16 alunos e
✓ 4 professores 12 ex-alunos
✓ 2 profissionais ✓ 12 utilizaram
de educação armas de fogo
✓ 5 atiradores
CARACTERÍSTICA
RAIO-X DAS ESCOLAS DOS AGRESSORES
✓ 10 estaduais ✓ Gosto pela violência
✓ 9 municipais ✓ Culto às armas
✓ 4 particulares ✓ Busca por fama e
reconhecimento
CARACTERÍSTICAS ✓ Isolamento social
DOS ATAQUES ✓ Masculinidade tóxica
✓ Planejamento ✓ Violência doméstica
✓ Agressores sofreram ✓ Abandono escolar
bullying ou foram ✓ Indícios de transtornos
suspensos mentais
✓ Usuários de subcultura ✓ Falta de perspectiva
extremista ou propósito
11

“Um jovem que se propõe a praticar um ataque não tem medo de


ser preso ou morrer. Nossas cadeias não ressocializam ninguém.
Lá dentro, aprendem coisas ainda piores com facções criminosas.
Temos é que transformar nossas crianças e adolescentes em cida-
dãos éticos e críticos”.

Outras estratégias, mais voltadas para a saúde mental, também


entraram em pauta, como a criação de núcleos de escuta e acolhi-
mento nas escolas e a contratação de profissionais de psicologia e
serviço social para identificar sintomas de sofrimento mental e de-
tectar sinais de cooptação por grupos extremistas. Mas ainda não é
suficiente. Segundo o Censo Escolar de 2022, apenas 24,4 mil psi-
cólogos respondem pelo atendimento de 47,4 milhões de estudan-
tes — média de um especialista para cada 1,9 mil alunos. “Em tese,
a escola é o lugar ideal para se identificar problemas emocionais
e transtornos psiquiátricos. Até mais do que a família”, observa o
médico psiquiatra Guilherme Polanczyk, professor de Psiquiatria da
Infância e Adolescência na Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo (USP). “Em geral, os alunos que mais chamam a aten-
ção dos educadores são os barulhentos. No entanto, é preciso estar
atento também aos silenciosos. Tanto um quanto o outro precisam
de cuidado, e não de exclusão”. Uma pesquisa coordenada por Po-
lanczyk entre 2020 e 2022 revelou que, de quase 6 mil adolescentes
entrevistados, 36% relatavam sintomas de ansiedade e depressão.

O governo federal também montou uma barricada para conter o


avanço do que o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio
12

Dino, classificou como “epidemia de ataques às escolas”. Criou um


Grupo de Trabalho Interministerial (GTI), coordenado pelo ministro
da Educação, Camilo Santana, para desenvolver uma Política Na-
cional de Enfrentamento à Violência nas Escolas e apresentar um
relatório no dia 5 de julho, além de uma força-tarefa com 50 poli-
ciais do Laboratório de Operações Cibernéticas (CyberLab) da Se-
cretaria Nacional de Segurança Pública. A ideia é rastrear supostas
ameaças tanto na deep web e na dark web — as camadas mais pro-
fundas e sombrias da internet, indisponíveis para usuários comuns
e repletas de atividades ilícitas — quanto nas redes sociais. Entre
os dias 7 e 25 de abril, o Ministério da Justiça e Segurança Pública
(MJSP) recebeu 8,5 mil denúncias de ataques – 1,8 mil delas em um
único dia. A maior parte não passava de trotes. Na semana do dia
10, por medo de novos ataques, muitas escolas, públicas e particu-
lares, ficaram vazias. Outras sequer abriram suas portas.

No dia 18 de abril, o presidente Lula convocou uma coletiva para


anunciar um pacote de enfrentamento aos ataques. “Não vamos
transformar nossas escolas em uma prisão de segurança máxi-
ma”, declarou na reunião, que contou com a presença da presi-
dente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber; do presi-
dente do Senado, Rodrigo Pacheco; e do presidente do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, entre outros. “Se
a gente tentar fazer isso, está dando uma demonstração de que
não servimos para muita coisa, porque nós não sabemos resolver
o problema real”.
13

Entre as medidas estão a criação da cartilha


eletrônica Recomendações para Proteção e Se-
gurança no Ambiente Escolar, e o lançamento
de um canal de denúncias, o Operação Escola
Segura, parceria do MJSP com a ONG SaferNet
Brasil. “A regulação das redes sociais é impor-
tante e necessária, mas não é suficiente. A so-
lução do problema passa por políticas públicas
de combate às desigualdades, o enfrentamen-
to da violência contra as minorias e a educação
para uma cultura de paz nas escolas. Somos um
país desigual e dividido. A violência nas escolas
é apenas um reflexo disso”, pondera a psicóloga
Juliana Cunha, diretora da SaferNet.

Durante o evento, o ministro Flávio Dino infor-


mou que, em apenas dez dias, a Operação Esco-
la Segura removeu 756 perfis de redes sociais

“A SOLUÇÃO DO PROBLEMA PASSA POR POLÍTICAS


PÚBLICAS DE COMBATE ÀS DESIGUALDADES, O
ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MINORIAS E
A EDUCAÇÃO PARA UMA CULTURA DE PAZ NAS ESCOLAS”
Juliana Cunha, psicóloga e diretora da SaferNet Brasil
14

como Twitter, TikTok e Telegram por supostas ameaças a escolas e


por incitar discursos de ódio. Ao todo, 225 adultos foram detidos e
694 adolescentes intimados a depor. “Vivemos momentos críticos
em abril. Não é exagero dizer que o Ministério da Justiça impediu
uma carnificina”, garante Michele Prado, pesquisadora do Monitor
do Debate Político no Meio Digital, da USP, e autora dos livros Tem-
pestade Ideológica e Red Pill – Radicalização e Extremismo. “Até
pouco tempo atrás, crianças e adolescentes precisavam ir à dark
web para acessar conteúdos extremistas e violentos. Hoje em dia,
esses conteúdos estão disponíveis na superfície da internet, na pal-
ma de sua mão.” O governo federal anunciou, ainda, a liberação de
R$ 3,1 bilhões para estados e municípios investirem em ações de
segurança, saúde e infraestrutura escolar.

Em geral, os especialistas ouvidos por GALILEU aprovam as me-


didas anunciadas pelo governo. Mas apresentam outras soluções,
como o maior controle de armas de fogo e munições, a aprovação
de projetos de leis como o PL 2630, o PL das Fake News, que re-
gula as redes sociais, e a participação do Brasil em fóruns interna-
cionais de extremismo de direita e terrorismo online. “O potencial
ofensivo de uma arma de fogo gera dois efeitos: empodera crian-
ças e adolescentes a cometer tais atrocidades e maximiza o núme-
ro de vítimas fatais”, avalia o economista Daniel Cerqueira, conse-
lheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Não bastasse, o
treinamento em escolas de tiro é um culto aos valores da violência
e, também, um estímulo para futuros consumidores”.
15

Segundo dados dos institutos Igarapé e Sou da Paz, o total de


armas em acervos particulares no Brasil saltou de 1,3 milhão em
2018 para 2,9 milhões em 2022 — 1,2 milhão só nas mãos de
caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs). O nú-
mero de clubes de tiro também disparou: de 1.092 em julho de
2020 para 2.095 em junho de 2022.
16

Especialistas elogiam também a autorregulação da imprensa, que


mudou sua postura na cobertura dos massacres. Para evitar o “efei-
to contágio”, quando a divulgação de um ataque serve de incentivo
para outros praticarem ações similares, veículos de comunicação
adotaram um novo protocolo: não publicar cartas, bilhetes ou mani-
festos deixados pelos agressores, nem noticiar ataques subsequen-
tes malsucedidos, entre outras medidas. “A mídia deixou de citar
nomes, mostrar fotos ou exibir vídeos dos ataques ou de seus auto-
res. Isso, no mundo virtual, era transformado em troféu por jovens
radicalizados de extrema direita”, explica Bruno Langeani, gerente
de projetos do Sou da Paz. “A mudança contribuiu para a redução
drástica não só dos ataques, mas também das ameaças”.

TIROS EM COLUMBINE
Se Adriana Silveira combate o bullying nas escolas brasileiras, Tom
Mauser, de 71 anos, protesta contra a cultura de armas nos EUA.
Em 20 de abril de 1999, dois estudantes da Columbine High School,
uma escola de ensino médio no Colorado, mataram 13 pessoas — 12
alunos e um professor — e feriram outras 24 nas dependências da
escola. Os autores do massacre, de 17 e 18 anos, usaram, entre ou-
tras armas, uma carabina e duas espingardas. Depois de trocarem
tiros com a polícia, cometeram suicídio na biblioteca da instituição.

Daniel Mauser, o filho de Tom, foi uma das vítimas. Tinha 15 anos.
“Meu filho estava sempre desafiando os próprios limites. Não era
atlético, mas se inscreveu no programa de corrida cross country.
17

“NÃO DÁ PARA DIZER QUE O PIOR JÁ PASSOU.


O RISCO DE NOVOS ATAQUES AINDA EXISTE”
Daniel Cara, cientista social e doutor em Educação pela USP

Não era extrovertido, mas se matriculou na tur-


ma de debates de Columbine, onde tinha de falar
na frente de outras pessoas”, recorda Tom Mau-
ser, em entrevista a GALILEU. “Quando comple-
tou 6 anos, organizamos uma festa ao ar livre,
mas choveu o tempo todo. Lá pelas tantas, ao
desembrulhar seus presentes, perguntou se eu
poderia brincar com ele. Cansado, argumentei:
‘Vamos esperar por um dia de chuva!’ Ele virou
para mim e rebateu: ‘Esqueceu que está choven-
do?’. Era um ótimo debatedor”, ri.

Desde Columbine, já houve 380 ataques a esco-


las no país norte-americano. O saldo de vítimas é
de 608 — sendo 198 delas fatais, como Daniel. O
levantamento é do jornal The Washington Post
e vai até abril de 2023. Outro estudo, da ONG
Everytown for Gun Safety, indica que o ano leti-
vo de 2022 foi o recordista em tiroteios em esco-
las: 193 ataques deixaram 59 mortos e 138 feri-
dos. É um número quase três vezes maior que o
18

registrado no ano anterior, 62. Ainda segundo a pesquisa, em 60%


dos casos, o atirador é aluno ou ex-aluno da escola. E mais: em três
a cada quatro ataques, as armas usadas são dos pais ou de parentes
próximos. “Na América, já temos mais de 400 milhões de armas de
fogo. E não há como dar um fim nisso, porque a Segunda Emenda da
Constituição assegura o direito de todo cidadão de andar armado.
O que podemos fazer é tentar mantê-las longe de quem não tem
permissão para usá-las ou de quem representa um perigo para si
mesmo ou para os outros”, explica Tom.

Outros países já testemunharam atentados similares, como a Sérvia.


O mais recente aconteceu no último dia 3 de maio, quando um aluno
do sétimo ano abriu fogo numa escola de Belgrado e matou oito es-
tudantes e um segurança. O atirador, de 13 anos, foi detido. E nada
indica que episódios como esse estejam perto de acabar, onde quer
que seja. “Não dá para dizer que o pior já passou. O risco de novos
ataques ainda existe”, adverte o cientista social Daniel Cara, doutor
em Educação pela USP e um dos coordenadores do grupo de tran-
sição que elaborou o relatório O Extremismo de Direita Entre Ado-
lescentes e Jovens no Brasil: Ataques às Escolas e Alternativas para
a Ação Governamental, apresentado em dezembro. “Precisamos
continuar em estado de alerta. Saímos do estágio de insegurança
em que estávamos em abril, mas temos que prosseguir realizando
ações de monitoramento.” É como diz o lema da associação fundada
por Adriana Machado: “Lembrar é reagir, esquecer é permitir.”
19

ENTREVISTA

Foto: Getty Images

“Apesar dos retrocessos,


estamos construindo novos
marcos de civilidade”
COM Erika Hilton POR Marília Marasciulo
Primeira mulher trans eleita
deputada federal por São Paulo,
política e ativista fala a GALILEU
sobre desafios da comunidade
LGBTQIA+ no país e expectativas
para o novo mandato

E
Em 2020, a paulista Erika Hilton fez história ao se
tornar a mulher mais votada de todo o Brasil ao
cargo de vereadora. Dois anos depois, ela repetiu
o feito: foi a primeira mulher transgênero eleita deputada
federal por São Paulo, em uma das dez candidaturas mais
votadas do estado, o mais populoso do país. No mesmo ano,
foi reconhecida como uma das 100 mulheres mais inspira-
doras e influentes do mundo pela rede britânica BBC.

Sua trajetória, porém, não foi fácil. “Ser jovem, ser mulher,
ser negra, LGBT, me faz sempre precisar correr mais, inclu-
sive pra me legitimar mais, para ser mais respeitada, para
ser ouvida”, afirma Hilton, em entrevista a GALILEU. Natural
de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, ela foi expulsa
de casa aos 15 anos por causa de sua expressão de gênero
e morou na rua por seis anos, até ser resgatada pela mãe.
21

Nesse período, precisou recorrer à prostituição para sobre-


viver. “Eu sou alguém que saiu das esquinas, das periferias,
sou alguém que saiu do nada e hoje posso representar os
interesses da minha população”, orgulha-se.

De volta à família, concluiu o ensino médio e ingressou na


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior
paulista, onde começou a se envolver com política por meio
do movimento estudantil. Em 2015, protagonizou um epi-
sódio que a aproximou da política institucional: ao ser proi-
bida de usar seu nome social impresso em uma passagem
de ônibus, lançou petições online que obtiveram grande en-
gajamento. Foi convidada a se filiar ao Partido Socialismo e
Liberdade (Psol) e chegou a se candidatar a vereadora por
Itu (SP), mas não conseguiu se eleger.

Em 2018, ingressou na Assembleia Legislativa de São Paulo


(Alesp) como uma das nove deputadas do mandato coletivo
liderado pela ativista socioambiental Monica Seixas. Deixou
o cargo em 2020, quando foi eleita vereadora de São Paulo.
Sua atuação em temas relacionados aos direitos humanos e
ao combate à fome marcou esse primeiro mandato. “Me or-
gulho do que deixei em dois anos na Câmara Municipal, de
ter sido proponente criadora do Fundo Municipal de Com-
bate à Fome no momento crucial da pandemia”, comemora,
lembrando alguns de seus feitos.
22

Agora, no Congresso Nacional, Hilton pretende dar continui-


dade a projetos voltados para a população LGBTQIAP+, es-
pecialmente buscando a criação de uma legislação que cri-
minalize a LGBTfobia, mas sempre levando em consideração
a transversalidade das pautas de direitos humanos. “Para
mim é fundamental demarcar que sou uma travesti negra,
mas sou deputada federal, fui eleita deputada federal para
representar o estado de São Paulo, para representar o meu
país. Quero atender às necessidades da comunidade LGBT,
mas quero atender às necessidades do povo brasileiro. Que-
ro discutir um projeto de nação”, ressalta. A seguir, ela fala
sobre sua trajetória política até aqui, os desafios da popula-
ção LGBTQIA + no país e seus planos para o futuro.

VOCÊ INICIOU SUA CARREIRA POLÍTICA EM 2015, APÓS DISPUTA


COM UMA EMPRESA DE ÔNIBUS POR CONTA DO SEU NOME SOCIAL.
POR QUE DECIDIU SE ENGAJAR?

Sempre tive uma relação com a política. Apesar da


minha experiência de vida nunca ter me aproxima-
do da política institucional, era uma realidade mui-
to abjeta, que me inquietava. Eu me perguntava
por que nós [pessoas trans] vivíamos aquela reali-
dade de exclusão da sociedade, de marginalidade,
de expulsão de casa. Mas eu não tinha base e sub-
sídios para me organizar. Quando resolvi retornar
23

à minha casa, retomei a relação com minha família,


ERIKA HILTON
pude voltar a me inserir na sociedade e voltar para Foi a vereadora
a escola. Foi aí que comecei a dar nome a essas mais votada do
Brasil em 2020,
coisas e a entender que era necessário que hou- ao disputar
vesse a continuidade de uma luta que era histórica uma vaga na
por direitos sociais, por participação, pela ruptura Assembleia
Legislativa de
dos espaços de mazela, de abandono, de abjeção. São Paulo. Nas
Nesse momento se deu meu despertar político, de eleições de 2022,
tornou-se a
ativista política e militante, que depois se trans- primeira mulher
formou em política institucional. Porque é o que trans eleita
sempre digo: sou uma ativista, uma militante, te- deputada federal
por SP. Defende
nho uma causa, uma bandeira, uma história de pautas ligadas
vida que me traz até esse lugar. a população
LGBTQIAP+,
pessoas negras e
EM 2018, VOCÊ ENTROU OFICIALMENTE PARA A POLÍTICA INSTI- outras minorias.
TUCIONAL, AINDA QUE EM 2016 TENHA TENTADO SE CANDIDATAR Em 2022, foi
considerada uma
A VEREADORA. O QUE TE LEVOU PARA A POLÍTICA INSTITUCIONAL das 100 mulheres
E, MAIS ESPECIFICAMENTE, PARA O LEGISLATIVO? mais inspiradoras
e influentes do
mundo pela BBC.
Acho que foi a compreensão de que, se não tivés-
semos representações comprometidas com as
agendas da nossa cidadania e da nossa dignidade,
seria muito mais difícil avançarmos nas lutas das
bases e nas lutas sociais que havíamos tramado.
Quando fundei um cursinho para travestis e tran-
sexuais em São Carlos, percebi que não ter apoio
parlamentar, que não ter um parlamento que olhe
24

para essas bandeiras e para essa comunidade, faz


a gente patinar. Políticas públicas são necessárias,
porque elas têm a capilaridade de chegar muito
mais rápido, de alcançar e de transformar valo-
res, o que nos movimentos sociais, muitas vezes, a
gente tem mais dificuldade.

Então, ter essa representação dentro do poder Le-


gislativo foi aquilo que me conscientizou de que
precisamos que haja cada vez mais mulheres ne-
gras, cada vez mais mulheres LGBT, a comunidade
LGBT como um todo, ocupando espaços na políti-
ca. Sonhamos com uma sociedade mais equânime,
mais justa, que não reproduza e repita histórias
como a minha. Uma sociedade que possa combater
o fato de estarmos em primeiro no ranking como o
país que mais violenta essa comunidade.

“Sonhamos com uma


sociedade mais equânime,
mais justa, que não
reproduza e repita
histórias como a minha”
Erika Hilton reflete sobre o que a motivou a entrar na política
25

DIANTE DESSA REALIDADE, COMO É SER UMA MULHER TRANS


PRETA NO BRASIL ATUALMENTE?

É difícil ser uma mulher negra, trans, travesti no


Brasil. Um país que ainda nos mata, extremamen-
te racista e misógino. E esse corpo carrega esses
elementos da mulheridade, da travestilidade e de
raça, que estruturam as relações de poder no país
e nos colocam em situação de subalternidade, de
cidadania de segunda classe. É desafiador, porque
o tempo inteiro estamos brigando para nos man-
termos de pé, para que nossos direitos não sejam
revogados. Temos que estar vigilantes para que
nossas vidas não sejam ceifadas, para que a gente
não tenha nada retirado de nós. Temos que estar
construindo tudo aquilo que todo o tempo é des-
truído e é sempre direcionado a nós. Durante os
processos de retrocesso, como foram os últimos
quatro anos, as mulheres são sempre as primei-
ras a perderem, as mulheres negras, a comunidade
LGBTQIA+; fomos os grupos que mais perdemos.

Então é cansativo, é desafiador, é um obstáculo


por dia. Ao mesmo tempo, é maravilhoso, porque
estamos propondo novas possibilidades de exis-
tência e de modelos de sociedade, a despeito da
violência, do ódio, do retrocesso, dos ataques, da
26

retirada de direitos. Estamos nos garantindo de


pé, vivas, resistindo a todas essas ondas e dizendo
que temos um projeto de política, um projeto de
sociedade, um projeto de país que queremos co-
locar em curso. E isso é prazeroso, porque não são
os homens brancos que estão fazendo essa revo-
lução e essas transformações. Somos nós. Mesmo
na precariedade, mesmo diante da violência, mes-
mo diante dos retrocessos, estamos construindo
novos marcos de civilidade.

O QUE VOCÊ GOSTARIA QUE AS PESSOAS SOUBESSEM SOBRE SE-


XUALIDADE E IDENTIDADE DE GÊNERO?

A sociedade brasileira precisa entender, primeiro,


que essas questões não são nada daquilo que nos
foi ensinado até agora. Tudo o que sabemos sobre
gênero e sobre sexualidade é uma história falacio-
sa muito bem contada, mas ao mesmo tempo mal
contada. Ela é bem contada, porque atende aos
interesses de quem conta, para manter as coisas
da forma como elas estão e determinados grupos
sempre nas camadas mais baixas, enquanto ou-
tros permanecem nas camadas mais altas. E não
me refiro nem à comunidade LGBT, falo sobre mu-
lheres em geral, o patriarcado, as estruturas que
servem para que homens tenham controle.
27

A sociedade deve compreender que o debate so-


bre gênero e sexualidade não é um debate apenas
sobre sexo, é sobre direitos, autonomia, liberdade,
sobre seres humanos. É um debate essencial para
que a gente organize nossas relações enquanto
grupos sociais. Não tem nada a ver com promiscui-
dade, com pornografia, com esses horrores mons-
truosos que são contados. Todos temos um gênero,
nossas sexualidades. Não falar sobre isso é conti-
nuar a ser massa de manobra de uma ordem do-
minante que estrutura as relações. Não é possível
construir uma sociedade melhor se desprezarmos
o debate de gênero e sexualidade.

“Todos temos um gênero,


nossas sexualidades. Não
falar sobre isso é continuar
a ser massa de manobra de
uma ordem dominante que
estrutura as relações”
Hilton aborda a importância de falar sobre identidade de gênero
28

OS ÚLTIMOS QUATRO ANOS FORAM MARCADOS POR RETROCES-


SOS NAS PAUTAS DE DIREITOS HUMANOS E QUESTÕES DE GÊNERO
NO PAÍS. QUAIS VOCÊ CONSIDERA OS MAIS GRAVES?

A retirada de palavras como gênero, sexualidade e


violência obstétrica de livros didáticos, de debates
sobre violência contra a mulher, para mim foi um
retrocesso muito grande. O fim de algumas pastas
e secretarias de ministérios importantes também.
Foram retrocessos que acabaram tirando dessa
comunidade o direito de ser amparada dentro das
legislações e dentro dos governos vigentes.

Mas um dos retrocessos mais graves foi com rela-


ção à destinação orçamentária. Nós tivemos uma
perseguição, um sucateamento orçamentário sem
a execução de emendas parlamentares que ti-
nham destinações voltadas à comunidade LGBTQ+
e a determinadas pautas dos direitos humanos.
Isso impactou diretamente as políticas públicas
nas pontas e as populações que são atendidas por
esses programas ou que seriam beneficiadas por
essas emendas, o que gera maior exclusão social e
maior desigualdade.
29

E EM MEIO A ESSE SUCATEAMENTO, QUAIS VOCÊ CONSIDERA AS PRIN-


CIPAIS LUTAS DA COMUNIDADE LGBTQIA+ NO BRASIL ATUALMENTE?

Acho que nós, enquanto grupos LGBTs, ainda es-


tamos lutando pelo reconhecimento da nossa hu-
manidade, a partir, por exemplo, de uma legislação
específica que criminaliza a LGBTfobia no Brasil.
E seguimos batalhando para que não haja apenas
interpretações e decisões do Supremo Tribunal Fe-
deral, mas para que haja um Congresso que legisle
e garanta direitos à nossa comunidade.

Mas a comunidade LGBTQ+ não é uma coisa homo-


gênea, onde somos todos iguais e as nossas lutas
são iguais. Temos particularidades e especificida-
des muito importantes dentro da nossa própria
comunidade. Por exemplo, a população de transe-
xuais travestis no Brasil, ainda hoje, batalha pelo
reconhecimento da própria identidade, por uma lei
de identidade de gênero, pela garantia à vida, pelo
direito à escolaridade, pelo direito à não violência
do Estado no que diz respeito ao encarceramento
em massa da nossa população. Há particularida-
des, mas acho que, neste momento, enquanto gru-
po LGBTQIA+, estamos batalhando pelo direito à
cidadania plena e à dignidade social.
30

PODE ABORDAR QUAIS SÃO SEUS PLANOS COMO DEPUTADA FEDE-


RAL PARA TRATAR DESSAS PAUTAS?

Desde minha atuação como vereadora, temos nos


dedicado à população em situação de rua, porque
há um aumento gritante da comunidade LGBT vi-
vendo nesse contexto. Quero dar continuidade a
isso, com programas de empregabilidade e mo-
radia para essas pessoas. Porque ao tratar des-
sa questão, não trato apenas da questão LGBT.
Acho importante que a gente possa conseguir ter
no Brasil, a partir do meu mandato, a legislação
da criminalização da LGBTfobia, que haja um ór-
gão de escuta e de recebimento de denúncias que
acolha a população LGBT. Temos trabalhado no
que diz respeito à ampliação de espaços de aco-
lhimento para essas pessoas, que têm ainda um
alto índice de expulsão.

E, é claro, precisamos de políticas de saúde espe-


cíficas. Hoje temos algumas portarias no SUS, mas
que são ineficientes para que a população LGBT-
QIA+ possa ser atendida como qualquer outro indi-
víduo, em especial trans e travestis, que têm par-
ticularidades como hormonioterapia e cirurgia de
redesignação sexual.
31

Nós temos olhado para as questões ambientais,


que também atingem a população LGBT, que estão
entre os mais pobres, que vivem em áreas de ris-
co [para desastres ambientais]. É importante falar
desses outros projetos, porque para mim é funda-
mental demarcar que sou uma travesti negra, mas
sou deputada federal, fui eleita deputada federal
para representar o estado de São Paulo, para re-
presentar meu país. Então, não vou me ater e não
vou discutir apenas recortes únicos e exclusivos
que atendam apenas à comunidade LGBT. Quero
atender às necessidades dessa comunidade, mas
também às do povo brasileiro. Quero discutir um
projeto de nação.

COMO VOCÊ AVALIA OS PRIMEIROS MESES DO NOVO GOVERNO?

O governo tem tentado se estruturar com um Con-


gresso muito difícil, duro, covarde, mas, sem som-
bra de dúvida, é uma transição maravilhosa. Saímos
de um governo fascista, antidemocrático, golpista,
negacionista, para um que respeita a democracia,
as instituições, que tem tentado recolocar nosso
país nos trilhos da democracia. E isso é motivo de
esperança, de alegria. Ainda não tivemos aqui no
Congresso um grande projeto do governo. Mas
acho que o governo tem feito um bom trabalho,
32

tem se esforçado para garantir suas promessas e


seu programa, para varrer da história essa atmos-
fera golpista, fascista e odiosa, e entregar, ao final
dos quatro anos, um governo que tenha consonân-
cia com a necessidade do povo e com as demandas
e lacunas que ficaram abertas e não preenchidas
das gestões anteriores.

POR CAUSA DA SUA ATUAÇÃO TÃO ATIVA NAS PAUTAS LGBTQIA+,


VOCÊ É CONSTANTEMENTE ALVO DE ATAQUES NAS REDES SOCIAIS
E NA PRÓPRIA CÂMARA. COMO LIDA COM ISSO?

Os ataques até diminuíram um pouco, antes eu rece-


bia muita ameaça de morte. Era uma coisa extrema-
mente violenta. Ainda continuo sendo atacada, dis-
criminada, desrespeitada, violentada. Mas acho que
isso será insuperável. A forma como sempre lidei foi
denunciar. Esses criminosos têm que ser identifica-
dos para responder criminalmente por esses atos.
Já temos um protocolo jurídico interno para proto-
colarmos tudo judicialmente, criminalmente. Falou
atrocidades, cometeu crimes presencial ou virtual-
mente? Responderá na justiça. E a justiça é que dirá
se aquilo é ou não passível de ser praticado. Essa é
a forma como tento mostrar que meu mandato e
a minha atuação não serão passíveis desse tipo de
ataque; que a internet não é terra de ninguém.
“Acho que o Senado é um
espaço a ser disputado por um
corpo igual ao meu, por um
projeto político igual ao meu”
Erika Hilton compartilha suas ideias para o futuro, embora no momento o foco
seja seu mandato como deputada federal

LEVANDO EM CONSIDERAÇÃO ESSAS BARREIRAS, DO QUE MAIS SE


ORGULHA DE TER CONQUISTADO?

Me orgulho do que deixei em dois anos na Câmara,


de ter sido proponente criadora do Fundo Municipal
de Combate à Fome no momento crucial da pande-
mia. Me orgulho de ter conseguido chegar aonde
eu cheguei, de poder ser porta-voz dos anseios de
um povo que se sente castrado, silenciado, desmo-
tivado. Sou alguém que saiu das esquinas, das pe-
riferias, sou alguém que saiu do nada e hoje posso
representar os interesses da minha população. E,
através do meu mandato, formular caminhos, saí-
das possíveis para que nossa comunidade e o povo
brasileiro, de um modo geral, possam emergir da
miséria que a política nos colocou. Tenho muito
orgulho de poder ser proponente e coletivamente
construtora de um mundo melhor, de um país mais
possível, de uma sociedade mais digna.
34

E O QUE MAIS VOCÊ AINDA GOSTARIA DE CONQUISTAR EM SUA


CARREIRA NA POLÍTICA INSTITUCIONAL?

Quando cheguei ao Congresso, comecei a entender


que neste momento o que eu quero é conseguir
me consolidar enquanto uma boa deputada fede-
ral, que tenha bom trânsito entre os colegas, que
compreenda a magnitude que é a Câmara Federal,
o Congresso Nacional, para, a partir daí, começar a
desenhar meus projetos.

Uma vez, para uma revista, eu disse que adoraria


ser senadora da República, e tenho essa ambição.
Acho que o Senado é um espaço a ser disputado
por um corpo igual ao meu, por um projeto políti-
co igual ao meu. Mas, por enquanto, estou preser-
vando minha plena atuação enquanto deputada
federal. Meu plano para o futuro, neste momen-
to, é entregar um bom mandato e me apropriar
de todo esse espaço para, a partir daí, começar de
novo a planejar e decidir se quero ir para o Senado,
se quero ir para um outro lugar na vida pública, se
quero permanecer na vida pública, enfim, para co-
meçar de fato a desenhar minha trajetória.
SAÚDE
TEXTO Pâmela Carbonari EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

CIÊNCIA
FRUTÍFERA
DE HIV A CURA DA CALVÍCIE, AS CÉLULAS-TRONCO ESTÃO SE
TORNANDO UMA IMPORTANTE FERRAMENTA PARA A MEDICINA
REGENERATIVA – E O BRASIL TEM DESTAQUE NESSA NOVA CORRIDA
Ilustração: Getty Images
N
Nova York, Düsseldorf, Londres e Berlim são os codinomes das pes-
soas que representam, possivelmente, os primeiros casos de cura da
infecção pelo vírus HIV por meio de um método inovador: o trans-
plante de células-tronco. Os quatro eram portadores do vírus cau-
sador da aids e sofriam com câncer sanguíneo (três com leucemia
e um com linfoma não Hodgkin). A partir do tratamento com qui-
mioterapia e da intervenção com células de doadores compatíveis,
eles tiveram a remissão dos sintomas – tanto do câncer no sangue
quanto da imunodeficiência.

O caso de Nova York virou notícia em março deste ano, após a pu-
blicação de um estudo no periódico Cell por cientistas de diversas
instituições dos Estados Unidos. Com 64 anos, a pessoa por trás
do nome da cidade estadunidense é a única mulher do grupo. Ela
também foi a única que recebeu células-tronco retiradas do cor-
dão umbilical de um bebê, que tinha genes de resistência ao HIV.
O transplante aconteceu em 2017, ela está livre do câncer há cinco
anos e sem medicação antirretroviral há dois.

Outro fato notável da paciente norte-americana é que ela é parda.


Estima-se que a incidência do gene mutante imune ao HIV seja me-
nor do que 1% em populações não brancas — o que reduz as chan-
ces de a intervenção ser bem-sucedida em alguém como Nova York.
37

“É extremamente raro que pessoas diversas encontrem um doador


adulto sem parentesco suficientemente compatível”, destaca Yvon-
ne Bryson, coautora da pesquisa, em comunicado. “O uso de célu-
las do sangue do cordão umbilical amplia as oportunidades para
indivíduos de diversas ancestralidades”, acrescenta Bryson, que é
professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e
diretora do Los Angeles Brazil AIDS Consortium.

Os resultados estão sendo celebrados pela comunidade científica


por confirmarem não só a possibilidade de eliminar o HIV do or-
ganismo, mas a consistência da técnica baseada nesses recursos
celulares — que há décadas vêm chamando atenção por suas pro-
messas incalculáveis de cura.

POR UM PUNHADO DE CÉLULAS


Os seres humanos são compostos por 37 trilhões de células, que
podem ser classificadas em mais de 200 funções. Todas elas – ós-
seas, cerebrais, sanguíneas, musculares ou sexuais – derivam de
células-tronco (CT). Não à toa, em alguns idiomas, como espanhol
e árabe, elas são chamadas de células “mãe” ou “raiz”, pois têm a
habilidade de originar, autorregenerar e se transformar em células
e tecidos específicos.

As células-tronco podem ser divididas em dois grandes grupos de


acordo com sua origem e capacidade de diferenciação. O primeiro
é o das adultas (hematopoiéticas e mesenquimais), que aparecem
durante o desenvolvimento fetal e permanecem no organismo por
38

toda a vida. O segundo é formado pelas embrionárias (totipotentes e


pluripotentes), presentes em embriões humanos poucos dias após a
fecundação, antes mesmo que eles se fixem no útero. As embrioná-
rias darão origem a todos os tecidos do corpo humano – justamente
por essa habilidade curinga, elas podem ser multiplicadas e direcio-
nadas em laboratório para formar qualquer tecido. Mas, apesar do
grande potencial terapêutico, seu uso ainda é polêmico e enfrenta
entraves éticos, morais e religiosos em todo o mundo.

Comparadas às embrionárias, as células-tronco adultas são mais


especializadas. Elas funcionam como cartas de um mesmo naipe.
Por exemplo, as hematopoiéticas, que dão origem aos sistemas
39

imunológico e sanguíneo, podem gerar glóbulos vermelhos, gló-


bulos brancos e plaquetas, mas não produzem células cerebrais.
Da mesma forma, células mesenquimais, capazes de se diferenciar
para formar tecidos de gordura, musculares ou ósseos, não darão
origem a células do sangue.

As CTs adultas são velhas conhecidas da ciência: estão na medula


óssea, na veia do cordão umbilical, na placenta. Mais recentemen-
te, foram descobertas em células de gordura, na polpa dos dentes,
nas paredes do intestino e “camufladas” em vários outros lugares
para substituir células e reparar tecidos que foram danificados em
lesões ou pelo próprio envelhecimento.
40

Nos anos 1980, três décadas após os primeiros transplantes com cé-
lulas-tronco da medula óssea, pesquisadores perceberam que, além
de terem células mesenquimais, a placenta e o cordão umbilical são
fontes abundantes de células-tronco hematopoiéticas (semelhantes
às da medula) – logo, possuem grande propriedade imunológica e
de regeneração. Soma-se a isso o fato de as células do cordão umbi-
lical serem de mais fácil acesso, mais jovens, menos expostas a vírus
e bactérias e 100% compatíveis com a própria pessoa, o que reduz
os riscos de complicação em transplantes. Essa descoberta abriu
caminho para o estudo de terapias contra centenas de problemas.
Décadas depois, o caso de Nova York é um reflexo disso.

DOENÇAS IN VITRO
Degeneração da mácula, incontinência urinária, diferentes tipos
de câncer, tratamento de queimaduras, sequelas de AVC, doenças
cardiovasculares, neurodegenerativas, autoimunes, hepáticas, res-
piratórias e até reversão da calvície compõem a extensa lista de
males que podem ser combatidos com células-tronco. Hoje, quase
2 mil ensaios clínicos sobre terapias do tipo estão em andamento no
mundo, incluindo o Brasil, como mostra a plataforma ClinicalTrials.
gov. Alguns deles bastante promissores e em estágios avançados,
como é o caso de uma pesquisa da Universidade Harvard, nos EUA,
que curou um paciente com diabetes tipo 1.

Mas esse e outros trabalhos não seriam possíveis sem o método que
venceu o Prêmio Nobel de Medicina em 2012 e mudou os rumos da
medicina regenerativa: a reprogramação de células adultas para se
41

comportarem com a versatilidade das células-tronco embrionárias.


A partir do trabalho de Kazutoshi Takahashi e Shinya Yamanaka, as
CTs adultas são submetidas a uma técnica de engenharia reversa e
viram células-tronco pluripotentes de forma induzida.

Com elas, os cientistas conseguem compreender o desenvolvi-


mento de doenças sem depender de animais ou embriões hu-
manos. “As células-tronco pluripotentes induzidas foram uma
grande revolução, porque além de tirar a limitação que temos
com o embrião, permitiram que se utilizassem essas células em
pesquisa básica, para ser um modelo robusto de doenças huma-
nas in vitro”, explica a física Lygia da Veiga Pereira, diretora do
Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias (LaNCE),
do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universi-
dade de São Paulo (USP). “Agora podemos pegar células de uma
pessoa com Alzheimer, por exemplo, e produzir neurônios com
Alzheimer para analisá-los.”

“As células-tronco pluripotentes


induzidas foram uma grande
revolução, porque além de tirar a
limitação que temos com o embrião,
permitiram que se utilizassem
essas células em pesquisa básica”
Lygia Pereira, diretora do Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias
42

Mas nem tudo são flores. Sempre que uma área ganha destaque
na medicina, cresce a picaretagem em torno dela. Não foi diferente
após a descoberta de Takahashi e Yamanaka, quando formou-se
um verdadeiro turismo por clínicas que prometiam intervenções
milagrosas com células-tronco a partir de métodos que ainda não
foram devidamente aprovados pelos órgãos responsáveis.

Em 2017, a Food and Drug Administration (FDA), agência regula-


dora dos Estados Unidos que corresponde à Anvisa no Brasil, emi-
tiu um alerta sobre “prestadores de serviços sem escrúpulos que
oferecem células-tronco sem eficácia comprovada”. “Algumas clí-
nicas anunciam falsamente que a terapia com células-tronco não
precisa ser avaliada e aprovada pela FDA. Mas quando os ensaios
clínicos não são conduzidos sob um IND [sigla em inglês para so-
licitação para novos medicamentos experimentais], isso significa
que a FDA não avaliou a terapia para ajudar a garantir que ela seja
razoavelmente segura”, diz a agência no comunicado.

No momento, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as pro-


messas estão ainda em fase de testes. O que está ao alcance da
população são as células-tronco obtidas do sangue ou da medula
óssea para tratar pacientes com câncer, distúrbios hepáticos ou
imunológicos. Em 2020, a Anvisa chegou a atualizar suas diretri-
zes sobre a avaliação de terapias celulares com base nos critérios
das agências dos EUA, do Japão e da Europa. O que não faltam por
aqui, contudo, são pesquisas que investigam as inúmeras promes-
sas das células-tronco para nossa saúde.
43

BRASIL NO TOPO
Uma a cada 650 crianças que nascem no país tem fissura labiopa-
latina. Esse problema congênito de má formação dos lábios e do
palato (o céu da boca) pode prejudicar o desenvolvimento e é en-
volto em preconceito. As crianças têm mais dificuldade para comer
e falar, o que pode levar a má nutrição, e também costumam sofrer
bullying e até enfrentar problemas de socialização na vida adulta.

Tem solução, mas o método tradicional de reconstrução dos lábios


e do palato é lento e doloroso, com cirurgias em fases diferentes da
vida da criança. Quando ela chega aos 8 anos, os médicos retiram
uma parte de um osso da bacia, a crista ilíaca, para fechar a gengiva.
O processo é complexo e exige alguns dias no hospital. Mas, se não
fizer isso, os dentes da arcada superior não têm nem onde nascer.
44

A dentista Daniela Franco Bueno luta para mudar esse cenário. Pes-
quisadora de células-tronco há 20 anos, quando esse campo da ci-
ência ainda era “mato”, ela desenvolveu um método que assegura
menos dor e menor tempo de recuperação. Em vez de retirar um
naco da bacia, a ideia é usar células-tronco dos dentes de leite da
própria criança para preencher o palato. “Se a gente tem célula-
tronco mesenquimal em qualquer tecido do corpo e sabemos que os
enxertos de ossos nas fissuras são feitos entre 8 e 12 anos, por que,
em vez de usar a crista ilíaca, não usamos célula-tronco do dente de
leite — que, querendo ou não, vai cair?”, indaga Bueno.

Estudos clínicos mostraram que o método é tão eficiente quanto o


tradicional. Só que, além de menos invasivo, ele é mais simples, o
que requer menos profissionais no centro cirúrgico e menos tempo
de hospitalização. Em 2020, cirurgiões de diversas regiões do país
testaram o procedimento, que aguarda regulamentação da Anvisa
e, se tudo der certo, estará disponível no SUS. Embora essa etapa
ainda leve mais algum tempo, o reconhecimento a Bueno já chegou:
a técnica rendeu a ela, no ano passado, um prêmio da Sociedade In-
ternacional para Terapia Celular e Genética (ISCT, na sigla em inglês).

As células-tronco mesenquimais (CTM) têm se mostrado eficazes


também no tratamento de lesões no joelho. Cirurgias do tipo são
invasivas e complexas, mas a alternativa é promissora. “Essas cé-
lulas têm a capacidade de se diferenciar em outros tecidos, como
ósseo e cartilaginoso. Elas regulam o sistema imune ao redor, o
que deixa o ambiente mais propício para o tratamento da lesão”,
O Brasil é o terceiro país com mais
pesquisas clínicas sobre células-
-tronco nas Américas, atrás de
Estados Unidos e Canadá
Fonte: ClinicalTrials.gov

diz o cirurgião ortopédico Tiago Lazzaretti Fernandes, do Grupo


de Medicina do Esporte do Instituto de Ortopedia e Traumatologia
do Hospital das Clínicas da USP. As pesquisas feitas pelo time lide-
rado por Fernandes tiveram resultados positivos até o momento.
“Tenho uma visão otimista, acho que em cinco a dez anos esse tipo
de terapia estará disponível no Brasil”, diz o médico.

As mesmas capacidades de regeneração e reconstrução das células-


tronco podem ser úteis, ainda, na dermatologia. Um estudo brasilei-
ro de 2020 mostrou que um tratamento com CTM contra o envelhe-
cimento da pele trouxe resultados positivos em semanas. A injeção
de células-tronco do tecido adiposo se revelou capaz de regenerar a
pele afetada por elastose solar, processo em que as fibras elásticas
e de colágeno são desgastadas pela exposição ao sol.

Até na compreensão dos efeitos de antidepressivos na gravidez


essas células podem ajudar. Para tentar entender melhor a atua-
ção dessas drogas no cérebro humano, cientistas do Laboratório de
Neurogenética da Universidade Federal do ABC, em São Paulo, pro-
puseram um modelo experimental de ensaios com células-tronco de
pluripotência induzida para investigar os neurônios do embrião no
útero de mulheres em tratamento com antidepressivos. Como esse
46

tipo de célula-tronco tem o poder de gerar organoides cerebrais, ele


pode ser aproveitado para observar os efeitos dos remédios em di-
ferentes dosagens e ao longo do desenvolvimento embrionário.

O Brasil é o terceiro país com mais pesquisas em células-tronco nas


Américas, atrás de Estados Unidos e Canadá, como mostra a plata-
forma ClinicalTrials.gov, que reúne ensaios clínicos de todo o mundo.
Somente em 2023, por exemplo, um professor da Universidade Fe-
deral de Santa Catarina (UFSC), em parceria com Harvard, teve três
estudos divulgados em publicações científicas de renome. Edroaldo
Lummertz da Rocha e sua equipe usaram um software específico
para investigar processos biológicos na formação de células sanguí-
neas. Uma proteína chamada APP, conhecida por estar envolvida
em doenças neurodegenerativas, também participa da criação de
células-tronco hematopoiéticas, segundo as investigações.

Para Daniela Bueno, reconhecimentos como esse se devem ao fato


de profissionais de diversas áreas trabalharem juntos. Isso envolve
cirurgiões plásticos, pediatras, dentistas, biólogos, biomédicos e até
engenheiros de materiais, todos cientes do potencial revolucionário
das células-tronco. “Existe um interesse grande da academia e, além
da qualidade dos profissionais envolvidos, os custos para pesquisas
e ensaios clínicos são comparativamente mais baratos do que nos
Estados Unidos, por exemplo”, lembra Tiago Lazzaretti Fernandes.
A esperança é que, enquanto as pesquisas avançam, mais pessoas
possam colher os frutos que brotam desse ramo da ciência.
QUER QUE EU DESENHE?
POR BERNARDO FRANÇA

ACLAMADO PELA DIREÇÃO DE FILMES COMO KILL BILL E PULP


FICTION, QUENTIN TARANTINO TAMBÉM FEZ CARREIRA COMO
ATOR. CONHEÇA CURIOSIDADES SOBRE A VIDA E
A OBRA DO NORTE-AMERICANO
TEXTO
Maria Clara Vaiano
48

Em 27 de março de 1963, nascia em


Knoxville, nos EUA, Quentin Jerome
Tarantino. Filho de um ator e músico ítalo-
-americano e de uma enfermeira, o menino
que se tornaria um dos diretores mais
famosos do cinema viveu até os 4 anos em
sua cidade natal. Depois, mudou-se com a
mãe para a Califórnia.
49

Apesar da fama na direção de filmes,


Tarantino também tem um currículo extenso
como ator: ao todo, estrelou 35 séries e
filmes. Em sete dos longas, ele também era o
diretor — entre eles, Cães de Aluguel (1992) e
Bastardos Inglórios (2009).
50

Foi com Cães de Aluguel, aliás, sua estreia


como diretor e roteirista. Aclamado pela
crítica, o filme alçou Tarantino à fama.
Dois anos depois, estreou Pulp Fiction. O
filme ganhou prêmios internacionais e,
em 1995, levou o Oscar de Melhor Roteiro
Original, além de ter sido indicado a
Melhor Filme e Melhor Diretor.
51

As produções de Tarantino são conhecidas


por seu caráter sanguinário e violento. Nos
dois volumes de Kill Bill (2003 e 2004), foram
usados mais de 450 galões de sangue falso.
Outra marca são os palavrões: o termo fuck
é usado mais de 100 vezes em Era Uma Vez em
Hollywood (2019) e Jackie Brown (1997).
52

Há tempos, especula-se sobre a


aposentadoria do diretor. Mas tudo indica que
mais um filme vem aí — e não é o esperado Kill
Bill 3. The Movie Critic acompanha a vida de
uma jornalista de cinema na década de 1970
e, segundo Tarantino, deve ser seu décimo e
último longa. Será?

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